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concinnitas ano 8, volume 2, nĂşmero 11, dezembro 2007


Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Co-editores Luiz Felipe Ferreira, Roberto Conduru Conselho Editorial Alberto Cipiniuk ART-UERJ / PUC-RJ, Arlindo Machado USP / PUC-SP, Carlos Zilio UFRJ, Christine Mello SENAC-SP, Cristina Salgado ART-UERJ / PUC-RJ, Eduardo Kac Art Institute of Chicago, Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte, Gilles Tiberghien Paris I, Gustavo Bonfim PUC-RJ, Hélio Fervenza UFRGS, Hugo Segawa USP, Isabela Nascimento Frade ART-UERJ, Jorge Luiz Cruz ART-UERJ, José Thomaz Brum PUC-RJ, Kátia Maciel UFRJ, Lorenzo Mammi USP, Luciano Migliaccio USP, Luis Andrade ART-UERJ, Manuel Salgado UFRJ, Márcia Gonçalves IFCH-UERJ, Maria Beatriz de Medeiros UnB, Maria de Cáscia Frade FAV-RJ, Maria Luiza Saboia Saddi Artista plástica, Mario Ramiro USP, Michael Asbury Camberwell College of Art, Milton Machado UFRJ, Nanci de Freitas ART-UERJ, Nuno Santos Pinheiro Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Paulo Sergio Duarte UCAM, Rafael Cardoso Denis PUC-RJ, Ricardo Basbaum ART-UERJ, Rodrigo Naves CEBRAP, Rogério Luz UFRJ, Sonia Gomes Pereira UFRJ, Vera Beatriz Siqueira ART-UERJ, Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ Direção de Arte e Design Ligia Santiago Web Design Mariana Maia Equipe de Produção Gabriella de Amorim Gen, Henrique Ferreira Revisão Maria Helena Torres Capa / Quarta capa Cezar Bartholomeu. Passage/Panoramas/Galerie/Variétés, 2007. Elisa de Magalhães. O anel, trabalho apresentado nas versões corpo (foto maior) e anel (foto menor), 2007, foto Wilton Montenegro. Francini Barros. Série Impulsos, 2005, foto Ana Torres. Inês de Araujo. Sem título, desenho (guache e grafite), 109 x 83cm, 2007, foto Wilton Montenegro. Nelson Ricardo. Objeto love, coqueteleira de acrílico, água e óleo, 2001. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Este volume recebeu apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) e de Furnas Centrais Elétricas S. A. por meio de seu programa de patrocínio cultural. Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.

Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC

2007

concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]


Sumário

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Apresentação Dossiê

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Cristina R. Campos Corpo pintado: arte e tradição xavante

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Eliane Coster Poética e religiosidade na fotografia contemporânea do candomblé

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Elisa de Magalhães Eu é um outro / Eu é o outro: questões de influências artísticas na arte contemporânea brasileira

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Fernanda Pequeno da Silva O apocalipse como hipótese?

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Francini Barros Andarilho – impulso e trivialidade

58

Inês de Araujo Desfazer como fazer

66

Marina P. de Menezes A arte contemporânea como conteúdo e fundamento para a prática do ensino de artes

78

Nelson Ricardo Cruzando o espaço intermediário Artigos

92

Roberto Corrêa dos Santos Artaud / O Rosto

100

Cezar Bartholomeu Passage/Panoramas/Galerie/Variétés

103

Márcio Seligmann-Silva Quando a teoria reencontra o campo visual – Passagens de Walter Benjamin

116

Alexandre Costa A promessa de Prometeu e o dilema de Sísifo: a tragédia do conhecimento e sua transgressão pela arte

130

Claudia Valladão de Mattos Arquivos da memória: Aby Warburg, a história da arte e a arte contemporânea

140

Fernanda Marinho A simbologia cristã e pagã no início do Quinhentos italiano: um estudo de caso Traduções

147

Paul Bohannan O artista e a crítica em uma sociedade africana

155

Martha Rosler Vídeo: expandindo o momento utópico Resenhas

176

Sheila Cabo Geraldo Documenta 12 e 52a Bienal de Veneza: pensamentos sobre a modernidade

186

Afonso Luz Unidade provisória

190

Renata Reinhoefer F. França Arte dissolve sólido

197

Raphael Fonseca A árvore e a girafa: sobre exibir filmes e liberdade

201

Léo Morais Tropicália Brasilis os carnavais de Fernando Pinto

205

Abstracts

207

Sobre Concinnitas

207

Normas para publicação



Como seu nome indica, Concinnitas vem-se constituindo como espaço Cezar Bartholomeu. Passage/Panoramas/Galerie/Variétés, 2007.

de encontros e cruzamentos de diversos olhares, característica que se reforça nesta edição, a atravessando por inteiro. Essa tônica ampliou-se recentemente em suas parcerias: além do suporte da Faperj para aquisição de equipamentos, o apoio de Furnas Centrais Elétricas S. A., por meio de seu programa de patrocínio cultural, está sendo fundamental para aperfeiçoar o processo de produção da revista. Na 11a edição, em vez de um tema, a editoria optou por publicar um dossiê multitemático, um conjunto de textos derivados de algumas das dissertações de mestrado feitas pela primeira turma do Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Artes da UERJ. Cristina R. Campos, Eliane Coster, Elisa de Magalhães, Fernanda Pequeno da Silva, Francini Barros, Inês de Araujo, Marina P. Menezes e Nelson Ricardo abordam temas variados – pintura corporal indígena, fotografia, candomblé, ensino de arte, arte contemporânea –, desenvolvidos nas três linhas de pesquisa que constituem o Programa. O conjunto de temas abordados na seção de artigos livres também é bem diversificado, em função de colaborações provenientes de diferentes regiões do Brasil que Concinnitas recebe, avalia e publica. Sobressai de imediato o texto de Márcio Seligmann-Silva, da Unicamp, sobre Passagens, obra-chave de Walter Benjamin, que acaba de ser traduzida e publicada no Brasil. Para dialogar com esse texto, convidamos o artista Cezar Bartholomeu a produzir um ensaio nas célebres passagens parisienses. Além dos textos de Alexandre Costa, Cláudia Valladão de Mattos e Fernanda Marinho sobre as relações entre conhecimento e arte, pintura quinhentista italiana, Aby Warburg e arte contemporânea, há o ensaio Artaud / O Rosto, de Roberto Corrêa dos Santos. Na seção de traduções, que procura disponibilizar reflexões relevantes ainda não publicadas em português, há neste número um artigo de Paul Bohannan, antropólogo recentemente falecido, sobre a necessidade de juízo crítico na análise da dita arte primitiva e um texto já considerado histórico de Martha Rosler sobre o vídeo e sua historiografia. Temos ainda uma alentada seção de resenhas, começando com a análise feita por Sheila Cabo Geraldo, editora de Concinnitas, das últimas edições da Documenta de Kassel e da Bienal de Veneza; há leituras de eventos, publicações e obras feitas por Afonso Luz, do Ministério da Cultura, Renata Reinhoefer F. França, Raphael Fonseca e Léo Morais, discentes e ex-estudantes do Instituto de Artes da UERJ: do mestrado em Artes, do bacharelado em História da Arte e do curso de extensão (aperfeiçoamento) para carnavalescos que o Instituto promoveu no primeiro semestre de 2007, em parceria com o Centro Cultural José Bonifácio, da Secretaria das Culturas da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro. Assim, seguindo uma tradição brasileira, especialmente carioca, o volume acaba em samba. Esperando que essa diversidade encontre múltiplos ecos, desejamos a todos, boa leitura e reflexões. Roberto Conduru Co-editor

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Corpo pintado: arte e tradição xavante Cristina R. Campos

A plástica corporal xavante, expressão simbólica impregnada de códigos comunicantes, constitui a maneira pela qual o indivíduo se socializa como membro de sua comunidade. Sua forma está relacionada à classificação do indivíduo segundo a linhagem, o grupo social, a classe e a categoria de idade, bem como ao conteúdo estético, ético, moral e político dessa sociedade. Criatividade e norma, tradição e inovação materializam o discurso artístico comungado nas aldeias xavante. Arte xavante, corpo pintado, tradição. As formas de expressão – falada, dançada, cantada, pintada – operam Pintura corporal dos padrinhos e madrinhas (Aldeias São Marcos e Guadalupe, MT), 2005, fotos Paulo Delgado.

com uma multiplicidade de sentidos que só se torna possível num regime de diferenças, de relação com a alteridade. É nesse sentido que o conceito da différance desenvolvido pelo filósofo Jacques Derrida pode ser apreendido na compreensão da arte indígena. Uma différance é um movimento de espaçamento, uma heterogeneidade que não é primordialmente oposicional, tampouco dialética: “é uma reafirmação do mesmo, uma economia do mesmo em sua relação com o outro, sem que seja necessário, para que ela exista, congelála, ou fixá-la numa distinção ou num sistema de oposições duais” (Derrida, 2004: 34). Derrida busca encorajar uma abertura, legitimando a não-existência de verdade única ou interpretação, com caráter de disseminação de possíveis e novos sentidos. Reconhecer a pluralidade de discursos, com atitude de disseminação de possíveis e novos valores me faz acreditar em um modo de interpretar e repensar a forma como os indicado-

1 Termo utilizado na antropologia para definir a sociedade civil e destacar o caráter marginal ocupado pelas comunidades indígenas.

res estéticos operam em outras culturas, consideradas à parte da “sociedade nacional”,1 primordialmente focando o caráter marginal ocupado pelas comunidades indígenas, ou seja, compreender sua intra-estética – não no sentido usado por Geertz quando critica os estudiosos que tratam as manifestações artísticas como se pertencessem a uma única categoria, mas como aborda Frade (2004), quando se apropria do termo (intra-estética) para argumentar que cada grupo social constrói seu discurso artístico que legitima uma “forma” criando categorias próprias de eleição e fruição estética. Remeto-me também a Overing (1994) que, corroborando Goodman, enfatiza que tachamos o outro de obscuro e misterioso em seu processo de pensamento quando é mais provável que não compreendamos a relação entre sua “simbolização” e seus parâmetros de conhecimento e explicação. Não existe um fundamento de realidade ao qual possamos recorrer

2 Termo usado pelos Xavante para designar o indivíduo de outra etnia, o estrangeiro.

para avaliar as versões de mundo. Julgar a arte xavante a partir de pressupostos eurocêntricos, através de lentes “warazu”,2 pode não traduzir o discurso artístico comungado

Corpo pintado: arte e tradição xavante Cristina R. Campos

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entre os Xavante e certamente a excluirá da arte produzida pela sociedade dominante, ou seja, da arte autorizada por uma estética ocidental. A visão antropológica da arte vem desde o final do século passado se espraiando para além de suas fronteiras disciplinares. Possui a força de abertura para a alteridade. Price (2000) diz que, ao longo das últimas décadas, um número cada vez maior de estudiosos que aplicam o conhecimento da história da arte ao estudo da arte primitiva reconhece a necessidade de sutileza e cuidado na descrição da delicada interação entre a criatividade individual e os ditames da tradição ocidental. Alguns observadores ocidentais, ao pensarem que sua sociedade representa um fato singularmente superior na história da humanidade, insistem em cultivar a imagem de artistas primitivos como ferramentas não pensantes e não diferenciadas de suas respectivas tradições, a quem é essencialmente negado o privilégio da criatividade e devendo dessa forma continuar no anonimato. As práticas simbólicas e os discursos embasados nas diferenças e suas fronteiras enfatizam a inclusão do outro – a “outridade”. Cada pessoa de um grupo social verá diferentes tonalidades e diferentes formas de um mesmo fenômeno, e sua sensibilidade estética se manifesta com indicadores próprios. Para entendê-la é necessário perceber de que maneira o discurso artístico é constituído. Entender a arte exógena pelo sistema que o outro apresenta. Esse entendimento, que na contemporaneidade caminha para o diálogo com as diferentes possibilidades, com as diferentes formas de manifestação estética, abre espaço para os artistas indígenas que buscam reconhecimento no cenário atual. A arte xavante revela um mundo de imagens cujo repertório simbólico é a própria base da socialidade. Ao se apresentar extraordinariamente em rituais e cerimônias, o corpo xavante é o instrumento fundamental para a encorporação3 dos elementos da natureza, dos animais e dos espíritos, assim como das próprias categorias sociais xavante. Todos os corpos, o humano incluído, são concebidos como vestimentas ou envoltórios (Viveiros de Castro, 2002). Essa investidura, essa vontade de diferenciação não se resume apenas

3 Viveiros de Castro cria o neologismo encorporar para explicitar certas disposições específicas – esquemas de percepção e ação – em que a forma corporal humana é apreendida pelo perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002: 374).

em decorá-lo; consiste em construí-lo, contribuindo efetivamente para o entrelaçamento entre a estética e as características dos domínios da sociedade, da natureza e da sobrenatureza. O corpo não é apenas suporte de um discurso simbólico; ele também participa como elemento plástico. Suas qualidades formais integram o sentido estético xavante. O símbolo não mais se explicita. Forma e conteúdo, significado e significante se complementam nas forças espirituais que desempenham importante papel em sua cosmovisão: nas forças dos espíritos do bem, que cultivam a vida, e nas do mal, que provocam doenças e mortes. Os Xavante, até a década de 1960, andavam nus4 e revestiam seu corpo pintando-o e adornando-o em ocasiões de rituais e cerimônias. Apesar das transformações que têm vivenciado após o contato com os não-índios, mantêm essa tradição, porém outros elementos foram aos poucos sendo assimilados nessa vestimenta cerimonial. O short, entre

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4 Nus na perspectiva warazu.


esses elementos exógenos, que é usado predominantemente nas cores preta ou vermelha, compõe a indumentária xavante integrando-se à pintura corporal e, no caso das mulheres, o soutien combinando com a cor do short. Hiparidi (2007) explica que essa atitude é intencional e que buscam apoio da Funai para a aquisição desses acessórios rituais. A pintura corporal é formada de grandes áreas nas cores vermelha do urucum, negra do jenipapo e carvão e, em alguns casos específicos, na cor branca da argila. O caráter pictórico é primordial entre os Xavante, mas, no entanto, aparecem também alguns elementos gráficos que interagem com os pictóricos, como axadrezados, listras, pontilhados, quadrados, retângulos, tracinhos e bolinhas. As cores pintadas em seu corpo devem ser interpretadas a partir de códigos próprios. Cada informação cromática se insere num sistema que estrutura um grupo semântico específico. O vermelho e o preto, como elementos básicos na plástica corporal, definem um estilo dual: “é a realização de uma arte visual de um povo que resume no jogo do vermelho e preto temas cruciais da vivência humana: a vida/procriação e a morte/agressividade” (Müller, 1992: 98). Hiparidi diz que o vermelho representa vaidade, vitalidade e beleza, e o preto, responsabilidade, status social adquirido ou a conquistar perante a sociedade. O corpo é o sujeito do ser que combina com essas cores (...) Cada fase significa se criança ou adolescente. A pintura não é só a arte, em cada pessoa vai se modificando porque tem a ver com o sentimento da pessoa, a personalidade da pessoa e com a espiritualidade. Como a pessoa está. Aí vai ter uma área maior de preto ou vermelho, dependendo da pessoa (Hiparidi, 2007). Como usam as mãos e os dedos para se pintar, a relação entre quem pinta e quem é pintado termina por integrar todos os demais sentidos que ela envolve. Relação que é vivenciada através das mãos que tocam o corpo de diferentes modos e que imprimem e selam no pintado sua afinidade e afetividade. Quando se pintam, a parte da frente é realizada pelo próprio indivíduo (atualmente com a ajuda do espelho) e a parte de trás pelo pai, pa5 São os que fazem parte da mesma classe de idade.

drinho, madrinha, amigo ou amiga,5 complementando a relação entre aquele que pinta e aquele que é pintado. O senhor Adão, pajé da Aldeia Abelhinha, salienta: “Na vida a gente não é auto-suficiente. O outro sempre complementa a gente” (Adão Top’tiro, 2005). O vermelho urucum se caracteriza, aos olhos xavante, por sua grande beleza; acima de tudo fortalece as pessoas. Estabelecem também uma conexão explícita entre o urucum (bö) e o sol (bödö). O sol, o urucum e o vermelho fazem parte de um único complexo que, está associado a propriedades vitais, criativas, positivas, afirma Maybury-Lewis (1984). A cor preta está associada à destruição, à idéia de fim. É o elemento de oposição ao vermelho. Quando os indivíduos vão participar da abertura de uma fase ritualística, pintam-se de vermelho e, no momento de encerramento, todos usam uma pintura preta. Essa antítese se expressa também na classe de idade que está para deixar a categoria de

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rapaz. “Nesse momento, os representantes da primeira delas estão significativamente pintados de preto, o que simboliza o fim de sua condição de guerreiros; o outro, de vermelho, o que simboliza sua passagem para a posição deixada vaga por seus antecessores” (Maybury-Lewis, 1984: 318). A cor branca entre os Xavante significa ausência de cor. “O branco proveniente de uma espécie de argila é utilizado em motivos que representam animais e espíritos” (Müller, 1979: 27). Giaccaria (2000) relaciona a cor branca ao colar de algodão que “é o peito branco do gavião, como está contado no mito da moça infiel que, por castigo, foi jogada no fogo e se transformou em gavião. Como ela tinha o colar de algodão, o peito do gavião ficou branco” (Giaccaria, 2000: 39). Os símbolos não são unívocos, “mas têm a particularidade de se basear mais no concreto e no vivencial com um raciocínio feito mais por meio de imagens do que de conceitos” (id., ibid.: 40). O que tem valor não é tanto o algodão, as peninhas do gavião, mas o branco, a brancura. “A essa cor estariam ligadas, simbolicamente, a força, a saúde, a masculinidade e a fecundidade” (id., ibid.: 42). Usar o corpo pintado é uma maneira de apreender e expressar uma forma que encorpora seus anseios. A manutenção dessa forma de construção de corpo é indispensável à realização de rituais, momento em que ocorre a mediação simbólica entre o visível e o invisível, em que os corpos se espiritualizam/animalizam e os espíritos/animais se corporificam (Viveiros de Castro, 2002). É nesse campo de possibilidades que o corpo xavante é conformado pelas categorias hierárquica e linhática, presentes no “corpo” da aldeia (Campos, 2007). Na categoria hierárquica a pintura corporal apresenta um sistema de comunicação visual que apreende e expressa a maneira de os Xavante se ordenarem e se classificarem dentro da sociedade em que vivem. É um sistema de comunicação rigidamente estruturado, que simboliza os grupos de idade e os grupos cerimoniais, combinando os elementos pictóricos e os adornos. As cores e formas pintadas em determinadas partes do corpo produzem códigos simbólicos que comunicam um conteúdo predominantemente socioestrutural, revelando o modo de comportamento e participação na sociedade xavante. Cada forma pintada identifica a localização desses indivíduos na hierarquia social que se modula em subcategorias: os adolescentes, todos os Xavante e os padrinhos. A pintura dos adolescentes apresenta variações padronizadas de acordo com as etapas da cerimônia de furação de orelhas – introdução dos batoques auriculares (brincos) – evento primordial para os meninos desse grupo de idade. Com os brincos, deixam a adolescência e adquirem socialmente a autorização de exercer sua potência sexual. Dentro das padronizações visualizadas na categoria hierárquica outra possibilidade se apresenta: todos os Xavante podem usar essa pintura, porém sua forma tem a dizer sobre o próprio sujeito e as ocasiões cerimoniais ou eventos em que se apresentam. Uma área

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6 Conforme tradução xavante, padrinho é o indivíduo da classe mais nova dos homens adultos, oriundo da turma que participou do ritual de iniciação 10 anos antes. Cabe a ele transmitir os valores fundamentais que aprendeu, em seu momento de iniciação, como imitar bichos, caçar, pescar, lutar, ser forte e valente, confeccionar os ornamentos e também indicar como se comportar na sociedade xavante. Os padrinhos têm sua performance, chamada Wanaridobê, para a qual se preparam em apresentações diárias, acompanhados pelas madrinhas (mulheres da mesma classe de idade). Dançam para os iniciandos todos os dias, de manhã e à noite, com função determinada de trazer alegria e de afastar as coisas ruins que acontecem eventualmente na comunidade.

maior de preto tem a marca da coragem, do enfretamento – os Xavante em Brasília cantaram pintados pela reconquista da terra Marãiwatsedé, localizada no município de Alto Boa Vista, MT –, uma área maior de vermelho, a da sensibilidade, da beleza – em Barra do Garças, MT, apresentaram uma performance para a platéia presente no Festival de Praia Araguaia Vivo. Na terceira subcategoria, a pintura dos padrinhos6 destaca-se plasticamente por se apresentar livre dos padrões convencionais. Apesar de inovadora, enquadra-se também na categoria hierárquica, pois os Xavante só podem usar essa pintura após terem vivenciado as etapas ritualísticas que lhes são exigidas em sua formação. Essa pintura de natureza “criativa”, conforme entendimento xavante, é uma forma que representa os conhecimentos adquiridos, o saber, a criatividade, algo que a tradição elegeu. “Quando um Xavante pinta o seu i’ãmo (parceiro cerimonial, do mesmo grupo de idade, amigo) tem

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que mostrar sua habilidade, ter uma sacação de adaptar a pintura ao corpo da pessoa; tem que combinar com o físico dele, com o jeito dele” (Hiparidi, 2006). O conjunto dos pigmentos usados na pintura corporal dos padrinhos, além do urucum, do jenipapo, do carvão e da argila, atualmente conta com um novo material – o guache. Os Xavante se apropriam do guache para “expressar sua criatividade” (Hiparidi, 2006). O corpo se apresenta modificado e, cada vez mais, inventado/alterado, desafiando e, em alguns casos, incomodando os costumes tradicionais.7 A introdução de novos cromas – como o azul, o amarelo, o rosa e o laranja do guache – que se compõem com os tradicionais preto/vermelho remete-nos à reflexão sobre o papel tradicional da pintura: o que se apresenta é a geração de outras e novas composições. Hiparidi diz que a introdução da

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7 Percebi, durante esse tempo de estudo, que existe uma discussão entre os Xavante para julgar a pertinência ou não das inovações trazidas, interferindo e regulando as assimilações dos novos elementos.


tinta guache é uma “questão política da época, uma questão atual. É uma matéria-prima que não é apropriada tradicionalmente. É uma criatividade. Isso é dinamismo” (Hiparidi, 2006). Essas novas cores e materiais refletem as mudanças efetivadas pelo contato com a sociedade warazu: a tinta guache, material introduzido pela escola e pelos estrangeiros que ocasionalmente visitam as aldeias, desperta na sociedade xavante novas possibilidades de utilização e criação. Além do novo pigmento-guache, eles também têm acesso a outros materiais artísticos industrializados e sucateados, como plumas, miçangas, tampinhas de remédio, lã, máscaras de carnaval, perucas e outros tantos que a criatividade do artista xavante reclama nesse momento. O uso desses materiais reflete a face criativa que faz irromper na indumentária xavante uma irreverente diversidade. Sob a proteção dos paramentos, eles revelam novas possibilidades plásticas, introduzidas a partir da descoberta de outras matérias-primas disponibilizadas nas cidades localizadas no entorno e também nos “presentes” oferecidos pelos warazu. Esses paramentos funcionam como uma capa, uma máscara ou, melhor, um envoltório que os encoraja no combate dos infortúnios que permeiam o universo xavante, hoje repleto de elementos estrangeiros. A plástica corporal desse grupo cerimonial escapa aos modelos convencionais de categorias e classes de idade. Cabe-lhes a apresentação de sua habilidade. Essa preocupação plástica explícita nos corpos pintados é apreciada pelo Conselho da Aldeia (homens ma8 Homens maduros são indivíduos casados que participam da vida política da aldeia. Velhos são homens que já passaram por todas as etapas de formação da tradição xavante – homens mais respeitados e ouvidos na aldeia. Esses homens formam o Conselho da Aldeia e decidem as questões relativas à vida da comunidade.

duros e velhos8). Como os padrinhos já aprenderam os ensinamentos, já são considerados “preparados”, e a eles é concedida a autonomia para criar a diferença introduzindo o novo, o inesperado, o desconhecido na visualidade xavante, que se mantém fechada e coesa dentro dos princípios da tradição. A própria tradição solicita, abre espaço para a inovação, potência que se concentra na figura dos padrinhos. Na categoria linhática a pintura é usada por linhagens que se destacam na aldeia, e nela são escolhidos, pelos velhos, os indivíduos que exercerão as funções cerimoniais dos rituais xavante. Assim como na subcategoria da pintura corporal dos padrinhos, o corpo também se transubstancia em uma nova realidade espaço-temporal. Porém, na categoria linhática apresenta-se de forma padronizada. A comunicação se dá a partir de outras esferas que não apenas a humana, envolvendo outros seres, os animais, que se transformam, fundem-se no ser xavante e são presentificados nos personagens que habitam o universo xavante. O Conselho da Aldeia, presidido pelo grupo de anciãos, seleciona e fixa, graças a acordos coletivos, os significados que regulam a plástica corporal: os acessórios rituais, a pintura corporal e o desempenho dos participantes são passíveis de apreciação. Tornam explícitas as definições que julgam valiosas. Julgam e consagram os indivíduos/

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artistas da aldeia pelos termos itsiprá – os que não têm habilidade – e itsipe – os que têm habilidade. Consagram as performances dos indivíduos/artistas que se apresentam nos rituais pelo termo w’di, que designa o que lhes proporciona enlevação, ou seja, quando uma forma traz um apelo, uma emanação da tradição. O Conselho examina a forma estética privilegiando e invocando a tradição. Esse consenso confirma a hipótese já apresentada por Maybury-Lewis9 (1984) quando percebia que os Xavante consideravam suas cerimônias meio privilegiado de expressão estética através de comentários como: “os meninos cantaram bem”, “os homens correram de modo adequado”, “serve para ficar bonito”. Essas expressões, traduzidas pelos Xavante pelo termo w’di, revelam a consciência xavante produtora de um discurso artístico. Essa “forma que informa”, esse saber incorporado que faz a memória coletiva de um grupo social constitui um “terriço” a partir do qual a cultura pode crescer (Maffesoli, 1996). Forma e informa sua presença no mundo. A imagem comunica e contribui para a continuidade da tradição. A tradição é a arte xavante. O que é apropriado e aceito como arte ali encontra seu sentido, constituindo-se no cerne de seu discurso artístico.

Referências Bibliográficas CAMPOS, Maria Cristina Rezende de Campos. O corpo emana: elementos da plástica corporal xavante. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro: PPGartes/UERJ, 2007. DERRIDA, Jacques e ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã… Diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004. FRADE, Isabela. O lugar da arte: o paradigma multicultural frente ao primitivisimo. In Textos Escolhidos de Cultura e Arte Populares. Vol. 1. Rio de Janeiro: NCP/Iart/UERJ, 2004: 17-24. GIACCARIA, Bartolomeu. Xavante ano 2000: reflexões pedagógicas e antropológicas. Campo Grande: Universidade Católica Dom Bosco, 2000. MAFFESOLI, Michel. No fundo das aparências. Rio de Janeiro: Vozes, 1996. MAYBURY-LEWIS, David. A sociedade xavante. Tradução Aracy Lopes da Silva. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S/A, 1984. MÜLLER, Regina A. P. A pintura do corpo e os ornamentos xavante: arte visual e comunicação social. Dissertação de Mestrado. Campinas: Unicamp, 1976. OVERING, Joana. O Xamã como construtor de mundos: Nelson Goodman na Amazônia. Revista Idéias. Revista do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Campinas, Unicamp, ano I, n. 2, jul./dez. de 1994: 81-118. PRICE, Sally. Arte primitiva em centros civilizados. Tradução Inês Alfano. Revisão técnica de José Reginaldo S. Gonçalves. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. SOUZA, Lynn Mario T. M. Hibridismo e tradução cultural em Bhabha. In ABDALA JUNIOR, Benjamin (org.). Margens da cultura: mestiçagem & outras misturas. São Paulo: Boitempo, 2004: 113-133.

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9 Maybury-Lewis realizou sua pesquisa de campo nas terras indígenas xavante na década de 1950.


VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Inconstância da alma selvagem. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.

Depoimentos ADÃO TOP’TIRO – Depoimento colhido em pesquisa de campo na Aldeia Abelhinha, TI Sangradouro, MT, jul.de 2005. HIPARIDI – Depoimento concedido em pesquisa de campo na Associação Warã Xavante. São Paulo, SP, jul. de 2006 e abr. de 2007. TSEREDZARÓ – Depoimento colhido em pesquisa de campo na Aldeia Abelhinha, TI Sangradouro, MT, jul. de 2005.

Cristina R. Campos é mestre em Artes, PPGartes/UERJ. Especialista em Arte-Educação, Unilasalle, RJ e em Arteterapia, Ucam/AVM, RJ. Graduada em Educação Artística – História da Arte, UERJ. Professora de Antropologia, Arte e Cultura e Prática Pedagógica no curso de Pedagogia da Ucam. Professora de Artes no Ensino Fundamental e Médio da rede estadual e municipal de Niterói, RJ.

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Poética e religiosidade na fotografia contemporânea do candomblé Eliane Coster

O artigo apresenta algumas questões relevantes que medeiam as relações entre fotografia e candomblé. Apresenta também o trabalho de dois importantes fotógrafos que tematizam essa religião, Mario Cravo Neto e Adenor Gondim, analisando algumas de suas obras. Fotografia, candomblé, arte. A fotografia de culturas, grupos humanos ou indivíduos, quando é Mario Cravo Neto. Laróyè, 2000.

consentida, passa necessariamente por uma negociação entre o fotógrafo e seu objeto.

1 Ancestrais divinizados.

No caso dos rituais do candomblé, incluindo-se nesse campo desde festas públicas até

2 “As casas tradicionais aqui na Bahia têm essa tradição de não filmar, não fotografar (...) tanto que hoje eles não têm nenhum documentário”. Depoimento de Edvaldo Araújo, alabê da Casa Branca do Engenho Velho, à pesquisadora. 3 “Eu acho que as pessoas estão muito erradas quanto ao problema da divulgação. O candomblé tem que se abrir muito mais, primeiro para não perder a tradição, que se você trava, trava, trava, acaba perdendo as coisas. Porque os velhos não passam (os conhecimentos), e a obrigação dos velhos é passar para os novos para a coisa continuar vivendo, entende? Então essa idéia dos antigos de ‘eu vou morrer e o que eu sei eu não vou passar para ninguém’ (...) é um tipo de suicídio cultural. Para mim é suicídio cultural. Não querer que a coisa cresça, que a dinâmica da religião se desenvolva, eu acho muito errado.” Mãe Gisele Omindareuá em depoimento à pesquisadora. 4 “O candomblé é uma religião iniciática, e o acesso aos ritos é cumulativo, ele vai aumentando à medida que o processo iniciático se aprofunda. Então mesmo que se possa pensar nos ritos não públicos, não é todo mundo que é do candomblé que pode assistir e participar. Há níveis de exigência quanto ao tempo de iniciação. Então para alguns ritos você tem que ter iniciação completa, para outros você tem que ter uma iniciação parcial... À medida que você vai subindo certos degraus, isso significa que você vai se submetendo a maiores exigências de todos os tipos, você vai ganhando privilégios. E o privilégio que você ganha de forma crescente é o acesso ao conhecimento religioso, ou seja, o acesso aos ritos, aumentando a sua participação”. Depoimento do prof. dr. Reginaldo Prandi à pesquisadora.

práticas de caráter exclusivamente privado, um elemento a mais participa da negociação de interesses que autorizam – ou não – o registro fotográfico: a esfera espiritual. É unânime entre os praticantes dessa religião a crença de que a última palavra é sempre dos orixás.1 Dificilmente um indivíduo, seja ele sacerdote ou fiel, se opõe ao que foi designado pelos orixás. Assim, é possível dizer que as divindades têm sempre a palavra final no que se refere às autorizações para registros fotográficos de rituais do candomblé, mas essa palavra final é, em regra, o resultado de uma negociação entre os interesses dos indivíduos – em relação à apropriação da imagem – e os interesses das divindades. A ampliação gradual dos rituais que podem ser fotografados e terreiros que autorizam os registros indica que há interesses na divulgação do culto. Alguns sacerdotes e adeptos lamentam a falta de imagens das práticas e associam a escassez do material a um déficit na constituição de uma memória visual da religião, tanto no âmbito do terreiro quanto no da coletividade.2 Outra questão que norteia a relação entre o candomblé e a fotografia é a contradição entre a ampliação do conhecimento sobre a religião por parte da sociedade, desmistificando as práticas3 e minimizando o preconceito, em oposição ao “enfraquecimento” que a divulgação de imagens e informações acarreta para a estrutura hierárquica do candomblé, baseada na transmissão gradual, lenta e sólida do conhecimento por via oral e no convívio do indivíduo no interior da comunidade.4 O candomblé vive uma contradição em relação à produção e divulgação de imagens de seus cultos. Muitos terreiros não permitem nenhum tipo de registro de rituais e procuram articular em torno dessa ortodoxia idéias como autenticidade, seriedade e legitimidade. Dessa forma, por oposição a terreiros que permitem o registro imagético, conformam uma

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polaridade associada ao maior ou menor acesso à esfera espiritual e a vínculos com a África, e conclamam para si um tradicionalismo relacionado à religião. Por outro lado, muitos terreiros em que o registro visual é permitido formaram-se de filhos e filhas-de-santo dos primeiros, os terreiros “ditos tradicionais”, e mantêm com eles vínculos estreitos, permeados por obrigações e direitos. Esses vínculos religiosos fazem do candomblé uma religião fortemente socializada, apesar da relativa autonomia que cada casa tem para decidir, junto aos orixás, seus próprios desígnios. Normalmente são esses terreiros mais “jovens” que absorvem o registro visual e deixam-se “contaminar” pela pressão da modernidade, mas, por outro lado, são eles também que funcionam como uma espécie de barreira em torno dos terreiros ortodoxos, preservando-os de um desgaste nas relações com a sociedade e mantendo-os como o lócus de resistência das práticas “originais”. Contudo, são justamente esses terreiros ortodoxos que legitimam os terreiros jovens de seus filhos e filhas-de-santo através do conjunto de vínculos e obrigações que os unem. Como se nota, as relações são ambivalentes. Além das questões já levantadas existe ainda importante mediação na relação do candomblé com a imagem: o grau de intimidade que o agente produtor da imagem possui com a religião. Quanto maior o envolvimento desse agente com o candomblé, mais acesso aos “segredos” ele possui e maior confiança da comunidade desfruta. Por outro lado, menor é seu interesse em realizar os registros, pois, uma vez que os procedimentos se revelam a seu olhar, o que antes era mistério passa a ser conhecimento e vivência. À medida que seu envolvimento religioso aumenta, maior também será o compromisso em manter certas informações e procedimentos longe de olhos e ouvidos leigos ou de indivíduos em graus inferiores na hierarquia do candomblé. Além disso, o ato fotográfico demanda uma boa dose de alteridade em relação ao sujeito ou ação a ser registrada. Quando o profissional está envolvido com seu objeto no momento do registro, dificilmente ele consegue exercer outras atividades. Assim, quanto maior o envolvimento do fotógrafo com o candomblé, em regra, menos fotografias haverá dos ritos, cultos e festas. O fotógrafo Mario Cravo Neto diz que: “No momento em que eu “fiz santo”,5 eu parei de fotografar o culto. Talvez porque não exista em mim a vontade de descobrir coisas, elas já estão descobertas”. Cravo Neto é um dos mais conceituados fotógrafos do candomblé. Em depoimento à pesquisadora ele comentou que o candomblé sempre esteve próximo de sua vida, como está da maioria dos habitantes de Salvador, cidade natal do fotógrafo. Contudo, foi só há poucos anos que ele se tornou um praticante regular da religião, participando das dinâmicas litúrgicas. Seu trabalho fotográfico compreende as várias fases de seu relacionamento com o candomblé e apresenta contornos alegóricos, simbólicos e até mesmo documentais. Cravo Neto não trabalha com temas, mas produz imagens orientadas pelos sentimentos, idéias, concepções existenciais ou filosóficas que posteriormente são agrupadas em livros,

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5 Fazer o santo é o mesmo que se iniciar no candomblé.


exposições, catálogos, site e etc., ganhando novos significados. O candomblé de Cravo Neto pode ser encontrado em momentos sagrados e profanos: está tanto em rituais quanto nos afazeres diários das pessoas pelas ruas de Salvador. A fotografia que abre este artigo faz parte livro Laróyè, que para os Yorubá é a saudação a Exu. Segundo o autor, esse livro é uma homenagem, uma oferenda para esse orixá. Devido à dimensão simbólica e estética que a obra desse autor possui, as fotos emocionam um público amplo e não apenas indivíduos com conhecimentos religiosos, justamente porque possuem elementos que dialogam com múltiplas sensibilidades: artística, existencial, racional e outras mais. Nessa fotografia, observa-se um homem negro com o torso nu em primeiro plano, na contraluz, de costas para o espectador, diante de uma espécie de quadro em que se vê uma escultura de São Francisco de Assis, que se identifica porque pende de sua mão um flagelo com o qual ele se martiriza, e ele possui a cintura e o braço feridos, além de estar acompanhado de um cachorro. À direita do quadro há outra escultura de uma figura humana segurando um coração e um objeto religioso, a “Sagrada Eucaristia”. A cabeça do homem negro está apoiada em uma das mãos, e a massa corpórea do indivíduo ocupa a metade direita da fotografia. Esse homem negro parece meditar diante do altar, e, como ele está na contraluz, o espectador só o percebe pelo contraste que existe com a luz que emana das imagens sacras. É a luz do ambiente sacro e cristão que o emoldura. Uma série de simbologias e analogias, idéias e sensações surge dessa construção: o recorte do corpo do homem negro produzido pela luminosidade do ambiente sacro indica as trevas ocupadas pelo candomblé e a opressão, de que foi alvo, pela Igreja católica. Por outro lado a foto também identifica o homem negro com o torso nu ao torso nu fustigado e em chagas de São Francisco, que é o mais popular representante das populações oprimidas e defensor da natureza. O cristianismo pode também ser pensado como o arcabouço, o terreno sobre o qual se erigiu o candomblé brasileiro, pois foi mediante esforço de resistência cultural e religiosa, esforço dinâmico e pautado por trocas que incluíram forte sincretismo religioso e cultural, que o candomblé foi recriado no Brasil. Nesse sentido a fotografia amalgama os dois mundos em um mesmo espaço, espelhando-os. E mais ainda: do lado direito da fotografia pode-se ver que um santo carrega na mão o coração de Jesus. O homem negro está também diante do coração de Cristo, o coração que simboliza a anulação do indivíduo em favor da constituição de uma coletividade, de um povo. Uma morte necessária para erigir o mito, a ressurreição do novo indivíduo, da nova sociedade. Mas o candomblé também é assim, a morte ritualizada do indivíduo social e o renascimento de outro indivíduo, transformado, vinculado a novos códigos morais, pertencente a um novo universo cultural e social. A fotografia cria, ainda, um espaço circularmente fechado ao qual o espectador não tem acesso, pois um está virado para o outro, o homem negro para as esculturas sacras. Trata-se de uma comunicação entre

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dois mundos, e esse é o espaço ocupado por Exu, um espaço de comunicação. Exu está na relação entre esses dois mundos, o profano e o sagrado, mas está também na relação entre duas religiões o catolicismo e o candomblé, e está ainda na relação entre passado e presente, mundo espiritual – Orum – e material – Aiê. É preciso notar, por fim, que o jogo de luz e sombra da fotografia remete à própria constituição da fotografia: negativo e positivo (a cópia). Só é dado ver a cópia porque há um negativo que existe, mas que está sempre subjacente à imagem visível. Cravo Neto faz refletirem seus questionamentos existenciais também na ontologia da imagem, e assim é possível desfrutar sua obra recorrendo-se a múltiplos sentidos. O livro Laróyè foi editado de uma maneira singular. As fotografias sangram a página (sem margem) e estão dispostas em duplas, o que sugere um diálogo binário. O livro, editado nesse formato, leva o leitor a uma percepção espacial vertiginosa, em que as duplas de páginas sucedem-se sem intervalos, criando assim um universo complexo de cores movimentos, luzes, sombras e objetos. Cravo Neto cria uma narrativa fotográfica que leva o espectador a experimentar a ambivalência de Exu. Nessa dupla pode-se perceber a construção de um diálogo entre a comida e o sexo, a boca e o falo. As imagens retratam uma alegria exacerbada e desmedida, um erotismo primitivo, que existe no homem, mas que a racionalidade restringe e domestica. Na foto da direita há uma imagem de Exu em madeira e o homem que a segura na mão provoca o fotógrafo (e o espectador) colocando o falo da escultura na boca e ao mesmo tempo, em movimento circular, introduzindo um pedaço de pau na boca da escultura. A circularidade do movimento dialoga com a circularidade do prato e das pessoas em volta do prato na fotografia da esquerda. Na foto da direita há a explícita referência a Exu, enquanto na da esquerda a referência é dada pela comida, pela alegria e pelo desvario.

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Mario Cravo Neto. Laróyè, 2000.


Adenor Gondim é outro importante fotógrafo que tem o candomblé como tema de sua obra. Ele se dedica há mais de uma década ao registro das práticas da Irmandade da Boa Morte, em Cachoeira, na Bahia. Apesar de Gondim não ser um fotógrafo iniciado, sua proximidade espiritual e afetiva com o candomblé e a Irmandade da Boa Morte é grande e faz com que ele próprio determine (ou sinta a determinação) os limites que não podem ser ultrapassados para que ele continue a desfrutar o convívio dessas pessoas e ter direito a registrar certos atos. O próprio fotógrafo, interpretando os desejos e receios dessa comunidade em relação à fotografia, impõe-se certas restrições. Para ele, o mais importante é retratar a beleza dos cultos, das roupas, dos objetos, dos movimentos. “O que me interessa é a beleza. Eu deliro com os pontinhos brancos e pretos da galinha-d’-angola, com seu design. Eu acho que o que é segredo deve ser respeitado. Colocar isso em evidência (matanças de animais, por exemplo) pode ser interpretado de várias formas, nem sempre positivas”.6 Gondim se define como retratista: “eu fotografo como há um século: retrato. Não invento, não faço fusão”.7 Suas fotografias possuem a potência da documentação realista e o lirismo de um olhar particular, cunhado ao longo de anos de vivência com o candomblé e a religiosidade popular brasileira. Adenor Gondim. Mãe Filhinha, 2005. 6 Depoimento pessoal de Gondim à pesquisadora.

Mãe Filhinha é uma das pessoas mais retratadas pelo fotógrafo. A ialorixá possui um dos mais altos graus dentro da hierarquia da Irmandade da Boa Morte em Cachoeira, na Bahia, e Gondim nutre por ela especial admiração.

7 Idem.

O retrato acima, tirado em seu terreiro faz clara associação de Mãe Filhinha e Iemanjá, pintada na parede do fundo do barracão. O que se nota é uma composição não usual, pois as duas figuras olham para o mesmo lado, indicando intimidade entre ambas. Além disso a cabeça de Mãe Filhinha, perfeitamente ornamentada com lenço, brincos e colares, ocupa todo o centro da imagem de Iemanjá, mas não a ofusca, pois o orixá está acima de Mãe Filhinha. Dessa forma, Gondim qualifica perfeitamente as duas figuras e determina a exata relação entre elas. Nas fotografias seguintes é possível perceber a conexão entre as religiões e como essa leitura faz referência à própria imagem através de metalinguagem. A primeira mostra o retrato de uma imagem. A figura humana que segura a imagem de Santa Bárbara, associada ao orixá Iansã, só aparece atrás da imagem da santa; no entanto, o que se vê dessa pessoa não é o rosto, mas um crucifixo, ou seja, mais uma imagem, e uma guia de candomblé, possivelmente de Iansã. Como se nota, a fotografia justapõe imagens de Santa Bárbara, de Jesus crucificado e de Iansã e cria, assim, um complexo retrato de imagens sobrepostas camuflando a figura humana por trás de tudo isso, que percebemos ser uma pessoa negra por mera fresta na imagem. O negro e o candomblé aparecem nessa fotografia como um índice de presença, sob o qual um catolicismo hegemônico se lhe interpõe. A sutileza da foto reside justamente na construção desdobrada de imagens justapostas e fragmentos de pele e detalhes.

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A foto seguinte é uma composição sutil de justaposições. Ali também o retrato é de uma imagem-máscara, e a figura humana aparece na forma da mão que entra para afagar a imagem. Trata-se de Jesus crucificado, sofrendo, com o sangue das chagas escorrendo pelo rosto, e a mão, negra, consola a imagem. A alusão ao sofrimento e à escravidão pode ser sentida nesse gesto de amparo e conforto da mão. Uma identificação sutil e poética. O que a fotografia de Gondim apresenta é um ambiente sem nítida separação entre profano e sagrado, e um ambiente sincrético em relação às várias crenças populares brasileiras: são momentos de preparação de rituais, detalhes da fabricação dos objetos litúrgicos, retratos de pessoas nos ambientes religiosos e objetos religiosos em locais profanos. Assim, o trabalho de Gondim apresenta imagens que são a um só tempo líricas e realistas, documentais e poéticas, antropológicas e sensoriais; essa mistura de características diversas e até mesmo contraditórias é o que torna seu trabalho precioso. O candomblé é religião hierarquicamente rígida, com cânones bem definidos, mas que contém em sua estrutura uma série de ferramentas que possibilitam a incorporação do “novo” e do “moderno”. Prova disso é o fato de essa religião ter-se estabelecido no Brasil,

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Adenor Gondim. Santa Bárbara, Jesus e Iansã, 2005.


a despeito da grande fragmentação e heterogeneidade que sempre houve em sua chegada à colônia, trazida pelos escravos negros oriundos de diversas etnias e cultos africanos. Não foi e não está sendo sem sofrimento que a modernidade é incorporada pelo candomblé. Existe um medo sub-reptício de que seus significados culturais, sociais, simbólicos e espirituais sejam destruídos com a ampliação da divulgação dos cultos, o que não deixa de ter fundamento ao se olhar retrospectivamente para outras manifestações de caráter cultural e religioso que foram submetidas a processos de massificação pelas mídias de massa e pela indústria cultural. O esforço por manter os princípios básicos das tradições fomenta debates em torno das forças que pressionam a religião no sentido da mudança. Esses debates são realizados por todo o conjunto de indivíduos que participa das relações com o candomblé: povo-de-santo, simpatizantes, pesquisadores e instituições de caráter político e cultural. A fotografia participa do candomblé também como mediadora dos debates em torno da necessidade ou não de o candomblé se modernizar. Debates que versam sobre a pertinência de se documentar “etnograficamente” os cultos para que informações e características estéticas e simbólicas sejam preservadas; ou sobre a posição que se deve ter diante de apropriações indevidas de imagens dos rituais que eventualmente ocorrem; ou, ainda, sobre a ampliação dos sentidos do candomblé, ao se constatar que determinadas fotografias têm a capacidade de colocar em evidência pensamentos e percepções relativos à vida e à espiritualidade, revelando eleAdenor Gondim. Monte Santo, 1999.

mentos, movimentos, combinações e dinâmicas – como é o caso da fotografia artística de Cravo Neto e Gondim – que podem ser apropriados pela religião.

Eliane Coster é graduada em Cinema pela Escola de Comunicação e Artes da USP, em 1994, e mestre em Artes pelo Instituto de Artes da UERJ, em 2007, com a dissertação Fotografia e candomblé: modernidade incorporada?. Realizou as exposições Entre o céu e a terra, na Estação Clínicas do Metrô, em São Paulo, em 2007; Caixa Populi, no Conjunto Cultural da Caixa, em São Paulo, em 2001; Copan, no Centro Cultural São Paulo, em 2000. Dirigiu o curta Correspondência, de 1996.

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Eu é um outro / Eu é o outro: questões de influências artísticas na arte contemporânea brasileira Elisa de Magalhães

Defendo um novo conceito de observação da obra de arte contemporânea – o conceito do giro. Comparo o giro à clínica, na medida em que acredito que a obra de arte contemporânea estabelece-se como uma terapêutica, como se a história da arte fosse uma natureza psíquica do artista e do espectador de arte contemporânea. O giro é a estratégia do ato artístico contemporâneo, e essa circularidade se repete para o observador – por isso, nomeio artista e observador como expectantes, como se quem observa pudesse re-conhecer no objeto de arte marcas, espectros; a autobiografia. Apresento, ainda um trabalho plástico, intitulado O anel, que condensa todas as questões aqui levantadas. Giro, autobiografia, clínica.

Na dissertação que dá origem a este artigo, defendo um conceito de Elisa de Magalhães. O anel, 2007. Trabalho apresentado nas versões corpo (foto maior) e anel (foto menor), foto Wilton Montenegro.

observação da obra de arte contemporânea, que chamo de conceito de giro. Para esse desenvolvimento, levo em conta a arte como clínica e a autobiografia como método de pensamento plástico. Parto do princípio de que na arte contemporânea, as indagações, o pensamento, tanto da parte do artista como do espectador/fruidor, desenham uma circularidade. Começam e terminam sem determinar qual seja o derradeiro lugar: perguntas que só podem ser respondidas, ou escamoteadas, ou pressupostas, por quem virá, questões que pressupõem um porvir de toda e qualquer temporalidade. Quando digo que a arte contemporânea pressupõe um futuro, levo em conta que ela lida com o desconhecido e com o temor dele. Mas não há terror; é como se a arte recuperasse o sentido de aventura rumo ao desconhecido ou rumo ao excessivamente já conhecido. Assim denomino expectantes todos os ângulos da feitura, presença e observação de situação. Se a situação é expectante, se há um devir, penso no espectador como um expectante e, como trato de um movimento circular, pressuponho o artista como alguém na expectação também. Observador e artista mantêm uma similaridade diante da obra de arte contemporânea. Penso que a figura geométrica que melhor apresenta esse tipo de pensamento é uma espiral, porque é circular e não fecha a situação expectante. O giro que a figura

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geométrica afirma abre-se a um porvir, ou a um vir-a-ser, do artista ou do espectador, não importando em que lado da obra se esteja. Penso o processo giratório como próprio da arte contemporânea; e se há algo giratório, há algo expectante (o expectante é aquele que tem uma expectativa, que espera. No entanto, no caso do expectante observador/artista, não há qualquer esperança de parada. Há temor, e por isso, expectativa). Mas a expectativa pressuposta nesse expectante inclui qualquer temporalidade, passado e presente, além do futuro, subjacente ao significado da palavra escolhida para substituir a dupla artista/espectador mediada pela obra. Essa circularidade só se faz possível quando o olhar é completado pelo toque, que fecha fisicamente o círculo – o toque, aqui, pode tratar-se de um tato visual, como em Merleau-Ponty em O olho e o espírito,1 ou, como em Foucault, na introdução de O nascimento da clínica.2

1 Merleau-Ponty, M. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004: 17.

A circularidade proposta pelo giro estabelece uma relação a três, na qual sempre se

2 Essa idéia de tato visual está também em Foucault: “O discurso racional apóia-se menos na geometria da luz do que na espessura insistente, intransponível do objeto: em sua presença obscura, mas prévia a todo saber, estão a origem, o domínio e o limite de toda experiência. O olhar está passivamente ligado a esta passividade primeira que o consagra à tarefa infinita de percorrê-la integralmente e dominá-la.” Ver em Foucault, M. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998: XII.

pressupõe um vir-a-ser, seja de futuro, passado ou da autopresença do atual. Se é assim, entendo a arte contemporânea próximo do que denomino ordinário, ou melhor, a ontogênese da arte contemporânea está no ordinário,3 seja para o artista ou para o espectador. Reconhece-se na vida a arte, posto que é a vida que funda a arte, e a vida fundada na arte e que chamamos arte pressupõe ser vida. O conceito do giro assemelha-se ao conceito de Revirão, criado pelo psicanalista brasileiro M.D. Magno. Segundo o psicanalista, Revirão consiste na capacidade humana (é ele o que distingue a espécie humana das demais) de livrar-se de seus preconceitos, despir-se deles, mas sem os esquecer, e mergulhar fundo até defrontar-se com seus maiores receios, seus medos, com o estranho, consigo mesmo, até que se fique indiferente a tudo isso, num lugar que ele chama de Cais Absoluto. É aí que o sujeito vai fazer a mudança, o vira-ser. É no Cais Absoluto que o sujeito se encontra com o horror, a ponto de despir-se de todos os seus vínculos e lá ficar diante de seu Vínculo Absoluto, que posso entender como o original, a fonte, o primeiro, aquele que reúne presente, passado e futuro, daí o vira-ser. Assim sendo, posso aproximar o Cais Absoluto – o lugar do vira-ser – do lugar do vir-aser, onde o sujeito se abre a um porvir, onde o círculo se fecha e se reabre em espiral, e que, no giro, tudo é presente – o que foi, o que é e o que será tornam-se, naquele momento, o que é. Magno foi buscar em Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa, no poema Ode Marítima, a expressão e o sentido de Cais Absoluto. […] Ah, todo cais é uma saudade de pedra! E quando o navio larga do cais E se repara de repente que se abriu um espaço Entre o cais e o navio, Vem-me, não sei por quê, uma angústia recente, Uma névoa de sentimentos de tristeza

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3 Cavell, S. Esta América nova, ainda inabordável. São Paulo: Editora 34, 1997. Para o filósofo americano Stanley Cavell, o ordinário é qualidade do comum, e o que é comum a todos os homens é existir sem prova de existência. Logo, o ordinário é a intimidade com a existência; portanto, qualquer apreensão sobre a existência está na observação do ordinário do mundo.


Que brilha ao sol de minhas angústias relvadas Como a primeira janela onde a madrugada bate, E me envolve com a recordação duma outra pessoa Que fosse misteriosamente minha. [...] Sim, dum cais, dum cais dalgum modo material, Real, visível como cais, cais realmente, O Cais Absoluto por cujo modelo inconscientemente imitado, Insensivelmente evocado, Nós os homens construímos Os nossos cais de pedra atual sobre água verdadeira, Que depois de construídos se anunciam de repente Coisas-Reais, Espíritos-Coisas, Entidades em Pedras-Almas, A certos momentos nossos de sentimento–raiz Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta E, sem que nada se altere, Tudo se revela diverso. 4 Pessoa, Fernando. Obra poética. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2005: 316

[…]4 Para Magno, Cais Absoluto é a fronteira entre o Haver e o não-Haver – entre a vida e o seu avesso, entre o que existe e o que se deseja (para o que quer que se coloque, o sujeito deseja o seu avesso). À beira do porto, o sujeito parte sempre partido, pois se o não-Haver é o que não-há, e, no entanto, o que se deseja, ainda assim, não se pode ter o que não-há. Chega-se à beira do Cais, num movimento desejante, e não se consegue o que não-há – que Magno entende não exatamente como o oposto, mas como o avesso do que há – mas chega-se sempre muito perto e com isso, com essa experiência do avessamento, sofre-se uma espécie de renovação – o Revirão. Na arte contemporânea não importa se se é artista ou espectador, todos são expectantes. À capacidade humana de fazer o Revirão corresponde a capacidade de se fazer o giro, com uma conseqüente mudança que transforma, seja espectador, seja artista, seja a própria obra. O Revirão corresponde à estratégia circular do expectante contemporâneo. Embora Magno fale do Revirão como a especificidade do homem, como a característica que o distingue de outras espécies, ele diz que é próprio do criador, do artista, pois não há criação sem Revirão. Quero supor que seja desde a beira definitiva do Cais que se pode tentar pescar, não para diante, mas para trás do oceano em abismo

5 Magno, M.D. Estética da psicanálise. Parte 2, volume 1. Rio de Janeiro: Novamente, 2003: 148.

do não-Haver, o que lá se nos oferecia se pudéssemos colher. Alguns pescam… artistas, por exemplo, os grandes.5

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A idéia do conceito de giro surgiu no exercício de ateliê, ao perceber a importância da autobiografia (aí entendida como formação, memória, conhecimento, arquivo; no sentido de uma autonomia da vida na própria vida), no fazer artístico e na observação do objeto de arte contemporânea. Quando comecei a usar a fotografia como meio, escolhi uma técnica antiga, o pinhole. Como uso filme, em vez de fazer impressão direta no papel, uso câmeras antigas, das quais retiro as lentes. Desde o início, criei um erro no processo de fotografar, ao usar dois furos, em vez de um, de tamanhos diferentes, para a entrada de luz – como diafragma. O segundo furo tem a função de permitir que a imagem venha acompanhada dela própria, mais pálida, uma sombra de luz retirando a nitidez, de modo que, em cada imagem, me obtenho e meu duplo. Escolhi a pinhole por causa das experiências fotográficas do poeta, dramaturgo e pintor sueco Auguste Strindberg (1849-1912), na tentativa de fazer o retrato da alma. Ele acreditava que o retrato verdadeiro de uma pessoa só era possível de ser captado através da utilização de uma máquina fotográfica pinhole. A ausência de lentes diminuía os obstáculos entre o filme e o modelo, tornando possível, dessa forma, a captura da essência do ser fotografado. Além disso, por causa da longa exposição necessária para a impressão da imagem na pinhole, cerca de dois minutos, Strindberg contava aos retratados pequenas histórias que lhes suscitassem sentimentos diversos, alegria, tristeza, amargura, para, assim, captar sua personalidade e sua alma num fluidum de luz – matéria e energia, a verdade do retrato. Ele chamou essa experiência 6 Granath, O. et al. Strindberg: peintre et photographe. Paris: Musée D’Orsay, 2002: 58.

de retrato psicológico.6 Uma imagem que para ser captada precisa de mais de dois minutos de exposição do modelo, diante da câmera, não é apenas o retrato de um instante. Tudo o que se passou no espaço alcançado pela abertura da câmera, durante aquele tempo, está lá; tem mais imagem nela porque é a mais simples e porque recolhe todas as outras imagens que ocorrem nesse tempo latente. No meu trabalho procurei um problema dentro do meu próprio universo. Virei a câmera para mim e fiz três chapas, que compõem o tríptico intitulado : . A partir dessas fotos, tornei-me o problema permanente da obra, refletindo sobre a questão do duplo, do outro e da alteridade. No ateliê, usava espelhos e vidros planos, cujos reflexos serviam para posicionar meu corpo e câmera. Assim, o reflexo me fotografava, não eu mesma. O reflexo era o duplo, o outro de mim sem mim. Não era mais eu quem me fotografava, o outro era o fotógrafo, num dramático jogo de narciso. Outras vezes, quando era impossível o uso de espelho ou quando não podia operar a câmera, valia-me de outra pessoa, e usava seus olhos como espelhos, como reflexo, como se pudesse enxergar-me, ver-me, através dos olhos de outro. O tempo todo dirigia a foto porque, não tendo espelho, não tinha meu outro.

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Elisa de Magalhães. 2000, foto Wilton Montenegro.

Percebi que, no momento da foto, estando sozinha ou não no ateliê, eram sempre mais de dois – mais que eu e meu reflexo, mais que eu e o outro, três ao menos – artista, fotógrafo e modelo. Aquele corpo que estava no espelho do estúdio era eu, não sendo. A imagem revelada na fotografia “sou-me”, sendo eu mesma e não sendo. E, para além dessa diferença, o acolhimento do outro que em mim estava se abria ao infinito do outro, ao infinito como o outro que o precede. Se considero que o objeto de arte contemporânea está no campo do outro, e se o considero como sendo o outro e estando num “sou-me”, é nele que aparece um exercício de hospitalidade. Esse conceito de hospitalidade foi desenvolvido pelo filósofo Emmanuel Lévinas no livro Totalidade e infinito e comentado por outro filósofo, Jacques Derrida, num livro em homenagem a Lévinas, intitulado Adeus a Emmanuel Lévinas. A condição do acolhimento impõe o hostil, no ato de hospedar quem quer seja. A relação entre dois, entre mim e o outro, como algo comum, acaba revelando um face-a-face que gera violência. Esse exercício de hospitalidade é ativado pelo jogo do desejo e da memória. Mas, se o face-a-face do eu e do outro pressupõe a violência, é preciso a intervenção de um terceiro, na relação, para interromper tal clima. Nesse sentido, o observador da obra contemporânea é o sujeito e o terceiro ao mesmo tempo, ele gera e interrompe a violência do face-a-face com o objeto de arte contemporânea. A situação trina responde à seguinte demanda: vejo você, o que de você vem, mas vejo, também, o que se mostra de (ou o que completa um) sentido nisso tudo. O terceiro é qualquer um que pode apreender a obra de arte contemporânea, que pode percorrê-la integralmente com o olhar. Por isso, afirmo a obra de arte contemporânea como origem e resultado, ao mesmo tempo: o observador deve alcançar o discurso da obra, através do que ela dá a ver; seu olhar dirige-se ao visível da obra para re-conhecer o que nela há e, com ela, pressupor o artista como alguém na expectativa da obra. O centro do giro é o objeto de arte contemporânea, ele gira e faz girar; ele também chega ao Cais Absoluto, e o expectante conta com essa experiência quase mística de deslumbramento, de lucidez à beira do Cais, do confronto do Sagrado do Não-Haver, de uma experiência de quase-morte e do retorno ao profano, ao cotidiano, ao ordinário.

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Uma coisa é estarmos metidos na galhofa cotidiana das nossas vocações etológicas; outra é ter experienciado esse Cais e, sem abatimento, retornar ao profano. São duas posições radicalmente diversas: na primeira estamos ainda no illudere do cotidiano, ou estamos tentando elidir essa pulsação; na segunda, podemos reludir tudo, mas com luci7 Magno, MD. Estética da psicanálise. Parte 2, volume 1: seminário 1991. Rio de Janeiro: Novamente, 2003: 148.

dez e com atenção.7 Como se fosse um sistema planetário, o objeto de arte no centro girando, e os expectantes girando de maneira diversa em torno dele. Por isso, a obra de arte jamais é vista em sua integralidade, é sempre um fragmento de uma totalidade apenas intuível. Reconheço nisso uma ação clínica – desvelar no que se mostra o que está oculto à vista.8 Estabeleço, com isso, a arte contemporânea como clínica, já que o expectante vai encontrar no interior da obra de arte – através de operações de analogias: o cruzamento de suas vivências, heranças, seus arquivos, sua autobiografia, com as do artista, também expectante – sua clínica; é da natureza da arte contemporânea fazer a clínica do expectante. Essa ação clínica é o que habita o lugar antes ocupado pela noção de criação na arte moderna, na medida em que a arte moderna estabelece-se por uma crítica. A ortodoxia

8 Vou buscar a justificativa dessa ação clínica em Michel Foucault: “Daí a estranha característica do olhar médico; ele é tomado como uma aspiral indefinida: dirige-se ao que há de visível na doença, mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o: conseqüentemente, para conhecer, ele deve reconhecer. E este olhar, progredindo, recua, visto que só atinge a verdade da doença, deixandoa vencê-lo, esquivando-se e permitindo ao próprio mal realizar, em seus fenômenos, sua natureza.” Foucault, Michel. O nascimento da clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998: 8.

estética do ideal artístico modernista limitava a arte a uma crítica a si própria, a arte que se aplicava à arte, ao ideal de arte pura. Contemporaneamente, a observação da obra de arte assemelha-se à observação da doença pelo médico, que deve dirigir-se ao fragmento do corpo e intuir, daí, a totalidade da doença e, ao descrevê-la, restituir a quem não pode vê-la toda sua espessura viva. Só se pode falar a partir do objeto: ele é a origem, o domínio e o limite da experiência, e nunca se pode vê-lo em sua inteireza. Só se pode falar, conhecer, a partir do que é dado ver. E a clínica se dá, justamente, no espaço entre o que se vê e o que se diz, no lugar do duplo do discurso, do comentário. Nesse sentido, o que nos é dado ver, acaba sendo uma espécie de tradução, já que é impossível ver o objeto completamente. O espaço entre é onde está a visibilidade do visível. No avessamento provocado pelo giro, o que se vê é a aura do objeto de arte (espectros vislumbres, do que aparece no movimento de fluxo e refluxo). O giro traz de volta a aura do objeto de arte que a modernidade havia aniquilado. Entendo que a aura se configura nessa mistura de memória, formação e vivências dos expectantes na observação da obra. Com isso digo que a obra de arte contemporânea se estabelece por uma terapêutica, como se a história da arte já fosse uma natureza psíquica do artista e do espectador de arte – faz parte de suas biografias. Arthur Danto defende que a contemporaneidade chega com o fim da arte; no entanto, a arte contemporânea só existe a partir da história da arte e, por causa do distanciamento histórico, pode sonhar com ela; o contemporâneo existe a partir da memória da história.9

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9 Uso sonhar no sentido psicanalítico dado por Freud, quando diz que as recordações de infância, a memória, são o alicerce dos sonhos, como um edifício construído sobre ruínas, das quais as colunas servissem de base, de estrutura para a nova construção. Em seu livro A interpretação dos sonhos, Freud escreve: “... eles nunca podem de fato libertar-se do mundo real; e tanto suas estruturas mais sublimes como também as mais ridículas devem sempre tomar de empréstimo seu material básico, seja do que ocorreu perante nossos olhos no mundo dos sentidos, seja do que já encontrou lugar em algum ponto do curso de nossos pensamentos de vigília – em outras palavras, do que já experimentamos, externa ou internamente.” Ver em Freud, S. A interpretação dos sonhos (primeira parte). Rio de Janeiro: Imago, 1987: 46-47.


A arte contemporânea tem que fazer o ato clínico dessa psique. Abrem-se os arquivos da memória, da formação, da biografia que, através das analogias, vão desvelando a obra de arte. As indagações despertadas por um objeto de arte contemporânea são percebidas no movimento giratório, que aciona os arquivos biográficos e as expectativas de cada um, numa espécie de “jogo” de associações livres. Nessa relação, como a de um psicanalista e seu paciente, há uma perda de identidade, o objeto de arte faz o papel do psicanalista, e o paciente – o expectante – conta com a atenção flutuante daquele, com sua capacidade de percebê-lo num jogo de associações livres imposto pela obra. Assim, resta ao artista contemporâneo distribuir atenções flutuantes, pois a arte contemporânea obriga que a história da arte seja associação livre da obra. O giro é a estratégia do ato artístico contemporâneo e provoca essa mesma circularidade no espectador, como se quem observa pudesse re-conhecer no objeto de arte espectros, marcas. Como se o objeto de arte guardasse a potência de exergo. Na fruição pelo expectante, ele é anterioridade a qualquer coisa e resultado último de sua verdade. A exterioridade da obra de arte contemporânea, o que dela se vê, o que dá partida ao processo clínico, de âmbito psicanalítico, é justamente o lugar ao qual a psicanálise chega como observadora, também, e vai viver o giro de pensamentos, a disjunção entre memória, herança, arquivo e o porvir imposto pela obra. A psicanálise sai em busca do arquivo original, da promessa arqueológica contida ali. Diferentemente, a obra de arte contemporânea desvela os arquivos, abre as portas a um porvir, mas não faz anamnese, não quer curar. Para apresentar a estratégia do giro e a importância da autobiografia como método de pensamento plástico, criei o trabalho O anel, em duas versões: tamanho corpo e tamanho anel. Nele, há fotos, pinhole, de meu corpo inteiro, deitada e com os braços esticados acima da cabeça, de frente e de costas. Na versão corpo, as fotos são ampliadas do tamanho do corpo, viradas em sépia, trabalhadas com ouro em pó e folha de ouro, e dispostas numa circunferência de acrílico. Na versão anel, as fotos são reduzidas em filme e sobrepostas a um anel de ouro. O corpo de costas por fora e o corpo de frente por dentro, fazem as mãos encontrarem-se com os pés e o corpo dobrar-se sobre si mesmo. Em cada lado dessa circunferência-anel tenho eu e meu duplo, “sou-me”, eu mesma e não sendo, sendo o lado de fora do anel o duplo do lado O anel, 2007 – trabalho apresentado nas versões corpo (foto maior) e anel (foto menor) de dentro e vice-versa. O corpo dá um abraço em si próprio, numa imagem semelhante a um kundalini ou ouroboro. A imagem do corpo no anel é contemporânea e arcaica, ao mesmo tempo, pois carrega a figura do arquétipo sem ser a imagem do arquétipo propriamente dita. O anel se dá a ver carregado de conteúdo próprio e acompanhado de toda uma rede de outros conteúdos. O objeto se dá a olhar e também olha de si para si e de si para os outros. As referências para fazer O anel vêm de minha biografia, o artista fazendo o giro e dando a ver esse giro ao mundo: do aprendizado do balé, da consciência do eixo do

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corpo, o giro como condição autobiográfica. Em A alma e a dança, de Paul Valéry, Sócrates sustenta essa condição do giro da bailarina. É a tentativa suprema… Ela gira e tudo o que é visível se desliga de sua alma; se separa, enfim do que é mais puro; os homens e as coisas vão formar em volta dela uma borra informe e circular… Vede… Ela gira… Um corpo, graças a sua simples força, e por seu ato, é poderoso o bastante para alterar mais profundamente a natureza das coisas do que jamais conseguiu o espírito e suas especulações e sonhos!10

10 Valéry, Paul. A alma e a dança. Rio de Janeiro: Imago, 1996: 63.

A construção dialética da música de Wagner e a ópera O anel dos Nibelungos foi outra referência. Wagner garantia uma condição giratória na construção de sua música, reciclando formas harmônicas menores, de modo que ele as renovava, sempre conservando algo do que tinham sido e, submetendo a linha melódica a essa construção, provocava uma dissonância na consonância. A construção do enredo era paralela à construção da música, e coincidiam as mudanças harmônicas com as mudanças no enredo. Com O anel falo de desejo, de pulsão, falo da posse daquele corpo, falo de meu passado de bailarina, da vergonha, do rubor ou da doença. Falo do Belo, pois é ele quem fornece as coisas retiradas da beira do Cais Absoluto, como uma tradução/transcrição do impossível, do não-Haver. Por que não admitir que o Belo é quando, no regresso da beira do Cais, se fornecem coisas, como se retiradas de lá, do lado que não há, eternizadas como transcritas do Impossível, do não-Haver?11 Em O anel, alterno a questão da repetição – o moto contínuo sugerido pela primitiva figura do círculo, afinal todo círculo é uma linha reta curvada – com as de alteridade. Se o anel é ontologicamente outro e traz-me e o outro gravado em cada uma das faces, “jogo” com a obra o jogo da imagem dialética, o jogo da memória quando o visível é um espectro, está lá, mas tem que ser pescado. O anel é capaz de fazer girar, porque estabeleço com ele vínculos de memória e desejo. Entendo desejo como vínculo em O anel, quando reconheço que “jogo” o jogo do desejo nele, da seguinte forma: o corpo visível é um corpo que não há inalcançável por seu gigantismo (versão corpo) ou sua pequenez (versão anel); o corpo que não há desperta a memória para um corpo possível que se pode vislumbrar, a partir daquela imagem visível, daquele que não há e que estava na memória de cada espectador.

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11 Magno, MD. A Estética da psicanálise. Parte 2, volume 1: seminário 1991. Rio de Janeiro: Novamente, 2003: 149.


Cildo Meireles. Elemento desaparecendo/ Elemento desaparecido, 2002 (Documenta de Kassel, Alemanha), foto Wilton Montenegro.

Esse jogo do desejo e da memória está presente na obra de Cildo Meireles, que entrevistei, a propósito disso. Elisa de Magalhães: Em seus trabalhos, vejo que há a questão principal, sobre a qual trata o trabalho, mas percebo também que há uma outra questão sob a principal, como se houvesse um mundo sob a pele do mundo. Como no trabalho da Documenta XI (em Kassel, na Alemanha), Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido (2002), no qual havia a questão principal, que era a discussão sobre a escassez de água no mundo etc., mas havia também uma história que aconteceu na rodoviária de Brasília, quando você viu um menino que vendia três tipos de picolés por três preços diferentes: o mais caro era picolé com leite e fruta, o de preço intermediário era picolé com água e fruta, e o mais barato era picolé de água. Ou ainda nos Espaços virtuais: cantos (1967-68), em que, sob a questão da geometria euclidiana da qual fala o trabalho, há uma experiência infantil sua. São lembranças, elementos que acabam sendo deflagradores do trabalho. Cildo Meireles: Costumo classificar isso como biografia do trabalho para evitar falar dessa questão como uma lei geral de formação. Isso

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acontece em alguns trabalhos, não dá para traçar uma constante. Se se fizer uma análise profunda, uma clivagem de toda a produção, pode-se encontrar elementos biográficos, mas não como regra geral. Você citou dois que têm. Elemento desaparecendo/Elemento desaparecido, que, a par de ser mais um exemplo de Inserções em circuitos antropológicos, é também um trabalho calcado como Camelô (1998), Kukka-Kakka (1994-99), uma série de outros... O próprio Através (1983-89) que, a partir do papel amassado jogado no cesto, começa a gerar todo um campo de especulação. São vários que têm episódios que seriam deflagradores e que, eventualmente estariam inseridos numa biografia maior do indivíduo...12

12 Entrevista à autora em 22/12/2006, em seu ateliê, no Rio de Janeiro.

Já o artista Waltércio Caldas, com que conversei também, porque identifiquei em sua obra a mesma angústia de Fernando Pessoa no poema Ode Marítima, questiona o poder da imagem. Waltércio Caldas: Eu não sei se um filósofo pensa da mesma maneira que um matemático. Dizem que a matemática é a linguagem mais próxima do desconhecido, quer dizer, a matemática tem o instrumento mais adequado para você reconhecer o desconhecido, ou, pelo menos, para elaborá-lo. Elisa de Magalhães: Talvez porque lide com a abstração... Waltércio Caldas: Por outro lado, até que ponto o matemático trabalha com figuras... o dois é uma figura ou uma potência? Será que ele pensa em imagem, quando pensa o dois? Ou será que ele está livre das imagens e exatamente por isso que ele pode pensar o dois? Tendo a achar que a matemática livra o homem das imagens e por isso ele pode ir em direção a uma possibilidade nova. A imagem restringe o homem a seu acervo visual. Como seria a relação de uma pessoa com o que ela nunca viu? Porque tenho certeza de que daqui a dois anos vou botar os olhos num objeto de arte absolutamente novo, um objeto que vai contribuir, mais uma vez, para um aumento da minha capacidade óptica, pelas características do objeto, eu estarei vendo alguma coisa que eu não vi até hoje. É o que eu, pelo menos, espero. Então, de uma certa maneira, eu estou trabalhando com isso, estou tratando disso, das coisas que aparecem. Elisa de Magalhães: É, mas não é essa a história da arte?! Pensar nesse sentido de coisas novas que vão mudando a apreensão...13 A produção de O anel faz parte de uma trajetória, à qual pertencem as obras Persona vitrea, 2002; Exposição, 2003/2005; Todo pensamento emite um lance de dados, 2003;

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13 Entrevista à autora em 07/12/2006, em sua casa.


O que se mostra revela o que se esconde, 2004; Mataborrão, 2005; Ex-tante, 2005; Pulsos, 2005; Filme, 2006; Paralém, 2006. Encerro aqui como encerro a dissertação, com uma frase da bailarina Atikthé, que finaliza o livro A alma e a dança, de Paul Valéry. Mais do que uma resposta a Sócrates, Atikthé, assim como o objeto de arte, fala ao mundo: Asilo, asilo, ó meu asilo, Turbilhão! – Eu estava em ti, ó movimento, e 14 Valéry, Paul. A alma e a dança e outros ensaios. Rio de Janeiro: Imago, 1996: 68. Resposta de Athiktê a Sócrates.

fora de todas as coisas...14

Elisa de Magalhães é artista plástica, graduada em Comunicação Social pela UFRJ e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais/Processos Artísticos Contemporâneos do Instituto de Artes da UERJ.

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O apocalipse como hipótese?1 Fernanda Pequeno da Silva

O texto (cujo título refere-se ao evento Apocalipopótese, realizado em 1968 no Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, do qual Lygia Pape e Hélio Oiticica participaram) discute a tomada de posição dos artistas perante o problema da adversidade brasileira, de maneira que a fizessem funcionar como estímulo para sua produção e para seu engajamento na formação e na consolidação de uma linguagem-Brasil. Lygia Pape, Hélio Oiticica, adversidade.

Se partirmos da máxima de Hélio Oiticica enunciadora de que, no Lygia Pape. Caixa de formigas, acrílico, formigas, texto e carne, 35 x 25 x 10 cm, 1967.

Brasil, “da adversidade vivemos”, poderemos intuir alguns aspectos de sua poética e, de

1 Referência ao texto homônimo de Ronaldo Werneck publicado em http://www.ronaldowerneck.com.br/Festival%2069-70.htm

der a tensão que acompanha a produção dos artistas. Mais ainda, poderemos apreender

2 Motta, Marcus Alexandre. “Recolecionar Opostos – O Livro Anteprimeiro da História do Futuro de Antônio Vieira”. In Maleval, Maria do Amparo Tavares e Portugal, Francisco Salinas. Estudos Galego-Brasileiros. Rio de Janeiro: Programa de Pós-Graduação em Letras da UERJ, dezembro de 2003.

forma mais ampla, da linguagem plástica de Lygia Pape, para assim também compreena espécie de contra-senso intrínseco à cultura brasileira que oscilaria entre sua jovialidade e seu desejo de história, numa espécie de “re-coleção de opostos”.2 Oiticica cria a partir da década de 1960 uma série de obras intituladas parangolés, que abarcam questões cromáticas, corporais e as idéias de dança, de participação coletiva, entre outras. Numa capa-parangolé de 1966, criada para ser literalmente vestida, Oiticica proclama que “da adversidade vivemos”. A tensão proposta pela legenda cria um interessante atrito cônscio de seu papel motriz de mudança e movimento, ao mesmo tempo consciente enquanto problema de identidade e autoconhecimento. A referida frase aparece, ainda, como conclusão-síntese (também levantada como lema ou grito de alerta) do texto que Hélio escreveu para a exposição coletiva Nova objetividade brasileira, realizada em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro. Como poderia, então, uma constatação dessa envergadura ser a diretriz para a atuação do artista e funcionar como uma espécie de pressuposto ético para seus contemporâneos? O uso dessa e de outras frases imperativas, nesse e em outros parangolés (sejam capas, bandeiras ou estandartes), é deflagrador de movimento. Tais palavras de ordem funcionam como conscientizadores e estimulantes de mudanças e oscilações, tendo Hélio as utilizado em diferentes obras. A bandeira/estandarte com o slogan “seja marginal, seja herói” aparece pela primeira vez em 1968, numa manifestação na Praça General Osório, em Ipanema, no Rio de Janeiro, junto com trabalhos de outros artistas. Essa bandeira seria exibida mais tarde, no cenário de um show de Caetano Veloso, fato que acarretou a interdição do espetáculo pela polícia.

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Para agravar ainda mais a situação, o uso de frases de efeito não parou por aí. Houve, ainda, os parangolés Estou possuído, de 1966, e Incorporo a revolta, de 1967, que colocavam direta ou indiretamente questões de constituição de identidade e posicionamento ético-político. Para Renato Rodrigues da Silva,3 as frases não forneceriam o significado da proposição; durante a performance, elas catalisariam as energias dispersas, conectando a subjetividade do espectador com o contexto.

3 Silva, Renato Rodrigues da. “Os parangolés de Hélio Oiticica ou a arte da transgressão”. Revista USP, São Paulo, n. 57, março/maio de 2003.

Tais circunstâncias nunca foram deixadas de lado por Hélio Oiticica, cujas obras colocavam em xeque a condição de um Brasil-problema. Dessa maneira, seus trabalhos (e seus textos) lidaram com questões da cultura local, sempre de uma perspectiva muito particular e crítica, entendendo-a como o chão que pisamos, o qual nos fornece os impulsos necessários para alçar vôos mais altos e ambiciosos. Ou, melhor dizendo, o confronto e a adversidade foram férteis materiais com os quais o artista trabalhou. Lygia Pape, por sua vez, sempre cultivou interesse por manifestações da chamada cultura popular sem, contudo, lançar um olhar que apontasse para o exótico. Ao contrário, as invenções populares observadas sempre serviram como alimento para o processo de produção da artista, que possuía visão de arte incisiva e muito peculiar, negando a incerteza das abordagens vagas e idealistas que consideravam arte o meramente belo. Nas palavras da artista: “Tudo o que observo pode me alimentar e até servir de subsídio para uma manifestação ou invenção que eu vá fazer, mas não no sentido idealista de achar que a arte é algo vago, simplesmente belo. Acho que é mais incisiva, é uma linguagem. É a minha forma de conhecimento do mundo”.4 Com sua Caixa Brasil, de 1967-68, a artista armazena diferentes tipos de cabelo que seriam representantes das distintas etnias que compõem a identidade brasileira. Numa grande caixa de madeira com o interior forrado de veludo vermelho, estão impressas em prateado as seis letras que compõem o nome do país e armazenados pêlos de diferentes colorações, tamanhos, texturas e cujas origens também diferem entre si. Esse recipiente divide com outros objetos produzidos por Lygia Pape à mesma época a marca da ironia, da concretude, das referências locais e mesmo do humor negro. Crítica interessante Lygia Pape faz à instituição arte com suas Caixa de baratas e Caixa de formigas, ambas apresentadas na importantíssima mostra Nova objetividade brasileira. Com esses trabalhos, Lygia colocava as noções de morte e de vida, contrapondo formigas vivas e baratas mortas, em referências à arte viva presente no mundo e à arte morta que é exposta em museus. O fato de serem duas caixas distintas que foram mostradas juntas numa mesma exposição chama atenção para a antítese e a complementaridade de ambas. Não que as formigas sejam os animais mais atraentes do mundo, porém, se analisarmos sua vida em sociedade, sua organização, chegaremos à conclusão de que elas se encontram, de alguma maneira, próximo dos princípios ordenadores do Construtivismo, por mais que seja absurdo atribuir esses princípios de ordem a uma

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4 Carneiro, Lúcia e Pradilla, Ileana. Lygia Pape. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, Coleção Palavra do Artista, 1998: 22.


“racionalidade” do mundo animal. E, ironicamente, formigas estão associadas positivamente, em nosso imaginário, ao mundo do trabalho, coisa que a fábula A cigarra e a formiga exemplifica. Além do mais, as formigas foram expostas vivas, em movimentos constantes de interação, aliás, até com outros trabalhos presentes na mesma mostra, sendo alimentadas por um pedaço de carne também colocado na caixa. Para que elas conseguissem respirar e não morressem, a artista precisou deixar uma brecha, por onde, então, elas fugiam e subiam pelas paredes, transitando sobre os trabalhos expostos. Já as baratas, imbuídas de seus simbolismos de sujeira, degradação e morte, foram postas numa caixa de acrílico com seu interior espelhado, o que propicia repulsa ainda maior ao espectador que se depara com ele mesmo como uma figura asquerosa, em meio a animais que causam tanta aversão. Fato é, porém, que as baratas estão pregadas num princípio ordenador muito mais fechado que as formigas vivas – e em constante movimento –, até mesmo por se encontrar imóveis, sem vida. A forma, nesse caso, é entendida como morte, pois encerra, delimita, enquanto a vida sempre desafia a proposição formal, objetual, posto que em constante processo de transformação. Seja como for, o que temos é uma tentativa de guardar e armazenar esses animais segundo uma lógica e dentro de um suporte que é continente (a caixa), mesmo que seja para contrapor tais situações de morte e vida, repulsão e atração, movimento e impassividade. A lógica da coleção, através da organização dentro de uma caixa – e mais particularmente da coleção de história natural, cuja presença no Brasil tem forte penetração desde o início da colonização –, chama atenção para a atitude da artista frente a uma realidade cruel, uma vez que o Brasil se encontrava então sob forte ditadura militar. Para Paulo Herkenhoff, as caixas de humor negro, como Caixa de formigas e Caixa de baratas foram apresentadas num período em que essas estruturas atraíram muitos artistas no Brasil. Sendo assim, o sentido aparentemente anárquico do projeto da Caixa de baratas já trazia inclusa uma estratégia política. Em tempos de ditadura os museus, enquanto instituições oficiais, passam a ser pequenos espaços alegóricos e diagramas do próprio sistema de poder, que no Brasil significava então a escalada da repressão da ditadura de 1964. Os artistas montavam processos traumáticos de desnudamento das instituições do Estado autoritário, revelando esse braço repressivo ou construtor de opacidade sobre a cultura da consciência crítica. Nessa estratégia, a Caixa de baratas pertence ao ciclo de embate artista/ instituição no qual se encontram obras como O porco empalhado (1967c.), de Nelson Leirner, ou a performance de Antonio Manuel no Salão Nacional de Arte Moderna de 1970, quando inscreve seu corpo como uma obra e à revelia das autoridades culturais apresenta-se nu no evento.

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Dilemas e estratégias de resistência numa ditadura. Abjeção e escatologia são armas que ocupam o espaço das promessas utópicas do construtivismo russo ou da Bauhaus, idealizações renovadas no concretismo”.5 Curioso é o fato de a artista estar interessada em formatos fechados, como o da caixa e

5 Herkenhoff, Paulo. “Lygia Pape – Fragmentos”. In catálogo da exposição Lygia Pape. Galeria Camargo Vilaça, São Paulo, maio de 1995.

do livro, quando suas proposições debruçavam-se cada vez mais em situações abertas, da vida. A inclinação pelos veículos restritos, contidos e continentes e suas óbvias associações a bibliotecas e arquivos poderia ser explicada pela noção de memória e história que suportes dessa natureza suscitam e também pela possibilidade ordenadora que tais objetos propiciam. Dessa forma, um entendimento participativo e emancipador da arte, ao mesmo tempo fazia-se autoconstituinte da cultura e da arte no Brasil, numa espécie de busca de uma ou mais histórias e a conseqüente responsabilidade de sua escrita ou reconstrução. Assim, a arte, ao interagir com a vida, com as pessoas, e ao se relacionar com tópicos contextuais e culturais, põe em movimento processos de transformação. Segundo o crítico inglês Guy Brett, no Brasil dos anos 60 parecia possível que uma transformação social revolucionária se combinasse com emancipação cultural. E parecia possível que tal emancipação coincidisse com o sonho, incorporado na abstração, no construtivismo, no neoplasticismo, no suprematismo e no neoconcretismo, de limpar o caminho e começar de novo ou, ao menos, reunir relações ancestrais, primordiais, com as futuras.6

6 Brett, Guy. Brasil Experimental. Rio de Janeiro: Contracapa, 2005: 267.

Dessa maneira, as proposições artísticas transformavam-se, também, em estratégias micropolíticas, em impulsos emancipadores, poéticos, críticos e, em alguns casos, terapêuticos. A escolha de Lygia Pape, e de outros artistas da época, pelos formatos da caixa e do livro – refiro-me, por exemplo, aos bólides de Hélio Oiticica, às urnas quentes de Antonio Manuel, às caixas utilizadas por Cildo Meirelles, ao livro de carne de Artur Barrio, entre outros –, recursos que a artista explorou muito intensamente, talvez tivesse sua razão de ser no fato de que tais suportes trariam consigo a contradição da ordenação frente à realidade incontrolável a seu redor. O caráter administrável de um recipiente vazio e de uma página em branco forneceriam um interessante contraponto ao caos permanente em que se encontrava o Brasil. Talvez interessasse mais ainda a ironia, ou mesmo o paradoxo envolvido em extrair do vazio calmo e manipulável de tais meios a possibilidade de controle de uma realidade sociocultural e política adversa e confusa, quase apocalíptica. “O impulso da vanguarda no Brasil nesse período”, observa Brett, “era, tanto quanto ‘conter o caos’, liberar os paradigmas de ordem herdados por intermédio do influxo de vivências”.7

7 Brett, op. cit.: 152.

A hipótese de que Hélio Oiticica e Lygia Pape ofereceriam possibilidades menos ortodoxas frente a uma arte geométrica a princípio parece óbvia. No entanto, seria inconseqüente apartar a dimensão “apolínea” das linguagens dos artistas, já que Pape

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e Oiticica, apesar de viscerais em suas propostas e de colocarem os espectadores em situações-limite (comumente entendidas como “exemplos” da desmesura dionisíaca), o fizeram mediante abordagem ética e estrutural, explicável até mesmo por sua filiação construtiva. A própria Lygia Pape, observa: Todo mundo gosta de dizer que o Brasil é barroco. Eu acho que nós brasileiros somos é fundamentalmente construtivos. Vá a qualquer lugar nesse interior do país e olhe uma porta, um carrinho de pipoca, qualquer coisa assim. Se há pintura neles, é geométrica. É uma coisa 8 Moraes, Angélica de. “Um manto tupinambá reflete a devoração do índio”. In O Estado de São Paulo. São Paulo, 30 de abril de 2000. Caderno 2 / Cultura.

que está entranhada.8 Assim sendo, essa tensão seria uma entre tanta(s) outra(s) adversidade(s), quiçá ambigüidade(s) perpassando as poéticas de Oiticica e de Pape que, como artistas brasileiros, pensaram e problematizaram seu espaço de atuação e sua inserção num certo Brasil (político, cultural e economicamente distinto e específico). Pela falta de local institucional para proposições vivenciais e performáticas e para a participação do espectador, houve necessidade de que os artistas criassem seu próprio lugar. A incipiência de instituições ou a crítica a sua atuação fez com que Hélio Oiticica criasse seus próprios espaços, suas próprias arquiteturas, erigindo seus próprios “mundos”, já que o Brasil não era propriamente um lar à época da criação de seus trabalhos. Na mesma exposição coletiva (a importantíssima mostra Nova objetividade brasileira) em que Lygia Pape apresentou suas caixas de humor negro, em 1967 no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Hélio Oiticica expôs Tropicália, obra particularmente importante, cuja formação se dava através de construções labirínticas com uma série de informações e estímulos sensoriais. Os diferentes penetráveis que compõem Tropicália são estruturas de madeira recobertas com arame, chita, plásticos coloridos e divididas por cortinas e palha. Além de o chão ser recoberto por brita, areia e outros materiais, há diferentes poemas escondidos entre os comigo-ninguém-pode, espadas-de-ogum, guinés e gravatás que, junto com as araras, formam a alegoria folclórico-tropical. Seja como for, somos bombardeados por imagens, sons, estímulos táteis e olfativos que nos obrigam a nos descalçar para ter a “sensação de estarmos de novo pisando na ter-

9 Oiticica, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

ra”.9 O ruído frente a uma construção tão cabível do Brasil seria fornecido pela presença da televisão localizada no final do trabalho e constantemente ligada, que colocava em xeque a visão romantizada de uma nação “primitiva” ao mesmo tempo em que trazia para a ordem dos acontecimentos a discussão acerca da imagem. Segundo Carlos Zilio, o cálculo implícito neste trabalho é provocar a explosão do óbvio. Isto é, a ruptura com as tentativas de atualização do realismo da ideologia nacional e popular. Como na música de Ary Barroso, ele realça o óbvio: o coqueiro que dá coco mas agora, com o objetivo de desconstruir

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o empírico. Explorar a pregnância da imagem e apelar para todos os sentidos. Propor o salto do concreto para o abstrato, da aparência para uma reflexão sobre aquilo que se oculta e determina esta aparência.10

10 Zilio, Carlos. “Da antropofagia à tropicália”. In O nacional e o popular na cultura brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1982: 30.

Ainda segundo Zilio, a relevância da proposta residiria no agenciamento que ela faz dos elementos cotidianos e do simbolismo patriótico e na presença desarticuladora da televisão que, como núcleo do trabalho, teria salientado seu papel propagador e constituinte na formação do olhar contemporâneo. Mesmo estando situada no centro do labirinto, ela invadiria, assim como nas cidades, todos os ambientes. A representação da cultura brasileira deu-se através de “modelos”, tais como os odores de cultos e tradições, e pela presença de imagens “típicas”, como a arara e as plantas comuns e abundantes nas casas simples brasileiras, seja para uso no banho medicinal ou mesmo para afastar mau-olhado. Mas tal construção, apesar de toda a lógica ordenadora que estrutura tais elementos, é traspassada por um riso irônico e desconcertante. A diferença entre arte do Brasil em contraposição a arte no Brasil já vinha sendo levantada desde o Modernismo. No trabalho de Oiticica, no entanto, ela ganha maturidade, uma vez que Zilio localiza uma quebra entre o modelo externo e a produção artística do e no Brasil nesse momento. Segundo o autor, a deturpação do sentido visual de Tropicália e sua recuperação anedótica por parte da ideologia nacional-popular que precisava se atualizar é referida pelo próprio Oiticica: O próprio termo tropicália era para definitivamente colocar de maneira óbvia o problema da imagem... Todas estas coisas de imagem óbvia de tropicalidade, que tinham arara, plantas, areia, não eram para ser tomadas como uma escola, como uma coisa para ser feita depois, tudo que passou a ser abacaxi e Carmem Miranda e não sei o que passou a ser símbolo do tropicalismo, exatamente o oposto do que eu queria. Tropicália era exatamente para acabar com isso; por isso é que ela era até certo ponto dada, neo-dadá; sob este ponto de vista era a imagem óbvia, o óbvio ululante... Foi exatamente o oposto que foi feito, todo mundo passou a pintar palmeiras e a fazer cenários de palmeiras e 11 Oiticica, Hélio. “Entrevista à Funarte”, 1977 apud Zilio, op. cit.: 31.

botar araras em tudo...11 O uso dessas imagens óbvias poderia funcionar como uma espécie de ready-made de uma tropicalidade existente, apropriada e ressignificada. Mas, por outro lado, as imagens cumpririam uma função formadora, de ser incorporadas para ser suplantadas. Nesse caso, o próprio “fracasso” da estratégia de H.O. seria ele próprio emblemático, uma vez que apontaria para uma crença romântica na possibilidade transformadora da arte e incorporaria um descompasso entre o artista e a cultura a que quer pertencer.

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De alguma maneira, a apropriação do termo por parte dos músicos na constituição do Movimento Tropicalista foi mais próxima da noção crítica e antropofágica de Oiticica para a constituição de uma linguagem-Brasil do que o processo de cooptação do termo pelas artes visuais, daí a referência que tanto o próprio Oiticica quanto Carlos Zilio fazem em relação à forma como o conceito de tropicália foi incorporado pelas artes plás12 Oiticica, 1986: 125.

ticas. Seja como for, a tropicália acabou se tornado “o grito do Brasil para o mundo”.12

13 Guinle Filho, Jorge. “A última entrevista de Hélio Oiticica”. In Interview, abril de 1980.

Em entrevista a Jorge Guinle Filho,13 Hélio cita a estrutura fixa e geométrica dos penetráveis que lembra as casas japonesas mondrianescas e, podemos acrescentar, mesmo as noções de vielas estreitas, das quebradas dos morros e dos becos sem saída das favelas. Essa vontade de encontrar Mondrian seja nas casas japonesas, seja na arquitetura das favelas cariocas, mostra como HO e LP ampliam a idéia de arte, não entendida mais nos limites de uma linguagem plástica – encontrar Mondrian em experiências que lhe são alheias ou anteriores significa apontar a qualidade cultural da forma, a instância pública e total da arte, outra ordem de universalidade, distinta da ilusão européia ou ocidental. Análise interessante sobre Tropicália também é empreendida por Waly Salomão no livro Hélio Oiticica: qual é o parangolé e outros escritos. Além de também localizar Tropicália ou mesmo os penetráveis em geral como “mapas cartográficos, astrolábios, bússolas e

14 Salomão, Waly. Hélio Oiticica: qual é o parangolé. Rio de Janeiro: Relume Dumará/ Prefeitura, 1996: 87 (Perfis do Rio; 8).

sondas da imersão oiticiquiana no novo mundo”14 da Mangueira, Waly enuncia que Tropicália não seria um efeito passivo-naturalista das andanças de Oiticica, nem a natureza em si, mas sim um ambiente construído. Para tal, chama atenção para o fato de sempre ter havido, por parte de Oiticica, uma busca e uma questão do espaço, além de enfatizar a posição não simplória do artista com relação ao questionamento dos lugares-comuns e mesmo do cotidiano e dos atos corriqueiros rumo à colocação de questões mais profundas e menos óbvias. Nas palavras do escritor, Tropicália, em vez do clichê, seria: um filtro de ascensão sensorial porque você é obrigado a tirar seus sapatos porque você é levado a se limpar do entulho do lixo que ofusca sua sensibilidade. (...) Tem sempre essa atitude de tirar os sapatos para sentir brita, pedra, no espaço onde aquilo é construído. Um filtro sensorial que questiona e corrói o exótico enquanto estereótipo. Não é uma orgia de feijoada com caipirinha, o Brasil-diarréia que ele tanto criticava. Não é um espaço submisso ao empírico. É como se fosse a quintessên-

15 Salomão, op. cit.: 68-69.

cia alquímica do Rio e do Brasil.15 Como já mencionado, a referida obra de Hélio Oiticica tornou-se um marco não só em termos visuais, mas também porque passou a nomear um movimento cultural fundado sobretudo na música, mas que envolvia também o comportamento, a moda e uma postura frente à ideologia de esquerda. Segundo o próprio Oiticica, Tropicália viria con-

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tribuir na objetivação de uma imagem brasileira, no movimento de derrubada do mito universalista da cultura brasileira, calcada na Europa e na América do Norte. Mas, para tal, chama atenção para o fato de que o mito da tropicalidade é muito mais do que araras e bananeiras: é a consciência de um não-condicionamento às estruturas estabelecidas, portanto altamente revolucionário na sua totalidade. Qualquer conformismo, seja intelectual, social, existencial, escapa à sua idéia principal.16

16 Oiticica, 1986: 109.

Nuno Ramos no texto intitulado À espera de um sol apresenta interpretação bastante interessante da poética de Oiticica, afirmando que as obras do artista estão o tempo inteiro numa tensão, lidando com ambigüidades, com o que lhe é diverso, e essa característica seria, na realidade, seu “caroço poético”. Segundo o autor-artista, adormecemos nos trabalhos de HO para, de lá, descobrir um mundo novo, sempre nesse movimento que abarca o dentro e o fora, a saliência e a reentrância. Ramos nos fala, ainda, da concretização e da realização no espaço real (efetivamente), por Oiticica, das promessas virtuais das vanguardas construtivas. Haveria, assim, nos trabalhos de Hélio e também nos de Lygia Pape, “muito de país novo nesse assalto ao real, nesta passagem para o outro lado do espelho, muito de Brasília na solidão do Planalto”.17

17 Ramos, Nuno. “À espera de um sol”. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 28 de julho de 2001: 4.

Vilém Flusser faz interessante distinção entre os conceitos de novo e jovem no capítulo intitulado “Retorno” de seu célebre livro Pós-História. O conceito de “novo” estaria ligado à Europa, ao velho mundo, rico em tradições e realizações. Tal mundo estaria gestando um novo homem com pensamento e comportamento novos e, por isso, seria senil, visto que já teria passado por fases atualmente percorridas pelo “jovem”.18 O conceito de “jovem” estaria vinculado à América do Sul, ou mesmo a países que abrigam “virtualidades não realizadas”, ou seja, com potência de realizações, mas que ainda não as teriam efetivado:

18 É necessário chamar atenção para a distinção que o autor faz entre primeiro e terceiro mundos, associando o primeiro ao novo e o último ao jovem. O uso de tais termos hoje seria anacrônico, por isso, optou-se por não reproduzir tais noções ao longo do texto.

A diferença entre as duas sociedades não é que as jovens se movimentem mais (...) A diferença é que as jovens sociedades querem fazer história, enquanto as velhas já a têm, não mais querem fazê-la, mas a fazem automaticamente (...) Para o jovem, o problema é o futuro a ser conquistado. Para o velho, o problema é o futuro realizado, a morte. O jovem visa realizar-se, o velho faz face à meta da realização: à realidade da morte.19

19 Flusser, Vilém. Pós-História. São Paulo: Duas Cidades, 1983: 163.

Tais considerações acerca do jovem e a constituição de suas possíveis histórias nos levam a reconsiderar a vontade construtiva no Brasil e a leitura (profundamente culturalizada) que o grupo neoconcreto fez, a partir de 1959, de Mondrian, por exemplo. A influência sobre Hélio Oiticica é clara; no entanto, a apropriação que o brasileiro

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Hélio Oiticica. Da adversidade vivemos, 1966, foto Cesar Oiticica Filho.

faz se dá em termos estruturais. A ortogonalidade e o estruturalismo que permeiam

20 O artista sempre dá instruções e/ou fornece limitações para a participação e a atuação dos espectadores. Seja através de percursos sugeridos, espaços delimitados, Hélio não permite que o participador aniquile ou simplesmente realize catarses com as obras. Assim, o artista funciona como um mediador entre o público e os trabalhos, e suas proposições – mesmo as que parecem mais desordenadas ou caóticas – apresentam sempre esse viés objetivo e construtivo, funcionando, portanto, como “estruturas de elaboração”.

to dessa influência. Enquanto o artista neoplástico reduziu seus quadros às linhas

todos os trabalhos de H.O. – mesmo as proposições mais “anárquicas”20 – seriam fruverticais e horizontais e às cores primárias, Oiticica buscou a economia (social e formal) das construções da Mangueira para erguer seus próprios penetráveis, ninhos e barracões. Da mesma maneira, as formas pelas quais Lygia Pape e artistas como Ivan Serpa, Alfredo Volpi e Milton Dacosta foram influenciados por Mondrian são particulares, passando a funcionar, no entanto, como força motriz no processo de constituição da cultura brasileira. Pape interessava-se, sobretudo, pela síntese e pela economia de Mondrian e por sua geometria e rigor, além dos problemas de espaço que o artista levantava.

21 Referência ao título de um dos capítulos de Essa América nova, ainda inabordável de Stanley Cavell.

“A descoberta como fundamento”21 nos anuncia, portanto, um novo mundo, como abandono do velho. Daí proviria também o gosto pelo provisório tão latente em Pape e Oiticica. Esse apego ao caráter provisório e a certa imprevisibilidade seria marca da capacidade inventiva e de improvisação brasileiras. Segundo Nuno Ramos, a aspereza das madeiras de compensado usadas em várias obras de Hélio e a utilização de tons e matizes (e não cores puras) em outras seriam exemplos da opção pelo intermediário que serve de ponto de partida. Com Lygia Pape, temos a valorização do fragmento, da cena, do episódio, sendo suas performances e proposições sempre circunstanciais e dependentes de uma espécie de instabilidade ou irregularidade. Esse viés repentino e de inadvertência era um campo de atuação muito fértil, até mesmo por seu poder de desautomatização, tendo sido muito explorado pela artista. Essa inclusão, nas obras, do que lhe é diverso faz com que seu interior dilate-se constantemente. E é, então, que, tanto para Lygia quanto para Hélio, o apocalipse aparece como hipótese, ou seja, há a necessidade de resistência e de matéria exterior com a qual o trabalho possa se medir.

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Essa identidade reiterada no limite faz com que haja uma espécie de ode à mudança e à transitoriedade, criando sempre novas possibilidades a partir de reinícios. Outro autor convidado a integrar nosso diálogo é Stanley Cavell, filósofo norte-americano que em seu livro Esta América nova, ainda inabordável, coloca questões pertinentes para a discussão da “construção americana”. É óbvio que Cavell está claramente abordando a América do Norte, porém, a constituição de sua filosofia é extremamente pertinente para pensarmos a condição da jovialidade e da impossibilidade/dificuldade dessa abordagem do e no Brasil. A partir de Ralph Waldo Emerson, ensaísta, filósofo e poeta norte-americano do século XIX, Cavell apropria-se da idéia de um começo que parta ao invés de chegar ou, nas palavras de Lyotard, de uma tradição que se baseie em inaugurações. Complexa colagem de diferentes referências, a filosofia de Cavell enfoca a possibilidade de abordagem de uma América ainda inabordável. Entre as diferentes investidas de Stanley Cavell, nos interessa sua percepção do ordinário e sua conexão com a idéia de lar. Tendo como pressuposto a noção de que é possível renunciar a tudo para erguer algo e de que não há nada a se herdar, a tarefa americana seria a de fundar seu próprio fundamento, redescobrir-se o tempo inteiro. Daí a força das proposições de Hélio Oiticica e de Lygia Pape que, ao pensarem seu local de ação e sua inserção, também se comprometem com a construção de um Brasil (teórico, artístico e cultural, mas ainda político e social) e para tal lidam com a herança construtiva. Nesse caso, os modelos não apontariam para a morte, como sugerem Flusser e Cavell, mas seriam deglutidos, antropofagicamente, para possibilitar reinícios e quiçá inaugurações. As proposições culturais de Oiticica e de Pape não são normativas, mas sim formativas: elas são mais “anárquicas”, pois se dão a partir do sujeito, trabalhando em sua constituição. A criação de obras inseridas no mundo, na cultura faz com que elas funcionem como intervenções efetivas na realidade política e social. Assim, os trabalhos de H.O. e L.P. não são apenas experiências sensoriais (ainda que não apartem tal viés), mas criadores de elos culturais efetivos. Sujeito e objeto fundem-se mutuamente e se misturam, e daí provém sua maior ambivalência, a diretriz dialética que norteia a produção. Seguindo essa lógica, portanto, a profecia brasileira, ou mesmo sul-americana, seria a de “declinar a ruína do tempo no presente da narrativa”,22 ou seja, parar e recomeçar ou, melhor dizendo, conjugar infinitamente os verbos redescobrir e reiniciar. A singularidade cultural do Brasil estaria calcada, portanto, em novas e nunca ouvidas histórias, em virtualidades (potências, e não atos) e incompletudes. E é preciso que atentemos para o plural de tais substantivos. A própria idéia de experimentação como tradicional conceito científico aponta para a impossibilidade de previsão de resultados e a abertura para um futuro ainda inabordável. A entrada num campo de infinitas possibilidades, no

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22 Motta, 2003: 360.


entanto, nada possui de reconfortante, visto que as incertezas e dúvidas causam uma ânsia por previsibilidades e por incessantes modificações e reformulações. Dessa maneira, “sublime do verbo redescobrir (rebatimento lingüístico dos Descobrimen23 Id., ibid.: 367.

tos portugueses como iniciador de um novo mundo)”23 seria a marca de nossa singulari-

24 Emerson, Ralph Waldo. “Experiência”, 1844. In Cavell, Stanley. Esta América nova, ainda inabordável. São Paulo: Editora 34, 1997.

dade cultural, e, assim, a velha pergunta “onde nos encontramos?”24 volta a reverberar e passa a ser a força motriz que impulsiona Hélio Oiticica e Lygia Pape a prosseguirem em suas construções. Afinal, os trabalhos são linhas de força que indicam o processo através do qual os artistas demarcam e problematizam o território onde se localizam suas ações artísticas. A adversidade e o subterrâneo, assim, ofereciam-lhes, mesmo que difusa, uma borda, uma fronteira. E parece não ter sido à toa que em seu “Esquema geral da nova objetividade” Oiticica tenha enunciado como item número 1 que caracteriza a produção brasileira a “vontade construtiva geral”. Para finalizar (provisória e momentaneamente como queriam os artistas), algumas palavras do próprio artista:

25 Nome atribuído ao PN2 (1966), um dos penetráveis que compõem a obra Tropicália, de 1966-67. Ao entrar no penetrável, na parte superior da parede à frente, vê-se a inscrição “a pureza é um mito”, frase também presente no livro póstumo de Torquato Neto Os últimos dias de Paupéria, organizado pelo poeta e produtor Waly Salomão. No livro, essa frase aparece numa fotografia, estampada um pouco acima da moldura de um espelho de elevador em que aparece a imagem de Torquato Neto. A primeira edição do livro é de 1973. 26 Oiticica, Hélio. “Subterrânia”, Londres, 21 de setembro de 1969. In Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

A pureza é um mito25 ou No Brasil

no submundo algo nasce

ou é fulminado

germina

culmina

como fênix nasce da própria cinza...26

Fernanda Pequeno da Silva é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde leciona como professora substituta do Departamento de História e Teoria da Arte. Desenvolve atividade crítica, tendo publicado textos em folders de exposições e revistas acadêmicas e realizado pesquisa para publicações, além de atuar como professora de Artes Visuais do Ensino Fundamental na rede pública e privada do Rio de Janeiro.

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Andarilho – impulso e trivialidade Francini Barros O texto a seguir é um resumo das idéias apresentadas na dissertação do mestrado em Arte e Cultura Contemporânea no Instituto de Artes da UERJ. A pesquisa é o resultado do entrecruzamento de três categorias artísticas: dança, artes plásticas e literatura. Ela tem início através do embate com a performance Outdoor Piece, do artista plástico Tehching Hsieh, feito “idealizável” quando comparado à questão do movimento bem como a outros artistas e obras literárias. Andarilho, impulso, trivialidade.

Tehching Hsieh realiza performances, todas com a duração de um ano, Francini Barros. Série Impulsos, 2005, fotos Ana Torres, edição Ducha.

em Nova York. Em Outdoor Piece, projeto de 1981/82, permanece nas ruas da cidade como um homeless, sem poder abrigar-se em nenhum lugar coberto, condição só violada pela detenção de 15 dias na delegacia de polícia. Diante de sua ação, calo-me, motivação que me leva a iniciar a pesquisa de movimento. O artista renuncia a si mesmo, a suas escolhas; errante, vaga pela cidade sem destino certo, não determina sua origem. Não sabe mesmo quem é, desconhece a identidade que justifica seu nome. Vagabundo, pertence agora à massa. Entregue ao acaso das relações que se apresentam, não tem mais responsabilidade sobre seu discurso; sequer sabe falar. O ato ordinário do andar se constitui no extraordinário do pensamento enquanto desconstrução do que é fixo e estável. Uma vez suspensa, a intencionalidade torna-se percepção. Impulso. Eu buscava uma palavra que pudesse designar o meu vazio, mas ela é o vazio, o silêncio que me faz, bailarina, falar. Buscava algo que pudesse aproximar vida e arte, uma narrativa, uma obra espetacular; mas aqui está a vida como a palavra que é eternamente quase uma forma, quase uma idéia. Justifico a palavra – impulso – vivenciando seu

1 O outro aqui é concebido segundo a leitura de Emmanuel Lévinas feita por Derrida. Refere-se ao outro cuja separação de mim é infinita. O outro cuja presença pode ser pressentida pelo encanto quando nos toma e nos arranca de nós mesmos. O outro de mim mesmo, gerado quando o objeto não pode ser, pelo sujeito, apropriado, mantendo-se desconhecimento. Derrida, Jacques. Adeus a Emmanuel Lévinas. São Paulo: Perspectiva, 2004.

sentido como reconhecimento desse outro1 andarilho, que passa a fazer parte de minha história. Assim como o andar constitui a configuração mínima do deslocamento, assim como a palavra é o balbuciar anterior a qualquer discurso, também o impulso constitui uma forma pré-artística de movimento e, assim, inaugura outro lugar possível para pensar o que se costuma chamar de arte.

Stephen recurvou-se para a frente e afundou os olhos no espelho sustido ante ele, fendido numa rachadura curva, cabelo em pé. Como ele e os outros me vêem. Quem escolheu esta cara para mim? Esta cani-

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carcaça a sacudir sanguessugas. Ele me pede a mim também… É um símbolo da arte irlandesa. O espelho rachado de uma criada… Parados de novo. Ele teme o escalpelo de minha arte como eu o da dele. A fria pena de aço.2

2 Joyce, James. Ulisses. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004: 13.

Dedalus vislumbra seu rosto no espelho, sua face – a de dentro ou a de fora do espelho? – a face vista pelos olhos. Em Ulisses, os objetos passam, e as coisas são descritas como são vistas. Personagem andarilho, Dedalus nunca se detém em sua leitura, também andarilha, do mundo. Na constatação do mundo, a simultaneidade das ocorrências é fragmentada, e elas ganham a autonomia de imagem poética, o som da imagem, o cheiro, a cor verde do experimento, suspensões no tempo. Dedalus/Bloom é o catador de um poema abandonado chamado vida, que maravilhosamente nunca acontece; antes, eterna espera. Para o andarilho nenhuma referência pode ser aceita que dirija o experimento. O que seria dançar assim? A quebra de referentes instala a dúvida sobre a eficiência do movimento dançado em expressar sua própria vida, apontando para nossa relação com o discurso. Destituída dos juízos a priori, a arte confere ao trivial a força da imagem que irrompe presentificando a obra na vida de um primeiro impulso guardado no descompromisso.3 Arte e natureza deixam de ser dados anteriores à apresentação da linguagem, a nomeação do desconhecido. É então que começo a perceber o a priori, o dado, meu corpo e a condição de aprisionamento que a consciência dele causa. A barriga dói, mas não consigo realmente sentir a dor; antes, constato-a apenas como algo externo. Nada pode, no entanto, me afastar dessa sensação de vida e fluidez, nem mesmo a autocrítica pela renúncia à técnica e ao

3 “Não importa o que ele escreva, a frase já está perfeita. Esta é a certeza profunda e estranha da qual a arte faz sua meta. O que está escrito não é nem bem nem mal escrito, nem importante nem vão, nem memorável nem digno de esquecimento: é o movimento perfeito pelo qual o que dentro não era nada veio para a realidade monumental de fora como algo necessariamente verdadeiro, como uma tradução necessariamente fiel, já que aquele que ela traduz só existe por ela e nela”. Blanchot, Maurice. A parte do fogo. Rio de Janeiro: Rocco, 1997: 295.

pensamento que substituem o experimento quando assumido como equivalente à experiência. E ele acaba com o mesmo imediatismo com que começou, chamo-o de impulso: um único impulso de total presença. O movimento nega o corpo. Saio deambulando pela cidade. A pesquisa de movimento tem prosseguimento a partir da leitura de A prisioneira,4 de Marcel Proust. O autor aprisiona o leitor em páginas cheias, sem qualquer espaço em que se possa respirar. Quando a verdadeira questão se aproxima, ocorre a fuga, o desvio a qualquer futilidade narrada. Então, na riqueza dos detalhes, o leitor corre atrás de si mesmo, vagando em círculos... Assim, após a leitura, percebo que meu corpo parece já não ter mais memória de qualquer técnica apreendida ao longo do tempo. Já não é possível reconhecer signos que identifiquem um vocabulário específico ou o traço de uma subjetividade prévia. Nenhum estilo apreendido se consagra, parece mesmo não haver mais o próprio corpo, dado anterior. A materialidade do corpo é anulada pela corporeidade – estado potencial de movimento, prestes a assumir, por autonomia, a tradução de quaisquer estímulos, agora feitos impulso. Os hábitos não mais respondem à vida das sensações experimentadas – não há mais portos nem vícios.

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4 “Não, encarando a sonata de outro ponto de vista, tomando-a em si mesma como obra de um grande artista, era reconduzido pelas ondas sonoras aos dias de Combray… quando também desejara ser um artista. Abandonando de fato esta ambição, porventura renunciara a algo de real? Poderia a vida consolar-me da arte, haveria na arte uma realidade mais profunda em que a nossa personalidade verdadeira encontra uma expressão que não lhe dão as ações da vida?” Proust, Marcel. A prisioneira. São Paulo: Globo, 2002: 146.


O mundo de Dedalus é a palavra aberta enquanto possibilidade de imagens, palavra que nada determina, mas anuncia miragens, inacabamentos em que nada pode ser provado. A palavra segue o rastro das formas de vida que se apresentam como restos. Na totalidade, a vida não se realiza, mas somente na efemeridade das pequenas partes constituintes, que podem, em trânsito, ser assimiladas. As imagens passam, e é por perda que toda a sua visualidade se organiza, imagens-impulso do cotidiano. Elas não têm mais uma forma delineada – perdem seu contorno, tornam-se manchas: “e então o gesto, não a música, não os odores, seria a linguagem universal, o dom das línguas tornando visível não o 5 Joyce, op. cit.: 557.

sentido vulgar, mas a primeira enteléquia, o ritmo estrutural”.5 O ritmo do deslocamento dos impulsos produz quase um “desfocado”. No trânsito das imagens fugidias, outro tipo de apreensão torna-se necessária, uma vez que a formatação visual já não é possível. Se o andarilho transita seu ponto de vista e a moldura, é porque cede lugar aos enquadramentos instantâneos, a todo tempo demarcados. Ele se permite desestruturar pelas imagens; vive as confusões da percepção. Entrega-se à condição passageira. E se algo insinua configurar-se, é só até que nova situação surja – referências temporárias filtradas pela visualidade. Seu ato desestabiliza o espaço em que a identidade permanece em constante deslize, o vagabundo leva o espaço consigo.

6 Cavell, Stanley. Esta América nova, ainda inabordável. São Paulo: Ed. 34, 2004. 7 Observação de Emerson usada como desafio à Crítica da Razão

Stanley Cavell6 apresenta as palavras em exílio de Wittgenstein, palavras que precisam ser levadas para casa, conhecidas e recepcionadas. Se “tudo que conheço é recepção7”, então nada sei de antemão até que se apresente a mim. As imagens do mundo, imagens sonoras, imagens de movimento, são fontes de trauma e precisam ser nomeadas. Os referentes da criação artística, esgarçados, perdem, então, a condição de modelo, o desconhecido pode, então, ser reconhecido em seu poder de afecção. As palavras são descompromissadas de sua condição gramatical e inaugura-se a reflexão sobre a perda do acordo, do senso comum em relação a seu poder de significação. A escolha da palavra impulso: impaciente, importante, impertinente, imperativo, impessoal, imperceptível, imperfeito, impróprio, impreciso, imperial, impotente. Em inglês,

8 “Se não achares grata essa vivenda Deves agradecê-la ao que me obriga A tramar contra ti, que não me ofendes, Esta vingança atroz que só devia Recair nele que me ofende tanto. Pela inocência pura que te adorna Enterneço-me assaz; porém contudo, O público interesse, a honra empenhada, O ardor de me vingar engrandecendo Coa conquista do Mundo o meu império, Obrigam-me a fazer coisas agora Que eu, inda que votado às penas do Orco, Em outras ocasiões abominara.” Milton, John. Paraíso perdido. São Paulo: Martin Claret, 2003: 159.

imp, o demônio, satanás de Milton,8 do qual nascem os impulsos andarilhos, a própria perversidade da língua; a palavra e seus demônios. Se o ato do experimento se faz aleatório, a palavra que o denomina aparece por escolha; o demônio da palavra impulso, seu movimento inicial, imp, sua origem implantada e autônoma que nos invoca, nos chama em nosso próprio abandono, imagem sonora e visual da palavra.

Em Ulisses, é no final da imagem que a perda se evidencia; o que se vê antes dela? No lugar em que a vida ainda não aconteceu, tornamo-nos todos triviais coletores de imagens e referências poéticas de onde quer que elas venham; arte andarilha. Dedalus/Bloom é o andarilho, o homeless, a quem tudo pode acontecer em um dia. O narrador vê como se as coisas estivessem de passagem, e, por trivialidade, anula qualquer expectativa por novo

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dilema, o enigma a decifrar. É o corriqueiro dos acontecimentos que nos leva a perceber a obra de outra forma, produzindo a própria leitura, fato que possibilita ao leitor nomeá-la. “A arte tem de revelar-nos idéias, essências espirituais sem forma. A suprema questão sobre uma obra de arte está em quão profunda é uma vida que ela gera.”9

9 Joyce, op. cit.: 242.

O que são, então, os impulsos senão minha própria atitude andarilha? Contínua troca de imagem, de impulso em impulso a imagem se faz e desfaz, ela é fragmento, ruína que anuncia o perigo de sua perda; por ela, o mundo apresenta-se descontínuo. O sentimento assim instalado, erguido como marca,10 não é a significação de nada. O taiuanês, o homem que é a marca. Que signo a ele associar, para a radicalidade do ordinário que experimenta? É no percurso aleatório pelo labirinto da grande cidade que inscreve sua lenda sobre o simples ato de andar; sabe que, para isso, é preciso sustentar o esquecimento.

Dedalus possui o conhecimento, não fala por ignorância, entretanto, não é ouvido. É no

10 Walter Benjamin define a marca em contraponto à noção de signo. Ao contrário deste, que se imprime, a marca levanta-se somente do vivo, comumente como o aviso da falha. Ela tem uma significação temporal, além de estar ligada à dissolução da personalidade em elementos arcaicos. Benjamin, Walter. Sur la peinture, ou: Signe et tache. In: Ouvres 1. Paris: Gallimard, 2000: 172-178.

impacto com a vida que diminui a força de seu saber. Andarilho transita por posições, lugares onde o espaço se constitui somente no tempo da relação, e esta produzida pela falha, pela dilatação do tempo real, contém o passado e o futuro. Um choque quente de calor de mostarda afogueou o coração do senhor Bloom. Levantou os olhos e defrontou a mirada de um relógio bilioso. Duas. Relógio de frege cinco minutos adiantado. O tempo passando. Ponteiros movendo-se. Duas. Não ainda. Seu diafragma emergiu forte então, mergulhou dentro dele, emergiu mais anchamente, ansiosamente. Vinho. Ele cheirossugou o sumo cordial e, concentrando a goela fortemente a avisá-lo, depôs delicadamente o vinicopo. Sim – disse ele – de facto é ele o organizador. Nada a temer. Um desmiolado.11

11 Joyce, op. cit.: 225.

Ao longo do livro imagens recorrentes vivificam a memória própria do texto, não compartilhada pelo leitor; num único dia, o tempo de todos os tempos. Metaforicamente, os espaços fechados, o bar, a torre a beira-mar, servem à ressonância da memória dos personagens em contraste com a rua, à qual nenhuma referência é cabível. Por memória, o pensamento torna-se a vigília que cobra das coisas algo além de sua simples presença no mundo. Talvez “memória” possa ser substituída por “arquivo”. Essa palavra foi associada inicialmente por Freud a uma memória espontânea, impossível de ser atingida, entretanto, por obstáculos internos (recalque) e externos (repressão), impostos. Derrida12 realiza a leitura do arquivo freudiano situando-o justamente no lugar da falta da memória, onde o que se pressupõe é uma exterioridade. Distanciando-se da idéia de memória espontânea, o arquivo acolhe a instituição de uma “prótese do dentro”,13 marcando não a representação pela inscrição da natureza, mas uma ruptura da mesma através

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12 Derrida, Jacques. Mal de arquivo, uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: RelumeDumará, 2001. 13 Joyce, op. cit.: 31.


de algo que se ergue do interior. Segundo Derrida, ele esquece a memória por jamais se reduzir a ela: arquivo como produção e registro do evento; uma noção, apenas. 14 “Sou a consciência em ódio ao inconsciente, Sou um símbolo encarnado em dor e ódio Pedaço d’alma de possível Deus Arremessado para o mundo Com a saudade pávida da pátria A cujo horror tremo ao pensar voltar Mas se em nada da(…) e da ilusão Pra viver neste desterro. Amor, Paz, amizade, tudo quanto/ajuda/ A viver a mentira do universo Falha-me e eu(…) Pessoa, Fernando. Fausto, tragédia subjetiva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991: 112.

Uma noção apenas; é isso que me leva a Fausto, tragédia subjetiva,14 de Fernando Pessoa. Hsieh e seu rosto no espelho, é só o que o arquivo me traz. Aqui estou, e o que motiva, por curiosidade ou incômodo, é a língua da mulher que não consigo entender ou o cheiro desagradável dos dejetos de gente na areia, a sujeira do Outro a mim exposta, sem que nenhum pensamento possa mascará-lo. Já não é possível voltar para casa, buscar abrigo.

Bloom, Dedalus, narrador e leitor se confundem. As cenas não acontecem, não há teatralização plena, mas um momento anterior, o ensaio, a marcação da cena. O narrador cede lugar ao organizador dos instantâneos apenas, fragmentos de cena cujos personagens são as palavras. “Tenho pensado muitas vezes ao rememorar esse estranho tempo que foi esse pequeno acto, trivial em si mesmo, esse riscar daquele fósforo, que determinou todo o

15 Joyce, op. cit.: 183.

sobrecurso de nossas ambas vidas.”15 O texto é humanizado no cotidiano, no qual as culturas, erudita e banal, têm a mesma importância. Joyce está fora do livro, e, paradoxalmente, nele inscrito, no atrito que o texto oferece à persona que não se configura, entregue a seu deambular. Nem mesmo os personagens têm personalidade, não há tema; o romance é o bilhete que marca um encontro em algum lugar. O livro responde com as possibilidades, com as verdades que não discursam e que não podem ser determinadas no espaço percorrido. Dessa forma, na trivial abertura de suas possibilidades, compara-se ao taiuanês Hsieh na dilatação do dia, que só tem seu fim quando propõe outra saída à escuridão da noite que se anuncia. O autoconhecimento pode ser utilizado pelo artista como instrumento útil para a afirmação de sua subjetividade. Consciente do que acredita ser possível, ele determina seu modo de estar no mundo, acorrentado a si mesmo. Referenciado em si mesmo, o estilo pessoal perde a conexão com o mundo, dissociado da percepção do artista e das exigências surgidas em seu experimento. Estas passam a se apresentar como conhecimento adquirido e afastam a possibilidade das falas e inadequações que permitiriam manter o estilo em constante transformação.

16 Idem, ibidem: 62.

“Estas pesadas areias são linguagem que maré e vento inscreveram aqui.”16 Dedalus é a própria coragem da passividade frente ao que se apresenta no mundo, ao que se impõe pelas desigualdades infindas, em que nenhuma identificação é possível. Se algum sonho romântico o impele, é na passividade do momento em que sua liberdade de ser Bloom o salva. O que a obra consagra é a totalidade do instante, as interrupções. Cava suas raízes na neutralidade, em que nenhum dado é aceito. Para Bloom, o trânsito

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tem início na ruptura do hábito, o beijo não dado em Molly, que inicia sua tarefa trivial de fazer instantâneos, pensamento e palavra. É por intermédio de Molly que o autor diz “sim” à vida e se torna digno de cada acontecimento. Sob a condição andarilha, a dança acontece “sendo”. Inaugura o tempo do movimento que a configura. O impulso é o anúncio da mudança perceptiva pela qual o movimento passa a ter a verdade do andar, a certeza da duração de cada passo e a vida transitória de suas pegadas inscritas no corpo. Este cumpre somente o testemunho da união ativo/ passivo, quando ainda não se podem distinguir. No imediato da expressão do contágio das imagens é possível questionar a escrita de movimento, situando-a no lugar das possibilidades infinitas, onde o especular não mais se consagra. Aqui, é necessária a leitura do poema A Passagem das Horas,17 de Álvaro de Campos, não por acaso, um heterônimo. A dança abandona, assim, os modelos e inaugura um estado performativo. “Performando”, ela institucionaliza questões como identidade e essencialidade; já não se preocupa materialmente com o que lhe é de competência. Assim, é por deformação do sentido estético, reconhecimento do corpo, que a percepção elege seus lugares. Cavell atribui ao corpo a função de expressar a alma, afastando-o da função representativa,18 afirmando que o corpo é da alma, condenado a seu propósito. Essa visão atribui ao pensamento da alma, segundo o corpo e não segundo ela mesma, a união dos dois, incluindo aí o espaço externo onde age a percepção. O corpo se constitui, então, não só como o meio pelo qual a visão se realiza, mas como seu depositário. Merleau-Ponty fala desse “corpo atual que chamo meu”. Descreve-o como a “sentinela que se posta silenciosamente sob minhas palavras e meus atos”.19 Refere-se ao corpo que por mim transita e pelo qual, e com o qual transito; não o corpo em sua materialidade animal, mas outros, estrangeiros por sua própria espécie e território. A tarefa da corporeidade: conferir um corpo; tornar visível a invisibilidade. Agindo sobre o espectador a quem é permitido ver o mundo por outros olhos, incitando-o a seu próprio gesto, é que a obra de arte é consumada sem exigir a completude de sua forma. Andarilha é a percepção.20

17 Sentir tudo de todas as maneiras, Viver tudo de todos os lados, Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo, Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos Num só momento difuso, profuso, completo, longínquo… Sinto na minha cabeça a velocidade do giro da terra, E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim, Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio, Põem-se alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo, Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstracto, Para inencontrável, ali sem restrições nenhumas, A meta invisível todos os pontos onde eu não estou, e ao mesmo tempo… Trago dentro do meu coração, Como num cofre que se não pode fechar de cheio, Todos os lugares onde estive, Todos os portos a que cheguei, Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias, Ou de tombadilhos, sonhando, E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero…” Campos, Álvaro de. Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004: 175. 18 “The statue is not in the stone (except in a certain myth of the sculptor); the statue is not on the stone (except in the case of itaglio). The statue is stone.” 19 Merleau-Ponty, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naif, 2004: 14.

Inelutável modalidade do visível: pelo menos isso, se não mais, pensando através dos meus olhos. Assinaturas de todas as coisas estou aqui para ler, marissêmen e maribodelha, a maré montante, estas botinas carcomidas. Verdemuco, azulargênteo, carcoma, signos coloridos. Limites do diáfano. Mas ele acrescenta: nos corpos. Então ele se compenetrava deles corpos antes deles coloridos. Como? Batendo com sua cachola contra eles, com os diabos. Devagar. Calvo ele era e milionário, maestro di color che sanno. Limite do diáfano em. Por que em? Diáfano, adiáfano. Se se pode por os cinco dedos através, é porque é uma grade, se não uma porta. Fecha os olhos e vê.21 Molly é a única personagem que se constitui e com ela, toda a idéia de escrita. Ela é o movimento posterior ao impulso (Dedalus/Bloom), o discurso tecido sem interrupções; sua proposta

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20 Didi-Huberman propõe a “crise das palavras”, portadoras, se possível, de “efeitos críticos e construtivos”. Isso feito a partir da análise das palavras “forma” e “presença”. O autor apresenta a concepção de Derrida segundo a qual a “presença real” perderia sua força enquanto expressão, em toda a tradição filosófica. Ele propõe, em contrapartida, a palavra différance, situando a presença enquanto questão de “determinação” e “efeito”. A nova palavra proposta cumpriria, justamente, a função de eliminar a oposição entre ativo/ passivo, causa/efeito, presença/ausência, sugerindo a crise da própria visualidade. Didi-Huberman, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998: 201. 21 Joyce, op. cit.: 52.


Tehching Hsieh. One year perform, april 11, 1980 – april 11, performance, 1981.

para a construção da obra: a trivial materialização dos fatos. Em sua totalidade, o livro é constituído de tantas formas de escrita possíveis, sem a escolha de um único modelo a seguir. A procura do esclarecimento da dúvida quanto ao alcance da linguagem cede lugar à aceitação do gerúndio, um “duvidando” que reflete a manutenção, apenas, da inesgotável

22 Se, na modernidade, a busca do objeto puro de Mondrian significou para o artista a negação da motivação trágica da vida para a construção da obra, o ceticismo como argumento artístico propõe uma nova aproximação arte/vida pela aceitação do trágico estado da dúvida. A objetivação moderna pode, então, ser considerada a busca da eliminação das dúvidas e o restabelecimento do ceticismo, uma tentativa de humanização, e não subjetivação, do fazer artístico. 23 A linguagem significa quando, em vez de copiar o pensamento, se deixa desfazer e refazer por ele. Traz seu sentido como o rastro de um passo significa o movimento e o esforço de um corpo. Distingamos o uso empírico da linguagem já elaborada e o uso criador, do qual o primeiro, aliás, só pode ser um resultado. Merleu-Ponty, op. cit: 73. 24 “The moral the “private” “language” “argument” would like for us to draw may than perhaps be put as follows: there is no way for the skeptic to be skeptical enough… Should the skeptic just give up his skepticism, or should he, until he finds a way to go further, just refraim from confessing it?” Cavell, Stanley. The Cleim of Reason. Oxford Oxford University Press, 1979: 353.

descrença. A palavra-estado é ceticismo. Cavell propõe a questão do ceticismo como a representação de uma tragédia,22 da qual nossas vidas ordinárias participam pela vivência dele. O extraordinário estaria presente no que chamamos de usual, e é através da trivialidade que faz o pedido à filosofia para que abandone a tarefa argumentativa, propondo outra tomada de responsabilidade sobre o discurso, como a poesia.23 É através do poeta – do homem que fala – que o mundo se mantém em suspensão, sem que o trato sobre ele adquira rigidez para além da responsabilidade assumida; declínio do compromisso. Cabe à arte encontrar, para si, saídas, quando até a filosofia questiona sua tarefa argumentativa. Para Cavell, Wittgenstein defende a linguagem ordinária como saída possível da angústia de morte causada pelo ceticismo. Diante do meu próprio ceticismo em relação à possibilidade de a linguagem ser meramente um acordo, descubro o impulso em que ela se faz forma de vida, capaz de dar provas sobre a existência da vida do movimento dançado. O impulso declina o declínio do conceito de dança, torna hipótese o discurso, dignifica sua escrita. O ceticismo nunca é o suficiente.24 É tomando a dança e o movimento como dados de dúvida, ou seja, depreciando-os com a incerteza, que se torna possível confirmá-los, edificá-los a partir de suas ruínas. A fala da dança é a palavra que a denomina. Dançando sei que assim como “alma”, a palavra, “dança”, não pode ser usada como referência.

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O andarilho fecha as portas para seguir andando.

Sob o argumento da autonomia de movimento apresentada pelo impulso, seria possível imaginar que sua ocorrência, desvencilhada de referências técnicas ou mesmo históricas específicas, sugerisse um retorno ao argumento pós-moderno da dança em busca da pureza ou mesmo da nulidade de seu objeto, pela ausência de especificidade artística. Essa atitude poderia ser comparada, nas artes plásticas, à objetividade pura buscada por Mondrian e a corrente do Concretismo, por ele direcionada, e, talvez, ao que possa ser lido como o ponto máximo de sua busca, a anulação do objeto, representada por universos aparentemente distintos: o Carré Noir de Malévitch e o readymade de Duchamp – comparados na dança à pureza dos movimentos de Cunningham e ao “Trio A”, de Yvonne Rainer e seus contemporâneos da Judson Church, respectivamente. No entanto, o que o argumento do impulso propõe é um retorno não ao movimento que encerra, ou o que poderia parecer um “mínimo de movimento”, mas a sua motivação do mundo externo. O impulso significa, então, não a autonomia do movimento surgido pelo que aqui foi definido por corporeidade – e, portanto, uma possibilidade de autonomia para a categoria dança –, mas apenas a aceitação plena do grande paradoxo vivido pela abstração. Se, por um lado, a busca do movimento abstrato era de ruptura de um possível caráter representativo da arte em relação às imagens do mundo, por outro, admite, no momento mesmo em que surge, a incapacidade de se desvencilhar completamente dos traumas que propiciaram sua leitura. Por visualidade e tradução, o impulso promove a pronta aceitação das imagens do mundo, indiscriminadamente, quaisquer imagens, históricas ou triviais, cotidianas ou não, cumprindo a aproximação arte/vida, nos lugares de motivação onde se expressam mútua e reativamente; na apresentação da própria vida do movimento artístico que encerra. É, então, por hospitalidade que o impulso se traduz em atitude andarilha pelos estímulos sensitivos que o geraram; mesmo que deles não tenhamos consciência, estão guardados em nós, como arquivos possuídos e que vão estabelecer nossa relação com o mundo. O porvir é o performativo, o que não assume qualquer relação com o registro, mas com a violência imposta pelo esquecimento, sem a qual a imediatidade expressiva performática do intérprete torna-se apenas um novo modelo referencial associado à reserva da memória. O passado, intencionalmente ou não, nos encontra e renova. Se, por arquivo, faz surgir tempos imemoriáveis, cria contemporâneos ao próprio tempo do surgimento da obra. Por arquivo chega-se ao que o próprio arquivo perde: a origem viva do experimento. Isso visto como mais uma possibilidade, assumindo a palavra que traduz tão bem o que hoje, historicamente denominamos “contemporâneo”: tolerância. A história gerada é, pois, cumulativa e tolerante. O “contemporâneo” passa a ser, então, entendido como o próprio caminho aleatoriamente traçado, uma noção que insinua seu tempo. Andarilha se torna a história que instala múltiplas e passageiras identidades pelas quais os significados fluem, conferindo um destino transitório à linguagem artística.

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Francini Barros. Série Impulsos, 2005, foto Ana Torres.

É por tolerância que o impulso apresenta à dança outra possibilidade para sua escrita, na qual o corpo, enquanto a priori inegável ao movimento, perde seu caráter determinante em prol da aceitação da visualidade enquanto recepção. Corpo social, trivial, cuja carne incrustada de mundo os mantém atrelados, por definição. A ele é conferida a tolerância pela qual se espera não o milagre da renúncia, mas o amadurecimanto da visibilidade. Andarilha é a corporeidade. O impulso é, enfim, apresentado como possível saída, alternativa poética ao modelo filosófico especulativo aceito pela arte como referência. Por passividade e reatividade afirma a aproximação da dança ao que se costuma chamar linguagem, permitindo assim definila. É pela possibilidade que confere ao artista de expressar suas próprias respostas que a dança inscreve a subjetividade do artista na obra, confirmando sua própria existência. O impulso materializa a condição da linguagem enquanto destino e se apresenta a ela como opção, como outra possibilidade de seu uso. Ele é meu sim ao outro-arte, e é através da particularidade do experimento que posso dar testemunho ao ceticismo de que algo que restaure a humanidade do movimento dançado talvez possa ser feito.

Francini Barros é bailarina e mestre em Arte e Cultura Contemporânea pelo Instituto de Artes da UERJ. É professora contratada do mesmo Instituto, lecionando desde 2006 as disciplinas Dança, Performance, Teatro e Expressão Corporal. Participou como intérpretecriadora das companhias de dança Trupe do Passo, de Duda Maia, e Lia Rodrigues Companhia de Danças. Atualmente desenvolve parceria com o coreógrafo Gustavo Ciríaco. Desenvolveu trabalhos em artes plásticas apresentados em diversas exposições.

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Desfazer como fazer Inês de Araujo

Este texto discute algumas questões críticas e poéticas a partir dos trabalhos Árvore de 11 metros, Pálpebras e Árvore de vogais, de Giusseppe Penone. Examina, nesses trabalhos, o percurso que vai da imagem à sensação, da forma ao informe, da representação à presença e determina em sua prática o gesto do desfazer como fazer. Arte, cultura contemporânea, práticas poéticas e críticas. O que poderia ter sido e o que foi Convergem para um só fim, que é sempre presente. T.S. Eliot

Ao acompanhar o movimento insinuante de algumas obras de Giuseppe Inês de Araujo. Desenho sobre papel, 107 x 86 cm, foto Wilton Montenegro.

Penone, levando em conta a materialidade estética assumida por suas intenções, eu quis observar como determinações práticas estão impregnadas do sentido crítico e reflexivo próprio a seu movimento poético. Considerando-se que os trabalhos de Giusseppe Penone remetem ao exercício de uma prática, inclinada a descartar-se das regras e anti-regras da arte, sendo contra um fazer simplesmente produtivo, sistemático, que cristaliza figuras simbólicas imaterias como objetos e que responde – sem se reduzir ao antagonismo – a um movimento de apropriar-se de um gesto sensível, reinventado pela experiência, à pergunta que se segue sobre esse gesto. Árvore de 11 metros, 1975, uma das primeiras obras do italiano Penone (1947), que constitui uma série em processo em seu trabalho, consiste em recortar o perfil de uma árvore seguindo seus meandros e veios aparentes numa peça de madeira usinada industrialmente. Através de marcas circulares inscritas na madeira, o escultor retraçou um momento anterior

1 Penone, Giuseppe. Respirer l’ombre. Paris: École Nationale Superieure des Beaux-Arts, Paris, 2000: 91. Trecho extraído da anotação do artista que se segue: “A natureza, a paisagem européia que nos circunda é artificial, feita pelo homem, uma paisagem cultural. A ação do homem modificou a natureza preexistente, ao criar uma nova, produzida de sua ação, de sua arte. O valor cultural mais imediato de uma obra humana reside no fato de que a reconhecemos. Temos a tendência de separar a ação do homem da natureza, como se o homem não fizesse parte dela. Eu quis fossilizar um dos gestos que produziu a cultura.” Tradução livre.

da idade aleatória de uma árvore, perfil em potencial de um de seus estádios evolutivos passados. Em vez de novamente transformar a matéria transformada em objeto da cultura, seu gesto esposa o que precede a intervenção industrial na peça de madeira, o movimento de sua forma. A ação do artista declina a forma como processo de formação, seguindo direção contrária ao percurso da cultura. O intuito do escultor fica claro nestas palavras: “Temos a tendência a separar a ação do homem da natureza, como se o homem dela não fizesse parte. Eu quis fossilizar um dos gestos que produziram a cultura.”1 O gesto reflexivo do trabalho do artista repõe o contato. Tenta compreender como formação a forma. Os perfis condensados, nos momentos anteriores da vida de uma árvore,

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subtraídos da peça usinada de madeira, fazem aparecer, em lugar de um objeto da cultura, apenas uma das formas de seus estratos, um indício temporal de qualidade sensível. Dimensionando regressiva e reversivelmente a implicação do tempo no trabalho, o escultor apropria-se da negatividade de um lugar ausente, do tempo no sentido da existência, repotencializado em todos os seus possíveis e pretéritos rastros da finitude. A diferença da intervenção do homem, do gesto da cultura que dota de forma a matéria, a indagação em ato do escultor, revela uma formação invisível da vida da forma. Convertendo a matéria em contato, devolvendo à forma o espectro de sua temporalidade. Gesto evocador do espectro cifrado das ramificações etéreas e determinantes de nossos momentos superados que permanecem antagonicamente sugeridos em nossos estados presentes. Ao nos moldarmos a cada momento, retemos potencialmente uma forma reversível de contato, contrária ao curso aparente, inversamente natural e progressivo da cultura. Mas o tempo, certamente, é a matéria da cultura, no sentido contrário de um rio, rio acima, vestígio e inscrição de imprevisível liberdade de um sujeito que se desenvolve no curso da vida no sentido contrário de um rio, rio acima, porque só pode nada reter. Assim, tudo que participa do fluxo de nosso tempo individual e prossegue indivisível, perdendo visibilidade, se transforma em forma de contato, ganha de novo densidade de matéria imaterial do curso da vida, indissociada forma do tempo, do tempo individual dentro do tempo da cultura. A matéria do escultor é o signo do contato, mas a dimensão desse signo indeterminado aponta simplesmente para a escala da vida com todas as suas vicissitudes, com seus meandros e aspectos sensíveis, que mais ou menos participam de um fundo social comum. Mas ao incorporarmos esses traços como nossos, quanto mais deles nos apropriarmos, menos nos identificamos com eles. O que nos é mais íntimo, ao converter-se em experiência de contato, mais de nós se separa, menos nos será próprio. Só o que adquire essa camada invisível, no decurso da nossa passagem – passagem no sentido do rio acima –, se torna visível para nós, fora do controle. No modo próprio de indagação, que num trabalho de arte se revela no seu modo estético, essa rua ou rio tem um curso de mão dupla no sentido do movimento e do tempo, fora do controle. O trabalho de Penone inflexiona latências de uma discussão, desde o início inflamada e sutil, política e estética, que remonta à arte Povera, determinada pelo amplo espectro de leituras do conceito de morte da arte, que se articulam no contexto dos movimentos de contracultura emergentes nos anos 60/70. Em seu trabalho, nenhum suporte ou registro material, nenhuma forma residual que não seja revelada através de seus estratos sustenta o imaterial traço do trabalho como forma inacabada em formação. As formas que submergem como estratos, inclinadas a se desfazer, indeterminando as figuras nas quais se solidarizam, fossilizando atos, qualificam materialmente seus objetos sensíveis. Uma interrogação sobre o contato circula através das várias instâncias do trabalho, marcando

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Giuseppe Penone. Pálpebras, 1978 (detalhe).

sua natureza, suas práticas, suas formas e o ambiente das palavras que as instituem.2

2 Rovesciari i propri occhi, 1970, Svolgere la propria pelle-pietra, 1971, Guanto, 1972, Palpebre, 1978, Soffio, 1978, Essere fiume 1, 1981, Pages de terre, 1987, Foglia del cervello, 1990, Sulla punta delle dita, 1993, Respirare l’ombra, 1998, Pelle de marmo et épine d’acaia, 2001, são alguns dos trabalhos de Penone, que na maior parte das vezes continuam em processo e que por si sós restituem bastante do ambiente das questões exploradas em sua obra. Mas o movimento paradoxal desses trabalhos, invertendo a ordem da representação, que vai de uma imagem a uma presença, não deixa de ser uma referência explícita aos desenhos de formas fluídas, efêmeras e irrepresentáveis de Leonardo da Vinci. Aos célebres estudos a partir do vento, do fogo, das manchas de mofo, etc; em que o objeto do pintor e gênio renascentista antes reside na observação da potência sugestiva do real.

Interrogação que, subscrevendo-nos nos limites insensíveis de nós mesmos, ou do contato, garante o raio e a textura do que nos retorna como sentido através desse trabalho. Derivado ao avesso da plenitude de sentido que há nas formas aparentes, o contato funda nossas abreviadas naturezas. Várias e arbitrárias são as modalidades do contato, sombrias, rasas, rudes, metafóricas, difusas; impermanentes enquanto ritmos, temporalidades ou sensações. Amalgamados, seus efeitos no máximo reproduzem suas falhas. Sem a grandeza na qual se inspira uma superfície moderna, a precária superfície da arte, delineada por contato, da qual se apropria o trabalho de Penone, secreta, lacunar, escuta, trama suas modificações, ressonâncias e ramificações possíveis. Próximo demais, breve enquanto dura, hóspede permanente da distância que inaugura é o contato, tonalidade afirmativa de uma voz em silêncio, pouco hábil em sua tarefa de integrar-se ao que se evapora. Em Pálpebras, 1989-1991, carvão sobre fibra não tramada e gesso, 350 x 1.500cm, aproximadamente, uma entre as versões de um trabalho em progresso, Penone reproduz repetidas vezes, sobre uma tela de grande extensão, o desenho das sombras de um molde de sua pálpebra, configurando uma espécie de rastro geográfico da pele. No entanto, a escala ampliada que resulta é estranha, as pálpebras se locomovem sem fazer ruídos, silenciosas como girafas. Mas se a mesma falta de ruídos tanto contribui, inferindo um perfil etéreo à realidade das girafas, quanto dota de leveza e movimento a constância

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em vacilar; o caráter flutuante das pálpebras se privilegia ainda da não menos silenciosa e febril atividade lubrificadora das lágrimas, que, propiciando elasticidade máxima com tensão mínima, libera a cada instante um novo olhar. Ganha assim nova escala informe a monumentalidade. Desinvestido, o gesto é copiar. A escala, não mais do que uma modificação, se estende, liberando-se e lubrificando-se em repetidas e refratárias formações, outorgando-se prosseguir por camadas de seu próprio desfazer. Para sempre, sem intenção, e sempre exercitando desfazer-se de seus limites. O olhar se libera, camada por camada, ou melhor, transferindo-se pálpebra a pálpebra, desfazendo formas e assim por diante. Dispositivo trivial da ínfima força e glória dos infinitos gestos dessa reprodução concreta. Fazendo emergir novo estrato daquilo que escapa e foge ao controle, sem nenhuma eloqüência. A forma decepciona, não diz o contato, nem de longe nem de perto se pode ver aquilo que, por sensação, comparece de imediato. A escala do monumento não se delineia em nenhum objeto, mas persiste em retraçar o percurso de sua própria experiência; estranho desvio da representação é a linguagem. Como no famoso e anódino advérbio duchampiano, même, há, entre a mesma coisa e a coisa mesma, um intervalo que não se deixa dimensionar.3 No entanto, Pálpebras passa uma impressão extremamente física de seu fazer desencarnado. O movimento continuado das linhas tramadas pelas pálpebras desempenha silenciosa sinfonia em tom verdadeiramente baixo. É de se perguntar quanto trabalho não deve ter dado copiar uma por uma a sombra dispersa de sua própria pálpebra, ainda que essa presença física no trabalho nada tenha a ver com o tempo gasto na execução da tarefa manual. A única medida que justifica o movimento gratuito, aleatório, nas linhas do tempo, de seus estratos materiais parece ser, no caso, uma medida do informe. Ou seja, uma medida que transforma em pergunta o que confere ao trabalho qualidade e peso como prática. O “como” manifesto que interroga as resistências que se colocam por força do hábito contra se desfazer da forma do tempo, de sua forma de divisão implícita, regular, dos intervalos de sua sucessão, para, refazendo-se, imergir no tempo enquanto forma por contato, intransferível. Se não fosse por deliberado movimento de desinvestir o fazer de suas marcas pessoais, ou quase, o “como” no trabalho do artista, copiar seria meramente artesanal. Mas o que é próximo e se desfaz, como Pálpebras, por um instante, por um segundo, ou praticamente por toda uma vida, é justo perceber, por lapsos, vestígio imediatamente indeterminado. Um pouco menos do tanto quanto por vertigem se firmar, sem duração, por eclipse alerta. Num piscar. O trabalho, no mínimo discreto, ou indiscreto, próximo demais à escala das finas linhas, escapa por toda a extensão de sua forma exploratória. Não se trata de um desenho puramente conceitual, apenas manualmente executado, apresentando a idéia. A crer que a justeza das palavras de Valéry perdure na atualidade, pode-se aproximar Pálpebras das considerações desenvolvidas por Valéry sobre as formas informes; do que o exercício do

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3 Didi-Huberman, Georges. L’empreinte. Paris: Centre Georges Pompidou, 1997. No ensaio que acompanha o catálogo da exposição “L’empreinte”, Georges Didi-Huberman faz a seguinte observação sobre a obra de Duchamp: “A impressão entre as mãos de Duchamp, é o que realiza o coup de force dialético de romper com a imitação clássica sem no entanto negar absolutamente a semelhança.Como chega a isso? Produzindo semelhanças negativas: convertidas, reversíveis, irreconhecívies. Produzindo o mesmo como negatividade. Operação que Duchamp nomeia intervalo.” Tradução livre.


informe ajuda a enxergar por dessemelhança, a não confundir o que pensamos ver naturalmente com o olhar do traçar no desenho, que engaja todo o corpo como acessório 4 Valéry, Paul. Degas Danse Dessin. Paris: Gallimard, 1983.

e rompe assim com o olhar “natural”, que resulta das construções do hábito.4 Seríamos então atingidos pelo rebatimento das pálpebras com sua insondável energia de uma pergunta sobre o corpo? O trabalho das pálpebras em contato com o ar, eclipsando secreta textura do tempo, fulgor cristalino como uma seda. A qualidade de suas modificações, visões do decurso de uma certa alquimia, consolidando o enigma de sua alteridade futura, lubrificadora lágrima bem como secreção de um fundo, sua densidade fóssil, material e contato prolongado sem interioridade. Nessa escala orgânica do tempo no trabalho, o sujeito é metamorfose, relativo a marcas; há mais força em nada exercer, mais sentido em ser tocado, num piscar, num instante cheio de dúvidas. Como não reconhecer nesse gesto sem ato, algo do tecido sem temperatura, da Forma como corpo, a stimmung como seda. Um tronco imenso desenraizado salta aos olhos comovendo-nos como todo desastre natural. Mas Árvore de vogais, 1999-2000, bronze e vegetação, 450 x 3.000 x 1.200cm, instalação permanente nos Jardins des Tuilleries, em Paris, o trabalho em questão, oferece vários níveis de realismo. Curiosamente, tendo sido realizado em 99, antecede uma grande tempestade que, no final de 2000, destruiu na França florestas de árvores gigantescas e ancestrais. Durante alguns meses, após a devastadora tempestade, na virada do século, deparar-se, nos jardins, parques e florestas das regiões metropolitanas e dos campos franceses, com árvores caídas na escala de verdadeiros monumentos do tempo tornou-se quase trivial. Coincidências temporais confundidas à parte, talvez o que mais impressione em Árvore de vogais seja o fato de seu tronco ser de bronze, o que lhe fornece naturalidade ainda mais pronunciada e sutil do que um revestimento vegetal. Pressentimos que algo está errado; não se trata de uma cópia, o que se dissimularia facilmente alinhando-se ao conjunto de objetos não incluídos em nosso sentimento de a natureza ser um fundo natural. Uma estranha sensação surge da soma da réplica de uma árvore à noção de um fundo natural. Ainda que o trabalho muito nos impressione, não sem razão, pela escala que ultrapassa nosso campo visual sugerindo a violência natural, como não esquecer a sensação de desenraizamento que produz o discreto artifício da semelhança do bronze ao vegetal? O tronco em bronze, colocado sobre a natureza que duplica, é seu próprio timbre, retira do real algo de sua naturalidade, desacredita a crença de nosso enraizamento. Pouco nos vale acreditar na fidelidade de nossos olhos, já que não é pela evidência de nossas impressões que reconhecemos a verdade ou a identidade das coisas. O que mais nos interroga? A natureza do simulacro ou o espanto diante do desastre natural? Será que a pergunta da arte tensiona um fundo em negativo, por contraste ao reflexo exterior das aparências? Será ainda que a natureza sensível dos homens devolve liberadora marca à cultura? Em outras palavras, será possível pôr à parte na situação de vertiginosa desnaturalização um impulso da cultura ou um desastre natural?

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Mas poderíamos estender a uma série as perguntas colocadas pelo trabalho. Árvore de vogais torna-se visível além da fidelidade de nossos olhos, sua mímese refratária opõe semelhança e identidade, prolongando a escala da superfície exterior em que tange a olhar sem reconhecer. A mímese própria à arte, constituindo a forma na própria forma de sua estranheza, se deixa apenas entrever, pressentir e trair, em seu processo de transformação. A fidelidade mimética que o bronze oferece rebate sensação contra sensação, despertamos para nossa situação ímpar, a natureza a qual pertencemos é desenraizamento cultural.

Em Árvore de vogais, a imagem é objeto duplicado, confirmando que tudo enxergamos

Giuseppe Penone. Árvore de 11 metros, 1975.

como idêntico a si mesmo; reconhecer é de um lado, garantia de identidade; de outro, denúncia da relação cindida entre a verdadeira natureza apenas infiltrada em nós e a imagem que dela imediatamente projetamos. Reconhecer imediatamente um duplo, o tronco e o tronco de bronze e, imediatamente nele, o duplo desastre; o desastre natural no espelho da cultura nos espelha com dupla face. Ao atribuirmos naturalmente significação às coisas, colaboramos para o aprofundamento de uma fratura; tão mais claramente se consolida nas imagens o enigma de nossa alteridade. No momento cardinal, nosso duplo cristalino começa a se dessubstanciar e a se obscurecer na plena e vital alteridade de converter todo e qualquer processo natural em forma de descrever. O que se inscreve sem deixar rastro, como alteridade de fundo, se auto-incompleta daquilo que se separa, no limite de identidade de nosso modo de viver – a força do hábito. No texto que acompanha o catálogo da exposição retrospectiva da obra de Penone em 2004 no Centro Pompidou, Catherine Grenier lembra que Árvore de vogais lida com uma sensação de vertigem.5 O trabalho começa além da fidelidade de nossos olhos. O que a imagem reflete – o lugar em que o sujeito não pode confiar em suas imagens – ultrapassa

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5 Grenier, Catherine. Giuseppe Penone. Paris: Centre Pompidou, 2004. “Ocorre então uma vertigem ao considerar-se a que ponto o olho pode ser enganado sobre aquilo que são os limites de nossos sentidos, incapazes de reconhecer uma imagem. A sensação de vertigem com que o artista também lida é aquela da temporalidade.” Tradução livre.


os limites dos sentidos. Faz emergir assim um duplo desenraizamento na árvore ancestral. Ao chamar atenção para a intransponível alteridade que funda a relação do sujeito com sua origem, ultrapassa os limites naturais dos sentidos. No atestado de não-garantia, que uma imagem oferece sobre qualquer noção de enraizamento natural, permanece fraturado o ponto de contato entre natureza e cultura. A imagem lembra ao sujeito da cultura ser ela apenas seu campo exploratório, um lugar que cede, sintoma de incessante aprofundamento de uma fratura histórica, em que ele se encontra imerso. Em outra perspectiva, não menos refratária, assimétrica e crítica, os trabalhos do artista Gehard Richter, originário da antiga Europa oriental, repõem um terreno de imagens em questão, colocando um problema estético em termos de perda de contato. As imagens nos trabalhos de Richter remetem à sensibilidade inventada pelo aparelho fotográfico, como por exemplo em Schädel, óleo sobre tela, 95 x 90,5cm, 1983, que, na figura de um crânio de perfil sobre uma superfície vazia, representa uma imagem desfocada. Vedar pequenos focos de luz da câmera escura é o limite máximo ao qual se presta o quadro, permitindo checar a analogia com a técnica fotográfica. Na maior parte das vezes suas imagens são simulacros de idéias sensíveis, se encaixam, como uma luva, em qualquer classificação que possam receber, sendo suficientemente apropriadas enquanto citações históricas da questão da arte. O minucioso cálculo do gosto ou a pronunciada declinação da indiferença, indiferenciado perfume material do desinteresse, artificial, retarda um evanescente desfecho, tal qual rápida rajada de tiros anônimos, apenas mortais; que sejam indiscriminadamente reificadas suas imagens, nelas dispara ou desaparece a consistência de uma sensibilidade pública. Essa exploração de campo, em profundidade moderna e pop, utiliza como negativo ou filme o instituir em ato da cultura contemporânea. Suas imagens das imagens sensíveis, tecnicamente impecáveis, figura no singular, impessoal, generalizam, restituindo, assim, no nível da sensação imediata, apenas imagens de seus efeitos; passam a imagem das aparências, a textura do simulacro, a forma técnica do gesto. Suas imagens clichês empregam uma forma imediata de repulsa, a de todos seus efeitos reciclados em termos de fabricação.

Inês de Araujo é artista plástica, com graduação em Comunicação Visual, PUC-Rio, Artes Plásticas, École Nationale Supérieure de Beaux Arts, Paris, e mestrado em Artes, Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura do Instituto de Artes da UERJ. Atualmente desenvolve um trabalho de desenhos instantâneos improvisados. Este texto é parte da dissertação de mestrado Reflexão sobre o desenho, Linhas apresentada ao programa de Pós-Graduação em Arte e cultura do Instituto de Artes da UERJ em março de 2007.

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A arte contemporânea como conteúdo e fundamento para a prática do ensino de artes Marina P. de Menezes

O presente artigo discute a inclusão da arte contemporânea como conteúdo e fundamento da prática do ensino de artes. A autora defende a idéia de que tais manifestações sejam não apenas incluídas como conteúdos, mas também tomadas como apoio conceitual e filosófico para o ensino de artes. Com essa proposta, defende uma prática escolar em artes que valorize a experiência, a abertura, a complexidade e o aprofundamento no processo produtivo e cognitivo dos alunos. Ensino de artes, arte contemporânea, cultura contemporânea. O momento contemporâneo, por vezes qualificado de pós-moderno, Laura Lima. Capuzes (homem = carne / mulher = carne). Instauração: atores, adereço de tecido, roteiro.

vem trazendo uma série de modificações para a vida humana. Este momento, que engloba inovações tecnológicas, diferentes fluxos de informação e uma nova abordagem do conhecimento em geral, provoca, ainda, novas problemáticas, que desestabilizam antigas certezas. Se, de fato, os aspectos culturais já vêm mobilizando diversos educadores, especialmente na perspectiva da crítica à marginalização social e da crítica à cultura de mídia e consumo, de que maneira, especificamente em relação ao ensino de artes, a arte contemporânea tem estado presente em suas práticas? E quais são os desafios impostos pela arte contemporânea para esse ensino? De maneira geral, o ensino de artes tal qual se configura nas escolas ainda parece valer-se de qualidades que não mais são características da atual produção artística – e ao apresentálas deixa de associar tais valores a seus contextos, tratando-os como valores atemporais e, até mesmo, universais. A postura, o pensamento que envolve a arte contemporânea (entre elas a abertura e multiplicidade de experimentações e possibilidades) pouco se assemelha às diferentes propostas técnicas e de repetição de modelos das aulas de artes. Uma mudança se faz necessária; entretanto, de que maneira realizá-la? A arte contemporânea, se incluída na prática escolar dentro da mesma formatação técnica e na produção não significativa ou não reflexiva das aulas de artes, promoveria apenas uma mudança superficial, sem alterar o aspecto principal, que é o processo desenvolvido nas aulas. Para uma mudança efetiva é preciso agir sobre as estruturas, os princípios ou fundamentos que regem tais práticas. Entretanto, ter arte contemporânea como fundamento é uma idéia que por si só já soa paradoxal. Como ter como princípio uma arte que não possui princípios? Como buscar um

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conjunto de elementos determinantes em uma produção que não permite a definição de modos, meios ou maneiras? É justamente por essa indefinição de normas, pela mutabilidade e pela abertura que ela assume o caráter de princípio ou estratégia1 para reger um pensamento.

1 E assim, como estratégia, aproxima-se da noção de método proposta por Edgar Morin (2005).

Fundamentos são aqui tratados como pontos conceituais que permeiam as concepções, ações, propostas e práticas do ensino de artes, como um pensamento aliado à prática, articulando-a, justificando-a e construindo-a simultaneamente – princípios que nada têm de imutabilidade ou base de certeza, visto que são regidos pela mutabilidade e incerteza dos processos artísticos contemporâneos. Trata-se, portanto, mais de uma atitude ou postura relativa ao conhecimento, à arte, à educação e à cultura contemporânea, buscando o reconhecimento da complexidade de tais processos. O paradigma de complexidade não “produz” nem “determina” a inteligibilidade. Pode somente incitar a estratégia/inteligência do sujeito pesquisador a considerar a complexidade da questão estudada. Incita a distinguir e fazer comunicar em vez de isolar e de separar, a reconhecer os traços singulares, originais, históricos do fenômeno em vez de ligálos pura e simplesmente a determinações ou leis gerais, a conceber a unidade/multiplicidade de toda entidade em vez de a heterogeneizar em categorias separadas ou de a homogeneizar em indistinta totalidade. Incita a dar conta dos caracteres multidimensionais de toda realidade estudada (Morin, 2005: 334). Tomar a arte contemporânea como situação conceitual que oriente, questione e esteja integrada à prática do ensino de artes implica mudanças de referências, desintegração de alguns valores e questionamento de conceitos, metodologias e propostas. A prática regida pelos conceitos dessa arte buscaria assimilar as mesmas características e abordagens perante a arte e o fazer artístico nas escolas. As possíveis transformações, entretanto, não parecem indicar a estabilização de novos valores e crenças únicos, mas justamente a proliferação de manifestações, reflexões e possibilidades. Engloba-se nessa pesquisa a busca de um pensamento complexo2 para o ensino de artes, que possa também resultar em práticas complexas.

2 O termo indica um pensamento que se distancia de simplificações que visam ao fácil consumo e integra a multidimensionalidade e a incerteza (Morin, 2005: 334).

Como princípio para uma prática, a arte contemporânea parece propor uma intensa pesquisa, múltipla em suas possibilidades, ampla em sua caracterização e ambígua em suas significações. Constitui-se em fundamentação que determine e justifique a escolha de posturas, posicionamentos e procedimentos, mas que não se feche na determinação de postulados e paradigmas, e sim explore as novas possibilidades da desreferencialização, incerteza e insegurança contemporânea.3

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3 Esse posicionamento dialoga com a crise de conceitos fechados e claros, “com a grande idéia cartesiana de que a clareza e a indistinção das idéias são um sinal de verdade” (Morin, 2005: 183).


Desde meados do século XX, as manifestações artísticas vêm desbancando valores e crenças e abrindo espaço para novas possibilidades e experimentações. Um abismo, entretanto, parece vir se formando entre tais processos e o público que a eles responde. Se a existência da arte e de um público de arte (que detém conhecimentos específicos sobre ela) parece sempre ter existido, a arte contemporânea parece falar a um público ainda mais restrito. Visitar uma exposição de arte contemporânea é abrir-se para o inesperado, o estranho e o incomum. É explorar o não-entendimento, a indagação (que muitas vezes vem acompanhada de uma certa indignação) diante de trabalhos que fogem do imaginado, do esperado, do que é concebido e valorizado como arte. Cria-se uma distância entre a expectativa e o conhecimento do espectador e entre a realidade da arte e a maneira como esta se apresenta e se constrói. O não-entendimento, o estranhamento e o conseqüente distanciamento entre a arte contemporânea e o público já eram discutidos e percebidos desde que, ainda nas décadas de 1960 e 1970, críticos, teóricos e artistas exploravam novos terrenos para a arte, nos quais as antigas nomenclaturas, significados e valores não pareciam mais fazer sentido. Em uma coletânea de textos organizada por Gregory Battcock, podemos ter contato com impressões, escritas nessas décadas, que demonstram o estranhamento causado pela produção artística contemporânea, que então vinha derrubando crenças e explorando novos meios e formas para a arte. Das impressões da “nova arte” apresentadas, o caráter não dogmático e de quebra em relação a valores de uma tradição na arte parece ser um dos aspectos mais acentuados. Apesar de valores e tradições não serem instâncias imóveis e imutáveis, tendo sofrido transformações ao longo de toda a história da arte, o que vemos na arte contemporânea é um projeto de abertura e participação do espectador (como discute Umberto Eco em Obra aberta), que impossibilita a definição de um grupo de procedimentos que defina um “estilo”. Se antes parecia ser possível definir um grupo de critérios que pudessem ser utilizados na apreciação de uma obra e na relação com ela (e que permitissem sua validação), tal atitude parece não ser mais válida. Na arte contemporânea, não há mais lugar seguro, no qual seja possível relacionar-se com uma obra; ela exige outra atenção, um novo modo de apreciar. Com a profusão de experimentações, somos convidados a rever conceitos constantemente, posicionando-nos no incerto e no indefinido. Trabalhando dentro de novas relações, que não mais se articulam à estética formalista ou a qualquer domínio específico pelo qual seja possível definir uma norma de validação, a arte contemporânea é vista no território da estranheza – estranha ao público, que qualifica como estranhas as suas manifestações.

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Na análise do diálogo feito entre a arte da atualidade e a que é atualmente apresentada nas escolas, percebemos um descompasso: no ensino de artes, de maneira geral, vemos a constante apresentação de imagens de obras dos mais diversos momentos históricos, mas dificilmente da contemporaneidade. Sobre a relação entre a produção artística de um determinado momento e o ensino de artes, Brent Wilson destaca: embora a arte-educação seja apenas uma pequena parte do mundo da arte – e aos olhos de muitos uma parte insignificante – ela é, apesar disso, formada e modelada pelo mundo da arte e reflete as suas crenças. A arte-educação tem muitos valores em comum com o mundo da arte, os professores de arte reproduzem as mesmas concepções de realidade que são encontradas também no mundo da arte (2005: 82). Apesar de o posicionamento de Wilson apontar para uma união entre a produção e as práticas educacionais em arte, as questões relativas à arte e a sua história que são apresentadas em sala de aula dificilmente abordam os tempos artísticos contemporâneos. Como principal conseqüência, a arte torna-se, em sala de aula, uma produção do passado, na qual tudo é muito distante dos dias de hoje, da vida dos alunos. Para muitos, falar em arte é falar em pintura e escultura – ambos representando com fidelidade algo do “mundo real”. O fim da linha para a arte nas salas de aula parece ser a arte moderna (européia e brasileira). Excluindo-se a arte contemporânea do currículo e dos conteúdos propostos aos alunos, acaba-se por eliminar as diversas relações que eles poderiam estabelecem entre a arte de hoje e suas vidas, as mudanças de suas propostas no decorrer da história e a cultura contemporânea. A ausência de questionamentos relacionados à produção artística atual ainda promove o distanciamento entre a prática e a concepção de arte apresentada no ambiente escolar e a prática que ocorre no ambiente artístico atual. Se a arte apresentada nas escolas, com seus valores e estéticas imersos em tempos anteriores ao atual, é a visão de “o que é arte” mais propagada nas salas de aula, qual é a possibilidade de diálogo que esses alunos terão ante uma obra contemporânea? O contato com a arte promovido atualmente pelas escolas não fornece subsídios para incitar no aluno o questionamento diante da produção artística contemporânea. A visão de arte como algo do passado, feita por indivíduos distantes da vida atual, pode ser percebida nas concepções que, em geral, as pessoas têm e no que efetivamente conhecem sobre arte. O contato com a arte contemporânea dentro do espaço das escolas permitiria uma visão da arte como processo ativo e dinâmico, que não se relaciona apenas com o passado distante, mas com o atual momento em que vivemos. Como Harold Rosenberg (2004: 237) destaca: “A nova arte é valiosa por induzir no espectador um novo estado de percepção e pelo que lhe revela sobre si mesmo, sobre o mundo físico ou simplesmente sobre o seu

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modo de reagir às obras”. Tratando do estranho, do instável, da complexidade e do plural, as obras contemporâneas podem ampliar experiências visuais, reflexivas e relacionais, além de explorar formas de significação, compreensão e conhecimento distintos, permeando aspectos culturais, individuais e perceptivos. No ensino de artes, partindo-se da estranheza ante a produção artística contemporânea, pode-se trabalhar a partir da história da arte, explorando, como apontou Rosenberg, as diversas modificações que constituíram e fundamentaram os diferentes estilos e momentos artísticos, e atuar a partir das inquietações que as obras de arte podem provocar nos alunos. O meio para se lidar com essa produção deve, assim, permear a história e as possíveis reflexões que a obra pode incitar dentro das mais diversas possibilidades de discurso. O sentimento de estranheza (ou, às vezes, de repúdio ou insegurança) perante uma obra pode ser o princípio para uma reflexão que amplie as possibilidades de entendimento e percepção. Ao colocar a arte contemporânea como apoio conceitual para as aulas de arte, não se objetiva a exclusão de toda “forma tradicional” (como a pintura e a escultura) de arte em troca das manifestações contemporâneas (como performances e instalações). Propõem-se mudanças sobre os pressupostos que permeiam a prática de ensino de artes e que implicam novas posturas, buscas e propostas, mas que não excluem a prática e a reflexão sobre produções nas quais conteúdos mais tradicionais estejam presentes. De fato, a pluralidade que caracteriza a produção artística atual, muitas vezes, inclui essas formas, mas envolve múltiplos aspectos, podendo realizar-se em diferentes arranjos e articular valores distintos. Assim, quando falamos em conteúdos para um ensino de artes que tenha como fundamento a arte contemporânea, reverberamos a crença em uma prática na qual, além de as temáticas e as obras contemporâneas serem incluídas e discutidas, haja uma postura mais profunda e ampla, integrada ao próprio pensamento que envolve os processos artísticos contemporâneos. Não se trata apenas de ampliar seu conhecimento sobre o campo da arte e suas diversas manifestações, que não se restringem mais às formas tradicionais, como a pintura e a escultura. É importante levar para as salas de aula uma arte viva, que dialogue com o momento que os alunos vivem, mesmo que possa parecer estranha à primeira vista. Abordar essa arte pode possibilitar um diálogo dos alunos com tal produção, que normalmente parece distante de suas vidas, e pode ser um convite para a investigação e pesquisa de novos conhecimentos e de novas relações. As aulas de artes, que, de maneira geral, são tão criticadas pelos alunos por seus conteúdos e práticas “sem sentido”, nas quais são realizadas apenas atividades divertidas, podem constituir-se como laboratórios reflexivos e investigativos para uma busca não só restrita aos conhecimentos da arte, mas capaz de promover mudanças na postura dos alunos perante a arte e a vida. Portanto, como conteúdo presente nas aulas de artes, fica claro que trabalhar com a arte contemporânea não se restringe à apresentação de obras contemporâneas, mas implica

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uma nova abordagem da obra de arte e da história da arte, uma abordagem que não é apenas formalista, que pode ir além da decodificação do que vemos e das leituras prontas, e que não se estrutura numa ordem de progresso. Razão e sensibilidade são discutidas numa abordagem que não se restringe ao discurso dicotômico do “ou... ou”, mas que pode abarcar diversas visões e interpretações num inclusivo “e... e”. A assimilação de conteúdos prontos, de conceitos prontos sobre as obras e estilos, não dá conta das diversas possibilidades significativas da arte. Como obras abertas, os discursos suscitados pelas obras não estão fechados ou restritos aos livros de arte, que não são a palavra final ou a verdade absoluta. O professor, em exercício conjunto com sua prática e seu contexto, e seus alunos (que também possuem práticas e contextos) podem recriar, buscar novos caminhos, ângulos e pontos de vista para olhar uma obra e, assim, produzir novos significados. A prática, se trabalhada com as mesmas questões, pode ser um exercício não de mera repetição de uma técnica proposta; ela pode trabalhar no nível da experiência, da investigação, da descoberta, sem deixar de lado a aquisição de conhecimento sobre a arte e sua história – conhecimentos que não se restringem à emoção ou ao sentimento, mas abrangem ainda o pensamento e a vontade (Efland, 2005: 186). Não se exclui a necessidade de se trabalhar, conjuntamente, aspectos teóricos relativos à arte, incluindo a análise de obras de arte, leitura de textos, produção de textos e reflexões sobre a cultura, que insere todas as manifestações culturais. Se há o desejo de que a arte seja explorada pelos alunos por meio da pesquisa, da reflexão, da investigação e do questionamento, a mesma postura deve estar presente entre os professores e responsáveis pelo processo educativo em artes. O trabalho do aluno deve ser também foco de discussão, assim como as obras apresentadas nas salas de aula. Contrariamente à postura do professor que em nada interfere na produção artística do aluno, acreditando que dessa forma o aluno poderá desenvolver um trabalho que seja pessoal e que exprima uma poética singular, a proposta em questão não exime o docente de fazer interferências. O professor pode atuar tanto na concepção, durante a produção e ao fim desta, indicando, propondo e incitando reflexões, questionamentos, investigações e pesquisas, percebendo aspectos, destacando-os, contrapondo-os e comparando e expressando seu ponto de vista (não como verdade absoluta, mas como possibilidade de interpretação). Como destaca Maria Luiza Saddi, mais do que esperar que os alunos “cumpram” suas propostas, o professor deve esperar que os alunos sejam capazes de elaborar, experimentar e desenvolver projetos artísticos, “contribuindo como um interlocutor para que as intenções dos alunos se tornem mais claras e os recursos utilizados mais eficazes” (1985).

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Exigindo posicionamento do público que não seja mais apenas contemplativo, a arte contemporânea demanda uma nova postura, na qual a investigação, a busca de relações e o questionamento são fundamentais. Se, em sala de aula, a arte (em especial a contemporânea) e a própria produção dos alunos fossem tratadas com a mesma atitude, poderse-ia fazer com que a arte deixasse de ser para os alunos um conhecimento distante de suas vidas e de difícil entendimento. O estímulo à postura que busca aprofundamento na prática e na reflexão dos alunos pode promover posturas mais engajadas e questionadoras perante a arte contemporânea e em relação a toda produção artística em geral. A investigação, o questionamento, a percepção e a reflexão podem ser caminhos para se desenvolver conhecimentos mais aprofundados sobre obras de qualquer período ou cultura, pois, não partindo de elementos fixos para sua análise, buscam nas obras ou num conjunto delas os caminhos para produção de conhecimento. A arte contemporânea ao não mais se restringir a um grupo estilístico específico – e, portanto, sem dominar uma determinada gramática para sua produção e compreensão –, mas disseminando uma pluralidade de meios, modos e formas, fez com que sua análise se voltasse diretamente para a obra e para o artista e sua produção. Se antes um movimento artístico ou um estilo poderia ser definido para a análise de determinadas obras (mesmo respeitando-se as especificidades de cada artista e as singularidades de cada obra), na contemporaneidade artística a rede de relações, presentes no próprio trabalho, parece ser o caminho mais frutífero para seu entendimento e análise. Esta análise, que parte de uma discussão direta sobre a obra e uma investigação das relações e elementos que esta articula, pode ser o princípio para se discutir qualquer trabalho artístico e para respeitar suas características próprias, mesmo se integrado a um movimento. De certa maneira, se obras contemporâneas ainda estão muito distantes da vida dos alunos; em relação aos professores de artes, encontra-se a mesma distância. Distância que não afeta apenas o conhecimento dessa produção artística, mas também o de suas posturas e possibilidades significativas, aqui apresentadas e destacadas em suas diversas potencialidades de mudança para o ensino de artes. Em meio aos professores, o não-entendimento, a negação de sua validade e o desconhecimento são algumas das justificativas para a ausência das produções da atualidade nas aulas. Por não se relacionarem com as questões da arte contemporânea, esses profissionais acabam excluindo-a de seus planos de aula e de uma discussão sobre suas possibilidades e propostas. Entretanto, se são assumidas como conteúdos para o ensino de artes a arte, sua história e suas especificidades, a arte contemporânea deve ser trabalhada assim como outros períodos. São as questões dessa arte que vêm movimentando os artistas e configurando o meio artístico contemporâneo, de maneira que não há como simplesmente deixá-las de lado e anular sua existência. Essa é a arte que está em museus e galerias, pelas ruas

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e (de certa maneira) na mídia; em vez de renegá-la, é preciso discuti-la, analisá-la em seus aspectos. O conhecimento propiciado em arte pelas escolas, não articulando problemáticas e temáticas contemporâneas, desarticula essa produção da vida, pois veta sua existência como processo dinâmico que perpassa a história e a contemporaneidade. Sendo a escola um espaço de grande importância para a formação dos sujeitos sociais e culturais, a inclusão da arte contemporânea colaboraria ainda mais para aproximação das pessoas perante a produção artística atual e para todas as possibilidades que ela pode trazer consigo. Abordar a arte contemporânea não é proposta fácil, como já indica Ana Cristina Almeida (1992); implica a constante revisão de normas tidas como verdades e a dissolução de propostas, abordagens e saberes considerados absolutos. Provoca a busca de novas experimentações, que podem até ocasionar erro, mas, mesmo assim, levar a descobertas. De fato, o erro, assim como o acaso, é parte do processo criador. Conforme Cecília Salles destaca, eles podem ser “desencadeadores do mecanismo de raciocínio responsável pela introdução de idéias novas” (Salles, 2006: 133). A autora aponta: Erros e acidentes de toda espécie provocam, portanto, uma espécie de pausa no fluxo da continuidade, um olhar retroativo e avaliações, que geram uma rede de possibilidades de desenvolvimento da obra, que levam, por sua vez, ao estabelecimento de critérios e conseqüentes seleções. Acaso e erro mostram seu dinamismo criador em meio à continuidade (Salles, 2006: 133). O erro, visto normalmente como uma falha dentro do processo de desenvolvimento do aluno, pode ser um elemento gerador de novas experiências, caminhos e possibilidades, um elemento construtor. Dentro de uma prática que valorize a experiência, a investigação e a descoberta, não é possível negar a existência do erro. O erro é parte integrante de qualquer processo que seja investigativo e explorador. Levando ao território do não explorado, do incerto e do estranho, pode-se promover diferentes experiências e, assim, novos conhecimentos, que não necessariamente estarão certos ou serão prazerosos e divertidos. Cabe repensar aspectos conceituais sobre o ensino de artes e, conforme aqui se acentua, sobre os fundamentos desse ensino. Na prática desses professores, isso aponta para uma superação de estratégias produtivas calcadas na técnica ou na livre expressão e na prática restrita a uma produção fragmentada e superficial. Implica uma mudança de objetivos e olhares sobre o ensino de artes, que pode, por exemplo, deixar de lado o desejo de educar para saber olhar as obras e, assim, decifrar signos e percepções ou adquirir “técnicas artísticas”; pode-se educar para investigar, refletir, buscar aprofundamento e questionamento.

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Grupo Camelo. Q.T.C. Instalação de vídeo/ som, videocassete, monitor em cores de 14 polegadas, projeção em VHS, em cores, sem som. Aprox. 3’, impressão sobre papel-jornal, 56 x 63,5cm (detalhe e vista da instalação), 2001.


Mais do que falar simplesmente de características da arte contemporânea, apresenta-se aqui uma atenção aos processos dessa produção, buscando que, assim como os artistas, os alunos possam se envolver em uma produção que articula complexos níveis de relação e diversas possibilidades de consecução. Há a intenção de se promover a pluralidade e a descoberta, que, nas palavras de Saddi (1999), apontam para um ensino em constante devir ou mutabilidade, possibilitada por abertura, investigações e projetos pessoais. A complexidade pode ser tida como uma palavra-chave para definir o momento e a arte contemporâneos. A sociedade vive hoje um desenvolvimento tecnológico intenso, que transformou as relações sociais. Em tempos contemporâneos, as identidades sociais transformam-se, assim como valores, crenças e significações. O ambiente escolar não foge das mudanças que perpassam toda a cultura da atualidade. Nas escolas, é comum para os professores discutir a rapidez em que as mudanças vêm ocorrendo e as diferentes posturas que os alunos vêm tomando no passar do tempo. É difícil afirmar se tais mudanças são positivas ou negativas, mas o foco dos professores não deveria estar em valorizar ou depreciar tais mudanças, mas principalmente em reconhecê-las e buscar sempre investigá-las e discuti-las, sem definir e reproduzir verdades absolutas. A arte contemporânea parece também ser um território de estranhamento, mas é a arte que dialoga com o tempo que esses alunos estão vivendo. Embora a produção artística contemporânea se relacione com diversos elementos, que vão além de seu discurso cultural, analisar a arte da atualidade vislumbra a possibilidade de também se refletir sobre a cultura na qual a arte está imersa. Se o diálogo com a cultura dos dias de hoje já poderia ser definido como um elemento de defesa da inclusão da arte contemporânea no ensino de artes, há ainda uma possibilidade de contato com a arte que é produzida na atualidade, a construção de um conhecimento

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a respeito dela e o conseqüente saber sobre a arte e sua história em geral. A arte contemporânea como produção que articula diversos meios, formas, experimentações, materiais e temas pode propiciar um olhar mais atento à pluralidade (seja artística ou cultural) e promover uma prática que estimule também a busca de experiências significativas, múltiplas em suas possibilidades de consecução. A importância de se questionar os conteúdos que majoritariamente vêm sendo trabalhados no ensino de artes perpassa a busca pela promoção de uma prática mais significativa (e atenta a seu tempo), como também a busca do engajamento na arte e em sua produção. Estamos realmente falando de arte nas escolas? E se falamos em arte, de qual arte? Se a maior parte das pessoas tem como valores artísticos a arte representativa, na qual a habilidade é o valor, e a fidelidade ao real determina essa habilidade, não terá o ensino de artes um papel na consolidação de tais valores? Questionamentos sobre a prática que é desenvolvida pelo professor ou por grupos devem ser sempre realizados pelo docente, durante toda a sua vida profissional. Os questionamentos sobre as produções, propostas e posturas em sala de aula são uma maneira de o professor manter-se atento às mudanças que ocorrem no passar do tempo e também de perceber as diferenças que alguns grupos possuem em relação aos outros. É preciso manter uma constante postura crítica, assim como abertura para a descoberta de diferentes olhares, interpretações e práticas. No caso do ensino de artes, na procura de caminhos a seguir, a arte contemporânea pode ser um objeto de partida para se pensar uma prática mais significativa, que promova mais aprofundamento e reflexão sobre a arte e o processo de produção poético e cognitivo. Tendo em vista o que foi apresentado, finalizam-se as idéias aqui propostas com uma citação de Edgar Morin, objetivando, mais do que concluir o que foi proposto, incitar caminhos e desdobramentos para novas discussões: (...) o objetivo do conhecimento não é descobrir o segredo do mundo ou a equação chave, mas dialogar com o mundo. Portanto, primeira mensagem: “Trabalhe com a incerteza”. O trabalho com a incerteza perturba muitos espíritos, mas exalta outros; incita a pensar aventurosamente e a controlar o pensamento. Incita a crítica ao saber estabelecido, que se impõe como certo. Incita ao auto-exame e à tentativa de autocrítica (Morin,2005: 205).

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Marina P. de Menezes é mestre em artes e graduada em Educação Artística com habilitação em História da Arte pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, onde atualmente atua como professora substituta, bem como no Centro Federal de Educação Tecnológica de Química de Nilópolis-RJ.

A arte contemporânea como conteúdo e fundamento para a prática do ensino de artes Marina P. de Menezes 79



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Apresentação de trabalhos representativos do processo do artista, que transita numa fronteira sensível/conceitual nomeada Espaço Intermediário, ou seja, uma área de atuação que se moveria entre e através dos limites que estipulam cada campo de pensamento e ação. Em cada trabalho o conceito se revela a partir da imagem, através de referências imediatas à ambigüidade presente em imagens e situações cotidianas. Artes visuais, arte conceitual, fronteiras.

Apresento um conjunto de trabalhos que considero representativos no Nelson Ricardo. Placa de trânsito (objeto/ instalação). Madeira e ferro galvanizado pintados, 3 x 1 x 0,60m, saguão da EBA/UFRJ, 1990.

meu processo como artista e revelo que mantenho, com cada um deles, um estranhamento necessário a cada vez que cruzamos os olhares. Sim. A visualidade é um aspecto importante, sendo particularmente o dado que desencadeia a percepção da existência da obra no espaço e dá início ao diálogo que ela instaura com o imaginário do observador. Emprego uma carga conceitual específica para definir de imediato que esses trabalhos transitam numa fronteira que chamo Espaço Intermediário, ou seja, uma área de atuação que se moveria entre e através dos limites que estipulam cada campo de pensamento e ação, mas isto, de modo algum, determina que o elemento conceitual impeça ou minimize o contato físico/sensível do espectador com as obras e é, de fato, sua site-especificidade. O conceito se revela a partir da imagem. Assumindo postura dialética, ele transita entre “o ver e o ser visto” admitindo a incerteza de seu estatuto não como um problema, mas possível solução; especificidade de um olhar que se vê inserido numa relação indeterminada, híbrida e aberta. A inquietude nessa relação é produto justamente de uma contínua indecisão – contínua cisão aberta – ferida que não cicatriza, mas não mata.

Placa de trânsito O trabalho Placa de trânsito foi executado num momento em que cessava meu convívio diário com a Escola de Belas Artes (terminei o curso de Pintura em 1990 e já estava paralelamente freqüentando as aulas de Charles Watson no Parque Lage). Eu de fato me encontrava num espaço entre os dois sistemas de ensino, produção e absorção da arte, e, como minhas opiniões “subiam e desciam” aceleradamente em relação a tudo isso, o local escolhido não poderia ser outro: logo após sua execução, foi imediatamente posto em

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frente aos elevadores no saguão de entrada da EBA, como uma metáfora do cruzamento de expectativas de quem chegava e de quem partia. A idéia desse objeto me ocorreu após observar seguidamente as placas de trânsito que passavam por mim enfileiradas a me dar as costas repetidamente, ou seja, as placas da estrada paralela, as da outra pista, com o trânsito em sentido contrário ao do ônibus em que me encontrava – e por isso mesmo sempre vistas por trás – nas idas e vindas de Petrópolis ao Rio de Janeiro quando estudava na Escola de Belas Artes da UFRJ. Curiosamente, ainda que de fato eu estivesse em movimento, o que parecia era o contrário, ou seja, que as placas e toda a paisagem passavam por mim em alta velocidade, sem sequer perceber minha presença, sem sequer se voltar por um segundo para trás. Essa sensação talvez possa ser lida em paralelo com alguns elementos de um depoimento de Tony Smith sobre seu processo criativo e sua relação com questões como a noite, a estrada vazia e o objeto negro silencioso e fechado em si mesmo. Já de início, poderia começar falando do objeto como perda e recuperação, utilizando um comentário que Didi-Huberman faz acerca do cubo negro de Smith. Cabe imaginar, nessa história, os objetos fazendo sinal pela última vez a Tony Smith. Mas tão tenuemente visíveis e tão distantes que não faziam senão pontuar o lugar negro onde ele próprio estava. Os objetos, signos sociais da atividade humana e do artefato, de repente haviam se evadido e se isolado em algo que não era mais, como ele diz, 1 Didi-Huberman, Georges, O que vemos, o que nos olha. São Paulo; Ed. 34, 1998: 100-101.

‘socialmente reconhecido’.1 Cabe aqui afirmar a necessidade inicial de extrema semelhança física entre esse objeto/ placa e uma placa de trânsito da estrada para que se estabeleça a real diferença. Ambas são feitas do mesmo material (madeira e chapa de ferro) e têm as mesmas cores e proporções. A semelhança termina aqui. O que se perde imediatamente é o objeto indicador/orientador, um tipo de seta que remete a alguma direção em particular (trânsito) ou responde a alguma questão específica. A nova placa silencia, dá as costas irremediavelmente, continuamente, como se uma insistente pergunta só tivesse como resposta o repetido silêncio. Ela só é feita de costas, ou seja, os dois lados são iguais: dois lados negros e silenciosos, talvez algo próximo ao cubo de Smith ou que, em certa medida, descreve sua origem como Box with the sound of its own making, de Robert Morris. Uma experimentação dialeticamente reveladora desdobraria a perda em recuperação – já que o diálogo/reflexão só se estabeleceria a partir do “falar sozinho”. Como alguém perguntando algo e recebendo em troca um cruzar de braços, um dar as costas, lido como “descubra você mesmo”.

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2 Id., ibid.: 79-87. Refiro-me ao chamado Fort-Da (“Longe, ausente”-“Aí, presente”), sobre o ato inicial de simbolização universal, relatado por Freud em Além do princípio do prazer. Vemos como paciente um menino sozinho, ainda bem pequeno, que estabelece uma espécie de jogo quando, repetidamente, lança um carretel para longe de si e, logo a seguir, o recupera por meio da linha que faz parte do próprio objeto. Essa alternância entre o ver, o não mais ver e o tornar a ver (devemos considerar também o espaço intermediário entre presença e não-presença do objeto em questão) configurando uma cisão ritmicamente repetida que acaba abrindo nessa criança a possibilidade de construir uma imagem com a qual se relacionar, instrumentalizando-a para uma existência feita entre ausência e presa, entre impulso e surpresa. 3 Id., ibid.: 101. O texto fala sobre a dialética do desejo que acaba por ultrapassar a privação. A esse respeito Lacan insistia sobre “o valor de objeto enquanto insignificante” e, por isso mesmo, fornecendo ao sujeito o ponto de inseminação de uma ordem simbólica. Para Fédida, “uma negatividade da des-significação” fazendo com que brincar de fazer desaparecer e reaparecer acabe produzindo sentido. 4 Id., ibid.: 99.

Assim como na experiência de Freud2 com o Fort-Da – o jogo de aparecimento/desaparecimento de um carretel de linha nas mãos de um menino – teríamos aqui outro objeto lúdico que giraria rapidamente nas mãos do observador, mas poderíamos também pensar de modo inverso: o observador (observado) tornado objeto girante, enrolado e desenrolado como brinquedo pela própria linha de pensamento que o liga ao objeto. Ao caminhar em círculos – e em vão – em torno da placa/carretel negra, a cada volta se fiaria uma espécie de linha imaginada, desejada,3 linha que acabaria por acionar o mecanismo de desconhecer/reconhecer, lançar e recolher de volta, num movimento de recuperação de sentidos já ausentes que acabaria por produzir novos sentidos. A ausência da paisagem vista numa estrada, ou através da visualização possível dessa paisagem imersa em escuridão, diluída na noite, acionaria na percepção de Smith a abertura do olhar ao processo de perda, experiência de contato que iria preceder a construção de sua primeira caixa preta. A experiência é citada em texto do próprio artista: “Era uma noite escura e não havia iluminação nem sinalização nas laterais da pista, nem linhas brancas nem resguardos (...).”4 A subtração de qualquer indicação objetiva e frontal pelo objeto/placa negro estaria próxima da eliminação das figuras da paisagem pela noite escura, produzindo assim algo como um espaço de reflexão – novamente um espaço intermediário de ação. Quando (...) o mundo dos objetos claros e articulados se acha abolido, nosso ser perceptivo amputado de seu mundo desenha uma espacialidade sem coisas. É o que acontece na noite (...) Não estou mais entrincheirado em meu posto perceptivo para dali ver desfilar à distância os perfis dos objetos.5

5 Id., ibid.: 100.

Seguindo as palavras de Smith, havia sim uma visibilidade possível através das tênues silhuetas das fábricas e das chaminés em contraponto com a estrada, destituída de qualquer sinalização, mais escura que a própria noite. A invisibilidade acionaria o desejar ver, o produzir visibilidade através do impossível de ver. A placa, o também negro “sinal que não sinaliza”, possibilitaria o trânsito dialético entre o ir-e-vir das idéias e sensações, fazendo referência direta ao aparecer/desaparecer no Fort-Da, quando o sentido é produzido através da ausência – elemento essencial do poder desse jogo. A noite – a escuridão ou o não-discernimento objetivo do mundo – ao demonstrar nossa perda em termos de sentido visual em contrapartida lança uma espécie de luz sobre a questão. A falta revela a necessidade e como esta se constrói, como se estabelece. Para Merleau-Ponty a noite demonstra nossa contingência: movimento gratuito e radical

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pelo qual buscamos nos ancorar e nos transcender nas coisas, sem nenhuma garantia de encontrá-las sempre.6 E é uma visível imprecisão, uma ambivalência, que abre o

6 Id., ibid.: 100.

próximo trabalho.

Objeto love – objeto ambivalente Todos os elementos utilizados são cotidianos e corriqueiros. O objeto em questão deve ser algo absolutamente simples e banal, sem fazer uso de nenhum efeito especial, de nenhum material raro ou nobre que o destaque de imediato dos outros similares numa confirmação das palavras de Didi-Huberman de que a mais simples imagem não é simples, sossegada.7 O que se vê: uma coqueteleira de acrílico transparente com vários nomes de coquetéis ou misturas gravados em sua superfície. Dentro – a parede translúcida permite o olhar – dois líquidos não se misturam: água e óleo. A água permanece como que suportando, sobre sua densidade também transparente e incolor como o acrílico, o óleo amarelado mais denso. Só com o toque/interferência do observador a mistura se move e é possível perceber que existe algo aparentemente invisível sob o óleo. Em parte o desencadear das ações pode também surgir a partir do nome da obra. O aspecto relacional é intensificado pela palavra love, gravada em letras pretas na tampa do ready-made cilíndrico, sugerindo a reificação das paixões e do amor, assim como revelando possíveis relações de afeto imediato: um objeto de desejo fetichista, daquele que submete essa coisa em particular ou que tem como maior prazer ser total objeto do outro. A nomeação não é feita em português, mas em inglês; palavra banalizada internacionalmente, em irônica proximidade de público e privado, massificado, demonstrando o quanto o ser olhado de modo especial é constatação muito mais subjetiva que objetiva, não estando presente na pura constituição física da obra. De fato, ambiguamente, o Objeto love deveria ser o mais comum de todos para poder ser o único: água e óleo convivendo em atrito, tensamente. E não são assim, vistos de dentro, os relacionamentos? Posto o objeto – posta a questão – estão, lançados os dados. Seja a partir de algum estranhamento ou reconhecimento, temos o início de um jogo dialético em que ambiguamente os papéis são cambiantes, havendo rítmica alternância de personagens.

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7 Id., ibid.: 79. “A mais simples imagem, por certo: puro ataque, pura ferida visual. Pura moção ou deslocamento imaginário. Mas também um objeto concreto (...) exatamente exposto ao seu olhar, exatamente transformado. Um objeto agido, em todo caso, ritmicamente agido.”


Nelson Ricardo. Objeto love. Coqueteleira de acrílico, água e óleo, 2001.

Aquele que primeiro corresponde ao pedido de toque-me feito pelo Objeto love inicia uma série de movimentos que afetarão a configuração do jogo. Se a princípio é visualmente implícita a mensagem “impossível mistura”, essa mesma impossibilidade aparente soa como real desafio: testar essa certeza. O gesto realiza a possibilidade de outro lugar, já que não há como nomear a mistura do que não se mistura realizada enquanto houver paciência para agitar esse coquetel. Havendo um período de repouso, gradualmente retornará a visão inicial e, assim como na já citada experiência de Freud, possivelmente o jogo recomeçará. Nada se terá revelado a não ser o lugar do jogo, a abertura de um jogo mortal ou morti-

8 Teles, Gilberto Mendonça. Vanguarda européia e Modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1983: 66-72. Referência ao poema de Stéphane Mallarmé “Un coup de dés jamais n’abolira le hasard”.

ficado, que é possibilitado num espaço híbrido, intermediário e só cabível além de toda

9 Comentário feito por Malu Fatorelli em paralelo ao que eu disse sobre um possível “lançar de dados”.

e ser conteúdo, oscilação que alterna o ver e ser olhado, do observador/ator vertido em

ortodoxia visível ou invisível. O inquietante espaço-lugar desse coup de dés8 (ou pas de deux9) é ambivalente por conter objeto, pois que responde, sem recusar, à provocação do sujeito love.

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A surpresa dos “jogadores” é reiniciada através do ir-e-vir alternado do que vê e do que é olhado, relacionamento incondicional e apaixonado que opera além das expectativas e previsões, num moto-contínuo que resiste enquanto há possibilidade de vida. A invisibilidade é sinônimo nesse objeto da “falta de retorno”, da falta de resposta ao convite para jogar. Sinônimo também de morte – adiada constantemente pela reaparição das imagens – da água e do óleo individuais; reaparição esperada como a volta do sujeito amado que fala ao objeto “você ainda é merecedor de meu olhar”. (...) a ausência dá conteúdo ao objeto ao mesmo tempo que constitui o próprio sujeito, o visível se acha de parte a parte inquietado: pois o que está aí presente se arrisca sempre a desaparecer ao menor gesto compulsivo (...).10

10 Didi-Huberman, op.cit.: 96. Fédida apud Didi-Huberman.

Numa espécie de dependência mútua, os elementos que servem à demonstração do jogo apenas confirmam que quem joga é o próprio jogo e que sua finalidade é seu próprio recomeço, a reinauguração do momento original – banal e único, como todo sujeito/objeto humanamente lúdico. Se, como bem disse Bachelard,11 o que permanece e que dura é aquilo que tem razão para continuar, a experimentação segue buscando solver fronteiras.

11 Bachelard, Gaston. A dialética da duração. São Paulo: Ática, 1988.

Solvente Solvente. [do lat. solvente.] Adj. 2 g. 1. Que solve ou pode solver. 2. Que paga ou pode pagar suas dívidas. 3. Diz-se do devedor cujo ativo é superior ao passivo. 4. Fis.-Quím. Numa solução, componente cuja fração molar é próxima da unidade, ou é muito maior que a dos outros, e que, nas mesmas condições de temperatura e pressão, se encontra no mesmo estado físico da solução. 5. Fis.-Quím. Numa solução, componente cuja concentração pode crescer indefinidamente sem que apareça uma fase nova no sistema. [Não são raros os casos em que nenhum dos componentes satisfaz integralmente essa condição]. 6. Fam. Líquido em que uma substância é dissolvida. Solver. [Do lat. solvere.] Explicar, resolver.12 Um “desaparecimento possível” do ateliê do Instituto de Artes da UERJ. Uma desmaterialização visual através da projeção de imagens sobrepostas em que, gradativa e lentamente, elementos presentes no espaço de experimentação de arte vão-se tornando rarefeitos até se desfazer em pleno ar.

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12 Ferreira, A. B. de H. Novo Dicionário Aurélio, Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1975: 1.331-1.332.


Somem cadeiras, cavaletes, objetos; dissipam-se elementos da arquitetura, e as próprias paredes do ambiente dão lugar à visão do espaço externo com as ruas, árvores e carros do estacionamento tomando lugar na superfície em que são projetadas as imagens. Esse vídeo é feito no momento em que são construídas divisórias que resultarão em outros ambientes dentro do anteriormente único e contínuo espaço do ateliê: uma sala/auditório onde serão realizadas, entre outras coisas, as bancas de avaliação dos canditados ao mestrado e também, ao lado, uma futura galeria de arte para exibir experimentos dos alunos do Instituto de Artes ou algo que seja do interesse de todos. Isso contribui para o caráter site specific desse trabalho por exibir a desaparição visual de um determinado espaço dentro dele mesmo, e, por conseguinte, fazer sumir o próprio ambiente de que então faço parte. 13 Crimp, Douglas. “Redefining Site Specificity”. In: On the museum’s ruin. Cambridge, Mass.: The MIT Press, 1993: 150-188.

Encontrei num texto de Douglas Crimp13 algumas considerações interessantes quanto à especificidade espaço de produção/espaço de exibição do objeto de arte, que possibilitam relacionar meu vídeo Solvente a questões levantadas por Richard Serra em alguns de seus trabalhos, ainda que ambos sejam aparentemente distintos. “Remover a obra é destruir a obra.” A afirmação de Serra se refere a uma audiência para definir o destino de sua conhecida escultura Tilted arc, obra que causou polêmica por, segundo parte da opinião pública, “romper as visões normais e as funções sociais” do local onde estava instalada, supostamente em caráter permanente (a Praça do Jacob K. Javits Federal Building em Lower Manhatan, no verão de 1981). A encomenda havia sido feita pelo Programa de Arte na Arquitetura do General Services Administration em 1981, mas em 1985 um novo administrador regional do GSA deu início à idéia de transferir a obra para outro lugar, alegando “presença conflitante” com o ambiente. A busca de maior equilíbrio na relação aparência e tamanho da peça com um possível e harmonioso entorno demonstrou completo desconhecimento de que, para Serra, a idéia de site-especificidade iria de encontro exatamente ao pensamento de que a obra deve estar inserida num espaço favorável e palatável ao público, no caso, por meio de um espaço institucional adequado para comportar tanto a escultura em suas proporções gigantescas como um público específico que pudesse digeri-la. O interesse estaria exatamente em estabelecer a dissonância entre a arte e seu já institucionalizado consumo. O que o artista propunha era rever a própria convenção de legibilidade aparente do trabalho artístico e suas relações entre referencialidade e percepção que servem como facilitadores ao chamado público especializado. Importante colocar que o conceito de site specificity entra na arte contemporânea através do Minimalismo nos anos 60, quando esses artistas discutiam a falta de um lugar e o ide-

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alismo na escultura moderna. Entretanto, num certo sentido essa discussão não é levada a cabo, pois a incorporação do lugar na percepção do trabalho artístico só era entendida formalmente, deslocando o idealismo também ao espaço circundante, de forma que esse restava estetizado. Declarações, como a de Carl André, de que a escultura que antes era lida enquanto forma e estrutura deveria passar então a ser pensada enquanto localidade e o fato de as obras, de modo geral, percorrerem as localidades sem de fato pertencerem a nenhuma delas em particular favoreciam a circulação comercial da obra de arte e seu enquadramento como mercadoria de luxo,14 circulando sem impedimento entre a galeria, o museu e a residência de algum comprador: Não acho que os espaços sejam assim tão singulares (...) Penso que

14 Id., ibid.: 155. “A real condição material da arte moderna, mascarada por sua pretensão à universalidade, é aquela de artigo de luxo especializado. Produzida no capitalismo, a arte moderna ficou sujeita à mercantilização da qual nada realmente escapa.”

existem classes genéricas de espaços com e para os quais você trabalha. Assim, não é realmente um problema onde uma obra estará em particular (...) Dentro dos espaços das galerias, dentro dos espaços das residências privadas, dentro dos espaços dos museus, dos grandes espaços públicos, e também espaços externos de diferentes tipos.15

15 Carl André apud, op. cit. Crimp.

A partir disso, artistas como Richard Serra e Robert Smithson, vão reagir a uma dissolução da cultura em pura mercadoria, no que Crimp chama de práticas marginalizadas e espasmódicas que radicalizaram a idéia de site specificity. Smithson desenvolvia uma teoria relacionando um local em particular existente no meio ambiente que ele intitulava site e os espaços anônimos, intercambiáveis, que chamava de não-site, nas galerias em que seria possível exibir seu trabalho na forma de registro fotográfico. Sites eram alguns lugares; possuíam limites abertos e informação dispersa. Não-sites possuíam limites estabelecidos; continham informação e não eram lugares, algo como “abstração”. A oposição entre elementos pertencentes à cultura e as formações naturais não era de forma alguma por ele considerada16 e de maneira alguma o artista via a diferenciação entre os espaços de forma superficial e irrelevante. Em Splashing, conhecido trabalho que Serra realiza para uma exposição organizada por Robert Morris num velho armazém de Upper West Side de Manhatan em 1968, é lançado chumbo derretido na junção de uma parede com o chão; solidificando, forma uma espécie de massa indefinida e sem forma específica.

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16 Archer, M. Arte Contemporânea – Uma História.


Nelson Ricardo. Solvente. Vídeo (frames). Ateliê do Instituto de Artes UERJ, 2007.

Em certa medida, Serra apaga a linha em que a parede se eleva perpendicularmente ao chão, dissolvendo aquele referencial de orientação espacial e dando sustentação àquele espaço como um território para uma experiência perceptual diferenciada. O artista desloca a proposta de radicalidade de Splashing para a esfera pública através de Tilted arc, e é nessa direção que é possível estabelecer a especificidade do trabalho. O embate com as convenções do sistema de apreensão da arte através de categorizações institucionalizadas pode ser lido em suas palavras: A instituição do museu invariavelmente cria auto-referencialidade mesmo onde não está indicada. A questão de como a obra funciona não é colocada. Qualquer tipo de disjunção que a obra possa buscar é eclipsado. O problema da auto-referencialidade não existe quando a obra ingressa no espaço público. Como uma obra altera um lugar específico

17 Crimp, op. cit.: 163-164. Richard Serra Douglas Crimp.

é a questão (...) elas passam a ser interesse de outras pessoas.17 Como parte desse sistema pode-se ler todo tipo de facilitação em relação ao público, como “fetichização” da autoria ou mesmo a estetização da obra no sentido de viabilizar a transformação da arte em mercadoria cara em que o que se consumiria, de fato, seria a aparência das obras e não a experimentação que elas propõem – ainda que essa mesma “aparência” confrontada com o espaço que a comporta participe da proposta do artista em revisar nosso processo perceptivo.

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Partindo da definição dos parâmetros que utilizo na construção de meu trabalho em vídeo intitulando Solvente, torna-se possível estabelecer determinadas relações no momento em que ele dialoga com a site-especificidade comentada em referência às obras de Richard Serra. Interessante é que a relação se estabelece entre trabalhos que fazem uso de linguagens completamente diferentes, o que em certa medida reforça a discussão. Entre a necessidade imediata de exibir o vídeo dentro do próprio espaço que serviu como material para sua produção e a diferença previsível quando de sua transferência para outro local, algo se perderia ou no mínimo deveria ser repensado para que não houvesse total subversão do “funcionamento” da proposta. Ainda que não haja nenhuma característica arquitetônica que impressione quem ali adentre, nenhum mobiliário muito característico ou de algum modo especial, o espaço físico do ateliê não é absolutamente neutro. A referência é com outro tipo de espaço, impessoal como um imenso depósito vazio com seu piso em cimento cinza, as várias colunas e vigamentos em concreto, às vezes recoberto com uma demão de tinta branca. Vêem-se lâmpadas fluorescentes e algumas cadeiras, mesas e armários que poderiam estar em qualquer refeitório, escola ou almoxarifado e em nada lembram os tradicionais espaços de produção de arte, como, por exemplo, a Escola de Belas Artes ou a Escola de Artes Visuais do Parque Lage. Nelas a profusão de cavaletes, os respingos coloridos e o cheiro característico de tinta para pintura informam ao público leigo que ele se encontra situado – especificamente – num local em que transitam objetos separados do mundo cotidiano. É claro que, apesar de esses espaços também fazerem uso de linguagens convencionalmente lidas como artísticas – a pintura, por exemplo –, isso não os caracteriza como locais de produção convencional, mas apenas reforça a idéia de um “ambiente de arte” para aqueles que não fazem parte desse contexto. No caso do ateliê do Instituto de Artes, devido talvez à natureza das experimentações realizadas, é mais difícil para quem passa apreender de imediato que ali se fazem “experimentos artísticos”. Além disso, está cercado de um lado por uma quadra de educação física, um campo de futebol e a construção de um futuro restaurante popular universitário. Tudo isso não vai de modo algum contra a relevância das discussões, das aulas ou eventos de arte que ocorrem ou podem ocorrer em meio às paredes desse ambiente. São questões interligadas e ao mesmo tempo diferenciadas, assim como exibir um trabalho artístico para uma banca numa defesa de tese não é o mesmo que exibi-lo numa galeria ou num evento similar em que a visibilidade em relação à mídia e ao circuito exercem peso maior.

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Nesse sentido vejo meu vídeo dialogar com questões levantadas por Serra acerca do mercado direcionador de uma parcela determinada do público mantida dentro de limites – ou espaços – instituídos para a percepção (e produção) do objeto de arte. Ao tornar gradativamente rarefeitas as paredes e o mobiliário do ateliê do Instituto de Artes da UERJ, faço lentamente surgir o mundo ao redor. Vão aparecendo e tomando voz os estacionamentos, as paredes pichadas, o morro com a favela e tudo aquilo que ultrapassa a segurança institucional. Essa é de fato a site specificity de meu trabalho. O local desse site specific não é apenas fisicamente o do ateliê. É também a própria condição ambígua de ateliê contemporâneo, o lugar do “fazer arte”, num momento em que as fronteiras entre o espaço da arte e o lugar comum se tornam menos visíveis, enquanto certos muros conceituais teimam em permanecer. E se o ateliê se confundisse com o mundo? 18 O’Doherty, op. cit.: 90. “Se não se pode aposentar sumariamente a parede branca, pode-se entendê-la. Esse entendimento modifica a parede branca, já que seu conteúdo se constitui de projeções mentais baseadas em presunções não enunciadas. A parede é [sic] nossas presunções. É imperativo que todo artista conheça seu conteúdo e o que ele provoca em sua obra.”

A visibilidade possível do entorno, ultrapassando essas paredes brancas,18 sugere uma contaminação entre o dentro e o fora do espaço de produção e exibição da arte, e conseqüentemente o desaparecimento ou rarefação daquela auto-referencialidade do artista e do próprio espaço. Se em Splashing o acúmulo de chumbo derretido vinha de encontro à linha divisória que definia parede e chão, o que se desfaz em Solvente é essa outra linha que delimita o dentro/fora formado pelas “paredes” físico-conceituais do ateliê. Solve-se todo

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tipo de aparato específico que permita que se diga “dentro e fora”: o mobiliário, os trabalhos e suas linguagens, os artistas e o público, e o próprio conceito de ateliê. Dissolvê-lo fisicamente/visualmente é fazer essa oficina de artista se confundir com o mundo cotidiano a seu redor, esse mesmo mundo transfigurado por grande parte da arte contemporânea. Ainda que não venha solver algum problema, meu trabalho focaliza e afirma a questão de que há uma tensão entre o lugar privado de produção, circulação e recepção da arte e sua proposição em se transfigurar no mundo, mantendo-se em suspensão entre o derrubar e o restabelecer dessas fronteiras. O elemento que solve os conceitos é aqui o elemento visual. Em Solvente o olhar radiográfico ultrapassa os limites subvertendo a autoridade que define os espaços específicos de atuação, e permitindo ao artista abrir portas através de uma contaminação que viabiliza outras possibilidades de configurar essas esferas. Todos os empecilhos foram removidos, exceto a “arte”.19

19 Id., ibid.: 101.

Parafraseando Martin Grossmann20 na referência a Ceci n’est pas une pipe (Magrite

20 Grossmann, M. apud O’ Doherty, op. cit.: 11. “Isto não é uma galeria de arte”.

1928-29), o mito do espaço (e do artista) é corrompido por uma ação metalingüística a partir de uma crítica intrínseca que utiliza objetivamente o próprio instrumental do meio em que trabalha, com isso pretendendo desconstruir uma autoridade, tanto do suporte como da instituição e mesmo do artista: “Trata-se de uma manobra poética, que não visa à ‘morte’ do suporte, tampouco à do artista, mas sim possibilitar a extrapolação dos limites impostos por sua estrutura epistemológica.”21

21 Idem.

Solvente não propõe “eliminar” ateliês ou artistas, mas trazer a discussão acerca do jogo de regras e princípios da arte de modo consciente, o que poderia de fato colaborar no alargamento de seu espaço de atuação. O que é demonstrado é o que não se mostra, ou seja, o que está por trás das paredes – de todos os tipos possíveis de parede. No trabalho, essa espécie de olhar radiográfico, híbrido da memória e da visão de outros lugares, ultrapassa a solidez dessas divisórias e se perde descobrindo os horizontes. Horizonte. [Do gr. horízon, ôntos, ‘que limita’ (subentende-se kyklos, ‘círculo’), pelo lat. horizonte.]22

22 Ferreira, op. cit.: 738.

Coincidentemente, Solvente (2007), assim como Placa de trânsito (1990) e Objeto love (2001), se situam no espaço intermediário entre dois momentos, em situações que mantêm aparentemente um sentido de trânsito: Em 1990 eu me graduava na Escola de Belas Artes da UFRJ.

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Em 2001 concluí a especialização em Teoria da Arte na UERJ. Em 2007, finalizo o mestrado no Instituto de Artes da UERJ. A percepção da existência de limites a serem ultrapassados é um dos principais motores dos trabalhos, e há um espelhamento entre a situação deles e a condição do artista que evidencia essa passagem.

Nelson Ricardo é artista com produção entre o visual e o conceitual, mestre em Processos Artísticos Contemporâneos (UERJ), especialista em Teoria da Arte (UERJ) e graduado em Pintura pela Escola de Belas Artes (UFRJ). É professor com trabalhos desenvolvidos na Unesa, Ubam, UCP, UERJ e Ucam, entre outras.

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ARTAUD / O ROSTO □ ROBERTO CORRÊA DOS SANTOS


□ é por demais pesado o rosto □ temos de carregar o rosto □ no instante do retrato pôs a mão no rosto □ algo desmonta-se miseravelmente do rosto □ dois olhos ainda vivos quiseram saltar do rosto □ já não podia dizer sim apenas com o rosto □ jamais soube quem um dia lhe desenhara o rosto □ um futuro próximo estava bem ali no rosto □ quanto mais risse mais se fechava o rosto □ sumira quase toda a água do rosto □ reconhecia apenas as partes


e não o rosto □ a luz e o espelho do elevador afirmaram ser aquele o rosto □ reagiu pondo a língua para fora do rosto □ deu diversas vezes as costas para interditar o rosto □ tantas pequenas sombras aglutinavam-se para tingir o rosto □ cobriu de pó branco o rosto □ avermelhou a boca para reordenar o rosto □ bem infantil era a coisa a querer saltar do rosto □ os dentes exageraram a alegria triste do rosto □ de um tecido rústico iase fazendo o rosto □ cada vez mais


tenso tornava-se o rosto □ a paixão superpõe-se ao silêncio anterior do rosto □ não respondeu como devia por confiar no rosto □ tudo tremeu sem que se abalasse o rosto □ leve curva no movimento iluminou o rosto □ a mão de alguém deslizou por sobre o rosto □ havia silêncio nos pontos gerais do rosto □ estendia-se apenas até certo limite o rosto □ fez tudo para ler o rosto □ esfíngico e ardoroso esteve o rosto □ sob a pele séria instalouse a frase sangrada do rosto □ um


grito pareceu sair tão só do rosto □ piscou simplesmente piscou o rosto □ desceram lentamente aquelas cinzas do rosto □ os dedos espalmaram-se em susto sobre o rosto □ abriu todo o cabelo para ampliar o rosto □ sempre soube arranhar os sinais de verdade surgidos no rosto □ abafou com a fronha o rosto □ só a fome revelaria o projeto do rosto □ reteve com o pensamento o suor do rosto □ com os dedos contou as angulagens do rosto □ riu em descontrole ao


deparar-se com o rosto □ o pó branco estampou definitivamente o rosto □ carregava por toda parte o difícil desenho do rosto □ o olho esquerdo desfaleceu desequilibrando o rosto □ atrapalhavam as informações excessivas do rosto □ protegeu com grossas sobrancelhas o rosto □ ali naquele encontro não respirava o rosto □ curvou todo o pescoço para desarmar o rosto □ por cerrar os dentes alargou o rosto □ movimentava sem controle de um


lado para o outro o rosto □ virou-se para trás o rosto □ deixou-se seduzir o rosto □ era inevitável ir perdendo o rosto □ os fatos negavam o rosto □ o sol angula e recorta por instante o rosto □ quis justificar-se o rosto □ o nenhum amor ressecara o rosto □ a aragem daquelas palavras pousaram no rosto □ examinou o destino na massa elástica do rosto □ passoulhe a língua por todo o rosto □ nada além disso posso dizer foi o que disse o rosto □ dorme agora o rosto □ sem


dar-se conta desperta o rosto □ em razão do que sabe palpita o rosto □ levará até a padaria o rosto □ em cinco súbitos longos anos formouse o rosto □ desrevela-se algo nas evidências do rosto □ viu o quarto alfabeto do rosto □ não quis saber o porquê do tremor diante do rosto □ não negou ser o rosto área de pura luz bem como um campo de morte □ é por demais pesado o rosto □ temos de carregar o rosto □ no instante do retrato pôs a mão no rosto □


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Quando a teoria reencontra o campo visual Passagens1 de Walter Benjamin Márcio Seligmann-Silva

Apresentação de Passagens, de Walter Benjamin, publicado em português em 2006, o artigo enfoca a metodologia desenvolvida por Benjamin nesse trabalho, sua teoria (e prática) da forma de apresentação do material colecionado e da escritura por fragmentos. Discute também as questões do arquivo, da memória, do colecionismo e o conceito de “agora da conhecibilidade” que embasou esse livro-projeto benjaminiano. Destaca ainda o elemento “visual” contido nesse trabalho aparentemente apenas verbal. Walter Benjamin, escritura e espacialidade, virada visual.

O lançamento em língua portuguesa de Passagens, de Walter Benja1 Passagens. Walter Benjamin. Organização de Willi Bolle. Tradução de Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte/São Paulo: UFMG/Imprensa Oficial, 2006.

min, representa entre nós, sem dúvidas, um dos grandes acontecimentos culturais dos últimos anos. Quem já teve a oportunidade de se perder e de se achar nos milhares de fragmentos dessa obra sabe do que estou falando. Poucas obras do século XX têm carga explosiva tão potente quanto à desse vasto volume. Com esse trabalho Benjamin visava ainda uma vez (como já o fizera com seu livro sobre o drama barroco alemão) abalar a concepção tanto do saber histórico como do método de seu conhecimento. Com interrupções, mas com perseverança, de 1927 até sua morte ele trabalhou nessa obra que, por motivos de justiça histórica, deve ser vista como um verdadeiro projeto, já que ela, por sua forma e seu método de trabalho, se estruturou como uma constelação em constante movimento. Poderíamos também ver esse projeto de Benjamin como um trabalho, pensando esse conceito freudianamente, como uma tentativa de se fazer uma perlaboração (Durcharbeit) do século XIX. Essa perlaboração estaria voltada para a desconstrução dos mitos daquele passado (sobretudo o mito do progresso) e, além disso, para uma intervenção no próprio presente de Benjamin. Destaquemos alguns dos momentos mais decisivos desse gigantesco projeto e de sua versão brasileira. A edição brasileira Antes de mais nada é essencial comentarmos a excelente edição brasileira, que devemos agradecer, nós, leitores, ao trabalho titânico da equipe de realização: o organizador, Willi Bolle e sua colaboradora, Olgária Matos; e ao trabalho inimaginável das duas tradutoras, Irene Aron (tradutora do alemão) e Cleonice Paes Barreto Mourão (tradutora do francês). A edição de luxo, com capa dura, não pode ser esquecida aqui. Trata-se, até onde eu saiba, da edição mais “nobre” dessa obra de Benjamin. O volume

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reúne todos os fragmentos (até agora publicados) que compõem Passagens, além de incluir suas notas, vários dos comentários do editor alemão Rolf Tiedemann e também dos editores das traduções norte-americana e francesa dessa obra. A essas notas e comentários o editor brasileiro acrescentou outros, de sua lavra. Inspirado pela edição norte-americana, o volume da Editora UFMG e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo também incluiu um precioso “Léxico de nomes, conceitos, instituições”. Pelo que pude observar (evidentemente não tive tempo para comparar linha a linha com o original) a tradução está muito bem feita. A idéia de inserir um pequeno “Glossário da terminologia benjaminiana”, com a lista das “soluções” de tradução de vários termoschave da filosofia benjaminiana, também só pode ser louvada. A qualidade final do volume é impressionante, trata-se verdadeiramente de algo raro na paisagem publicística acadêmica brasileira. Um novo patamar filológico desponta aqui (em um país, é verdade, com pouca tradição de edições críticas filológicas sérias, se o compararmos com a Alemanha). Essa qualidade toda, por sua vez, corrobora a importância do livro de Benjamin. Tanto cuidado com a apresentação e tanto apuro filológico correspondem tanto às enormes exigências impostas pela leitura dessa obra de Benjamin como também a sua importância no amplo quadro da cultura do século XX. Mais uma vez, proclamemos um alto e sonoro parabéns para essa equipe de produção. Devemos ter em conta que o nível de exigência para uma publicação “academicamente correta” de uma obra dessa complexidade não apenas é enorme, mas beira o infinito. Sabemos que todo processo de leitura e interpretação de uma obra é inesgotável. Do mesmo modo, todo trabalho de edição, tradução e publicação exige uma série de opções e escolhas. No caso em questão essas opções e escolhas se amontoam de modo a formar montanhas com picos que se perdem nas alturas da filologia, da filosofia e da história. Os organizadores tiveram, por exemplo, que lidar com o desafio de publicar uma obra que o próprio Benjamin não chegara a formatar e que fora publicada segundo a forma e o desejo (imperativo) do editor alemão Rolf Tiedemann. Essa opção (ou imposição editorial) pode ser vista como muito boa: afinal não apenas em alemão, mas também em outras línguas, seguiu-se a edição de Tiedemann e, portanto, essa é a forma sob a qual até hoje qualquer leitor de Passagens a conhece. Outra decisão que os organizadores tiveram que enfrentar foi o título do volume. O próprio Benjamin se referia a este trabalho com diferentes expressões, indo do “Pariser Passagen. Eine dialektische Feerie” (Passagens de Paris. Uma feeria dialética), o projeto de um artigo de 1927, passando por “Passagenarbeit” (Trabalho das passagens) e “Pariser Passagen” (Passagens de Paris) e por expressões que se referiam a partes desse projeto (como “Baudelaire”). O título alemão Das Passagen-Werk (A obra das passagens) transmite a falsa impressão de que Benjamin teria concluído esta “obra”, a teria “fechado”. No entanto, o caráter de abertura do trabalho de Benjamin possui um significado tanto histórico como epistemológico e metodológico. Ao nomear o livro Passagens os organizadores brasileiros preservaram esse caráter. Mantiveram também a importante polissemia do termo “passagem”, que significa tanto as galerias comerciais de Paris,

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como também passagens de textos, passagens de eventos, da história etc. Vemos nesse termo já um importante dado dentro da nova perspectiva que Benjamin abre para o trabalho histórico: trata-se de um decidido parti pris a favor das imagens e do imagético. Dentro da questão das opções envolvidas nessa publicação poderíamos tratar também das várias opções de tradução de conceitos-chave desse trabalho e, de um modo geral, dos escritos de Benjamin. Não é minha intenção fazer aqui uma análise detalhada da tradução que, como disse, está muito boa. O próprio Benjamin foi um poderoso teórico da tradução e destacou a terrível dialética que comanda o trabalho do tradutor, que caminha sobre um fio da navalha entre a necessidade e a impossibilidade da tradução. Benjamin, ao menos em sua teoria, mas não em sua prática de tradutor, era adepto das traduções literais, que provocam um abalo duplo, tanto na língua de partida como na língua de chegada da tradução. Não foi, ao que parece, esse o modelo tradutório considerado na confecção desse livro. Tampouco caberia diminuir essa tradução por sua espantosa fluência, antes podemos nos maravilhar com o trabalho gigantesco que foi essa passagem para o português (e devemos somar ao título do livro mais esse importante sentido bem benjaminiano: passagem é tradução). Por outro lado, nessa tradução praticamente eliminou-se o constante trabalho de ir e vir (de passagem) de uma língua para outra. Afirmo isso porque o Passagens original é praticamente um livro em duas línguas, com os comentários escritos em alemão por Benjamin e as passagens citadas em francês (de obras de poetas, literatos, historiadores da cultura, extraídas de placas, anúncios etc.). O editor alemão não se preocupou em traduzir estas passagens para o alemão. Poder-se-ia argumentar que o público alemão domina mais francês que o brasileiro, mas creio que isso não é correto, em se tratando do público a quem essa obra se dirige (universitário). Ou seja, a opção pela legibilidade também levou a essa decisão de traduzir os trechos em francês. Com isso ganha-se talvez um público mais amplo, mas o preço é caro, pois a passagem entre as línguas é um dado material importante em Passagens. Como não poderia deixar de ser em um trabalho dessa monta, aqui e ali podemos notar alguma imprecisão na tradução, como no fragmento H 5, 1: em que se lê “A memória involuntária (...) é um fichário que fornece um número de ordem ao objeto, atrás do qual ele desaparece”, deve-se ler: “A mémoire volontaire (...) é um fichário que fornece um número de ordem ao objeto, atrás do qual ele desaparece”. Ou seja, além de trocar “voluntário” por “involuntário”, a tradução apagou as marcas do francês incorporadas no texto de Benjamin, que se davam sem utilização de aspas ou de qualquer outra marcação. Esse trânsito entre as línguas é importante de ser preservado, assim como a manutenção da assinatura proustiana nas reflexões de Benjamin, indicada pela expressão “mémoire volontaire”. Mas já na frase “O colecionador atualiza latentes representações arcaicas da propriedade” (H 3a, 6) (“Vom Sammler werden latente archaische Besitzvorstellungen aktualisiert”) tem forte carga literalizante, seja pela opção sintática, seja pela tradução de “Vorstellungen” por “representações” e não por “noções”, o que seria mais fluente.

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Este último caso deixa entrever que na verdade nem sempre predominou a estética da fluência e da legibilidade nessa tradução, o que, creio, gera aqui e ali um estranhamento que é produtivo e faz com que o leitor se lembre de que está a caminhar sobre uma passagem, ou seja, que ele está lendo uma tradução. A tradução é sem dúvida uma grande questão quando se trata de Passagens e creio que muito ainda será discutido nesse âmbito. De resto, seria interessante se em uma futura segunda edição essa questão da tradução tivesse mais espaço nas notas e paratextos. Outra sugestão (já que estamos no âmbito das sugestões para aprimoramento) seria a incorporação do fantástico conjunto de passagens de cartas, sobretudo de Benjamin, sobre seu projeto das passagens, que faz parte da edição alemã (volume V: 1.079-1.215). Evidentemente isso encarecerá a reedição, mas trará enorme ganho para o interessado em Benjamin que não domina o alemão. Creio que essa incorporação inviabilizará a republicação em um só volume. Mas eu vejo vantagens neste ponto: afinal a edição nobre, de luxo, já está publicada e agora é parte dos acervos de nossas universidades e bibliotecas. Uma segunda edição em dois volumes, em formato mais econômico (como ocorre na edição de bolso alemã) também terá a vantagem de tornar mais acessível essa obra essencial de Benjamin (que agora foi publicada com preço proibitivo para professores e estudantes). Além dessa divisão em dois volumes, será extremamente importante que o volume seja acompanhado de uma versão eletrônica do texto. Espero que a Suhrkamp dê a autorização para isso. Apenas essa edição digital permitirá que finalmente a técnica coloque-se à altura das enormes exigências impostas por esse trabalho revolucionário de Benjamin. Esse pensador transpôs o método e sua correspondente apresentação (Darstellung) para o campo das imagens técnicas (antes de elas existirem em sua versão digital). Repito, no entanto, que o atual momento é de festa e que a atual publicação, tal como ela se encontra, é (ou deveria ser) um marco em nossas ciências humanas. Uma nova noção de “intuição intelectual” Benjamin em seu livro O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (publicado em português pela editora Iluminuras) mostrou como Friedrich Schlegel e Novalis defenderam um conceito de “intuição intelectual” diverso do que Kant havia criticado (e que corresponderia a uma intuição mística do todo e do absoluto). Nos românticos essa intuição intelectual teria a ver com uma concepção “lingual” do saber, que necessariamente passa pelo trabalho dos conceitos. Se podemos dizer que o mesmo se passa com o próprio Benjamin (que também defendeu um modelo “lingual” do saber, sobretudo na introdução de seu livro sobre o barroco), por outro lado podemos observar, lendo Passagens (e os textos conexos a esse projeto, ou seja, a maior parte dos ensaios de Benjamin dos anos 30, inclusive o sobre a obra de arte), que nesse autor surpreendemos uma nova concepção do que seria a “intuição intelectual”. Seu projeto e seu método de trabalho, em vez de se contentarem com a “virada lingüística do saber”, executam ainda uma “virada visual do saber”. Em Benjamin a teoria retoma

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seu sentido etimológico de theorein, “contemplar, ver”. Não se trata com isso, evidentemente, de um retorno ao positivismo e nem ao primado da “presença” de cunho platônico (tão criticado pelo próprio Benjamin e, mais tarde, por Derrida). Benjamin está na origem de um novo regime escópico, ou seja, de um novo modo de ver o mundo e, por tabela, de conceber o saber e seus métodos. Sua intuição intelectual seria, nesse sentido, a realização da passagem do regime verbal para o visual. Mas não se trata de uma passagem de mão única; antes, Benjamin nos ensina a oscilar entre o verbal (o que ele denominou sprachlich, referindo-se a Friedrich Schlegel) e o imagético. Inspirando-nos em Haroldo de Campos podemos dizer que Benjamin trouxe para o pensamento conceitual o abalo do verbo-visual. Benjamin era desses filósofos que pensava através dos extremos. Nele a escala temporal é ou cósmica, ou micrológica. Nesses extremos o movimento estanca. Desde seu livro sobre o barroco, escrito em meados dos anos 20, podemos observar essa tendência para a paralisação do tempo. Seu olhar de Medusa congela o movimento para revelar novas facetas, até então insuspeitas, do real. Exatamente como a fotografia e o filme (com seu close-up e a câmara lenta) o possibilitaram. A teoria da alegoria e da melancolia já desdobrava uma dialética tensa entre o verbal e o visual. A teoria barroca da linguagem tendia para uma teoria da proto-escritura. Além dessa circulação entre o fonético e o imagético, Benjamin também realizou em seu ensaio sobre o barroco um quiasma temporal ao ver cada dado cultural ao mesmo tempo como uma espécie de fóssil (ou seja, ele via na história uma espécie de “história natural da destruição”) e como um documento digno de ser atualizado. No trabalho das passagens esse modelo

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epistemológico e de teoria da história foi aperfeiçoado: o momento de atualização passou a ser visto como correlato de uma intervenção política no decorrer histórico. O historiador-catador, que, para Benjamin, salva os “detritos” da história, visa à interrupção de seu curso, a que chamamos progresso, mas que na realidade é apenas o avanço da destruição. Em suma, a historiografia em ruínas que vemos em Passagens é correlata do modelo histórico como um acumular de ruínas. “Escrever a história significa (...) citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado do seu contexto”, lemos em um dos fragmentos de Passagens (N 11, 3). O gesto do colecionador de arrancar as coisas de seu contexto, assim como o gesto do catador que “reencanta” o que fora descartado pela sociedade de consumo, é paralelo ao gesto do “materialista histórico” que, com sua historiografia-montagem, visa romper com o continuum da dominação. Essa libertação para Benjamin é tanto dos homens como do próprio passado. Como Tiedemann nota com razão no prefácio, sem levar em conta a teologia, fica difícil compreender Passagens. Mas trata-se de uma teologia devidamente “profanada”, sem aura, “profanizada”. Para Benjamin, apenas em uma sociedade libertada caberia uma memória total do passado: trata-se aqui da utopia psicanalítica da passagem do Id ao Ego. Trata-se de um juízo universal que salvaria tudo e todos: apocatastasis, como escreve Benjamin, citando Orígenes (N 1a, 3). Trata-se também da utopia lingual de uma plena comunicação, de uma língua “angélica” universal. De uma libertação da “língua pura” que, para Benjamin, dormita na nossa língua “decaída”. O livro depois do livro Passagens é um microcosmo dessa utopia realizada, na medida em que procede à “arte de citar sem usar aspas” (N 1, 10). Essa obra é também a realização do sonho do livro mallarmaico, com suas páginas intercambiáveis ao infinito. Também a idéia de Mallarmé de construir um texto espacial, como seu Un coup de dés, é importante para se entender esse livro de Benjamin. As passagens aí (textuais assim como a forma arquitetônica) são vistas como estrelas que compõem constelações, campos de força. São também, além disso, passagens móveis, que ora se aglutinam a uma “nebulosa”, ora a uma “galáxia”, ora fazem as vezes de “buracos negros” e sugam para si as demais imagens. Benjamin ficou impressionado com a ilustração de Grandville Le pont des planètes, de 1844, que está descrita em um dos fragmentos mais antigos do projeto das passagens. Nessa imagem pontes de ferro servem de passagem entre os planetas. Um tal universo cósmico é a marca também de seu próprio livro depois do livro, ou seja, de seu Passagens. A cidade é captada como um universo “gramatológico”, onde as ruas seriam as linhas, e os prédios, as letras. Mas esse modelo é também escritural em um sentido mais literal, pois Benjamin copia trechos do século XIX para construir sua grande obra. Como lemos em uma passagem exemplar desse entrecruzamento entre reflexão topográfica e gramatológica de seu

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Rua de mão única: “A força [Kraft] da estrada do campo é uma se alguém anda por ela, outra se a sobrevoa de aeroplano. Assim é também a força do texto, uma se alguém o lê, outra se o transcreve.” Ou seja, Benjamin une o plano geográfico ao micrológico da escritura-cópia. Suas cópias, por sua vez, deveriam ser juntadas segundo o princípio da montagem: “Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar” (N 1a, 8; eu grifo), lemos em um famoso fragmento de Passagens. É importante lembrar também o que ele quer mostrar: “os farrapos, os resíduos”. Como o alegorista-colecionador barroco, ele se volta para o pequeno e aparentemente sem importância para construir seu painel móvel do século XIX. Quem sai vencido desse trabalho é o modelo tradicional da narrativa historiográfica: “O materialismo histórico precisa renunciar ao elemento épico da história” (N 9a, 6). Passagens como estas, recorrentes nos anos 30 na pena de Benjamin, devem ser lidas e relidas. Assim poderemos evitar também as interpretações conservadoras de Benjamin (freqüentes também no Brasil) que projetam nele um nostálgico da antiga narrativa. Antes, Benjamin estava engajado em seu presente e apresentou um projeto, com Passagens, que visava remodelar o fazer e o pensar históricos, para além tanto da noção de “progresso” como da de “época de decadência” (N 2, 5). Essa remodelagem passava fundamentalmente por uma revalorização da visualidade. Ele anotou: “Um problema central do materialismo histórico a ser finalmente considerado: será que a compreensão marxista da história tem que ser necessariamente adquirida ao preço da visibilidade [Anschaulichkeit] da história? A primeira etapa desse caminho será aplicar à história o princípio da montagem. Isto é: erguer grandes construções a partir de elementos minúsculos, recortados com clareza e precisão. E, mesmo, descobrir na análise do pequeno momento individual o cristal do acontecimento total. Portanto, romper com o naturalismo histórico vulgar” (N 2, 6). Como o historiador da arte Aby Warburg (lembremos de seu último projeto, também inconcluso, o Atlas de imagens Mnemosyne), também Benjamin visava construir painéis-montagem da história. Ambos compartilhavam também esse mesmo gosto pelo detalhe, pelos fenômenos sutis. Os dois operavam sua leitura do histórico por meio de saltos e valorizavam a categoria das semelhanças na análise de seu material. Para Benjamin há algo como um “agora da conhecibilidade” que determina a leitura de um certo ocorrido, que “olha” para esse momento atual. Esse encontro entre dois momentos tem para ele a forma de uma imagem, a saber de uma constelação. Com essa concepção, a narrativa cede lugar à leitura e ao comentário das imagens: “A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética (...) A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura” (N 3, 1). O perigo é o de cair no esqueci-

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mento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional que apresenta apenas o triunfo dos vencedores. Em suma, ao construir uma obra-móbile, obra-constelação, obra-trabalho, Benjamin estava performaticamente realizando esse trabalho de leitura crítica, de salvamento do ocorrido que, sob sua lupa, decantava-se em imagens dialéticas. Daí a importância de mantermos em aberto seu projeto, daí a necessidade de publicação eletrônica, em CD (ou qualquer outra base de inscrição digital), dessa obra. Benjamin como que antevira as possibilidades desse meio, ou seja, a possibilidade de se navegar pelas passagens, construindo pontes ad libitum, conforme o acaso e a presença de espírito do navegante. A idéia de “ler o livro do mundo”, que guia Passagens, explicita-se em fórmulas nas quais Benjamin afirma querer “ler o real como texto” (N 4, 2). Essa leitura realiza paralelamente o comentário crítico das passagens citadas. Existe nessa obra uma busca de superação da submissão à qual a epistemologia tradicional relegava o objeto, ou seja, a um papel de “escravo” do sujeito do conhecimento. O materialismo benjaminiano passa por esse apego escritural a seu objeto. Se ele escreve que queria apenas “mostrar” e nada dizer, não é menos verdade que boa parte dos fragmentos é de comentários-críticos seus. Benjamin coloca-se não apenas na posição do copista, mas também na do comentarista e do crítico. Sem contar que, como grande teórico do colecionismo que era, ele sabia que o colecionador ao selecionar o que vai para sua coleção já está, de certo modo, dando uma forma sua ao mundo. Se para Benjamin “escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia” (N 11, 2), não é menos verdade que nessa fisionomia misturam-se traços do ocorrido com o agora. Isso não apenas é resultado de se assumir o eu transcendental kantiano; muito mais do que isso, no gestus de historiador da cultura de Benjamin explode-se não apenas com o positivismo e o historicismo, mas também com as visões idealistas (hegelianas) e metafísicas (de direita e de esquerda) da história. Contra a visão de progresso (que marca tanto a historiografia burguesa como a marxista) ele também defende uma noção forte de atualização: “Pode-se considerar um dos objetivos metodológicos deste trabalho demonstrar um materialismo histórico que aniquilou em si a idéia de progresso. Precisamente aqui o materialismo histórico tem todos os motivos para se diferenciar rigorosamente dos hábitos de pensamento burgueses. Seu conceito fundamental não é o progresso, e sim a atualização” (N2, 2). Arquivos Mas detenhamo-nos mais nesse trabalho de colecionador/catador que Benjamin aproxima ao do historiador materialista. Devido a esse procedimento de colecionar citações, o volume Passagens assume a qualidade de um gigantesco e potente arquivo. Não por acaso ele nasceu em grande parte de dentro da Bibliothèque Nationale: um grande e poderoso arquivo do século XIX. Novamente estamos em um campo que se tornou a verdadeira pedra-de-toque de nossos atuais debates intelectuais. A história como arquivo é um tema fundamental em nossa era que já foi denominada pós-

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moderna e pós-histórica, mas que na verdade é simplesmente uma era dos arquivos e das querelas em torno deles. Benjamin escreve que aquilo que está para desaparecer assume a forma de uma imagem: como nas fotografias de Atget das ruas de Paris, no verso das quais o fotógrafo anotava: “Va disparaître”. Nossa contemporaneidade, não por último, graças às duas grandes guerras, aos contínuos abalos gerados por tantos outros conflitos bélicos e genocidas, mas também devido à onipresença dos computadores, que (para o bem e para o mal) nos reensinam a pensar, é uma sociedade que sofre daquilo que Derrida denominou “mal de arquivo”. Sofremos ao mesmo tempo de memória demais: graças às “infinitas” possibilidades de arquivamento que as novas mídias nos abriram, assim como devido aos “fatos terríveis” que clamam por narração; e de memória de menos: graças ao anti-historicismo típico de nosso “capitalismo tardio”, ao pragmatismo onipresente, aos inúmeros traumas do século XX que geraram cemitérios de cadáveres e de memórias. Passagens (ao lado de Mnemosyne, de Warburg) é uma das primeiras obras a enfrentar o desafio de reestruturar o pensamento e a historiografia da cultura a partir do princípio do arquivo. A enorme atualidade dessa obra deve-se também ao fato de ela carregar as marcas do século XX. Benjamin construiu uma obra que ainda hoje é tão atual justamente porque ele penetrou as entranhas do século XX. A fragmentação desse trabalho e o fato de ele ter permanecido “em aberto” devem ser considerados, a um só tempo, como fruto das catástrofes do século XX e resultado do caminho do pensamento de Benjamin. Evidentemente, se não fosse também uma das pessoas que melhor compreenderam as revoluções pelas quais passavam as mídias neste período, tampouco ele teria construído Passagens. Despertar do mito e do sonho A idéia de arquivo, por outro lado, possui profundos desdobramentos dentro da teoria psicanalítica. Freud esboçou várias comparações de nossa estrutura psíquica com outras estruturas complexas que se aproximam da noção de arquivo, como ao compará-la a uma câmara fotográfica (com sua capacidade de registrar em uma escritura luminosa um instantâneo), ao bloco mágico (com suas partes do mecanismo de inscrição que corresponderiam a Ego, Id e Superego) e a um campo geológico (com suas diversas camadas, que realizam uma espacialização do tempo e no qual podemos surpreender lado a lado fragmentos cujas origens distam de séculos). Essa proximidade de conceitos benjaminianos com outros da psicanálise não é gratuita. Benjamin era um grande leitor de Freud, e sabemos da importância do conceito freudiano de trauma para sua teoria do choque e do fim da experiência como Erfahrung, ou seja, como capacidade de articulação do presente com a tradição. Além disso, em Passagens Benjamin retoma a noção psicanalítica de interpretação dos sonhos para descrever o que ele queria realizar com o século XIX. Aqui o conceito fundamental é o de despertar. Como ele anotou: “O agora da cognoscibilidade é o momento do despertar” (N 18, 4). Apesar das profundas influências e afinidades com os surrealistas, Benjamin se distancia

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deles no que toca o culto do sonho. Ele valorizou o momento do despertar, como um limiar, uma soleira, na qual os dois campos, o do onírico e o da vigília, se interpenetram: apenas nesse local de passagem pode-se ainda ter acesso às imagens do sonho e interpretá-las, sem também, por outro lado, se entregar aos mecanismos de censura da vigília. Em seu livro sobre as passagens de Paris, tratava-se de ler e interpretar essas imagens, para permitir um despertar dos mitos e sonhos do século XIX. O mito mais potente daquele século era justamente o mito do progresso. Daí a importância de se levar em conta, na recepção dessa obra, sua forma revolucionária (e não reduzi-la apenas às terríveis contingências históricas pelas quais Benjamin teve que passar – e nelas sucumbiu). O gestus de construir, mas também de interromper e de fragmentar, é parte essencial da historiografia como “terapia de choque” desenvolvida por Benjamin. Esse gestus deve ajudar a romper as forças negativas do mito. Impossível deter-me aqui nos milhares de passagens dignas de destaque do livro e repletas de idéias tão brilhantes quanto assustadoras. Lembremos de algumas frases para dar uma idéia do que quero dizer: “A moda nunca foi outra coisa senão a paródia do cadáver colorido, provocação da morte pela mulher, amargo diálogo sussurrado com a putrefação entre gargalhadas estridentes e falsas” (B 1, 4). Quanto essa intuição não ilumina as pernas raquíticas de nossas grandes modelos atuais? Toda a teoria benjaminiana da moda e do sex appeal do inorgânico é absolutamente urgente de ser reestudada. No arquivo “Baudelaire” (o maior e um dos mais impressionantes do volume) Benjamin transpõe a teoria da moda para a análise marxista do fetichismo da mercadoria – e soma a isso tudo uma reflexão sobre a linguagem e os valores se-

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mânticos: “As modas dos significados mudam quase tão rapidamente quanto o preço das mercadorias” (J 80, 2). Já entre as inúmeras idéias seminais da “pasta” “Teoria do Conhecimento, Teoria do Progresso”, lemos uma frase que resume a dialética do esclarecimento: “A barbárie está inserida no próprio conceito de cultura” (N 5a, 7). As pastas-arquivos não mencionadas aqui tratam ainda do tédio, do eterno retorno, da haussmannização, das lutas de barricada, das construções de ferro, das exposições, dos reclames, de Grandville, do colecionador, do intérieur, do rastro, da cidade de sonho, de sonhos do futuro, do museu, do flâneur, da prostituição, do jogo, dos panoramas, dos espelhos, das pinturas, do Jugendstil, da novidade, dos tipos de iluminação, de Saint-Simon, de Marx, de Fourier, da fotografia, da conspiração, de Daumier, da boneca, do autômato, da bolsa de valores, das técnicas de reprodução, da litogravura, do Sena, da Paris mais antiga, do ócio, do materialismo antropológico e da École Polytechnique, entre outros temas. É de notar não só a semelhança dessa enumeração dos títulos das pastas-arquivos com o efeito de estranhamento provocado pela leitura dos verbetes da famosa enciclopédia fantástica chinesa mencionada por Borges, mas sobretudo a quantidade de referências a sistemas escópicos (refiro-me aqui tanto às técnicas de representação, do panorama, passando pela fotografia até a litogravura, mas também a figuras escópicas como o flâneur, o espelho, as exposições e também a detalhes da cena urbana, como as iluminações e as novas artes em ferro). Benjamin desdobra não apenas o século XIX a partir das passagens parisienses, mas cria um modelo de leitura/reescritura cultural que pode servir para muitas outras épocas. As passagens reuniam em si uma série de questões e “fantasmagorias”, como a teoria da mercadoria, a questão da nova interioridade burguesa, as transformações arquitetônicas e técnicas. Podemos apenas especular qual seria a reação de uma mente como a de Benjamin diante das profundas modificações pelas quais a urbe contemporânea tem passado. Como reagiria diante do museu judaico de Daniel Libeskind em Berlim (de resto, inspirado no próprio Benjamin)? À arquitetura “computacional” e lúdica de um Frank Gehry? Nossas cidades-esculturas do Primeiro Mundo poderiam ser lidas por ele como um triunfo conservador da técnica – mas ele decerto não deixaria de desdobrar o seu pensamento dialético e de apontar para seus momentos de sonho e de utopia. Mas tudo isto é especulação. Por agora cabe apenas saudar a tradução brasileira dessa obra impressionante. Benjamin via nas traduções obras menos duradouras que os “originais”. As atuais teorias da tradução tendem a discordar de Benjamin nesse ponto. Mas nesse caso estamos diante de um “original” sui generis, já que esse original, no limite, “não existe”. Existe apenas um projeto. Um enorme e fabuloso projeto. Uma obra virtual – termo que não por acaso remete tanto ao Barroco com seus tromp l’oeil, como à virtualidade aberta pelas imagens eletrônicas. Cabe a cada leitor executar essa obra-partitura. Aprender a ler, desmontar para remontar Passagens. Essa obra de Benjamin já nasceu fadada a ser esse tal projeto, uma tal obra em movimento. Ela é processo, passagem constan-

Quando a teoria reencontra o campo visual Márcio Seligmann-Silva

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te. Trata-se de uma obra líquida. Maleável. Portanto os tradutores e organizadores brasileiros intervieram em um momento dessa obra que é, para falar com Benjamin, medium-de-reflexão, fluxo. Eles processaram mais uma passagem, uma leitura, uma execução dessa obra polifônica/poligráfica e sempre aberta a novas leituras. Ao aproximar esse universo conceitual e “gestual” benjaminiano da língua e cultura de expressão portuguesa foi executado também um deslocamento produtivo. Com certeza essa tradução terá um brilhante e produtivo caminho a percorrer nesta língua.

Márcio Seligmann-Silva é professor livre-docente de Teoria Literária na Unicamp. É autor dos livros Ler o livro do mundo. Walter Benjamin: romantismo e crítica poética (Iluminuras, 1999), Adorno (PubliFolha, 2003) e O local da diferença. Ensaios sobre memória, arte, literatura e tradução (Editora 34, 2005); organizou, entre outros, o volume Leituras de Walter Benjamin (Annablume, 1999) e traduziu de Walter Benjamin O conceito de crítica de arte no romantismo alemão (Iluminuras, 1993).

Cezar Bartholomeu Passage/Panoramas/Galerie/Variétés, 2007 Fotografia

O projeto é dado a caminho/as particularidades (sempre) importam. Panorama/Panorâmica: impedimentos que implicam obliqüidade: tangentes. Câmera com quatro obturadores: a espacialização do tempo na fotografia re-forma. O trajeto corpo/olho: uma linha com múltiplos desvios, um belo bordado. [Bandejas com Marilyns de Warhol repetidas na vitrine da lanchonete, lojas de filatelia, um escravo de Michelangelo na porta da sauna, jardineiras floridas, reflexos; uma loja de pisos exibe uma grega em madeira nobre, placas de rua, restaurantes étnicos, antigos cartões-postais de Paris] e Benjamin, o arúspice. Ele deve olhar para cima. Assim, o bordado torna-se constelação.

Cezar Bartholomeu é artista plástico, doutorando em Artes Visuais na EBA/UFRJ.

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A promessa de Prometeu e o dilema de Sísifo: a tragédia do conhecimento e sua transgressão pela arte Alexandre Costa

Partindo da análise dos mitos de Prometeu e de Sísifo, pretende-se demonstrar que o pensamento trágico deve seu desenvolvimento e sua afirmação como um dos traços mais marcantes da arte, da filosofia e da cultura da Antigüidade a uma identificação que lhe é anterior e ainda mais remota: a constatação de que o homem não é apenas o animal capaz de conhecer, mas é também aquele que se encontra submetido ao conhecimento. Sendo o conhecer uma sua capacidade, e, por outro lado, não o tendo escolhido nem podendo ver-se livre dele, o homem antigo e grego sente e pensa essa dualidade como a própria e mais radical condição do humano, idéia comum aos mitos aqui referidos. O caráter predominantemente trágico de todo o ideário grego vai-se elaborando em torno dessas idéia e condição, percebendo com acuidade que de todos os entes é o homem o mais trágico: pois trágica é a existência inteira, porque paradoxal e absurda; mais ainda, porém, a vida do homem que sabe disso e não está livre de o saber. Mas o mesmo conhecimento que nos torna conscientes do sentido trágico da existência será também o principal elemento de que o homem dispõe para esquivar-se de sua tragédia, afirmando-se como arte. Filosofia da arte, tragédia, mitologia grega. Vaso Borghese (detalhe). Museu do Louvre, Paris, França. Na representação em detalhe vê-se um sátiro sustentando Sileno que, embriagado, parece querer utilizar do vinho (notem-se as uvas no plano superior) como artifício para o esquecimento de sua célebre e trágica sabedoria. Temos aqui a união de elementos muito caros à tragédia, desde a figura de Sileno – cuja consciência da mortalidade e do caráter trágico da vida rendeu-lhe, miticamente, o galardão de ter fundado o que seria o início remoto e ancestral da representação e sobretudo do ideário trágicos, pelo que se fez costume situar a origem arcaica da tragédia em torno de sua figura – até a presença implícita de Dioniso, deus do vinho e da embriaguez e a quem se dedicavam as peças teatrais. Aqui, Sileno usa da força embriagante e dionisíaca como lenitivo para seu conhecimento trágico, numa alegoria que ajuda a compreender o efeito catártico e afirmativo almejado pela encenação das antigas tragédias.

Para que enxergar, se nada poderia ver que me pudesse ser prazeroso? Sófocles, em Édipo Rei Olhos abertos para o mundo e para si mesmo, o homem vê. Esse olhar garante-lhe experiência irrecusável e determina, imediatamente, certa compreensão acerca do mundo de que faz parte. Não são momentos distintos, mas um mesmo e só ato. Sua visão é o que ele é. É o fulcro a partir do qual se reconhece e a fonte de que nutre seu pensamento. Ser homem é interpretar; é ter que assumir sempre e continuamente uma visão acerca do que é visto. E ter de fazê-lo tão radicalmente, que, em nem um só instante de sua existência, ele poderá se subtrair a essa sua condição. O homem vê, sente, pensa e conhece independentemente de sua vontade. Não o escolheu, nem está livre disso. E

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tampouco dispõe de poder para alterá-lo. Não é apenas uma capacidade, mas também uma condena. Obrigado a ver e interpretar o que vê, o homem não é apenas um animal capaz de pensar e conhecer, abrindo-se assim à compreensão da vida em que vê imerso cada poro de toda a sua sensibilidade. Mais do que capaz, ele se encontra submetido a essa sua condição. É, possivelmente, seu mais radical poder. Um poder contra o qual toda a sua potência nada pode. Capaz desse olhar e a ele submetido, o que ele vê nem sempre lhe é agradável ou dá prazer. Pelo contrário, a abertura para o conhecimento da natureza e do caráter da existência não raro lhe traz um travo amargo à boca. São momentos em que o homem maldiz seus olhos, como na epígrafe de Sófocles aqui apresentada. Reconhecer a morte como vocação de tudo o que vive, podendo, assim, prever sua própria extinção, e saber-se finito são exemplos em que aquilo que conhece e é obrigado a reconhecer trai e contradiz o mais profundo de seus interesses, seu desejo de vida. Nessa contradição, seu sofrimento; e a abertura para a antevisão de uma série de paradoxos que marcam o que o homem é. Essa experiência de contradição define aquilo que o ideário grego nomeou com a palavra “tragédia”. Antes e mais do que ser a grandiosa arte que conhecemos, a tragédia é uma idéia: uma determinada concepção de mundo e uma determinada compreensão da vida humana, um certo modo de olhar para ela. Partindo da análise dos mitos de Prometeu e de Sísifo, pretendo mostrar que o pensamento trágico deve seu desenvolvimento e sua afirmação como um dos traços mais marcantes da arte, da filosofia e da cultura da Antigüidade a uma identificação que lhe é anterior e ainda mais remota: a constatação, como já aludi, de que o homem não é apenas o animal capaz de conhecer, mas é também aquele que se encontra condenado ao conhecimento. Sendo o conhecer uma sua capacidade, e, por outro lado, não o tendo escolhido nem podendo ver-se livre dele, o homem antigo e grego sente e pensa essa dualidade como a própria e mais radical condição do humano, idéia comum aos mitos aqui referidos. O caráter predominantemente trágico de todo o ideário grego vai-se elaborando em torno a essas idéia e condição, percebendo com acuidade que de todos os entes é o homem o mais trágico: pois trágica é a existência inteira, porque paradoxal e absurda; mais ainda, porém, a vida do homem, que sabe disso e não está livre de o saber. Da promessa de Prometeu, o penhasco, o peso e a pedra de Sísifo. Curiosamente, o mesmo conhecimento que nos torna conscientes do sentido trágico da existência será também o principal elemento de que o homem dispõe para esquivar-se da sua tragédia, seja através do saber, seja através dos truques que nos promete. O conhecimento, também ele, atinge com isso seu paradoxo: tanto condena quanto liberta; oprime e eleva. Da promessa de Prometeu, os truques e ardis de Sísifo.

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I Os mitos de Sísifo e Prometeu têm muito em comum. Principalmente o fato de que ambos roubam e enganam e de que, ao roubar e enganar, atestam sua criatividade; sua arte em elaborar truques e ardis capazes de sabotar as regras do jogo da vida. Prometeu rouba o fogo da forja de Hefesto para entregá-lo aos homens, fazendo destes criaturas completamente distintas daquelas que eram até então. Prometeu, criador do homem. Quanto a Sísifo, uma de suas criaturas, rei de Corinto, dentre tantas histórias em que suas artimanhas lhe garantem sucesso, destaca-se uma em que consegue a proeza máxima de deter a morte por algum tempo, roubando da dinâmica do mundo sua principal engrenagem. Note-se que Sísifo e Prometeu reinventam o mundo, querem-no outro. Há no gesto de cada um deles uma decisão pela akosmía, um desejo de transgressão da ordem do cosmo. Uma tentativa de alterar ou mesmo corrigir o mundo. Para os deuses todos, um sinal de desmedida audácia e grande insolência. Por isso serão punidos. Mas o que os leva a essa cisão com a natureza das coisas estabelecida pelos deuses? O que os leva à decisão de afrontar essa ordem? A vida tal como ela é. A vida tal como a vêem. E isso, por sua vez, só lhes é possível porque conhecem. Conhecendo, reconhecem aquilo que julgam ser o efetivo caráter da existência: o trágico. Significa dizer que a transgressão só é possível por ser consciente. Ela só é viável por causa do conhecimento. Se Sísifo, por exemplo, não conhecesse a morte, como e por que quereria aprisioná-la? Que outro animal poderia fazê-lo senão o homem? O trágico reside, portanto, no conhecimento. E mesmo que esse conhecimento indique, ele próprio, essa tragédia como o cerne real da existência, que acuse que esse caráter trágico independe do olhar que o testemunha, uma vez que não é definido nem criado por ele, ainda assim o trágico pertence ao conhecer. Que a vida de todos os entes seja absurda é uma coisa. Mas sabê-lo é o que efetiva a tragédia, é ter dela o modo da experiência que só a consciência pode conferir. E, quanto a isto, o homem encontra-se só. Fora do ideário grego, o mito talvez mais próximo dos de Sísifo e Prometeu é o de Adão e Eva. A despeito da clássica interpretação cristã sobre esse mito judaico, não se trata de um mito sobre o pecado e a pretensa obscenidade do sexo. A história de Adão e Eva versa sobre o mesmo elemento que faz o cerne dos dois mitos gregos aqui em baila: trata-se de um mito sobre o conhecimento. Sobre o conhecimento como condição do homem e das conseqüências imediatas dessa condição. Melhor: de como a essa condição pertence a uma série de outras que perfazem, em conjunto, a humanidade do homem. Tendo provado do fruto da árvore do conhecimento, o homem saboreia o saber. Segundo o próprio relato bíblico, a desventura dessa mordida consiste em não poder mais deixar de distinguir o bem e o mal. Arremessado a essa dualidade, não partilhada pelos outros seres, o homem se abre para o conhecimento da sua própria natureza e para o caráter mais radical de tudo o que vive. Conhecimento é distinção, e distinção, dualidade. Aqui ele encontra sua tragédia. A expulsão do paraíso não se refere a ter sido transladado deste para aquele mundo. Refere-se à abertura de seus olhos. Vêem, agora, a vida a fundo, e o que eles

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mostram não é agradável. O paraíso e o lugar da queda partilham um e o mesmo chão. Toda a diferença reside no olhar. A diferença é o conhecimento. É interessante notar como Prometeu, benfeitor dos homens, pode ser tragicamente interpretado como seu malfeitor. Doando-lhes conhecimento e ensinando-lhes as várias artes que o conhecer promove, ele impõe ao homem aquela consciência trágica já mencionada. Em Prometeu acorrentado, de Ésquilo, o Titã mostra-se claramente ciente disso em seu diálogo com Io, uma humana transformada em novilha. Diz, reiteradas vezes, que é melhor não lhe revelar o que sabe sobre seu destino, pois isso intensificaria em muito suas dores. Vemos aqui a repetição, tal como nas célebres histórias de Sileno, da idéia de que o conhecimento é causa do sofrimento e que, quanto mais se sabe, mais dói. Num paralelo com o mito judaico, poder-se-ia dizer que Prometeu é a serpente e promete-nos a “maçã”. Outro traço marcante das várias versões do mito de Prometeu é a relação que mantém com seu irmão, Epimeteu. Incluído nas aventuras e desventuras que opõem Prometeu e Zeus, Epimeteu entra em cena para auxiliar o irmão, mas só consegue atrapalhá-lo, favorecendo, involuntariamente, o poderoso Crônida. Os irmãos são apresentados nos mitos como radicalmente opostos, tendo cada um deles o nome que resume o que são: se “Prometeu” significa “aquele que vê antecipadamente”, o significado de “Epimeteu” diz justo o contrário. Se aquele, por esse seu caráter, é capaz de elaborar e executar planos complexos de forma decidida e precisa, este é o próprio fracasso, mostrando-se confuso e incerto em todos os seus atos. Tem-se, enfim, a idéia de que um é exatamente o avesso do outro. A mim parece, contudo, que o mito refere alegoricamente ao fato de que o conhecimento, o pensar, exige decisão. Uma árvore, por exemplo, não decide, não pondera se deve este ano dar seus frutos ou não durante a mesma estação do ano, como faz sempre. O

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Peter Paul Rubens. Prometeu acorrentado, 1618 (Museu de arte da Filadélfia, EUA).


conhecimento, porém, transforma a decisão em algo inevitável. E como decisão é cisão, decidir é sempre um ato de ruptura, um gesto de exclusão, um toque que abre sempre dois mundos. Talvez por isso, diante do presente tema, deparemos sempre tanta dualidade, tanto paradoxo. Como se o conhecimento, ao tocar a vida, marcasse-a sempre com dois dedos, jamais com um só. O conhecimento não é unívoco, a despeito de ser isso o que tanto ambiciona. Pelo contrário, mostra-se sempre e inevitavelmente equívoco. Pareceme, uma vez mais, que é esta a idéia que o mito deseja transmitir. Prometeu e Epimeteu são um e o mesmo, faces de uma mesma moeda. Por isso são apresentados como irmãos. O pensamento é faca de dois gumes, isto é, necessariamente equívoco. Tem seus momentos de Prometeu, tem seus momentos de Epimeteu. O conhecimento finca os pés na ambigüidade, pois decide versões para um mesmo ato. Não é Epimeteu que, desastrado, deixa que se abra a caixa de Pandora. É o conhecimento, reconhecendo, a partir do seu poder de distinção, os males e as mazelas da vida. Não tivesse aberto seus olhos... caixa fechada! O conhecimento reconhece e distingue. Eis o problema da interpretação. Nas tragédias gregas, o conhecimento como revelador do trágico da existência, como poder, enfim, que efetiva a tragédia, é uma idéia, uma compreensão que se traduz através do recurso estético de impor à história encenada no palco um determinado momento de guinada, em que o sofrimento se acentua e a consciência da tragédia humana se torna tão mais radical quanto irrecusável: a tomada de consciência sobre um fato antes ignorado. É nesse momento da trama que o personagem principal, o herói trágico, experimenta sua derrocada, sua vertiginosa queda. Conhecer é cair. É ser expulso do paraíso da ignorância. A consciência mostra o peso da existência, concebe toda a sua extensão e seu caráter finito. Compreende o que a morte significa e, ao fazê-lo, atira-nos num jogo de contradições intermináveis. Sendo que a principal delas consiste em estar ciente de que nossa vida é uma luta, que lutamos, enfim, para ser, mas somos, contudo, para morrer. Nossos esforços de afirmação constroem passo a passo nossa negação mais radical. E aquilo que nos nega, que nega o que mais calorosamente desejamos, afirma o que em nós é degeneração. E o degenerar, a corrupção de toda e qualquer ordem, é o que compromete o humano, é o lugar privilegiado de seu sofrimento e suas dores. Isso odiamos e chamamos de “feio”. A morte, a doença, a velhice, a fraqueza, a covardia, a debilidade. Também aqui o mito de Prometeu parece-me certeiro, mostrando essa degeneração como o elemento que promove um esmaecimento das forças vitais, o lado mais terrível e comprometedor da humanidade do homem. Participar de seu sofrimento desanima todo aquele que o presencia. Consoante as distintas versões a respeito do mito, Prometeu ora é apresentado como imortal, ora como mortal. Essa segunda versão é minoritária e conta que Prometeu teria conquistado a imortalidade quando de sua libertação do rochedo por Héracles. O centauro Quíron, que o guardava, tendo sido atingido pelas flechas do filho de Zeus, preferia a morte à dor imposta pelos golpes sofridos, tão lancinante era. Sua desgraça, porém, era a

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imortalidade. Precisava, então, de alguém que trocasse de condição com ele, e Prometeu ofereceu-lhe esse favor, tornando-se imortal. Essa segunda possibilidade, em que Prometeu é apresentado inicialmente como mortal, parece-me antes querer frisar que, desde sua simpatia com o humano, ele se humaniza, confundindo-se com aqueles que tanto ama. Como se essa fusão amorosa tivesse força suficiente para alterar sua própria natureza e transgredir sua constituição mais íntima. Por fim, as torturas e humilhações a que é submetido, jogam-no de vez no universo humano, aproximando-o de nós, aproximando-o da mortalidade. É ao homem que Prometeu expõe seu fígado. Olhando-o, reconhecemo-nos nele. Essa proximidade é ressaltada também pelas versões do mito em que Prometeu é afirmado como o próprio criador do gênero humano, modelando-o a partir do barro. Se os homens, seus filhos, apresentam tais e tais características, é porque as herdaram de seu pai. O gene não nega: confirma. En Prometeu acorrentado, Ésquilo manuseia com grande arte essa aproximação entre o Titã e o humano. O autor oferece-nos um modelo singular de tragédia. É a única tragédia que conhecemos cujos personagens são todos divinos. A única exceção é a virgem Io, transformada em novilha por Hera, enciumada por causa do interesse de Zeus por sua beleza e virgindade. Mas Io representa na peça uma personagem secundária. Uma tragédia com deuses... Há aqui uma espécie de contradição? Porque, pelo fato mesmo de o trágico ser radicalmente humano, os heróis trágicos, os protagonistas são e têm que ser necessariamente humanos. Só nessa peça – e supostamente nas outras duas que compõem a trilogia, infelizmente perdidas – essa posição é ocupada por um deus. Parece-me uma vez mais um artifício pelo qual Ésquilo acentua esse processo de humanização do Titã tão afeiçoado aos homens, como se tivesse se contaminado pelo caráter e natureza deles a um ponto tal, que passa a partilhar daquela que é a sua condição: a tragédia. No fundo, tal como todas as demais, trata-se de uma tragédia em que o humano é o protagonista. Entende-se, com tudo isso, por que ambos os mitos aludem à presença da pedra. Sísifo carrega uma enorme pedra penhasco acima, penhasco abaixo. Fora o carregá-la, esse “simples” movimento de oscilação funciona como alegoria dos extremos humanos e de como a contradição, o paradoxo e o sentimento de uma absurda falta de sentido encontram-se fincados em seu ser. Prometeu também possui sua pedra, a enorme rocha a que se encontra preso. Mais do que isso, essas punições são descritas pelos mitos como eternas. As punições são sempre eternas. Com isso, os mitos gregos querem aludir à universalidade dos seus personagens. Sísifos somos todos nós. Ele morrerá, mas repetiremos sua história, sua sina. Não o ente, mas a entidade é que está em jogo. A eterna punição refere-se, alegoricamente, ao intransponível de nossa condição. O espaço, o tempo, a história, a cultura, todos são fatores que alteram muitos e muitos aspectos da existência humana.

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Mas esse seu cerne, sua condição, sua tragédia, repete-se a cada vez sob novas formas: cada história singular de um homem ratifica essa humanidade.

II Mas será mesmo isso e só isso? Quero dizer: que o conhecimento só nos atira às masmorras do trágico? Que é somente queda sem prometer, jamais, nenhuma ascensão? Que, sendo em nós condicionamento, apenas nos escraviza? Se seu toque é dual e ambíguo, fazendo do homem um ser visceralmente agonal, não será legítimo esperar dele uma contrapartida qualquer, uma liberdade possível em meio à escravidão? Sim, esperar. Esperar os truques e artifícios que essa contrapartida pode oferecer, transgredindo e superando o insuperável dessa condição. O nome dessa contrapartida é arte. Mas em que sentido e com qual amplitude? Se o conhecimento abre ao homem o escarro de sua própria condição, mostrando-lhe sua dureza e tenacidade, é também por isso que a consciência se sabota, interessada em sua sobrevivência. Por isso a mentira, o falseamento, a arte, são a verdade do homem. Enganamo-nos porque, de outro jeito, abreviamos vida. Esperança é o nome primeiro desse engano. Dessa ilusão benfazeja, promotora da vida. Ela trai a condição do humano. É, talvez, nossa mais elementar e primeira arte, combustível e ponto de partida de todas as demais. A arte surge, aqui, como extensão imediata e irrecusável do conhecimento. Com efeito, são ambos apenas modulações de um mesmo, radicalmente copertinentes: o que seria do engenho humano sem sua expressão? Resulta perguntar: como haver efetivamente conhecimento se ele não se realiza? A arte é essa realização. Do fole que conjuga num só ato engenho e arte engendra-se a artificialidade da condição humana. Nessa perspectiva, todo homem é, constante e necessariamente, artista. Não surpreende, por exemplo, que o homem tenha sido e continue a ser, historicamente, religioso. E aqui não se deve esquecer o caráter religioso da tragédia ática que, expondo de forma intencionalmente exagerada o trágico humano, visa a sua redenção, a sua catarse, à transgressão daquele insuperável. A religião também é uma arte, um artifício, um processo de auto-enganação. E garanto que essas palavras nunca foram tão elogiosas como estão sendo agora. É um sintoma “humano, demasiado humano” de nossa necessidade de criação, da necessidade de lenitivos para o desconsolo que a consciência nos aponta. De que importa, diante disso e visto a partir dessa perspectiva, que tudo isso possa ser falso, que seu conteúdo não convença nossa razão tão bem exercitada? A verdade, aqui, não passa de um detalhe. Uma vaidade até. O discurso fantástico, característico do discurso religioso, é seu elemento mais próprio porque se torna contingência inelutável da audácia desse discurso: como narrar o que não se vê? Como descrever aquilo que nem um só poro dos sentidos, qualquer um deles, já experimentou? Então o homem fabula, inventa. Como sempre o fez, desde a origem dos tempos. O que ele busca com isso? Apenas seguir.

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Se a promessa de Prometeu, o conhecimento, é o que impõe a nós, Sísifos, o peso e a pedra, ela também nos promete as artes e os truques com que Sísifo dribla as dores do viver. Tanto a submissão como a redenção diante de nossa condição, tanto o trágico como a esperança de superá-lo entram em cena no palco da tragédia. Ambos são funções do conhecimento. E o conhecimento executa-se como arte. Essa arte de que dispomos, os nossos artifícios, visam justamente à transgressão daquilo que nos oprime. As várias versões desses dois mitos coincidem entre si e em relação a si mesmos num ponto crucial: na insistência pela transgressão como motivo das punições que Prometeu e Sísifo sofrem. Porque é pela transgressão que saltamos – tanto quanto possível – a condição a que estamos submetidos. A vida humana é essa luta, o oscilar ao longo desses extremos. A transgressão nos é própria, irrecusável. Trata-se do domínio dentro do qual vigoramos. Sísifo prende a morte. Ele tenta o impossível. Sua punição, no fundo, não lhe advém do exterior: ele estica a corda ao máximo, mas, elástica, ela não arrebenta: volta-se contra ele. O intransponível é a barreira que o homem tenta ultrapassar. E não poderia ser diferente posto que, do contrário, não seria ele, o homem. A transgressão pode ser entendida como erro, abordando-a desde a perspectiva que a mostra como um falseamento do verdadeiro caráter da vida. A transgressão é o erro de Sísifo, mas também sua arte. O mito transmite a idéia de que o homem é o animal cuja natureza consiste em ser artificial. Tentando trair sua condição, ele, paradoxalmente, não a nega – afirma-a. Tem-se então que a tragédia, em toda a sua amplitude, guarda nossa condição. Inclui nela não apenas a consciência trágica, mas também a esperança, nosso artifício para burlá-la. Então estamos diante da curva do conhecimento: aquele que condena é também o que redime. Penso-a como a parábola de uma função quadrática: o efeito imediato do conhecer, do reconhecer o trágico em nossas vidas, é a queda, uma derrocada brusca até o ponto em que essa consciência e sua dor correlata atingem seu máximo, nesse caso, o mínimo da função quadrática. A partir daí, ergue-se a possibilidade de ascensão, igualmente consciente. Todos os incontáveis pontos da parábola são possibilidades do conhecimento. O que fazemos com ele para que possa remediar o irremediável é a arte de cada um de nós, os artifícios com que contamos para nos situar nessa luta, para nos situar, na parábola, no ponto mais feliz que ela nos possa proporcionar. Porque, desde sua ambigüidade fundamental, o conhecimento decide, como já visto. Decide, aliás, até qual a relação que ele pode estabelecer com a sua condição trágica. Há um verso de Tom Zé que diz “na vida quem perde o telhado ganha em troca as estrelas”. Assim como há, em Tutaméia, de Guimarães Rosa, uma situação em que pai e filho vislumbram o desabamento de sua casa. Quem decide ver nesses atos unívoco se

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se trata da demolição da casa ou da construção do terreno, da perda de um telhado ou do ganho das estrelas, é o homem. Pois que decida pelo que mais lhe favorece! O que ele, aí lançado, prefere? Diante do unívoco, a equivocidade humana é seu erro e sua arte, sua estatura e solução. Eis aqui o espaço da liberdade humana. Não a potência capaz de alterar as regras do jogo. Não a força capaz de destroçar os grilhões a que Prometeu se encontra preso. Nem tampouco a pulverização das pedras que carrega ou dos rochedos que sustenta. Mas sim a arte de estabelecer, no espaço exíguo de sua relação com a pedra, isso a que chamamos felicidade: um impulso, um desejo que orienta sem precisar ser pensado. Mas que só se conquista na construção positiva, na afirmação de sua arte, seu ponto de liberdade. Saber que posso impor, na relação com a pedra, o modo que me convém e o jeito que me favorece. E a arte, para o homem, é também seu trabalho. É sorrir diante da pedra. Seu erro, seu desvio, seu impróprio é também sua grandeza, o espaço em que manifesta sua criatividade. Errar é ser grande: cultivar cactos como se fossem rosas. A transgressão é erro e artifício. Insisto: animal cuja natureza consiste em ser artificial, o homem, essa madeira de ferro, encontra em seu erro sua errância, toda a sua extensão e amplitude. O paradoxo é o lugar do homem. E, como escreveu certa vez o pintor e poeta português Almada Negreiros, “a cruz é o espaço em que todo homem cabe”: ali, exato, de braços abertos. Hirto e esticado, ereto, o homo sapiens e erectus expõe toda a sua amplitude, de uma ponta a outra, de um extremo ao outro. O impróprio é próprio, o inautêntico é autêntico. Na cruz o cruzamento, o encontro desses dois sentidos. O nó que não se desata. O nó que o mantém é sua coluna. Vida de homem é, ao mesmo tempo, doação, zoé, e luta, bíos. O cruzamento desses dois significados. A língua grega atesta essa dualidade paradoxal. Mas só a aplica ao homem. Todos os demais seres, incluídos os deuses, têm da vida apenas a dádiva, zoé. A desmedida é própria do homem e amplifica seu tamanho, sua estatura. Uma vez mais paradoxalmente, a desmedida estende sua medida. E tudo isso porque o homem conhece. Conhecer é interpretar, interpretar é errar. Necessariamente. Colher de um único ato várias visões, diversos ângulos. E também isso não se escolhe: é o que o homem é. Diz-se, comumente, que “errar é humano”. Essa frase diz muito do que somos, mas, infelizmente, costuma ser pronunciada de forma vazia, sem termos uma noção mais aguda sobre seu conteúdo. Significa: nenhum outro erra. E que, sendo homem, erra-se, inevitavelmente. Diante da ausência do erro, estamos diante de qualquer outra coisa que não o humano. Por isso é que o erro não deve ser moralizado. E é também por isso que deve ser afirmado como nossa verdade. O homem erra, anda a esmo, pela extensão dessa amplitude, todo esse largo intervalo que, como todo intervalo finito, pode ser infinitamente explorado. O homem inventaria-se. Eis aqui perfeito o círculo do seu éthos, circunscrito, como tudo que se move, por forças antagônicas – a luta.

A promessa de Prometeu e o dilema de Sísifo Alexandre Costa

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Sobre sua arte e seus artifícios, parece-me que um caso singular nos é oferecido pelo fato de o homem deter, como se fosse uma carta escondida na manga, a possibilidade do suicídio. Assim como tudo que possui vida, nosso corpo quer sobreviver, perpetuar-se. É um saber que ele carrega consigo, uma força em si mesma inviolável. Por essa causa, é impossível matar-se tapando o nariz. Logo a boca sabotará essa intenção. É irresistível. Isso demonstra a tensão entre o impulso do corpo e uma vontade possível a nossa criatividade, a nossa capacidade de decidir, de fazer cisões. Cindimos com a vida, podemos fazê-lo. Mas a força para tal, o artifício que o logre tem de ser dos mais violentos. Puxar o gatilho do revólver. Envenenar-se a ponto de não poder voltar atrás. É a força de zoé digladiando com bíos, a vida que também se chama arco e violência (bía). É essa força, junto com Crátos, o poder, que acorrenta Prometeu a seu rochedo. Por isso o suicídio é também um grande ritual: deve concentrar-se, acumular uma força enormemente estúpida a ponto de superar aquela outra que nos estica para o outro lado. Uma, a da decisão e da arte: artificial, consciente e voluntariosa. A outra, a do corpo: vivaz, vital, arracional e impulsiva. Criamos armas para matar nossos iguais. Mas também para matarmo-nos. E, uma vez mais, manipula o homem a natureza, sabotando-a. Nega-se, mas, negando-se, afirma-se. O suicídio, uma grande arte. Singular, porém, porque aqui o conhecimento e a arte operam para acelerar a destinação contra a qual empregamos, geralmente, todo nosso engenho e toda sorte de truques. Olhamos para Sísifo e vemos suas feições cansadas. Conhecemos sua fadiga, pois a reconhecemos como nossa. A falta de sentido do seu trabalho incessante e infindo impõenos, a contragosto, um espelho diante de nossas faces. E, diante de seu maior castigo, o trabalho inútil e desesperançado, o que esperamos? Senão de nós mesmos o engenho de criar uma solução para o insolúvel, enganando a vida ao criar o sentido que ela não nos oferece? Quando os homens celebram suas saturnais, entoando odes ao tempo que os macera, sim, a Krónos e Chrónos que nos devoram, quem não dirá com toda a certeza do rubor dos deuses e de sua inveja ante tamanha... loucura? Também de louco é acusado sistematicamente Prometeu ao não ceder jamais aos apelos para que se curve diante de Zeus. Sua loucura, chamada por muitos de arrogância e desmedida, faz de Prometeu um herói maior, empresta pedra a sua envergadura. Tão inquebrantável quanto o adamântio de suas correntes, não se curva e não será vencido: “Zeus cairá”, ele repete. E cairá ante um artifício seu: um segredo que utilizará habilmente como moeda de troca. Sim, são séculos incontáveis de dores atrozes e humilhantes, mas como calcular seu prazer e regozijo na vitória final diante daquele que lhe é... mais forte? E isso, sem lhe ter cedido! O desprezo de Prometeu por Zeus é o que faz dele o que ele é, metáfora para a força do homem erguendo-se contra o inelutável de sua condição: um monumento de si mesmo. Cito, a título de ilustrar o teor dessa firmeza, o poema Prometeu, de Goethe:

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Prometeu

Prometheus

Cobre teu céu, Zeus,

Bedecke deinen Himmel, Zeus,

Com vaporosas nuvens

Mit Wolkendunst

E exercita-te, qual menino

Und übe, dem Knaben gleich,

Que cardos decepa,

Der Disteln köpft,

Em carvalhos e picos de montanha:

An Eiche dich und Bergenshöhn

Minha terra, porém,

Muss mir meine Erde

Tens de ma deixar

Doch lassen stehn

E minha cabana, que não construíste,

Und meine Hütte, die du nicht gebaut,

E meu lar,

Und mein Herd,

Cujo braseiro

Um dessen Glut

Tu me invejas.

Du mich beneidest.

Nada conheço de mais pobre

Ich kenne nichts Ärmeres

Sob o sol do que vós, deuses!

Unter der Sonn als euch, Götter!

Vós que nutris miseravelmente

Ihr nähret kümmerlich

De ofertas de sacrifícios

Von Opfersteuern

E hálitos de orações

Und Gebetshauch

Vossa majestade

Eure Majestät

E que morreríeis famintos, não fossem

Und darbtet, wären

Crianças e mendigos

Nicht Kinder und Bettler

Tolos cheios de esperança.

Hoffnungsvolle Toren.

Quando eu era menino,

Da ich ein Kind war,

Não sabia para onde me virar,

Nicht wusste, wo aus noch ein,

Voltava então meus errantes olhos

Kehrt ich mein verirrtes Auge

Ao sol, como se ao alto houvesse

Zur Sonne, als wenn drüber wär,

Um ouvido para escutar o meu lamento,

Ein Ohr, zu hören meine Klage,

Um coração como o meu,

Ein Herz wie meins,

Que do aflito se compadecesse.

Sich des Bedrängten zu erbarmen.

Quem me ajudou

Wer half mir

Diante da insolência dos Titãs?

Wider der Titanen Übermut?

Quem me salvou da morte,

Wer rettete vom Tode mich,

Da escravidão?

Von Sklaverei?

Não foste tu mesmo que tudo perfizeste,

Hast du nicht alles selbst vollendet,

Sagrado e ardente coração?

Heilig glühend Herz?

Enquanto ardias, jovem, bom e enganado,

Und glühtest, Jung und Gut,

Tuas graças de salvação

Betrogen, Rettungsdank

Ao dormente deus no alto céu?

Dem Schlafenden da droben?

Eu, honrar-te? Pelo quê?

Ich dich ehren? Wofür?

Suavizaste alguma vez as dores

Hast du die Schmerzen gelindert

A promessa de Prometeu e o dilema de Sísifo Alexandre Costa

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Do oprimido?

Je des Beladenen?

Enxugaste alguma vez as lágrimas

Hast du die Tränen gestillet

Do angustiado?

Je des Geängsteten?

Não me forjaram homem

Hat nicht mich zum Manne geschmiedet

O onipotente Tempo

Die allmächtige Zeit

E o eterno Destino,

Und das ewige Schicksal,

Meus e teus senhores?

Meine Herrn und deine?

Presumiste talvez

Wähntest du etwa,

Que eu deveria odiar a vida,

Ich sollte das Leben hasse,

Retirar-me aos desertos,

In Wüsten fliehen,

Por nem todos

Weil nicht alle

Os sonhos em flor terem maturado?

Blütenträume reiften?

Pois eis-me aqui a formar homens

Hier sitz ich, forme Menschen

À minha imagem,

Nach meinem Bilde,

Uma estirpe que me seja igual:

Ein Geschlecht, das mir gleich sein:

Para sofrer, para chorar,

Zu leiden, zu weinen,

Para gozar e alegrar-se,

Zu geniessen und zu freuen sich,

E para não te respeitar,

Und dein nicht zu achten, wie ich!

Como eu!1

1 Tradução minha, para este ensaio.

Prometeu e Sísifo. Museu do Vaticano, Itália. Alguns especialistas consideram que a cena pode também representar Atlas e Prometeu, irmãos punidos por Zeus após a guerra entre olímpicos e titãs. Em todo caso, vale notar que os três personagens em questão têm os seus mitos estreitamente ligados por elementos comuns, como a punição e o castigo, por um lado, e o estar preso a rochas e pedras ou o ter que sustentá-las, por outro.

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Esse desdém com que Prometeu encara sua condição é força que faz dele maior que aquele que o condiciona. Assim, também Sísifo, se puder e souber sorrir, se grandiosa for sua arte, será também ele maior que sua pedra. Não, atinge mais seu peso. Tanto maior será o feito, quanto mais consciente se está desse jogo e de suas regras. E de nosso esforço por transgredi-los. Como assevera Camus, “a clarividência que deveria ser seu tormento consuma, ao mesmo tempo, sua vitória. Não há destino que não possa ser superado com 2 Camus, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro, Record, 2005: 139.

o desprezo”.2 Não há sol sem sombra. Mas se o homem é aquele que decide e tem sempre que decidir, o que o impede de escolher o sol? Ele está livre, desde as entranhas que o detêm, desde a sua não-liberdade, para iludir-se, para errar! Se a destinação final já nos é sempre conhecida, e somente porque nos é cognoscível, então a fatalidade da morte é sabida como a saída inevitável, o termo de que não há fuga possível. Diante dessa inexorabilidade, qualquer coisa há de ser, sempre e paradoxalmente, exercício de liberdade. Diante da acachapante e unívoca realidade, que é morte, o homem sonha. Sonha como Sísifo em retê-la. Sonha em ser imortal, ainda que o saiba inútil sonhar. Mas assim recupera sua vida, o prazer de estar vivendo apesar dessa sua verdade. A mentira o redime. O falseamento que nega e transgride também é a reafirmação de sua condição mais visceral. Que todo homem seja artista é condição da qual ele mesmo, o homem, não escapa: a arte é seu ofício por e de excelência.

Alexandre Costa é bacharel e licenciado em História pela UFF, mestre em Filosofia pela UFRJ. Teve sua primeira passagem acadêmica na Alemanha em 1996 e 1997 como estudante da Universidade de Freiburg. Depois, deu início ao doutorado em filosofia em Osnabrück. Ex-professor do Departamento de Filosofia da UFRJ, atualmente é professor da Casa do Saber, do Instituto Carioca de Gestalt-terapia e no ensino médio.

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Arquivos da memória: Aby Warburg, a história da arte e a arte contemporânea Claudia Valladão de Mattos

Nos últimos anos o campo da história da arte tem sido repensado por diversos estudiosos preocupados em elaborar uma crítica das categorias tradicionais da disciplina. Nesse contexto, a obra de Aby Warburg vem ocupando posição cada vez mais proeminente, uma vez que diversas facetas de seu pensamento fornecem pontos importantes de reflexão sobre a teoria e a prática das artes. Especialmente seu projeto Mnemosyne, inacabado no momento de sua morte em 1929, traz aspectos metodológicos de grande interesse para a historiografia da arte. O presente trabalho considera a relevância do pensamento e dos métodos de Warburg para a interpretação de uma parcela significativa da arte contemporânea a partir da análise da obra de dois artistas: Ron Kitaj e Wesley Duke Lee. Aby Warburg, história da arte, arte contemporânea.

Nas últimas décadas a obra de Aby Warburg tem sido posta no centro Aby Warburg. Atlas Mnemosyne, fotografias sobre cartolina preta, prancha 45, 1924-29 (Instituto Warburg, Londres). 1 Dirs, Michael; Girst, Thomas; Moltke, Dorothea von. “Warburg and the Warbugian Tradition of Cultural History”, in: New German Critique, n. 65, 1995: 59-73.

de uma revisão das formas tradicionais da história da arte. Essa centralidade do autor para nossa disciplina deve-se, como afirma Michael Diers, muito mais a “suas demandas específicas e a seu programa de trabalho do que aos resultados reais de suas pesquisas”.1 Nascido em 1866, primogênito de um rico banqueiro judeu alemão de Hamburgo, Warburg é agora principalmente lembrado como o idealizador e fundador da importante Biblioteca Warburg, hoje sediada em Londres, e como mentor da assim chamada “Escola de Warburg”, vinculada às atividades daquela biblioteca, que inclui importantes nomes da história da arte, como Erwin Panofsky, Fritz Saxl, Edgard Wind, Gombrich, entre outros. A relevância dessa “Escola” no contexto da disciplina História da Arte foi, no entanto, em parte a responsável pelo desconhecimento que se instalou, durante muitas décadas, em torno das pesquisas e verdadeiros objetivos de Aby Warburg, após sua morte, em 1929. Com o passar do tempo, o nome de Warburg foi sendo identificado com aquele de seus sucessores, e em especial com os métodos da iconologia de Panofsky, que, no entanto, eram bastante diferentes dos métodos por ele defendidos. Como diz Diers, enquanto Panofsky e seus sucessores preocupavam-se cada vez mais, numa performance erudita, com a decifração do significado do conteúdo representado em uma determinada imagem, eles paulatinamente também se afastavam das preocupações centrais de Aby Warburg, que,

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antes de tudo, voltava-se para questões de psicologia da imagem, isto é, para investigações a respeito das formas assumidas pelas imagens e das razões que determinam suas transformações no tempo. Nesse processo, a iconologia, enquanto ciência da imagem, pode ser absorvida com facilidade no espectro maior das metodologias tradicionais da história da arte, perdendo o caráter eminentemente crítico e, por assim dizer, subversivo inerente às concepções de Warburg. Vejamos então brevemente quais eram os pilares conceituais do programa original de Aby Warburg. Desde muito cedo, já em seus estudos sobre Botticelli para o doutorado em História da Arte defendido na universidade de Bonn, Warburg mostrou-se interessado pela questão da sobrevivência de formas de um tempo passado em outro.2 No caso do trabalho sobre Botticelli – e de muitos outros que empreendeu ao longo de sua carreira – esse interesse voltou-se para a investigação da sobrevivência de formas clássicas no contexto da cultura do Renascimento italiano. Enquanto estudava os quadros de

2 Warburg, Aby. “Sandro Botticelli’s Birth of Venus and Spring. An Examination of Concepts of Antiquity in the Italian Early Renaissance”, in: The Renewal of Pagan Antiquity, Los Angeles: Getty Research Institue, 1999: 89-156.

Botticelli em Florença, Warburg observou uma grande preocupação do artista em reproduzir os movimentos de vestes e cabelos de algumas figuras femininas, constatando que, para tal, ele havia tomado obras antigas como modelo, principalmente figuras de ninfas presentes em sarcófagos greco-romanos. O que intrigou Warburg, no entanto, foi a ênfase excessiva dada aos movimentos e seu caráter freqüentemente antinaturalista, que contradizia a idéia largamente aceita por acadêmicos do período de que a cultura do renascimento poderia ser compreendida como marcha segura em direção a um crescente naturalismo (afirmação que também aparecia em escritos da época, como os tratados de Alberti a Vasari). Essas observações levaram Warburg a pensar em uma motivação psicológica para a reutilização de determinadas formas antigas no contexto da cultura florentina do Quattrocento. Lemos, por exemplo, em uma das notas preparatórias de Warburg para sua tese de doutorado: Uma vez que é certo que, desde o começo do Quattrocento a demanda predominante com relação à representação da figura humana era o da fidelidade à natureza, temos o direito de considerar qualquer desvio arbitrário com relação a essa fidelidade – seja na repetição freqüente de motivos individuais ou na distorção não natural de um objeto – a manifestação de desejos insatisfeitos causados pela visão de mundo do período e dirigidos para um desfrutamento da vida. Devemos descobrir: 1) Esses traços em qualquer período dado, de forma a estabelecer sua fisionomia histórica. É necessário investigar se houve qualquer imitação de modelos anteriores. 2) A produção da arte como parte da vida de uma época.3

3 Gombrich, Ernst. Aby Warburg. An Intellectual Biography, Chicago: Chicago University Press, 1986: 47.

Ainda que indiretamente, já encontramos aqui formulado o conceito de Pathosformel, que Warburg passaria a usar a partir de 1905 para explicar sua concepção de transmissão de uma memória coletiva através de imagens.4 Esse modelo expandiu-se nos anos seguintes,

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4 Warburg mencionaria o conceito pela primeira vez em seu texto sobre Albert Dürer, em 1905.


tornando-se cada vez mais universal, até encontrar formulação definitiva no último projeto inacabado de Warburg, seu Bilderatlas Mnemosyne (Mapa de imagens da memória). O projeto Mnemosyne consistia em uma síntese de seu pensamento sobre a função psicosocial das imagens, organizada visualmente em 63 pranchas contendo fotografias que ilustravam a história da permanência de determinados valores expressivos, dotados de “força formadora de estilo” (stilbildende Marcht), que seriam transmitidos em forma de imagens, como um patrimônio sujeito a leis complexas de transformação e recepção. De acordo com a concepção de Warburg, as imagens seriam formadas por motivações psíquicas relacionadas a uma determinada época e carregadas para dentro de outras culturas, onde seriam remobilizadas em seus conteúdos psíquicos e reorganizadas em função do novo contexto. 5 Didi-Huberman, Georges. L’image survivante. Histoire de L’Art et Teps de Fantômes selon Aby Warburg, Paris: Les ‘Editions de Minuit, 2002.

Como observou Didi-Hüberman5 em seu livro sobre o autor, Warburg desenvolveu nesse projeto uma teoria da história calcada em temporalidade não linear, em que as imagens, portadoras de memória coletiva, romperiam com o continuum da historia, traçando pontes entre o passado e o presente. Funcionando como “sintomas”, no sentido freudiano, as imagens sobreviveriam e se deslocariam temporal e geograficamente, criando fenômenos diacrônicos complexos. Warburg conceberia as imagens como símbolos condensadores de uma memória coletiva, que circulariam através do tempo, reativando-se e modificando-se ao inserir-se em momentos históricos específicos. Para explicar essa sobrevivência da imagem passada em outras culturas, Warburg desenvolveu o conceito de Nachleben, ou pósvida, das imagens. Fritz Saxl, colaborador de Warburg, aproximou tal conceito da idéia de arquétipos de Jung. Didi-Huberman, no entanto, rejeitou tal aproximação, com argumentos semelhantes aos levantados pelo filósofo Giorgio Agamben de que “as imagens para Warburg [à diferença dos arquétipos de Jung] são realidades históricas, inseridas num processo de transformação das culturas, e não entidades a-históricas”. O Atlas Mnemosyne, como dissemos, tinha por objetivo esclarecer visualmente o processo complexo de circulação das imagens coletivas dentro da história da civilização ocidental, identificado por Warburg. Certamente esse mapa era incompleto para seu autor e necessitaria ser ampliado para abarcar as relações entre as diversas culturas de toda a humanidade – basta lembrar as comparações estabelecidas por Warburg entre a cultura primitiva

6 Warburg, Aby. Schlangenritual. Ein Reisebericht, Berlin: Verlag Klaus Wagenbach, 1995.

dos índios Hopi da América do Norte e a cultura florentina da época dos Médici.6 Na montagem, deixada incompleta por ocasião de sua morte em 1929, cada símbolo registrado funciona como um arquivo da memória coletiva, posto numa relação com todos os outros, formando grandes constelações que cruzam conceitos espaciais e temporais na história. A breve descrição dos métodos e do programa de Warburg permite vislumbrar as razões para o grande interesse que ele tem despertado em historiadores da arte determinados a proceder a uma revisão crítica dos instrumentos e métodos tradicionais da História da Arte. O modelo de Warburg resiste às visões da história e dos fenômenos

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de transmissão e imitação de modelos construídos tradicionalmente pela disciplina da História da Arte desde Winckelmann. A história da arte tradicional (ainda largamente praticada hoje em dia) sustenta uma noção linear de tempo expressa por uma supervalorização das etapas cronológicas observadas, tanto no contexto individual de criação artística quanto no processo de transmissão de modelos artísticos dentro de uma cultura. Associada a isso, uma concepção de progresso persiste, calcada num inevitável eurocentrismo. Também o mapa geográfico da história da arte, a divisão das produções diversas por escolas nacionais, por exemplo, encontra em Warburg um momento de grande resistência. Como diz Didi-Hüberman, o modelo de Warburg mostra-se capaz de provocar uma desorientação da história, promovendo a crítica das concepções tradicionais de História da Arte. O modelo de Warburg ainda apresenta outra vantagem, indispensável para pensarmos a arte de um ponto de vista contemporâneo. À diferença das concepções tradicionais da disciplina, que procuravam estudar o fenômeno artístico como elemento autônomo (ou semi-independente) de outros círculos da cultura, Warburg concebia a imagem como um espaço de embricamento de valores psicológicos, políticos, sociais, religiosos, visão, aliás, que ele emprestara de Jacob Burckhardt. Essa visão complexa do fenômeno artístico é essencial para compreendermos muitas das manifestações da arte contemporânea.

Ron Kitaij. Warburg como Mênade, óleo e colagem s/ tela, 1962 (Kunstmuseum Dusseldorf).

Aby Warburg e o campo da Arte O papel do historiador da arte como decifrador de imagens de uma memória coletiva implicava ainda uma revisão do papel tradicional do historiador da arte. Esse é um dos pontos importantes do argumento que desenvolverei a seguir, que tratará da aproximação entre os campos da criação artística e o da história da arte vislumbrada nas concepções de Aby Warburg. Analisando a obra de Warburg, Edgard Wind escreveria: Warburg estava convencido de que, em seu próprio trabalho, quando refletia sobre as imagens que analisava, realizava função análoga àquela da memória pictórica quando, sob a urgência compulsiva de se expressar, a mente sintetiza espontaneamente imagens análogas às das rememorações de formas preexistentes. A palavra Mnemosyne, que Warburg inscreveu à entrada de seu instituto de pesquisa, é para ser entendida neste duplo sentido: como um lembrete para o estudioso de que ao interpretar uma obra do passado ele está agindo como guardião de um depósito de experiência humana, mas ao mesmo tempo como um lembrete de que essa experiência é ela própria um objeto de pesquisa, que exige de nós o uso de material histórico para investigar como a ‘memória social’ funciona.7

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7 Diers et ali., op.cit.: 70.

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Warburg considerava que seu trabalho de decifração das imagens dependia de sua posição histórica específica e tinha consciência de estar atuando na cadeia de revitalização das imagens coletivas do passado, da mesma forma que o artista, ao criar sua obra. Wolfgang Kemp foi o primeiro a tratar desse paralelismo entre os métodos de Warburg e as manifestações artísticas de seu tempo, ao mostrar afinidades entre o projeto Mnemosyne e as fotomontagens surrealistas, ou as obras de um artista como Kurt Schwitters. De acordo com o autor, a comparação servia principalmente para argumentar que as montagens dadaístas e surrealistas eram também construtoras de significado e não apenas arranjos 8 Kemp, Wolfgang. “Benjamin und Aby Warburg”, in: Kritische Berichte, Jg. 3, 1975, Heft 1: 5 ss.

aleatórios de formas.8 A partir dessa aproximação, gostaria de considerar aqui brevemente a relevância do pensamento de Warburg para a produção de uma porção considerável da arte contemporânea: aquela que se propõe a investigar as estruturas da memória e o funcionamento dessas estruturas no contexto das sociedades atuais, isto é, que se interessam pelas questões do que poderíamos chamar de política da memória. Em artigo ainda inédito, apresentado na Unicamp em 2001, Siegrid Weigel descreveu da seguinte forma esse campo artístico: Com crescente nitidez, muitos empreendimentos artísticos não se entendem apenas como um trabalho com ‘história e lembrança’ (...) antes, eles também colocam as práticas materiais e simbólicas da própria memória no centro de seus trabalhos. Assim, a memória da arte

9 Weigel, Siegrid. “A Arte da Memória – Memória da Arte. Entre o arquivo e o Atlas de imagens, entre a alfabetização e o vestígio”, in: Seligmann-Silva, Márcio (org.), Memória da Arte - Arte da Memória, São Paulo: Ateliê, no prelo.

transformou-se na arte da memória.9 Em seu texto, Siegrid Weigel descreve obras de artistas recentes, como Jochen Gerz e Marina Abramovic, que tematizam a questão do arquivo, para em seguida mostrar as afinidades existentes entre esses trabalhos, que, de acordo com ela, encenam “passagens entre os objetos e suas alfabetizações na memória cultural” e o programa desenvolvido por Warburg em seu Atlas Mnemosyne. Gostaria aqui de apontar para relações estabelecidas entre processos de alguns artistas e aqueles de Warburg em período um pouco anterior, mas que talvez já compartilhassem muitas das questões abordadas pelas gerações recentes de artistas citados por Weigel. Meu argumento central é semelhante ao de Weigel e outros: as catástrofes do século XX funcionaram em larga medida como mobilizadoras dessa nova “arte da memória”. O intenso e perverso uso das imagens no contexto da Alemanha nazista e dos regimes ditatoriais experimentados ao longo do século, e principalmente os debates a respeito da preservação da memória dessas catástrofes, foram em grande parte responsáveis pelo profundo interesse que podemos identificar entre muitos artistas com relação aos processos da memória, às políticas da memória e ao funcionamento das imagens nesse contexto. São essas as mesmas questões que, postas por alguns historiadores da arte, trouxeram as proposições de Aby Warburg para o centro da cena de uma História da Arte de visão crítica no mesmo período. De certa forma, as reflexões a respeito da “arte da

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memória” (para usar o termo consagrado) ou, mais especificamente, o interesse por questões referentes à memória coletiva podem ser identificadas já nas obras de alguns artistas nos anos 60 e 70. Tratarei aqui, para concluir, de dois exemplos, um europeu e um brasileiro, que a meu ver confirmam o paralelo que estamos traçando com a obra de Warburg: Ron B.Kitaj e Wesley Duke Lee. A relação de Ron Kitaj com o universo intelectual de Aby Warburg é sem dúvida mais evidente que a de Wesley e comprova-se diretamente através de uma obra que o artista realizou em 1962, sob o título Warburg como Mênade. Segundo Martin Roman Deppner,10

Nesse período, Kitaj freqüentara a Biblioteca Warburg, interessando-se especialmente

10 Doppner, Matin Roman. Bilder als Kommentare R.B. Kitaj und Aby Warburg, in: Bredekamp, Horst; Diers, Michael e Schoell-Glass, Charlotte (org.). Aby Warburg. Akten des internationalen Symposions Hamburg 1990, Hamburg: Acta humaniora, 1990: 235-260.

pelo projeto Mnemosyne.11 O quadro apresenta elementos da obra e da personalidade de

11 Idem.

o quadro seria uma homenagem do artista a Warburg, cujo pensamento Kitaj estudou em profundidade durante seus anos de formação no Royal College of Art, em Londres.

Warburg articulados de forma sintética. O artista representou-o com corpo de uma Mênade, lembrando as pesquisas de Warburg sobre a questão do Pathosformel, e a cabeça do próprio Aby Warburg, recriada a partir de um retrato tirado durante sua estada nos Estados Unidos, em visita aos índios Hopi, uma alusão a seu conceito de polaridade e, talvez, também a seus anos de loucura, dos quais emergiu escrevendo um texto sobre essa experiência. Porém as afinidades entre a pintura e a obra de Warburg não param por aí. No quadro, assim como em muitos outros que o artista pintou posteriormente, vemos sua tentativa de adotar um método de trabalho correspondente ao utilizado por Warburg em seu projeto Mnemosyne. O processo de recolhimento de imagens significativas relacionadas a um determinado tema e sua articulação em uma imagem síntese assemelha-se às análises que Warburg fazia do processo de construção das imagens coletivas.12 As imagens criadas por Ron Kitaj, assim como as estudadas por Aby Warburg, revelam-se como constelações complexas e multifacetadas, que criam uma rede de significados dentro de uma determinada cultura.13 A justaposição de imagens na obra de Ron Kitaj, que a princípio poderia lembrar um procedimento pop de aproveitamento de imagens que já circulam na cultura, revela assim uma outra natureza e vincula-se a uma discussão sobre os processos de formação das imagens na memória. Os mesmos procedimentos utilizados para compor Warburg como Mênade podem ser identificados em seu quadro O neocubista, pintado entre 1976 e 1987, como homenagem a seu amigo David Hockney. Aqui novamente encontramos uma síntese entre diversas imagens

12 Martin Doppner comenta o assunto: “Na medida em que Kitaj estabelece novas relações entre os símbolos apresentando-os em novos contextos, podemos ver em que medida ele se orienta, metodologicamente, no Atlas de Imagens de Warburg, que demonstrava as transformações das imagens.” Doppner, op. cit.: 251. 13 A justaposição de imagens na obra de Ron Kitaj, que a princípio poderia lembrar um procedimento pop de aproveitamento de imagens que já circulam na cultura, revela assim outra natureza e vincula-se a uma discussão sobre os processos de formação das imagens na memória coletiva.

que aludem ao universo do artista pop. Kitaj pinta Hockney diante de uma piscina, fazendo referência direta a seu mais famoso quadro da época em que o artista morou na Califórnia. Seu corpo lembra porém um desenho de Benvenuto Cellini criado em 1563 como emblema para a Accademia Del Disegno em Florença que, segundo Doppner, referiase a uma lembrança comum da época em que os dois artistas estudaram juntos na Royal Academy,14 enquanto o rosto foi tirado do famoso “retrato duplo” que Warhol pintara do

14 Doppner, op. cit.: 251.

artista em 1974. Como afirma Doppner, “o método de Kitaj (...) transforma os métodos tradicionais da iconologia numa iconologia correspondente a uma estética moderna”.15

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15 Id., ibid.: 254.


Wesley Duke Lee. Fragmento amarelo III, as sombra ações, colagem, desenhos, gravuras, estampas, xerox e têmpera sobre papel, 123 x 123cm, 1962/76 (Coleção Luisa Strina, São Paulo).

A obra mais recente do artista Wesley Duke Lee apresenta algumas semelhanças marcantes com relação à produção de Ron Kitij e com os princípios warburgianos descritos. Apesar de a historiografia da arte brasileira reconhecer a importância de Wesley para a construção do cenário cultural e artístico da cidade de São Paulo nos anos 1960 e 1970, ressaltando a importância de suas atitudes no grupo Rex e dos primeiros happenings realizados pelo artista no país, a riqueza e complexidade da maior parte de sua produção, posterior a esse período, ainda permanece desconhecida do grande público. A obra de Wesley Duke Lee tomará novos rumos a partir do final da década de 1970, quando o artista, talvez sob o impacto da leitura de Jung, passou a se interessar pelas conexões subterrâneas presentes na psicologia individual e na memória coletiva, expressas na cultura

16 Indagamos certa vez ao artista se ele tinha conhecimento da obra de Aby Warburg, ao que ele respondeu negativamente. Assim, devemos supor que essa semelhança seja fruto de reflexões parecidas a respeito do funcionamento da imagem no contexto da cultura contemporânea. Como dissemos, o pensamento de Wesley foi influenciado pelo conceito de arquétipo de Jung, que por sua vez guarda certas semelhanças com o pensamento de Warburg. Também não podemos descartar um conhecimento de Wesley a respeito da obra de uma artista como Ron Kitaj.

através do retorno cíclico de determinados temas e imagens. Nesse período, cresce o interesse de Wesley pela civilização clássica, que surge como matriz fundamental do arquivo visual que constitui a cultura ocidental. Dois painéis realizados pelo artista entre 1962 e 1976 inscrevem-se nesse novo momento de sua produção. Ambos apresentam uma coleção de imagens, afixadas sobre um painel de madeira, que guarda inusitada semelhança com os painéis que compõem o Atlas Mnemosyne de Aby Warburg.16 Nesses painéis, imagens de diversas épocas e origens distribuem-se em torno de uma obra clássica (no primeiro caso, uma cabeça de medusa, no segundo, um torço retirado do Parthenon de Atenas). Na mesma época, Wes-

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ley compõe uma caixa-aquivo intitulada “A História da Arte”, em que deposita uma série de gravuras barrocas do século XVIII francês, baseadas em obras renascentistas, demonstrando claramente sua preocupação com a questão da herança das imagens dentro da cultura.

Wesley Duke Lee, “Os trabalhos de Eros – A memória”, pintura digital acrílica, pastel e lápis cera s/tela, 130 x 147 cm, 1991 (Coleção Kim Esteve, São Paulo).

A partir dos anos 70, cada vez mais, ao lado de imagens criadas pelo próprio artista, acumulam-se as recolhidas pelo mundo e cujo significado depende das ordenações específicas realizadas pelo artista. A série Viagem de Helicóptero à Grécia (1977) faz parte desse mesmo universo temático. Na série, fragmentos de estatuária grega são representados como heróis que, ainda que mutilados, sobreviveram à batalha da passagem do tempo, conservando toda sua magia e poder. Sobre elas, paira a imagem em xerox (uma técnica inquestionavelmente contemporânea) do modelo do “helicóptero” de Leonardo da Vinci. Através desse xerox, a máquina de Leonardo, que permitiu seu vôo sobre a Grécia e o renascimento da cultura clássica no Cinquecento, comunica-se também com o nosso tempo, transportando a memória das formas através dos séculos.17 Os trabalhos da série Viagem de Helicóptero à Grécia encenam uma narrativa do percurso das imagens no tempo, considerando-as, à semelhança do Atlas Mnemosyne de Warburg. Outra série de Wesley que apresenta semelhanças importantes com as teorias de Warburg sobre o funcionamento das imagens é a da Cartografia Anímica, realizada em 1980, na qual Wesley investiga como o universo da mitologia pessoal se organiza em relação às imagens coletivas. A série transformou-se a seguir em uma coleção de gravuras, organizadas em outra caixa-arquivo. Enquanto mapas, cada uma das imagens da série

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17 Devemos recordar, nesse contexto, que também Wesley construíra, inspirado em Leonardo, um Helicóptero (1969) alguns anos antes, para a realização de suas viagens interiores.


representa uma possibilidade de organização da informação visual que nos rodeia em uma configuração particular e individual. Ainda que as imagens sejam coletivas, sua composição no interior do sujeito é única, resultando em mapas afetivos da alma. Os novos meios de multiplicação da imagem (jornais, revistas televisão, etc.) potencializam esse jogo ao infinito, rompendo fronteiras impostas anteriormente pela própria cultura. Encontramos aqui o tom otimista de Wesley com relação às potencialidades da cultura contemporânea. A liberdade de circulação através de tantos universos é vista como um privilégio inigualável do homem de hoje. Uma das últimas séries criadas por Wesley, os Trabalhos de Eros, funciona, em certo sentido, como uma síntese de inúmeras questões levantadas pelo artista ao longo de sua carreira. A busca da origem, perseguida no contexto de sua própria psicologia individual nos anos 60 na série Ligas, retorna aqui em contexto universal e ganha face na figura do pequeno criador Eros. O pequeno herói é apresentado como fonte de todo poder criativo e da primeira da criação artística. Significativamente, a série abre com a figura da Memória, da qual, segundo o próprio artista, “dependemos para dar continuidade à civilização”. Assim, as imagens coletivas que tanto interessaram Wesley na década anterior, apresentamse como a matéria-prima para a criação na arte, impulsionada pela relação erótica que o homem estabelece com o mundo. Toda a série é realizada pelo uso de computadores e da técnica de scannaprint, o que atribui marcante contemporaneidade às questões discutidas no trabalho. Certa vez, ao encontrar Wesley, perguntei se ele conhecia a obra de Aby Warburg, tendo recebido uma resposta negativa. Certamente ele conhece bem a produção de Ron Kitaj, que era discutida nos círculos intelectuais e artísticos dos anos 70 em São Paulo. De qualquer maneira, não há como negar marcante semelhança entre a forma de pensar os processos de formação da memória coletiva através das imagens nos três autores. A proximidade entre as obras de Kitaj, Wesley e Warburg aponta para a contemporaneidade do pensamento e dos métodos de Aby Warburg.

Claudia Valladão de Mattos é professora de História da Arte no Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas, doutora pela Universidade Livre de Berlim e pósdoutora pelo Instituto Courtauld de Londres. É autora dos seguintes livros: Lasar Segall (Edusp, 1996), Entre Quadros e Esculturas, Wesley Duke Lee e a Escola Brasil (Discurso Editorial, 1997), Lasar Segall Expressionismo e Judaísmo (Perspectiva, 2000), e organizadora do livro Goethe Hackert: sobre a pintura de paisagem (Ateliê Editorial, no prelo).

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A simbologia cristã e pagã no início do Quinhentos italiano: um estudo de caso Fernanda Marinho

A produção artística do século XVI italiano caracterizou-se pelo crescente sincretismo entre as simbologias cristãs e a iconografia antiga. Na pintura Madona amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, atribuída ao artista lombardo Giampietrino e conservada no Museu de Arte de São Paulo (Masp), analisamos tais características procurando relacioná-las à cultura figurativa de sua época. Sincretismo religioso, leonardismo, simbologia sacrifical.

A assim chamada arte renascentista italiana, compreendida entre aproGiampietrino. Madona amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração. Óleo sobre tela, 86 x 88cm, 1500-1520 (Museu de Arte de São Paulo).

ximadamente 1300 e 1600, caracterizou-se, entre outros aspectos, pela ampliação de seu repertório simbólico, abrangendo tanto temática quanto formalmente variadas alusões ao mundo antigo. À luz dessa questão, discutiremos neste artigo a pintura Madona amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração, conservada no Museu de Arte de São Paulo (Masp). Chegada ao Masp em 1947 por doação de Tereza Bandeira de Mello e Silvério Ceglia, essa pintura, proveniente da Coleção Simonetti e do Studio d’Arte Palma de Roma, é datada entre 1500 e 1520 e atribuída a Giovanni Pietro Rizzoli, mais conhecido como Giampietrino. Podemos dizer que até o momento não houve divergências significativas quanto a sua atribuição entre os historiadores da arte. Seu maior problema, entretanto, é de ordem bibliográfica, uma vez que seus estudos ainda estão restritos a breves publicações. As

1 Camesasca, Ettore. Trésors du Musée d’Art de São Paulo: de Raphael a Corot (I), Martigny: Fondation Pierre Gianadda,1988. Camesasca, Ettore. “Da Raffaello a Goya...da Van Gogh a Picasso” – 50 dipinti dal Museu de Arte di San Paolo del Brasile, Milano: Gabriele Mazzotta Edizioni, 1987.

únicas citações a seu respeito foram escritas primeiramente por Camesasca,1 Pietro Maria Bardi e, recentemente, por Luiz Marques. Este último – Catálogo Raisonné da Arte Italiana no Museu de Arte de São Paulo – consiste em uma atualização das publicações anteriores, o catálogo e sumário de 1963 e o inventário de 1982, ambos de Bardi. Giampietrino dedicou-se a estudar as novidades estéticas desenvolvidas e difundidas por Leonardo da Vinci, especificamente na corte sforzesca de Milão, onde possivelmente trabalharam juntos para Ludovico il Moro. São poucos os documentos que mencionam esse

2 Leonardo, da Vinci, 1452-1519. Il Codice Atlantico della Biblioteca Ambrosiana di Milano / trascrição diplomatica e critica de Augusto Marinoni – Florença 1975, Giunti-Barbera – 12 volumes.

artista, mas o primeiro e de maior destaque é o Códice Atlântico,2 em que Leonardo a ele se refere como seu discípulo. Lomazzo e Belori posteriormente também teceram sucintas considerações a seu respeito. Atualmente, Giampietrino divide o cenário artístico com os chamados “leonardescos”, sendo suas obras compreendidas principalmente a partir de suas aproximações à produção de Da Vinci, como a pintura Maria Madalena, de coleção

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particular, que teve recentemente a autoria questionada por Carlo Pedretti, historiador da arte que lhe sugeriu a atribuição de Leonardo devido a sua elevada qualidade pictórica.

Leonardo da Vinci. A Virgem das Rochas, óleo sobre tela, 189,5 x 120cm, 1495-1580 (National Gallery, Londres).

A presença de Leonardo da Vinci na Lombardia, juntamente com a pintura de Vicenzzo Foppa e a obra pictórica e arquitetônica de Donato Bramante, foi um dos fatores mencionados por Argan como causadores da “transformação radical, de estrutura, da cultura figurativa lombarda na segunda metade do Quatrocentos”.3 Isso pode ser claramente percebido nas diversas obras de artistas lombardos como Marco d’Oggiono (1475c.-1530?), que em Madona do Lago (Galerie Brunner, Paris) evidencia pela pose de São João Batista e do Menino uma relação direta com A Virgem das Rochas (National Gallery, Londres), e pela pose da Virgem com a pintura Maria com Menino e Santa Ana (Louvre, Paris), ambas de Leonardo; Giovanni Boltraffio (1467-1516) em Virgem com Menino (National Galery, Londres) e Bernardino Luini (1480/85-1532) em Madona amamentando o Menino (Pinacoteca Ambrosiana, Milão), que na forma de construção da paisagem ao fundo ou nos vetores traçados no olhar da Virgem para o Menino e dele para nós, espectadores, se aproxima à Madona Litta (The Hermitage Museum, São Petersburgo). Podemos perceber, portanto, que a pintura aqui analisada não se destaca desse cenário produtivo, mas vale questionar se essa era a intenção de Giampietrino ou mesmo daquela época, de modo geral. O leonardismo da pintura em questão é categórico: a feição da Madona nos remete ao olhar melancólico da Virgem das Rochas (National Gallery, Londres), ou mesmo a seus estudos preparatórios, como Cabeça de mulher (Royal Library, Windsor). Além disso, a

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3 Argan, Giulio Carlo. História da arte italiana: de Giotto a Leonardo. Vol.2. São Paulo: Cosac & Naify, 2003: 372.


técnica do sfumato, aplicada nas formas corporais e principalmente na paisagem, remonta à umidade cromática tipicamente leonardesca – como aquela percebida em Anunciação (Galleria degli Uffizi, Florença). Pretende-se, portanto, analisar a pintura conservada em acervo nacional justamente sob o foco da repetição desses elementos estéticos associados às novas técnicas em vigor e principalmente a suas combinações a uma crescente apropriação das simbologias antigas. A temática evidentemente religiosa, marcada pela presença da cruz de São João Batista, das auréolas dos personagens, do gesto de benção do Menino, é contraposta a outras simbologias que aludem fortemente a um sincretismo religioso, mas que não deixam, no entanto, de reforçar essa temática: a coluna envolvida pela cortina e a cena da lactação da Virgem. Esta última remonta às representações do início do Cristianismo, como aquela da Virgo Lactans da Catacumba de Priscila, do século II, podendo também referir-se a Ísis, deusa egípcia geralmente representada amamentando Horus, muito absorvida pela arte cristã. A imagem da Virgem nessa cena se aproxima mais à de Mãe do que de Rainha Celeste. No entanto, apesar de essa representação simbolizar a vida e o alimento, existem interpretações sobre o tema que relacionam o seio à mostra à sensualidade e a presença do leite à ambição: Tendo os cristãos se apressado a raspar as faces internas da gruta de Belém onde Maria teria alimentado o Cristo, já no século I, na Judéia, o pó branco proveniente dessas paredes, imediatamente assimilado à idéia do 4 Boyer, Marie-France. Culto e imagem da Virgem. São Paulo: Cosac & Naify, 2000: 26.

leite, torna-se o centro de todas as cobiças, tanto quanto as relíquias.4 Não sabemos se por esse motivo ou outro, a representação desse momento de sua vida não é tão comum quanto a Anunciação, a Visitação ou a Adoração dos Magos. São Jerônimo, procurando vincular sua imagem à idéia da pureza da eterna virgindade, encontra no Cântico dos Cânticos a passagem: “Hortus conclusus, sóror me sponsa, hortus conclusus,

5 Cântico dos Cânticos 4: 12 (rei Jaime; Vg).

fons signatus”,5 levando-o à seguinte conclusão: “O objetivo da Virgem é aparecer menos

6 Jerônimo, Contra Helvídio, 21.

faceira, ela quer se guardar de modo a esconder suas atrações naturais”.6 Muitas das representações da Virgem repetem essa interpretação, contextualizando-a em ambientações internas. Giampietrino parecia tender a essa escolha compositiva. Suas pinturas acentuam a teatralidade cênica através da divisão espacial de templo x paisagem, dentro x fora, demarcada pelos pesados panejamentos das cortinas que vedam o espaço externo. Na pintura Madona com Menino, do Hermitage Museum, essa relação fica bastante clara, uma vez que a Madona, por se posicionar quase inteiramente de costas para o espectador, parece abrir a cortina procurando revelar a vastidão da paisagem oculta. Apesar de janela ser motivo muito comum nas pinturas renascentistas, é importante notar que na do Masp ela não se encontra no fundo do quadro, como de costume, mas em

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sua lateral esquerda. O espaço externo torna-se uma minudência em termos comparativos com a cena que se sucede. Giampietrino parecia assim mais preocupado com a construção de uma ambientação interna da Madona do que com o investimento das expressivas paisagens muito presentes, por exemplo, nas obras de Leonardo. A aplicação da perspectiva se concentra mais na geometrização do desenho dos azulejos do que na paisagem propriamente. Parece pretender um maior investimento nos elementos que interferem diretamente na leitura de seus personagens, do que naqueles que possivelmente pudessem criar outro foco de atenção. No entanto, Leonardo da Vinci integrou tais espacialidades, não precisando fazer essa escolha. Em Madona Litta, por exemplo, a paisagem cobre quase toda a extensão do fundo do quadro em vez de se mostrar um detalhe da composição, ela se agrega à cena do aleitamento e desvenda a vastidão da natureza através das janelas, reforçando a idéia de interioridade e aconchego pela luz vinda de fora. O interessante é notar que a cortina da pintura do Masp deixa de separar o espaço interno do externo para envolver a coluna, ocultando a maior parte da decoração das folhas de parreira que aparecem mais como um sussurro premonitório, uma discreta alusão àquela simbologia do sacrifício. Não devemos considerar contraditória esta composição que destaca a amamentação, referenciando a vida, ao mesmo tempo em que menciona a morte, o sacrifício de Cristo, uma vez que se mostra bastante de acordo com a típica ideologia cristã que valoriza esse equilíbrio da vida ponderada, do memento mori, posteriormente muito em voga durante a Contra Reforma. A outra simbologia mencionada diz respeito à coluna posicionada atrás de Maria e envolta por uma cortina verde. Vale reparar que essa foi representada torcida e com motivos decorativos de folhas de parreira. Sua torção nos remete às colunas salomônicas aludindo ao Antigo Testamento, mais propriamente ao Templo de Salomão, onde se ofereciam os cultos sacrificais a Javé, enquanto as folhas se referem a Dionísio, deus da mitologia grega associado ao vinho. O Cristianismo em muitos aspectos se apropriou dessa mitologia, o que nos permite apontar diversas semelhanças entre essas divindades: ambos são frutos da união de um deus com um mortal, no caso de Dionísio, Zeus e Sêmele; a imagem do Jesus libertador que desce ao inferno para salvar os justos é análoga àquela de Dionísio que resgata sua mãe do Hades; além da simbologia do vinho, considerado a personificação dionisíaca e identificado com o sangue de Cristo, aludindo, como mostrado na pintura do Masp, seu sacrifício. Giampietrino parecia estar a par dessas representações alusivas à Eucaristia. Podemos notar que, além das folhas de parreira da pintura do Masp, tinha o costume de representar frutas, como a romã, que é relacionada tanto com a beleza e as virtudes da Virgem quanto com os mártires, como, por exemplo, nas pinturas do Hermitage Museum (Madona com Menino), do tríptico do Museo Bagatti Valsecchi (Madona com Menino) e do Courtauld Institute (Virgem com Menino e São Jerônimo). Tais simbologias sacrificais e especialmente seu caráter sincrético estavam em voga entre fins do Quatrocentos e as primeiras décadas do Quinhentos, como percebido na absorção do Laocoonte vaticano pela iconografia da

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Giampietrino. Madona com Menino. Óleo sobre tela, 58 x 59cm, 1520 (Hermitage Museum).

paixão de Cristo. O grupo escultórico tornou-se exemplum doloris na representação cristã e suscitou, mesmo que indiretamente, ampliação alegórica dessa temática sacrifical. No entanto, apesar de Giampietrino utilizar essa simbologia pagã em grande parte de suas obras, não podemos negar que a mesma seja timidamente empregada em Madona amamentando o Menino e São João Batista criança em adoração. Nessa pintura ela aparece mais como um detalhe da composição do que como destaque de sua narrativa. Apesar de a coluna de parreira participar unitariamente da cena, percebemos que sua presença é bastante sutil e delicada. Essa integração simbólica pictórica entre o mundo pagão e o cristão até os primeiros anos do século XVI era parcial, pois a cena pagã ficava restrita às ornamentações e arquiteturas do espaço cênico em que se passava a ação principal. Havia, assim, dois núcleos narrativos de sentidos complementares e alusivos, mas a citação pagã ainda parecia remontar mais às referências arqueológicas do que à vontade de uma assimilação sincrética da religiosidade cristã, como percebido em Cristo Redentor, de Giovanni Bellini, pintura que retrata em primeiro plano Cristo com a cruz retirando seu sangue que é depositado na taça e ao fundo, nos frisos, cenas sacrificais pagãs. Essa união dos simbolismos veio a ocorrer com um grupo de obras do início do século XVI que misturaram mitos e santos na mesma unidade cênica. Como destacado por Maria Berbara, a obra Cena Sacrifical da Igreja de Santo Antônio, em Padova, de Andrea Riccio é bastante emblemática nesse sentido, uma vez que retrata Cristo vestido com trajes romanos e o identifica com o deus pagão:

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La celebración eucarística de su sangre y el culto pagano a la sangre de la víctima son parangonados, y, consecuentemente, ambos sacrifícios, los cuales se fundem tanto temática como formalmente.7 Na pintura atribuída a Giampietrino essa relação entre a simbologia cristã e a pagã parece estar, nesse período de assimilação do antigo, entre Bellini e Riccio. As folhas de parreira não consistem em uma segunda narrativa dentro da cena principal do aleitamento, mas, por outro lado, não se trata de folhas reais, ainda são fictícias dentro da composição. Giampietrino optou por representá-las como adornamento da coluna, diferentemente de em Virgem das Rochas (Louvre) e da Madona (Museu Nacional do Prado), nas quais Leonardo e Bernardino Luini, respectivamente, as pintaram como parte real da composição cênica principal. Essa estética de ampliação simbólica iniciada no Quatrocentos e amadurecida no Quinhentos surtiu novas combinações iconográficas na arte renascentista que viriam a ser posteriormente controladas pela Contra Reforma. O Renascimento não se caracterizou pela cópia deliberada da estética classicista, mas sim por sua assimilação, adequada a sua cultura figurativa, reestruturando e transformando seus significados e valores formais.

Fernanda Marinho é mestranda em História da Arte pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp (bolsista da Fapesp), vem desenvolvendo desde o final de sua graduação pesquisas referentes à tradição clássica dando especial ênfase às pinturas religiosas do Renascimento italiano conservadas em acervo nacional.

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7 Berbara, Maria. El Laocoonte y el tema del sacrifício entre el Renacimiento y la Contrarreforma. In: Revista de Arte Goya, n. 269, Fundação Lazaro Galdiano: março-abril 1999.


O artista e a crítica em uma sociedade africana1 Paul Bohannan O universo da arte entre os Tiv da Nigéria; o processo de criação de esculturas em madeira; autoria e produção comunal; tradição e mudança; a presença de uma crítica nativa, seu papel e importância para compreensão e determinação do fazer artístico. Antropologia da arte, processo criativo, crítica de arte.

Croce, naquela que sem dúvida é sua declaração mais largamente difundida, na Enciclopédia Britânica, insistia que não era o bastante nem usar objetos de arte para explicar o éthos de uma era, nem sujeitar os objetos ao julgamento “estético” sem se referir ao éthos da era na qual foram produzidos. Mais propriamente, a arte é uma peça em conjunto com o todo de uma época. Para que entendamos a estética por trás da arte, precisamos entender as atitudes acerca da arte como sendo uma das muitas atitudes que compõem o éthos de uma época. Transferindo esses termos para os estudos da arte primitiva, a máxima de Croce nos diria algo assim: não é suficiente utilizar objetos de arte para explicar uma cultura exótica, nem sujeitar os objetos ao julgamento estético sem o conhecimento daquela cultura. Cabeça Tiv, cerâmica século XX (Coleção Pitt Rivers Museum).

Antes, precisamos entender a postura ante a arte, que é parte da própria cultura em questão. Salienta-se, freqüentemente, que para se alcançar esse almejado fim é necessário investigar formação, posição social, treinamento, motivação e princípios estéticos do artista. Poucos antropólogos investigaram essas difíceis questões no campo, e número ainda menor, publicou suas descobertas. Porém, esse preceito nos é insistentemente colocado. Talvez esse seja, na atualidade, o preceito mais antigo colocado para os estudos da arte primitiva. Portanto, enquanto atentamos para o conselho do professor Whitehead – o de que provavelmente seremos mais bem sucedidos se examinarmos a suposição que por longo tempo não foi questionada –, pode ser proveitoso lançar novo olhar sobre aquilo que chamamos de “estudar o artista” em sociedades primitivas. Será que “estudar o artista” poderá real-

Tradução Jason Campelo. Revisão técnica Ricardo Gomes Lima. 1 Traduzido de The artist in tribal society. Anais do simpósio promovido pelo Royal Anthropological Institute, Marian W. Smith (Editora). Londres: Routledge and Kegan Paul, 1961: 85-94.

mente nos munir da informação necessária para avaliarmos a arte primitiva? Façamos a mesma pergunta à arte contemporânea: será que “estudar o artista” na sociedade contemporânea realmente explica a arte contemporânea? Por si só, sem sombra de dúvidas, não. Auxilia na dedução das motivações do artista, elucida sua estética par-

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ticular e torna compreensíveis problemas técnicos. Pode até mesmo ajudar a esclarecer alguns dos muitos e complicados problemas ocidentais a respeito da “criatividade”. Mas não explica a razão de certa arte ser aceita enquanto outra não, ou ainda por que certas obras são consideradas melhores que outras. Poderia parecer que há uma dimensão – e aqui, novamente, o foco é a declaração de Croce – na avaliação da arte que vai muito além do artista. Essa é a dimensão que é acrescentada pelo que hoje em dia poderíamos chamar de crítica contemporânea. Certamente, precisamos tanto do estudo do artista contemporâneo quanto do estudo da crítica contemporânea para chegar aos princípios estéticos. Para nossos propósitos, poderíamos até definir estética como sendo a relação entre a crítica e os objetos de arte, já que a relação entre o artista e os objetos é problema da “criatividade” (obviamente, alguns dos críticos de arte – e talvez os mais notáveis – são eles mesmos artistas; contudo, para fins de análise, podemos separar essas funções). Então, a questão seria: estamos interessados em criatividade comparativa? Se, na medida em que somos ocidentais, provavelmente estamos interessados nisto, então precisamos ir aos criadores da arte para obter essa informação. Mas onde obtemos informação a respeito de estética comparativa? Estética significa o estudo das relações entre a arte e todo um conjunto de atitudes e atividades que no mundo moderno denominamos crítica. A estética comparativa certamente estabeleceria meios para a classificação de tais relações e, em um nível prático, meios pelos quais um grupo de idéias relacionadas poderia ser formulado para suplementar e diferenciar umas de outras. Já que estamos interessados em estudar a estética da arte primitiva, então precisamos de várias classes de assuntos e informações: (1) os objetos de arte, (2) extenso conhecimento da etnografia geral do povo que fez os objetos, (3) conhecimento razoavelmente específico da crítica a esses objetos feitos pelos membros da sociedade que os usou, e (4) conhecimento geral de estética comparativa. Todos esses assuntos, idéias e disciplinas diferentes, com exceção do item (3), estão à disposição do pesquisador. É verdade que sabemos muito pouco sobre artistas nas sociedades primitivas e, é seguro dizer, que sabemos muito menos sobre a crítica nessas sociedades primitivas. Tais problemas não me ocorreram enquanto me encontrava em trabalho de campo. Eu seguia o “preceito antigo”. Portanto, enquanto estudava os Tiv, na Nigéria central, eu ficava perseguindo artistas. Os Tiv não produzem arte realmente grande, ao contrário das tribos Ioruba e de alguns povos da região de Camarões. Porém a arte, seja de um ou de outro tipo, está presente em muitas fases de suas vidas, e alguns desses tipos chegam a agradar os europeus, sendo até mesmo pujante. Os artistas de Tiv não são mais encontrados com a facilidade que o eram 15, 20 anos antes da época em que com eles trabalhei. K. C. Murray, do museu nigeriano de Lagos, tem

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muito mais informação acerca deles, reunida durante a década de 1930, do que o que me foi possível reunir a partir do final da década de 1940 até os primeiros anos da década de 1950. Nunca encontrei um escultor de primeira linha que quisesse que assistíssemos a seu trabalho, apesar de eu ter assistido a três bem medíocres trabalhando. Também nunca encontrei especialistas no trabalho com carvão, apesar de ter conhecido diversos homens que trabalhavam esporadicamente com esse material. Não obstante, vi uma quantidade expressiva de arte Tiv. Mesmo assim, a princípio pensei que não teria nada a dizer a seu respeito, já que não tinha visto os processos nem tomado notas acerca deles. Então, enquanto revisava minhas notas por outros motivos, comecei a encontrar referências ocasionais à arte – não aos artistas, mas aos objetos de arte em si. E à medida em que encontrava mais dados, percebi dois pontos: que esses comentários formavam o núcleo de um sistema crítico que poderia, com investigação de campo sistemática, vir a ser uma estética Tiv satisfatoriamente completa, e que os Tiv são interessados na arte – e não no artista. O ponto de vista dos ocidentais, a priori interessados na criatividade, difere completamente daquele dos Tiv. De fato, os Tiv usam a palavra “criar” (gba) para o trabalho em ma2 Há um homônimo, gba – se é que se pode distinguir homônimos em uma linguagem sem escrita –, que significa “cair” e “sofrer (um ato)”, mas sabe-se que esses dois conjuntos de idéias não estão absolutamente relacionados.

deira – seu único outro uso tem relação ao mundo como criação de Deus.2 Mas o campo de interesse imediato dos Tiv não é na noção verbal de gba ou criação, e sim, especialmente, nos objetos que daí resultam. Os Tiv são mais interessados pelas idéias contidas em uma peça artística do que por sua manufatura, da mesma maneira que, em sua religião, estão mais interessados no resultado da criação do que no criador. No que concerne aos Tiv, sua capacidade de compreender uma peça artística, antes pelo que ela é em si mesma do que pelo fato de ser o resultado tangível da criação, dá a suas idéias críticas uma franqueza digna de nossa inveja: assemelha-se ao “julgamento firme e seguro dos assuntos artísticos… nunca elevado ao nível e à consistência de uma teoria”, que Croce atribui aos antigos, antes que fossem perturbados pela noção cristã de alma. Meu encontro mais vívido com tal forma de crítica de arte nos Tiv se deu enquanto eu via um artista – que não era muito bom – esculpir na madeira a figura de uma mulher. A escultura, a qual eu encomendara, tinha por volta de 45 centímetros de altura e, como toda escultura africana, era feita a partir de um tronco ainda verde. Enquanto ele trabalhava – eu me sentara ao seu lado, assistindo silenciosamente –, um jovem de sua aldeia apareceu. O jovem, à guisa de saudação, disse algo como: “Avô, o senhor está esculpindo [criando – gba] uma mulher”. O senhor respondeu que esse era, de fato, o caso. “O que são esses três caroços em sua barriga?”, perguntou o jovem. O senhor largou sua enxó e olhou o rapaz que o havia interrompido. “O do meio”, disse, impaciente, “é o umbigo dela”.

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O jovem se calou por um momento, mas voltou a falar justo quando o senhor apanhava sua enxó: “Então o que são os outros dois caroços?” O senhor mal continha o desdém por ouvir perguntas tão óbvias. “Esses aí são os seios dela.” “Bem lá embaixo?” Perguntou o jovem. “Eles caíram!” Gritou, claramente, o senhor. “Mas, meu avô, se eles tivessem caído não estariam...” O senhor agarrou sua enxó e resmungou “Está bem, está bem...”, e com três golpes certeiros os três caroços foram extirpados. Na época em que registrei tal acontecimento, anotei que o rapaz, que passara três anos na escola, aprendera uma estética do naturalismo, algo que não ocorrera com seu avô. Fiquei aborrecido pelo fato de minha escultura não ser “puramente” Tiv e falhei ao não considerar o incidente uma interação entre o artista e a crítica. Quando o artista terminou sua obra e paguei por ela, seu único comentário foi “até que não ficou tão ruim” (iduwe vihi yum ga). Naquele momento, registrei esse comentário simplesmente porque não tinha concordado em nada com ele. Esse incidente deveria ter-me mostrado que os Tiv, em muitos casos, pelo menos, se importam tão pouco com quem cria um dado objeto quanto com o processo criativo. Para eles, a arte é um epifenômeno do jogo, da religião, do prestígio e de muitos outros aspectos da vida. De fato, em grande parte, é um tipo de arte “comunal”, arte genuinamente folclórica, na qual o artista é tão sem importância quanto o compositor de música folclórica. Só vários meses depois, em outra parte do território Tiv, é que me tornei totalmente consciente do aspecto comunal da arte Tiv. Novamente anotei a frase “até que não ficou tão ruim”. Essa nova área era pantanosa e fiz uma bengala para me ajudar a atravessar aqueles pântanos escorregadios sem cair. Mais ou menos uma semana depois, um jovem, vindo de uma aldeia próxima, aproximou-se e disse que eu não poderia mais usar a bengala. Era uma bengala de velha e não era adequada a um homem de minha posição. Quando perguntei que tipo de bengala eu poderia, então, usar, ele respondeu que me faria uma adequada. Poucos dias depois, ele retornou com um cajado que ele chamou de “bastão do jovem ancião”: tinha por volta de 1,83m de altura e várias faixas enegrecidas com fuligem, que ele fixara com seiva da árvore Ikpine. Sobre as faixas, ele esculpira várias séries de desenhos. O bastão era muito belo, e, pouco tempo depois, quase todo homem estava fazendo para si um bastão daquele tipo. Copiei vários desenhos e observei muitos deles sendo produzidos. O aspecto mais surpreendente disso para mim é que, comparativamente, poucos dos desenhos foram produzidos por um único indivíduo. Um dia, quando eu observava um rapaz de aproximadamente 30 anos esculpir um bastão, notei que ele se ausentou, deixando o bastão e suas facas de dois gumes com as quais ele esculpia. Um hóspede chegou, alguns

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momentos depois, pegou o bastão e acrescentou alguns desenhos. Um pouco depois, ele passou o bastão para outra pessoa. Quatro homens diferentes colocaram desenhos naquele bastão até que o dono retornasse e o terminasse. Quando finalizou, passou o bastão para que eu copiasse os desenhos e disse “até que ficou bom, não é?”. Esse aspecto “comunal” de toda a produção, seja artística ou utilitária, se fez presente mais uma vez à época em que eu comprei um par de enxós, peguei alguma madeira, e tentei fazer minha própria escultura. Visto que não tenho nenhum talento para a escultura, logo me desgostei e resolvi fazer bancos e cadeiras. No entanto, não me deixaram fazê-los sozinho. No exato momento em que eu descansava, algum espectador pegava a enxó e adiantava o trabalho um pouco mais. Seguindo a tradição ocidental, eu experimentava a sensação de completa frustração por que minha habilidade e “criatividade” estavam sendo postas à prova. Durante alguns dias tentei insistir na afirmação de que queria fazer o trabalho todo sozinho, mas logo desisti, pois todos achavam isso uma tolice e nem sequer se lembravam dessa minha excentricidade. Afinal, muitas de nossas cadeiras e bancos “até que não ficaram tão ruins”. Eu participara da fabricação de todos eles, mas nenhum deles era trabalho meu – toda a vizinhança e metade da aldeia também trabalharam neles. A maioria dos homens Tiv é competente na fabricação de tais bancos, cadeiras, bengalas e afins. Apreciam uma “boa peça” mas, comparativamente, se afligem muito pouco com o projeto de tal peça, para que ela fique boa. Porém, há alguns poucos homens que trabalham a sós e insistem em fazer todo o trabalho. São considerados especialistas. Conheci um homem que fazia cadeiras com madeira gbaiye, quando tal madeira estava disponível. Ele se recusava a deixar que qualquer outra pessoa sequer tocasse uma peça em que estava trabalhando. Cobrava por volta de 10 xelins para fazer uma cadeira Tiv maior. O preço era muito mais alto que o normal, mas as cadeiras sempre acabavam “ficando boas”; assim era sabido por toda a vizinhança. A tecelagem, assim como a marcenaria, é muito freqüentemente atividade comunal. No entanto, o preparo do tecido para a o tingimento não o é. Atualmente os Tiv preferem costurar os padrões de desenho no tecido com ráfia a tingi-los, como faziam quando Murray fez suas observações (Murray, 1949). Apesar de alguns homens costurarem seus desenhos de um modo pré-planejado, muitos outros não o fazem. A primeira vez em que vi um homem costurando a ráfia, quase aleatoriamente, num tecido que estava sendo preparado para o tingimento, notei que o homem estava prestando mais atenção a uma discussão política do que a qualquer padrão e, obviamente, não tinha nenhum planejamento. Fiquei instigado com isso e finalmente interrompi seu trabalho para perguntar por que ele não prestava atenção no que fazia. Ele me respondeu. Apesar de eu ter entendido o que ele falara, só pude compreender o sentido integral daquela afirmação mais tarde. Não se olha para o padrão até que esteja terminado, só então, pode-se olhar e perceber se ficou bom. Se, finalmente, não ficasse bom, ele disse que iria “vendê-lo para os Ibo; se ficar bom, fico com ele; e se ficar extraordinariamente bom, devo dá-lo a minha sogra.”

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Esculturas de imagens são quase sempre feitas por um único artista. Em seus rituais religiosos, os Tiv necessitam de certo número de postes para representar as mulheres e outro tipo para representar os homens. A única exigência é a de que o poste seja de um formato particular (pontiagudo, para o princípio feminino, arredondado para o masculino), e que tenha representações de olhos e bocas. No entanto, até os dias de hoje, algumas pessoas pagam somas comparativamente altas (até 10 xelins) para que artistas façam esculturas de imagens para serem usadas como postes representativos. Claro que a figura não é ritualmente mais efetiva do que um grande bastão com três buracos escavados nele, mas, figuras trazem prestígio a seu possuidor e, mais importante ainda, elas “agradam aos olhos”. Dois pontos são salientados na crítica a essas peças: primeiro, seu dono foi suficientemente cuidadoso, ao querer agradar a si e a todos os outros. Segundo, essa atitude resulta em um poste “melhor” (inhambe). Tenho poucas dúvidas de que se, por acaso, eu tivesse feito perguntas e anotado conversas (pelo menos de algumas pessoas) poderia ter reunido listas de traços e características que eram aceitos e as razões por que eram aceitos. Infelizmente, não fiz tal coisa. Devido a minha predisposição cultural, achei que esse fosse o tipo de questão que só se perguntasse a artistas. Minha experiência mais reveladora em matéria de crítica de arte entre os Tiv se deu, como algumas outras, em meio a equívocos e a um pequeno aborrecimento. Um homem chamado Akise, que era de minha classe de idade (não como alguns dos outros homens, mais velhos do que eu uns 15 anos, com os quais eu era associado pelos próprios Tiv, tendo o prestígio como critério), disse-me que um parente do território central dos Tiv viria vê-lo e vender cabaças decoradas no mercado local. Eu lhe disse que gostaria de encontrar seu parente e olhar seu trabalho. Akise me disse para acompanhá-lo a sua aldeia na noite anterior à da ida ao mercado. O parente artista era amigável, mas não muito comunicativo no que diz respeito a seu trabalho. Mostrou-me suas ferramentas e produtos, convencendo-me de algo que eu já sabia: os desenhos Tiv não têm nenhum simbolismo religioso ou místico. São, quando muito, estilizações de elementos naturais como lagartos, andorinhas e cabaças. Quando perguntei a ele em quais horas trabalhava, ele me disse: “quando meu coração me diz”, que é a resposta-padrão dos Tiv para qualquer coisa que eles façam sem ter pensado muito a respeito disso anteriormente. Quando perguntei qual era seu desenho favorito, ele me disse que normalmente gostava daquele em que estava trabalhando no momento, portanto gostava de todos eles. Quando perguntei por que ele fazia cabaças em vez de esculturas de imagens em madeira, ele me respondeu que não tinha nenhum talento ou treinamento para trabalhar a madeira (ele disse, literalmente, que não “conhecia a raiz” disso) e que, de qualquer maneira, as imagens algumas vezes eram usadas por mbatsav, ou feiticeiras; enquanto cabaças esculpidas só eram usadas como presentes para namoradas. Determinei que esse homem não tinha estética.

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Naquela ocasião fui um pouco importunado por Akise, que insistia em interferir na conversa. Enquanto eu entrevistava seu primo, ele insistia numa longa lengalenga em que apontava de quais cabaças ele gostava mais e de quais ele gostava menos, enquanto colocava as cerca de duas dúzias de cabaças em fila, por ordem de mérito. Perguntei ao artista se ele concordava com o julgamento de Akise. Ele disse que provavelmente concordaria, mas que gostava suficientemente de todas elas. Notei (sem perceber as implicações totais disso) que Akise se considerava um notável crítico de arte, e finalmente me pus a copiar alguns dos desenhos e anotar as razões pelas quais ele gostava deles. Infelizmente fomos interrompidos quando eu havia acabado apenas uma das cópias e nunca mais retomamos esse assunto. Reproduzi minha cópia do desenho sobre a cabaça. A superfície decorada foi dividida em quartos e coloquei números apontando as preferências de Akise. Ele disse que a marcada como n. 1 era a melhor porque as marcas pretas (queimadas com a lâmina de uma faca quente) estavam no lugar certo. A n. 4 não era tão boa, porque havia muitas partes pretas e não havia equilíbrio. O artista concordou, mas disse que se qualquer parte preta fosse retirada da peça n. 4 seria ainda pior. Como um todo, a tampa era considerada melhor que a própria cabaça, porque havia mais equilíbrio no preto e os dois lados eram semelhantes. Tanto em minhas notas quanto em minha memória tenho outras referências de pessoas que expressaram escolhas e críticas, explicando: ouvi inúmeras vezes exaltarem certas peneiras por terem um padrão de tessitura de bom gosto ou por serem perfeitamente circulares. Em uma ocasião, também ouvi um homem dizer que uma das peneiras (a qual eu também admirara) era muito encantadora por ter um belo arqueamento em um dos lados. Ouvi pessoas louvarem as cadeiras Tiv por causa de sua simetria, mas também pelo fato de eles conseguirem reter, na madeira, formas interessantes. Supostamente, pelo menos a partir do que me lembro, parece-me que os Tiv admiram a simetria, mas também admiram o que consideram assimetria de bom gosto. Admiram peças de escultura que tornem uma idéia mais intensa. Não posso falar mais a respeito até poder voltar a Tivland para examinar o assunto. De qualquer modo, aprendi o seguinte: eu errei em meu trabalho de campo porque, seguindo a moda ocidental, prestei muita atenção nos artistas. Quando os artistas me decepcionaram, nada me sobrou. Quando retornar, pesquisarei os críticos. E, em Tivland, quase todo homem é crítico. Uma vez que não há especialistas em gosto e somente uns poucos na produção de arte, todo homem é livre para saber do que gosta e fazê-lo, se puder. Parece-me que os Tiv são tão conscientes dos motivos que os levam a gostar de algo quanto o são das implicações de muitos outros aspectos de sua cultura. Em todas as esferas, essa é uma faculdade que varia enormemente de uma pessoa para outra. Há tantos críticos de arte razoáveis entre os Tiv quanto teólogos

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ou teóricos políticos. Pelo menos tendo em conta o que estudamos acerca das idéias Tiv sobre religião e política. Problemas de criação nas sociedades primitivas são interessantes, mas podem ser obscurecidos pelos problemas da crítica, a partir do ponto de vista de seu significado nas sociedades em foco. Podemos chegar à estética de um povo estudando a relação de sua própria crítica com os objetos de arte. O que é mais promissor do que estudar a relação da criação com os objetos de arte.

Paul Bohannan nasceu em 1920 na cidade norte-americana de Lincoln, no estado de Nebrasca.Tornou-se Doutor em Antropologia em 1951 pela Universidade de Oxford. Lecionou em diversas universidades, como as de Princeton, Chicago e Califórnia. Pesquisador, escreveu vários livros sobre os Tiv e outros povos africanos. Dentre os trabalhos publicados destacam-se: How culture works (1995) e, com outros autores, Law, biology and culture: the evolution of law (1983); High points in anthropology (1988); Africa and Africans (1995) e Culture as given, culture as choice (1999). Bohannan morreu em 13 de julho de 2007, em Visalia, California.

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O artigo discute a história da videoarte, traçando, de início, algumas reações à sociedade tecnológica e aos valores de mercado no século XIX. Usando a fotografia como exemplo, a autora observa, no debate evocado, a dialética entre ciência e tecnologia, de um lado, e mito e magia, de outro. Diante das estratégias das vanguardas do século XX, a intenção da autora é perguntar-se se implicavam libertação ou acomodação às instituições da arte e do mercado. Ainda tendo como norte a história do vídeo, Rosler considera, de uma perspectiva historiográfica, os interesses das instituições de arte e de fomento que de algum modo forçam o adestramento da videoarte. Distinguindo várias correntes na produção artística do pós-guerra, a autora verifica o papel do mito na relação com a tecnologia e a influência de Mashal McLuhan sobre a formação e recepção das práticas da videoarte. Videoarte, vanguarda norte-americana, arte e tecnologia.

O que passamos a conhecer como videoarte experimentou momento Tradução Luiz Cláudio da Costa. 1 Originalmente publicado em Block, Londres, n. 11, Inverno, 1985/1986. A versão aqui traduzida foi retirada de Hall, Doug. Fifer, Sally Jô. Illuminating video: an essential guide to video art. New York: Aperture Foundation/ BAVC, 1990.

utópico no início de seu desenvolvimento, encorajado pelos eventos dos anos 60. A atenção à vida social, incluindo o questionamento de seus objetivos básicos, teve efeitos inevitáveis nos interesses artísticos e intelectuais. Teorias comunicacionais e sistêmicas do fazer artístico, baseadas parcialmente nas teorias visionárias de Marshall McLuhan e Buckminster Fuller, bem como no estruturalismo de Claude Lévi-Strauss – para mencionar apenas algumas das figuras mais representativas –, deslocaram os modelos expressivos da arte que dominaram o Ocidente desde os primeiros momentos do pós-guerra. Os artistas acreditavam em novos contornos intervencionistas de auto-imagem (até mesmo mágica e xamanística), buscando outra via para o poder da arte, em contraponto, discordante ou harmônico, aos poderes formadores dos meios massivos da cultura ocidental. Sem considerar as intenções dos artistas (intenções, com efeito, heterogêneas) que se voltavam para as tecnologias televisivas, especialmente para o equipamento portátil introduzido na América do Norte no final dos anos 60, o uso da mídia feito pelos artistas ocorreu, necessariamente, vinculado à tecnologia afim: a televisão por radiodifusão e a estrutura de celebridade que ela abraçou. Muitos desses novos usuários se viam conduzindo um ato de crítica social profunda, crítica especialmente dirigida à dominação de grupos e de indivíduos tornados modelos pela televisão e, provavelmente, pelas correntes mais influentes da cultura industrial e tecnológica do Ocidente. Esse ato crítico era rea-

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lizado através de um meio ele mesmo tecnológico, cujo potencial para comunicação interativa e multilateral, ironicamente, parecia sem limite. Os artistas estavam respondendo não só à situação do público de massa, mas também ao silêncio e à mudez particular dos artistas como produtores de cultura viva em face das vastas indústrias de comunicação de massa: a indústria cultural contra a indústria da consciência. Como um reflexo da segunda motivação, talvez mais imediata, os primeiros usos da tecnologia do vídeo portátil representaram uma crítica às instituições de arte na cultura ocidental, vistas como outra estrutura de dominação. Conseqüentemente, o vídeo colocou um desafio aos lugares de produção de arte na sociedade, às formas e aos “canais” de distribuição e à passividade da recepção neles construída. Crítica não só sistêmica como também utópica estava implícita nos usos iniciais do vídeo, na medida em que o esforço não era entrar no sistema, mas transformar cada aspecto dele e – legado do projeto revolucionário da vanguarda – redefinir o sistema a partir da existência, mesclando a arte à vida social, promovendo relações intercambiáveis entre o público e o produtor. A tentativa de usar o principal meio vernáculo e popular teve diversas vertentes. O empenho da linhagem de inspiração (ou de influência) surrealista foi o de desenvolver uma nova poesia para essa “linguagem” diária da televisão, de inserir prazer estético numa forma massiva e fornecer o vislumbre utópico proporcionado pelas sensibilidades “liberadas”. Tal esforço não tinha simplesmente o significado de uma estética hedonista protegida da realidade instrumental, mas de uma manobra de libertação. Outra vertente valia-se mais da informação que da poesia, menos empenhada na transcendência espiritual, ainda que igualmente ou mais interessada na transformação social. Sua dimensão política era alegadamente mais coletiva, menos visionária, em seu esforço de abrir um espaço no qual as vozes dos sem-voz pudessem ser articuladas. Era verdade que a primeira dessas vertentes, firmada sobre a sensibilidade e o posicionamento do indivíduo, significava as possibilidades do uso do vídeo como um teatro do “eu”, como um meio narcisista e auto-referencial. E, com efeito, o posicionamento do indivíduo e o mundo “privado” sobre e contra o espaço “público” das massas tem estado constantemente em questão na cultura moderna. Não obstante essa ênfase na experiência e nas sensibilidades do indivíduo e, portanto, na “expressão” como emblemática da liberdade pessoal – e isso como um fim em si mesmo –, forneceu uma abertura para a assimilação do vídeo, como “videoarte”, nas estruturas existentes do mundo da arte. Um esforço principal das estruturas institucionalizadas de distribuição de arte (museus, galerias etc.) tem sido o de adestrar o vídeo, ignorando ou extirpando os elementos implícitos de crítica. Tal como com os primeiros movimentos modernos, a videoarte tem tido que se posicionar em relação à “máquina” – aos aparatos da sociedade tecnológica, nesse caso, a radiodifusão eletrônica. Por ora a “museificação” do vídeo tem significado, por parte dos escritores e patrocinadores do mundo da arte, o menosprezo consistente da

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relação entre a “videoarte” e a radiodifusão em beneficio da concentração sobre a preocupação distintamente moderna com as “essências do meio”. Este artigo, na Parte I busca traçar algumas linhas básicas das reações dos artistas à sociedade tecnológica nascente e aos valores de mercado no século XIX, usando a fotografia como exemplo principal. A discussão evoca a dialética entre ciência e tecnologia, por um lado, e mito e magia, por outro. Considerando as estratégias das vanguardas do início do século XX, com respeito à sociedade tecnológica e consumista agora já bem fortificada, essa parte do trabalho coloca a questão: movimento em direção à liberação ou à acomodação? A Parte II considera a historiografia e os interesses das instituições de fomento, com a história do vídeo em mente. A Parte III considera o papel do mito na relação com a tecnologia, abordando os efeitos formadores da vanguarda americana do pós-guerra e a influência de Marshal McLuhan sobre a formação e a recepção das práticas da “videoarte”. Parte I: pré-história O vídeo é uma prática jovem, que depende de tecnologias de reprodução que surgiram mais recentemente na história. Não obstante, a videoarte tem sido forçada a padrões configurados no século XIX. Naquele século, a ciência e a máquina – isto é, a tecnologia – surgiram como meios para a educação das novas classes, bem como para a racionalização da produção industrial e agrícola, o que estimulou seu desenvolvimento. Embora as maravilhas da engenharia da época estivessem orgulhosamente expostas em grandes exibições e feiras para todos admirarem, o consenso sobre os efeitos formadores dessas forças e os valores advindos na sociedade não foi de modo algum claro. Os comentaristas tanto da esquerda como da direita consideravam a centralidade da máquina significante do declínio dos valores culturais do Ocidente. A industrialização, soberana da tecnologia, parecia a muitos suprir o tecido social, destruindo, porém, a vida rural e os valores tradicionais de coesão social e trabalho árduo que haviam antes dado sentido à vida. Os meios de comunicação – sem excluir aqueles meios físicos, tais como as estradas de ferro que uniram comunidades com vias de aço – que, eventualmente, se somaram ao repertório dos efeitos perceptivos foram centrais para a crescente hegemonia da classe média ascendente portadora de valores materialistas e beneficiária dos novos deslocamentos sociais. Embora a nova imprensa de massa ajudasse a comunicação entre classes e facções que competiam pelo poder social, sua grande função era a contínua propagação da ideologia burguesa entre os membros da classe média ainda em formação e para o resto da sociedade. E foi essa ideologia que conferiu à ciência posição central. “A ciência”, como o sociólogo Alvin Gouldner observou, “tornou-se o paradigma prestigioso e visível 2 Gouldner, Alvin. The dialectic of Ideology and technology. New York: Oxford Press, 1976: 7.

do novo modo de discurso”.2 Nem seria preciso acrescentar que o foco na ciência e na tecnologia incorporava os objetivos implícitos de conquista, dominação e empreendimento responsáveis pela degradação do trabalho e destruição da comunidade. As novas tecnologias de reprodução, do início do século XIX em diante, não foram segregadas para o uso e consumo das elites dominantes, mas logo se tornaram integradas

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na vida cultural. Talvez os exemplos mais notórios sejam o crescimento da imprensa de massa, como previamente observado, e a invenção da fotografia, ambas as técnicas anteriores à primeira metade do século XIX. O nascimento da imprensa no século anterior tem sido identificado com a imensa expansão da esfera pública, habitada pelos ilustrados, incluindo os comerciantes cultos da burguesia e a aristocracia instruída. O crescimento da imprensa de massa coincidiu com a pressão para maior participação democrática forçando a inclusão da população não escolarizada e sem propriedade. A erosão da autoridade tradicional, nascida da aristocracia, ajudou a promover uma crise nas ideologias dominantes anteriores. Desse modo, o conflito entre os valores culturais e a máquina nasceram da aristocracia e das novas “massas” proletarizadas, bem como dos artesãos, comerciantes e artistas. A revolta dos artistas contra essa ascendência da tecnologia e do mercado na “cultura”, tornada gueto e reserva privada da classe média entusiasmada, aconteceu no contexto da imersão dos artistas nesse mesmo “sistema de mercado livre” que caracterizou aquela classe. Conseqüentemente, a oposição ao otimismo tecnológico coube a setores sociais diversos por razões distintas. Conservadores na cultura, como John Ruskin, e progressistas na política, como seu antigo aluno William Morris, procuraram encontrar a síntese entre as condições modernas e os valores sociais anteriores. Talvez não seja estender demais a argumentação observar que a centralidade da razão instrumental sobre a vida intelectual (e espiritual) foi o que motivou essas figuras e outras a buscar valores compensatórios. O movimento romântico, tanto aquele que olhava para o passado como aquele que se projetava para o futuro, incorporou essa perspectiva. The world is too much with us; late and soon, Getting and spending, we lay waste our powers: Little we see in Nature that is ours …3 Para alguns, as lutas políticas da época, o crescimento turbulento das metrópoles, abrigando as classes trabalhadoras florescentes, e a concomitante redução da vida rural foram os piores aspectos da sociedade do século XIX. Para outros, como Morris, o pior aspecto foi a situação daquelas novas classes, o empobrecimento da vida material e cultural, e o efeito danoso na sociedade, que ele passou a ver como uma questão de poder político. O pessimismo tecnológico e a tentativa de criar uma nova cultura “humanista” e antitecnológica marcou os esforços desses críticos. A história da reação norte-americana à tecnologia se distingue, entretanto, na origem. Inicialmente desconfiados, os pensadores norte-americanos de meados do século viam na inovação tecnológica a possibilidade de aperfeiçoar o processo de trabalho e desenvolver a indústria norte-americana, protegendo o desenvolvimento moral das mulheres e das crianças. O poeta e pastor transcendentalista americano Ralph Waldo Emerson foi inicialmente um dos otimistas supremos, e mesmo ele se tornaria pessimista na década de 1860.

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3 Wordsworth, William. “The World is Too Much with Us; Late and Soon” (1806). “O mundo está demais conosco; antes e agora / ganhando e gastando, devastamos nossos poderes / Pouco vemos na Natureza que seja nosso...”


Apesar das dúvidas, pressões e tensões, não haveria, é claro, retorno. Nos círculos culturais, mesmo aqueles mais desconfiados do otimismo tecnológico e dos valores da era da máquina incorporavam uma reação à ciência e às tecnologias de reprodução de massa em seu trabalho, bem como freqüentemente alguma aceitação delas. Os pintores impressionistas, por exemplo, colocavam as teorias ópticas retiradas das pesquisas científicas e técnicas (como a trama de tapetes) no centro de seus trabalhos, mantendo a fotografia distante pela ênfase na cor. Eles também viravam as costas para os traços visíveis do industrialismo na paisagem, em nostálgico pastoralismo. A fotografia rapidamente forçou as outras práticas visuais (e poéticas!) a dela dar-se conta, mas esforçou-se em suas práticas estéticas a imitar as artes tradicionais. Como já demonstrou Richard Rudisill, as imagens visuais, mania norte-americana mesmo antes da invenção do daguerreótipo, caíram direto no coração da cultura americana tão 4 Em Mirror Image: the influence of the Daguerreotype on American Society. Albuquerque: University of New Mexico Press, 1971.

logo o processo de reprodução tornou-se disponível.4 Rudisill observa que Emerson se auto-referia como um grande olho alerta aos momentos excepcionais da visão interior. Como notou John Kasson, Emerson estava “mais preocupado com as possibilidades da imaginação na democracia” e “se dedicava não tanto à política diretamente como à ‘política da visão’. Para Emerson, a democracia política estava incompleta a não ser que levasse

5 Kasson, John F. Civilizing the machine: technology and republican values in American, 1776-1900. Harmondsworth: Penguin, 1976.

a uma completa liberdade humana num estado de consciência iluminada e de percepção”.5 A identificação dos detalhes observados do mundo externo objetivo com os conteúdos da interioridade, da paisagem externa com a paisagem interna, e com as demandas intelectuais e éticas da participação democrática supriu um motivo para a cultura metafísica americana que preservamos. Logo antes do aparecimento da fotografia, a popularidade da arte norte-americana com os norte-americanos chegou ao cume com os clubes de arte, nos quais as pessoas comuns, através de inscrições ou de loterias, recebiam trabalhos de arte norte-americanos, a maioria deles cuidadosamente descrita na imprensa popular. O declínio desses clubes coincidiu com a ascensão das novas tecnologias fotográficas, que estavam muito mais próximas do coração da vida privada que a pintura, o desenho ou a gravura. Os artistas perceberam isso. É importante notar que a pessoa que introduziu a fotografia nos Estados Unidos, Samuel F. B. Morse, um pintor e também o inventor do telégrafo, recebeu do próprio Daguerre o processo fotográfico. Enquanto conversavam na residência temporária de Morse em Paris, o diorama de Daguerre, feito de ilusões protofílmicas de cenários, gritos e luzes variáveis, era consumido pelo fogo. Isso é matéria para o mito. Apesar de a combinação das circunstâncias vincularem-se a Morse, levou cerca de 100 anos para que se conseguisse juntar as tecnologias de reprodução do som e da imagem. A história subseqüente da alta cultura ocidental, que eventualmente também incluiria a alta cultura norte-americana, implicou os esforços de adaptação e resistência às novas

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tecnologias. Embora os artistas houvessem tido história de alianças com a ciência desde o Iluminismo (e apesar de suas posições de mercado em relação à classe média, como já descrito), mesmo aqueles artistas favoráveis às tecnologias, como os impressionistas, e os fotógrafos estavam provavelmente dispostos a desafiar a autoridade dos cientistas, com freqüência acentuando o mágico, o poético, a incomensurabilidade. Os poderes da imaginação estavam no centro da reivindicação por parte dos artistas de sua mais nova autoridade, baseada na ordem da interioridade e da sensação ou percepção, apesar do fato de que a formulação daqueles poderes tivesse sido baseada em métodos e descobertas do campo rival, a ciência. Setores da prática artística do final do século XIX estimularam saberes ocultistas, primitivos, machistas e de outras fontes irracionalistas de conhecimento e autoridade, insights espirituais freqüentemente baseados não na percepção propriamente, mas em interpretação e sinestesia, bem como uma rejeição à Natureza “feminina”. A dialética desses impulsos é familiar na cultura moderna, como Nietzsche sugeriu. John Fekete, em The Critical Twilight, chamou o Simbolismo, cuja gênese ocorreu durante esse período, de “estética em crise, protestando histericamente contra as pressões da mercadoria”.6 Fekete se refere à tentativa de excluir toda a história e a sociedade como “o súbito desespero de total frustração e impotência”.7 O lamento de Wordsworth sobre “ganhos e gastos” é transformado em inversão estética e misticismo. Fekete observa, significativamente, a transformação do formalismo de Rimbaud, que insiste sobre a “desordem

6 Fekete, John. The Critical Twilight: exploration in the ideology of anglo-american literary theory from Eliot to Mcluhan. London: Routledge & Kegan, Paul, 1977: 15. 7 Id., ibid.

de todos os sentidos”, para as versões mais modernas do esteticismo formalizado, que “fazem fetiche da linguagem e [abraçam] seus princípios de ordem”, promovendo “a unidade característica das ideologias contemporâneas da ordem”,8 incluindo a ordem social. A submissão à Modernidade está associada com o cubismo, que identificou a visão racionalizada com a cultura inumana. Deveríamos notar que a rejeição ao realismo como o fez o cubismo permitiu a pintura continuar a competir com a fotografia, parcialmente por incluir em uma arte visual analogias com o resto do sistema sensorial e parcialmente por opor a simultaneidade à apresentação fotográfica do momento. O sistema sensorial e suas relações com a forma permaneceram no centro da atenção dos artistas. A apologia futurista para o menor dos choques saudáveis de modernidade e urbanismo esboçava uma simultaneidade incoerente que abolia o tempo e o espaço, a história e a tradição. Os efeitos de percepção eram compostos num todo formal no qual a figura e o fundo eram indiscerníveis, e o sentido ideológico, suprimido. Enquanto o futurismo lidava com a Modernidade por meio da abstração e da condensação, o cubismo de Picasso incorporava a imagética africana e o outro “primitivo” como uma técnica de transgressão e interrupção, significando, podese especular, incomensurabilidade e mistério, uma ruptura com a racionalidade burguesa. Tanto o cubismo como o futurismo rejeitavam o espaço fotográfico. Até aqui tenho apresentado a fotografia encenando o papel da criada racional e racionalizante da dominação tecnológica da burguesia. Há outro lado para ela. Próximo à virada

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8 Id., ibid.: 16.


do século, a fotografia estava bem estabelecida enquanto forma de representação racional da vida privada e de todos os tipos de espetáculos públicos, mas também implicada em tecnologias oficiais e não oficiais de controle social – a fotografia policial, a antropometria, a documentação urbana, os estudos de movimento e tempo, entre outros exemplos. A fotografia era uma mercadoria disponível em quantidade para milhares de pessoas. Mas, como já observado, a prática estética na fotografia estava interessada no modelo proporcionado pelas outras artes. A fotografia estética européia depois da primeira metade do século XIX estava associada com a auto-imagem da elite intelectual e social (por intermédio do trabalho de Julia Margaret Cameron) e com a apreciação das premissas do Realismo pictórico, embora com distanciamento ponderado (P. H. Emerson). 9 A fotografia de secessão foi um movimento de fotógrafos do início dos 1900, liderados por Stiglietz, que ajudou o reconhecimento da arte fotográfica como meio de expressão individual. O grupo fundou o periódico especializado Camera Work, que operou entre 1902 e 1917. (NT)

A primeira prática de fotografia artística importante nos Estados Unidos, a Foto-secessão,9 de

10 Em Camera Work (1985), citado por Sally Stein em “Experiments with the mechanical palette: common and cultivated responses to an early form of color photography. Stieglitz escreveu: “... no Kaiser Wilhelm II, eu experimentei a sensação maravilhosa do desenho gráfico do aparelho Marconi, num espaço de tempo de uma hora no meio do oceano; da escuta do pino Melte-Mignon que reproduz automática e perfeitamente o tocar de qualquer pianista...; e de olhar aquelas inacreditáveis fotografias em cor! Que facilidade aprender a viver com nossas visões antigas!”

entusiasmo pela reprodução mecânica do som produzido pela pianola sem fio.10

Alfred Stieglitz, teve como modelo os movimentos de secessão europeus fim-de-século, com os quais Stieglitz havia tido experiência de primeira mão. Stieglitz misturou noções simbolistas com o realismo pictórico esteticista de seu mentor, Emerson. A simultaneidade pictórica da sinestesia simbolista atraiu esse antigo estudante de engenharia, que também revelou seu

O exemplo fotográfico fornece uma compreensão das escolhas e silêncios do esteticismo com respeito à tecnologia. Somado ao uso de uma câmera – uma intrusão mecânica ainda confusa –, essa nova arte da fotografia dependia para sua influência das últimas tecnologias de reprodução em massa. Na publicação de Stieglitz, Camera Work, que ajudou a criar o cânone da arte fotográfica no nível nacional e mesmo internacional, fotografias históricas e da época apareciam como fotogravuras e com técnicas de sombreamento, ambos os processos só recentemente desenvolvidos para a impressa de massa. Assim, uma arte aparentemente hostil e contrária à cultura de massa, preservando valores artesanais e argumentando contra “a consciência do trabalho”, com efeito, dependia de suas tecnologias: um aparente paradoxo que vale a pena lembrar. A câmera e as tecnologias de impressão eram percebidas como neutras, máquinas a serem categorizadas pelos conhecimentos superiores de uma elite estética. A sensibilidade estética foi uma prova alquímica que efetuou mágica transformação. Até 1916, Stieglitz já estava tão vinculado ao modernismo fotográfico de Paul Strand, que dedicou os dois últimos números da moribunda Camera Work, especialmente ressuscitada para esse fim, a sua obra. Após Strand, o aparato da câmera e suas “propriedades” predominaram, deslocando o trabalho manual do negativo à impressão do centro da prática da fotografia artística. Para Strand e outros, a câmera era um instrumento da visão consciente que permitia um “corte” politizado no microcosmo urbano, contra-exemplo do camponês, e nas estruturas da natureza. Para os dois, a fotografia era mediação direcionada, e não contrária, ao sentido social. Para outros, é claro, o modernismo fotográfico significava um novo formalismo abstrato ou, através do rápido crescimento do produto fotográfico, um simbolismo corporativo de mercadorias.

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Dessa maneira, o modernismo fotográfico aceitou a ciência e a racionalidade, mas também permitiu o surgimento de um simbolismo atualizado do objeto num mundo de mercadorias, manifestação que a propaganda transformou em credo. Enquanto o pictorialismo fotográfico havia sugerido uma aliança previsível com o esteticismo e o elitismo como nobre baluarte contra a medida monetária do mercado, vendendo o trabalho proletário, o modernismo formalista uniu a alta arte com a cultura e as formas do entretenimento de massa e o mundo das mercadorias. O Modernismo, à maneira kantiana, favoreceu a obra de arte material, mas não explicitou o sentido que ela deveria produzir. As ideologias formalistas foram promovidas por figuras da Bauhaus como László Moholy-Nagy, que propagou um vocabulário de pesquisa e desenvolvimento, pedagogia terapêutica e experimentação. Em arte como em arquitetura, o modernismo formalista prometeu um modo de vida mais saudável, mais eficiente e adaptável – e liberto – para todas as classes. A intenção revolucionária possível, a pavimentar o caminho para a participação democrática, poderia rapidamente tornar-se acomodação para as novas elites tecnocráticas. Já se observou que o modernismo norte-americano do pós-guerra, apesar da sua estrita separação das artes entre si e delas em relação ao mundo social e, ainda, com sua fetichização dos materiais, institucionalizou a vanguarda. Para entender o que isso significa, devemos olhar para os objetivos dos movimentos clássicos da vanguarda do século XX, o dadaísmo e o surrealismo, que apareceram entre os anos 20 e 30, quando a sociedade tecnológica moderna já se encontrava firmemente estabelecida. O uso, ou mesmo a transgressão, das mídias de comunicação e reprodução estava em pauta, já que a vanguarda via as instituições de arte como integradas na sociedade opressiva, mas como idealmente posicionadas para efetuar a mudança social revolucionária; isso sendo talvez uma maneira retrabalhada do esforço simbolista para desordenar os sentidos, mas com novas intenções políticas. O objetivo do dadaísmo e do surrealismo era destruir a arte como instituição, fundindo-a com a vida cotidiana, transformando-a e rompendo o então bem estabelecido racionalismo tecnológico da sociedade de massa e sua capacidade de manufaturar o consenso para a promoção da escravidão e do assassinato em massa racionalizado. Peter Burger descreveu a atividade da vanguarda como a autocrítica da arte como instituição, voltando-se contra ambos “o aparato de distribuição do qual a obra de arte depende e o prestígio da arte na sociedade burguesa definido pelo conceito de autonomia”.11 Desse modo, Duchamp com seus readymades e através de sua validação de objetos desprezados,

11 Burger, Peter. Theory of the Avant-Garde. Michael Shaw (trad.), Manchester: Manchester University Press, 1984: 34.

pela mediação da assinatura do artista, expôs as operações reais do aparato da distribuição de arte. Burger escreve: ... a intenção dos vanguardistas pode ser definida como o esforço em direcionar para a prática a experiência estética (que se rebela contra a práxis da vida) desenvolvida pelo Esteticismo. Aquilo que mais fortemente entra em conflito com a racionalidade de meios e fins da sociedade burguesa é o que se tornaria o princípio organizador da vida.12

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12 Id., ibid.


Os esforços disruptivos do expressionismo, do dadá e do surrealismo tinham a intenção de transgredir não só o mundo da arte, mas também a realidade social convencional e, com isso, tornar-se um instrumento de liberação. Como Burger sugere, a vanguarda pretendia, por um lado, substituir a produção individualizada por uma prática mais coletiva e anônima e, por outro, afastar-se do endereçamento individualizado e da recepção restrita da arte. Mas, como Burger conclui, os movimentos de vanguarda fracassaram. Em vez de destruir o mundo da arte, o mundo da arte cresceu para absorvê-los, e suas técnicas de choque e transgressão foram assimiladas como a produção de novos efeitos revigorantes. A Anti-arte tornou-se Arte para usar os termos de Allan Kaprow no início dos anos 70. Kaprow – ele próprio um representante da vanguarda do pós-guerra nos Estados Unidos, aluno de John Cage – ajudou a criar uma forma temporariamente não assimilável, o happening, mais ou menos uma década antes. Kaprow escreveu, em “The Education of the Um-Artist”, Part I”: Neste estágio de consciência, a sociologia da cultura emerge como um grupo de pantomima. Seu único público é uma lista de profissionais da criação e da performance, olhando a si mesma, como se diante de um espelho, representar uma luta entre padres autodesignados e uma tropa igualmente autodesignada de soldados, coringas, moleques de rua e agentes triplos que desejam destruir a igreja do padre. Mas todos 13 Kaprow, Allan. “The Education of the UmArtist, Part I”, ArtNews, february 1971. (“A educação do não artista, Parte 1”, Concinnitas, ano 4, n. 4, março 2003).

sabem como o espetáculo termina: na igreja, é claro...13 Como Kaprow bem compreendeu, se o projeto de destruição da arte como esfera separada foi alcançado em algum lugar, isso se deu no mercado, o que significou uma frustração para os desejos vanguardistas. Mas nada tem o êxito comparável ao do fracasso, e nesse caso o fracasso significou que a vanguarda tornou-se a academia do mundo do pós-guerra. A cena do pós-guerra norte-americano mostrou uma hegemonia efervescente ao contrário do mundo da arte ocidental. A estabilidade e a ordem pareciam ter sido erguidas numa arte de alienação e isolamento. A alta cultura pareceu ter conquistado as influências “negativas” tanto da política como da cultura de massa, excluindo rigorosamente – ou digerindo e transformando – ambas através de um esteticismo radical agora completamente familiar. O discurso da arte atualizou o uso da dialética da experimentação científica sobre a técnica e a transformação mágica através do esteticismo e do primitivismo, dando uma guinada na direção de uma vanguarda de conhecimento técnico. Essa condição hegemônica durou tanto quanto “o século norte-americano” que ela parecia acompanhar – isto é, até a nova década de 1960. O rápido crescimento da televisão e das tecnologias cibernéticas, que teriam alcançado grande impulso proveniente da guerra e da militarização norte-americana, acelerou a crise. A televisão não teve dificuldade de se erguer a partir do formato e da estrutura do rádio, com as imagens adicionadas. O rádio se havia estabelecido de maneira semelhante à da imprensa de massa e da fotografia nos séculos anteriores e teve papel vital na disseminação das novas ideologias do consumo,

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do norte-americanismo e do Estado. Como a fotografia, o rádio dependia da ação a distância, mas com o fator adicional da simultaneidade. Ele se assemelhava a um presente, uma dádiva, livre como o ar. As únicas vendas diretas vinham dos aparelhos – que tomavam formas extravagantes de mobiliário, arquiteturas de arranha-céu, catedrais, e a lareira, as ornamentações e o piano, tudo em um, com ecos do barco a vapor. Tempo comprado aparecia como tempo grátis, e a ausência aparecia como presença. O rádio tinha a legitimidade da ciência (e da natureza) e a fascinação da magia. A televisão podia incorporar nisso todas as adaptações provenientes da fotografia e do filme, ainda que em sua forma degradada. Como na propaganda, todos os textos importantes viriam junto às imagens do mundo objetivo, adicionando o espetáculo do Estado e o caos das ruas, e as intrusões nas vidas privadas dos grandes e dos pequenos, as celebridades e os anônimos. A televisão seria como uma revista de massa animada e algo mais. Como os comentaristas, de Dwight Macdonald e Marshal McLuhan a Guy Debord e Jean Baudrillard, já observaram, o microcosmo totalizante da televisão suplantou a experiência mais ambígua do mundo real. Alvin Gouldner teoriza sobre a guerra entre o aparato cultural (termo de C. Wright Mill) e a indústria da consciência (expressão de Enzensberger). Gouldner cita o ensaio de Herbert Gans de 1972: “o fenômeno mais interessante na América... é a luta política entre culturas de gosto para saber qual delas predominará na mídia de massa e qual irá suprir a sociedade com seus símbolos, valores e visão de mundo”.14

14 Gouldner, op. cit.

Essa luta, o leitor irá reconhecer imediatamente, é a continuação daquele conflito ocorrido no século anterior e que parecia, naquela conjuntura, um antagonismo entre a cultura baseada nos valores aristocráticos e aquela fundada em valores novos, científicos e centrados na classe média. O expressionismo abstrato seguiu o caminho de uma vanguarda boêmia empobrecida com elementos esteticistas fortes, mas tão destituído da simpatia dos proletários como o grupo de Stieglitz e não tão confortavelmente situado. Com relativa rapidez, o expressionismo abstrato encontrou-se abençoado com o sucesso – ou amaldiçoado. Repentinamente, esses artistas acostumados a uma existência marginal estavam produzindo mercadorias extremamente caras e exibindo biografias altamente fetichistas. Jackson Pollock apareceu na capa da revista Life e foi mostrado em poses similares às de James Dean, outra figura rebelde e filho pródigo amado. A divinização dos artistas como celebridades dos meios de comunicação de massa inverteu seu significado. A dominação do sistema de distribuição sobre os artistas que vendiam no mercado tornou-se evidente para aqueles que queriam perceber. Vários autores também já demonstraram como essa arte de elite, uma arte que sugeria a dúvida e a abstração, a liberdade e o empobrecimento, uma arte que apavorou os populistas da esquerda e da direita, tornou-se a embaixadora do império norte-americano.15 A Pop Arte deu o passo seguindo a mesma lógica, uma aceitação pública e ritualizada do poder da cultura de massa através da ênfase na passividade e na renúncia ao patriarca-

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15 Ver o artigo de Max Kozloff de meados dos anos 70 na Artforum sobre o expressionismo abstrato e a guerra fria e, ainda, a subseqüente releitura de Eva Cockcroft da situação na mesma revista. Ver também, Geuilbalt, Serge. How New York stole the Idea of Modern Art: abstract expressionism, freedom and the cold war. Chicago: University of Chicago Press, 1983.


lismo, da aura da alta cultura e da autonomia. A cultura de massa e o Estado haviam, afinal, promovido o expressionismo abstrato ao “sucesso” e feito dele um produto cuja marca registrada, “Made in USA”, selava e aprovava qualquer mercadoria. A Pop de Warhol foi uma “confissão” multifacetada e complexa da falta de poder, alcançada através de produções, séqüitos, modos de produção e pose que mimetizavam, degradavam, fetichizavam e traduziam mal, de modo escravizado, as produções engenhosas, mas sem costura, da cultura de massa corporativa, especialmente, aquela das tecnologias de reprodução. A parte irônica do escravo na relação entre arte e tecnologia foi a de reter a técnica mais antiga e artesanal de tinta óleo e silk screen, mas para copiar e reordenar os ícones reificados dos meios fotográficos de comunicação de massa. A apoteose da vanguarda foi sua transmutação em uma empregada da cultura de massa. A aura passou para a cópia. Assim escreveu Kaprow sobre o contexto social do período e a consciência da arte, em sua terminologia: ... é difícil não declarar como fatos notáveis: que a nave enviada à lua, o Módulo Lunar, é evidentemente superior a todos os esforços esculturais contemporâneos; que a transmissão da troca verbal entre Centro Espacial Tripulado de Houston e os astronautas da Apollo 11 foi melhor que a poesia contemporânea; que, com suas distorções sonoras, bips, estática e as pausas na comunicação, tais trocas também ultrapassaram a música eletrônicas das salas de concerto; que alguns videoteipes, remotamente controlados, sobre famílias em guetos, gravados (com a permissão delas) por antropólogos, são mais fascinantes que os célebres filmes underground sobre vidas divididas; que, não tão poucos, os postos de gasolina superiluminados feitos de aço e plástico são as peças mais extraordinárias da arquitetura de hoje; que os movimentos casuais e irresponsáveis dos consumidores num supermercado são mais ricos que qualquer coisa feita em dança moderna; que o lençóis sobre as camas e os resíduos nos lixões industriais são mais atraentes que as numerosas exposições que espalham material inútil; que o rastro de vapor deixados pelos foguetes em teste – rabiscos sem movimento, preenchendo o céu com as cores do arco íris – são inigualáveis aos experimentos com meios gasosos feitos por artistas; que o teatro de guerra no Vietnam, no sudeste asiático, ou o julgamento do “Oito de 16 Com referência ao julgamento de oito pessoas, presas e acusadas de conspiração e incitação de tumultos, no contexto dos violentos protestos em Chicago contra a Guerra do Vietnam por ocasião da Convenção Nacional do Partido Democrata em 1968. O julgamento acabou por absolver os acusados. (NT) 17 Kaprow, op. cit.

Chicago”,16 enquanto não defensáveis, é melhor que qualquer peça; que... etc., etc., a não-arte é melhor que a ARTE-arte.17 Apreendendo os colapsos dos espaços públicos e privados, Kaprow representando também a estética da consciência só se podia curvar diante dos poderes da ciência, da tecnologia, do Estado e da transitoriedade dos subúrbios urbanos modernos, especialmente orquestrados através da televisão. A “anti-hegemonia” dos anos 60 também proporcionou

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uma relação diferente com a discussão sobre poder e liberdade, mais populista que de vanguarda, mais política que esteticista. Os estudantes se rebelaram contra a construção do que Marcuse chamou de cultura unidimensional e seu sujeito de massa, enquanto os excluídos politicamente lutavam contra as condições e grupos que reforçavam sua falta de poder. A mão de aço da ciência e da tecnologia tornou-se um foco de inquietação, particularmente em relação ao militarismo e diante da ameaça de guerra total. A dupla crítica da dominação política e tecnológica ajudou a criar a contracultura comunitária, utópica, populista, irracionalista, antiurbana, antiindustrial, antielitista, antiintelectual, antimilitarista, centrada na juventude. Forças hedonistas, progressivas, racionalistas, anti-sexistas, anti-racistas, antiimperialistas e ecológicas também apareceram. A pressão severa sobre as ideologias reinantes também colocou em dúvida os modelos da alta cultura, especialmente entre seus próprios praticantes mais jovens. Os artistas confiavam mais na liderança da ciência, da ciência social e da teoria da cultura do que na dos comerciantes, dos críticos e dos estetas. Novas formas atacavam de frente a condição de mercadoria da arte. A “Objetidade” tornou-se questão não só porque os objetos de arte eram mercadorias mas porque eles pareciam insignificantes e inertes diante das ofertas da eletrônica e dos produtos de massa dos meios de comunicação. Parte II: história Enfim, o vídeo. Esse é um território já bem trabalhado. Com efeito, o passado do vídeo é objeto mais do mito que da história. Poderíamos todos recitar como uma litania os “fatos” que sublinham o desenvolvimento da videoarte. Alguns olham para o uso substantivo em ambientes de arte do aparelho ou dos aparelhos de televisão na forma danificada ou alterada no final dos anos 50 ou início dos 60. Outros preferem centrar sobre a disponibilidade súbita dos Portapacks da Sony na metade da década de 1960 ou sobre o impulso fornecido pelo capital de Rockfeller para o uso dessa nova tecnologia leve por parte dos artistas. Mas parece ser consenso que há uma história do vídeo a ser escrita imediatamente. Gostaria de considerar a natureza de tais histórias e sua possível significação. São significativos os relatos históricos que buscam dar legitimidade a reivindicações de uma história pública. Essa história seguiria o padrão de uma vertente ampla, com relatos quase interpretativos, ativada por ocorrências significantes, que, por um lado, são realizadas por pessoas poderosas e, por outro, determinam ou afetam o que se segue. A história do vídeo não seria então uma história social mas uma história da arte, relacionada, mas separada, àquela das formas artísticas. O vídeo, além do mais, pretende ser uma arte maior e não menor. Por que histórias agora? É a hora correta ou os guardiões do vídeo estão lendo nas paredes das galerias o graffitti que proclama a morte ou o rebaixamento da fotografia? (Como as da fotografia colorida, as qualidades de manutenção e de arquivo do vídeo parecem desanimadoras, fazendo com que ambos desapareçam sem deixar rastro). Se o vídeo perder

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credibilidade, pode desaparecer como campo para a curadoria. Ou talvez o crescimento do vídeo doméstico e da televisão musical tenha possibilitado a construção de uma cadeia codificada, atraente e imperativa, de influências e causalidades para a arte do vídeo. Algumas pessoas temem que, uma vez escritas por autores não interessados, as histórias, as questões e os eventos importantes possam ser deixados de fora. Outros compreendem a importância de uma história para manter o dinheiro fluindo. A naturalização do vídeo na cultura de massa coloca pressão para a produção de uma história da arte do vídeo ou videoarte, que pertença ao mundo da arte e que seja escrita por autores com estilos e intenções definidos e reconhecidos em relação aos princípios de construção de outras histórias da arte moderna. Algumas vezes esse esforço para seguir o padrão parece simplório. Por exemplo, um curador norte-americano bem situado fez estes comentários no remoto ano de 1974: A idéia da tela do vídeo como uma janela não é... verdadeira nos melhores usos do vídeo. O vídeo nas mãos de Bruce Nauman ou de Richard Serra é opaco, oposto à transparência. É uma extensão da idéia conceitual em arte. Permite ao público – num nível bastante subliminar e intuitivo – retornar à pintura, olhar para a pintura outra vez, de uma maneira renovada. ... No futuro, a maioria de nós que temos assistido ao vídeo com alguma atenção será capaz de reconhecer a mão do artista no uso da câmera. É possível reconhecer um Van Gogh não falsificado... por certas pinceladas; muito em breve reconheceremos a diferença entre Diane Graham (sic?), Bruce Nauman e Vito Acconci pelo modo de segurar a câmera ou não. O estilo no vídeo, aquelas marcas pessoais, se tornará um tema de discussão. E irá incluir a teoria da informação nos concei18 Livingston, Jane, “Panel Remarks”, in Simmons, Douglas e Allison (orgs.), The new television: a public/privrate art, Cambridge: MIT Press, 1977: 86, livro baseado no Colóquio “Open Circuits”, que aconteceu em janeiro de 1974 em associação com o Museu de Arte Moderna de Nova York.

tos estéticos fora de moda.18 Ai! Suponho que não seja culpa de Jane Livingston que em 1974 a edição de vídeo ainda não se houvesse imposto como a marca de estilo que ela pensou ser o análogo da “pincelada”. Por mais absurdo que possam parecer seus comentários, ela estava certa sobre o papel dos “conceitos estéticos fora de moda”, na medida em que o esteticismo tem-se ocupado em tentar recuperar o vídeo da “informação” desde sempre. É a missão que o mundo da arte se impôs de delimitar as fronteiras do vídeo, desfazer as excessivas referências ao cinema, à fotografia e à televisão, dada a competição no mundo da arte. E, ainda, aniquilar as questões de recepção, da práxis e do sentido em favor das questões comuns relativas a originalidade e estilo. A historiografia não é mero processo de seleção e ordenação, é também um processo de simplificação. Walter Hines Page, editor da revista da virada do século, The World’s Work, gostava de contar aos escritores que “a criação do mundo tem sido contada em um único

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parágrafo”.19 As histórias do vídeo hoje são produzidas para os financiadores potenciais, para o público de museu e outros profissionais envolvidos no meio, com o objetivo de formar a base para as coleções e exposições. A história do vídeo torna-se uma história pop, um panteão, uma crônica. Ou melhor, torna-se uma história corporativa mais que

19 Wilson, Cristopher P. “The rhetoric of consumption: mass market magazines and the demise of the gentle reader, 1880-1920”, in Fox, Richard W. e Lears, T. J. Jackson (orgs.). The Culture of Consumption. New York, Pantheon, 1983: 47.

transgressiva. E os nomes que ocupam os espaços nos primeiros anos são provavelmente os de artistas conhecidos por sua produção antes do vídeo ou então aquelas figuras que permaneceram no sistema, produzindo, por um período de tempo ou no presente, trabalhos convenientes aos museus. E, é claro, eles são provavelmente de Nova York, não de Detroit ou mesmo e Los Angeles ou de San Francisco, sem mencionar San Diego. Alguns historiadores reconhecem a contribuição dos europeus – a maioria dessas histórias foi, provavelmente, produzida na Europa – ou dos canadenses, ou mesmo japoneses, sempre pressupondo que tenham entrado no mundo da arte ocidental. Finalmente, os gêneros de produção devem, certamente, se encaixar naqueles do cinema ou da escultura. A codificação desvirtua a obra aberta e a experimentação, criando formas reificadas em que a intenção era diversa. Isso ocorre mesmo quando a intenção da história é registrar a abertura. E assim por diante. Desse modo, a museificação – o que algumas pessoas podem apontar como a grande esperança do vídeo no presente na possibilidade de manter relativa autonomia do mercado – contém e minimiza a negatividade social que foi a matriz de uso do vídeo em seus primeiros momentos. Parte III: O mito À frente de virtualmente qualquer história do vídeo está o nome de Nam June Paik. Martha Gever, em seu artigo definitivo sobre o tema na ocasião de sua exibição sem precedente no Whitney Museum of American Art de New York, referiu-se à “coroação” de Paik.20 Eu prefiro a palavra “santificação”, já que Paik parece ter nascido para absolver o vídeo de seus pecados. Os mitos de Paik sugerem que ele teria disposto todos os fundamentos, tocado as bases, para liberar o vídeo da dominação da tevê corporativa, e o vídeo pode agora direcionar-se a outros propósitos. Paik também liberou a história do vídeo da complexidade entediante e permitiu um presente menos ordenado. Ao colocar o profeta à frente, não precisamos mais discurir sobre doutrinas, nem consagrar outra figura altaneira, uma vez que a indústria da videoarte ainda precisa de muitas e muitas novas e diferentes produções. O mito de Paik começa com sua súbita iluminação na Alemanha, o lugar da superioridade técnica, por intermédio de John Cage – o vanguardista modernista arquetípico – num encontro em 1958. Martha Gever conta que Paik mais tarde escreveu a Cage em 1972: “Eu acho que os meus últimos 14 anos não foram nada mais que uma extensão de uma noite memorável em Datmstadt em 58”. Paik veio para a América por volta de 1960, de algum modo se afiliou ao movimento Fluxus. O Fluxus era uma vanguarda típica em seus desejos de esvaziar as instituições de arte, em seu uso de meios mistos, detritos urbanos

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20 Gever, Martha, “Pomp and circumstances: the coronation of Nam June Paik”, Afterimage, vol. 10, n. 3, outubro, 1982: 12-16.


Nam June Paik. In-flux house, 1993.

e linguagem; no encalço da presunçosa piada afiada; em seu desprezo pela autoria, pela preciosidade e pela dominação. Paik participou de alguns eventos e, dizem, mostrou seu primeiro teipe num evento Fluxus. Mais uma vez, nos apontando a todos o caminho, dessa vez, do financiamento. Paik supostamente fez esse teipe com alguns dos primeiros equipamentos portáteis a alcançar as praias norte-americanas, equipamento que ele comprou com uma bolsa-auxílio do Fundo John D. Rockefeller, o Terceiro. De acordo com o mito, o teipe era do papa (!). Os elementos do mito assim incluem um visitante do leste, nascido em um país devastado pela guerra (nossa guerra), que fora inoculado pelo mestre-líder da vanguarda dos Estados Unidos ainda nos céus da tecnologia (a Alemanha), e que, uma vez nos Estados Unidos, repetidamente violou o santuário central, a tevê, e depois encarou o representante de Deus na terra, capturando sua imagem para trazer à vanguarda, e que, em seguida, a deixou para juntar as duas pontas do espectro cultural norte-americano incorporando simbolicamente a indústria da consciência nos métodos e idéias do aparato cultural, sempre com o suporte de fundações, do governo, do museu, da transmissão, bem como outras ajudas institucionais.

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E, obviamente, ele é homem. O herói defende o domínio masculino e se curva ao patriarcado, mesmo que apenas em representação. O fio de seu trabalho inclui a fetichização do corpo feminino como um instrumento que se toca e o fio complementar das homenagens a outros artistas-mágicos famosos, masculinos e videntes (como foi o caso de Cage). A mítica figura de Paik tem feito coisas nocivas e desrespeitáveis à televisão que o imaginário coletivo do mundo da arte gostaria de fazer. Ele tem mutilado, violado e fetichizado o aparelho de tevê, defecado simbolicamente sobre ele ao jogar terra sobre o aparelho, confrontado seu tempo limitado e débil ao aproximá-lo da Mente eterna na forma de Buddha, ao aproximá-lo do tempo natural das plantas que nele crescem, ao aproximá-lo da arquitetura e do design de interiores fazendo do aparelho um elemento da mobília e, finalmente, tornado seu sinal eletrônico em barulho musical colorido.21 A interferência de Paik com a inviolabilidade da tevê, com seu ar de não – materialidade, dominou sua instrumentalidade unilateral com uma antiga “criatividade”. Paik importou a tevê para o mundo da cultura de arte, identificando-a como um elemento da vida diária suscetível ao simbólico – esteticismo antiestético, que Allan Kaprow chamou de “arte da antiarte”. Gever discute os efeitos hipnóticos de suas instalações de museu – efeitos que formalizam o sinal da tevê e replicam a passividade do espectador, substituindo mensagens do Estado e do mercado por entretenimento estetizado. Em algumas instalações o espectador é solicitado a deitar-se estirado. Ele nem analisou as mensagens ou efeitos da tevê nem forneceu um contradiscurso baseado em trocas racionais, nem tonou sua tecnologia disponível a outros. Ofereceu-nos uma sinfonia não identificada da mais difundida entidade cultural do cotidiano, sem nos dar quaisquer meios, conceituais ou de outro tipo, para compreendê-la de outra forma que não fosse uma forma simbólica deslocada. A divertida poesia de Paik desmobiliza o espectador. A figura de Paik nessas histórias míticas combina as já familiares antinomias, magia e

21 A autora faz referências a múltiplos trabalhos de Paik, alguns dos quais listados a seguir: TV Cello, de 1971 – o artista empilha aparelhos de tevê, separando os tubos de imagem de seus chassis, aprisionando os tubos em caixas plásticas, expondo a fiação e, ainda, mostrando a performance de violoncelo de Chalotte Moorman; TV Buddha – um dos mais conhecidos trabalhos de Paik, apresentado inicialmente em 1974, na Galeria Bonino em Nova York, depois, no mesmo ano, na Documenta de Kassel e, posteriormente, também em Kassel, em 1977; TV Garden – apresentado na Documenta de 1974, nele Paik conjugava uns 30 aparelhos de televisão colocados sobre o chão e entre eles um enorme número de plantas tropicais. É possível que Rosler faça ainda referência às performances de Moorman agredindo televisões em forma de violoncelo e aos trabalhos dos anos 60 de Paik em que o artista utiliza a força de atração de imãs, como em Magnet TV, de 1965, para impedir que os raios catódicos preenchessem o quadrado da tevê, criando assim variações de formas e ritmos. O público no Rio de Janeiro teve oportunidade de conhecer parte da obra desse artista durante a importante mostra, Vídeos 1961-2000, apresentada na cidade em 2006, no então Instituto Telemar, atual Oi Futuro. (NT)

ciência, que ajudam a reforçar e perpetuar mais que mudar efetivamente o discurso social dominante. Por que isso é relevante? As vanguardas históricas mostraram profunda ambivalência em relação ao poder social da ciência e da tecnologia. O surrealismo e o dadá tentaram opor-se e mesmo destruir a institucionalização da arte na sociedade da máquina, buscaram misturar a arte na vida diária e transformar ambas através da liberação dos sentidos, descongelando o poder da dissensão e da revolta. Embora essa tentativa tenha falhado, as vanguardas subseqüentes, incluindo aquelas que começaram a usar ou a interessar-se pela tevê, tinham objetivos similares. Herbert Marcuse explicou isso em 1937 em seu ensaio “The affirmative character of culture (O caráter afirmativo da cultura).22 Marcuse descreve o uso da cultura pelas elites dominantes como um modo de desviar a atenção das lutas coletivas em prol de mudanças

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22 Zeitschrift für Sozialforschung, Vol VI. Republicado na tradução inglesa de Herbert Marcuse, Negations, Boston: Beacon Press, 1968: 88-133.


na vida humana para o esforço individualizado do cultivo da alma como um jardim, cuja recompensa vazia deveria ser um céu de brigadeiro ou, como se diz atualmente “o crescimento pessoal”. De maneira sucinta, Marcuse mostra que a idéia da cultura no Ocidente é a da neutralização da atividade social e do reforço da aceitação passiva. Na tradição ocidental, a forma foi identificada como o meio para verdadeiramente afetar o público. Gostaria de dar uma rápida atenção a um setor da vanguarda norte-americana e tentar conter o perigo percebido como tendo sido forjado nos meios de cultura de massa. Consi23 A famosa Black Mountain College da Carolina do Norte foi, durante os poucos anos de sua existência (1933-1957), uma das mais progressivas faculdades norte-americanas de artes visuais, literatura e artes performáticas de modo geral. Entre seus professores mais conhecidos estão John Cage, Josef Albers, Mercê Cunningham, Willem de Kooning, Buckminster Fuller, Water Gropius entre outros. (NT)

derem a notável influência de John Cage e dos artistas da Black Mountain College,23 que marcou todas as artes. Cage e companhia ensinaram a atenção quietista ao vernáculo cotidiano, uma atenção à percepção e à sensibilidade que era mais inclusiva que exclusiva, mas que não deixou de ocasionar um fechamento radical ao divinizar os motivos determinadores daquilo que participava do campo perceptivo. Essa perspectiva tem alguma semelhança com o antimodernismo da virada do século, como a versão norte-americana do movimento Arts and crafts, que salientava a importância terapêutica e espiritual da

24 Ver Lears, T. J. Kackson, No place of grace: anti-modernism and the transformation of American culture, 1880-1929. New York: Pantheon, 1981.

experiência estética.24 A versão do artista Cage da metade dos anos 50, como a de Minor White na fotografia, foi marcada pelo misticismo oriental; no caso de Cage, o zen-budismo anti-racional que depende da epifania inesperada para proporcionar a transcendência instantânea; o transporte da vida mundana à sublime. Tal experiência podia ser preparada pela criação de um solo sensório e deveria ser satisfeita com receptividade meditativa, mas não podia ser traduzida em discurso simbólico. A tática de Cage dependia do choque da vanguarda que operava contra os procedimentos recebidos ou fora dos limites da clausura normativa. Como tocar as cordas do piano e não as teclas, como se concentrar sobre o momento da afinação antes do concerto ou fazer de um aparelho de tevê um instrumento musical. Como reclamou Kaprow, essa idéia foi tão poderosa que logo “a não-arte era mais Arte que a Arte-arte”. O que significava que essa prática contra-artística provocadora, essa antiestética, essa forma não institucionalizável de “consciência perceptiva” era rápida e opressivamente institucionalizada, devorada pelas instituições ávidas de arte (Arte) oficial. Muitos dos primeiros usuários do vídeo tinham estratégias e perspectivas similares. Muitos (incluindo Paik) se referiram ao uso do vídeo como estando contra a tevê. Era considerada prática de oposição fazer gestos contra ou contestar o Big Brother. Eles apregoavam a idéia de fazer arte – Douglas Davis chamou a videoarte de “aquele termo detestável”. O termo modernista científico experimentação devia ser entendido no contexto dos anos 60 como uma resposta política furiosa. Para outros, a circulação das teorias da informação no mundo das artes e na crítica cultural fez repensar o aparato do vídeo como um meio de transmissão multiplicada para informação útil com grande potência social mais que um meio de ideologia enfraquecedora de poder para uma recepção individualizada, uma subideologia de vital necessidade.

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Aí entra McLuhan. Inicialmente ele tinha decididas inclinações a favor da forma tradicional de obtenção de conhecimento, a leitura, mas virou sua aprovação para a televisão. Com estilo aforístico peremptório, McLuhan simplificou a história a uma sucessão de causas tecnológicas primeiras. Muitos artistas gostaram disso porque era simples e formal. Eles amavam a frase “O meio é a mensagem” e amavam a identificação do artista como “antena da raça”. McLuhan ofereceu à contracultura o poder imaginário da superação pelo entendimento. As comunidades de esquerda e da contracultura ficaram encantadas com outro epíteto, “a aldeia global”, e a valorização da cultura pré-literária. As idéias de simultaneidade e de um retorno ao Éden, idéias de imediatidade sensorial, deram aos hippies e aos críticos da sociedade industrial unidimensional, alienada e reprimida, um sonho psicodélico, rosado e úmido. John Fekete observa que McLuhan opôs estruturas míticas e analógicas da consciência – tornadas atraentes pelos escritos de Claude Lévi-Strauss – à lógica e à dialética, um movimento que, segundo Fekete, “abre a porta para o deslocamento da atenção das conexões imanentes (sejam elas sociais, políticas, econômicas ou culturais) para as unidades transcendentes formadas fora do controle humano”.25 Fekete em seguida cita um trecho

25 Fekete, op. cit.: 178.

de Roland Barthes sobre o mito (aqui, um tanto abreviado): ... o mito é uma fala despolitizada. Naturalmente, é necessário entender: política no sentido profundo, como conjunto das relações humanas na sua estrutura real, social, no seu poder de construção do mundo... O mito não nega as coisas; a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, purifica-as, inocenta-as, fundamenta-as em natureza e em eternidade, dá-lhes uma clareza, não de explicação, mas de constatação... Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: abole a complexidade dos atos humanos, confere-lhes a simplicidade das essências, suprime toda e qualquer dialética, qualquer elevação para lá do visível imediato, organiza um mundo sem contradições, porque sem profundeza, um mundo plano que se ostenta em sua evidência, cria uma clareza feliz; as coisas parecem significar sozinhas, por elas próprias.26 Este é o sonho do artista moderno! McLuhan concedeu aos artistas um papel de xamã, com poderes visionários, mitopoéticos. McLuhan escreveu que a função da arte é “tornar tangíveis e examinar as dimensões psíquicas inomináveis de experiências novas” e observava que, tanto quanto a ciência, a arte é “um laboratório de investigação”. Ele chamava a arte de “um sistema primário de alarme” e de “radar de avaliação” cujo propósito não era o de nos habilitar para a mudança, mas antes para manter o processo equilibrado. Observem a linguagem militar. A arte deve auxiliar em nossa adaptação para os efeitos de uma tecnologia cuja aparência mesma na história do mundo lhe dá uma força acima dos homens que a criaram.

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26 Barthes, Roland, “O mito hoje”, em Mitologias (New York: Hill and Wang, 1972), p. 143. (da versão brasileira: São Paulo, Rio de Janeiro: Difel, 1980: 163).


McLuhan supriu os artistas com um poder mítico em relação à forma que preenchia suas fantasias impotentes de conquistar ou neutralizar os meios de comunicação de massa. Aceitando mais que analisando seu poder, trilhando seus efeitos na biologia e na fisiologia mais que nas forças sociais, os artistas podiam aplicar uma fórmula velha e familiar de novos modos emocionantes. A velha fórmula envolvia a relação da vanguarda formalista com o fenômeno da vida e da cultura diária. Não tenho a intenção de trilhar os efeitos atuais do pensamento de McLuhan sobre a videoarte, na medida em que considero que os artistas, como outras pessoas, pegam o que necessitam dos discursos à volta e deles retiram o que podem. Muitos produtores insatisfeitos e avançados foram estimulados pelas frases de efeito e rumores do mcluhanismo para tentar novas maneiras para trabalhar com as mídias, especialmente fora da galeria – embora o mcluhanismo, como outras teorias, tenha oferecido aos artistas uma oportunidade de brilhar na glória refletida da mídia predominante e tirar vantagem de seus poderes sobre os outros pela estetização mimética formalizada. Conclusão Algumas das novas histórias do vídeo tomam essa perspectiva formalista e retratam os artistas no ato da objetivação de seus elementos, como se a improvisação pudesse fornecer uma saída para as relações de poder estruturadas no aparato. Reforçar a abordagem formalista fez os artistas curvarem-se, inadvertidamente, como o fizera McLuhan, ao poder dessas mídias sobre a vida cotidiana. Ao fazer a separação de algo denominado videoarte dos vários modos possíveis de as pessoas, incluindo artistas, trabalharem com a tecnologia do vídeo, esses historiadores têm aceitado tacitamente a idéia de que as transformações da arte são formais, cognitivas e perceptivas. Ao menos, isso promove uma relação mistificada da questão de como os meios de produção são estruturados, organizados, legitimados e controlados para os mercados doméstico e internacional. O vídeo, já foi observado, é arte com a qual é mais difícil do que com outras fazer-se dinheiro. Os museus e as agências subvencionadoras protegem o vídeo do mercado, como já mencionei, mas cobram um preço inflexível. As artes que são marginalmente vendáveis se encolhem ou ficam ausentes do aparato crítico, e o vídeo não é exceção. As resenhas críticas para o vídeo, na maioria das publicações, têm sido esparsas e sem expressividade. Isso deixa a teorização para pessoas com outros interesses. Na ausência de tais suportes críticos, a institucionalização deve envolver a desfiguração tanto da prática quanto do discurso na direção do padrão mais familiar e mais palatável para os membros dos conselhos e das instituições subvencionadoras dos museus reputadamente conservadores – mesmo quando as instituições efetivamente exibem trabalhos que estão fora desses limites estreitos. Para recapitular, essas histórias parecem confiar em limitadas (pseudo)transgressões das instituições, seja o museu ou a televisão, em rearranjos formalistas do que é cha-

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mado, de maneira acrítica, de “capacidades” do meio, como se essas fossem dadas por Deus, um discurso cientificista tecnocrático que substitui considerações de uso humano e recepção social com discussões altamente abstratas de tempo, espaço, circuito cibernético e fisiologia; isto é, um vocabulário preciso do modernismo formalista datado e desacreditado. A aceitação por parte dos museus elevou a importância das instalações que fazem com o vídeo esculturas, pinturas ou naturezas mortas, porque as instalações só podem viver em museus – que ostentam uma expansão high-tech ao aceitar montanhas de equipamentos glamourosos e obedientes. Os quadros curatoriais também gostam de diferenciar gêneros, de tal modo que o vídeo foi forçado àquelas formas datadas familiares: o documentário, o pessoal, o travelogue, o abstrato-formal, a imagem de processamento – e, agora, àquelas variedades do vídeo de horror, dança, paisagem e de música. E, desses, só o curador corajoso exibirá o documentário com regularidade. Mesmo os sistemas interativos, forma transgressiva comum do início dos anos 70, aparecem bem menos atualmente. Talvez a conseqüência mais difícil da institucionalização seja a “profissionalização” do campo, com sua adoração inevitável dos chamados “valores de produção”. Esses são nada mais do que um conjunto de mudanças estilísticas vinculadas à televisão comercial, no melhor dos casos, em correlação com o universo eletrônico. Nada se poderia adaptar melhor à indústria da consciência do que fazer os artista limparem as arestas, ornarem as formas e literalmente desenvolverem estratégias para a publicidade e as artes gráficas. O problema é que “valores produtivos” significam o custo de imensas quantidades de dinheiro na produção e na pós-produção. E as despesas em edição por computador, rapidamente tornando-se o padrão nos circuitos da videoarte, superam em muito aquelas da edição do filme (pessoal). Alguns dos mais honestos produtores da arte do vídeo imaginam que a condensação dos efeitos formais dessa tecnologia amigável irá expor as intenções manipuladoras da televisão. A história das vanguardas e de seu fracasso em transgredir o poder tanto das instituições de arte ou das tecnologias avançadas através desses modos sugere que esses esforços não podem dar certo. Alvin Gouldner assim descreve a relação entre a arte e a mídia assim: Tanto o aparato cultural como a indústria da consciência são similares no caráter sonhador da consciência moderna; mistura altamente instável de pessimismo cultural e otimismo tecnológico. O aparato cultural é mais provavelmente o portador da má notícia relativa, por exemplo, da crise ecológica, da corrupção política, dos preconceitos de classe; enquanto a indústria da consciência se torna os abastecedores da esperança, os profissionais do otimismo. A impotência política e

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o isolamento dos quadros dos aparatos culturais sedimentam seu pessimismo em sua vida cotidiana, enquanto os técnicos da indústria da consciência são cercados por e fazem uso dos mais caros, avançados e poderosos equipamentos das comunicações, o que sedimenta todos os 27 Gouldner, Alvin. op. cit.: 175.

dias seu otimismo tecnológico.27 Podemos deduzir que o entusiasmo corrente dos artistas de vídeo para produções com alta tecnologia é uma questão de inveja. Seria uma pena se a institucionalização da videoarte desse impulso injustificado aos desejos dos artistas de conquistar seu pessimismo

28 Ver Furlong, Lucinda, “Getting hig-tech: the ‘new’ television”, The independent (março, 1985: 14-16); ver também Rosler, Martha, “’Video art’, its audience, its public”, The independent (dezembro, 1987: 14-17).

enfeitando-os com essas tecnologias positivistas e poderosas.28 Por outro lado, como o exame do mito Paik sugere, seria igualmente equivocado pensar que o melhor caminho da transgressão é a destruição da tevê como objeto material, o desvio de seu sinal ou outros atos igualmente tolos. O poder da televisão confia em sua habilidade em monopolizar o mercado de mensagens, de mensagens interessantes, mensagens aborrecidas, imagens instantaneamente e infindavelmente repetitivas. É certo que podemos oferecer um esquadrão de imagens e contrapráticas de maior investimento social, valorizando o fato de serem centradas em pessoas, produzidas por pessoas e não pela indústria ou pelas instituições. Essas teriam, é claro, que viver mais fora dos museus do que dentro deles. Mas seria tolo ceder o território do museu, o lugar mais fácil de encontrar outros produtores, e desafiar a impotência imposta pelas instituições centrais da arte. Obviamente a questão a ser colocada, como sempre, é quem controla os meios de comunicação no mundo moderno e quais deverão ser as formas de discurso criadas e encorajadas.

Martha Rosler é artista plástica e tem trabalhado com vídeo, fotografia, instalação e performance. Já expôs no Whitney Museum, no Dia Center e no Museu de Arte Moderna de Nova York. Internacionalmente, expôs em Kassel, em Londres e outros locais. Uma retrospectiva de seus trabalhos foi mostrada em Nova York e em várias cidades européias em 2000. Rosler é mestre em Belas Artes pela University of California e tem publicado livros e artigos em diversos periódicos, como Artforum, Afterimage e NU Magazine.

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Documenta 12 e 52a Bienal de Veneza:1 pensamentos sobre a modernidade Sheila Cabo Geraldo

O Museu Fridericianum é a principal referência de espaço expositivo na AiWeiWei. Fairytale, instalação, 12a Documenta de Kassel.

Documenta de Kassel. Com muita freqüência é escolhido para ser o primeiro pavilhão a

1 Sobre Documenta 12, Kassel, junho-setembro 2007, e 52ª Esposizione Internazionale d’Arte, Pensa con i sensi - Senti con la mente. L’arte al presente, Veneza, junho-novembro 2007.

espelhos de John McCracken, no primeiro piso, era o Angelus Novus, o pequeno desenho

ser visitado. Um dos primeiro trabalhos da 12a edição da mostra, depois da escultura de de Paul Klee que Walter Benjamin descreveu como o anjo da história em suas famosas teses. Entre um andar e outro, em meio às escadas, acabava provocando certo tumulto a seu redor, impedindo o trânsito, o que também é um dado importante para se pensar a Documenta como um todo. O que faziam todos aqueles visitantes olhando para o anjo que reconhece os escombros provocados pela catástrofe do tempo? O que os fazia pararem diante dessa imagem de 1920 que, segundo Benjamin, nos revela o que o tempo impõe, mas que se angustia no desejo de parar o curso da história, sabendo da imponderabilidade do futuro? Talvez esse seja o melhor exemplo do que escreveram o diretor e a curadora

2 Buergel, Roger M & Noack, Ruth. Katalog/ Catalogue. Documenta, Kassel, 16/06/2007 -23/09/2007.

no pequeno texto2 que abre o catálogo da mostra que, há décadas, vem sendo creditada como um parâmetro de radicalidade na arte contemporânea. No dito texto, Buergel e Noak se referem à Documenta 12 como exposição “sem forma”, o que, certamente, deve estar relacionado com a escolha de uma organização em que as obras, como em um caleidoscópio de tempo e lugar, lançam-se como um desafio por uma ordem no nível em que Felix Guattari e Gilles Deleuze descrevem nos mil plateaux: reconstrução que não se fecha, ordem em fragmentos, em constante transição. Isso é o que se pode depreender tanto no espaço do Fridericianum quanto nos demais. A Documenta, se não teve diretriz conceitual única nem um grande artista homenageado, tampouco privilegiou determinada região geopolítica, segundo, ainda, o diretor Roger Buergel, assim como a curadora, Ruth Noack. A mostra, efetivamente, teria sido pensada em torno de três perguntas, como foi amplamente divulgado em seu período de elabora-

3 Ver http://www.documenta12.de.

ção, que incluiu ainda os debates de produção de sua plataforma Documenta Magazines,3 de que participaram dezenas de periódicos de dezenas de cidades do mundo. Os temas, sem serem conclusivos, tiveram o mérito de abrir os debates, cuja relevância não se pode negar: É a modernidade nossa antigüidade?; O que é vida nua?; O que se há de fazer? Na primeira pergunta, obviamente estaria inscrita a discussão que tanto vem atormentando os teóricos e historiadores, sobretudo desde os anos 80 do último século, e que, naturalmente, está relacionada com a discussão do fim da história, da morte da arte e da história da arte, discussões de, entre outros, Hal Foster, Arthur Danto e Hans Belting em textos e livros lidos e discutidos em grande parte do mundo.

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Há quem diga que essa é uma discussão ultrapassada, associada ao moribundo conceito de pós-modernismo em arte. Talvez seja, mas é preciso considerar que, mesmo exaustivamente discutida e até considerada finda, a modernidade continua colocando problemas, sobretudo para a chamada história da arte, que, enquanto disciplina, é, em si, moderna. Coloca problemas, sobretudo, quando as fronteiras desta, assim como da história em geral, passam à condição de permeabilidade, o que possibilitou a criação de campos híbridos ou campos de transição entre a história e diversas outras disciplinas, como a antropologia, disciplina também moderna. Dessa condição surge, então, a grande pertinência da pergunta, sobretudo porque a partir dessa hibridização é que se pode levantar a discussão que passa pela relação entre modernidade e ocidentalidade, como muito bem escreveu Okwui Enwezor no catálogo da Documenta 11, em 2002.4

4 Enwezor, Okwui. Documenta 11. Catálogo. Kassel, 2002.

Ao discutirmos hoje o fim da modernidade ou se ela já é uma antigüidade, ou melhor, se já virou passado, temos que fazê-lo a partir da concepção de história da arte como campo ampliado, o que inclui a diversidade de culturas – também um termo moderno – e as noções de distância e tempo não só para as culturas européia e norte-americana, mas também para as culturas asiáticas, africanas, sul-americanas e da Oceania. O que se pergunta, então, é como a modernidade se deu, ou se dá, para essas culturas a partir do fenômeno em si moderno de inter-relações culturais, anunciado pela antropologia novecentista, que relativizou a noção de centro e de distância, assim como há que se partir da noção de tempo histórico, enquanto tempo de longa duração, que Braudel descreve em seus estudos em época de nova história. Assim, se poderia pensar: sobre qual modernidade, afinal, perguntam esses curadores? O que de imediato aparece é que o projeto da Documenta 12, de alguma forma, continua aquele da Documenta 11, de 2002, que, segundo seu curador, Okwui Envezor, enquanto mostra de arte contemporânea, teria que dar conta das mudanças que ocorreram nas fronteiras disciplinares e culturais, mudanças que estão implícitas nos procedimentos artísticos de hoje.5 Se as primeiras Documentas foram pensadas como forma de reconciliar com a arte moderna a desmoralizada sociedade civil alemã do pós-guerra – como escrevem os curadores da Documenta 12 –, em seus anos subseqüentes, sempre de cinco em cinco anos, as edições vão conformando-se ao aspecto radical da arte contemporânea e desenvolvendo dicção experimental sobre arte, tendo-se encaminhado, nos últimos 10 anos, entretanto, para o discurso de investigação das múltiplas condições da arte, sob reconhecimento e impacto de culturas não ocidentais que os estudos culturais e pós-coloniais acirraram. Discutindo o processo de modernização – tanto formal quanto de vanguarda – associado ao de ocidentalização, Okwui antecipava em 2002 uma resposta às perguntas que hoje os críticos da Documenta 12 fazem e que se referem à impossibilidade de identificação não só de uma diretriz curatorial precisa, como também da história de radicalidade a que a mostra vinha sendo associada. Okwui tinha escrito:

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5 A Documenta 11, de 2002, teria levado em consideração, em suas cinco plataformas, a dimensão espaciotemporal, assim como a dimensão histórico-cultural. Seu projeto, que incluía nas quatro primeiras plataformas debates e conferências em Viena e Berlim (Europa), Nova Delhi (Ásia), Santa Lúcia (Américas) e Lagos (África), partia do princípio de que “não é a centralidade de uma mostra que define o caráter correto das possibilidades artísticas e intelectuais...”. Documenta 11, Catálogo, Kassel, 2002.


Os propagadores da vanguarda têm-se esforçado pouco para elaborar um espaço de auto-reflexividade que possa compreender novas relações de modernidade artística não fundadas no ocidentalismo. Essa reflexão faz com que reivindicações atribuídas a mostras tais como a Documenta (ou manifestações do gênero dentro do complexo de exibições das prá6 Enwezor, op. cit.

ticas artísticas hoje), denominadas radicais, sejam tendenciosas.6 A pergunta sobre essas novas relações passa, então, por uma espécie de arqueologia das possibilidades em arte nesse tempo de modernidade – incluindo a discussão do fim da modernidade –, assim como pelas várias respostas, em diversos lugares e temporalidades, ao processo de modernização-ocidentalização, o que inclui a adesão, o repúdio, mas também o que poderíamos chamar, com Guattari, de microrresistências. Assim é que aparecem na mostra de arte, que assume a negociação da radicalidade, obras que incluem pequenas pinturas persas do século XIV, cuja análise deixa suspeitar alguma influência da pintura

7 Buergel & Noack, op. cit.

chinesa, presumivelmente do período em que a Pérsia conquistou a Mongólia,7 mas também a permanência de características persas, que não se diluíram com a hibridização. A seu lado, ocupando uma das salas do espaço expositivo mais fascinante, o Schloss Wilhelmshöhe, desenhos da Índia do século XVI ao XX, ilustrações feitas por Hokusai, no século XIX, entre outros, em sua maioria pequenos desenhos, álbuns de aquarelas e gravuras que apresentavam, desde o século XIV, alguma forma de hibridismo cultural não só entre Ocidente e Oriente, mas também entre culturas orientais e asiáticas. Essa seção da Documenta exigia dedicação especial do visitante, assim como temporalidade quase impossível de ser admitida em uma grande mostra internacional. O Castelo Wilhemshöhe foi ainda usado como espaço experimental de curadoria, tendo seu acervo de museu de arte recebido em seus interstícios, ou em suas lacunas, obras de artistas cuja cronologia chocava-se ou dialogava com as do acervo. Algumas dessas experiências se mostraram bastante desconcertantes e certamente abriram espaços de reflexão, como o vídeo Funk Staden, da dupla Walter Riedweg e Maurício Dias, uma espécie de ensaio artístico-antropológico, que se inseria, tal qual Hans Staden, em uma tribo indígena, como um corpo estranho naquele ambiente historicamente aristocrático. O vídeo da dupla, assim como sua outra videoinstalação, Voracidade Máxima, localizada no Aue-Pavillon, prédio construído exclusivamente para a Documenta 12, cujo aspecto improvisado tanto incomodou a crítica internacional, pode ser, ainda, ótima oportunidade para se pensar na outra pergunta da curadoria, sobre a “bare life”, que pode ser traduzida por “vida nua” ou “vida crua”. As entrevistas da dupla MauWal sublinham a vulnerabilidade do ser, para cuja exposição não há proteção nem segurança, apesar da máscara, ao mesmo tempo, disfarce e forma de identificação com o diferente. Tal exposição se vê também nas fotografias The transport of KnaNdebele, de David Goldblat, feitas na década de 1980, na África do Sul, em que os homens e seus corpos banidos e punidos são fotografados no processo de “Going to work” e “Going home”. A dimensão de não estar, coincidente com a de não ser,

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registrada nas imagens, leva-nos a uma leitura da autoridade e do modo como age sobre os direitos individuais, a uma leitura do mando e seu oposto, que é a vida nua, independente de políticas culturais de defesa de minorias, como nos explicou Giorgio Agamben.8 A exposição do controle da vida, que configura, como escreveu Foucault, fato “biopolítico”,

9

nos leva, ainda, à identificação de outra forma de política, melhor dizendo, micropolítica, que expõe o sujeito até que a subjetividade quase inexistente se torne, porque ínfima, uma resistência ao processo de encrudecimento, como parece acontecer no trabalho de Tseng

8 Agamben, Giorgio. Homo sacer: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: UFMG, 2002. 9 Deleuze, Gilles. “As estratégias ou o nãoestratificado: o pensamento do poder do lado de fora”. In Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.

Yu-Chin, Who’s Listening, n. 5, em que uma mulher e seu filho de quatro anos são filmados em situação cotidiana de afagos, ou quando AiWeiwei convida 1.001 chineses para Farytale, um trabalho em que esses homens e mulheres se iriam expor uns aos outros e também aos visitantes, mas no sentido de estabelecer uma forma de convívio a que não tiveram jamais acesso. AiWeiwei trama ali uma espécie de empoderamento dos sujeitos chineses de província, que por décadas estiveram em situação de banimento. As relações do poder soberano, ou seja, daquele que se exerce em estado de exceção sobre os corpos e mentes evidenciam-se na maioria dos trabalhos dos cinco pavilhões – Fridericianum, Documenta-Halle, Aue Pavillon, Neue-Galerie, Schloss Wilhelmhöhe –, além dos espaços Haupt-/Kulturbahnhof e Kulturzentrum Schlachthof, assim como dos outros tantos espaços – expositivos e não expositivos – espalhados pela pequena cidade. A implicação dessa evidência parece ser o reconhecimento da inexorável condição do homem contemporâneo, como escreve Agamben,10 em que a diferença entre a existência individual,

10 Agamben, op. cit.

enquanto existência política, e a existência anônima e anômica, fora da norma e da lei, já não existe. Assim, o que parece perpassar a produção artística das diversas culturas, nos variados lugares e temporalidades, é o imponderável de uma vida sem qualificação, ou seja, do homem em estado de exceção, mas, sobretudo, o estado de banimento que o poder soberano impõe, em que “a relação originária da lei com a vida não é a aplicação, mas o abandono”.11 As relações, assim, passam a ser as “de força”, em que a justiça é aplicada

11 Idem.

em seu ausentar-se, deixando espaço à violência do homem sobre o homem. Se o reconhecimento do abandono é uma tônica, também o é a procura de possibilidades que anulem a brutalidade reinante. É uma procura que, como escreve Ettore Finazzi-Agrò a propósito do conto Sorôco, de Guimarães Rosa, transforma “em “pátria” o alhures e, ao mesmo tempo, aceita alhear-se de si próprio, decidindo estranhar-se do seu “sítio”,12 anulando as fronteiras, instalando-se ele mesmo em um limiar em que não existe mais a brutalidade da divisão, da contradição entre o eu e o outro... um limiar em que é possível colher o que é anterior à violência da discriminação e da repressão”,13 que seria, nas palavras de Foucault, um outro espaço, um outro lugar, ou uma heterotopia em arte, 14

como se pode perceber nas Droguinhas, de Mira Schendel, que viveu em São Paulo, ou na Emotional Library, de Shooshie Sulaiman, que vive em Kuala Lampur. Talvez assim entremos no terceiro tema, que é exatamente o que pergunta sobre o que pode ser feito e qual a função da educação (da, na arte?) nesse processo. Mas também é a

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12 Finazzi-Agrò, Ettore. “Meios (s)em fim. O estado de exceção na obra de Giorgio Agamben”. In Outra Travessia. Santa Catarina, segundo semestre de 2005: 20. 13 Idem. 14 Foucault, Michel. “Outros espaços”. In Ditos e Escritos III. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, 2a ed.


pergunta sobre a função de uma mostra como a Documenta, pergunta que se refere mais exatamente a como uma instituição expositiva pode mediar experiências artísticas sem destituir essas experiências de suas particularidades, sobretudo quando se trata de experiências radicais, como a montagem de fotos e textos de Martha Rosler, The Bowery in two inadequate descriptive systems, de 1974, exibida no Fridericianum, ou a do Grupo de Artistas de Vanguardia, que organizou para a Documenta 12 uma apresentação de documentos da exposição Tucumán Arde, acontecida em Rosário, na Argentina, em 1968, assim como a fotografia-registro do acontecimento provocado por Graciela Carnevalle no Cycle of Experimental Art, também em Rosário, em 1968. Cabe também nesse contexto, em que educação ganha o sentido da bildung alemã, ou seja, o da constituição ou da geração de alternativas para o futuro – o que, no sentido benjaminiano, pressupõe a memória –, a reconstrução do magnífico Electric Dress, de Tanaka Atsuko, de 1956, que foi apresentado em conjunto com o projeto e fotos de época, cujo contexto ficaria mais completo e radiante se colocado ao lado de um Parangolé, de Hélio Oiticica, mas isso já seria outra exposição. O ano de 2007 concentrou grandes mostras internacionais. Além da Documenta de Kassel, a 52a Bienal de Arte de Veneza – a mais antiga bienal internacional –, a Bienal de Istam15 A 10 Bienal de Istambul tem como tema a assertiva: Não só é possível, como necessário: otimismo na era globalizada. Ver http:// www.universe-in-universe.de/car/istambul/ esp/2007/index.htm a

bul, a Bienal do Mercosul e a Skulptur Projekte Münster.15 Essas mostras internacionais, sobretudo as bienais, tiveram como característica comum o fato de se ampliar no tempo e no espaço, promovendo encontros, simpósios, seminários e debates, o que, de alguma maneira, é uma forma de democratização da ação do curador, ou curadora, que já não quer mais assumir a função, como declara Robert Storr – curador da Bienal de Veneza –, de um “sol americano”, em torno do qual os outros planetas giram. Declaração que se torna curiosa pelo fato de ser Storr um curador americano ligado ao Institutt of Fine Arts, de Nova York. Já na Documenta 10, de 1997, Cathèrine David teria apresentado clara proposta de não realizar apenas mais uma “mostra” atualizada de trabalhos artísticos, que se espalham

16 Apud. Godoy, Lupe. Documeta de Kassel: Médio siglo de Arte Contemporâneo. València: Institucion Alfons el Magnànine, 2002.

pelo mundo,16 mas abrir, na mostra, os debates conceituais que a arte, os artistas e os projetos artísticos impõem. Nesse sentido, Robert Storr organizou um colóquio em dezembro de 2005, em Veneza, que ele denominou: Where Art Worlds Meet: Multiple Modernities and the Global Salon, tema que se aproxima em muitos aspectos daquele desenvolvido pela Documenta 12. Foi nesse colóquio que, segundo suas declarações, Storr definiu o tema da Bienal, “Pensar com os sentidos, sentir com a razão: a arte do presente”, que parece não estar diretamente ligado ao que o colóquio adiantava, mas, ao fim e ao cabo, quer discutir a modernidade e o problema da modernidade à luz das teorias do póscolonial. Entretanto, não é só a condição de modernidade que acaba sendo questionada, mas o próprio ser da arte, como declara Storr a Jean-Hubert Martin, curador da lendária exposição Les Magiciens de la Terre, de 1989. Organizar uma mostra internacional de arte contemporânea com a presença de artistas contemporâneos da África, da Ásia ou da América Latina, diz ele, acaba sendo algo

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complexo, pois o sentido de arte pode não coincidir entre essas culturas. O mais irônico, porém, ele continua, é que essa discussão, sobre a arte e a não-arte leva necessariamente ao debate da antiarte, uma discussão moderna entre os ocidentais:17

17 Robert Storr. Penser avec les sens, sentir avec la raison. Conversation avec Jean-Hubert Martin. Art Press, 335, Paris, juin 2007.

É irônico que depois de tantas tentativas de desafiar e ampliar o conceito de arte no Ocidente, desde o Dadá e mesmo antes, sejam os operadores dessa arte que defendam sua integridade – exceto quando um antiartista faz uma antiarte. Eles aceitam a ampliação do campo artístico desde que as questões sejam feitas de dentro do sistema de arte, já que se supõe estarem assim descartando a clássica definição de arte. Mas, volte-se você para outra cultura, e eles começam a insistir nas mesmas diferenças. É uma loucura! Você não pode ser aberto e fechado ao mesmo tempo. O trabalho é o que você vê, o que você pensa dele. Sua inserção em um sistema social e econômico é menos importante que o fato de o trabalho ter sido feito para ser visto. Pessoas radicais podem ser, subitamente, muito conservadoras. A África não aparece no Art since 1900, por exemplo. Quando se perguntou a Rosalind Krauss por que não havia negros em sua seleção, ela respondeu que não havia nenhum negro que fosse bom artista. O racismo institucional reside precisamente nesse tipo de exclusão. O que parece mais intrigante nessa curadoria é que, além das questões culturais levantadas, o par razão/sentimento, uma questão do romantismo oitocentista, venha associado ao discurso que passa pelo debate sobre o que foi chamado de conceitual na arte contemporânea, opondo, nesse debate, o conceitual ao sensível; debate, aliás, já superado para a maioria dos teóricos, críticos e curadores, como declara Cathèrine David no catálogo da Documenta 10,18 quando diz que não se sente obrigada a explicar Duchamp a cada visitante. A relação da razão – associada ao conceitual, ao imaterial, às imagens de segunda e terceira geração – com o sentimento – associado com a intuição, a matéria, as sensações – acaba determinando muitas das escolhas e mesmo a disposição das obras que compõem a exposição do Arsenale. Se a Documenta 12 espalhou diferentes trabalhos de um mesmo artista em diferentes espaços, relacionando-o com diferentes contextos culturais e históricos, assim como com diferentes temporalidades, criando desafio constante para o visitante, a 52a Bienal de Veneza mantém os pavilhões nacionais apresentados nos Giardini, mas organiza no Arsenale e no Padiglone Italia duas mostras de trabalhos de artistas convidados que, na maioria das vezes, reiteram as questões colocada pela curadoria, mas podem, também, ampliar ou anular tais questões. Assim é que, nesse pavilhão, a sala de Waltercio Caldas, magnífico exemplo de pensamento em arte, que transborda pela intensidade das relações que configura entre forma, espaço e matéria, está no mesmo nível daquela de Sol LeWitt, gigantesco envolvimento corporal de matéria e luz, que nos faz, automaticamente, pensar

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18 David, Cathèrine. Documenta 10. Katalog/ Catalogue, Kassel, 2002.


Maurício Dias e Walter Riedweg. Voracidade máxima, videoinstalação, 2003 (Bienal de Veneza).

na equação “pensamento com sentidos”. Mas, e as primorosas salas de Robert Ryman, Gerhard Richter e Ellsworth Kelly? Porque de pintura, por tradição, traduziriam sentimentos pensados? Aí a fórmula curatorial quase chega à banalidade, a uma espécie de exemplificação de teorias, que bloqueia não só a relação que se pode ter com as obras, como também o processo instigante de perda de certezas, que nos faz ir além do que está posto. Ao mesmo tempo, está ali a inteligência crítica da instalação de Bruce Nauman, assim como o lirismo sem telos dos desenhos de Louise Bourgeois. Já no Arsenale, impõem-se as mordazes colagens de León Ferrari, além de sua controvertida A Civilização

19 O Leão de Ouro pelo conjunto da obra, anunciado na abertura da mostra, foi dado ao fotógrafo Malick Sidibé, do Mali, por indicação do curador. Os demais premiados, indicados por uma comissão, foram: Leon Ferrari, que recebeu o prêmio maior; Emily Jacir, premiada como artista com menos de 40 anos; o pavilhão da Hungria, do artista Andréa Fogarasi e o crítico alemão, radicado nos Estados Unidos, Benjamin Buchloh, por sua contribuição à crítica da arte contemporânea. Receberam, ainda, menção honrosa o pavilhão da Lituânia e o artista búlgaro Nedko Solaov. 20 Storr op. cit.

Ocidental e Cristã, que lhe valeu o Leão de Ouro.19 Também no Arsenale estão as imagens contundentes de Paolo Canevari, as fotografias de Paula Trope, ligadas ao trabalho do Grupo Morrinho, assim como os Listados, de Ignasi Aballi, instalação com o arquivo obsessivo de nomes e números inúteis, que nos remete a múltiplos aspectos da arte, mas também à condição de vida hoje. Os Giardini, por sua vez, acolhem os pavilhões nacionais. Apesar de sua forma um tanto discutível – pois como declarou Storr,20 não há como manter de todo ali a linha curatorial adotada –, alguns desses pavilhões apresentam o que se poderia chamar de “as melhores

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obras da Bienal”, como o da França, com o trabalho de Sophie Calle e curadoria de Daniel Buren, o da Grã-Bretanha, que trouxe Tracey Emin, o da Itália, com o trabalho de Penone,

Tanaka Atsuko. Vestido elétrico, 1956 (Documenta de Kassel).

o da República Popular da China. Talvez, porém, os pavilhões que mais causaram impacto tenham sido o norte-mericano, com o trabalho de Felix Gonzáles-Torres, e o russo, com a impressionante instalação de Alexander Ponomarev, além da instalação com cinema em três canais do grupo AES+F. A Bienal de Veneza, além das representações nacionais, mantém premiação que inclui os pavilhões. O premiado dessa edição foi o da Hungria, que exibia uma investigação de Andreas Fogarasi sobre a relação entre cultura e ócio, cujos filmes documentavam a ação de centros culturais de Budapeste. A forma documental foi presença marcante em inúmeros trabalhos, o que nos leva ao fato de que essa foi uma das maneiras como a fotografia, o filme e o vídeo desencadearam, na arte, os debates sobre o político. Mas, como escreveu Catalina Sierra em El País21 por ocasião da divulgação dos nomes dos premiados com o Leão de Ouro, diante da violência que se instaurou no mundo no último século, parece que a política deixou de ser um tema e passou a ser o próprio objetivo da produção de arte. Assim a articulista pôde interpretar a premiação de alguns dos artistas, como foi

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21 Serra, Catalina. Marchantes de Armas. El País, Madrid, 18/10/2007.


o caso da menção honrosa dada ao trabalho do artista búlgaro Nedko Solakov, que fez instalação documental com vídeos, textos, objetos, fotos e mapas em que explicava ironicamente sua investigação sobre a disputa pela patente do fusil AK-47, além de infrutífera tentativa de conhecer as duas versões das partes envolvidas na disputa, a Bulgária e a Rússia. A outra premiação que surpreendeu foi a dada à artista Emily Jacir, da Jordânia, que também apresentou arquivo documental – sobre o assassinato do poeta palestino e membro do El Fatah, Wael Zuaiter –, que ela nomeou Material for a Film. O júri, presidido por Manuel J. Borja-Villel, diretor do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona e composto por Iwona Blazwick, diretora da Whitechapel Gallery, de Londres; Ilaria Bonacossa, da Fundação Rebaudengo, de Turin; Abdellah Karroum, curador independente residente em Paris e Rabat; e por José Roca, de Bogotá, nos deixa alertas para duas questões: a primeira se refere à importante presença de pensadores e curadores de regiões antes ausentes em tais situações, o que revela preocupação coincidente com as inquietações no nível dos estudos pós-coloniais declarados por Storr, mas que se acabou 22 Storr, op. cit.

diluindo em função de algumas escolhas baseadas em sua “intuição”22 crítica. A segunda se refere ao prêmio criado nessa edição da Bienal e que recaiu na obra do historiador Benjamin Buchloh, ligado à revista October e laureado por “sua capacidade de articular e analisar as vanguardas históricas no contexto da arte de hoje”, como disse Storr na cerimônia de entrega do prêmio, o que nos faz voltar à mesma questão com a qual iniciamos este texto e que também está presente na Documenta de Kassel, ou seja, as discussões que a modernidade ainda nos coloca hoje.

Sheila Cabo Geraldo é professora do Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ e procientista, também da UERJ. Desenvolve atualmente pós-doutorado em Arte e Política na Universidade Complutense de Madri, com bolsa Capes. É editora de Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ.

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Unidade provisória1 Afonso Luz

A modesta existência de Willys de Castro no mundo da arte feita no Willys de Castro. Objeto ativo, 1959-1960. 1 Sobre Willys de Castro, de Roberto Conduru. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

século passado, agora, parece, começa a ser notada. Desde que a Pinacoteca do Estado de São Paulo deu-lhe devido destaque expositivo, o múltiplo trabalho desse artista, quase desconhecido em círculos mais amplos de público, passou a ser pensado como um dos pontos-chave de uma certa “tradição”. Para nossos balanços históricos que avaliam os caminhos e impasses do transplante cultural de uma estética construtiva internacional para o solo tropical, Willys é figura a balizar traçados. O livro que por intermédio da Cosac Naify veio a público, uma notável compilação de materiais, desperta interesse ainda maior e indica percursos e perspectivas para quem acompanha criticamente essa trajetória narrativa. Um consistente apanhado de imagens, músicas, reproduções de obras e escritos, tanto poéticos como ensaísticos, dá ao leitor elementos variados para compreender, ainda de outra perspectiva, o significado que teve essa escola de pensamento plástico. Se ela aqui ficou consagrada como Concretismo ou Neo-Concretismo, nomeações culturalmente substantivas, mais do que por seu valor próprio conquistado através de produções estéticas singulares, é porque ainda é difícil enxergar as trajetórias artísticas que se desenvolveram independentemente de chaves classificatórias. Mais do que exemplares de corrente estilística, trabalhos como os de Willys, como também os de Mira Schendal e Sérgio Camargo, são constelações que orbitam por vários centros de valoração da modernidade. Sua capacidade de agenciamento de valores chega a ponto de refletir inclusive o limite dessas esferas de validação estética, propondo órbitas conceituais sustentadas no centro gravitacional dos trabalhos. Mais ainda, a elas sobrepõe-se em abertura inusitada para a arte contemporânea. Daí o grande interesse que tais artistas mais ou menos participantes da vanguarda construtiva despertaram na geração que estava às voltas com a assimilação conflitiva e bem refletida de conceitualismos nos anos 70 brasileiros. Até mesmo hoje, para jovens artistas que produzem suas trajetórias no país, essas figuras polimorfas emergem carregadas de referências que os tocam. E de modo nada trivial se afirmam como intensidades em meio aos acúmulos artísticos e estéticos das tantas propostas que já se converteram em tradição. No caso de Willys – leitor atento de Merleau-Ponty, como outros contemporâneos –, sua verve fenomenológica, como também a de Hélio Oiticica, foi a de alguém que buscava conseqüências últimas em princípios sensíveis. A intuição que lhe vinha da atividade perceptiva, de tudo aquilo que existe como visível, era posta como fundamento estético: essa primeira razão da sensibilidade que diz serem a cor e o espaço qualidades indistintas. Essa percepção de unidade entre fenômeno cromático e espacial deu carUnidade provisória Afonso Luz

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ne à experiência substantiva do mundo que podemos ver configurada nesses objetos de Willys. Se Hélio levou esse mesmo princípio de espaço-cor ao campo radical da experimentação ambiental e performática, explodindo conceitos de obra e de corpo, ao dar a gestos e materiais em instalações a dimensão pictórica (de tal sorte que fazia até mesmo a experiência cinematográfica ganhar cores próprias de arte pela plasticidade de seu fenômeno), Willys, por sua vez, foi quem realizou no campo microcósmico – justamente ali onde se dava a aporia entre objeto “pintura” e objeto “escultura” (distinção e forte legado das generalidades classicistas das belas artes, mal sucumbidas em tempos modernos) – uma delicada, mas não menos potente, operação de reinstauração do modo de fazer a arte, de seus valores estéticos e seu alcance cultural. Hélio e Willys talvez tenham sido os dois artistas que compreenderam melhor o que havia por trás da palavra de ordem russa que propunha o colapso da pintura de cavalete e o advento de uma arte que se confundiria com as outra atividades do mundo numa grande generalização da estética no modo de viver. Willys projeta em seu trabalho algo que percebia como uma “nova tendência”, a dinâmica simbólica ampliada, em que o “objeto ativo”, em seu estatuto paradoxal de feito da arte e de coisa do mundo, é a potência capaz de investir nossa sensibilidade de tal modo que ela reconfigure espaço real e atual em unicidade plural. Esse é um sentido possível de seus “pluri-objetos” ou de seus pequenos tratados e comentários sobre arte, “objetos discursivos” que não são mais extensos do que uma página e ganham muito em legibilidade pela programação bem construída na mancha de papel. Sua relação com a palavra, com o som e com a imagem prolifera o sentido do que é o “gráfico” e fez de seus projetos de design e de suas performances musicais algos que se diziam mutuamente. Essa potência clara de unificação e simplicidade, a capacidade de expor um através do outro em grandiosa experimentação talvez fosse o que envolvia em sua esfera de ação poetas, teatrólogos e até empresários. O texto que abre o livro tem seu tom particular. E é também um objeto interessante pelo que revela. Escrito no estilo argumentativo que demonstra sua força de prosa universitária, é como que o testemunho sistemático da própria tradição que busca descrever e atualizar. Seu melhor é quando lança esquemas interpretativos potentes pela lucidez temporal de decifrar continuidades no descontínuo de nossa experiência brasileira. Algumas sugestões analíticas têm fôlego histórico, como a que revela curiosa similitude entre a vocação construtiva das obras de Willys e nossa estatuária religiosa colonial, consagrada pela timidez bem espacializada e que espelharia o lado acanhado de nossas mais nobres empresas estéticas e morais. Esse é um aspecto que leva o autor a enxergar o que ele nomeia, de empréstimo e através da figura de Willys, uma certa “harmonia tensa”. Devo dizer que essa equação vocabular do problema não nos deixa os ouvidos quietos; deixa-se ouvir certa ressonância das idéias de Rodrigo Naves em sua “forma difícil”. O artigo dissertativo de Roberto Conduru é, de outro modo, um testemunho de como essa “tradição construtiva brasileira”, em seus desdobramentos e projeções retrospectivas,

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gerou esquemas historiográficos que cada vez mais parecem dominantes nos meios universitários. Esses que, de uma forma ou de outra, são sistemas discursivos tributários do pioneirismo de Ronaldo Brito e de suas interpretações críticas, parecem realizar uma especialização que perde algo ao se distanciar da vitalidade institucional do Mário Pedrosa que os inaugurou. As palavras e conceitos que nos anos 70 e 80 mediaram nosso contato com o que as vanguardas artísticas e teóricas produziram aqui duas décadas antes, ainda que ocasionalmente datados, não deixaram de animar o nosso meio até o fim do século passado. Há algo no livro que descreve a institucionalização, para bem e para mal, de uma matriz de pensamento. Todo esse material reunido é um marco na compreensão histórica da singular importância que teve em seus vários momentos essa dinâmica cultural. Uma sutileza elegantemente tratada que, agora amplificada pela circulação do livro e do CD, faz justiça a Willys e a sua memória, a seu pensamento e atividade ainda vivos em seus potentes trabalhos. Devemos comemorar como um lance em nossa historiografia que, espera-se, seja assimilado tanto quanto criticado em altura condizente, isso apesar de seu acento estar posto em certa compreensão local do jogo da modernidade. Mesmo, ou ainda mais, porque atualmente se vive um momento pouco eufórico para as artes, posterior ao surto de megaexposições dedicadas a clichês repisados no lugar-comum historiográfico. Um momento oportuno para debater uma edição tão “inatual” em sua presença, uma conversa pública que pode dar consistência ao interesse internacional crescente pela arte feita no Brasil no século passado que vemos despertar. Uma manifestação de autonomia que mostra caminho à boa internacionalização de nossas referências e acervos. Algo a se festejar, modéstias à parte.

Afonso Luz é crítico de arte, formado em Filosofia pela USP, foi consultor da Unesco e atualmente assessora o Ministério da Cultura em assuntos relativos às artes visuais e crítica da cultura.

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Arte dissolve sólido1 Renata Reinhoefer F. França

Encontro Frases Sólidas Que poder de fundação! Quanta delicadeza pode haver? Pede-se silênWaltercio Caldas. Foto geral da exposição Frases Sólidas, 2006, foto Romulo Fialdini (Gabinete de Arte Raquel Arnaud). 1 Sobre a exposição Frases Sólidas, de Waltercio Caldas, apresentada no Centro Universitário Maria Antonia – USP, em São Paulo, SP, entre primeiro de setembro e 12 de novembro de 2006.

cio, suspender a respiração. É preciso fechar as portas para que haja só isso. Como tudo mais parece medíocre, barulhento, grosseiro, gordo, pesado, perto dessa leveza! A delicadeza do – do quê? O que será isso? Alguma coisa acontece, é certo. Está em tudo e não sei precisar onde está. Não é um objeto; é toda a sala e o ar e a luz e as sombras e a música e o silêncio e os objetos e o que não sei. É isso tudo, nesse exato ritmo. Agora, por contraste, o ‘não-isso’ torna-se mais visível do que nunca. Meu ímpeto é apagálo, dissolvê-lo, chego mesmo a envergonhar-me dele como se fosse parte de mim. É nítido que há nele algo de grotesco que agora me parece inadmissível. Imagens gasosas Meus olhos vagueiam e estranham não estar sendo bombardeados por imagens móveis piscantes luminosas eloqüentes, por temas aborrecidos e rasos, por etiquetas tagarelas, monitores, folders explicativos, espaços espetaculares e superficiais. A poética de Frases Sólidas opera com minhas expectativas. Sabe que participo do mundo humano e que há uma continuidade na experiência. Sou abrigada pela sala esvaziada. Meus sentidos descansam, e o corpo desloca-se em consonância com o ritmo, sem pensar. As paredes branco-amareladas oferecem um acolhimento sereno. Vejo por contraste. A luz fria lá fora é muito mais gélida que a luz que quer convencer-me de sua displicência. Percebo um incômodo suspense no instante. Observo. Sinto-me compelida a pendurar pinturas imaginárias pela sala. Vejo-as desaparecerem no gás. Sobram as paredes que se apresentam museográficas. Vejo então a estrutura expositiva da galeria. Vejo que vejo a arte através da parede vitrina sólida, não isenta. Vejo que sólidos podem ser irreais. Sigo. Vago no vazio da sala organizada por colunas que são objetos. Perambulo entre objetos que são mesas que são vitrinas sobre mesas que são objetos em vitrinas sobre mesas que são objetos. Vejo objetos que escapam e, não obstante, são sua disposição pela sala, suas formas retas, cúbicas que organizam o espaço que surge: o espaço surge em consonância com eles. A cifra rítmica A obra levanta-se e enuncia seu veredicto: o distanciamento da experiência estética é o

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caos. Desafia o abismo faminto que assiste sorridente à verborragia temática do sistema de arte e à vertigem que espreita os órfãos perdidos da verdade poética. Contra a superficialidade aparente convoca o turbilhonamento humano arcaico, uma força cujo dono parece ser o estômago. Sua poética é de redemoinho. Espiralando, entra a devastar aspirando todo o sólido. Raivosa e determinada, instala-se com uma fúria impassível daquela que quer higienizar o sistema. Sem se saber imune, arrisca-se audaciosa a devorar o vírus da estranha inumanidade que toma o corpo da arte. Veja o sólido Vejo uma frase e leio a frase que é fundida com o objeto que percebo ao mesmo tempo e com o intervalo e com a vitrina e com a luz que projeta uma sombra. Ver e ler não se distanciam e não se descolam. Cada coisa nova e cada coisa conhecida e tudo junto ao mesmo tempo abre minha gaveta particular de imagens. Objetos e palavras se fundem na leitura, não há como isolá-los na percepção. Estão em um estado descolado do signo. As palavras se levantam do plano do papel adquirindo profundidade, os objetos projetam sombras alterando as palavras carimbadas na superfície. Letras, palavras, intervalos e pontuações são formas espaciais. Alteram-se as propriedades físicas dos elementos. Cheiram a recém-nascidos. Veja o que não há Duas frases e duas agulhas, uma vertical e outra horizontal. Leio as frases. Haja vista o que não há e A imagem realiza a autonomia da palavra. A opacidade das palavras parece não evocar imagem nenhuma. Palavras aguardam que a seguinte lhes dê sentido. Apreendo as palavras, as sombras e os objetos em um só lance. Salta aos olhos o contraste entre a agulha vertical e a horizontal. Concluo que regerá toda a leitura. Confunde-se com as frases que leio. Apego-me com toda a vontade ao significado de uma das frases. Ao pensamento, vamos, signos! Não obstante, nada. Vazio. Haja vista o que não há. Quero decifrá-la, há algo em mim que busca desvendar seu jogo, entendê-la e assentar essa suspensão que me toma. Leio lentamente. As palavras continuam mudas. Fecho os olhos e procuro as imagens. Vazio. Abro os olhos e vejo palavras breves e intervalos vazios que se aguardam e que se guardam, onde uma palavra se perde na outra no caminhar sobre a frase. As palavras andam param e se jogam em um abismo pontual, têm vontade própria, desaparecem. Não consigo sair do lugar; permaneço imóvel como aquela vertical espetada no papel. As palavras se foram. Angustiada, tento novamente. Foco. Ao recuar no intuito de observar como se dá minha percepção de toda a frase em um mesmo instante, noto que o que vejo é quase uma linha pontilhada. Salto sobre as pedras das palavras curtas e seus espaçamentos. Como rechaçam minha entrada, não posso passear por dentro delas, restando-me quicar sobre elas. É ponto sem profundidade seguido de intervalo. Cheio e vazio, cheio e vazio, cheio

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e vazio, repetidas vezes. Mas como são elas que se movem em minha direção como que em uma esteira movediça, pulo apenas na vertical, sem deslocar-me. Não mais leio, vejo pedras e intervalos. Criticamente, observo que a arte sabe que quero ler e entender significados, livrarme do que não posso compreender. Sábia, resiste às minhas investidas (que, ao se conscientizarem do ato, regozijam-se com isso). Leio e releio as palavras que insistem que sempre estiveram ali; que nunca nasceram e que nunca deixaram de existir. Há; desde sempre. Haja vista; uma expressão petrificada, uma pedra, um fóssil. Quase me convencem. Mas como, se acabaram de sumir nos parágrafos anteriores? Faz-se um paradoxo. (Paralelamente, a incansável obra segue sussurando séries de vogais em algum canto do pensamento) (...há o que não há, é o que não é...) Haja vista o que não há Veja o que não há, veja sua estrutura. Veja a tagarelice descartável e veja o que nela não há. Veja a potência da experiência estética e veja quando não há. Veja o fluido por trás do sólido e veja que imobilidade não há. Veja o movimento o escoamento a pulsação o desaparecer do sólido e veja o aparecer do que não há. Veja o espaço ser tomado pelo que não há. Veja o ar. A imagem realiza a autonomia da palavra Frases Sólidas sossegam o olhar. Atenção: é falso o apaziguamento da cegueira. Só ler sonega seu poder visual, mas não o destrói. Cuidado. Veja o fluido ... o mundo sólido esvai-se pelos buracos... solidez liquefaz-se escorre pelas mãos desliza pelos olhos... descola a capa das palavras... dissolve signos... uma angústia arcaica desperta... o corpo é quase todo água... temo tornar-me poça de mim mesma... a pele suspende seu papel divisor... os poros se alargam... sinto uma estranha fusão com o entorno que se move agora fluido... pulsa a existência... Veja o gás Moléculas misturam-se sorvem o fluido do espaço e flutuam mais ligadas que nunca não há sujeito e não há objeto tudo dança no ritmo cifrado de uma ordem não enunciada verbalmente de cuja força não se pode duvidar e nessa conexão profunda algo toca minha humanidade que por atingida revela-se já existente mais moléculas se misturam e sorvem o fluido espaço e flutuam ligadas misturando mais moléculas.

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Veja-se vendo O que está em uma das vitrinas me manda girar em torno da caixa, com suas linhas e palavras carimbadas em diversas posições em movimento circular onde leio ‘simples’. Obedeço e caminho em torno da caixa em círculos. Simples, simples, simples, simples, simples. A arte parece sorrir ironicamente enquanto comenta a simplicidade da operação. Sempre operando com meus prefácios, conta o que fez: com aquela luz ambiente serena atraiume para entrar na sala (que era onde eu esperava ver uma exposição), me mostrou onde guardava a arte (dentro da vitrina, onde eu esperava), fez-me caminhar em direção a ela e debruçar os olhos cuidadosamente sobre a vitrina à procura da revelação da arte (sabe que a busco e que espero vê-la lá dentro). Depois, fez-me ler as palavras carimbadas e as linhas, que me fizeram girar em torno da vitrina quadrada – afinal, não é essa a finalidade de uma vitrina, que o objeto de arte exposto em seu interior fique à vista por todos os lados e que eu possa circundá-lo para que se revele em sua inteireza sólida? Pensava que conduzia. É um equívoco. Ao olhar para dentro da vitrina procurando a arte, ofereço-lhe meu movimento, ao qual ela impõe um comando em linhas e palavras totalmente descoladas de seu significado. A palavra ‘simples’ não significa ‘ande em torno da vitrina’. Seu comando efetivo parte de sua disposição no papel e de minha própria expectativa sendo alimentada pelo comando. Revela todos os meus passos em descompasso temporal, ou seja, antecipadamente, mostrando que não sou exatamente eu que decido tomá-los. Sigo uma lógica que está impregnada em mim: vejo o que busco ver, acho o que procuro. Acho respostas, não perguntas, porque já trouxe minhas próprias. Noto que interrogo a obra como se soubesse mais que ela, como se sua verdade estivesse em outro lugar, na filosofia ou na ciência e ela mesma fosse apenas ilustrativa daquilo. A estranheza da operação é essa antecipação, essa vidência. Ao antecipar-me, revela a estrutura do real, delata sua previsibilidade. O aparecer dos vícios de olhar me colocam em situação angustiante. A obra, cruel e resoluta, segue devolvendo-me tudo em um espelho diabólico e sem piedade, sem recuar. Veja através da gramática da vitrina As vitrinas estabelecem uma estranha separação. Meus olhos são impedidos de tocar o objeto, explorar sua superfície, sua textura. Não tenho acesso, sou barrada por aquele vidro que me deixa sempre de um lado ‘de fora’. Meus olhos permanecem algum tempo deslizando sobre a superfície vítrea buscando uma entrada, mas não encontram. Não encontram porque a obra me devolve seu querer-se invisível. O objeto-vitrina tem sua própria gramática: guarda e expõe ‘arte’. Sua transparência sólida eloqüente determina: ‘aqui dentro está arte’, ‘não toque a obra’, ‘deixe-me mostrar o que você deve ver’. As vitrinas fatiam o ar entre as coisas, interrompendo a atividade do vazio. Fica faltando aquela mistura de respirações. Vitrinas roubam oxigênio, sufocam o que contêm. São altares mórbidos, glorificam o que não morreu e tornam-se assim, eles mesmos, seus algozes.

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Mas Frases Sólidas sabe disso, e sabe que só a arte pode dar a ver o óbvio. Instala então uma delicadeza gasosa que corrói o sistema por dentro, como ferrugem. Obstinada e incorrigível, entrega-se aos cegos, mais por princípio que por fim. Veja que a pontuação pulsa Em outra vitrina há um copo quebrado, cacos, palavras carimbadas, dois-pontos, espaços. Leio a frase. Por exemplo: Súbito: Simples: etc: Súbito o instante se alarga e começa a fazer-se. O copo e as palavras pontuadas se preparam. Chega a pausa tensa dos dois-pontos. Atenção, suspense, suspenso. Iminência: Descarregase então a agressão a ação contida que dispara com uma voracidade destrutiva estilhaçando o copo atravessando e dilacerando seu corpo transparente fazendo-o voar em pedaços. 2 Trecho de ‘Soneto da separação’. Moraes, Vinicius de. Livro de sonetos/Vinicius de Moraes. São Paulo, Companhia das Letras, 1991.

Faz-se e refaz-se. E do momento imóvel fez-se o drama.2 E refez-se o momento imóvel. E refez-se o drama. E refez-se o momento imóvel. Ocorre que vejo a ação através da espessura da vitrina, ou seja, não vejo apesar da vitrina, vejo-a justamente através dela, por ela. Esse ver através já impõe uma contenção à ação. A ação é larga: tantos cacos remontam a um ato de quebra feroz, a um gesto inesperado, rápido, agressivo e impulsivo do artista. Já a caixa é justa, regrada e estática. O gesto transborda pela vitrina, não cabe naquele ambiente contido, controlado. Restos de gesto e estilhaços de vidro esperneiam sob a surdez imperturbável da vitrina. Uma coisa dá a ver outra, o paradoxo reforça a ambos. Imagens criam-se e se destroem por impossibilidade de convivência, empurram-se forçando a primazia de uma sobre a outra. Anúncio e ação se apresentam estranhamente juntos, e esse encontro de incompossíveis faz a imagem pulsar. Cada uma tem um pé em um momento e, ao serem apresentadas juntas, tensionam-se mutuamente. As três primeiras palavras pontuadas com dois-pontos sugerem um porvir iminente no qual esclarecerão seu mistério. Mas esse porvir está sempre por vir, nunca chega. Fico parada no abismo da expectativa colada, agarrada àquela promessa de revelação que nunca se cumpre. Veja o volume da música Em um extremo oposto ao silêncio, em uma ante-sala de lugar nenhum, não há nada além de uma música ‘clássica’ tocando. O silêncio proposital dá a maior possibilidade de

3 Rosa, João Guimarães. Tutaméia. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

música.3 Adentro mansamente e me encolho em um canto, respeitosa. A sala está toda

4 Idem.

tiginosos átomos:4 inversão.

ocupada, tomada pela música. Desvio de presenças. A música é sólida; a parede são ver-

Veja a sua gramática Todo sólido desfaz-se no ar. Há algo de ácido nessa delicadeza. Desaparece São Paulo. Dissolve-se a bienal. Quem fica? Calafrio. De viés corre um vulto, uma sombra no pensamento. Frases Sólidas abre os olhos. Encara sinistra e fixamente: Viste?

Arte dissolve sólido Renata Reinhoefer F. França

197


Fecho os olhos incerta da capacidade de aderir à sublimação. O reverso de medusa prepara-se para o bote. Veja que a imagem se dissolve Beiram não sei quantos longos dias desde que vi a exposição. Não há fotos, filmes ou outros registros disponíveis. Escrevo de memória. Sigo experimentando suas imagens e agora as percebo fenecerem. Há pouco, pela falta de âncoras, entrei a duvidar da fidelidade do que escrevo ao que experimentei. Estranhamente, as imagens se sucedem e substituem. Já não consigo precisar como de fato era, se é que esse estado ‘de fato’, estático, existiu em qualquer momento. Percebo uma verdade humana fundamental: a impossibilidade de reter fotograficamente a experiência. Imagens são sujeitas a alteração, sempre. São mutantes, incessantemente fugazes no seu contínuo humano. Talvez seu congelamento, sua rememoração pelo registro, seja mesmo um falseamento. As imagens seguem se desfazendo. Arranco todas as forças para retê-las. Mas elas se dissipam. Foco em uma imagem: no ambiente liso escorregadio onde nada havia para agarrar meu olho, na certeza das mesas que eram formas, nos contrastes serenos, em sua delicadeza rascante, em sua dramaticidade suave, na música espacial, nos silêncios seguros, no tempo alongado e naquela luz que inundava a sala com uma mansidão amarelada. O ritmo preciso da experiência fica: esse não é fugaz, nem mutante. Os objetos, as palavras e as configurações fogem. Imagens seguem substituindo-se rápido demais e palavras descabelam-se. Palavras atrasadas continuam escorrendo pelos dedos, inevitavelmente obedecendo às imagens que seguem se fazendo e desfazendo. Nunca mais livre. Para sempre contaminadas, as palavras tornam-se aquela qualquer coisa imprevisível que sigo adiante.

Renata Reinhoefer Ferreira França cursa o mestrado em Artes da UERJ, na linha de pesquisa ‘História e Crítica da Arte’, com bolsa da Faperj. É pós-graduada pela PUC-Rio (Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, 2002) e pela UERJ (Especialização em Teoria da Arte – Fundamentos e Práticas Artísticas, 1999).

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A árvore e a girafa: sobre exibir filmes e liberdade1 Raphael Fonseca

Proponho-me a analisar brevemente o discurso curatorial da Mostra do Filme Livre, evento realizado há seis anos, em terras cariocas. Antes, porém, faz-se necessário um pequeno histórico desses essenciais espaços para a divulgação de obras audiovisuais, além de deixar registrada a quase-inexistência de material bibliográfico crítico e nacional sobre sua realização.2 Veneza, o primeiro festival de cinema do mundo, começou com uma pequena edição (proporcional ao volume de produção), em 1932. Cannes foi criado sete anos depois, como tentativa de mostrar filmes sem o mesmo olhar afetado pelo fascismo italiano. Com a percepção da potencialidade estética do cinema, nesse período entre guerras, a produção tendeu a aumentar, gradativamente se pasteurizando (focada na idéia de “cinema de gênero”), até chegarmos à infindável onda dos blockbusters que vivenciamos atualmente. Inicialmente experimentos com a luz em movimento (com questões ainda da daguerreotipia), passando pelas tentativas de documentação do espaço urbano, até a inserção da “narrativa clássica” dominante. A partir desse momento de expansão da ficção e da firmação de Hollywood como um grande pólo de produção audiovisual comercial, essas janelas de exibição de filmes se tornam verdadeiros megaeventos. Rondando os filmes projetados, temos suas estrelas, que fazem centenas de fotógrafos habitarem essas cidades por curtos espaços de tempo, a fim de registrar tudo e todos incessantemente, além de correrem atrás de possíveis pequenas ficções Capas dos catálogos da Mostra do Filme Livre 2006 e 2007. Design Mariana Mansur e Bernardo Carvalho.

que possibilitem a venda de jornais sensacionalistas. Os filmes lá estão, são debatidos, mas acabam por ficar em segundo plano; mais importante é a repercussão midiática. A própria concepção de premiação, presente em quase todos os festivais de audiovisual do mundo, contribui para isso; é necessário eleger o melhor. Não é mais conveniente ter-se apenas o ambiente de discussão crítica da sétima arte. Além disso, o pouco espaço de debate existente tende a cada vez mais se segmentar, já que esses próprios eventos tendem à segmentação. São diversos os já existentes recortes temáticos que um festival pôde tomar: assumidamente blockbusters, filmes para jovens, filmes GLBT, filmes digitais,

1 Sobre a Mostra do Filme Livre. 2 Segundo uma das únicas publicações específicas sobre o assunto, o Guia Brasileiro dos Festivais de Cinema, em 2006 houve 102 festivais de cinema no Brasil, 16 deles no Rio de Janeiro.

filmes de esporte e até mesmo um festival para filmes realizados, exclusivamente, por mulheres negras. Nesse viés de diversidade temática, surge a Mostra do Filme Livre, realizada neste ano entre os dias 06 e 18 de fevereiro, no CCBB-RJ, na Casa França-Brasil e no Oi Futuro. Curtas-

A árvore e a girafa Raphael Fonseca

199


metragens e longas são projetados, mediante inscrições online (que giram em torno de 650 obras a cada ano). Um profissional já reconhecido do meio audiovisual, uma organização produtora e um jovem realizador são homenageados anualmente. Oficinas de produção de curtas também acontecem. Não se trata de um megafestival; muito pelo contrário, é considerada uma mostra relativamente pequena, que atualmente conta com salas de cinema que somadas não proporcionam nem 400 assentos ao público. Pensando na ampliação das abordagens tradicionais do cinema e do vídeo, esse espaço de exibição possui um discurso curatorial que propõe a disseminação de “filmes livres”. Mas o que vem a ser um curador? Muitos defendem que essa figura seria tipicamente “pósmoderna” (termo perigoso): num momento em que a produção das vanguardas artísticas foi musealizada, e em que não existiriam mais paradigmas estéticos, seria necessário termos essa entidade que encabeça exposições, propondo recortes temáticos e os mais diferentes modos de ver. Grosso modo, ele é um dos vértices da relação que se dá também entre artista e público. De qualquer forma, concordo com a “rápida e rasteira” definição de Olu Oguibe: “O curador da arte contemporânea é uma parte sólida do circuito de moda Hugo Boss”.3 O curador produz textos, publicados nos catálogos,4 em que discute o conceito de liberdade audiovisual. Presente desde as primeiras edições, Marcelo Ikeda possui um discurso deveras interessante. Já em seus primeiros escritos é perceptível uma contextualização histórica desse fenômeno dos festivais e da produção audiovisual em si, que, como já dito, tende à pasteurização das propostas estéticas. “Filme livre” seria um objeto audio-

3 Oguibe, Olu. “O fardo da curadoria”. In: Concinnitas: Revista do Instituto de Artes da UERJ, Rio de Janeiro, ano 5, n. 6, julho de 2004: 8. 4 Talvez sua melhor denominação seja “catálogo-livro”, já que, diferentemente da maior parte dos festivais de cinema brasileiros, os “curadores livres” se preocupam em refletir teoricamente sobre diversos conceitos do festival, em cerca de 20 ou 30 páginas por ano.

visual não atrelado a uma indústria cultural com modelos hollywoodianos (Globo Filmes, pensando no caso do Brasil). A possibilidade de se conviver junto com a diferença. Não se trata de negar a linguagem clássica narrativa – esta também pode possuir grande qualidade –, mas sim de proporcionar ao público uma janela para exibição de linguagens capazes de desconstruir essa lógica estética já massificada. Um filme livre é de certa forma um filme de resistência, no sentido de proporcionar ao espectador uma experiência da diversidade. Um dos principais desafios de um filme livre é alertar o público da possibilidade da diferença e de quanto é saudável sua existência, num processo inclusive de formação crítica do indivíduo e de cidadania, ao permitir o acesso a outras visões e ter uma real possibilidade de escolha. Numa era de diferenciação de produtor como uma estratégia de marketing, vamos a um multiplex e nos deparamos com dez filmes diferentes. No entanto, muitas vezes, não percebemos que em última instância não estamos escolhendo. Todos os dez filmes na verdade são o mesmo filme.5 Convenientes a essa proposta foram, por exemplo, as escolhas dos realizadores anualmente homenageados. Todos tendendo à classificação de “malditos”, seja por seu “cinema marginal”, seja pela censura imposta a suas obras. Neste histórico, contamos com nomes

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5 Ikeda, Marcelo. “O que é um filme livre?” in: Whitaker, Guilherme (org.). Catálogo da Mostra do Filme Livre 2003. Rio de Janeiro: CCBB, 2003: 12.


como Luiz Rosemberg Filho, Fernando Spencer, Andrea Tonacci e, neste ano, a presença de Helena Ignez, musa de Rogério Sganzerla. Convém refletir sobre até que ponto a mostra atinge efetivamente público considerável. Partindo do princípio de que ela é realizada e patrocinada pelo Centro Cultural Banco do Brasil, uma questão surge: que tipo de público freqüenta esse espaço? Não seria o mesmo público que realiza os curtas e longas-metragens exibidos? Se sim, estaria a produção independente sendo efetivamente disseminada? Inevitavelmente me recordo dos escritos de Pierre Bourdieu, quando afirma que o “... Centro Cultural continua sendo a Casa dos 6 Nogueira, Maria Alice e Catani, Afrânio. Escritos de educação: Pierre Bourdieu. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2005: 62.

homens cultos”,6 por mais que seu projeto inicial fosse o da democratização das mediações de uma certa idéia de cultura erudita. A partir de 2004 propôs-se que a mostra se tornasse competitiva. De início tal idéia já seria uma prática absorvida dos grandes festivais e que vem contradizer a própria interessante proposta de mostrar variadas linguagens. Cria-se a necessidade de taxonomizar, de dividir os filmes em grupos e de apontar quais são melhores. Só que, enquanto nessa edição os próprios curadores apontavam esses vencedores, a partir de 2005 foi selecionado um júri para tal, também responsável por ver todos os filmes. Em 2006, formato semelhante ao proposto pela premiação do Oscar foi adotado: a curadoria aponta até 10 filmes para cada uma das cinco categorias criadas. O júri assiste apenas a essas obras e julga qual a melhor em cada uma das classificações. Algumas mostras ainda estão baseadas em idéias tradicionais e preconceituosas da prática cinematográfica, como a divisão (inconscientemente qualitativa?) entre longa-metragem e curta-metragem. Se é a proposta de linguagem que está sendo pensada, a quebra de padrões enferrujados da indústria audiovisual, por que ainda manter esse pensamento em que ter mais tempo de duração é sinônimo de diferença qualitativa, impossibilitando a (não desejável, mas já existente) competição entre ambos os formatos? Retomando as palavras de Marcelo Ikeda, ... se aprisionarmos o filme livre em torno de um conceito (‘este filme é mais ou menos livre do que outro’) já estaremos, por definição, tirando a liberdade de ser do filme. O filme livre é aquele que sofre diversas metamorfoses, cuja essência é fugidia: quando pensamos ter captado

7 Ikeda, Marcelo. “A pré-adolescência do filme livre (ou liberdade não é só seda)” in: Whitaker, Guilherme (org.). Catálogo da Mostra do Filme Livre 2006. Rio de Janeiro: CCBB, 2006: 13. 8 Whitaker, Guilherme. “Um filtro do filtro” in: ___ (org.). Catálogo da Mostra do Filme Livre 2006. Rio de Janeiro: CCBB, 2006: 11.

sua essência, ela já é outra.7 Esse trecho contradiz a criação dos prêmios e a fala do próprio criador do evento, além de também curador, Guilherme Whitaker: “... dizer, mais feliz do que nunca, quando me perguntarem o que é um filme livre, que basta ir na MFL. Caso não seja suficiente, assista aos filmes indicados. Eles, com certeza, esbanjam o espírito do evento, e dizer ‘É ISSO!!! FILME LIVRE É ISSO!!!”.8

A árvore e a girafa Raphael Fonseca

201


Estariam as contradições permitidas, partindo do princípio de que até os discursos dos curadores poderiam ser livres entre si, sem a necessidade de estar compondo uma unidade? Discordâncias à parte, a mostra se apresenta como importante espaço de reflexão audiovisual, num país em que as políticas culturais são impostas hierarquicamente. Funciona como dispositivo político e espaço de resistência. Contar com o patrocínio de uma estatal e de dentro da instituição batalhar pela exibição do “alternativo”, isso condiz com o proposto por Hal Foster: ... resistência sugere a luta imanente dentro delas [linhas sociais e culturais] ou por trás delas. Conceber a resistência dessa maneira não é proclamar a ‘morte’ da vanguarda (que é geralmente uma proclamação da direita), mas antes questionar a validade presente de dois de seus princípios: o conceito estrutural de um ‘limite’ cultural, a ser ampliado como um efeito de repercussão, e a política da ‘liberação’ social, concebida como um programa que a arte de vanguarda pode de algum modo acompanhar ou até mesmo fornecer.9 O conceito de filme livre é uma utopia, já que qualquer tentativa de classificação e de explicação estará sendo incoerente à liberdade proposta. Trata-se mesmo de uma “idéia em [eterna] construção”.10 Sua existência é uma aporia. Mas utilizar as páginas do catálogo para debater isso é um ato criticamente importante, partindo do princípio de que as grandes janelas de exibição audiovisual do país, os maiores festivais de curtas, como o Festival Internacional de São Paulo e a Mostra Curta Cinema, no Rio de Janeiro, além do badalado Festival de Gramado, não registram nem um terço do registrado nas páginas dos catálogos-livro. Sua própria programação visual, aliás, demonstra essa reflexão. Em 2002 um homem com uma câmera (e a explicitação escrita do óbvio – “experimental”). Se em 2003 e 2004 as palavras eram permeadas por setas (que sempre indicam caminhos a seguir; sempre são objetivas), em 2005 elas foram construídas por borrões de tinta (mas que ainda estavam atrelados à construção de palavras). Na edição do ano passado, a árvore condizia mais conceitualmente à proposta do evento: a liberdade como raiz da questão, os filmes produzidos como galhos possíveis que surgem a partir dessa reflexão. E, no presente ano, creio que essa visualidade foi a mais criativa e crítica possível. A girafa está lá, com suas delineações, assim como a linguagem audiovisual está presente com suas limitações técnicas. A forma como ela será preenchida, a forma como essa câmera será operada, vai depender de cada um – e essa particularidade universal desse mísero “um” que a Mostra do Filme Livre quer mostrar. Esse realizador que não sente a necessidade de preencher todo o corpo da girafa ou de se vender aos ideais imperialistas do audiovisual.

Raphael Fonseca cursa o bacharelado em História da Arte no Instituto de Artes da UERJ.

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9 Foster, Hal. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996: 199. 10 Ikeda, Marcelo. “’Filme livre’, uma idéia em construção” in: Whitaker, Guilherme (org.). Catálogo da Mostra do Filme Livre 2005. Rio de Janeiro: CCBB, 2005: 12.


Tropicália Brasilis os carnavais de Fernando Pinto1 Léo Morais

Rio de Janeiro, década de 1970, as luzes do carnaval carioca ga1 Sobre a trajetória do carnavalesco Fernando Pinto.

nhavam um colorido a mais: o tropicalismo e o modernismo encontravam espaço no desfile das escolas de samba. Em 1971, aos 26 anos, iniciava-se a trajetória de um dos mais bem sucedidos carnavalescos de sua geração – Fernando Pinto. Pernambucano e apaixonado pelo Brasil, com estilo muito próprio, dava ênfase às raízes culturais brasileiras. As escolas de samba eram obrigadas a utilizar temas nacionalistas que exaltassem os fatos históricos e curiosos do Brasil. Fernando conseguiu falar de tudo isso de uma forma muito particular em seu primeiro carnaval, com o enredo “Nordeste, seu povo, seu canto, sua gente”, para a Escola de Samba Império Serrano.

Em 1972, assinando novamente o carnaval da Império Serrano, uma das escolas de samba mais tradicionais do carnaval carioca, que sempre marcou suas apresentações com enredos históricos e visual pesado, com roupas de cortes e nobres, ele conquistou seu primeiro campeonato com o enredo “Alô, alô, Taí Carmem Miranda”. Coqueiros, frutas tropicais, boás e balangandãs do teatro de revistas caíam no desfile das grandes escolas de samba. Fernando Pinto colocava na avenida uma Império Serrano diferente, mais leve e descontraída. O verde, amarelo, azul e branco – suas cores preferidas – ganhavam destaque harmônico em seus carnavais. Ainda na década de 1970, Fernando Pinto assinou mais cinco enredos para a escola de samba de Madureira. Enredos distintos, mas que concentravam em seus conteúdos o que o Brasil tem de melhor: sua gente. Com “Viagem Pindorama adentro”, em 1973, retratou a presença dos desbravadores que construíram nosso país. Em 1974, com “Dona Santa, rainha do maracatu”, voltava a suas origens pernambucanas e exaltava uma das mais fortes expressões do carnaval de Recife: o maracatu. Com um desfile predominantemente branco, Fernando Pinto surpreendia novamente. Nos anos seguintes, deu continuidade a sua trajetória levando para a avenida desfiles que emocionavam o público. “Zaquia Jorge, a vedete do subúrbio, estrela de Madureira”, de 1975, fez com que a Império Serrano cantasse seu próprio bairro. Em 1976, a verde -e-branco de Madureira desfilava com um samba que entrou para a história como um dos mais bonitos, entoando “A lenda das sereias, rainhas do mar”, o enredo escolhido pelo carnavalesco.

Tropicália Brasilis Léo Morais

203


No carnaval de 1977, a avenida não acompanhou o brilhantismo das obras de Fernando Pinto. Mas no ano seguinte ele retornou e, em sua despedida da Império Serrano, levou para o desfile o tema “Oscarito, carnaval e samba, uma chanchada no asfalto”, homenagem a um dos mais importantes artistas brasileiros, então saudado na avenida. Em 1979, ele se ausentou mais uma vez da folia das escolas de samba, não assinando nenhum carnaval e dedicando-se somente a suas outras atividades. Compositor e diretor de espetáculos musicais, foi o carnavalesco mais contemporâneo que a avenida conheceu. Em 1980, já consagrado como cenógrafo, figurinista e diretor no mundo dos espetáculos, com shows dos grupos Dzi-Croquetes e As Frenéticas, e decorações de famosos bailes carnavalescos, como o do Pão de Açúcar, Fernando Pinto mudou de escola. Foi contratado pela Escola de Samba Mocidade Independente de Padre Miguel e encheu a Marquês de Sapucaí com as cores vivas dos trópicos. “Tropicália Maravilha” tinha índios de óculos ray-ban, relógio falso, camisa havaiana – um desfile cheio de humor. A partir daí, foi um desfile louco atrás do outro. Em “Como era verde o meu Xingu”, em 1983, e “Mamãe, eu quero Manaus”, em 1984, a selva debochava da cidade, e a cidade caía aos pés do criador Fernando Pinto. Em 1983, o carnaval da Mocidade virou exposição de arte. Seus adereços desceram das estruturas dos carros alegóricos e foram para a Galeria César Aché. Os amantes das artes se esbaldavam com a criatividade do carnavalesco. Em 1985 – quem diria? – Fernando Pinto viajava para o futuro. Baianas astronautas cantavam “Ziriguidum 2001”, o samba do novo século. Foram desfiles que conquistaram o público e surpreenderam os adversários, e, sem dúvida, formaram um estilo para a Mocidade Independente de Padre Miguel, para o carnaval carioca. Nesse ano, Fernando adequou seu estilo tropicalista a uma estética futurista, mais metálica e interplanetária, sem perder o bom humor. Insetos transformaram-se em naves espaciais e levavam os componentes a um desfile no espaço sideral. O desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel foi tão inovador, que não houve dúvidas, Fernando Pinto era novamente campeão do carnaval carioca. Em 1986, após um pequeno desentendimento com a direção da Mocidade Independente de Padre Miguel, Fernando tomou uma atitude comum em sua trajetória: afastou-se mais uma vez das escolas de samba. No entanto, no ano seguinte, com o enredo “Tupinicópolis”, retornou à Mocidade Independente. Com seu delírio tropical e seu teatro de revistas, mostrou toda a sua ousadia. A irreverente escola de Padre Miguel, bairro de origem da Mocidade, mexeu com a emoção dos sambistas. Fernando Pinto fazia gozação falando de coisas sérias. Principalmente em seus últimos carnavais, chamou a atenção do público para questões sociais, sobretudo vinculadas ao tema indígena. Ele trouxe para o carnaval uma contribuição valiosa, pois ainda hoje podemos reconhecer seus traços e suas cores inseridos nos trabalhos de outros artistas de carnaval. Infelizmente, morreu jovem, em novembro de 1987, aos 42 anos. Seu carro bateu num poste na Avenida Brasil, quando voltava de um ensaio da Mocidade Independente de Pa-

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Fernando Pinto. Tupinicópolis, Mocidade Independente de Padre Miguel, 1987.

dre Miguel. Antes do acidente, Fernando Pinto deixara pronto todo o projeto do carnaval de 1988 para a Mocidade, batizado de “Beijim, beijim, bye, bye, Brasil”. Assim como o título do enredo, ele dava bye-bye ao carnaval carioca. Esse acidente encerrou o vôo de um artista que ainda tinha muito a oferecer não só ao carnaval carioca, às escolas de samba, mas também à cultura nacional.

Léo Morais é carnavalesco do Grêmio Recreativo Escola de Samba Renascer de Jacarepaguá, pertencente ao grupo de base das escolas de samba da cidade do Rio de Janeiro, e foi premiado em 2007, pela Secretaria das Culturas da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

Tropicália Brasilis Léo Morais

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Abstracts Body painting: xavante’s tradition and art

The xavante’s corporal plastic, symbolic expression impregnated with communicating codes constitutes the way for the

Cristina R. Campos

individual to socialize as a member of its community. Its form is related to the classification of the individual from its

Pages 6-15

lineage, social group, class and age category, as well as aesthetics’ content, ethic, moral and political of that society. Creativity and rule, tradition and innovation materialize the same and combined artistic speech in the “ xavante” villages. Xavante’s art, body painting, tradition.

Poetical and religiousness in candomblé’s

The article presents some relevant issues which mediate the relations between photography and candomblé. It presents

contemporary photography

also works of two photographers who approach this religion, Mario Cravo Neto and Adenor Gondin, and analyses some of

Eliane Coster Pages 16-23

their masterpieces. Photography, candomblé, art.

I am another / I am the other: questions

In this dissertation I defend a new concept of art work – the whirl concept. I compare the whirl to the clinic, because I

about artistic influences in brazilian

believe that the contemporary art work establishes itself as a therapeutic, as if the art history was an artist’s and con-

contemporary art

temporary art spectator’s psychic nature. The whirl is the contemporary artistic act’s strategic and this circularity repeats

Elisa de Magalhães

itself to the observer – therefore I call both, artist and observer, “expectants”, as if who observes could re-cognize inside

Pages 24-35

the art object traces, spectrums: the autobiography. I also present an art work called The Ring, that consolidates all the questions brought up in this dissertation. Whirl, autobiography, clinic.

The apocalypse as hypothesis?

This text - whose heading refers to an event called Apocalipopotese, which took place in 1968 in Aterro do Flamengo, Rio

Fernanda Pequeno da Silva

de Janeiro and counted with the participation of Lygia Pape and Hélio Oiticica – intends to discuss their attitute towards

Pages 36-47

the matter of Brazilian adversity, in a way that it started working as a stimulation for Lygia Pape’s and Hélio Oiticica’s productions and their involvement in the formation and consolidation of a language-Brazil. Lygia Pape, Hélio Oiticica, adversity.

Wanderer – impulse and triviality

The following text is a resume of the ideas presented in the master dissertation in Contemporary Art and Culture in the Art

Francini Barros

Institute of UERJ. The research is the result of the intersection between three different artistic categories: dance, visual

Pages 48-57

arts and literature. It originates from the confrontation with the performance “Outdoor Piece”, by the visual artist Tehching Hsieh, which was made “ideal” when compared to the movement issues as well as to other artists and artworks. Wanderer, impulse, triviality.

Unmaking as making

This text considers some poetical and critical questions from the opus of Giuseppe Penone, namely “the 11 meters tree”,

Inês de Araujo

“Eyelid” and “Tree of vowels”. It analyses, in these works, his journey from image to sensation, from form to inform, from

Pages 58-65

representation to presence, which determines in practice the gesture of unmaking as well as making. Art, contemporary culture, poetical and critical practices.

The contemporary art as content and

This article discusses the inclusion of contemporary art as content and foundation of the art teaching practice. The author

foundation for art teaching practice

defends that those processes are not only included as contents, but also taken as conceptual and philosophical support for

Marina P. de Menezes

the art teaching. With this proposal, is pretended to defend a school art practice that valorizes the experience, openness,

Pages 66-77

complexity and deepness in the student’s productive and cognitive process. Art education, contemporary art, contemporary culture.

Crossing the intermediate space

Presentation of representative works of the artist’s process, which walk on the sensitive/conceptual frontier named In-

Nelson Ricardo

termediate Space, an area of performance that would move among and through out the limits that stipulate each field of

Pages 78-91

thought and action. In each work the present conceptual datum reveals itself from image, across immediately references on the ambiguity showed by images and daily situations. Visual arts, conceptual arts, frontiers. 207


The text presents Walter Benjamin´s book Passagen, that was published in Portuguese in 2006. The article focus on the

When Theory reencounters the Visual field

methodological issues developed by Benjamin in this work, his theory (and praxis) of presentation of the material he

Walter Benjamin´s Passagen

recollected and of the fragmentary writing. It also discusses subjects as the archive, memory, collection and the concept

Márcio Seligmann-Silva

of “now of recognizability”, that underlies Benjamin’s book-project. The author underlines the “visual” element that is in

Pages 103-114

the core of this apparently only verbal work. Walter Benjamin, writing and spatiality, pictorial turn.

From the analysis of Prometeus´and Sysifus´ myths, one aims to show that the tragic thought´s development and establish-

Prometheus’s promisse and the Sysifus’

ment as one of the main marks of ancient art, philosophy and culture is indebted to one identification that foreruns it

dilemma: the tragedy of knowledge and

and even more remote, namely, the perception that men is not only capable of knowledge, but also that one that depends

its transgression through art

on knowledge. Being knowledge itself one of his faculties, and, on the other hand, not having choosing it, nor even be-

Alexandre Costa

ing able to get rid of it, the ancient and greek man feels and thinks this duality as the most proper and radical human

Pages 116-129

condition, which is a common idea in the above mentioned myths. The overwhelming tragic character of the whole greek mentality develops itself from this idea and this condition, perceiving with accuracy that among all beings, man is the most tragical one: for tragic is existence in its whole being, since paradoxical and absurd; not only that, though, man´s life knows it and is not able not to know it. But the same knowledge that makes us conscious about it will be also the same element that man has in order to escape from his tragedy, affirming it as art. Philosophy of art, tragedy, greek mythology.

In the last years the field of Art History has become an object of serious revision from the part of scholars, who are deter-

Memory archives: Aby Warburg,

mined to proceed with a critique of the traditional categories of the discipline. In this context, the work of Aby Warburg

the history of art and contemporary art

has attracted much attention and has slowly come to occupy a prominent position, since various aspects of his work

Claudia Valladão de Mattos

offers important points of departure for new reflection on the theory and the practice of art. Especially his Mnemosyne

Pages 130-139

project, left unfinished at the moment of his death in 1929, contain methodological reflections of great interest for the historiography of art. The present paper discusses the relevance of Aby Warburg’s theories and methods for the interpretation of a significant group of contemporary works. This task is accomplished through an analysis of the production of two contemporary artists: Ron Kitaj and Wesley Duke Lee. Aby Warburg, memory, archive.

The XVI Italian century artistic production is characterized of the crescent syncretism between the Christian’s symbolisms

The Christian and Pagan symbology in the

and ancient iconography. In Madonna nursing the Child and St. John the Baptist in adoration, attributed to Lombard artist

beginning if the Italian Cinquecento:

Giampietrino and kept at São Paulo Art Museum (Masp), we analyze those characteristics trying to connect them to the

a case study

figurative culture of its time.

Fernanda Marinho

Religious syncretism, leonardism, sacrifice symbolism.

Pages 140-146

The art universe among the Nigerian Tiv; wood carvings creation process; authorship and communal production; tra-

The artist in tribal society

dition and changing; the presence of native critic; its role and importance to artistic creation’s understanding and

Paul Bohannan

determination.

Pages 147-154

Art anthropology, creative process, art critic.

The article discusses the history of video art, tracing from the beginning some reactions to the new technological society

Illuminating video:

and its marketplace values in the nineteenth century. Using photography as her example, the author notes in the debates

an essential guide to video art

invoked the dialectic between science and technology, on one side, and myth and magic, on the other. Having in mind the

Martha Rosler

avant-garde from the start of the twentieth century, Rolser tries to understand weather the strategies meant liberation or

Pages 155-175

accommodation to the institutions and the marketplace. The author considers as well, with a historiographic perspective, the interests of the institutions of art and of funding in shaping video art. Distinguishing the various trends in the artistic production of the American post-war, Rosler examines the role of myth in relation to technology and the influence of Marshal McLuhan in the formation and reception of video art practices. Video art, American vanguard, art and technol.

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concinnitas ano 8, volume 2, número 11, dezembro 2007


Sobre Concinnitas A revista Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes da UERJ, que foi criada em 1996 e, a partir de 2005, vinculada ao Mestrado em Artes da instituição. O termo “concinnitas”, extraído do tratado de pintura de Leon Battista Alberti, refere-se a um “juízo de gosto para além das opiniões”, refletindo a exigência editorial de independência acadêmica e rigor científico. O periódico tem como objetivo primeiro produzir e difundir saberes, a fim de proporcionar melhor compreensão dos problemas relacionados à criação, fruição e reflexão no campo da arte e da cultura. Deseja, portanto, constituir-se como um lugar de pesquisa tanto no campo da produção artística, como naquele dos discursos teóricos, historiográficos e críticos da arte, ou seja, dos processos de construção de sentidos, reunindo saberes de maneira a adensar os estudos e experimentos de arte e cultura. Assim, pretende responder à necessidade de formação de artistas, docentes e pesquisadores, bem como do público em geral, atendendo à demanda crescente de profissionalização, aperfeiçoamento e especialização do campo da arte e da cultura, e contribuindo para melhorar qualitativamente a produção, a pesquisa e o ensino. Como objetivo da revista consta ainda a criação de conexões estreitas entre pesquisa, extensão e ensino universitários não só pelo estímulo à produção e à pesquisa discente, mas, sobretudo, por meio de seu processo produção. Desde 2002 a publicação passou a Projeto de Extensão universitário, constituindo um laboratório editorial, do qual participaram, até o ano de 2005, alunos de graduação, mas que, com a vinculação ao Mestrado, pretende contar também com alunos de pós-graduação.

Normas para publicação Concinnitas adotou uma estrutura de pauta que segue a seguinte ordem: um dossiê reunindo artigos sobre um tema definido pelo conselho editorial, para o qual são convidados ensaístas nacionais e estrangeiros, que possam contribuir significativamente para o debate que o dossiê pretende levantar; um portifólio ou um ensaio de artista convidado, cujo trabalho é encartado no miolo da edição; artigos livres recebidos da comunidade acadêmica e artística e que sejam aprovados pelo conselho consultivo da revista, composto por pesquisadores das áreas de artes plásticas e visuais, história, historiografia, teoria e crítica de arte, cinema, vídeo, webart, teatro, dança, música e literatura, que compõem o campo da arte e da cultura na contemporaneidade. Faz parte, ainda, da estrutura de pauta, a publicação de entrevistas com artistas, críticos, historiadores e teóricos da área de arte e cultura, que tanto pode ser de iniciativa dos editores, como enviadas por colaboradores. A revista Concinnitas aceita também resenhas críticas de obras publicadas e de exposições ou eventos na área de arte e cultura, além de revisões e/ou traduções de artigos relevantes. Os textos, que podem ser enviados em qualquer época do ano, devem ser inétidos e serão submetidos ao conselho editorial, que emitirá parecer. 1. Os textos devem ter até 40.000 caracteres (sem espaço) editados em word, estilo normal, sem hifenação e sem tabulação de parágrafo. O texto pode ser enviado anexado a e-mail para concinni@uerj. br, em disquete ou em CD-ROM para Revista Concinnitas. 2. A folha de rosto deve conter título, resumo e três palavras-chave em português e inglês, nome(s) do(s) autor(es), endereço eletrônico e físico. 3. A bibliografia deve seguir as normas da ABNT. 4. As notas devem estar numeradas seqüencialmente, em pé de página. 5. Poderão ser enviadas até três imagens, com legendas e não inseridas no texto, mas com indicação de posicionamento. As imagens digitalizadas deverão ser gravadas em formato tiff, em 300dpi, tamanho mínimo 12 x 18cm.

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Universidade do Estado do Rio de Janeiro Reitor Nival Nunes de Almeida Vice-Reitor Ronaldo Martins Lauria Sub-Reitor de Graduação José Ricardo Campelo Arruda Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Albanita Viana de Oliveira Sub-Reitor de Extensão e Cultura João Regazzi Gerk Diretora do Centro de Educação e Humanidades Maricélia Bispo Instituto de Artes Diretora Maria Lúcia Galvão Vice-Diretor Roberto Conduru Coordenador de Graduação Marcelo Campos Cursos Bacharelado em Artes Visuais; Bacharelado em História da Arte; Licenciatura em Artes Visuais Corpo Docente Alberto Cipiniuk, Aldo Victorio, Alexandre Vogler, Cristina Pape, Cristina Salgado, Denise Espírito Santo, Ericson Pires, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luis Andrade, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcelo Campos, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Maria Lúcia Galvão, Miguel Proença, Nanci de Freitas, Regina de Paula, Ricardo Basbaum, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rodrigo Gueron, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenadora de Pós-Graduação e Pesquisa Vera Beatriz Siqueira Mestrado em Artes Área de Concentração Arte e Cultura Contemporânea Linhas de Pesquisa Teoria e História da Arte; Processos Artísticos Contemporâneos; Arte, Cognição e Cultura Corpo Docente Aldo Victorio, Isabela Frade, Jorge Luiz Cruz, Leila Danziger, Luiz Cláudio da Costa, Luiz Felipe Ferreira, Marcus Alexandre Motta, Maria Berbara, Maria Luiza Fatorelli, Ricardo Gomes Lima, Roberto Conduru, Roberto Corrêa dos Santos, Rogério Luz, Sheila Cabo Geraldo, Vera Beatriz Siqueira Coordenador de Extensão e Cultura Alexandre Vogler

Agradecimentos Ana Maria Mauad, Angel Vianna, Cecília Almeida Salles, Felipe Ferreira, Malu Fatorelli, Marisa Flórido Cesar, Ricardo Gomes Lima, Roberto Corrêa dos Santos, Roberto Conduru, Rodrigo Naves, Ronaldo Brito, Sheila Cabo Geraldo, Tania Rivera, Vera Beatriz Siqueira, Wallace de Deus Barbosa, Zalinda Cartaxo

Revista Concinnitas Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Rua São Francisco Xavier 524, Pavilhão João Lyra Filho, 11o andar, bloco E, sala 11.007 Maracanã, Rio de Janeiro, RJ, 20.550-013, Brasil Telefones: (55-21) 2587-7491 (r: 6) www.concinnitas.uerj.br concinni@uerj.br / concinni@gmail.com

Os textos (8/13), títulos (12/13), notas e legendas (6/8) desta revista foram compostos em ITC Officina Sans e ITC Officina Serif. Papel offset 90g/m2 (miolo) e cartão supremo alta alvura alcalino 250g/m2 (capa)




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