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Voltou para casa após três anos
Espoir chorou durante toda a caminhada pela �loresta. A camisa estava encharcada de lágrimas, como se tivesse chovido. Se parasse, o soldado batia nele com um pedaço de pau. Espoir não parava de pensar em sua mãe e pai, e achava que nunca mais os veria ...
Espoir, cujo nome significa Esperança, vem da província de Kivu do Sul, na República Democrática do Congo. Esta é a história de três anos da sua vida:
“Eu tinha dez anos, quase onze. Todos os dias, me levantava cedo para trabalhar de manhã, principalmente carregando lixo e em colheitas das machambas. Por meio dia de trabalho, eu ganhava 2000 CDF (USD 1) ou um quilo de mandioca.
Eu ia à escola no período da tarde. Depois das aulas, jogávamos futebol com uma bola que fazíamos com plástico. Todas as quartas e sábados, eu ensaiava com o coro da igreja. À noite eu fazia o trabalho de casa à luz do fogo.
Eu tinha ouvido falar de meninos nas aldeias vizinhas sendo sequestrados e forçados a tornarem-se crianças-soldado. Sempre me preocupava que um dia eu também fosse raptado. Porém, como minha família é muito pobre, não podíamos fazer nada a respeito. Não podíamos nos mudar para a cidade, que seria uma forma de ter mais segurança.
Coisas terríveis acontecem...
Acordei cedo como sempre, comi uma batata doce fria, tomei um copo d'água e comecei a caminhar para a escola com dois amigos. A caminhada até a escola leva uma hora, e costumávamos conversar sobre coisas engraçadas.
De repente, um grupo de homens armados saiu de um arbusto e parou diante de nós, no caminho. Eu estava com tanto medo que fiquei petrificado. Pensei na morte imediatamente, mas, com a ajuda de Deus, não fui morto.
Chorávamos e tremíamos de medo.
– Por favor, deixem-nos voltar para nossas famílias, imploramos.
– Ora, eles disseram nos batendo com paus enquanto nos arrastavam para longe, para a floresta.
– Não tentem escapar! E não parem! comandou um deles.
Carregávamos nossas mochilas escolares e sacos pesados de comida, que eles haviam roubado em algum lugar.
Comia mandioca crua
A floresta me assustava. Eu temia que animais selvagens nos matassem e nos comessem. No início da caminhada, tentamos fugir. Então, nos colocaram à sua frente, e um deles disse com voz rouca:
– Tolos, apenas ousem tentar fugir. Os ajudaremos a encontrar seus ancestrais mortos onde estão agora. E não sentiríamos pena de vocês.
Caminhávamos dia e noite, comíamos mandioca crua dos sacos que éramos obrigados a carregar, e bebíamos água das fontes. Quando estávamos muito cansados e ficávamos para trás, eles nos batiam com suas varas para nos apressar.
Achei que nunca mais veria minha mãe e meu pai ou meus irmãos e irmãs. Eu via a cena de como seria morto pelos soldados, que me espancavam como se eu fosse uma cobra.
Eu chorava o tempo todo. Minha camisa ficava encharcada de lágrimas, como se tivesse chovido.
A guerra na R.D. do Congo, que ocorre desde 1998, é uma das guerras mais brutais da história mundial. Mais de 6 milhões de pessoas morreram em combates, ou de fome e doenças como resultado da guerra. No ponto máximo, havia mais de 30.000 crianças-soldado no país; hoje talvez sejam 15.000. Mais de 7 milhões de crianças não frequentam a escola.
Ao chegar ao centro de recepção da organização BVES, as crianças-soldado queimam seus uniformes, como sinal de que agora deixarão seu tempo como criança-soldado para trás. “Uniforme militar nunca mais” e “Escola Sim, Acampamento Militar Nunca Mais” estão escritos em dois dos cartazes.
Tentou ajudar crianças
No início, tivemos que passar por um rito de iniciação, com drogas e fetiches, itens que levaríamos para a batalha para nos proteger de sermos atingidos pelos projéteis. Depois, aprendemos a atirar. Levei três meses para conseguir usar bem as armas. Primeiro, a carabina automática AK47 e, depois, a metralhadora PKM. Depois, participei de batalhas contra outros grupos armados e contra o exército do nosso país.
Uma noite, bebemos kanyanga, que me embebedou. Dei alguns tiros para o ar e o comandante da companhia mandou que eu pagasse CDF 40.000 (USD 20) pelos projéteis, mas pagar tanto era impossível para mim. Então, ele ordenou que meus companheiros me dessem 15 chicotadas. Fugi naquela noite e parti para minha aldeia natal. Mas encontrei outro grupo armado e fui torturado até concordar em me juntar a eles. Roubávamos nas machambas e casas e cometemos roubos de veículos à tarde e à noite.
A bolsa da BVES
Todas as crianças que estiveram no centro para crianças em situação de rua da BVES recebem uma bolsa com coisas para facilitar a vida ao voltarem para suas famílias.
Espoir, 14 anos, R.D. Congo
Representa crianças que foram forçadas a tornarem-se soldados e crianças que vivem em con�litos armados.
TEM SAUDADES: Da minha família.
A COISA MAIS DIVERTIDA: Jogar futebol e cantar no coral.
A PIOR COISA: Ser sequestrado e torturado.
A COISA MAIS IMPORTANTE: Frequentar a escola.
DISCIPLINAS FAVORITAS: Francês, história, educação moral e sobre a sociedade.
QUER SER: Professor e salvar crianças.
Nunca me envolvi em rapto de crianças. Quando meus colegas traziam novas crianças, eu tentava ensiná-las a fugir e escapar de um destino como o meu.
Finalmente livre
Eu queria visitar minha família e, uma noite, parti. No caminho, fui preso por um soldado do governo que me levou a uma prisão. Fui colocado em uma pequena cela com homens, que me maltrataram. Eles pegavam minha comida, que vendiam para comprar cigarros com o dinheiro. Estava tão lotado que, durante a noite, tínhamos que nos revezar entre ficar em pé e dormir no chão.
– A organização BVES veio visitar minha cela. Quando viram que eu era criança, pediram ao carcereiro que me entregasse a eles. Pude ir para o centro da BVES para crianças-soldado libertadas, e tive a chance de me recuperar lá até sentir-me pronto para voltar para casa.
De volta a casa!
Então, chegou o dia que tanto desejei desde que fui raptado, o dia em que me reuniria com minha família. Ficamos muito felizes e todos nós choramos. Depois de alguns dias, o medo começou a tomar conta de mim. Desde então, sempre tenho medo de voltar a ser raptado se os grupos armados descobrirem que estou de volta à aldeia. Também temo ser pego novamente pelos soldados do governo.
Voltar à escola significa muito para mim. Sinto que isso me ajuda a poder preparar meu futuro e o da minha família. Meu objectivo é me tornar professor. Mas também quero lutar pelos direitos da criança e evitar que crianças sejam levadas por grupos armados e separadas de suas famílias.” c
A bolsa contém:
A família e dois gatos compartilham uma cama de casal. Dahlia e Marsadez têm, cada uma, um mural onde penduram suas fotos e desenhos