concinnitas ano 9, volume 2, nĂşmero 13, dezembro 2008
Universidade do Estado do Rio de Janeiro Concinnitas – Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo Conselho Editorial Alberto Cipiniuk ART-UERJ / PUC-RJ, Arlindo Machado USP / PUC-SP, Carlos Zilio UFRJ, Christine Mello Faculdade Santa Marcelina, Cristina Salgado ART-UERJ / PUC-RJ, Eduardo Kac Art Institute of Chicago, Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte, Gilles Tiberghien Paris I, Hélio Fervenza UFRGS, Hugo Segawa USP, Isabela Nascimento Frade ART-UERJ, Jorge Luiz Cruz ART-UERJ, José Thomaz Brum PUC-RJ, Kátia Maciel UFRJ, Lorenzo Mammi USP, Luciano Migliaccio USP, Luis Andrade ART-UERJ, Luiz Felipe Ferreira ART-UERJ, Manuel Salgado UFRJ, Márcia Gonçalves IFCH-UERJ, Maria Beatriz de Medeiros UnB, Maria de Cáscia Frade FAV-RJ, Maria Luiza Saboia Saddi Artista plástica, Mario Ramiro USP, Michael Asbury Camberwell College of Art, Milton Machado UFRJ, Nanci de Freitas ART-UERJ, Nuno Santos Pinheiro Faculdade de Arquitectura de Lisboa, Paulo Sergio Duarte UCAM, Rafael Cardoso Denis PUC-RJ, Ricardo Basbaum ART-UERJ, Roberto Conduru ART-UERJ, Rodrigo Naves CEBRAP, Rogério Luz UFRJ, Sonia Gomes Pereira UFRJ, Vera Beatriz Siqueira ART-UERJ, Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ Direção de Arte e Design Ligia Santiago (bolsista Proatec UERJ) Web Design Mariana Maia (bolsista Proatec UERJ) Equipe de Produção Marina Diniz, Marta Egrejas (bolsistas de Estágio Interno Complementar UERJ) Revisão Maria Helena Torres Capa / Quarta capa Luciano Zanetti. Sem título, 2008. Foto: Jailton Moreira. Fantasia da Turma Multicor de Cosmos – Estilo “Bujão”. Acervo: Aline Gualda. Bianca Bernardo. Descanso, Morro da Conceição, 2008. Foto: Rafael Adorján. Cristina Ribas. Arquivo de emergência. Projeto Arte Esfera Pública – Base Móvel, Centro Cultural São Paulo, 2008. Tunga. Ão. Fonte: Tunga. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997. Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.
Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC
2008
concinnitas [www.concinnitas.uerj.br]
Sumário
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Apresentação Dossiê Arte e Pesquisa
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Aline Gualda As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo
16
Ana Angélica Costa O experimento-pinhole
28
Analu Steffen Utopia, heterotopia e imigração ucraniana
38
Bianca Bernardo A casa em volta de si, a casa como organismo vivo
48
Christiane de Brito Andrei A arte conceitual e o espectador
60
Cristina Ribas Estratégia de arquivo
72
Elena O´Neill Questões entre arte e linguagem: pensando uma fotografia performática
82
Gilton Monteiro Jr. Eduardo Sued Minotauros
92
Renata Reinhoefer França Uma exposição topológica imaginária Entrevista
104
Elida Tessler e Jailton Moreira Torreão 15 anos de trabalho Artigos
115
Ana Paula de Miranda Poesia com dromos: “À” de Luis Andrade
126
Claudia H. Stern Arte e ciência = simetria e tempo
130
Claudio Castro Filho Raphael Domingues: o traço em seu percurso poético
140
Iremar Maciel de Brito O jogo do teatro em Os Sertões do Oficina
160
Louise Ganz Paisagens e experiências Tradução
174
Gisele Ribeiro Em torno da instituição e da crítica de Andrea Fraser
178
Andrea Fraser Da crítica às instituições a uma instituição da crítica Resenhas
188
Ana Beatriz Soares Cascardo e Tadeu Mourão Patrimônio imaterial afrodescendente: o tambor-de-crioula
194
Danielle Rodrigues Amaro Marcel Duchamp (ou o problema de expor Marcel Duchamp)
202
Renato Rezende O campo ampliado da poesia no Festival de Poesia de Berlim 2008
205
Abstracts
207
Sobre Concinnitas
207
Normas para publicação
Adriano e Fernando Guimar達es. Desescurid達o, 2005. Foto: Jailton Moreira.
Em outubro passado a revista Concinnitas participou, em parceria com a Escola de Artes Visuais do Parque Lage, das atividades comemorativas dos 15 anos do espaço Torreão, de Porto Alegre. Dessa comemoração realizada no Rio de Janeiro participaram Elida Tessler e Jailton Moreira, que são os criadores do Torreão, a então diretora da EAV, Luisa Interlenghi, e dois artistas que já haviam atuado naquele espaço gaúcho: Ricardo Basbaum e Malu Fatorelli. Do encontro resultou uma entrevista, que tornamos pública neste número, cuja capa reproduz a intervenção do artista Luciano Zanetti no Torreão. Nesta edição publicamos ainda, como dossiê, alguns artigos resultantes das dissertações desenvolvidas pelos mestrandos em arte da UERJ. Esse dossiê sinaliza a diversidade de interesses do programa, mas também a alta qualidade das pesquisas orientadas pelo grupo de professores-pesquisadores, que tiveram atuação importante na revisão técnica dos artigos. Agradecemos, assim, aos alunos-mestres e seus professores-orientadores. Como periódico acadêmico, divulgamos artigos recebidos e aprovados por nosso corpo de consultores ad hoc. Esse material sempre nos dá a visão do alcance que a revista vem conseguindo, o que muito nos contenta. Os artigos de Ana Paula de Miranda, Claudia H. Stern, Claudio Castro Filho, Iremar Maciel de Brito e Louise Ganz, vindos de diferentes áreas, instituições acadêmicas e estados do país, são a prova da disseminação de Concinnitas como espaço editorial aberto à diversidade. Para isso, sem dúvida, contribuiu a edição on line da revista, na qual os artigos podem ser lidos na integra. Sempre traduzimos a cada número um artigo de referência. Para esta edição a professora da Ufes Gisele Ribero traduziu um artigo de Andrea Fraser, ao qual acrescenta uma apresentação crítica, que nos introduz ao pensamento dessa artista-pesquisadora. Agradecemos a ambas a possibilidade de publicar os textos. Nossos agradecimentos também ao poeta Renato Resende, assim como a Danielle Rodrigues Amaro, Ana Beatriz Soares Cascardo e Tadeu Mourão pelas resenhas enviadas.
Sheila Cabo Geraldo Editora
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As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo Aline Gualda
Síntese da dissertação Tramas simbólicas: a dinâmica das turmas de bate-bolas do Rio de Janeiro, o texto apresenta uma abordagem dessa manifestação como objeto cultural popular simbolicamente disputado, dinâmico e multifacetado. Essa abordagem conduz à análise dos estilos de turmas de bate-bolas – categorias formuladas pelos brincantes para organizar e assimilar a heterogeneidade de indumentárias e performances presente no universo conceitual da brincadeira. Turmas de bate-bola, carnaval, cultura popular. As festas carnavalescas de certas localidades do Rio de Janeiro apresenFantasia da turma Coyote de Paciência para o carnaval de 2008. Foto: Bruno “Coyote”.
tam manifestações diferentes das que o imaginário global associa ao carnaval carioca, rela-
1 A denominação “bate-bola” tem relação com o hábito de bater no chão uma bexiga, parte integrante da fantasia. Atualmente a bexiga corresponde a artefato industrializado que substitui as bexigas de porco e de boi, antes usadas. As bexigas de animal eram colocadas para secar ao sol e, depois de secas, infladas e atadas com cordão. A denominação “clóvis” costuma ser justificada como corruptela do termo clown (Zaluar, 1978; Frade, 1979; Guimaraens, 1992). Há divergências quanto à origem do termo, presente nos inglês e alemão, em ambos significando “palhaço”.
dos que circulam pelas ruas usando roupas coloridas e fazendo gestos extravagantes. Esses
2 Afirma-se que os bate-bolas teriam surgido em Santa Cruz na década de 1930, relacionados à presença de militares estrangeiros no bairro, pela ocasião da construção de um hangar de zepelim, iniciada em 1933. Esses estrangeiros teriam trazido o hábito de vestir-se de palhaço no carnaval (Frade, 1979) ou, numa outra possibilidade, teriam apenas emprestado o nome “clown” a uma espécie de fantasia já freqüente no bairro, no período carnavalesco (Zaluar, 1978). Entretanto, encontram-se registros da circulação de fantasiados chamados de “clóvis” e “clown” em carnavais fluminenses em datas anteriores à década de 1930 (Barreto, 1956; Jacintho, 1928). 3 Ver fofões, mascaradinhos, mascaradosfobós, papangus, matachins, pantallas e participantes da Mummers Parade, por exemplo (Pereira, 2008). 4 Alba Zaluar identifica nos clóvis influências européias medievais e percebe semelhanças
cionado aos desfiles das escolas de samba. Em alguns lugares do estado, há foliões mascarafantasiados podem ser chamados de bate-bolas, clóvis ou, simplesmente, mascarados.1 Se não se sabe ao certo quais seriam as prováveis origens dos bate-bolas fluminenses,2 percebe-se que a manifestação possui semelhanças com certos personagens da cultura popular nacional e da cultura mundial, especialmente no que diz respeito à indumentária colorida e fragmentada, ao uso de máscaras e à performance marcada por notável caráter cômico.3 Os bate-bolas cariocas já foram descritos por alguns autores como fantasiados necessariamente mascarados, com características de indumentária e performance regulares e constantes, e que se manifestariam exclusivamente nos bairros suburbanos da cidade do Rio de Janeiro.4 Notou-se, com este estudo, que os bate-bolas contemporâneos têm-se manifestado de maneiras muito heterogêneas – com visualidades e performances diversas –, a ponto de se ter certa dificuldade metodológica para os reconhecer como foram descritos em estudos pregressos. Estivemos em contato com algumas turmas de bate-bolas do Rio de Janeiro no período de fevereiro de 2006 a fevereiro de 20085 com o objetivo de observar suas características – especialmente nos aspectos indumentário e performático –, analisá-las e buscar compreender suas irregularidades e sua dinâmica, até então não abordadas ou mantidas em segundo plano.6
As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo Aline Gualda
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Pudemos perceber que as turmas de bate-bolas são hoje coletivos nos quais se partilha identidade comum, baseada em compreensão específica da manifestação dos bate-bolas. Os componentes das turmas de bate-bolas atuais são predominantemente homens (muito embora não exista restrição à participação de mulheres em muitos dos grupos pesquisados), em sua maioria na faixa de 25 a 40 anos de idade, mais freqüentemente moradores das zonas Oeste e Norte da cidade do Rio de Janeiro e em municípios vizinhos como Itaguaí, Nova Iguaçu, Nilópolis, Belford Roxo, Duque de Caxias, São Gonçalo, Magé, Guapimirim, entre outros. Apesar de ser possível situá-las geograficamente, as turmas de bate-bolas costumam circular por espaços geográficos diferentes de suas localidades de origem. É grande, por exemplo, a concentração de turmas de bate-bola no Centro do Rio de Janeiro, nas terças-feiras de carnaval, quando ocorre o Concurso Folião Original – Modalidade Clóvis, na Cinelândia.7 As turmas de bate-bolas podem ter de dois membros até centenas de componentes e costumam ter uma espécie de líder, comumente chamado de “cabeça da turma”, com freqüência, o idealizador do grupo. É ele quem normalmente decide sobre a visualidade da turma, organiza as tarefas para a produção das fantasias, convoca reuniões e encontros, admite e desliga membros. Há turmas de bate-bola com mais de um líder. Característica freqüentemente associada às turmas de bate-bolas contemporâneas é seu marcante caráter competitivo; podem competir entre si formalmente, pela participação 8
em concursos de fantasia promovidos nos carnavais de coreto de algumas localidades da cidade, ou informalmente, por conflitos e enfrentamentos corporais algumas vezes bastante violentos.9 Acrescentaremos uma terceira modalidade, que chamamos de disputa conceitual, em que está em jogo a hegemonia10 sobre a significação da brincadeira. A disputa conceitual na manifestação dos bate-bolas A manifestação contemporânea das turmas de bate-bolas não possui um formato geral definido, ou seja, não é praticada de maneira padronizada pelos diversos grupos de brincantes nem é entendida e conceituada pela mídia e pela sociedade em geral de maneira homogênea. Podemos compreendê-la como uma articulação de discursos diferenciados e, às vezes, até mesmo conflitantes. Seria equivalente ao que, para os Estudos Culturais,11 se chama de texto. O texto corresponde a um determinado objeto cultural sobre o qual pode haver uma articulação de discursos variados. Um texto, define Storey,12 is not the issuing source of meaning, but a site where the articulation of meaning – variable meaning(s) – can take place. And because different meanings can be ascribed to the same text or practice or event, meaning is always a potencial site of conflict. Por articular diferentes discursos, cada qual com significados específicos, um texto é considerado objeto polissêmico, capaz de provocar leituras diferenciadas que, por sua vez,
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concinnitas ano 9, volume 2, número 13, dezembro 2008
entre eles e os palhaços da folia-de-reis; a autora situa a ocorrência da manifestação nas zonas periféricas da cidade do Rio de Janeiro e supõe que esse isolamento geográfico seria o fator responsável pela manutenção da pureza cultural da manifestação; ela descreve os fantasiados como foliões necessariamente mascarados que trajam macacões de cetim (Zaluar, 1978). Lélia Gonzáles declara a manifestação típica dos subúrbios e das zonas rurais; descreve os fantasiados como aqueles que trajam pijamas coloridos de cetim, usam máscaras e batem fortemente bexigas de ar no chão (Gonzales, 1989). Lélia Coelho Frota os compreende como fantasiados que se manifestam nos subúrbios e que se associam livremente em agrupamentos espontâneos (Frota, 2005). Roberto Da Matta associa a manifestação dos clóvis às zonas periféricas da cidade do Rio de Janeiro, onde as máscaras providenciariam uma espécie de inversão do cotidiano, caracterizado pela contato promovido por relações de vizinhança (Da Matta, 1981). Cáscia Frade também associa a manifestação ao espaço geográfico suburbano e descreve os fantasiados como mascarados que trajam fantasias de cetim em cores variadas, que batem bexigas de boi cheias de ar no chão para afastar os inoportunos e curiosos (Frade, 1979). 5 As turmas foram acompanhadas por trabalho de campo e observação participante (Pereira, 2008). 6 É possível que essas diferenças não tenham sido significativas na época dos estudos anteriores, ou que no momento dessas pesquisas não tenha sido pertinente abordar os batebolas pela perspectiva das diferenças, uma vez que a compreensão clássica de cultura popular, normalmente evocada nesses estudos, tende a considerar as regularidades, os costumes e as tradições (enquanto repetições) como características intrínsecas ao objeto cultural popular. 7 As inscrições para o concurso são realizadas no local e podem ser feitas das 13 às 16 horas. A turma deve ter no mínimo 15 componentes, todos maiores de 18 anos de idade, e deve ser representada, no ato da inscrição, por um responsável devidamente documentado. Os prêmios correspondem a valores em dinheiro oferecidos às três primeiras turmas mais votadas. Não há registros formais sobre os critérios de seleção empregados pela RioTur para a escolha do júri nem daqueles pelos quais os jurados avaliam cada turma (Pereira, 2008). 8 Diz-se que esse espírito competitivo das turmas de bate-bolas teria sido estimulado pelos concursos de fantasias, surgidos, segundo alguns brincantes, nos anos 80, por iniciativa de um comerciante de aviamentos de costura e artigos de bazar do bairro de Marechal Hermes, conhecido como sr. Magalhães (id., ibid.).
9 O que entendemos como extensão da violência cotidiana à qual alguns brincantes podem estar sujeitos em seu meio social. Apesar disso, não concordamos com a idéia de que a violência seja característica própria da manifestação (associação freqüentemente explorada pela mídia impressa). As manifestações carnavalescas populares apresentam um histórico de referências de desvalor na mídia que pode ser observado, por exemplo, desde as tentativas burguesas de criar, no século XIX, um padrão elitizado de carnaval baseado em modelos franceses (Ferreira, 2005). Acreditamos que, ainda hoje, o dito pequeno carnaval ainda carregue esse estigma, que contribui para a propagação dessa associação do carnaval popular como uma prática necessariamente grosseira e violenta. 10 A respeito do conceito de hegemonia, ver Gramsci (1998). 11 Campo teórico que atenta para as manifestações culturais em suas práticas cotidianas e conflituosas.
não estabelecem entre si qualquer tipo de hierarquia. Não existe, desse modo, uma forma “correta” de se compreender um texto. Sobre o caráter polissêmico dos textos, Fiske13 afirma que: popular taste, then, is for polisemic texts that are open to a variety of readings. This polissemy is different that of aestheticism, for it is not organizated into a textured, multilayered organic unity of meaningfulness, but is rather a resource bank from wich different, possibly widely divergent, readings can be made. This means that there can be no hierarchy of readings, for there is no universal set of criteria by wich to judge that one reading is better (…) than another. Deve-se considerar que toda leitura de um texto seria o resultado de um ato de articulação relacionado às práticas de consumo cotidianas:14 To know how ‘texts’ are made to mean requires a consideration of con-
12 Storey, 1996, p. 4.
sumption. This will take us beyond an interesting in the meaning of a
13 Fiske, 1989, p. 217.
‘text’ (that is, meaning as something ‘essential’, inscribed and guaran-
14 Storey, 2003, p. 130.
teed), to a focus on the range of meanings that ‘text’ makes possible (that is, its ‘social’ meanings, how it is appropriated and used in the consumption practices of every day life). A leitura de um texto resultaria, então, da combinação de uma compreensão global do objeto cultural lido com o repertório particular das chaves de compreensão de que cada leitor dispõe para assimilar esse objeto. Seria produzida no ato do consumo do texto e estaria necessariamente subordinada ao contexto social do leitor. Para exemplificar as leituras particularizadas da manifestação atual dos bate-bolas, citamos dois casos: durante a pesquisa, vários depoentes se autoposicionaram como
15 Os nomes dos depoentes são fictícios.
portadores da verdadeira expressão da manifestação dos bate-bolas. Um deles, Pedro,15 disse ter ficado preocupado com as pessoas que estaríamos entrevistando, pois afirmou que muitas não forneceriam mais do que informações erradas, que nada teriam a ver com a verdadeira essência da manifestação. De acordo com Pedro, só ele e outros “veteranos” do mundo dos bate-bolas teriam autoridade para falar sobre a brincadeira, pois seriam aqueles que teriam não só assistido, mas providenciado as mudanças da manifestação ao longo do tempo. Para ele, os novatos não estariam “com nada”, e as ditas “novas formas de brincar” (que Pedro associa às formas mais sofisticadas e caras da brincadeira) não deveriam sequer ser entendidas como manifestações de bate-bolas.
16 Pereira, 2008.
Em entrevista,16 Pedro afirmou que: o carnaval hoje está estragado. Bate-bola antigamente era uma coisa só, aquela máscara barbuda, cada um fazia sua fantasia. No máximo,
As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo Aline Gualda
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só as capas eram iguais. Hoje em dia virou coisa de playboy, entende? O bate-bola de verdade é fantasia de pobre, é espontânea, não tem que ficar gastando dinheiro para aparecer nem para arrumar confusão. Gastar dinheiro com pano é coisa da Zona Oeste. O bate-bola aqui de baixo é um negócio mais simples, entendeu? Mais tradicional.17 Assim como o depoimento de Pedro, estabelecido sob o ponto de vista da tradição inventada,18 há discursos que expressam diferentes compreensões da manifestação e que disputam a hegemonia pela conceituação da brincadeira via valorização de outros aspec-
17 O discurso de Pedro é carregado de explicações que remetem à familiaridade, à memória, à originalidade e à pureza cultural. Essas são características daquilo que os antropólogos conceituam como “mito fundador” ou “mito de origem”, e constituem e reforçam a formação de coletividades (nesse caso, a turma de bate-bolas liderada por Pedro) ancoradas na noção de “comunidade imaginada” (Hall, 2006, p. 26). Nesse sentido, o discurso de origem funcionaria como elemento de sustentação da coletividade por meio da produção de laços compartilhados.
ficar bonito, para sentir orgulho da fantasia. Eu sempre quis sair, desde
18 “Por tradição inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam vincular certos valores e normas de comportamento por meio da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado” (Hobsbawm, 1997, p. 9).
molequinho, e não podia. Agora eu junto gente, boto dinheiro até do
19 Pereira, 2008.
tos, como indica o depoimento de André, em que o ideal coletivo compartilhado é regido pela idéia de evolução, pelo emprego da inovação e pelo desejo constante de superação: Brincar de bate-bola é uma paixão. A gente quer fazer o negócio para
meu bolso para o grupo sair bonito. Só esse ano eu já botei uns três ou quatro mil. A gente tenta se superar, colocar novidade no bate-bola é por amor mesmo, por amor à fantasia.19 Observando-se as divergências entre Pedro e André, percebe-se a capacidade de ação do consumidor cultural:20 ambos consomem conceitos gerais sobre a manifestação dos batebolas e a ela atribuem sentidos diferentes. Apesar de enfatizarmos as divergências entre as compreensões das turmas de bate-bolas
20 Destacamos, entretanto, que observar que o consumidor é um agente cultural em potencial não implica negar que o consumo possa também ser passivo, ou que inexista, por trás de determinada produção cultural, uma possível intenção de manipular.
contemporâneas, sabemos que a brincadeira está inscrita num complexo de relações sociais que se interinfluenciam. Uma vez que a manifestação acolhe uma dinâmica de ressignificações, ela também se atrela a alguns cânones simbólicos compartilhados por todos aqueles que dela participam. É justamente essa tensão que estabelece a instabilidade conceitual e material da manifestação. O próprio nome da brincadeira expressa um caso extremo de ressignificação. O termo batebola é uma das possibilidades de denominação do personagem característico das turmas de bate-bolas. Não se trata da denominação mais importante, nem da mais usada (para demonstrar essa indiferenciação, afirmamos que o termo bate-bola poderia, neste trabalho, ter sido substituído por “clóvis” ou “mascarado”, por exemplo,21 sem prejuízo da compreensão da manifestação à qual nos referimos). Nosso interesse em analisá-la decorre do fato de esse nome permanecer em uso, mas de não mais significar o que as palavras que o compõem querem dizer – o que manifesta, de maneira muito clara, o resultado das operações de consumo às quais ela se sujeita. Verificamos que a ação de bater a bexiga (ou bola), expressa pelo termo batebola, não é atualmente requisito fundamental para caracterizar um bate-bola como tal, pois há fantasiados chamados de bate-bolas que não “batem bolas”. Em via oposta, há fantasiados que batem bolas e que não são considerados bate-bolas, como é o caso dos macacos e perrôs.22
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21 Ao contrário do que se costuma pensar, não temos nenhuma indicação precisa sobre a anterioridade do termo “bate-bola” em relação aos nomes “clóvis” e “mascarado” ou vice-versa. Não sabemos, ainda, se esses nomes chegaram a ser utilizados de modo concomitante para denominar fantasias diferentes, que posteriormente teriam vindo a se confundir. 22 Perrô é corruptela da palavra “pierrô”. Os perrôs costumam usar macacões longos e com saias (como se fossem vestidos), adornados com pompons de lã. Como certos bate-bolas, usam máscaras, casacas, bichos e sombrinhas, e se agrupam de forma semelhante à das turmas de bate-bolas. Os macacos ou gorilas também usam máscaras, bexigas e macacões – como fazem alguns bate-bolas –, mas seus macacões costumam ser constituídos de tiras plásticas dispostas como franjas ao longo da roupa. Eles também se organizam em grupos.
A exemplo do que Frow e Morris observaram em relação à textualidade de um shopping 23 Thus a shopping mall (…) is a place where many different things happen, and where many different kinds of social relations are played out. It is, of course, the end point of numerous chains of production and transportation of goods, as well as of the marketing systems that channel them to consumers (and of the financial structures that underlie all this). These chains belong to regional and national as well as to global circuits (the ‘gourmet’ aisle in the supermarket or the shelves of a delicatessen make visible the global nature of the capitalist marketplace, and may evoke something of the history of its formation, while the produce section may – or may not – be quite local in its reach. In each case the forms of packaging and presentation – ‘exotic’ or ‘fresh’, for example – will carry particular ideologies and particular aesthetic strategies). In another of its dimensions, the mall is an architectural construct, designed in accordance with an international format (...); it constructs (…) a particular existence and image of community, and works in calculated ways to display the rewards and pleasures that follow upon work (…). It sets up a normative distinction between men’s and women’s interactions with this space, and between adults’, children’s, and teenagers’ uses. It distinguishes sharply, of course, between its affluent clientele (the proper subjects of its community) and those who are less welcome – some of them, like schoolkids, it may tolerate; others, like vagrants and drunks, it will not. The aesthetic organization of the mall has to do with the gratification of desire and the organization of bodies of space; it’s a sensual, subtly coercive kind of space. But it is also a space that is put to use, that is diverted to ends other than those foreseen by its architects and managers and guards. This is perhaps the most familiar lesson of cultural studies: that structures are always structuresin-use, and that uses cannot be contained in advance (Frow e Morris, 1996, p. 352). 24 A fantasia de turmas de “bola e bandeira” geralmente é composta por macacão de comprimento médio, que pode ser estampado, liso ou listrado, cuja parte inferior é uma saia; as mangas normalmente seguem o modelo conhecido como duas mangas. Sobre esse macacão costuma ser usada uma peça chamada de casaca gliterada (neste caso, especificamente, usa-se casaca fechada na frente e nas costas, vestida pela cabeça do fantasiado). Na cabeça usa-se a máscara, que pode ser feita de tela ou de outros materiais; luvas, meiões (normalmente de malha elástica e modelagem semelhante à das meiascalças femininas) e tênis de marca cobrem mãos, pernas e pés. Notamos que as turmas desse estilo também podem usar macacões de mangas simples, casaca com abertura frontal, máscaras feitas de látex ou tecido, e kit composto de capuz, luvas e meiões personalizados (Pereira, 2008).
center,23 pode-se também afirmar que a manifestação dos bate-bolas deve ser entendida como um objeto relacional, mais do que substancial, e que, portanto, os significados que lhes são atribuídos podem não se conectar com aquilo que teria sido a essência original do objeto. Como pudemos observar em nossa investigação direta, as ações e objetos que se articulam para definir uma determinada brincadeira de bate-bola constituem inventário dinâmico, bastante amplo, porém limitado por uma espécie de acordo simbólico constantemente revisto, entre todos os envolvidos na brincadeira. É nesse ponto que reside a tensão conceitual que identificamos, e é por isso que as ações e os elementos que compõem brincadeiras de bate-bolas são heterogêneos, mas, ao mesmo tempo, mantêm contato muito estreito uns com os outros. Embora possamos identificar alguns dos elementos gerais da manifestação dos bate-bolas nos dias atuais e associá-los a alguns usos correntes, não é possível esgotar as possibilidades de descrição e de análise dos elementos característicos da brincadeira em sua totalidade. Essas informações tornam-se úteis, entretanto, para a compreensão de como se operam suas articulações, que os brincantes chamam de estilos, e nós definimos como certas categorizações pelas quais as turmas de bate-bolas costumam organizar-se, de acordo com critérios de aproximação e distanciamento identitário entre elas. Como os elementos que os configuram, os estilos são tensos e mutantes, e as turmas de bate-bolas contemporâneas gozam de relativa liberdade para se mover de um estilo para outro. Alguns estilos de turmas da bate-bolas Estilo é como as turmas de bate-bolas denominam a articulação de determinados elementos materiais e performáticos; expressa uma tentativa dos brincantes de formatar a brincadeira. Por meio do pertencimento a um dado estilo, são estabelecidas relações de identificação ou diferenciação entre as turmas. Durante a pesquisa, registramos e acompanhamos os estilos bola e bandeira, sombrinha, emília, rastafári e bujão. O estilo conhecido como “bola e bandeira” apresenta dois elementos materiais característicos: a bexiga e a bandeira de mão. A fantasia apresenta configuração mais ou menos geral, com possibilidades de variação de certos elementos24 (notamos que isso também acontece nos demais estilos). A maioria das turmas de bate-bolas atuais costuma produzir suas fantasias segundo temas, nos quais buscam referências de cores, estampas e texturas. A cada ano é escolhido um novo tema, e as fantasias são, então, renovadas.25 As turmas do estilo “bola e bandeira” mostraram adotar temas que remetem à cultura de massa em geral, como, por exemplo, artistas e cantores populares, logomarcas de grandes
As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo Aline Gualda
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empresas, marcas de bebidas e cigarros, personagens de filmes, desenhos animados e histórias em quadrinhos, entre outros. Essas turmas costumam ser numerosas, o que lhes agrega as idéias de força, agilidade e, até mesmo, agressividade.26 O estilo “bola e bandeira” tem muitas adesões nos bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro. Sua primeira aparição pública pode ocorrer numa espécie de evento chamado de “saída de turma”,27 a partir do que podem circular pelos carnavais de coreto de diversos bairros e, ainda, participar de concursos de fantasias de bate-bola.
25 As fantasias usadas não costumam ser reutilizadas pela mesma turma em anos subseqüentes. Apesar de custarem relativamente caro, elas podem ser negociadas com bazares especializados em artigos carnavalescos por valores correspondentes a aproximadamente 1/20 de seu preço de custo. Os bate-bolas que compram fantasias já usadas e descartadas por outras turmas costumam ser chamadas pejorativamente de “molambos” pelos brincantes (idem). 26 Estas turmas costumam ser consideradas mais violentas do que as demais.
O estilo “sombrinha” também pode ser chamado de “bicho e sombrinha”, e tem a sombrinha e o “bicho” ou “boneco” como seus elementos mais representativos.28 A fantasia característica desse estilo também pode sofrer variações, embora nos tenha sido possível perceber seus traços materiais mais gerais.29 Nesse estilo, a produção das fantasias também costuma ser norteada por um tema, e nota-se aqui a predominância de temas relacionados ao universo lúdico infantil, como, por exemplo, personagens de histórias em quadrinhos, de desenhos animados e super-heróis da tevê e dos filmes de cinema. Entre as turmas desse estilo, parece que o valor predominante é cativar o público com imagens singelas e coloridas, para afirmar o perfil de comportamento alegre e pacífico.30 Turmas do estilo “sombrinha” costumam promover saídas de turma, fazer passeios locais e participar com freqüência de concursos de fantasia. É comum associá-las aos bairros da Zona Norte do Rio de Janeiro, em especial a Jacarepaguá e Marechal Hermes. O estilo “emília” costuma ser marcado pelo uso de perucas e pelo aspecto de produto artesanal de suas fantasias. Há quem o situe no bairro de Realengo, dada a difusão desse tipo de turma no local. Por isso esse estilo também pode ser chamado de “estilo Realengo” ou “bate-bola Realengo”.31 A fantasia do estilo “emília” costuma misturar muitos elementos, e, por isso, torna-se mais difícil do que nos demais estilos apreender seu formato geral.32 As turmas de estilo “emília” costumam produzir “mascotes”, que são espécies de emblemas baseados em personagens da cultura de massa. Os emblemas são marcas das turmas e costumam ser utilizados como estampa nas fantasias. As fantasias do estilo “emília” também se renovam a cada carnaval e também são produzidas de acordo com temas escolhidos, que costumam ter naturezas variadas e podem conjugar-se com o personagem do emblema, essa fusão dando origem às figuras que irão decorar a fantasia.33 Por adotarem fantasias comumente mais elaboradas, mais frágeis e mais volumosas e pesadas do que as dos estilos antes mencionados, essas turmas costumam admitir menos componentes e restringir suas aparições públicas. Os brincantes das turmas de estilo “emília” se autodenominam os mais modernos do universo dos bate-bolas atuais, pois, argumentam, não haveria “limites para a criatividade” na produção de suas fantasias. Parece-nos, assim, que, no estilo “emília”, o sentido da brincadeira reside no emprego de inovações constantes. O estilo “rastafári” pode ser caracterizado em linhas gerais pelo uso da fantasia listrada, pesada e longa, cujo comprimento chega aos pés do fantasiado.34 Diz-se que o estilo tem
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27 As saídas de turma normalmente ocorrem no domingo de carnaval, em local e horário transmitidos oralmente na comunidade. Os espectadores agrupam-se no local e aguardam a apresentação dos fantasiados, normalmente anunciada por queima de fogos e pela música de carro de som. Uma saída de turma dura em geral de 15 a 20 minutos. 28 O bicho e o boneco são espécies de adereços de mão e costumam corresponder à reprodução tridimensional de um personagem relacionado ao tema da fantasia. O bicho pode ser um bicho de pelúcia, comprado em loja de brinquedo. O boneco costuma ser produzido por modelagem e escultura de materiais emborrachados, espuma e isopor. 29 Na fantasia estilo “sombrinha” costumase combinar o macacão médio de saia, liso ou estampado e de duas mangas; a casaca gliterada normalmente é aberta na frente; a máscara de tela costuma ser personalizada; a sombrinha é produzida com exclusividade, seguindo o tema adotado; usam-se o bicho e um kit composto de capuz, meiões e luvas; além de sapatilhas, também personalizadas. 30 Para algumas pessoas, a bexiga e a sombrinha constituem elementos opostos: o uso da sombrinha pode ser associado à idéia de paz e o uso da bexiga à idéia de guerra (Pereira, 2008). 31 Existem, porém, turmas desse estilo em outras localidades, como Campo Grande, Curicica, Recreio dos Bandeirantes, Santa Cruz e Bangu, por exemplo. 32 A fantasia do estilo “emília” pode ser composta por macacão de comprimento médio e volumoso (o volume costuma ser obtido com forração de espuma), calça ou saia de listras regulares ou irregulares, que podem receber estampas; casaca ou peitoral, predominantemente decorada com bordado, aplique ou modelagem; luvas e meias, e máscaras de materiais e tamanhos livres e variados; botas e bexigas e outros acessórios de mão temáticos. Grande parte da fantasia é produzida de forma artesanal, à exceção das listras que compõem o macacão, que são unidas umas às outras na máquina de costura. Os próprios fantasiados desse estilo costumam confeccionar sua fantasia.
33 A turma do Eufrazino, por exemplo, produziu seu emblema apropriando-se do personagem Eufrazino Puxa-Brigas, da Turma do Pernalonga. A imagem do Eufrazino do emblema se transforma a cada ano, pela incorporação de elementos temáticos, originando a estampa da fantasia para o ano corrente. A turma já exibiu as estampas do Eufrazino índio, vampiro, Nostradamus, samurai, entre outros.
esse nome graças a uma das fantasias usadas pela Turma do Vovô do Clóvis de Santa
34 O estilo é marcado pelo conjunto de macacão comprido e pesado, de saia, com listras regulares; casaca ou bolero bordado, com a parte frontal mais curta e a parte traseira mais longa; máscara de tela; bexiga; acessório de mão; acessório de cabeça; luvas, meias e sapatilhas industrializadas.
e costuma incluir poucos componentes, em geral não faz da hora da saída momento
35 Além do macacão volumoso, similar a um grande rufo (ou “gola de palhaço”), que pende do pescoço cobrindo o corpo do fantasiado até as panturrilhas, composto de listras coloridas regulares, usa-se longa e larga capa bordada. Podem ser usados também a máscara de tela (ou de outros materiais), meias, luvas, sapatilhas, bexiga e acessórios de cabeça e de mão temáticos.
de tradição e é encontrado com freqüência nos bairros cariocas de Santa Cruz e Cosmos.
Cruz (que num determinado carnaval teria eleito Bob Marley como tema, usando boinas rastafári feitas em crochê nas cores da bandeira jamaicana). A partir de então, as turmas com fantasias com modelos similares aos da Turma do Vovô teriam sido identificadas pelo nome “rastafári”, mesmo adotando outros temas. Esse tipo de turma pode ou não ter emblemas e adotar temas; também pode agrupar bate-bolas com fantasias diferentes tão expressivo, e seus passeios normalmente se restringem às ruas do bairro de origem e arredores. Para elas, parece ser importante ocupar o espaço público com fantasias grandiosas, pesadas, que denotem capacidade física como uma espécie de atributo masculino e, por extensão, como indicador de poder. O estilo “rastafári” é associado à idéia
O estilo “bujão” ou “peito de rolinha” é caracterizado pelo volume grandioso do macacão de sua fantasia.35 As brincadeiras desse estilo restringem-se a aparições locais, pois, de acordo com os fantasiados, a roupa limitaria maiores movimentos e andanças de longa distância. Só há registros dessas turmas no bairro de Cosmos, no Rio de Janeiro. Apesar de haver uma tentativa de organização das semelhanças e diferenças entre os batebolas – representada pela formulação dos estilos –, as turmas fazem leituras diferenciadas até mesmo dos estilos por elas empreendidos e compartilhados, e também, são capazes de alternar estilos ou modificá-los com relativa liberdade. Isso nos revela que as classificações correntes no universo conceitual dos bate-bolas atuais com base nos estilos constituem lógicas abertas à mudança, com regras flexíveis e características híbridas. Conclusão Percebemos que os estudos anteriores sobre os bate-bolas tendem a se concentrar nas facetas mais constantes da brincadeira, deixando de abordar e de explicar as diferenças e variações da manifestação. Além disso, vimos que mesmo os aspectos contemplados nos estudos descritivos devem ser aplicados cuidadosamente hoje em dia, pois muitos deles mostram-se defasados em relação às novas formas de visualidade e de performance características das manifestações das turmas de bate-bolas da atualidade. Essas turmas contemporâneas empreendem leituras particularizadas do personagem batebola, que, no Rio de Janeiro, seria a representação local de uma espécie de arquétipo global de comicidade (que tem sido encontrado representado com feições próprias em diferentes localidades do Brasil e do mundo). Falamos em leituras particularizadas porque não encontramos um padrão rigoroso e estável da manifestação do bate-bola balizando as formulações e reformulações das brincadeiras de cada turma. Ao contrário, presenciamos a existência de repertórios abertos de elementos materiais e performáticos com significados flutuantes, a partir dos quais as turmas elaborariam suas “versões” para a fantasia e para o comportamento dos bate-bolas.
As turmas de bate-bolas do carnaval contemporâneo Aline Gualda
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Entretanto, como também tivemos a oportunidade de verificar, as incorporações de elementos à manifestação dos bate-bolas não se dá de maneira completamente livre; submete-à compreensão mais ou menos consensual que se tem da manifestação no universo conceitual compartilhado por todos os bate-bolas. Isso se evidencia ao observarmos a classificação das turmas de bate-bolas em “estilos”, que são as categorias criadas pelos brincantes e correntes no universo conceitual da manifestação, e que se estabelecem por meio de identificações/diferenciações entre as turmas. As lutas simbólicas nas quais os brincantes estão envolvidos podem ser observadas por dois prismas: o da disputa simbólica entre as turmas, na qual está em jogo a definição hegemônica da manifestação das turmas de bate-bolas; e o da disputa simbólica quanto à definição dos objetos apropriados do cotidiano e incorporados aos repertórios de bens simbólicos da manifestação. Quanto às disputas simbólicas entre as turmas, que são as que mais nos interessam, afirmamos serem lutas em processo porque não identificamos a existência de uma definição hegemônica da brincadeira que norteie os caminhos a ser percorridos pelos brincantes, na constituição de sua prática, de uma forma fechada, inequívoca. Também não vimos, na constituição das formas particulares de brincar, a total liberdade de se autoformularem de maneira muito dissonante em relação ao que se costuma praticar no universo maior da manifestação. Compreendemos a manifestação dos bate-bolas como um objeto cultural complexo, tenso, disputado numa espécie de luta em que se lida com adesões e recusas simbólicas. Nessa manifestação, percebe-se que os brincantes ora se submetem às regras alheias, ora determinam regras para o jogo. São agentes culturais em potencial, e sua ação se manifesta por meio do consumo particularizado, ou seja, pelas formas próprias de uso dos bens simbólicos estabelecidos no seio do universo conceitual da manifestação. Compreendemos, finalmente, que a manifestação dos bate-bolas não deve ser definida em ambiente externo ao universo simbólico da manifestação, pois cabe aos bate-bolas da contemporaneidade decidir o que é, atualmente, a manifestação das turmas de bate-bolas.
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Aline Gualda é mestre em Artes pelo Programas de Pós-Graduação em Artes da UERJ. Com especialização em Estudos da Moda e da Indumentária e graduada em Moda, tem experiência em docência, atuando principalmente nos seguintes temas: cultura brasileira, arte popular, carnaval, história da indumentária e design e ilustração de moda. / alinegualda@hotmail.com
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Janelas: Londres 2. 0,50 x 2m, 2002.
O experimento-pinhole Ana Angélica Costa
A pesquisa visual que motivou minha entrada no mestrado envolve a produção de imagens no campo da fotografia, questionando características como a instantaneidade, a reprodução do “real”, o automatismo e o aparelho como “caixa preta”. Para tanto, essa pesquisa se desenvolveu principalmente em direção à produção de imagens com câmeras pinhole, um aparelho precário, artesanalmente transformado em câmera. Por meio desse aparato, objetivo a produção de imagens que incorporem toda intervenção do acaso. Este artigo é parte de um capítulo da dissertação, intitulada Imagens precárias. Imagem, pinhole, artes visuais. As pesquisas que realizei com câmeras pinhole1 começaram como estra1 Também conhecidas como câmeras do buraco da agulha, significado do termo inglês pinhole, atualmente mais utilizado para caracterizar esse tipo de câmera, ao lado de fotografia estenopéica, bastante utilizado nos países de língua francesa (sténopé) e espanhola (estenopeica).
tégia contraposta à velocidade de produção de imagens após a disseminação das câmeras digitais a partir dos anos 90. A pinhole é câmera fotográfica feita de maneira artesanal, sem lentes objetivas, na qual um pequeno furo de agulha, de aproximadamente 4mm de diâmetro, usualmente feito em papel laminado, faz as vezes do diafragma da câmera convencional. O obturador, aquele mecanismo que disparamos no momento do “clic”, responsável por permitir e impedir a entrada de luz no interior da câmera e proporcionar boa impressão da imagem no filme, e que nas câmeras convencionais opera em centésimos ou milésimos de segundo, na pinhole é em geral substituído por um pedaço de fita isolante, que abre ou veda manualmente o pequeno furo por onde a luz penetra o interior da câmera, impressionando o filme. A câmera pinhole é composta pelo mínimo necessário para a formação e fixação de uma imagem fotográfica: um compartimento escuro, vedado à luz, em que é colocado o material fotossensível, no caso, filme fotográfico colorido; um furo, na extremidade oposta da câmera em relação ao local onde o filme é posicionado, por onde entra a luz responsável pela formação da imagem; e a fita isolante, que permite a interrupção do processo de sensibilização e impressão da imagem no filme. Janelas A produção de imagens que empreendi nessa pesquisa com câmeras fotográficas artesanais foi iniciada com uma câmera cilíndrica que fotografa um raio de 360º, dividido em quatro imagens, uma a cada 90º. O filme é colocado no centro do compartimento na forma de um círculo, acompanhando o formato da câmera. Transformada a partir de uma lata de metal, a câmera foi realizada dessa forma com o objetivo de fotografar a relação
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entre o interior arquitetônico e a paisagem – seja ela um muro, uma parede, uma janela, um campo, uma árvore, um jardim, um quintal – de diferentes moradias. Posicionada na janela de um determinado cômodo da casa, cada um dos seus furos aponta: para o interior do cômodo, para o parapeito da janela, para o exterior, a paisagem, e para o outro lado do parapeito da janela. Assim, numa mesma imagem, é possível obter as quatro vistas diferentes, cada uma se fundindo um pouco com a que a segue. Com essa câmera, foi possível obter imagens de diferentes ambientes, relacionando o interior arquitetônico com a paisagem vista através da janela, assim como o parapeito da própria janela, evidenciando a passagem entre o interior e o exterior, onde se está e para onde se olha. Tais imagens trazem a questão da repetição, que, neste momento, leva à atuação do imaginário: repetição de interiores e paisagens que se diferenciam por sua singularidade, mas se assemelham por ser janelas. Não existe uma janela original, mas um universo de janelas singulares. O imaginário e a repetição atuam em conjunto (a própria precariedade da imagem também atua com a repetição e o imaginário), pois a imagem tem aspecto onírico, inconsciente, universalmente conhecido e singularmente elaborado. Cada Janela contém elementos que convidam à atuação do imaginário por sua precariedade como imagem objetiva, informação. Produzida ao longo dos últimos cinco anos, a série Janelas funciona como uma espécie de coleção em aberto que não admite fim, tornando sempre possível o acréscimo de mais uma imagem. Janelas é tema recorrente na história da fotografia e na história da arte. Lugar de observação privilegiado durante o Renascimento, a janela era o local em que a visão da paisagem se tornava organizada, delimitada, retirada do real e feita imagem. Na história da fotografia, remete às experiências de William Henry Fox Talbot, um dos inventores da fotografia na Inglaterra. Talbot produziu uma série de fotografias de janelas, a primeira de 1835, anterior ao anúncio oficial da invenção da fotografia, divulgado na França em 1839. Feita com uma câmera escura apontada diretamente para a luz que vinha da janela, diferencia-se de suas imagens mais conhecidas, que denominou photogenic drawings, imagens feitas com objetos colocados diretamente sobre uma superfície sensível. As experiências de Talbot, que o levaram a uma das múltiplas invenções da fotografia, inserem-se num contexto de pesquisas sobre a fisiologia do olho e a representação da visão – Turner é seu contemporâneo e realiza essa investigação no campo da pintura. Ao fotografar a luz que penetra o interior de um cômodo através de uma janela, segundo Greoffrey Batchen, Talbot estaria dando prosseguimento a essas investigações com o auxílio da câmera escura: A repetida reprodução de Talbot de sua própria janela demonstra precisamente esse efeito de retenção da imagem, projetando a fotografia
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resultante como uma impressão da retina, retida mesmo após ter fechado o olho de sua câmera. Em outras palavras, a câmera escura sensibilizada de Talbot funciona no lugar de seu olho, como uma prótese destacada de seu próprio corpo; ele próprio se refere ao ‘olho 2 Livre tradução de: Batchen, 2005, p. 19.
da câmera’ em The Pencil of Nature (1844-6).2 É quase como se fosse uma câmera (a própria câmera) dentro da outra (o cômodo), uma imagem (fixa) da imagem (efêmera). O objetivo de Talbot com essa experiência parece desenvolver-se no sentido de promover uma equivalência entre câmera e observador; a mesma imagem que a câmera produz é a que o observador vê. O ofuscamento na visão é o mesmo da imagem. As imagens das janelas de Talbot remetiam a interesses científicos relativos a uma pesquisa da visualidade que tomava corpo na época e culminou, no campo da técnica e do entretenimento, com a invenção da fotografia e de outros instrumentos de produção e visualização de imagens, e, no campo das ciências e humanidades, no nascimento de um novo observador auto-reflexivo, consciente de sua constituição corpórea, de sua subjetividade e auto-reflexivo. Atualmente, com o advento das imagens digitais, passamos por um momento de profundas modificações nos modos de produção e veiculação de imagens que, segundo Jonathan Crary, seria análogo (no que tange às modificações no sujeito) ao período anterior à invenção da fotografia. Outra semelhança entre esses dois tempos seria o retorno aos longos tempos de exposição do filme fotográfico. Em seu início, toda a história da fotografia se deu no sentido da conquista do instantâneo: investigava-se a maior eficiência do equipamento óptico, assim como substâncias mais estáveis e sensíveis à luz que possibilitassem a diminuição do tempo de exposição da superfície fotossensível. A partir do início do século, com a instantaneidade garantida, e dos anos 50, com câmeras menores, portáteis e de fácil manipulação, parece ter início, dentro de um campo particular da fotografia, o caminho inverso de volta às origens, de experimentações com técnicas arcaicas e manipulação dos tempos de exposição. Alinhada a essas experimentações, a fotografia pinhole possibilita a produção de uma imagem sem mediação de um aparelho previamente pensado e construído por não-fotógrafo ou de lentes, que irão organizar o fluxo fotônico. Na câmera artesanal, o filme é posicionado de acordo com a imagem que se pretende obter. A possibilidade de trabalhar no âmbito da concretude fotográfica ao fazer uso de um modo de produção analógico, no qual o fluxo fotônico é impresso diretamente no filme, sem interferência de lentes, traz como questão um retorno, um (alguns) passo(s) atrás na atual marcha rumo à virtualização dos ambientes e das relações. Essa impressão direta, sujeita a acidentes em seu percurso pareceu-me particular e instigante frente
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aos processos e situações que procurava tornar imagem: modos de viver, de produzir, de ocupar, de articular, de ver. A saída Aos poucos fui passando desse foco na intimidade, presente na série Janelas, para outro mais público, ligado às instituições e ao sistema de arte. Ao mesmo tempo, buscava investigar mais o processo de impressão da imagem no filme e o processo de modificação espacial nas salas de exposição durante a montagem das obras. As salas eram retratadas durante um período de 20 a 30 minutos, e nas imagens – em algumas de forma mais evidente; em outras, menos – podia-se perceber a progressiva ocupação da sala e os caminhos pelos quais os procedimentos de montagem passavam antes de atingir seu estado final. Nesse primeiro momento, ainda utilizava a câmera cilíndrica com quatro furos, posicionando-a sempre em um local de passagem: na janela, na porta, no parapeito da escada. Aos poucos fui percebendo que o formato cilíndrico não era o mais adequado para esse tipo de investigação, pois resultava em quatro imagens, estando o que de fato me interessava em apenas uma. Assim, passei a utilizar uma câmera quadrada, quase sem distorção de perspectiva (o filme fica plano dentro da câmera). Pelas características do processo, foi o próprio objeto ou, melhor, a cena, que se fez imagem. Na pinhole, mais do que nas outras formas de obtenção de imagem, a imagem se faz autônoma, o artista apenas configura a proposição (conceituação, tipo de câmera, escolha do filme e determinação do tempo de exposição e posterior veiculação). Pois, se concordamos com Baudrillard, “é o objeto que nos vê – é o objeto que nos sonha, é o mundo que nos reflete, é o mundo que nos pensa – esta é uma regra fundamental da qual a foto, caso a aceite, pode trazer o rastro”. 3 Opera-se uma marca do mundo que, no entanto, nos dá pouco acesso a ele. Quase nada sabemos a respeito de como efetivamente ocorreu a montagem; dela, temos apenas o rastro em imagem. Após essas primeiras experiências com o processo expositivo – do filme e da arte –, iniciei uma pesquisa que, logo percebi, mesmo retratando as modificações ocorridas em determinado período em uma imagem, para retratar a “completa” “tomada” do espaço pela obra precisaria de mais de uma foto. Assim cheguei a Transcorrências, no qual foram realizadas oito imagens em filme diapositivo, mais popularmente conhecido como filme para slides, um tipo de filme colorido transparente que, quando revelado, dá origem a uma imagem em positivo (não possui negativo nem serve como matriz para cópias em papel pelo método de ampliação analógico). A montagem dessas imagens foi feita de forma a possibilitar sua movimentação, proporcionando o entrecruzamento, por meio das imagens, dos diferentes momentos da montagem da exposição.
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3 Baudrillard, 1997, p. 45.
Um dos diapositivos que compõem Transcorrências – OPERAÇÃO: MASTER. Galeria do Instituto de Artes da UERJ. 12,5 x 10cm, 2007.
Paralelo ao interesse em relação às montagens de exposição, foi proposto ao Proje-
4 O Projeto Subsolo é um coletivo de artistas do qual participo junto com as artistas e fotógrafas Janaina Garcia e Roberta Macedo. Desde 2005 vimos produzindo alguns trabalhos, sendo Imagem de abertura nossa primeira produção conjunta.
tura da exposição. A proposta era posicionar uma câmera, deixando seu obturador
to Subsolo4 pensar um trabalho que acontecesse na abertura da exposição: aí chegamos a Imagem de abertura, uma imagem também feita em pinhole, durante a aberaberto durante todo o evento de abertura da exposição. No momento da abertura, quando se dá a situação social, com a presença de outros artistas, críticos, curadores, etc. não existiria nada a expor: nesse momento se estaria fazendo a foto. De público, passamos a objeto. Objeto, somos também sujeito, uma vez que toda presença é tão determinante quanto a do artista, que posicionou a câmera e abriu seu obturador. Se permanecemos durante muito tempo em uma mesma posição, somos impressionados no filme, caso contrário, nos tornamos manchas semitransparentes ou não aparecemos na imagem. A presença, a ação, pouco se fazem registradas na imagem; do processo restam vestígios, sinais de que algo passou por ali, sem que se tenha certeza de que, podendo ser apenas um efeito de óptica.
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Tal situação, que mistura sensações de anticlímax e suspensão, de silêncio e vazio, remete-me a 4’33”, de John Cage: uma sinfonia que é o silêncio dos músicos, composta por uma pausa, e, através dela, por sons produzidos pela platéia, espaço em que ‘nada’ parece acontecer, apenas a marcação do início e do fim de cada um dos três movimentos e o tempo contado pelo regente. A execução, na música, como a produção da imagem, na fotografia, é única. A execução de uma sinfonia jamais é feita de maneira igual, assim como uma foto jamais é feita duas vezes. Ambas podem ser gravadas. Nunca repetidas. Da segunda vez que propusemos realizar Imagem de abertura não se formou uma imagem no filme fotográfico. Após passar pelo processamento químico, o filme revelou-se quase inteiramente preto, como se velado, com apenas uma mancha na parte superior. Apesar dos testes feitos que precederam a tomada definitiva, a tão esperada imagem não se formou, não apareceu na superfície sensível do filme. E, embora nos sabendo sujeitas a esse tipo de acontecimento, uma vez que se tratava de um processo de produção de imagem em que o papel do acaso é ampliado, não esperávamos tal resultado. A fotografia, apesar de intrinsecamente ligada ao ato – fotográfico – que a realiza, é sempre o produto desse ato. O processo encontra-se impresso na imagem. E quando não temos imagem? Ou não uma imagem identificável, mas apenas uma grande superfície escura de filme negativo que não é possível sequer passar para positivo? Se, de acordo com Roberto Corrêa dos Santos,5 “a escuridão, como a cegueira, nega a fotografia, que precisa da existência visível (...). É a fome do olho em luta contra o escuro, sua contraparte, sua diferença irredutível”, o que seria a imagem do filme velado? Apenas a potência de imagem, no escuro, por meio dos acasos de um processo (im)perfeito de fazer fotografias. Colocado o filme, velado, no espaço que lhe havia sido destinado, sua superfície negra refletia o espaço que deveria ter sido fotografado, se ter tornado imagem. E ali o sujeito permanecia, observando o reflexo do que se havia recusado a se transformar em imagem fixa. Aquilo que Bill Viola escreve sobre a pupila como espelho que, ao mesmo tempo em que vê, reflete, relaciona-se com o filme fotográfico que, no caso, ao mesmo tempo em que se recusou a revelar-se em imagem fixada, transforma-se em espelho negro. Estabelecem-se aproximações da pupila com a câmera escura e a câmera pinhole: Olhando bem de perto para o olho, a primeira coisa a se ver, na verdade a única coisa a ser vista é a própria imagem de quem olha. Isto leva a tomar consciência de duas curiosas propriedades deste olhar fixo a pupila. A primeira é a condição de reflexão infinita o primeiro feedback visual. A pequena pessoa que eu vejo no campo negro da pupila possui também um olho no qual está refletida a pequena imagem de uma pessoa... e assim por diante. A segunda é o fato físico de que quanto mais
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5 Santos, 1999, p. 140.
Imagem de abertura: vista da instalação da câmera ‘e’ da Imagem de abertura #7. Ao lado, a imagem realizada. Caixa de madeira com filme fotográfico diapositivo. 15 x 13,5 x 10,5cm e 12,5 x 10cm. Galeria de Arte UFF, 2007-2008.
perto eu chego para ter uma melhor visão de dentro do olho, maior fica minha própria imagem, bloqueando, desta forma, minha visão do ambiente (...) A pupila preta também representa o campo da nulidade [o grau zero], o lugar anterior e posterior à imagem, a base do ‘vazio’
6 Livre tradução de Viola, 1996, p. 449.
descrito em todos os sistemas de treinamento espiritual.6 O filme velado, espelho negro de onde se encontra, ao se recusar a formar a imagem do ambiente fotografado, passa a refletir qualquer ambiente, todo ambiente em que se instale. Múltiplas imagens de abertura Com cinco câmeras dispostas como objetos ao longo de uma exposição coletiva, ao lado e em meio às obras e propostas de outros artistas, a proposição Imagem de abertura teve atuação diferenciada pelo número crescente de câmeras e seu posicionamento em situações bastante diversas: cinco pequenas caixas de madeira, pregadas à parede em diferentes locais, registravam as cenas que se passavam a sua frente: cercada por obras enviadas por artistas dos arredores da Galeria, participantes da ocupação proposta pelo artista Ricardo Pimenta, a pequena caixa de madeira quase desaparecia em meio à profusão de cores, imagens e formas acumuladas em uma das paredes curvas; em outra configuração, a câmera foi colocada quase isolada, próximo a uma quina; em outra, próximo a um texto do artista Ricardo Basbaum que questionava a posição do público da exposição. E assim as câmeras espalharam-se pela galeria, cada uma delas adquirindo um sentido diferente de acordo com sua posição e relação que estabelecia com as obras próximas. Afinal, o que representavam aquelas caixas com pequenos avisos ao lado, alertando para uma suposta gravação da imagem?
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O modo de apresentação pouco mudou em relação às edições anteriores, mas a multiplicação das câmeras e o fato de elas se encontrarem pregadas à parede em meio às obras lhes deram conotação bem diversa daquela em que apenas uma câmera atuava: pareciam pequenos objetos infiltrados, sem nenhum sentido aparente. O texto, ao lado das caixas, tinha o objetivo de informar o que ali acontecia e parecia claro para pessoas familiarizadas com a câmera pinhole e ou com os processos fotográficos de obtenção de imagem. Para o público leigo, no entanto, tornava-se pouco compreensível o modo como o que acontecia na galeria seria capturado pela câmera: estamos tão acostumados à onipresença das câmeras de vigilância, que uma aproximação da caixa de madeira com uma dessas câmeras seria mais fácil do que com a câmera fotográfica. Por fim, mais uma modificação foi feita em relação às edições anteriores: as imagens de abertura foram realizadas em filme diapositivo. Esse tipo de filme e processamento despertou meu interesse pela impossibilidade de manipulação das cores, luminosidade e contraste por parte dos laboratoristas, que sempre acabam por interpretar a informação que se encontra no negativo. Com o filme diapositivo, o risco na imagem pinhole aumenta: não há como “corrigir” a imagem no momento da passagem para o positivo: a imagem já é revelada positiva, e ali encontra sua aparência final. Essa impressão direta dos raios luminosos sem a intervenção de lentes, torna-se ainda mais radical com o uso do filme diapositivo: impressão direta, sem a interpretação do laboratorista. Imagem-pinhole Um dos objetivos desta pesquisa é produzir uma obra que envolva a conceituação do trabalho como fotografia e também sua aplicação técnica, ou seja, uma imagem produzida por meio da atividade empírica mecânica, do método de tentativa, do acerto e do erro, no qual o aparelho utilizado tem importância extrema e atribui à problematização dos dispositivos de captação da imagem fotográfica caráter determinante para sua compreensão. Pois, como declara Paula Trope: “Uma pinhole nos permite chegar muito próximos de uma ontologia da fotografia, uma interseção entre ciência e arte, razão e intuição, que toca de maneira única a vida.”7 A artista pensa a câmera-furo – como
7 Trope, 2000, p. 11.
denomina a câmera artesanal sem lentes – como “uma espécie de aparelho híbrido, que recoloca a discussão sobre os sistemas de representação. Dessa forma, se configura em câmera clara, revelando simbolicamente seu interior”.8 É nesse sentido que, ao mesmo tempo em que se produz uma imagem, esta produz conceituações não apenas em relação à imagem produzida, mas em relação ao modo fotográfico de produção de imagens. Após as teses de Phillipe Dubois (1993) sobre o ato fotográfico, de Schaeffer (1996) sobre o dispositivo e de Rosalind Krauss (1999, 2002) sobre o estatuto semiótico do fotográfico como índice do real, essas imagens trazem, como vimos, a questão do caráter indicial da
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8 Id., ibid., p. 17.
fotografia e de sua precariedade. Na pesquisa, a precariedade passa a ser pensada por dupla perspectiva: a precariedade indicial da fotografia instantânea e a precariedade ampliada da pinhole, pela expansão do tempo de exposição do filme fotográfico à luz e pelo conseqüente aumento da atuação do acaso na imagem. Por meio da proposta de registros não miméticos de situações que tratam do problema da fotografia e de sua vinculação ao real, a utilização de dispositivos fotográficos que ampliam o tempo de exposição do filme acaba por questionar características tidas pelo senso comum como típicas da fotografia, como a instantaneidade e a impressão física da imagem do ‘real’. As imagens realizadas com a pinhole resultam em acúmulo de narrativas (formadas por infinitos indícios), que se tornam indecifráveis se tentarmos nelas encontrar um paralelo com o ‘mundo real’. O tempo expandido de exposição do filme à luz proporciona o acúmulo de registros em uma única fotografia, uma espécie de marca das modificações ocorridas durante o tempo de exposição na superfície sensível do filme. 9 Virilio, 2002, p. 88, grifos do autor.
O “tempo de exposição que dá a ver ou não mais permite ver”:9 é nessa tênue linha de atuação que a imagem se apresenta, desaparecendo, em função da sua dupla precariedade indicial. Tempo de exposição que se coloca na fotografia como repetição do tempo em que a imagem aparece na película: tempo de sensibilização, latência, revelação. Difere do tempo do objeto, pois, ao apresentar-se presente naquele momento, revela-se ausente na imagem. A busca de procedimentos de obtenção de imagem ligados a uma imagem que não se revela completamente parece retornar a um vínculo com o fazer, antes tão presente na arte moderna; liga-se agora não mais ao fazer manual, mas ao trabalho maquínico. O fazer maquínico, no entanto, faz-se presente na pinhole pelo viés da precariedade, com ênfase no processo de obtenção da imagem, que sofre modificações durante o longo tempo de exposição do filme à luz, em oposição à imagem pronta – instantânea, automaticamente dada – da câmera digital. Precariedade não apenas econômica, tecnológica ou artística: também presente na produção de uma imagem não objetiva, fora de foco e com a perspectiva alterada. A dimensão pragmática, essa vinculação ao ato (fotográfico) do qual ela é produto, é afirmada por Dubois como característica fundamental da fotografia. Nas imagens feitas com câmeras pinhole, essa característica evidencia-se pela possibilidade de diferentes tipos de perspectivas, de acordo com o projeto do qual a imagem faz parte. Pois a fotografia pinhole problematiza justamente o ato da “tomada” da imagem fotográfica: com o aumento do tempo de sensibilização do filme e a exposição simultânea da imagem em 360º, as imagens da série Janelas ou Imagens de abertura enfatizam o processo de impressão fotoquímico, chamando a atenção sobre algo que passa despercebido na fotografia vernacular e nos instantâneos da fotografia profissional: o que acontece durante o tempo de exposição do filme à luz, no momento em que a imagem é impressa no filme. A produção
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da impressão acontece por um processo completamente autônomo, sem intermediação do olhar: uma vez decidido onde a câmera deve ser posicionada, a imagem se faz, sozinha, sem intermediação ou interferência humana na captação dos raios luminosos, a não ser pela determinação do tempo de exposição. O processo de obtenção de imagens aqui proposto opõe-se, portanto, à compulsão da repetição, essencial ao ato fotográfico, segundo a análise de Dubois. Uma câmera sem visor é apenas direcionada ao objeto que pretende fotografar; não existe a possibilidade de estabelecer um recorte exato do objeto ou a tomada de múltiplas exposições. A superfície fotossensível do filme fotográfico não é atingida de uma só vez, como acontece no instantâneo. Devido à ausência de lentes e ao pequeno diâmetro do diafragma da câmera, a quantidade de luz que penetra seu interior é muito menor do que a que penetra uma câmera convencional, o que ocasiona a sensibilização progressiva dos haletos de prata do filme: A imagem-pinhole é obtida progressivamente – não instantaneamente, como nas câmeras convencionais – e por acúmulo de fótons luminosos. O procedimento de expansão do tempo de exposição do filme à luz provoca profunda modificação na imagem que se originará desse processo, possibilitando o registro das alterações sofridas pelos corpos fotografados. Nas fotografias feitas com pinhole, o momento de impressão da película fotográfica, que Dubois (1993) denomina “puro ato-traço”, é estendido ao máximo, transformando o próprio processo de captação fotônica num dos pontos vitais para a construção da imagem. A relação de “imediato pleno”, de “co-presença real” pode ser esticada por até 12 horas ou mais, dependendo da luminosidade do local. A intervenção do acaso se radicaliza, tornando a fotografia, imagem precária, ainda mais precária.
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Ana Angélica Costa é artista visual, mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ, na Linha de Pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, especialista em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, PUC-Rio e graduada em Educação Artística com habilitação em História da Arte pela UERJ. É uma das idealizadoras do Projeto Subsolo, ateliê coletivo, e produtora de arte. / anaac@terra.com.br
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Utopia, heterotopia e imigração ucraniana1 Analu Steffen
Via observação da construção do imaginário dos imigrantes ucranianos, chegados ao Brasil no final do século XIX, sobre o que encontrariam em terras do Novo Mundo, aborda-se o tema “utopia”, trazendo informações sobre sua criação e seu fundador, Tomás Morus. Estabelecendo relação entre o sonho utópico do imigrante e as construções teóricas sobre o tema, são considerados também os escritos de Foucault sobre “heterotopia” e a forma como a comunidade de Iracema, em Santa Catarina, foi organizada pelos imigrantes e é mantida por seus descendentes. Utopia, heterotopia, imigração. A utopia faz parte do momento ocidental da sociedade técnica e capitalista. Ela se esfuma com o advento da civilização urbana e o apogeu do mundo informacional, escondendo-se nos lugares mais recônditos de nossa memória, como um bom momento, como uma imagem, sensata e rebelde, como nos quadros O encontro dos amigos, de Max Ernst, Persistência da memória, de Dalí, A condição humana, de Magritte, ou O Sabbat, de Delvaux: cores noturnas, risos soltos, olhares de crianças, seios de rainhas e espaços com limites elásticos. A utopia é um ‘lugar nenhum’ e um presente. Um dom? Um dom. (Paquot) Foi a Ilha de Utopia, na obra de Tomás Morus, escrita em 1516, na Família Puchaski (imigrantes ucranianos). Fonte: Acervo da Casa de Cultura de Itaiópolis.
1 Capítulo da dissertação A estética diaspórica e a dádiva das pêssankas, defendida em 19/03/2008 no PPGARTES/UERJ, em que são estudadas as pêssankas (ovos de páscoa ucranianos) produzidas na comunidade de Iracema, no Município de Itaiópolis, Santa Catarina. Os fundadores dessa comunidade chegaram ao Brasil em 1895, fugindo da miséria e opressão vividas na Ucrânia da época. O presente texto caracteriza-se como estudo do contexto vivido pelos imigrantes ucranianos, suas esperanças em relação ao Novo Mundo e a forma de organização social que buscavam, extremamente ligada às crenças religiosas.
Inglaterra, que inaugurou o termo largamente utilizado em nossos dias. Trata-se de um Estado imaginário, que não utiliza dinheiro e desconhece a propriedade privada, priorizando acima de tudo a felicidade e o bem-estar coletivos.2 Morus foi preso, em 1534, por não prestar juramento ao rei como chefe supremo da Igreja da Inglaterra, discordando do divórcio do soberano. Em 1535, foi executado e, em 1935, canonizado pela Igreja católica. Além de virar santo, Morus também foi cultuado pela revolução russa, que lhe erigiu uma estátua em homenagem às idéias socialistas presentes em sua obra A Utopia, sobre a qual Jacoby3 afirma: More, um santo da Igreja católica, oferece uma visão de mundo onde ‘todos recebem uma porção justa, de modo a não haver jamais ho-
2 Morus, 2006.
mens pobres ou mendigos. Ninguém é proprietário de nada, mas to-
3 Jacoby, 2007, p. 41.
dos são ricos – afinal, que riqueza maior pode haver que a alegria, a
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paz de espírito e a liberdade da angústia’? Ele sonhou com um lugar em que o homem pudesse ‘viver em júbilo e paz’. Porém, a utilização do termo utopia, por Morus provocou a discussão sobre seu significado, levantando questionamentos sobre o uso dos prefixos presentes na palavra: Os dicionários são unânimes em apontar o substantivo “utopia” como sendo derivado do grego topos, que significa “o lugar”, precedido de dois prefixos cujo sentido pode ser cumulativo: eu, que expressa a “boa qualidade”, e ou, que assinala a negação. Assim, “utopia” significa, ao mesmo tempo, “o lugar que é bom”, de certo modo “o lugar da felicidade”, e “o lugar que não existe”, “o lugar que não tem lugar”, ou seja, sem existência geográfica real. Enfim, um lugar em que o viver é tão bom que se torna inatingível!4
4 Paquot, 1999, p. 8.
Certo, porém, é que os desejos utópicos estão presentes nos movimentos libertários que ousam imaginar alternativas para fugir da opressão social e da situação de miserabilidade – do corpo e do espírito. “A utopia sempre se afirma, ao mesmo tempo, como uma contestação da ordem social e como uma alternativa.”5
5 Id., ibid., p. 105.
Se analisarmos a situação vivida pelos ucranianos no final do século XIX, tornar-se-á claro o impulso coletivo em busca de liberdade de expressão e melhores condições de vida: suas terras eram dominadas pelo império austro-húngaro, e grande parte delas foi anexada à Polônia, o que deixava os ucranianos sem possibilidades de desenvolver produção agrícola – nem mesmo de subsistência–, além de submetidos a perseguições políticas e religiosas.6
6 Haneiko, 1985.
Embalados por propagandas do governo brasileiro que prometiam fartura e felicidade, apoio irrestrito e doação de terras aos que se aventurassem a colonizá-las, milhares de famílias ucranianas embarcaram nos navios, na última década do século XIX, guiadas pelo sonho de liberdade e amparadas pela fé religiosa. Segundo Bloch:7 “O que é desejado utopicamente guia todos os movimentos libertários, e também todos os cristãos o conhecem a seu modo, com a consciência adormecida ou manifestando comoção, a partir dos trechos bíblicos messiânicos ou do êxodo.” Esses imigrantes acreditaram em propagandas enganosas que, somadas a seus próprios desejos, geraram romântica idealização do lugar que iriam encontrar. Alguns depoimentos de descendentes de imigrantes ucranianos, residentes no Sul do país, ilustram como se deu essa construção do imaginário em torno do que iriam encontrar no Brasil. Afirma Olga Panchiniak, moradora de Iracema, em entrevista: “Faziam propaganda lá na Ucrânia, onde o povo estava vivendo tanta miséria. Diziam que aqui no Brasil as
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7 Bloch, 2005, p. 18.
cercas eram feitas de toicinho e que lingüiça dava em árvore.” Outros pesquisadores assim o fizeram: Partiram de sua pátria na esperança de dias melhores em novas terras, que a propaganda apresentava como a Canaã da fartura e da felicidade.8
8 Haneiko, 1985, p. 47.
Ao adentrar no navio, na sua imaginação ansiava pelas maravilhas do horizonte. Um país novo onde jorravam leite e mel. Um mundo resplandecente, onde tudo era belo, novo, fácil, radiante de esplendor. As propagandas faziam sua parte no aliciamento de imigrantes, que eram facilmente enganados. Acabavam de libertar-se das dificuldades, das perseguições religiosas e políticas, da fome, da guerra, da dominação austro-húngara, da miséria. Entusiasmado que brevemente estaria longe de todos os problemas, e aqui encontraria a sua propriedade e reuniria a família com seus pertences. Teria a sua lavoura e o seu rebanho. Teria os seus filhos sadios que alegres aprenderiam 9 Deniscwicz, 1995, p. 8 e 9.
10 Foucault, 2002, p. 13.
uma nova língua na escola. Eram sonhos em alto mar.9 Segundo Foucault:10 “As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico.” O lugar acalentado no utopismo ucraniano era irreal, elaborado segundo todas as histórias e lendas de que já haviam ouvido falar. Construíram um espaço que era a inversão daquilo que os fazia sofrer na Ucrânia. Aqui no Brasil, supunham, poderiam produzir abundantemente em terras férteis, teriam liberdade para falar sua própria língua, cantar seus hinos religiosos e realizar seus rituais sagrados – ligados à Igreja Católica do Rito Oriental – sem ter que esconder-se para isso nem prestar contas a ninguém. A fome, a miséria e as constantes humilhações passariam a fazer parte de um passado longínquo. As utopias são os posicionamentos sem lugar real; posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas
11 Foucault, 2006, p. 414-415.
utopias são espaços fundamental e essencialmente irreais.11 Assim, quando chegaram aos locais a eles destinados, tiveram que defrontar-se com a realidade que os aguardava. Descobriram que o governo não havia cumprido sua parte e delimitado a área, e tiveram que abrir picadas na mata, ajudando a fixar marcas e medir espaços; tiveram que acomodar-se, durante esse período, em barracões coletivos, junto a alemães, italianos e poloneses. Estes últimos, reproduziam rivalidade e animo-
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sidade características da relação com os ucranianos, durante o período de dominação polonesa da Ucrânia. Além disso, havia a ameaça de doenças tropicais e dos indígenas da região, que, conforme progredia a interiorização, atacavam e matavam as famílias colonizadoras.12
12 Andreazza, 2006.
Esta carta de Iwan Frankó (1856-1916) escrita em 1895 narra a trajetória de 40 pessoas que imigraram para o Brasil: “Vizinho! – é Olécia que está escrevendo. Saúde boa e bem se vai vivendo. Faz sete meses que silenciamos. No fim de tal destino já acampamos. Vivemos em florestas, em cabanas e imensamente estamos trabalhando. Vivemos juntos, não nos separaram. Da vila, quinze léguas nos distaram. Na mata, sob montanhas... não chiamos. Não há estradas, trilhas palmilhamos. Brasil! Também se sofre nessa terra: pegou-nos logo a febre amarela. Em três meses na Ilha das Flores morreram três mulheres e três homens. vendemos como servos cinco moços, àquelas casas foram cinco moças. Dos moços não tivemos nem notícia. As moças comem, bebem... que ‘delícia’! Que mais escrevo? Novas não alardam. De cobras, cinco nossos se finaram. Aqui anda um povo rude pelo mato que mata e come a gente. Fuja deste fato. Se Deus quiser, e nós nos recompusermos quarenta fomos, em dezoito somos. É pena que rezar e conversar não querem em ruteno nos deixar. Na vila Kandziubinski assim gritou: ‘Aqui não se fala em ruteno, não! Polacos são o rei, o país e Deus! Falar em polonês ou calar de vez!’ Fazer o que com tal intimação? Que assim seja. Qual a salvação Aqui termino. Adeus E de ora terei mais novas se luzir melhora.”
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Casa de descendentes de imigrantes ucranianos em Iracema. Fonte: Arquivo pessoal, Analu Steffen.
Embora a realidade os tomasse de assalto, tirando-os do devaneio em que estavam imersos desde que deixaram sua antiga pátria, esses imigrantes ucranianos enfrentaram a dura situação e lutaram para reconstruir aqui um lugar onde pudessem reproduzir o que havia de melhor na Ucrânia, junto àquilo que delinearam utopicamente em relação ao que iriam encontrar. Talvez essa crença, esse desejo, esse sonho é que os tenha ajudado a construir suas colônias, como a de Iracema, por exemplo. Apesar de inserida num município em que coexistiam outras etnias, como poloneses, alemães e indígenas, Iracema até hoje consegue guardar em si características únicas, que a diferem do restante do espaço, mesmo que seus habitantes estejam intercambiando o tempo todo, num jogo “dentro e fora” que a atualidade duramente exige. Características arquitetônicas, a língua – senão o acentuado sotaque –, detalhes sutis nas vestimentas, as festas e os rituais religiosos, a culinária, o relacionamento interpessoal, o artesanato: tudo contribui para fazer de Iracema um “lugar-não-lugar” em relação ao restante do espaço daquela região. Esse conjunto de peculiaridades parece fazer dessa comunidade um pequeno mundo sublimado, que poderíamos definir como “heterotopia”. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são
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delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares, por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias (...).13
13 Foucault, 2006, p. 415.
Parece-nos, porém, que existem momentos em que Iracema demonstra todas essas características com mais clareza, como se estivesse desabrochando, vivendo mais intensamente sua própria identidade. Acreditamos que o maior deles seja a Páscoa, e os 40 dias que a precedem. Segundo os princípios elencados por Foucault, para realizar uma possível “leitura” e/ ou descrição das heterotopias, acreditamos ser pertinente destacar um deles, principalmente se nos propusermos a relacioná-lo com a Páscoa: Quinto princípio. As heterotopias supõem sempre um sistema de abertura e fechamento que, simultaneamente, as isola e as torna penetráveis. Em geral, não se chega a um posicionamento heterotópico como a um moinho. Ou se é obrigado, no caso da caserna, o caso da prisão, ou se é preciso submeter a ritos e purificações. Só se pode entrar com uma certa permissão e depois que se cumpriu um certo número de gestos.14
14 Id., ibid., p. 420.
É possível perceber, visitando Iracema em momentos diferentes, que a Páscoa é uma tradução daquilo que é mais caro a seus moradores e que, portanto, marca mais profundamente seu pertencimento àquele universo. É no período que a precede, denominado Quaresma, que esses descendentes de ucranianos, num primeiro momento, se recolhem em silêncio purificador. Suas cerimônias religiosas são modificadas e passam a abster-se de festas, danças e comemorações. De acordo com o depoimento de Célia:15 (...) a Páscoa é tempo de fazer pêssanka. Se você vai fazer quantidades grandes, aí é em qualquer época. Mas a Páscoa propriamente dita, a Quaresma, parece que é o momento propício para você fazer. Até o clima, tudo parece que te favorece; parece um clima mais tranqüilo, mais sereno, parece que não tem aquele agito, parece que a pessoa fica mais recolhida.
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15 Natural de Iracema e neta de imigrantes ucranianos, é produtora de pêssankas e disseminadora da técnica entre os jovens descendentes de ucranianos.
Adoração do Santo Sudário, na Sexta-Feira Santa – Páscoa 2007. Fonte: Arquivo pessoal, Mauro Meirelles de Oliveira Santos.
Num segundo momento, durante a Semana Santa, é como se o recolhimento vivido até então pudesse florescer em demonstrações de fé religiosa e respeito às tradições. Para finalmente poderem reviver a ressurreição de Cristo, submetem-se a um rígido jejum preparatório, assim descrito pela senhora Zenita Malinowski: “Não é só um jejum de alimento, como a carne; é também um jejum de televisão, rádio. Não se pode falar alto, é tempo de silêncio para a reflexão.” Célia relata: As pessoas assando e preparando as comidas, aquele cheirinho... e não podia comer, era jejum mesmo, e Sexta-Feira Santa não podia nada de leite, derivados do leite, nada, nada, nada! A mãe fazia um peixe, um chuchu, um arroz sem tempero: sal, azeite e só! Batatinha e mais nada. De resto era só sentir vontade e o cheirinho gostoso da comida. Quando vinha de noite, que voltava da missa, vinha alegre, no Sábado de Aleluia.
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A comunidade toda se reúne durante a Semana Santa – crianças, jovens, adultos, idosos e até mesmo aqueles que deixaram Iracema em busca de inserção no mercado de trabalho. Todos voltam para seu chão e suas raízes. A Páscoa parece ser um momento reagrupador dessas pessoas, o que vem reforçar o sentimento de unidade entre eles. Na caracterização da heterotopia, Foucault comenta: Enfim, o último traço das heterotopias é que elas têm, em relação ao espaço restante, uma função (...) criando um outro espaço, um outro espaço real, tão perfeito, tão meticuloso, tão bem arrumado quanto o nosso é desorganizado, mal disposto e confuso. Isso seria a heterotopia não de ilusão, mas de compensação, e me pergunto se não foi um pouquinho dessa maneira que funcionaram certas colônias.16 As transformações se sucedem dia a dia e vão transformando a maneira como entendemos o mundo, como realizamos nossas tarefas, nossas crenças e hábitos. A cultura individualista atual, imposta principalmente pelo capitalismo, tem restringido a formação de sonhos coletivos e de grupos que possam unir-se para realizá-los. Essas transformações, aceleradas pelos avanços tecnológicos e pela velocidade de informações em nossa era, também atingem o lugar Iracema, de uma forma ou de outra. Seus jovens saem para estudar, computadores e internet estão presentes na comunidade, a televisão, o rádio, a imprensa escrita, tudo isso entra livremente em seu seio. Mas de alguma forma, mesmo enfrentando conflitos de gerações e o caos contemporâneo, a raiz do sonho consegue brotar. A memória dos que se lançaram atrás de um mundo melhor, que acreditaram na utopia, é sempre despertada e reavivada no lugar Iracema.
Referências bibliográficas ANDREAZZA, M. Isolados, entregues à própria sorte, ucranianos que chegaram ao Brasil no final do Século XIX conseguiram superar adversidades e imprimir sua marca cultural no sul do país. Ecclesia, 24 ago 2006. Disponível em: www.ecclesia.com.br . Acesso em: 30 ago 2006. BLOCH, E. O princípio da esperança. V.1. Rio de Janeiro: Eduerj, 2005. DENISCWICZ, M. A religiosidade entre os ucranianos: manifestação da cultura religiosa ucraniana em Iracema, SC. Monografia (especialização lato sensu em História Social – Pós-Graduação em História Social). Itajaí: Univali, 1995. FOUCAULT, M. As palavras e as coisas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. ___________. Outros espaços. In Ditos e escritos. V.3: Estética: literatura e pintura,
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Analu Steffen é licenciada em Artes Plásticas pela Faculdade de Artes do Paraná, especialista em Interdisciplinaridade pela Unics e em Pedagogia Empresarial pelo Inbrape/ UNC. Mestre em Arte e Cultura Contemporânea pela UERJ, defendeu sua dissertação A estética diaspórica e a dádiva das pêssankas em 2008. Atua como arte-educadora na rede municipal de ensino de Duque de Caxias, RJ. / analusteffen@yahoo.com.br
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A casa em volta de si, a casa como organismo vivo Bianca Bernardo
O presente artigo é fragmento de um capítulo que pensa a casa como pele e investiga as poéticas de outros espaços possíveis para o trabalho dos artistas. Busca promover um encontro sensível com a máquinapensamento de Hundertwasser propondo a escrita a partir da experiência. Ana Mendieta, Lygia Clark e Cristina Ribas são as três artistas trazidas para o teto deste texto, artistas que, no rastro de um vento contínuo, estabelecem posicionamentos que ativam o “habitar” no desejo de remir sua essência. Terceira pele, heterotopia, experiência artística. Seguidamente as animitas1 na estrada para o sul. Cruzamos parte do Bianca Bernardo. Descanso, Morro da Conceição, 2008. Foto: Rafael Adorján. 1 Pequenos altares urbanos espalhados por todo seu território, principalmente ao longo das estradas. 2 Há dois anos fiz uma viagem pela Patagônia com um casal de amigos. O território chileno é recortado por zonas climáticas que variam de uma rica floresta verde a extensos desertos amarelos. Durante um mês atravessei a região de carro.
trajeto2 de vento frio e forte, pesado de areia. O sol se esticava no encontro do horizonte enquanto a nuvem de poeira esfumaçava nossos rastros. Depois de um certo tempo no deserto, a paisagem se repete como extensão, cor e linha. Qualquer miragem é sublime. A primeira animita que encontrei estava abandonada. Casinha pequena, sem janelas, uma porta de vidro e telhado inclinado de madeira. No seu interior, fotos, cartas, velas, terços, flores, santos, santinhos e sapatinhos de bebê. De pé. Olhando para ela. Intrigada. Durante a noite você acena de longe como farol. Como uma cachorra que urina no chão Em entrevista a Linda Montano, publicada em parte no Guia da 27a Bienal de São Paulo, Ana Mendieta, respondendo a quatro perguntas-chave que elucidam o início de sua produção artística, menciona a necessidade de concentração, de se situar, do processo de escolha dos lugares para seu fazer artístico. Esse lugar de privacidade que a artista
3 Do antigo grego temenos, recinto ritual.
desenha para si também é o temenos3 de seu ritual na arte. Minha primeira proposta é abordar a performer cubana como uma “sacerdotisa”, seguindo as conceituações de Camille Paglia. Segundo a autora de Personas sexuais, no período pré-histórico da civilização a identificação da mulher com a natureza possuía caráter universal. A subsistência das sociedades sob regime de caça e coleta era totalmente dependente da natureza. É o culto à ‘femealidade’ o princípio imanente da fertilidade, que dominava o simbolismo primitivo. Em tempos ancestrais, a mulher serviu de protótipo para todas as figuras da Grande Mãe. Correndo o mundo, coroando o nascimento da religião, a mulher estava no centro, era em si causa e fim. Seus “misteriosos poderes de procriação, e a semelhança de seus seios,
4 Paglia, Camille. Personas Sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson. São Paulo: Companhia das Letras, 1992, p. 20.
barriga e quadris redondos com os contornos da terra”4 sacralizaram seu corpo como temenos. O corpo da mulher era, então, o modelo mais perfeito de todos os espaços sagrados.
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Minha tese é a de que Ana Mendieta se aproxima de uma “sacerdotisa que guarda o temenos de mistérios daimônicos”5 a partir de sua crença declarada na força motora do
5 Paglia, op. cit., p. 33.
neolítico que materializa nos ritos a consagração do seu habitar: habitar os espaços da terra como espaços da arte. Como uma cachorra que urina no chão, Ana Mendieta é posseira do território que escolhe para obrar.6 Tradicionalmente, os antigos povos patagônicos queimavam seus mortos, empilhando sobre seus corpos um monte de lenha. Foi o que um velho senhor chileno nos contou enquanto apontava pequenos relevos ao longe. E cada morto era presenteado com uma pedra. A pedra era fincada ao chão sobre suas cinzas. Ao largo das cinzas desenhavam um anel de pedras. Esse círculo de pedras é a fronteira que limita e que concebe aquele espaço como cemitério. Poeticamente exemplificado por Michel Foucault como lugar heterotópico, o cemitério é espaço que mantém ligação inevitável com todos os indivíduos de uma sociedade.7 Na maneira pela qual o mundo experimenta a si mesmo como organograma, as heterotopias de Michel Foucault são “lugares que estão fora de todos os lugares, embora sejam efetivamente localizáveis”.8 As heterotopias foucaultianas se posicionam concretamente em oposição às utopias de posicionamentos irreais.
7 Foucault, Michel. Outros espaços. Ditos e escritos, vol.3, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 417. 8 Id., ibid., p. 415.
Os posicionamentos são do tipo de passagem, parada provisória e repouso, identificando em suas camadas intermediárias os espaços de posição que neutralizam e invertem a ordem institucionalizada. Classificada em dois grandes blocos, a heterotopia de crise é um conjunto de posicionamentos que se relacionam em estados de profunda ruptura. Nossas atuais heterotopias de desvio ocupam o lugar geral das heterotopias de crise, caracterizada como um desvio comportamental do indivíduo em relação à sociedade estratificada. O espaço que eu gostaria de chamar de “sacrário” é íntimo, ritual, uma habitação guardiã do sagrado. Acredito que o exercício artístico de Ana Mendieta se desenvolvia no habitar a terra construindo sacrários. Imprimindo diretamente seu corpo no berço da terra. Gravando-se. O corpo usado como matéria plástica, corpo-suporte da gravura. No registro de Alma silueta en fuego (Silueta de cenizas) em filme 8mm, a artista propõe uma formatação do rito como cerimônia. A gravação, a ser exibida ao público posteriormente, é um livro aberto para observação das práticas rituais que a artista exerceu, absolutamente sozinha e em segredo. O vídeo narra a evocação de um ritual sagrado ancestral, no qual se vê a silhueta de um corpo envolto no tecido branco da morte e queimado até tornar-se cinzas. As cinzas são ruínas, resíduos, pó, restos, sobras, índices: fogo ateado, corpo queimado, fogueira apagada. A relação entre a silhueta em fogo e a silhueta em cinzas é essencial. Para chegar às cinzas, passamos pelo fogo, pelo calor, pelas brasas, pela fumaça. Todo esse percurso simboliza a própria poética da passagem, da contínua transformação dos elementos no freqüente estado de renovação que toda matéria propõe a si mesma. O corpo da artista e a representação
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6 “Um cachorro que marca todo arbusto de uma quadra é um artista do grafite, deixando sua rede de assinatura a cada levantada da perna. As mulheres, como as cadelas, se agacham presas à terra. Não há projeção além das fronteiras do ego. O espaço é reivindicado pela ocupação, o direito do posseiro.” In Paglia, op. cit., p. 31. (A nota do tradutor sobre a palavra posseiro é a seguinte: a palavra inglesa squatter, usada na versão original da autora, é um jogo de palavras que significa, ao mesmo tempo, “o que se agacha” e “posseiro”).
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dele atuam como sinais dessa habitação provisória, ritos que constituem sua morada, de volta ao útero da terra: Em 1973 realizei meu primeiro trabalho numa tumba asteca invadida por ervas daninhas e mato – o crescimento daquelas plantas me fez pensar no tempo. Comprei flores no mercado, deitei-me sobre a tumba e cobri-me com flores brancas. A analogia era a de que estava coberta 9 Mendieta, Ana. Performance artists talking in the eighties. Berkeley e Los Angeles: University of California Press, 2000. In Lagnado, Lisette e Pedrosa, Adriano (eds.). Como viver junto: Guia da 27a. Bienal de São Paulo. São Paulo: Fundação Bienal, 2006, p. 26.
pelo tempo e pela história.9 Ana Mendieta se permitia; se permitia deitar-se nua sobre uma antiga tumba asteca abandonada. O alto mato crescido. Buquês das pequeninas flores brancas cobrindo seu corpo. Ana Mendieta encostando sua pele no tempo. Cada ritual é uma gravura, uma proposta elaborada e acionada pela própria artista. Nesse sentido, Ana Mendieta pode ser considerada artista propositora do self. Seu corpo move a ação no diálogo da essência primitiva
10 Martin Heiddeger propõe as relações entre homem e espaço elaboradas como rede, desafiando o ser que está no mundo a se reconstruir continuamente. O habitar descansa no respeito que cada homem atribui ao lugar e, através dele, ao espaço. A paz do abrigo é a residência da essência do abrigar, inversa liberdade do ser pertencido. Ver: Heiddeger, Martin. Construir, habitar, pensar. In Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 1999. 11 Foucault, op. cit., p. 412. 12 Vidler, Anthony. Pós-urbanismo. In Gávea vol.13, n. 13. Rio de Janeiro: Universidade Católica do Rio de Janeiro, 1984, p. 445.
do ser e estar sobre a terra.10 Seu eu é outro no espaço da extensão. Consciência do lugar Michel Foucault, em Outros espaços, texto de conferência de 1967, traça um percurso histórico da experiência espacial do Ocidente. Seu percurso começa no período medieval na instituição de Galileu como espaço da localização. Constituído pelo conjunto hierarquizado de lugares,11 esse espaço era organizado por oposições entrecruzadas, como espaços profanos e espaços sagrados, urbanos e rurais, abertos e fechados. Anthony Vidler, por sua vez, aponta a memória urbana medieval como uma imagem identificável, que não é a “realidade” da cidade, tampouco uma “utopia” imaginária,12 mas complexo mapa mental através do qual a cidade podia ser reconhecida como “lar”, como algo familiar, que constitui o mais perto que seja de um ambiente moralmente protegido para a sucessão
13 “A relação entre a cidade real e a cidade utópica é desse modo mediada por um mapa mental que inclui o real a fim de imaginar o irreal, o ideal, ou simplesmente aquilo que deve ser lembrado”. In Vidler, op. cit., p. 445.
14 “(...) A natureza da cidade ideal renascentista, torna-se importante apenas a partir do momento em que os arquitetos tornaram-se cientes da possibilidade de transferir para o domínio da realidade aquilo que eles tinham imaginado em sua memória; ou seja, excluir da estrutura da cidade real as seqüências e lugares que constituíram os mapas memoriais da cidade, transformar a cidade num teatro memorial e fazer esse teatro acessível tanto para os habitantes, quanto de molde igualmente importante, para os visitantes.” In Vidler, op. cit., p. 447. (O autor nos fala sobre a construção desses lugares memoriais ao longo do período medieval e renascentista, conduzidos para loci entre o imaginário e o real, identificados em Yates como “teatros memoriais” e Campanella como “utopias”).
do cotidiano.13 A imagem da cidade medieval permite a cada cidadão localizar-se, ao mesmo tempo, no presente e no passado. Concluímos então que a experiência do espaço do homem medieval e renascentista está fundamentalmente entrelaçada com o tempo, e, de forma inevitável, com a memória.14 Lygia Clark também percebe a arquitetura medieval como “um corpo, abrigo poético, tendo o homem ainda necessidade de habitá-lo”.15 Esse espaço em que nos localizamos é entendido pela artista como a “nostalgia do útero”, um espaço reconhecido em algumas proposições que suprimem o objeto intermediário por um espaço interior do corpo. Caracteriza-se como a passagem que nos conduz à vida, ao mesmo tempo túnel, abismo e morte.16 O espaço interior, elaborado por Lygia Clark como vazio-pleno, seria a consciência de um espaço que se liga entre a metafísica e a imanência, o homem em colóquio com o mundo, multiplicando-se para fora de si. “O engolir o espaço exterior para abrindo os pulmões num grito.”17
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Durante a Bienal de Veneza de 1968, Lygia Clark monta a estrutura A casa é o corpo, um labirinto dividido em quatro etapas: penetração, ovulação, germinação e expulsão. Cada compartimento oferece ao participante uma experiência sensorial distinta. Lygia Clark subscreve a proposição de A casa é o corpo como mimética e não ilustrativa. A estética artística fundamentada por Aristóteles propõe a mímesis como imitação verdadeira da natureza. Por imitação, entendemos a reprodução ou cópia de qualquer modelo maior,
15 Clark, Lygia. Da supressão do objeto (anotações). In Ferreira, Glória e Cotrim, Cecília. Escritos de artistas: anos 60 /70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 355. 16 Regressão do feto que sai do seu verdadeiro hábitat: útero. In Clark, op. cit., p. 355. 17 Clark, op. cit., p. 355.
sendo ao mesmo tempo abundante e transcritiva. A reprodução é um traduzir, no que toca transferir, mudar alguma coisa de seu lugar. Como a função pela qual todos os seres vivos se perpetuam na espécie, a reprodução do homem é sexuada e ocorre na fusão de duas células específicas, os gametas. Durante nossa reprodução genética, as características dos progenitores são diluídas na formação dos descendentes. O ser que sobrevive e reproduz perpetua sua espécie, gerando herdeiros geneticamente distintos entre si. Sua fase de geração tem o corpo da mulher como lugar de abrigo. A mulher grávida é plena. Nas mitologias primitivas, a identificação da mulher com a natureza prosseguia sob os mistérios da gestação: Um labirinto onde o homem se perde. É um jardim murado, o hortus conclusus medieval, onde a natureza faz sua daimônica bruxaria. A mulher é a fabricante primeva, a verdadeira Primeira Causa. Transforma um ranho de detrito numa rede de ser senciente, flutuando no serpentino cordão umbilical pelo qual traz todo homem na correia.18
18 Paglia, op. cit., p. 23.
O gesto traduz o pensamento como mímica e sinal. A arte de imitar exprime através do gesto o pensamento, e o sinal, seu vestígio. Ao mesmo tempo a ação e seu registro, o ato e seu rastro. Assim são os atos solenes. O gesto – ato que traz em si seu próprio rastro – de A casa é o corpo exprime o pensamento de Lygia sobre suas conversas com a arte, sexualidade, arquitetura e o espaço orgânico. Na fase que sucede a Nostalgia do corpo suprime o objeto na participação do homem como suporte vivo da obra. O objeto que existia antes como meio indispensável entre o participante e a sensação, desaparece, tornando cada homem o “objeto de sua própria sensação”.19 Sugeridas como proposições, as experiências sensoriais de Lygia Clark perpetuam a ação no gesto do espectador ativo.
19 Clark, Lygia. Lygia Clark. Barcelona: Fundação Antoni Tàpies, 1997, p. 247.
Esse diálogo traduz o pensamento da artista para o público, que por ela é provocado a participar. O homem, como organismo vivo, é capaz de incorporar na expressão do gesto o conceito que move a ação: Ele cessa de ser o objeto do outro, religando o processo da introversão à extroversão. Ele inverte os conceitos casa e corpo. Agora o corpo é a casa. É uma experiência comunitária. Não há regressão porque existe uma abertura do homem para o mundo.20 A invenção da proposição é coletiva e objetiva conectar os indivíduos na rede de um tecido comunitário. Dessa maneira, “o homem comunica com o mundo, se desenvolvendo
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20 Id., ibid., p. 248.
Folheto de Troca de Azulejos, 2007. Foto: Rodolfo Borges. 21 Id., ibid., p. 248.
para fora de si mesmo, dando aos outros suporte para que este exprima também”.21 A casa é o corpo, ao ser desdobrada, estrutura o homem como o organismo de uma “arquitetura biológica e celular”, proposta como “um abrigo poético onde o habitar é o equivalente do comunicar. Os movimentos do homem constroem este abrigo celular habitável, partindo
22 Id., ibid., p. 247.
de um núcleo que se mistura aos outros”.22
23 Id., ibid., p. 233.
No gesto, o eu passa a ser outro, diluído na “malha de um tecido infinito”.23 Tal passagem é o exercício de um tempo ulterior, estado em que o eu se vivencia como outro, nunca a priori, mas como gesto póstumo, de morte mesmo. O indivíduo que se renova continuamente também se torna estranho a si, sempre eu que sou outro. Como regente dessa vivência do depois, o tempo ulterior diz respeito sempre ao momento a posteriori: como páginas opostas, as obras poderiam ser construídas pelos seus versos. O artista cruza o quarto de sua obra quando se vê do outro lado, situado além desse “eu” que ficou para trás. Essa projeção não evidencia um segundo self, mas o ultra-eu, um eu excedente. O tempo ulterior nos conduz ao outro, que somos nós, depois. É o acontecer além do limite, a dilatação entre a obra e o artista, o lugar edificado por essa obra em sua extensão. Nesse sentido, o artista-outro está sempre de partida – sua jornada segue, como artista provisório obrando na ulteridade. É no tempo interior, do vazio-pleno, que nos damos conta de nossa localização e travamos contato com o mundo, de maneira que tanto ele nos cabe quanto cabemos dentro dele. O hóspede provisório Cristina Ribas é minha amiga. Nos conhecemos durante o curso do mestrado. Naquele dia, Cristina chegou com seus arquivos – da grande bolsa – fichário, cadernos, livros,
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escritos e presentes. A cada uma de nós entregou um folheto. Azul. Podia-se ler em letras garrafais: “Troco azulejos”. Oferecendo arte como serviço, Troca de azulejos é uma proposição de diálogo com o outro. Sua ação consiste em entrar na casa das pessoas e trocar um azulejo doméstico por outro, azul. A padronagem comum às paredes de azulejo é desestabilizada na inserção de um outro subjetivante do lugar. Tal processo de “azulejar”, verbo conjugado entre o assentamento de azulejos e o azular, de tornar ou tingir de azul, assemelha-se ao conceito de “bolor”, no sentido de que “deve fazer fermentar as estruturas e fazer rebentar nas casas a linha reta. Cada habitante deve cultivar o seu próprio bolor doméstico”.24 A metáfora do bolor, introduzida por Hundertwasser em “Verschimmelungsmanifest”,25 é um conceito de extensão aplicado ao “domínio construído ou ao construir da atividade fluidoide e espiraloide na pintura”.26 Acredito que o azulejo azul de Cristina Ribas azulece, preenche a casa de cor pura e viva. O novo elemento é ornamento, serviço de um
24 Restany, Pierre. O poder da arte-Hundertwasser, o pintor-rei das cinco peles. Lisboa: Taschen, 1999, p. 23. 25 Nome empregado por Hundertwasser para o manifesto do Bolor contra o Racionalismo na Arquitetura, em 1968. O artista austríaco realizou em Paris sua primeira exposição em 1954 e, desde então, não cessou mais de trabalhar, aglutinando os exercícios de arquiteto, ambientalista, naturista e higienista moral, assim como as atividades de pintor e gravador.
decorador, como aquele que decora ou que aprende de cor – duplo sentido que favorece
26 Restany, op. cit., p. 23.
uma percepção mais aprofundada: a cor que é tom pode ser coração. O coração, por
27 Coração, como substantivo feminino, é o ato ou efeito de corar, como tingir, dar cor a (mesmo que a si mesmo, no ato de enrubescer). Por sua vez, a palavra cor como substantivo masculino é coração, também como vontade e desejo. A expressão “aprender de cor” é uma derivação romana, que tinha o coração como a sede da memória. Por outra via, a palavra cor como substantivo feminino deriva do latim color, que vem do grego chróma, coincidente com cróos, a pele que recobre o corpo.
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sua vez, abrange os campos do ânimo, do afeto e da memória. Talvez seja por isso que a palavra decorar se situe entre a ornamentação propriamente dita e a memorização. O gesto de Cristina Ribas singulariza a moradia, afirmando no encontro a transformação do hábitat, potencializando a evocação de emoções metafísicas como resultado de uma vibração harmônica da dual possibilidade de ser cor. Transcende o racionalismo para transformá-lo em veículo que integra o espectador à obra e o conduz para outro campo de experimentação da forma-cor. Hundertwasser configura a habitação como terceira pele,28 pois “a casa que o homem talha segundo sua fantasia é a extensão do vestuário que cobre sua pele biológica”.29 O Manifesto do Bolor, contra o racionalismo da arquitetura, gerencia o transautomatismo30 para a habitação tanto do indivíduo quanto da coletividade: suas leis recusam o racionalismo das linhas retas empregadas na arquitetura funcional, apontando para um construir liberto, orgânico, expansivo. Seu manifesto descreve a pessoa do construtor, na figura de um gestor, que idealiza a reunião funcional da trindade arquiteto-pedreiro-habitante. Hundertwasser anuncia o bolor como renovação orgânica da arquitetura
28 Hundertwasser acredita o homem como ser de camadas, desenvolvidas por uma espiral concêntrica que parte do eu profundo para o mundo exterior, operada por osmose nas cadeias sucessivas dos níveis de consciência. As cinco peles de Hundertwasser são: a primeira pele, epiderme; a segunda pele, vestuário; a terceira pele, a casa; a quarta pele, nossa identidade social; a quinta pele, nossa pele planetária. As cinco peles de Hundertwasser são um plano de vida, uma reflexão profunda do ser e estar sobre a terra, colocado em prática ao longo de sua jornada artística.
através da “putrefação da arquitetura racional”.31 O bolor é agente na decomposição de
29 Restany, op. cit., p. 23.
matérias orgânicas, separando os elementos componentes a fim de os alterar profunda-
30 “A sua teoria do transautomatismo era simultaneamente uma crítica ao analfabetismo preceptivo do público e a afirmação da necessidade de uma participação criativa do público perante a obra de arte.” In Restany, op. cit., p. 21.
mente. O mofo, ativado como o inverso positivo de toda putrefação, é pura modificação, um azulejo azul que redefine o espaço por contaminação. Por coincidência, alguns bolores apresentam tonalidade azulecida...
31 Restany, op. cit., p. 23.
Escrevi o artigo “O hóspede provisório”32 como primeiro esboço para a argumentação do trabalho de Cristina Ribas, sob uma poética do precário. Partindo de busca etimológica da palavra, cheguei a precarius, que se origina no latim tardio precari, que se desenvolve para pregar, aglutinando o sentido de temporário e duvidoso e as derivações de
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32 Ver: O Hóspede Provisório. Da Precariedade. Anais do XIII Encontro do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, Rio de Janeiro: Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2007.
invocação e convite cortês. Ao considerar que a mesma raiz latina derivou tanto precariedade quanto pregação, sugeri que a temporalidade instável presente no precário seja também referência a um outro, o “hóspede provisório”. A poética do precário proposta por Lygia Clark era um novo conceito de existência 33 Clark, op. cit.,1997, p. 211.
que se colocava contra toda cristalização estática da duração.33 Seu manifesto que legitimava o agora como campo de experiência recusando a duração como o intermedium da expressão também reivindicava liberdade. A duração como tempo durável de todas as coisas é um permanecer que resiste conservado, pois não se gasta nem perde suas qualidades. A poética do precário se posiciona contra a durabilidade, trazendo para a arte o tempo presente instável, consciente de um eterno diálogo, com o outro si mesmo e o outro enquanto outro. O convite, entendido na simultaneidade da convocatória e da dádiva, é feito ao convidado, homem ou deus, no intuito de atrair e provocar a urgência do encontro. Troca de azulejos é ação que acontece por escambo: um azulejo da casa, quebrado e descartado, por um azulejo do projeto (azulejos azuis, de 15cm2, comprados em loja de material de demolição). A divulgação acontece por publicidade precária, via distribuição de folhetos nas ruas ou nas caixas de correio das casas. Os enunciados principais tornam a primeira leitura confusa, posto que declaram “troco azulejos” e em seguida “faça você mesmo”. Sobre tal situação, Cristina esclarece que “habitar esse universo impreciso da arte como serviço me interessa nesse projeto; assim como entrar nas casas, discutir o que é a proposta e como ela se
34 Ribas, Cristina. Trecho retirado do portfólio da artista, 2007.
apresenta fazem parte da iniciativa”.34 A partir de relações de força que se instauram nas contradições entre a lógica do privado e do público, a ação artística de Cristina Ribas é oferecida em primeira instância como um serviço público, ação prestativa que compromete a hospitalidade como troca. Considerada uma virtude, uma expressão de generosidade, a hospitalidade é uma verdadeira “prova do outro”, que implica compromissos, sacrifícios e mesmo às vezes conflitos. Elaborados por Jacques Derrida, os valores de amizade e hospitalidade incondicionais são propostas de aceitação do outro enquanto outro, também presente na persona do estrangeiro, de maneira a não o submeter às leis que regem a casa anfitriã (que em muitos casos especifica a hostilidade), mas promover através do contato com o desconhecido o aprendizado pelo entendimento da diferença. Cristina Ribas, gaúcha de São Borba, deu impulso a Troca de Azulejos quando vivia como artista-residente na cidade de Belo Horizonte. Ao visitar uma loja de materiais de demolição comprou oito azulejos azuis. O número oito, apesar da natureza car-
35 Para ouvir e cantar: “O número oito é o infinito, o infinito em pé, o infinito vivo, como a minha consciência agora (...) O número oito dividido é o infinito pela metade. O meu objetivo agora é o infinito. Ou seja: a metade do infinito, da qual metade sou eu, e a outra metade é o além de mim”. Fragmento de “Objeto semi-identificado”, música composta e interpretada por Gilberto Gil.
dinal, é simbolicamente representativo, sendo o “infinito em pé”,35 invocamento do eterno retorno. Considerando a singularidade de cada azulejo e toda a situação que esse promove durante a troca, sua qualidade de repetição é sem modelo. Cada vivência potencializa o discurso acerca do lugar específico da obra, em que lugar de produção e lugar de fruição se confundem no ambiente doméstico. O circuito de intimidade é mantido dentro de um movimento exterior de acréscimo de significados à ação da
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troca: no âmbito do affecto,36 todos os presentes envolvidos participam do processo de acontecimento da obra, desde sua etapa de procura e aceitação, passando pela dupla doação (o hospedeiro se desfaz de um azulejo na contrapartida de o hóspede lhe conceder um outro). É possível pensar que quando a artista entra na casa de pessoas, amigas ou não, com o intuito de trocar um azulejo doméstico por outro, azul, estaria obrigando tudo ao seu redor a se reorganizar. Até que se torne ruína, sofrendo no abandono a ação do tempo, podemos dizer que a casa hospedeira foi marcada. Cristina chegou às quatro. Convidada para uma tarde de hospedagem, tendo minha residência como lugar da criação. Em segredo, lhe preparava um banquete. Depois de olharmos toda a casa, Cris se deixou envolver pela parede curva do lavabo, um pouco estreito e pequeno, abrigo de um corpo só. Como se fechada dentro da casca, começou a quebrar. O rompante da primeira martelada. Cristina começa a rasgar a pele da casa. Preciso abrir um buraco na parede, cavar essa rocha urbana. Na porta, éramos verdadeiras parteiras acompanhando a gestação urgente da obra. Cristina uma vez me escreveu: “o olho do outro te vê, o corpo dele te sente, e essa é a realidade da performance”. A força para quebrar a parede é real, seu cansaço é real. Inclinadas na noção perfeita de finitude, sentíamos prazer em assistir a seu processo, esperando a completa expulsão do azulejo. Dos primeiros cacos estilhaçados, uma pequena
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Cristina Ribas. Troca de Azulejos, residência de Bianca e Rodolfo, Niterói. Foto: Rebeca Rasel, 2006. 36 Compreendo o artista como seu próprio laboratório, oficina de si, fábrica do sensível que constitui seu fazer na produção de afetos.
abertura vai sendo ampliada e no corroer das beiradas, chega-se ao espaço negativo. O quadrado esculpido evidencia uma falta. Cristina examina as reentrâncias e vai cuidadosamente terminando de preparar o terreno. No copinho de plástico, prepara a massa branca com a ponta dos dedos. Enfim, o azulejo azul é estendido e encaixado. Deixa o sítio do descarte para estabelecer um lugar do novamente ser casa. Nesta casa que também considero minha terceira pele.
Bianca Bernardo é artista visual e performer, graduada em Artes Plásticas e mestre em Artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Entre 2006 e 2008 desenvolveu a tese A fábrica de peles: Hundertwasser e o caminhar contemporâneo, na linha de pesquisa Processos Artísticos Contemporâneos, com orientação da artista e professora Malu Fatorelli. Em 2007 participou das Oficinas para Artistas-Educadores na Casa Daros-Latinamerica, tendo realizado encontros com os artistas Vik Muniz, Humberto Vélez, Betsabeé Romero e Luis Camnitzer, entre outros. Atualmente coordena com Cristina Ribas o projeto DESEO BS.AS. com o objetivo de integrar artistas brasileiros em Buenos Aires através de intervenções artísticas no território argentino. / biabernardo@gmail.com
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Robert Rauschenberg. Erased de Kooning Drawing, 1953.
A arte conceitual e o espectador Christiane de Brito Andrei
A relação entre arte e espectador nunca foi simples. Nas décadas de 1960 e 1970 inicia-se um movimento contracultura que parte da negação de conceitos que dominavam hegemonicamente o mundo artístico anglo-saxão. O espectador pressuposto pelas próprias obras é convidado a abandonar suas crenças, seus conceitos arraigados do que seria uma obra de arte, e a buscar um novo âmbito de significação junto à obra, o que é discutido a partir de diversas obras, análises críticas e textos de artistas. Arte conceitual, espectador, recepção da obra de arte. A intenção de todo pensamento está em nós. É com nossa própria substância que imaginamos e que nos formamos uma pedra, uma planta, um movimento, um objeto: uma imagem qualquer não é talvez senão um começo de nós mesmos.1 (Paul Valéry) “Como convém a uma arte do pensamento, ‘arte conceitual’ propõe 1 Valéry, Paul. Introdução ao Método de Leonardo da Vinci. 1a ed; ed. bilíngüe, trad. de Geraldo Gérson de Souza. São Paulo: Editora 34, 1998, p. 175-177.
problemas desde o início. O que foi? Quando ocorreu? (Estará ainda sendo criada, hoje
2 Wood, Paul. Arte Conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 6.
devem se fixar os limites da ‘arte conceitual’, quais os artistas e quais as obras a serem
3 Godfrey, Tony. Conceptual Art. Nova York: Phaidon, 1998, p. 12.
ceitual, em sintonia com a definição de Tony Godfrey de que a arte conceitual começa
em dia, ou já será coisa do ‘passado’?) Onde ocorreu? Quem a produziu? (Devemos considerar ‘X’ um artista conceitual, ou não?)... Não está de modo algum claro onde incluídos.”2 É com esses problemas que Paul Wood inicia sua discussão sobre arte concom uma dúvida.3 Com multiplicidade de definições, muitas das quais contraditórias, contendas públicas sobre a participação e a importância de artistas no início do movimento, e com obras que vão de fotografias, performances e objetos dos mais variados materiais a palavras ou até mesmo a meras declarações que nem chegam a ser executadas, o legado da arte conceitual teve importante inserção no mundo da arte, a ponto de se poder argumentar que a influência do conceitualismo pode ser encontrada em quase todas
4 Alberro, Alexander e Stimson, Blake (orgs.). Conceptual Art – a Critical Anthology. Cambridge: The MIT Press, 2000, p. xxx. 5 Kieran, Matthew. Artistic Character, Creativity, and the Appraisal of Conceptual Art. In Goldie, Peter e Schellekens, Elisabeth (orgs.). Philosophy and Conceptual Art. Nova York: Oxford University Press, 2007, p. 197.
as práticas artísticas contemporâneas que sejam ambiciosas...4 Porém, apesar de estar por toda parte, o espectador parece ver a arte conceitual com a mesma dúvida que Godfrey declara ser seu impulso inicial. Para o espectador, permanecem sem resposta as perguntas levantadas por Matthew Kieran – “A arte conceitual pode realmente ter valor de arte?” e “Como devemos apreciar a arte conceitual?”5
A arte conceitual e o espectador Christiane de Brito Andrei
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Arte com idéias x arte como idéias: algumas definições de arte conceitual A maneira mais geral e mais superficial possível de definir arte conceitual é dizê-la arte cujo tema central é uma idéia ou um conceito. Historicamente, porém, essa definição assumiria ares de contra-senso, já que, desde a separação das artes liberais e manuais, o artista passou a ocupar seu lugar ao lado dos intelectuais, e a arte deixou de ser vista como prática artesanal. Leonardo da Vinci, aliás, assim sintetizou a questão em sua célebre frase, “arte é cosa mentale”. Se tentarmos ser mais específicos, concordaremos com a idéia de Lucy Lippard de que há tantas definições de arte conceitual quantos artistas conceituais.6 Se mantivermos nossa definição geral, porém, correremos o risco de incluir quase toda a história da arte, o que seria inútil.
6 Lippard, Lucy. Six Years: The Dematerialization of the Art Object from 1966 to 1972. 2a ed. Berkeley: University of California Press, 1997.
Tony Godfrey inicia um dos capítulos de seu livro Conceptual Art com afirmação similar: “Toda arte é um conceito: ela não existe como um tipo físico ou coisa definível em termos precisos, como elefantes ou cadeiras”.7 Peter Goldie e Elisabeth Schellekens defen-
7 Godfrey, op. cit., p. 19.
dem, porém, que não devemos acreditar que só as obras que comunicam pensamentos específicos merecem nossa atenção.8 Mesmo a arte mais “retiniana” – qualidade que desde Duchamp era considerada indicativa de foco nas qualidades físicas e formais da obra de arte em detrimento de suas qualidades conceituais – pode expressar idéias. Se, porém, toda arte é um conceito, qual seria, então, a diferença entre toda a arte e a arte conceitual? Em outras palavras, quais os limites da arte conceitual? Segundo Tony Godfrey, desde que a arte se tornou autoconsciente, ela brinca com seu status ‘conceitual’. Na contenda entre Zêuxis e Parrásio, narrada pelo autor clássico Plínio, na tentativa de ver quem pintaria o quadro mais realista, Zêuxis pintou uvas tão convincentes, que os pássaros tentavam bicá-las, mas Parrásio venceu porque pintou uma cortina tão realista, que o próprio Zêuxis tentou abri-la para ver a pintura que ela escondia. De acordo com Godfrey, nessa anedota já se identifica a tão contemporânea preocupação da arte: a própria definição de arte. Seguindo esse raciocínio, o autor traça uma linha entre a arte que começava a se perceber e estabelecer enquanto disciplina autônoma e a arte conceitual – essa deve ser não só autoconsciente, mas autocrítica –, e essa mudança de foco só se tornaria mais consistente com Duchamp e seus readymades, cujo “ponto de partida” se localizaria nas colagens cubistas, afirma Godfrey. Duchamp, entretanto, apesar de considerado em retrospecto o pai do conceitualismo, não era propriamente um artista conceitual, pelo menos no aspecto histórico. O termo “conceitual” só apareceria no início da década de 1960. Muitas foram as tentativas, por parte de artistas e de historiadores, de formalizar o que se configurava como essa tendência ao conceitualismo no final da década
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8 Goldie, op. cit., p. ix.
de 1960 e no início da seguinte, mas nenhuma delas conseguiu alcançar status definitivo. A arte conceitual colocou-se firmemente no que Goldie e Schellekens 9 Idem.
chamaram de “um fluxo de controvérsia desde seus primórdios”,9 e Alberro, de “um campo disputado de práticas múltiplas e antagônicas, em vez de um único e unifi-
10 Alberro e Stimson, op. cit., p. xvii.
cado discurso e teoria artística”.10 Qualquer definição parecia fadada à parcialidade e só podia ser adotada temporária ou especificamente em relação a certas obras ou artistas. O primeiro a utilizar a expressão “arte conceito”, em 1961, foi o escritor e músico
11 Henry Flynt explora essa idéia em seu ensaio: “Essay: Concept Art”. In La Monte Young e Jackson MacLow (orgs.). An Anthology of Chance Operations, Nova York: 1963.
associado às atividades do grupo Fluxus Henry Flynt, 11 que considera seu material os conceitos e afirma que, “uma vez que os conceitos são estritamente vinculados à linguagem, a arte conceitual é um tipo de arte na qual o material é a linguagem”. Entretanto, apesar de a leitura de Flynt baseada no Fluxus já prever o papel crucial da linguagem em toda a experiência e compreensão da arte, ela não era muito conhecida pelos artistas da vanguarda conceitual de Nova York na segunda metade da década de 1960, o que constitui, para Lucy Lippard, motivo suficiente para estabelecer Sol LeWitt como o verdadeiro antecedente histórico-artístico do termo “conceitual”, pois seus textos teriam tido impacto muito maior sobre a produção da época. Em “Parágrafos sobre arte conceitual”, publicado em 1967, Sol LeWitt afirma que, em seu trabalho, “a idéia de conceito é o aspecto mais importante da obra”. E continua: “A aparência da obra não é muito importante. Ela tem que ter alguma aparência se tiver forma física. Seja qual for a forma que possua no final, ela tem que começar com uma idéia.” E ainda: “A arte conceitual é feita para envolver a mente do espectador em vez
12 Alberro, op. cit., p. 12-15.
de seu olho ou suas emoções”,12 reforçando o foco sobre a idéia. Sol LeWitt já indicava aqui a possibilidade de uma obra de arte não assumir forma física, o que seria desenvolvido dois anos mais tarde por Lawrence Weiner, em seu Statements, e por tantos outros artistas. Para Mel Bochner, por exemplo, as duas características mais importantes da ‘obra conceitual ideal’ seriam possuir um correlativo lingüístico exato, ou seja, que ela pudesse ser descrita e vivenciada em sua descrição, e ser infinitamente
13 Apud Stangos, 1991, p. 184.
repetível.13 Ou seja, para Bochner, uma obra de arte conceitual só pode ser discutida a partir de sua descrição verbal, não sendo necessária a presença do espectador para que seja compreendida. Em seu texto sobre a “percepção” da arte conceitual, ao analisar a obra TrouserWord Piece, de Keith Arnatt (1972), Peter Lamarque levanta as seguintes questões, de acordo com as declarações de Weiner e Bochner:
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O que é a obra? (...) Eu posso, por exemplo, fazer total justiça a esta obra e apreciá-la como ela foi concebida meramente pensando nela? Ou falando nela como acabei de fazer? Ou reproduzindo uma versão minha? Ou modificando-a de várias maneiras (ex.: O layout das palavras)? Ou eu tenho que ir até a escola de artes e vê-la com meus 14 Apud Goldie, op. cit., p. 4.
próprios olhos?14 Para Weiner, a resposta a essas perguntas seria não. Em Statements, afirma não haver nenhuma diferença entre a obra feita por ele, remontada por alguém que a comprou dele ou mesmo imaginada por alguém que a tenha visto – uma idéia similar ao correlativo lingüístico de Bochner –, ou seja, pensar em uma obra já seria de alguma forma realizá-la. Lamarque argumenta, então, que certas obras conceituais são um “tipo”, permitindo múltiplas ‘instanciações’ (como diz Bochner, são “infinitamente repetíveis”), em vez de particulares únicos. Tais idéias voltam a ressaltar o foco sobre o conteúdo da obra, e não em seu produto final. Lamarque define: “A ênfase nas idéias é um elemento comum [da arte conceitual] geralmente associado à baixa prioridade da forma material do que é perceptível”.15 A questão maior por trás dessas investidas antiformais é levantar a discussão sobre o fato de os objetos de arte serem necessariamente objetos dados apenas à percepção, o que, por sua vez, levanta a questão do lugar do valor artístico. Ao defender a idéia de que não é nem mesmo necessário haver objeto para que haja arte, Weiner libera a relação direta entre forma e conteúdo, negando totalmente a teoria de “forma significante” que Clive Bell escrevera 55 anos antes em defesa das vanguardas históricas ou mesmo a idéia de “pureza da forma” de Greenberg, de quase duas décadas antes – pois se nem mesmo há forma, que dirá pureza. Quanto ao significado, ele é o que importa, mas não mais estará preso à forma: agora podemos pensar, então, em conteúdo sem forma ou em uma forma cujo conteúdo se encontra em outro lugar, questão essa literalmente suscitada pela exposição de Robert Barry em dezembro de 1969 na Art & Project Gallery, em Amsterdam. A exposição consistia apenas em dois pedaços de papel presos na porta trancada da galeria: um com o timbre da galeria, contendo o nome do artista e as datas de abertura e encerramento da exposição, e outro, com uma única frase datilografada, que anunciava: “Durante a exposição, a galeria permanecerá fechada”. Essa obra não só nada oferece a ser visto, mas aparece como impedimento, uma recusa do artista a fazê-lo. Não é que o significado da obra esteja inacessível pelo fato de as portas da galeria estarem trancadas, mas é justamente o fato de elas estarem trancadas que obriga o espectador a buscar o sentido do ato do artista em outro lugar que não no interior da galeria. A obra torna-se esse próprio ato de recusa e impedimento, um ato comum a outros artistas conceitualistas, envolvendo a participação dos espectadores ao utilizar a frus-
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15 Lamarque, Peter. On Perceiving Conceptual Art. In Goldie, op. cit., p. 5 (chaves minhas).
tração de suas expectativas como ponto de partida. A discussão sobre a obra torna-se, também, obra. O ato-obra de Barry está de acordo com a definição de Godfrey de que a arte conceitual deve ser totalmente reflexiva, em sintonia com as idéias de Joseph Kosuth em “A arte depois da filosofia”, de 1969, em que Kosuth define a função do artista: Ser um artista agora significa questionar a natureza da arte (...) A pintura é um tipo de arte. Se você faz pinturas, já está aceitando (sem questionar) a natureza da arte. Neste caso se aceita a tradição 16 Apud Ferreira, 2006, p. 217.
européia de uma dicotomia pintura-escultura.16 A obra Painting and Sculpture, do grupo Art & Language (1967) já propunha um ataque à tradição dessa dicotomia dois anos antes da publicação de Kosuth. As duas telas que compõem a obra são igualmente vazias, sendo diferenciadas apenas pelas palavras “Pintura” e “Escultura” em sua parte inferior. Talvez o vazio da obra seja alusão ao esvaziamento do sentido da função tradicional do artista e às categorias formais tradicionais dos meios artísticos, que precisam agora ser repensados e redefinidos na criação de cada obra. Ou mesmo a negação de que o sentido da obra está em suas qualidades perceptivas ou visíveis. Novamente, como na galeria fechada de Barry, não havendo nada para ser visto, há que gerar uma discussão. Quase duas décadas mais tarde, tanto Lucy Lippard quanto Joseph Kosuth revisaram suas posições e publicaram definições menos prescritivas. Em 1995, no catálogo da retrospectiva Reconsidering the Object of Art: 1965-1975, Lippard afirma: “A arte conceitual, para mim, significa obras em que a idéia é o principal, e o material é secundário, leve, efêmero, barato, despretensioso e/ou desmaterializado”. E Kosuth, em 1996, define: A arte conceitual (...) tinha como princípio básico a compreensão de que os artistas trabalhavam com significados, e não com formas, cores ou materiais (...) a forma de apresentação propriamente dita não possui valor algum independente de seu papel como veículo da
17 Apud Alberro, 1999, p. 461.
idéia da obra”.17 Após a revisão de suas declarações, Kosuth parecia estar pronto para abandonar a idéia de total separação entre estética e arte, talvez mais propenso a aceitar o que Peter Lamarque viria a defender anos mais tarde: um nível perceptivo que deve ser aceito, mas que sempre será subserviente ao conceitual. Os artistas trabalhavam com significados, mas podia haver algo perceptivo na obra – esse só não era o foco principal Na instalação Zero and Not, em 1989, no Sigmund Freud Museum, Kosuth expõe o “apagamento” de textos freudianos, num ato em que, similarmente ao de Rauschenberg em Erased de
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Kooning Drawing (1953), é a desconstrução que permite a construção de um novo traço e de novos sentidos. Mais uma vez a afirmação pela negação. Sobre a obra de Kosuth, Robert C. Morgan diz: “O encobrir a linguagem traz em si a sugestão de que o que está embaixo é significativo em vista de sua ausência.”18
18 Morgan, Robert C. The Making of Wit: Joseph Kosuth and the Freudian Palimpsest. Arts Magazine v 62. January 1988, p. 48.
Segundo Lamarque, a estética desempenha papel peculiar, talvez inesperado, na arte conceitual. O autor defende que a virada autoconsciente dos artistas contra a estética é o que torna as “credenciais” da arte conceitual enquanto arte tão suspeitas para críticos e espectadores, mas que ambos os lados teriam baseado suas reações em suposições falsas: “os críticos, supondo que a arte é necessariamente estética, os artistas, que a estética é necessariamente perceptiva”.19
19 Lamarque, Peter. “On Perceiving Conceptual Art”. In Goldie e Schellekens, op. cit., p. 9.
A partir da análise da literatura como arte não perceptiva, mas aberta à descrição estética, e da comparação desse aspecto da literatura com a arte conceitual, Lamarque defende que a estética não precisa estar confinada ao belo, ao sensual ou à unidade formal, podendo incluir o que ele chama de “apreciação da eficácia dos meios em relação à finalidade”, e, assim, lhe parece contra-senso aceitar o fato de uma obra poder ser não estética, por mais que ela empregue meios antiestéticos.20 Ainda defendendo a idéia de os meios serem adequados aos fins, Lamarque chama a
20 Aqui, Lamarque define “não estético” como ausência de qualidades estéticas e “antiestético” como a presença de qualidades estéticas negativas.
atenção para a necessidade de, para um texto literário ser compreendido, ele ser lido como literatura, do que se pode concluir que o público precisa adotar uma postura específica diante da arte conceitual, para poder “atender a seus elementos estéticos em um senso mais profundo” e, assim, entendê-la como arte conceitual. Pode-se aqui traçar um paralelo com a diferença estabelecida por Danto entre a obra de arte e a “mera coisa real”: a obra conceitual não pode ser compreendida literalmente ou como “mera coisa real”, exigindo um tipo diferenciado de olhar – informado pelo conhecimento. Uma última ressalva de Lamarque afirma que, apesar de serem “tipos”, as obras conceituais ainda guardam certa relação com o objeto – “há importância no veículo”21 – e que
21 Lamarque, op. cit., p. 16.
perceber o conjunto, por mais deliberadamente não estética e não perceptiva que seja a obra, é essencial para a apreensão que tais obras demandam. Multiplicidade, imprecisão e controvérsia A multiplicidade desses textos deve-se a um fenômeno intrínseco à arte conceitual: percebendo o hiato existente entre os critérios estéticos da crítica de arte e as novas proposições artísticas, o artista toma para si a tarefa de teorizar sobre seu trabalho e o de colegas. Como defende Kosuth, “a arte conceitual anexa a função de crítico...; torna o intermediário desnecessário”.22 Sol LeWitt já se havia declarado contra a figura do crítico três anos antes, em “Parágrafos sobre arte conceitual”, ao denunciar “a noção de que o artista é um tipo de primata que precisa ser explicado pelo crítico civilizado”,23
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22 Stimson, Blake. “The Promise of Conceptual Art”. In Alberro e Stimson, op. cit., p. xli. 23 Lewitt, Sol. “Paragraphs on Conceptual Art”. In Alberro e Stimson, op. cit., p. 12.
Mel Ramsden. Pintura secreta, 1967-68.
que mostrava ter essa ambição dos artistas raízes problemáticas advindas da divergência entre as intenções dos artistas e as interpretações dos críticos. A rigor, as definições de Kosuth e outros voltavam-se contra o Expressionismo Abstrato, que seria responsável pela manutenção de antigos critérios de juízo estético, ao que Stimson se refere como “luta edipiana”. Segundo Stimson, “Kosuth não estava sozinho nos ataques a Greenberg e particularmente a seu herdeiro Michael Fried: este era o fardo ou o complexo de toda uma geração”. Como resultado desse processo de negação do “pai”, compreendido como ápice da modernidade a partir das críticas de Greenberg, essas definições parecem querer propor uma negação in toto da arte moderna, entendendo-a como ausente de idéias. Kosuth chega mesmo a pensá-la como “arte decorativa”, uma vez que se destina basicamente à contemplação estética: A arte formalista (pintura e escultura) é a vanguarda da decoração (...) nem mesmo se trata de arte, mas de puros exercícios no campo da estética. Clement Greenberg é, acima de tudo, o crítico do gosto.24
24 Apud Ferreira, op. cit., p. 215.
É importante perceber não só o conteúdo de cada uma dessas definições individualmente, mas também como seu conjunto funciona como um todo, devendo ser analisado até em suas incongruências, construção que só pode ser realizada pela soma de diferenças. Segundo Alberro, ... as pretensões à clareza e à pureza da linhagem da arte conceitual, portanto, devem ser consideradas com ceticismo, já que são tão li-
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mitadas, confusas e muitas vezes explicitamente construídas com o intuito de promover um legado particular e parcial. Obviamente, isso não é incomum na história da arte moderna, mas é notadamente flagrante na época da arte conceitual.25
25 Alberro, op. cit., p. xvi.
Por esse motivo, Alberro dá uma definição ampla da arte conceitual e tenta aprofundar sua compreensão não por explicação global, mas pela enumeração de diferentes práticas e estratégias que tentam acomodar toda a controvérsia em que a arte conceitual se fundou. Em sua definição mais ampla possível, então, o conceitual na arte significa uma crítica ampliada da coesão e da materialidade do objeto artístico, uma crescente cautela em relação a definições da prática artística como puramente visual, uma fusão da obra com seu local e contexto de exibição, e uma ênfase maior sobre as possibilidades do caráter público e da distribuição das obras de arte.26
26 Id., ibid., p. xvii.
Outra fonte de controvérsias sobre a arte conceitual é a definição das origens históricas do movimento. Como sugere Wood, “O legado da arte conceitual não é (...) de modo algum consensual. Grande parte dos envolvidos ainda está viva, e questões como status e prioridade são defendidas com extremo zelo”.27 Paul Wood cita, como exemplos, a guerra verbal na imprensa, declarada por membros do grupo Art & Language em meados da década de 1990 com relação à história de suas atividades na década de 1970 e as acusações de Joseph Kosuth ao historiador Benjamin Buchloh no catálogo da exposição Arte Conceitual, que ocorreu no Centre Georges Pompidou, em Paris, em 1989 – a primeira a considerar a arte conceitual fenômeno histórico –, chamando-o de tendencioso e partidário por tê-lo acusado de mentir sobre sua participação nas origens do movimento. Em busca do significado perdido É claro que toda essa multiplicidade de práticas e idéias muitas vezes antitéticas cria outra fonte de confusão para o público, além das próprias dúvidas e negações intrínsecas às próprias obras conceituais – a quem devemos dar ouvidos: aos artistas ou aos historiadores? Estes últimos poderiam manter sua autoridade diante da crítica que os primeiros fazem de seus critérios de valor? Não são poucos os casos em que eles discordam. Só para citar alguns, a perspectiva de Lucy Lippard é desprezada por Terry Atkinson; Paul Wood narra, na revista Artforum, a condenação veemente de Mel Bochner diante da tentativa de Lucy Lippard de catalogar os desenvolvimentos da arte conceitual, chamando suas análises de arbitrárias, confusas, ato de má-fé que não fazia senão parodiar o que realmente acontecera. Em “Intentions”, Joseph Kosuth se mostra igualmente irritado com a posição dos historiadores da arte em relação à importância da intenção do artista na construção de sentidos da obra – Kosuth os acusa de “um tipo de conspiração, mesmo que não propositada, de destituir politicamente sua atividade
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27 Wood, Paul. Arte conceitual. São Paulo: Cosac & Naify, 2002, p. 6-7.
como artista”. Segundo Kosuth, se sua responsabilidade pelos sentidos criados em sua obra lhe é tirada, o artista vira um mero criador de mercadorias para o mercado, no qual a obra encontrará seu significado com a “ajuda” dos historiadores. Diante dessa situação de disputa, o público poderia reagir positivamente e escutar sua própria opinião, ficando sozinho com a obra, dialogando com ela, tal como defende Leo Steinberg. Em “A arte contemporânea e a situação do seu público”, Steinberg narra sua relação com a obra de Jasper Johns: inicialmente, reconhecendo em si mesmo todos os “clássicos sintomas dos filisteus à arte moderna”, sentiu-se enfurecido com o artista; irritado com seus amigos por fingirem gostar dele (ainda que suspeitasse que eles pudessem estar realmente gostando); e descontente consigo mesmo, “por ser tão burro, e 28 Battcock, Gregory (org.) A nova arte. São Paulo: Perspectiva, 1986, p. 254.
com a situação, por me expor”,28 conta. Porém, em vez de dar-se por satisfeito com essa sensação de frustração, Steinberg conta que a obra permaneceu com ele, trabalhando-o e deprimindo-o. E essa sensação negativa inicial foi-se transformando em uma espécie de sede de solucionar aquele enigma, seguida por inúmeros questionamentos acerca do que ele estava vendo e de que possíveis idéias estariam por trás do que lhe fora oferecido perceptualmente. Steinberg define que a função da arte moderna seria transmitir essa ansiedade ao espectador, de modo que seu encontro com a obra se tornasse um grande problema
29 Id. ibid., p. 260.
existencial. Para ele, a obra de arte “nos perturba com sua agressiva absurdidade”.29 Então, esse diálogo seria marcado por uma espécie de auto-análise que iria para além da busca do sentido do que é apresentado pela obra em si, mas que forçaria, mediante o que Deleuze chama de “violência dos signos”, a busca de conhecimento mais amplo e que passa pela reavaliação de valores, pelo abandono de posições pré-configuradas do espectador. Enfim, há que haver o desejo do espectador de continuar a ser violentado. Podemos pensar essa busca do sentido de uma obra como a busca de uma “verdade”, que se daria por “aprendizado”, para usar as palavras de Gilles Deleuze em sua análise de Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust. Segundo Deleuze, essa verdade nunca é o produto de uma boa vontade prévia, mas o resultado de uma violência sobre o pensamento. As significações explícitas e convencionais nunca são profundas; somente é profundo o sentido, tal como aparece encoberto e implícito num signo exterior (...) a verdade depende de um encontro com alguma coisa que nos força a pensar e
30 Deleuze, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006, p. 15.
procurar o que é verdadeiro.30 O espectador ideal da obra de arte conceitual enquanto signo violento precisa voltar-se, como a obra de Proust, não “para o passado e as descobertas da memória, mas para o
31 Id. ibid., p. 25.
futuro e os progressos do aprendizado”.31 Para que ocorra tal aprendizado, Deleuze defende, assim como Steinberg, que precisamos “vencer certas crenças”, como, por exem-
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plo, o que ele chama de “objetivismo”: pensarmos que o próprio objeto traz o segredo do signo que emite e nos debruçarmos sobre ele – o objeto – a fim de decifrar o signo:
John Baldessari. Composing on a canvas, 1966-8.
Reconhecemos as coisas sem jamais as conhecermos. Confundimos o significado do signo com o seu ser ou o objeto que ele designa. Passamos ao largo dos mais belos encontros, nos esquivando dos imperativos que deles emanam: ao aprofundamento dos encontros, preferimos a facilidade das recognições, e assim que experimentamos o prazer de uma impressão, como o esplendor de um signo, só sabemos dizer ‘ora, ora, ora’, o que vem a dar no mesmo que ‘bravo! bravo! bravo!’, expressões que manifestam nossa homenagem ao objeto.32 É preciso perceber que o “aprendizado do futuro” exigido pelas obras de arte conceituais pode ser informado pelo passado, tomando dele o que for necessário e a ele
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32 Id. ibid., p. 26.
devolvendo uma nova perspectiva sobre si, modificando-o, reescrevendo-o. E para isso, o espectador precisa “aprofundar seus encontros”, entregar-se à ansiedade, às dúvidas, às incertezas, às indagações, deixar-se perder tempo nesses encontros. Assim como a obra de arte conceitual, a relação do espectador com ela deve começar com uma dúvida, e não ter nesta seu fim. A dúvida, porém, não é uma pergunta. Ao olhar para a obra, o 33 Referência à obra de Ian Wilson.
espectador não encontrou resposta, mas certamente, “there was a discussion”,33 e, para a arte conceitual, onde há idéias sobre arte, há arte.
Christiane de Brito Andrei é formada em História da Arte pelo Instituto de Artes da UERJ em 2005, participou como guia e crítica em exposições em instituições como o CCBB, o CCSP e a Galeria Cândido Portinari. Como aluna do instituto, concebeu e ministrou um curso de Arte Contemporânea no Centro Cultural da UERJ e iniciou e publicou uma revista de crítica de arte. Paralelamente, trabalhou como tradutora de textos de arte. Iniciou o mestrado em 2006, concentrando seus estudos na relação entre arte conceitual e o espectador. / christiane.andrei@gmail.com
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Estratégia de arquivo: a arqueologia como método de estudo da especificidade/imprecisa da arte1 Cristina Ribas
A pesquisa é realizada por uma artista que coloca em estado de ‘suspensão’ sua produção artística dedicando-se a dissertar não a partir de um objeto de autoria própria, mas de um arquivo realizado por uma autora alheia: A Arquivista. O objetivo do artigo é acessar esse probjeto por meio de uma arqueologia, investigando o Arquivo de emergência como um contradispositivo artístico e a relação que ele propõe com o campo das artes e o comum. A partir da elaboração crítica dos diversos conceitos engendrados pelo arquivo – documento, evento, estratégia, ruptura, emergência, entre outros –, a investigação considera a especificidade do arquivo em propor uma estrutura de aprendizagem em artes, e a arqueologia fornece as ferramentas de constituição de histórias da arte, influenciando diretamente a escrita da dissertação e orientando um posicionamento político. Arquivo, arqueologia, história. Um arquivo é o começo. Sobre uma mesa estão dispostos muitos textos Arquivo de emergência em exposição na BASE móvel do projeto Arte e esfera pública, Centro Cultural São Paulo, 2008. Ao fundo, parte da biblioteca pública de Graziela Kunsch, que desta vez incluiu uma seleção de livros da biblioteca de Ricardo Rosas (1969-2007). 1 Este artigo foi escrito a partir da dissertação Arquivo/Desarquivo: condições, movimento, monotipia, que está disponível para consulta no site e na Biblioteca da UERJ.
em pastas suspensas, imagens catalogadas a par de um índice de siglas, publicações diversas – todas sobre arte. Diante desse arquivo de participante sou convertida em pesquisadora. Não estou certa de que se trate de uma obra de arte. Trata-se, entretanto, de algum tipo de dispositivo artístico. Estão expostos: o texto “Situação” (apresenta uma série de conceitos do arquivo ou “entradas conceituais” – um estatuto do arquivo); um desenho esquemático do sistema de arquivamento que explica como acessar os “documentos”; e, em grande quantidade, os documentos propriamente ditos, organizados em diferentes grupos: eventos e estratégias arquivados e pré-arquivados, textos, entrevistas, imagens, e demais documentos (revistas, catálogos, livros, impressos, adesivos, entre outros); fichas de acesso rápido aos eventos e estratégias (“fichas-índice”). Intitula-se “Arquivo de emergência: documentação de eventos de ruptura”. A Situação é o texto-estatuto que o institui. Jacques Derrida sugere que um arquivo deve sempre ser seguido de sua “lei” específica, tornando pública a norma do arquivo e sua
2 Derrida, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
finalidade, detalhando sua operatividade e a natureza dos documentos arquivados.2 Nesse caso, o texto em revisão constante “Situação” cumpre as vezes de uma lei, descreve a totalidade que propõe o arquivo e também seus limites (o que está dentro e fora dele). A “lei” do Arquivo de emergência apresenta seus valores e seu repertório conceitual inven-
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tariado pela Arquivista em uma espécie de tradução narrativa dos eventos e estratégias que observa, assim como elabora a capacidade de interagir com seus atores de interesse conferindo ao Arquivo a devida flexibilidade de um contradispositivo. Um parágrafo copiado do texto de apresentação do Arquivo pode servir como breve introdução: O Arquivo de emergência: documentação de eventos de ruptura é um ambiente relacional, de guarda e disposição de suportes de impressão a partir de eventos> e estratégias> selecionados da arte contemporânea brasileira. Os suportes de impressão (documentos>) são em grande parte produzidos por artistas, compreendendo folhetos, imagens, textos, relatos, catálogos, livros, rascunhos, etc. Uma pesquisa-militante> acompanha o arquivamento, com implicações nos processos de constituição do comum e da história. O objetivo do Arquivo, organizado pela Arquivista desde 2005, é permitir a tomada de conhecimento de tais eventos e estratégias, promovendo a circulação da informação no território do Brasil e fora dele e o fortalecimento de redes de colaboração. A Arquivista cria conceitos e disponibiliza ferramentas de concatenação> como sugestão das relações de consignação que podem ser desdenhadas entre tais. O Arquivo confia no espaço-tempo dilatado da pesquisa e na situação pública dos arquivos como possibilidades de constituição de possíveis para as artes e para o comum.3
3 Todos os termos seguidos de “>” são conceitos do Arquivo de emergência.
O Arquivo de emergência não “aparece” no campo da arte visto que a incerteza dele ser um objeto artístico soma-se ao fato de que não se pode sugerir que existe em decorrência de outras ações similares às quais daria “continuidade”. Esse posicionamento não desconsidera a transmissividade das operações artísticas4 e antes assume a existência de sistemas transversais constituintes de (histórias das) artes, na ordem das trocas vivas e das formalizações. A realização deste arquivo pode ser então a investigação das condições da arte hoje.
4 Thierry de Duve prefere pensar o ensino de arte nos termos de “transmissividade”, e não exatamente pela via disciplinar da arte moderna e pré-moderna. De Duve, Thierry. Faire École. Paris: Presse du Réel, 1992.
Ao investigar o Arquivo de emergência optei pela abordagem metodológica com base na arqueologia de Michel Foucault, delineando um método (im)preciso com intenção de atualizar este método. A arqueologia não representa nada além de um instrumento de articulação que quer analisar as regras características das diferentes práticas discursivas.5 A arqueologia é não linear; “recorta-se” com ela uma parte da camada espessa das sedi-
5 Foucault. Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p.232.
mentações sociais – o a priori histórico – e ali mesmo penetram-se suas microestruturas não para remeter a estruturas maiores – relações de hierarquização ou causalidade –, mas para compreender condições de possibilidade particulares. Probjeto O Arquivo foi, na dissertação, meu “probjeto” de pesquisa. Digo “probjeto” em correspondência ao conceito inventado por Hélio Oiticica e Ronaldo Duarte em 1968. Associandome a esse conceito, quero interferir propositivamente na forma de produção do conhecimento ou naquele método científico que reserva uma distância ao objeto pesquisado.6 “Probjeto”, esse “modelo diferencial”:
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6 “Não podemos perder de vista que o pensamento metodológico sempre assumiu, no passado, um certo dualismo entre o ponto de observação e o objeto observado. Porém, hoje parece que não há mais um fora.” Negri, Antonio. Cinco lições sobre Império. Rio de Janeiro: DP&A, 2003, p. 90.
se refere às proposições ‘em aberto’ feita por artistas, que a meu ver são de real interesse: o objeto ou a obra seriam as possibilidades infinitas contidas nas mais diversas proposições da criação humana: a 7 Duarte, Ronald, Oiticica, Hélio. Título do texto. In OBJETO na arte brasileira – Brasil anos 60. Daisy Peccinini (org.) São Paulo: FAAP, 1978, p. 98. 8 Às proposições neoconcretas ao campo da arte associo as teorias do acontecimento contemporâneas que também são essenciais ao desarquivo. Conforme expõe Maurizio Lazzarato, tais teorias “definem e articulam diferentemente as relações sujeito/objeto, sensível/inteligível, natureza/espírito, ao ponto de desfigurá-las visà-vis as teorias do sujeito.” Lazzarato, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, p. 24.
mágica do fluir das idéias, no instante, no ato, no acontecimento.7 Assim também funciona o “objetato”, algo entre a sensibilidade do tato e a afecção provocada pelo material (Duarte e Oiticica).8 Abordar o Arquivo como um probjeto é uma sugestão da forma de produzir conhecimento, permitindo a comfusão do pesquisador com processos ou programas alheios (e não exatamente com um objeto cuja materialidade eu não violaria), tentativa de extrapolar a simples “interação com um objeto” e assumir a co-produção dos sentidos, daquilo de que trata o Arquivo (arte) e das próprias condições de um Arquivo. Com esse posicionamento pode ser se produza uma ativação diferencial a partir das pesquisas acadêmicas e, em meu caso, ao implicar motivações pessoais, essas são amplificadas pelas motivações arquivísticas. A colaboração aparece, de certa forma, no interior do método arqueológico, essencial para essa investigação. Segundo Deleuze [Foucault] mostra que o cerne do debate atual reside não tanto no estruturalismo enquanto tal, na existência ou não de modelos e de realidades a que se dá o nome de estruturas, mas no lugar e estatuto que cabem ao sujeito dentro de dimensões que se supõe não estarem
9 Deleuze, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988, p. 25.
inteiramente estruturadas.9 Ao realizar a pesquisa dos arquivos para o Mestrado, opto na escrita da Dissertação por suspender a análise de um trabalho autoral e no espaço difuso dentro e fora da Universidade torno-me temporariamente uma Arquivista, tal como aquela que conduz o Arquivo de emergência e, seguindo sua requisição colaborativa, contribuo com o corpo de documentos e concatenações iniciado pela arconte primeira. Dessa forma, a Dissertação e os escritos anexos, assim como este texto, amplificam a contribuição teórica sobre os arquivos no campo da arte, somando-se aos demais trabalhos críticos já incorporados ao Arquivo ou indexados por ele. O Arquivo de emergência pode ser consultado até o presente momento em algumas instituições e projetos dedicados à arte contemporânea: Museu de Arte Contemporânea de Pernambuco (2006), Instituto Tomie Ohtake (2006), Galeria de Arte UFF (2007), Projeto
10 A lista atualizada das situações de exposição do Arquivo de emergência pode ser consultada na página http://www.arquivodeemergencia.wordpress.com. Consulta em junho/2008.
Base Móvel/Arte e esfera pública no Centro Cultural São Paulo (2008), entre outros.10 Nos textos escritos pela Arquivista, encarregada de gerenciá-lo, a autora explicita que o Arquivo não é exatamente uma obra de arte, ao que proponho: se o arquivo não é a obra, ali na instituição dedicada às artes, o arquivo ocupa o lugar da obra, mas absolutamente não vem para substituí-la – motivo pelo qual se refaz o ensejo da pesquisa; e sintoma de que as relações entre os ambientes de experimentação criativa, pesquisa em artes, produção de conhecimento e experiência estética estão dinamizadas diferencialmente desde os meados de 1970. Estão, a meu ver, colocados em uma ordem de simultaneidade, sem,
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contudo, se tornar “a mesma coisa”, o que denota o incurso epistemológico dos agenciamentos artísticos contemporâneos. Arquivos visuais
Projeto Interações Florestais – Residência Artística Terra UNA. Ecovila Terra UNA, Liberdade, Minas Gerais. 2008. 12 artistas foram selecionados para produzir em 25 dias de residência na Ecovila.
O que se poderia pensar como “antecedentes”, na dissertação Arquivo/Desarquivo a análise do Arquivo de emergência encampa em investigação de iniciativas similares. Dentre algumas iniciativas pesquisadas para a Dissertação, escolhi para este artigo apresentar parte da análise da produção de Hélio Oiticica (1937-1980) e do grupo Art & Language (formado em 1968). O primeiro, pela construção conceitual intensa de um repertório de ações conduzidas ao participador mais na forma de “montagem” do que de uma “interpretação”. Aponto características especiais: forma de organização dos procedimentos, nominações, classificações, serializações; fazer artístico de referências “tropicalmente” brasileiras e a criação de uma linguagem não linear nem normativa intrínseca ao corpo complexo de sua produção – atravessamento de materialidade e conteúdo (letras em caixa-alta, trabalho gráficotextual, narração e roteirização, crítica histórica e posicionamento). “Newyorkaises / Conglomerado” seria o título da publicação que ele estava preparando, mas que não teve tempo de acabar, dada sua morte prematura no Rio de Janeiro (1980). O conjunto de 16 livros que teria formato enciclopédico – também pela quantidade e forma de organização da informação –, estava sendo concebido a partir da reunião de grande parte de seu material escrito, trabalho que começou quando vivia em Nova York.11
A não-representação e simples apresentação corroboram, por sua vez, de certa forma a proposta de “uso”, de finalidade “funcional” e não “formal” proposta com as “Anotações”
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11 Parte desta produção pode ser encontrada no catálogo Helio Oiticica. Galerie Nationale du Jeu de Paume (Paris), Projeto H.O. (Rio de Janeiro), Witte de With (Rotterdam): 1992. p. 143. E no texto Lagnado, Lisette. “O ‘além da arte’ de Hélio Oiticica”. Em: Trópico (Revista). Fonte: http://p.php.uol.com.br/tropico/html/ textos/2882,1.shl. Publicado em Julho/2007. Consulta em 24/02/2008. p. 2.
do grupo Art & Language. O grupo anglo-americano construiu um arquivo de anotações (cartões escritos) montados na forma de gavetas de arquivo entre 1972 e 1976 apresen12 Atualmente as anotações estão também hospedadas na página da internet da Fundação ZKM (http://blurting-in.zkm.de.), possibilitando a continuidade do processo de leitura/escrita desejado pelo grupo. Consulta em: 10/02/2008.
tando-o com alterações a cada situação de exposição.12 Além de tomar a forma do arquivo como elemento construtivo da proposição discursiva, de forma geral, aposta também na capacitação do espectador para que ele tenha distanciamento e crítica, participando da “porção epistemológica” da fruição artística, destituindo uma possível relação hierárquica entre obra e observador, e capacitando-o a dialogar junto aos demais atores (operação
13 Seu sistema de arquivamento possibilita que o leitor (retirado da posição de observador) produza relações entre as anotações, através de ( ) conjunção ou implicação, e de (&) concatenação ou conjunção ampla. Outros símbolos que podem ser adotados, trazidos em montagens posteriores são (+), indicando a compatibilidade entre anotações, e (-), a incompatibilidade. (T) é a impossibilidade total de relação ou o aspecto transformacional entre um e outro. 14 Anotação 55. Em: Blurting in ZKM. (http://blurting-in.zkm.de.). Consulta em: 10/02/2008.
explícita pelo fato de que o participador poderia, aliás, produzir novas anotações),13 propondo o abandono das posições fixadas – observador, artista, curador, historiador – e a criação de um ambiente de aprendizagem.14 Estratégias A modificação intrínseca da materialidade do objeto de arte, como a teoria do probjeto, insere outras nomenclaturas que ampliam as práticas artísticas. Mas porque denominar “estratégias” algo que no campo da arte poderia ser mais proximamente compreendido por “tática”? Michel de Certeau escreve: Chamo de estratégia o cálculo, (ou manipulação) das relações de força que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações como uma exterioridade de alvos ou ameaças (...). Chamo de tática a ação calculada que é determinada pela ausência de um próprio. Então nenhuma delimitação de fora lhe fornece a condição de autono-
15 De Certeau, Michel. A invenção do cotidiano: 1 artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. p. 99-100.
mia. A tática não tem por lugar senão o do outro (...).15 A proposição da Arquivista, portanto, parece dirigir-se à capacidade das ações artísticas de constituírem formações estáveis (ações contínuas), produzirem políticas para as artes interferindo nas suas condições. O paradoxo causado pela nominação “estratégia” pode ser estendido ao próprio “arquivo”, dinâmica elaborada na forma da “integração” por Michel Foucault como falaremos mais adiante. A estratégia>, no Arquivo de emergência, refere-se àquelas proposições concebidas e geridas por artistas e seus pares, implicadas na produção das condições de atuação de seus eventos>. São, no Arquivo, as formas de agrupamento e construção de sistemas autônomos de ação em arte, em relação direta ou não com o comum. Podem ocorrer conti-
16 No texto “Situação” é possível acessar a definição conceitual completa do termo. A outra classificação proposta pela Arquivista é “eventos”, mais efêmeros do que as estratégias. Os eventos, por sua vez, podem estar inscritos no espaço de acontecimento das estratégias.
nuamente, ou em reincidências, desde que faça parte de seu projeto a permanência como condição de presença.16 Assim as “estratégias” ou “iniciativas” modificam aquela relação anteriormente dual colocada em termos artísticos entre poiesis e aisthesis. Ambos os processos não podem,
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segundo Gilles Deleuze, apud Jacques Rancière, ser ativados por uma “distância que qualifica os processos de produção e fruição”. Deleuze propõe que a potência do dissenso artístico deva ser a potência comunicada à poiesis pela superpotência de uma aisthesis – a potência da diferença ontológica entre elas.17 A razão da formação de uma estratégia é a imersão nas condições de produção do sensível e sua efetuação, e um posicionamento no campo específico da arte. O trânsito é também a raiz de indiscernibilidade pelo fato de
17 Rancière, Jacques. “Será que a arte resiste a alguma coisa?”. In Rizoma.net (Revista). Mônica Costa Netto (trad.) http://www.rizoma.net/ interna.php?id=316&secao=artefato, p. 6.
que é na multiplicidade dos possíveis, no mundo, que se constitui o artístico (experiência sensível distinta das experiências sensíveis ordinárias). Um exemplo é o projeto arquivado “Interações Florestais”, uma residência artística organizada em ambiente rural, no interior do Brasil, por mim e por mais três artistas: Domingos Guimaraens, Flávia Vivacqua e Nadam Guerra.18 Ali propomos o olhar aproximado para condições artísticas de produção somando a isso a experiência de construção de uma ecovila. No “deslocamento” evidenciamos as potencialidades da proposição artística focalizada em ambiente específico, não dicotomizada entre os ambientes urbano e rural. A especificidade da arte não pode ser apreendida na qualificação desses ambientes (urbano
18 Até o momento foram realizadas duas edições da residência. A primeira em fevereiro de 2007 com cinco artistas, e a segunda em fevereiro de 2008 com 16 artistas. O local escolhido é uma ecovila na Serra da Mantiqueira. Na página do projeto podem ser encontradas mais informações: http://www.terrauna.org. br. Consulta em: 10/07/2008.
e rural), mas sim na contextualização e fomento dos espaços de convivialidade em que a produção dos signos pode ser provada pelos sentidos, razão daquela indiscernibilidade significante. Culturalmente, não há então um lugar “certo” assim como não há o “errado”. Por um lado, a vanguarda e suas produções críticas e historiográficas têm por característica, de acordo com Miwon Kwon, pressionar o status quo das instituições e situar a arte em lugares “impróprios” ou “errados”. A prática artística, ela diz, carrega em si a amarra da necessidade e da impossibilidade de modelar novas formas de estar-se no lugar, novas formas de pertencimento. Essa posição, precária e arriscada, talvez não seja o lugar certo para estar, mas é o único lugar de onde podemos encarar os desafios das novas ordens do espaço e tempo.19 Como estratégia> inscrita num campo, o Arquivo de emergência surge para colocar em relação uma quantidade significativa da produção brasileira. Para isso, opera uma “circuncisão” no campo das artes: uma seleção de processos, programas, projetos e realizações em arte que são transportados ao arquivo na forma diferencial possível do “documento” ou na forma da “integração” que pode ser produzida entre dois ambientes: um presencial, temporalizado efêmero – o evento em si –, e outro arquivístico, impresso, de que será feito novo evento. A formação desse Arquivo decorre de uma tomada de posição frente às condições de realização da arte na atualidade, não exatamente voltadas ao centralismo de uma instituição artística – que se descobre inexistente por fora das formalizações discursivas, históricas e normativas (assim seriam o livro, a universidade, o museu, a galeria de arte e também seus atores nas formas subjetivadas: o artista, o historiador, o crítico de arte, o patrocinador). O ímpeto de dissecar essas “instituições” é ativado por Michel Foucault, que segundo Deleuze quer “rachar as coisas, quebrá-las”. Ele questiona
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19 Kwon, Miwon. “O lugar errado”. In Urbânia 3 (Revista). São Paulo: Editora Pressa, 2008. p. 158. (grifos meus)
Arquivo de emergência em exposição no Projeto Arte Esfera Pública – Base Móvel, Centro Cultural São Paulo, São Paulo, 2008. 20 Deleuze, 1988, op. cit., p. 62.
o princípio de cada “unidade”: ciência, obra, livro, teoria, conceito, texto, como se quisesse começar tudo de novo.20 A permanência insolúvel de uma instituição “do lado de fora” poderia sustentar a contrariedade ou a submissão, e ainda aquele velho paradoxo da institucionalização ou da exclusão a ela. Campo de forças As ações em arte que interessa arquivar ocorrem pela forma imanente das relações que constituem um campo de trocas em que operam elementos atores de forças. Foucault cria a imagem de campo de forças como um diagrama possível de relações de poder. Nele, uma força nunca é singular e existe apenas em relação com outras forças; por isso essa imagem se torna cara ao definir conceitualmente um “campo das artes”. Contudo, as relações de poder não podem ser “conhecidas” porque a tentativa de sistematizá-las será uma diferença (o poder passa por pontos), ou uma “integração” dada a partir e sem nunca reduzir totalmente (há uma irredutibilidade do poder ao saber; o saber passa
21 Id., ibid., p. 76-78.
por formas).21 Um exercício de poder aparece como afeto, já que a própria força se define por seu poder de afetar outras forças (com as quais ela está em relação) e de ser afetada por outras forças. Incitar, suscitar, produzir (ou todos os termos de listas análogas) constituem afetos ativos, e ser incitado, suscitado, determinado a produzir, ter um efeito ‘útil’, afetos reativos (...) Cada força implica relações de poder; e todo campo de forças reparte as forças em função dessas relações e de suas
22 Id., ibid., p. 79.
variações.22
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As formas de “integração” ou as formações do saber em relação às linhas de força ou ao poder, associo às consignações campo-sistema e campo-arquivo. A multiplicidade de um campo das artes de certa forma inviabiliza a circunscrição de um sistema que seja total, ou seja, que dê conta das diversas formas associativas entre os elementos, ao que a arqueologia amplamente vem contribuir, e assim também o arquivo na sua formação discursiva, pendular entre a materialidade e a imaterialidade de discursos e documentos. Campo-sistema Para expor um campo no qual os vetores são a própria singularidade das operações artísticas, apontei algumas características a partir dos eventos> documentados no Arquivo: caráter de associação entre artistas; efemeridade e precariedade formal das ações, ou o desinteresse de produção de uma obra estável material ou temporalmente; estabelecimento de relações de exterioridade ou imersão em um “campo de forças” urbano (re)ativo a questões comuns; e, inevitavelmente, a investigação do(s) estatuto(s) do artístico na atualidade, daquela indiscernibilidade na qual caem os agenciamentos artísticos com o fim do “regime estético” moderno das artes.23 As estratégias> e os eventos> decorrem de condições de mundo que não se pode resumir em linhas gerais nem pontuar como sendo
23 Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo: Exo. Experimental/Editora 34, 2005.
exclusivamente brasileiras. São estruturantes dos espaços de troca e produção de valor, inseridos em um sistema econômico que se impõe e interage diretamente com o campo de significação artístico, através de ferramentas de captura e controle de sentido. A forma do arquivo e a constituição de um sistema lógico seria, portando, uma articulação diferencial que ocorre na medida de uma “integração”, sempre parcial, sempre contextualizada a partir do “vivo”. A ruptura> torna-se uma ferramenta no campo de forças e, segundo a Arquivista, caracteriza os eventos selecionados (“documentação de eventos de ruptura”). Elemento igualmente essencial para a compreensão da ousadia e da forma de interação proposta pelo Arquivo de emergência, tornando claro o decurso de compreender o campo da arte a partir das relações que o constituem considerando a multiplicidade das manifestações, consiste nas desestabilizações ou rachaduras nos sistemas, historiografias, disciplinas e afins. O Arquivo toma em consideração a potencialidade das ações arquivadas ao infringirem a imagem de um sistema estável. A “composição” de pontos de força cria um valor da força (Foucault), em que compor no espaço-tempo significa “constituir uma força produtiva cujo efeito deve ser superior à soma das forças elementares que a compõem”.24 Com isso, atualizar a pesquisa que propõe
24 Deleuze, 1988, op. cit.
a Arquivista não se trata de normatizar para as individualidades ou grupos o que é ou não arte (trata-se de uma ruptura extra-subjetiva), mas de ativar arranjos que conduzem condições públicas para o acontecimento da arte, seja pela partilha ou pelo conflito de concepções e práticas – procedimento que atravessa as pontuações entre o campo de forças (poder) e o saber (a formação histórica). Em consonância, tanto no âmbito da prática artística como no do método arqueológico, teóricos atuais têm proposto a contextualização como um arranjo possível.25
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25 Miwon Kwon e o debate sobre site-specific como exemplo. No Brasil as referências são Ana Maria Tavares, Jorge Menna Barreto e Raquel Garbelotti.
Método arqueológico A sugestão da Arquivista, em consonância com a contextualização e a especificidade, é a construção de histórias da arte que atuam no presente em colaboração com outras práticas e o comum. O comum é para Antonio Negri a afirmação de que por trás ou para além das identidades e das diferenças existe algo comum – proliferação de atividades criativas, 26 Negri, op. cit., p. 148.
relações ou formas associativas diferentes. O comum é incapturável na sua totalidade.26 Anteriormente, conforme enuncia Hans Belting com o “fim da história da arte” detec-
27 Belting, Hans. O fim da história da arte: uma revisão 10 anos depois. São Paulo: Cosac Naify, 2006. 28 Negri, op. cit., p. 55-56.
tável no século XIX,27 junto com outros historiadores críticos, persistiam um método de causalidade determinista e uma teleologia histórica que são amplamente criticados e desmitificados.28 A instituição do devir vem então apresentar a impossibilidade de fixar ou antever fenômenos históricos (que poderiam ser cíclicos), abrindo a perspectiva de falhas e a capacidade de percepção de novos acontecimentos. A história da arte, ameaçada de ter acabado (e não a arte), tem no arquivo um recomeço que multiplica linhas de forças, na tentativa de constituir uma rede de comunicação e aprendizagem. Ao aportar a modificação constante, aposta no risco de historicizar muitas ações que emergem no intuito de desaparecer, e bem por isso são essenciais a um campo: elas mantêm a heteronomia do artístico, inclusive por não deixar nenhum vestígio. O arquivo ou o documento, contudo, não substituem a obra de arte efêmera. Se antes a história produzia documentos a partir dos monumentos, de forma a “memorizá-los”, transforma-se essa relação em seu inverso: a história é o que transforma os documentos em monumentos, e a arqueologia, que lhe conferia um “discurso histórico”, passa
29 Foucault, op. cit., p. 8.
a contaminar a história – torna-se “descrição intrínseca do monumento”29 retirando o intermédio do documento. No Arquivo de emergência os documentos reaparecem de outra forma, no intuito de produzir um olhar aproximado ao acontecido, ao fato em si, e não tanto de inserir o evento em uma supernarrativa (nem alegórica, nem mitológica). Assim também são os textos da Arquivista (o desarquivo textual>), com os quais ela apresenta criticamente os eventos e estratégias nas fichas-índice>.
30 Texto “Situação”, op. cit. 31 A noção de contradispositivo é elaborada na dissertação. O arquivo (em geral) poderia ser um “dispositivo” porque é em si um começo (Derrida), raiz explícita em arché, o mesmo que “comando”. O termo “dispositivo” tem, para Foucault, uma amplitude: capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes – atua, portanto, em contrapartida a um poder. Agamben propõe situar os dispositivos em um novo contexto, “profaná-los”, instituindo um “contradispositivo”. Agamben, Giorgio. “O que é um dispositivo?” Outra travessia, n.5. Revista do Curso de Pós-Graduação em Literatura. Ilha de Santa Catarina, semestre de 2005, p. 9-16.
O Arquivo de emergência pretende flexibilizar o local de produção de possíveis historiografias, trazendo os documentos>, a escrita e o registro (e demais conceitos derivados) para o lugar instável e produtivo da criação, a partir de onde os signos e os atributos destas formalizações são (re)criados por cada participante.30 Ao que adiciono, a partir de meu envolvimento com o Arquivo que, para que tenha uma lei flexível, o Arquivo deve trabalhar deslocando o valor de uso dos documentos de suas diversas origens semânticas para um lugar crítico onde possam ser moldados, restituídos e, quando necessário destituídos. A Arquivista escreve sobre as fichas-índice>: “estas fichas podem ter seu conteúdo alterado, revisado, rasurado, ou ser excluídas a qualquer momento. Assim como todo o arquivo.”31
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Desarquivo e história Na escrita da Dissertação excedo o Arquivo de sua materialidade, irrompendo a consignação de seus materiais. Na pesquisa surge o termo que intitula a operação de consignação e criação do corpo de textos produzidos: desarquivo. A pesquisa constitui um sentido – o desarquivamento é um devir. Na dispersão dos documentos, cabe ali a noção de “montagem”, anteriormente exposta na obra de Oiticica e Art & Language. A montagem amplia a própria noção de “história” para aquelas produções discursivas aliadas à prática da arte, fruto da investigação epistemológica do fato artístico: leituras críticas, estudos, relações entre agenciamentos, estratégias, eventos, artistas e seus pares. O fim da causalidade histórica, característica do método histórico até meados do século XIX e onde se produzem novos atores, liberta da visão histórica cíclica ou dialética (a dominação e a resistência como dialógicas, por exemplo) e, tal como uma arqueologia, permite ver os eventos em seu próprio lugar, sem os aprisionar em um dispositivo préformado. O cuidado na forma de historicização do evento é apresentado por Giuseppe Cocco: enquanto que a pós-modernidade pretende explicar o presente a partir do passado, e ao invés de elucidar o passado pelas instâncias do presente, acaba por reduzi-lo ao último elemento de uma genérica tendência evolutiva.32 A história – que tem futuro como destino – não pode, segundo Negri, tentar “aprisionar
32 Cocco. Giuseppe. Lugar comum, n. 1 Revista da Pós-Graduação da Escola de Comunicação da UFRJ, Rio de Janeiro, março, 1997, p. 30-39.
o tempo futuro”, contribuição intrínseca aos arquivos. A história contemporânea, por sua vez, passa a lidar com a perda e o precário (talvez este seja seu crivo reincidente – respigar, recuperar, nomear e concatenar), desafio concedido também aos demais agenciamentos em torno das ações artísticas. Com a arqueologia Foucault não quer sugerir uma ciência normativa, quer instalar um dispositivo capaz de fazer compreender as aparições, as rupturas, potencializando a atuação nas falhas. Propõe uma história que não seria escansão, mas devir; que não seria jogo de relações, mas dinamismo interno; que não seria sistema, mas árduo trabalho da liberdade; que não seria forma, mas esforço incessante de uma consciência em se recompor e em tentar readquirir o domínio de si própria, até as profundezas de suas condições, uma história que seria, ao mesmo tempo, longa paciência ininterrupta e vivacidade de um movimento que acabasse por romper todos os limites.33 O desarquivo surge como a profanação do arquivo, feito do desafio de fazer dessa teorização um instrumento de implicação na realidade circundante considerando os laços constitutivos singulares que caracterizam um campo das artes. Não se trata de uma “história da arte” única, mas de especificidades que poderão ser apontadas livres de pré-formação.
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33 Foucault, op. cit., p. 15.
O que se propõe como tarefa para a arte (e para o arquivo) não é determinar dentro das linhas de singularidade – inscrevendo um sistema em geral –, mas, considerando natureza das ações, imprimir as discursividades capazes de infringir o comum, em que a arte é distendida ao encontro com a exterioridade significante. Não se reduz a arte ao arquivo; antes, ele se torna um agenciamento múltiplo, informe, capaz de moldar-se à razão estranha da indiscernibilidade e constituir uma estratégia sensível de afecção artística.
Referências bibliográficas HOME, Stewart. Assalto à cultura: utopia, subversão guerrilha na (anti)arte do século XX. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 1999. VIRNO, Paolo. Virtuosismo e revolução. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
Cristina Ribas é mestre em Artes Visuais pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais, UERJ, Rio de Janeiro (2008). Graduou-se em Artes Plásticas, UFRGS, Porto Alegre (2004). Desenvolve junto com A Arquivista a pesquisa militante Arquivo de emergência: documentação de eventos de ruptura. Faz parte do Grupo Laranjas (desde 2001, coletivo In situ). Concebeu o projeto Interações Florestais – Residência Artística Terra UNA junto a outros artistas. Trabalhou com movimentos sociais e ambientais diretamente na organização de Fóruns Sociais Mundiais entre 2000 e 2005. Na área das artes, recebeu prêmio das instituições: Chave Mestra (2006), Fundarpe (2005), Museu de Arte da Pampulha (2003). Integra e realiza exposições individuais e coletivas, e participa de mostras de vídeo e cinema desde 2001. Escreve regularmente sobre arte contemporânea brasileira. / apartamento13@yahoo.com.br
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Questões entre arte e linguagem: pensando uma fotografia performática Elena O´Neill
Considerar a fotografia ato, atividade concreta, implica posicionamento e intervenção no real plausíveis de afetar diversos níveis da experiência humana. Partindo da fotografia como apropriação alquímica da perspectiva renascentista e como representação, por um lado, e da noção de performativo de Austin, por outro, tenta-se estabelecer uma relação entre a estrutura da linguagem e a arte, visando definir o conceito de fotografia como ação. Acontecimento, espaço, ficção. Em Le photographique,1 no capítulo referente aos espaços discursivos 1 Kauss, Rosalind. Le photographique. Pour une theorie des écarts. Paris: Éditions Macula, 1990.
da fotografia, Rosalind Krauss utiliza o termo vista e destaca seu uso nas revistas de fotografia, exposições e salões em 1860. Seguindo Krauss, os fotógrafos se inclinavam por essa noção como categoria descritiva de seus trabalhos, no lugar de paisagem. A palavra vista, porém, remete tanto a uma aparente não-mediação de um indivíduo que faz um registro quanto ao isolamento do objeto como fenômeno singular. Portanto, essas vistas podem ser entendidas como tentativa de produzir a ilusão de que a subjetividade do artista é uma manifestação objetiva da natureza. Além disso, as características perceptivas das vistas (profundidade e nitidez excessivas) indicam ruptura com o contexto em que foram feitas, sendo postas simplesmente como constatação ou descrição das formas externas quando, de fato, são construção. Uma vista não é apenas uma reprodução fotográfica. Nesse sentido é importante ter presente a noção de dispositivo utilizada por Giorgio
2 Agamben, Giorgio. “Que es un dispositivo?” Disponível no site www.libertaddepalabra.tripod.com/id11.html
Agamben:2 qualquer coisa que de algum modo tenha a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar gestos, condutas, opiniões e discursos dos seres viventes. Por outro lado, as imagens fotográficas são imagens tornadas visíveis mediante o uso do aparelho fotográfico e consideradas registros “realistas”. Esse aparelho fotográfico, entretanto, foi concebido segundo a noção convencional de espaço herdada da perspectiva monocular clássica, imposta na Europa desde o Quattrocento. A construção perspectiva transforma o espaço psicofisiológico em espaço matemático, limitando-o, tornando-o finito e encerrando-o. A construção perspectiva desconsidera o fato de que olhamos com dois olhos em constante movimento e não com apenas um olho fixo, que esses olhos se deslocam no tempo e no espaço e que, na retina, as imagens são
László Moholy-Nagy. Fotograma, 1922.
projetadas em superfície côncava e não sobre superfície plana. A construção perspectiva
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apaga a tensão entre forma (como condensação de uma experiência) e objeto, tensão que pode ser entendida como suspensão dos processos psicológicos, do poder do olhar, do desejo e da memória. A perspectiva é a expressão de uma determinada intuição do espaço e é significativa uma vez que diferentes épocas se valem de tipos de perspectivas diferentes. Entendendo que erros de perspectiva ou ausência de construção perspectiva são independentes do valor artístico, é possível afirmar que a observação estrita das leis da perspectiva não compromete em nada a liberdade artística. O espaço teórico da perspectiva renascentista, ainda que submetendo a percepção às leis matemáticas, não é o espaço da percepção e da experiência: “é apenas um caso particular, uma data, um momento numa informação poética do mundo que continua depois dela”.3
3 Merleau-Ponty, Maurice. O olho e o espírito [Ed. Gallimard, 1964]. São Paulo: Cosac&Naify, 2004, p. 30.
Com a perspectiva, o espaço psicofisiológico deixou de ser experiência espacial vivida (atividade que pressupõe ação, relação e interação) para ser espaço mensurável, restrito à visibilidade. Mediante a perspectiva realizou-se o desejo de conquista, de domesticação do espaço. Quando a profundidade, a terceira dimensão do espaço relacionada com o movimento, foi reduzida à distância, esta se converteu em projeção num plano de fundo em que não eram necessários movimento ocular nem observador ativo. O espaço tornou-se homogêneo, unitário; uma convenção que atrofiou tanto o aspecto irracional da experiência como a tentativa de ordenar e configurar a realidade na consciência. “O ato de olhar era sinônimo de atividade racional e razoável, e a arte tornou-se meio a serviço da ordem, o que envolve o rechaço pejorativo de todas as camadas inquietantes ou ativas fora do domínio da razão”.4 A discrepância entre realidade e construção perspectiva correlaciona-se com a que existe entre realidade e imagens obtidas mediante um aparelho fotográfico. Considero importante ter presente a idéia de que a imagem fotográfica é uma representação. A racionalização e domesticação do espaço que teve lugar no Renascimento estão na base do funciona-
4 “L´acte de voir était désormais comme la pensée synonyme d´une activité rationelle et raisonable, et l´art devint un moyen au service de l´ordre, ce qui entraîna le rejet méprisant de toutes les strates inquiétantes ou actives hors du domaine de la raison.” Einstein, Carl [1934]. Georges Braque. Bruxelas: Éditions La Part de l´Oeil, 2003, p. 71. (Tradução da autora).
mento do aparelho fotográfico e, portanto, também nas imagens fotográficas. Em conseqüência, o espaço representado nas imagens fotográficas está em tensão com a definição de espaço do dicionário crítico de Georges Bataille.5 Para ele, o espaço não é plausível de ser encerrado: é o lócus do acontecimento, sendo difícil enumerar o que ele engendra. É
5 Bataille, Georges [1929-31]. Dictionaire Critique. In Documents. Paris: Ed. Gallimard, 1968.
noção bem diferente da noção de espaço dos filósofos, que segundo Bataille mapearam o comportamento do espaço em todas as circunstâncias; porém, como esse autor assinala, o espaço psicofisiológico ficou marginal a esse mapeamento. Segundo Merleau-Ponty,6 o espaço não é uma rede de relações entre objetos. O mundo não é um espaço encerrado do qual só vemos o invólucro, nem o vemos assumindo o lugar do carcereiro que olha, mas não pode ser visto. Pelo contrário, o corpo não é mais o meio da visão mas seu depositário, é o grau zero da espacialidade; o corpo vive o espaço por dentro, aceita a desorientação sem a distância do domínio reflexivo da perspectiva.
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6 Merleau-Ponty, op. cit.
7 Einstein, op. cit.
Segundo Carl Einstein,7 o espaço é a síntese dos movimentos corporais e das representações do movimento, do qual os objetos são os sintomas variáveis. Em outras palavras, na arte, é a partir do espaço vivenciado que chegamos ao objeto que, segundo Einstein, se manifesta em ressonância com a experiência vivida, que inclui tanto o inconsciente quanto a visão. O desafio é como trasladar essa multiplicidade funcional para a superfície plana da fotografia sem a reduzir, mantendo a superioridade plástica do homem vivo em relação à redução no plano. Formulando mais claramente a questão: como olhar para uma fotografia sem a fixar, sem a tornar uma imagem acabada? Como modificar e reestruturar o ato de olhar, não restrito à dimensão puramente óptica nem suporte de convenções ópticas, em que a visão é uma fase do real? Como escapar da armadilha de favorecer essa suposta superfície plana da imagem fotográfica em detrimento de uma segunda realidade, na qual se entrelaçam milhões de experiências extra-ópticas e cujo objetivo não é a forma morfológica, mas a ação? Como restaurar toda a força do acontecimento, em que a estabilidade da imagem fixada representa só um extremo da experiência vivida, para restabelecer a dimensão espacial da experiência inerente ao homem ativo, em movimento?
8 Para uma apresentação de Carl Einstein, ver o artigo de Roberto Conduru, Uma crítica sem plumas – a propósito de Negerplastik de Carl Einstein. In Concinnitas. Rio de Janeiro, n. 12, 2008, p. 157-162.
Carl Einstein,8 fundador com Georges Bataille da revista Documents, em 1929, faz a distinção entre arte como tentativa de ordenar uma visão já dada do mundo e a arte que, segundo ele, representa um meio de tornar visível a dimensão poética, um meio de acrescentar concretamente a quantidade de figuras e aumentar a desordem, um meio de reforçar o caráter absurdo e inexplicável da existência. Assim destacamos o valor do que não é conhecido, que não é ainda visível. Não reproduzimos a existência, mas a formamos. Isso
9 “(...) l´art représente avant tout un moyen de rendre visible la dimension poétique, un moyen d´accroître au sein du concret la quantité des figures et le desordre et ainsi un moyen de renforcer le caractère absurde et inexplicable de l´existence. En cela nous soulignons la valeur de ce qui est encore inconnue, ce qui n´est pas encore visible. On ne reproduit plus l´existence, mais on la forme. Cela veut dire qu’on introduit sans cesse de nouveaux mythes dans le réel.” Einstein, op. cit., p. 138. (Tradução e grifo da autora). 10 Belting, Hans [c. 1995]. O fim da história da arte. São Paulo: Cosac&Naify, 2006.
quer dizer que incessantemente introduzimos novos mitos no real.9 Hans Belting10 também entende a arte como imagem de um acontecimento. Desdobrando esses entendimentos, é possível afirmar que, para dizer alguma coisa sobre arte, entendida como substantivo, é preciso transformá-la em verbo: ação, movimento, irrupção, operação, dinamismo; capacidade do artista de dar forma e alterar a realidade; capacidade de estimular atos mediante os quais a obra se traduz para a consciência do observador; disposição de aceitar uma experiência que é estranha. Ação que se dirige menos a satisfazer o observador com sentimentos agradáveis para serem consumidos como diversão e mais a afastá-lo das condições em que vive mediante o pensamento, tornando-o lócus de um turbilhão de forças. Ação impulsionada pela obra, intrínseca na formação de uma realidade estética que questiona convicções, desmaterializa pontos fixos, dissolve os a priori e aprofunda níveis de percepção; uma realidade estética na qual se estabelece uma relação recíproca entre objetos e seres. Ação subjetiva que produz um momento de gozo e plenitude, constitutiva do real.
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Artear, arte entendida como verbo, é confrontar-se com a interrupção do fluxo de pensamento e habitar esse intervalo no qual o que pensamos se detém de forma súbita e parece não ter ligação com o que percebemos. Perplexidade despertada frente à obra, o intervalo é um abismo que se torna obstáculo a ser superado. Um modo de lidar com esse abismo é habitar esse espaço-tempo como se esculpíssemos o silêncio; deixar que, por exemplo, uma melodia se desenvolva não como sucessão de notas, mas como relações entre os momentos de silêncio, de onde deriva uma sensação temporal diferente que se torna espaço do imaginário. A obra (talvez inteligência da obra fosse expressão mais adequada) teria a função de guia, de instrumento de orientação, quase como um mapa. A obra seria tênue indício de um acontecimento a recuperar ou a inventar; o observador seria um observador móvel e ativo, embora isso implique passividade ativa, que consistiria em deter-se, avaliar, observar atentamente, examinar, sondar, abrir-se a um silêncio interno para que as imagens reverberem. Assim, se estabeleceriam as condições para que talvez uma experiência pudesse acontecer – pois, ainda que esteja materialmente na obra, o acontecimento pode não ser imediatamente visível. Nossa experiência diante de um objeto artístico está impregnada de nossa bagagem cultural, repertório que, por sua vez, constrói pacientemente uma relação tanto física quanto mental, intelectual e emotiva com a arte. A experiência artística é o entrecruzamento dos estratos de experiência vivida; radicada na percepção, embora oculta pelo cotidiano
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Gordon Matta-Clark. Circus – Caribbean Orange, Cibachrome, 50,8 x 101,6cm, 1978.
e pelo modo de produção mecânico e capitalista. A experiência artística é sempre contemporânea, depende da vivência e do pensamento, da consciência e do inconsciente, do imaginário e do real. Não se limita ao que vemos, não é uma visão do mundo: precisa que nos envolvamos, que estejamos dentro. Precisa da linguagem, que não é só fala e escrita; é também método, uma forma de pensar, uma forma de conformar uma experiência. Sendo habitual comunicar as experiências por meio da fala, também enfrentamos a dificuldade de expressá-las por esse meio, percebendo que talvez essa forma de expressão possa estar limitando nossa percepção, muitas vezes devido ao uso mecânico das palavras. O risco seria acostumar a mente à versão falada da experiência, o que limitaria a imaginação: capacidade de formar imagens originais, faculdade de criar a partir da combinação de idéias desafiando convenções coletivas e hábitos individuais. A experiência da arte, porem, está vinculada a uma fala, a um esforço verbal de compre11 Benjamin, Walter[1934]. O Autor como Produtor. Obras Escolhidas. Magia e técnica, Arte e Política. São Paulo: Editora Brasiliense, 1996, p. 131.
ensão; lidar com esse esforço é não se esquivar ao que Benjamin11 chama de a “a tarefa mais urgente do escritor moderno: chegar à consciência de quão pobre ele é e de quanto precisa ser pobre para poder começar de novo”. Nesse artigo, assim como em Experiência e pobreza, de 1933, Benjamin afirma que a missão do escritor Serguei Tretaikov “não é relatar, mas combater; não ser espectador, mas participante ativo”, e que Tretiakov distingue entre o escritor que informa e aquele que opera. Portanto, no esforço verbal de compreensão vinculado à experiência da arte, assim como na noção de arte como verbo, também se pode distinguir entre a fala que opera e a fala que informa. Em conseqüência, devemos intensificar as forças físicas, emocionais e intelectuais quando essa compreensão está ‘bloqueada’ para poder enfrentar um abismo maleável e ativar aquilo ainda invisível que contribui para a formação do real. Enfrentar o conflito entre imagem e linguagem, tendo presente que “a estrutura da linguagem é tal, que quebra o poder sincrônico da
12 “As for the pedantic method that consists of pictorial description, we wish to point out that the structure of language is such that it breaks up the synchronic power of the picture and that the heterogeneity of words destroys the overall impression.” Einstein, Carl [Documents 1, n.3, 1929]. Notes cubism. In October, 107. Cambridge: The MIT Press, 2004, p. 160. (Tradução da autora).
figura e que a heterogeneidade das palavras destrói a impressão totalizante”.12 *** A noção de que a fotografia é uma representação do mundo supõe, no entanto, o abandono da crença ingênua do registro como espelho do real. Desistir dessa idéia é deixar de lado a questão da verdade ou falsidade do registro, deslocando-a para a questão da ficção, que leva à construção da realidade. Pensar a fotografia como ficção e não como oposição à verdade permite entender a ficção como conector entre sujeito e realidade, organizando as experiências vividas, em que a imagem é apenas uma das dimensões. Uma abordagem pragmática da ficção permitiria nos concentrar na relação entre signos e interpretante, por conseguinte na posição de receptor e não na natureza da narrativa.
13 Iser, Wolfgang [1976]. O Ato da Leitura. Uma Teoria do Efeito Estético. V.1 e 2. São Paulo: Editora 34, 1996.
Segundo Wolfgang Iser,13 o discurso ficcional se vale da estratégia do texto para produzir as orientações que originaram essa seleção de convenções. Para ele, o texto ficcional ganha força quando as expectativas não são satisfeitas e a atenção é ativada, orientando
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a forma de acesso e conduzindo o receptor a reagir. Para fazer uma análise pragmática dos textos ficcionais, Iser usa o modelo dos atos de fala descrito por Austin.14 “Os atos de fala são unidades comunicativas da fala, que transformam as frases em frases situadas e, assim, em enunciações verbais que ganham seu sentido pelo uso.”15
14 Austin, John L. [1962]. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990. 15 Iser, op. cit., vol. 1, p. 104.
Austin propõe a revalorização da linguagem ordinária frente às linguagens filosóficas e científicas. Considera a linguagem ordinária atividade social em vez de forma de avaliar se as proposições são verdadeiras ou falsas. Defende a tese de que a linguagem que utilizamos na comunicação ordinária é ferramenta que o tempo tem lapidado até fazer dela utensílio perfeitamente adaptado aos fins que serve, apesar de suas imprevisões estruturais. A linguagem incorpora a experiência e a agudeza herdadas de muitas gerações. A descrição de um estado de coisas e a transmissão de uma informação não são as únicas funções da linguagem: um enunciado pode ser também parte importante do cumprimento de uma ação. Esse caráter de ação, e não de descrição, dá propriedades especiais aos enunciados, e Austin os define como enunciados performativos. Eles se caracterizam por ser expressões que nada descrevem ou registram e por não ser nem verdadeiras, nem falsas. O próprio ato de expressar a oração é uma ação, ou parte dela, ação que não seria normalmente descrita como dizer algo. No entanto, expressar as palavras não é o único elemento necessário para que o ato se realize. Genericamente falando, é sempre necessário que as circunstâncias em que as palavras forem proferidas sejam, de algum modo, apropriadas; freqüentemente é necessário que o próprio falante, ou outras pessoas, também realize determinadas ações de certo tipo, quer sejam ações “físicas” ou “mentais”, ou mesmo o proferimento de algumas palavras adicionais.16
16 Austin, op. cit., p. 26.
Portanto, os atos de fala não são apenas ações físicas: incluem também atos mentais, atos-pensamento, o delírio e o acontecimento.17 Considerar a linguagem ordinária atividade social permite fazer uma analogia entre a linguagem e as imagens. Segundo Argan,18 a imagem desgastada, consumida, recitada pela milésima vez e deformada pelo hábito ou pela desenvoltura com que é adaptada às mais diversas ocasiões muitas vezes é bem mais eloqüente, para o historiador da imagem, do que a versão douta, depurada, controlada nas fontes, fixada com a estrutura lúcida de um sistema formal. A imagem desacreditada, às vezes contaminada por associações ou combinações ingênuas, às vezes por confusões banais, por assonância, com outras imagens latentes na memória, é o documento de uma cultura de imagem difusa, um ‘significante’ ao qual podem-se atribuir, como às palavras da linguagem falada, diversos significados.
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17 As palavras delírio e alucinação são utilizadas no sentido de Carl Einstein: designam atividade tanto subjetiva quanto objetiva, como forma de acessar as camadas mais inconscientes. Elas não têm nenhuma conotação patológica. 18 Argan, Giulio Carlo [1984]. História da arte como história da cidade. São Paulo: Editora Martin Fontes, 2005, p. 53.
Se considerarmos que a história de uma palavra é simultaneamente história de uma cultura e configuração de um problema específico, também podemos pensar a imagem 19 “Si l´on considere la fonction qu’il assignait à l´image comme organe de la mémoire sociale et engramme des tensions spirituelles d´une culture, on comprend ce qu’il voulait dire par là: son ‘atlas’ était une sorte de gigantesque condensateur recueillant tous les courants énergétiques qui avaient animé et animaient encore la mémoire de l´Europe en prenant corps dans ses ‘fantasmes’.” Agamben, Giorgio. Aby Warburg et la science sans nomme. In Image et Memoire – Art et Esthétique. Paris: Koëbeke, 1978, p. 26. (Tradução da autora).
“como órgão da memória social e engramme das tensões espirituais de uma cultura”.19 Assim, Agamben aproxima “a problemática da arte da problemática das estruturas lingüísticas”. Para Warburg, as soluções formais dos artistas são decisões éticas que definem a posição dos indivíduos de uma época a respeito da herança cultural, sendo a transmissão e sobrevida das imagens a questão central. Para Warburg as imagens são um turbilhão que funciona como caixa de ressonância na qual a carga emotiva é indissolúvel da forma, entendida como memória inconsciente, e cujo poder simbólico aparece tanto na literatura como nas artes visuais. A função da ficção é transmitir uma realidade que ela mesma organiza, e possui capacidade comunicativa porque não é igual ao mundo nem ao repertório relativo do receptor.
20 Iser, op. cit.
Segundo Iser,20 o acesso à realidade se dá através da percepção, que demanda a preexistência de um objeto, e da representação, cuja característica é referir-se a algo não dado ou ausente. No caso da ficção, Iser afirma que precisamos criar representações, porque o texto se limita a dar informações de como o objeto imaginário deve ser constituído. A representação estimula a imaginação e ganha um repertório de imagens na tentativa de representar algo que não pode ser visto como tal. A representação seria a combinação não formulada de dados oferecidos, e não a experiência enquanto tal. Entretanto, também se pode pensar a linguagem como transgressão à estabilidade, tentando não restringir a referência a outras palavras nem circunscrever o significado a algo fixo; uma linguagem que tenta redescobrir a energia poética que permite que a escrita atue sobre a linguagem, em que a palavra é o lócus do evento e não meio para expressar
21 Entender a palavra unicamente como meio de expressar um significado é reduzir a palavra à intencionalidade, à estabilidade; entender a palavra como lócus da experiência permite incluir a intensidade e enfrentar-nos à impossibilidade de comunicar uma experiência. 22 Bataille, Georges [1945]. Le Coupable. Oeuvres Complètes. Tome V. Paris: Éd. Gallimard, 1973.
um significado.21 Para Bataille,22 a escrita nunca é mais do que um jogo, luta com uma realidade inapreensível. Escrever sobre algo é fazer o possível para apreender essa realidade, para dar forma a essa realidade; é uma prática que subverte uma idéia, um lugar que molda a matéria, que tem ação performativa sobre tudo o que a habita; a escrita não é um simples contêiner. Assim, se poderia entender o “texto” como guia que leva a ultrapassar os limites da racionalidade, até onde o pensamento se torna palco de infinitas identidades e transformações e se enfrenta o abismo da descontinuidade, da alteridade, da intensidade desprovida de intenção. Se entendermos a fotografia como duplicação do real, esta teria a função que Carl Einstein atribuía à arte: estabilizar e compensar a ansiedade causada pelo fluxo vital e a morte. Segundo Einstein, as obras de arte são agentes ativos de ordens do passado que continuam a estruturar nossa experiência do mundo. Para ele, que defendia uma arte direcionada contra a ordem visual existente, o cubismo parecia ter potencial para desintegrar essa ordem e ser o signo de um ser humano visualmente ativo. Embora não tenha escrito sobre a fotografia, ele centrou sua teoria da arte na noção de reprodução em seu aspecto negativo. Pensar a fotografia pela perspectiva de “um ser humano visualmente
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ativo” requere romper com as noções de duplicação e imitação, e nos faz pensar na forma pela qual os documentos de Atget, os fotogramas e fotoplastiks de Moholy-Nagy, o Grand Verre de Duchamp e os fototrabalhos de Matta-Clark utilizaram a fotografia sem obedecer a modelos preestabelecidos. Eles transgrediram e subverteram as convenções na prática artística, criando intervalos entre a coisa e a coisa fotografada, e distinguindo entre “reprodução” criativa e repetição. Para Einstein, o cubismo, que mostrava algo que não existia antes da visão e que esperava ser descoberto como se existisse anteriormente, não aponta para a representação do objeto, mas para um processo visual e mental cujo resultado é o objeto. Para Benjamin, a câmera revelava aspectos não observados do objeto, do espaço ou do movimento, e que são dados como independentes do sujeito que percebe. Essas duas formas de entender a visão fazem pensar que talvez a fotografia mostre a função visual, e não a realidade. A construção formal de uma fotografia mostraria, então, a maneira pela qual ela se adapta a, contradiz ou desestabiliza nossa visão do mundo. Olhar para uma fotografia pelo viés performático nos convida à modificação e reestruturação do ato de olhar, não ficando ele restrito à visibilidade nem às convenções puramente ópticas. Um olhar que, valendo-se do entrecruzamento dos estratos das experiências vividas, poderia estabelecer diálogo entre imagens fotográficas e mentais. Um olhar que oscila entre visibilidade e visualidade. A fotografia performática é uma das tantas modalidades de escrever com luz. Não só descreve a ação de fotografar, mas também cria situação nova que requer uma operação mental por parte do observador: que ele recorte, desloque e condense os fragmentos resultantes e os torne experiência. É uma fotografia que estimula a imaginação, permitindo que ela se mova livremente no tempo e no espaço, abrindo cada vez mais as possíveis interpretações de uma obra e incentivando a relacioná-las com outras já existentes. Uma fotografia que recupera ou inventa, dentro da própria fotografia, uma experiência. É também um suporte mediante o qual uma imagem se inscreve e articula o visível com nossas imagens mentais. A “vida póstuma” dessas fotografias depende de nossa capacidade de animá-las e com elas estabelecer diálogo, assim como da capacidade das imagens de se carnalizar nesse suporte. A fotografia performática, simultaneamente objeto e delírio, ou “forma” e “força” para utilizar palavras que remetem a uma fotografia “viva”, faz o possível por apreender e dar forma a um real inapreensível; é representação, embora não seja redutível à operação de representar. Tampouco é redutível ao registro de uma ação, processo ou estado de coisas a partir de uma divisão do tempo de duração. Entender a fotografia como representação nos permite pesquisar as descontinuidades entre um real inapreensível e uma realidade construída; portanto, interpretar não como exercício de especulação psicológica, mas como decodificação de signos para elucidar uma nova sintaxe que possibilite a desordem
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causada pela imagem fotográfica. Porém, a fotografia performática não é redutível à composição nem à semelhança. A impressão fotográfica, simultaneamente signo e representação, é uma das formas de veicular imagem. Não mostra o mundo, mostra como ele era no momento em que acreditamos poder dele nos apropriar. Assim sendo, a imagem fotográfica pode ser vista como um modo de articular intersubjetivamente artista e observador. Essa articulação passa por confrontar-se com um intervalo no qual tanto o que pensamos como nossa reserva icônica pessoal são colocados em suspensão e parecem não ter ligação com o que percebemos, mostrando uma alternativa frente à crença ingênua de que o espaço e a visão são estáveis e constantes. Essas crenças tanto quanto as tentativas de fixar e enrijecer uma realidade, e as palavras que tentam carregar certezas e abstrações escolhem um aspecto de um estado de coisas relativamente complexo a fim de simplificar, isolando o objeto de seus aspectos sensíveis e provocando reações mecânicas que impedem a reflexão e a atividade mental. Em poucas palavras, entender a fotografia como performática é entendê-la como um jogo ao qual somos convocados, tanto observadores como fotógrafos, a jogar e mexer as peças. Um jogo que depende da destreza e não da aleatoriedade, e cujo objetivo continua sendo Marcel Duchamp. Cartaz realizado por Richard Hamilton para retrospectiva na Tate Gallery, junho-julho 1966.
dar sentido, colocar em suspensão e abrir outras possibilidades. Em definitivo, uma atividade que constrói aquilo que descreve e da qual possivelmente a palavra transformance seja expressão mais exata do que performance.
Elena O´Neill é graduada em Arquitetura pela Facultad de Arquitetura, Universidad de la Republica, Uruguay, e mestre pelo programa de Pós-Graduação em Artes da UERJ. Este texto é parte da dissertação de mestrado Fotografia performática, apresentada ao programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UERJ em março 2008. / eoneill@uol.com.br
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Eduardo Sued. Sem título, óleo, acrílico e esmalte sintético sobre tela, 2004.
Eduardo Sued Minotauros Gilton Monteiro Jr.
Destruir, contrariar... É assim que, marcada por um processo vivo e fragmentado, a obra de Eduardo Sued alcança grande variedade de soluções. Partindo de uma análise dessa produção, propõe-se uma interpretação de seu método. Afinado ao princípio destrutivo, a idéia de labirinto revela aí certos aspectos desse modo de agir, em especial sua maneira de entrever uma possibilidade para a pintura em época de profundo ceticismo e efemeridade. O modo aberto de investigação concebe e enfrenta o dilema do pleno exercício dessa linguagem hoje, legitimando seu papel no mundo contemporâneo, sem pretender, evidentemente, encerrá-la em dogmas. Arte brasileira, Eduardo Sued, crítica e interpretação. Quando o filósofo Ortega y Gasset emprega suas energias na crítica do 1 Ortega y Gasset, José. Adão no paraíso e outros ensaios de estética. São Paulo: Cortez Editora, 2001, p. 37.
cientificismo moderno ele é preciso: “cada coisa uma encruzilhada”.1 Na companhia das artes, seus dizeres põem em xeque o invólucro da verdade técnica, revolvendo da existência humana a capa gnóstica e seus desejos de iluminação e controle. É fato que, nas últimas décadas, não foram maiores as escalas da emancipação reivindicada pelo pensador espanhol. Conservar vivo e inaugural nosso modo de estar no mundo é exercício de raro empenho atualmente. E é compartilhando essa fé que o pintor Eduardo Sued dá prova de sua obra, revolvendo de nosso horizonte os cadáveres de preconceitos e modismos que ainda seduzem grande parte de certos setores das artes no país. Isso se deve, sobretudo, a sua forma de conceber a pintura, enfrentando-a sem a pecha do ceticismo necrológico moderno e dito pós-moderno, encurralando-a entre o caldeirão e a fogueira; a corda bamba que lhe remonta o tempo inteiro o risco de uma morte para lá de propalada. É que, para Sued, o ato de criar permanece inescapável ao horizonte de risco que lhe é próprio, devendo a criação, em seu caso, ser positivada na experiência da pintura. Afastado da mística romântica da emanação criadora, Sued aposta na operação empírica como fonte de idéias e sentidos necessários à legitimação dessa linguagem mediante o eufórico cenário contemporâneo. É dessa maneira que quatro décadas de pintura são ali marcadas mais por desvios e desencontros que por acúmulo de soluções inflacionadas pelo método. O próprio pintor, aliás, não se omite em relação a um modo de agir que lhe é caracteristicamente peculiar. O tom nunca definitivo de seu gesto é que nos impele ao constante desafio de repensar sua pintura.
Eduardo Sued Minotauros Gilton Monteiro Jr.
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Estamos diante de uma obra cujo processo, por assim dizer, é uma das marcas de sua poética. Um processo emancipado de princípios e fins apriorísticos, e cujo sentido, oscilando nas imprecisões da ação criadora, se define nos instantes do ato de pintar. É desse modo que a intencionalidade do pintor cancela o princípio positivista de causalidade, para inserir um dado descontínuo no centro de sua operação. Natural que desse movimento a pintura manifeste diversos modos de comportamento; diferentes maneiras de intervir e afetar o espaço. É considerando as qualidades desse método, digamos, vivo que a essa obra reportamos a vertiginosa imagem do labirinto e tudo aquilo que ela carrega consigo: o paroxismo da lógica, a eliminação de fins, seu desejo constante de atualidade. Daí que essa imagem do labirinto não consista apenas em um rol de especulações poéticas, movido pela ansiedade de meras inovações. Sua perspectiva investe menos na recusa histórica do que contra a sistematização de seu método. É nesse sentido que sua poética se aproxima da crítica de Ortega ao processo de reificação e tecnicização, cujo clímax nos serviu de intróito para este texto. Em outras palavras, Sued parte de um único princípio: destruir, isto é, contrariar o raciocínio, desviando-se e questionando, insistentemente, seu próprio pensamento. Manifesta-se aí a imagem prototípica do labirinto, propagando-se em seu agir, auscultando e escavando a superfície da tela, aprofundando seu sentido construtor. É dessa maneira que destruição, desvio e reconstrução são ações que se confundem aqui. A desinibição dos planos não se restringe ao tratamento cromático, há tempos resolvido pela palheta austera e não ortodoxa: aquela mesma palheta que se tornará, a partir da década de 1980, aberta, viva, eloqüente. De um lado, o próprio Sued situa em seu muito admirado precursor – Matisse – a fonte de tal aprendizado; de outro uma particularidade de seu método de trabalho, senão de seu peculiar temperamento artístico, nos informa acerca daquela desenvoltura plástico-cromática. Um rápido giro e logo vemos que a serena estrutura ascética presente nas telas dos anos 70 nada parece dizer daquela conturbada superfície dos desenhos e gravuras da década anterior. Além disso, muito dos 20 anos de produção que se dá entre finais dos 40 e os 60 não parece convergir para uma unidade. No entanto, isso confirma não apenas o método de trabalho inquieto atualmente manifesto, como também esclarece de que maneira o sentido da tradição foi amadurecendo a seus olhos, sob as camadas mais íntimas de sua pintura. O diálogo com a tradição não é para Sued tarefa áspera. Longe dos complexos de uma opressiva imagem paterna, o pintor catalisa na tradição positivo aprendizado, que lhe permite não apenas compreender, como também atualizar um papel a ser desempenhado pela pintura hoje. Uma lição que é constantemente revista e otimizada no ato de pintar, animado pelo prazer da criação. Longe de sistematização da técnica, o que se tem é uma
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revisão, um revolvimento constante do conhecimento acumulado. É assim que o trauma do complexo edipiano é neutralizado, para fazer do diálogo mais uma abertura que um bloqueio de suas faculdades criadoras. O que esse otimismo nos revela, no entanto, é uma particularidade de seu temperamento artístico, pois que para Sued o confronto diário com a pintura se dá imediatamente contra seu próprio sistema. Assim ele expõe o dilema: “é preciso contrariar. Contrariar uma situação”. A partir de então pintar torna-se um embate contra si próprio. Uma forma de intervir na sedimentação de sua prática, inviabilizando a cristalização do método. Contrariando suas próprias idéias, pondo a deriva seu próprio sistema, Sued busca, a cada momento, uma maneira particular de colocar a pintura no mundo, entrevendo com ela uma situação inédita do espaço. É verdade que se trata de uma inquietação do próprio olhar, de mantê-lo vivo e pensante em uma época excessivamente visual, quando a virtude da imagem parece há muito ter sido enterrada. Oscilando entre a virtualidade produzida pelo rebatimento das cores e sua densidade física, esse circuito repõe a atualidade do suporte tela, fazendo-o repercutir de diversas maneiras no espaço. Trata-se, por assim dizer, de qualidades espaciais: modos de extrair dos elementos materiais e cromáticos princípios afetivos que reponham a virtude da presença no espaço concreto, uma espécie de intervenção positiva no mundo. 2 Bloom, Harold. A angústia da influência. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
Devemos ao eminente crítico americano Harold Bloom,2 tratando do problema da relação intrapoética em sua célebre análise da influência, um precioso conceito que nos ensina melhor tudo isso: clinamen ou desvio. Noção central em meio às estratégias revisionárias, o desvio constitui idéia-chave para a iluminação dos aspectos, digamos, infra-estruturais da obra. Sua gênese consiste no ato de desleitura poética, uma espécie de “interpretação errônea” do poema precedente que definirá o perfil do jovem poeta. A interpretação ou desleitura consiste, portanto, na própria vigência do ato criador. Se bem entendido, o desvio, derivado da desleitura, consiste propriamente em ação ao mesmo tempo destrutiva e construtiva, um efeito dialético que aproxima e distancia simultaneamente o artista de sua tradição. No que diz respeito à poética de Eduardo Sued, contrariar designa ação que visa destruir-se, mantendo acesa a chama da experiência criadora. Rendendo débito a Picasso e Klee, seu gesto destrutivo põe em revista seu sistema. Daí que sua luta se volte contra a compulsão de repetição, o mecanismo regulador que, diagnosticado por Freud, ameniza a laceração produzida pelo estranhamento, também presente nos conflitos intrapsíquicos correntes em todo poeta jovem e próprio às categorias de Bloom. Manter a experiência da pintura sempre ativa, desviando-se de si mesmo consiste no princípio lógico da prática artística de nosso pintor, não permitindo em ocasião algu-
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ma seu adormecimento, insistindo em sua atenção sobre os meios da pintura e sua forma sempre surpreendente de ocupar lugar no mundo, produzindo aí seu sentido. A rigor, trata-se de um anti-sistema ou, se quisermos, de um método assistemático. Contrariar condiz, assim, com desler-se, ocorrendo, pois a coincidência entre “desvio” e “contrário”, de modo que, como observamos, as investidas do pintor voltam-se para valores próprios antes que para setores específicos da tradição. Claro que podemos compreender seu comportamento como ato performático, que visa, por atual no mundo, à pintura, agindo nos limites de sua possibilidade. Compreender os próprios limites que o mundo atual impõe à prática da pintura e responder a essa demanda sintetizam parte de sua poética. Sintonizado com as encruzilhadas da contemporaneidade, o labirinto mostra uma de suas marcas: a completa aversão ao logocentrismo ocidental. Ora, em Sued, a imagem do labirinto projeta-se sobre diversos níveis ou instâncias, sendo a primeira esta: sua prática aberta de investigação da pintura, sua insubordinação a ideais preestabelecidos. A experiência da pintura não consiste, nos termos que utilizo, tão-unicamente no encerramento do meio em seu continente, segregando-o da vida, mas situando-o em sua frágil relação com o espaço vital. Da mesma forma, essa experiência consiste na construção simultânea de ambas as partes, o pintor e sua linguagem, de modo que a destruição praticada por Sued não se restringe apenas à eliminação do modelo e reinterpretação dos papéis atribuídos à pintura; diz respeito também ao esvaziamento do ego do pintor, inviabilizando a regência de caprichos e toda ordem de predileções subjetivas. É posto assim que o ato de destruir condiz com uma espécie de épochè, de modo a permitir que a experiência proporcione a refiguração de seus esquemas de entendimento. Esse aspecto está presente em toda a sua produção, em sinal de constante redução e, com isso, de impreciso sentido reservado à obra, como se esse sentido tivesse que ser complementado por sua inserção no mundo-da-vida, no momento de sua recepção. É a relação antinômica entre pintura e vida que deverá constituir em conjunto o sentido da obra, de modo que a tríade autor-obra-público encerre dinâmica atual, labiríntica, livre de finalismos. A caminhada fragmentada, o processo descontínuo de produção, a série de desvios exercidos pelo pintor evidenciam, então, o aspecto anárquico de sua investida na pintura, sem, no entanto, transgredir seus termos, mas sim tentando aprofundá-los. Seu construtivismo tanto deixou para trás o télos sociológico formal do movimento europeu, presente na primeira fase de sua repercussão brasileira, a arte concreta, como também ultrapassa a investida iconoclasta presente em seu último instante poético, o paroxismo neoconcreto. Tanto a inquietude manifesta em seus primeiros trabalhos quanto a série de desvios posteriores denunciam essa tomada anárquica do fazer, precipitando-o em seu vazio, mantendo ensurdecido, por assim dizer, o método.
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O aspecto construtivo da pintura e o concomitante anseio do pintor em lançá-la no mundo, fazendo-a rebentar no espaço, estarão mais presentes, de forma completamente díspar, em telas datadas dos últimos 15 anos, pelo menos. Nesse momento a cor assumirá conotações, digamos, mais densas, matéricas, de maneira que sua presença luminosa terá sua força assomada pela qualidade física do sistema. Eis o momento em que o gesto do pintor virá registrado na superfície da tela, evidenciando seu caráter manufaturado, sua feitura. A superfície não apresentará a partir de agora feição exclusivamente cromáticoluminosa; desde já repercute no espaço sob o brilho intenso de sua matéria. Na esteira das tradições construtivas, a ação de Sued extrai desse legado a positividade em relação às transformações do homem no espaço vital; sua crença em afirmar a ação artística, só que nela entrevendo um gesto que efetiva a realidade, e não uma espécie de ato de segunda ordem, sem vínculo com a vida. O nada, importante momento desse horizonte de ação sobre o qual Sued opera o princípio reconstrutor, suspende todos os juízos de valor para vislumbrar um campo aberto de ação. Acontece, porém, que esse limite existencial não dispõe necessariamente de área tão ampla, de modo que a liberdade propagada pelo método não coincide com a onda relativista contemporânea, anulando as certezas modernas. Diria até que se trata de um ponto preciso, uma consciência aguda de sua maneira de intervir no contexto plástico brasileiro, com critérios transparentes e afiados. Daí resta observar que o nada vigente nessa paisagem pressupõe a suspensão da sistematização de um saber e, a rigor, a própria eliminação de critérios que balizam nossas práticas culturais. Seu vazio, em um mundo tecido pela serventia e falsos hedonismos, age contra as leis e valores permanentes, instituídos como verdade. A partir de agora, proximidade, distância e profundidade ativam o espaço concreto de seu espectador, expondo as marcas de sua contemporaneidade. No entanto, esse aspecto fenomenológico não repõe menos a verdade da pintura. Nesses termos, o método, através da destruição ou do desvio, expõe um questionamento interior à linguagem: a abertura do método revela o éthos da pintura, já consciente do impasse de sua secularização, não havendo como manter sua experiência menos viva e atual, experimentando o limite natural que separa a arte da vida. O labirinto, desestabilizando os critérios da razão, preserva da experiência a energia, alimentando a progressão de sua sintaxe. Realiza-se avanço contínuo e indeterminado, redefinindo constantemente o horizonte para essa linguagem. Eliminando ideais, suspendendo os modelos, o pintor acaba por redefinir para si todos os valores e critérios de sua prática, apontando para uma moral. Ali a materialidade das cores, ou mesmo sua presença luminosa, investindo na imagem de uma cultura inaugural não vem acompanhada do friso de rancor contra o logocentrismo clássico, caro a muitos modernos. Até onde conseguimos enxergar, o afastamento
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do imperativo do logos em Sued é também resposta a sua seqüência histórica, o niilismo contemporâneo. E, entre outros elementos, a positivação do fazer, o ato de reconstruir, ao manter acesa a experiência da pintura, faz o gesto retornar constantemente ao primitivo, escapando à história, esvaziando sua previsibilidade. Há ainda Borges, com sua poderosa investida contra nossos mecanismos de leitura e interpretação. E aqui vale-se do bibliotecário de Babel para falar de sua vertiginosa concepção do tempo corroendo, em sua literatura, a pele das verdades. É fato corriqueiro caracterizá-lo como non-sense. As implicações que esse insensato nos revela acerca da precária lógica do cotidiano é que miramos, porém. É de olho nessa precariedade que o escritor nos vai oferecer a cada narrativa uma descentralização do eu, causando entre sujeito e objeto um transtorno de não simples reparos. Essa fissura designamos aqui pela já mencionada imagem do labirinto. É que para Borges a realidade é vista menos através das arestas dos objetos que do abismo que os consome. É como se as coisas em si já não servissem de nada, não passando
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Eduardo Sued. Sem título, óleo sobre tela, 1986.
o mundo de uma soma de fantasmas eleitos pela razão. De certo modo sua narrativa interfere aí, nesse instante em que a organização extensiva do mundo torna palpável cada centímetro da realidade. Interessa-nos menos, porém, o idealismo de viés patafísico do escritor argentino que sua capacidade de, tal como Dédalus, erguer na superfície das coisas suas galerias de veredas bifurcadas. Nesse momento, a noção de labirinto, como já observado, nos expõe uma de suas importantes facetas: pichando a máscara empolada do logos ela se rebela contra as leis e preceitos da razão, pondo à deriva os esquemas de entendimento. Doravante, não é difícil ver Sued, qual Minotauro, como um excursionista em seu labirinto, mantendo viva e atual a experiência da pintura. Reduzindo a grau zero sua sintaxe, o gesto destrutivo/reconstrutivo revolve incessantemente da superfície da tela um sentido ainda inédito para sua linguagem. A busca de um vocabulário plástico que reanime as idéias deverá ser efetuada, portanto, no interior da pintura, e não em regiões abstratas, em que a predominância das idéias poderia fazêlo convergir para esquemas predefinidos da razão. Em Sued, marcas dessa estratégia se manifestarão em cada segmento da obra, evidenciadas tanto nos intensos planos de cor quanto no recorte operado pela tela no espaço: ora expandindo e repercutindo no entorno, ora repousando na parede, a tela faz com que vazio e presença se misturem, aprisionando seu espectador na atualidade de sua superfície. Próximo a Borges, para quem o labirinto catalisava positivamente o exercício criador (da história, da tradição, mas também da atualidade, haja vista os dizeres: “cada obra de arte cria sua precursora, modificando nossa visão do passado, assim como há de 3 Borges, Jorge Luiz. Kafka y sus precursores. In Otras Inquisiciones. Buenos Aires: Ed. Emece Argentina, 1999.
modificar a do futuro”3), para Sued a experiência de pintar, movida pelo nada, repõe através de uma espécie de ontologia direta o ser da pintura, um movimento que reanima sua realidade. Se a força plástica das bandeiras pop de Jonhs vinha revestida de uma nota ácida, a contrapeso da isenção de profundidade proporcionada pela estandardização do símbolo, em Sued, ao contrário, a energia matérica da cor repunha um senso afirmativo da superfície como catalisador de sentidos, um fenômeno positivo de intervenção no espaço vital. E não seria de outra maneira que a tendência de recorte empírico-fenomenológico comum à superfície minimalista de um Stella exalando de sua atualidade um ar estranho ao entorno e encerrando seu significado na pele do objeto artístico estaria afastada da tensão física propagada pelas telas de nosso pintor. A ação de Sued, direcionada para fora, concentrada nas matérias-primas de sua linguagem, opera um questionamento vivo da visualidade e do espaço, mas também da pintura,
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de sua função e possibilidades hoje, eliminando o contorno místico de suas arestas. Nesses termos, cada sentido revelado do self deve advir do plano intersubjetivo que des-hierarquiza o eu do pintor, como epicentro dos acontecimentos, para entrevê-lo imerso nessa dinâmica vital da produção. Na parede, suas telas mais recentes concentram encarnada, ao modo de Iberê, toda a ação do pintor intervindo nas espessas camadas de tinta. Afastada a uniformidade, o aspecto chapado da pincelada comum ao sistema anterior, todo o peso da superfície parece vir à tona. O tom revolto da fatura, no entanto, não vem aqui acompanhado de uma única nota de sublimação. Digamos que se trata tão-somente de um movimento semântico, ocasionado pelo método. Isolada de um páthos, essa superfície substitui o drama expressivo pela moral asséptica das relações. Doravante a forma de ativar o espaço, reagindo ao ambiente, repercutindo na parede reafirma o caráter transitivo que acompanha essas telas, sua positivação no mundo. Já no sistema plástico de Iberê, o tecido cromático, intensificado ao extremo, condensa toda a superfície da tela, desestabilizando a profundidade dos planos, suavizando, quando não suprimindo sua hierarquia perspéctica. É nesse momento que a divisão das áreas, obedecendo ao cataclismo da profundidade engendrada tanto na síntese estrutural das faces de seus “carretéis” quanto na expressiva fatura de Pássaro ou As idiotas, supera a descritividade naturalista daquele esquema. Agindo sobre cada centímetro da tela, ora esticando, ora pontuando com seu gesto, Iberê erradica com sua técnica grande parte da virtualidade do sistema plástico, para fazer dele um dado concreto posto no espaço. O grau de autonomia presente em seus quadros não deixa de expor um drama específico: o lugar e o sentido da pintura em momento e local particulares. Ali, imanente e destinado à atualidade, todo o quadro é consumido pelo gesto do pintor. E nesse momento ele deixa de ser um suporte sobre o qual o páthos é projetado, para tornar-se uma espécie de elemento construído, canal de revelação e efetivação do íntimo. Instante de busca e incerteza, algo arqueológico parece dar forma aos sentidos (do pintor e da pintura), revolvendo da matéria a profundidade do eu. A plasticidade das tintas, a vibração das cores justapõe na atualidade essa profundidade: é nesse instante que o íntimo, o mnemônico deverá ser resgatado; na ação concreta do pintor, revolvendo nas camadas de tinta sua historicidade, local e momento em que a espessura do eu vai sendo condensada. Nada conduzido por motivos intimistas, Eduardo Sued não alimenta, porém, menor devoção ao instante pictórico. Creditando a ação criadora na força dos elementos, na manipulação concreta dos meios, o contato com a pintura conduz sua operação em imprevisível combinatória de cores e materiais. Nesse momento a própria técnica estará, enquanto patrimônio de saber acumulado, reduzida a grau zero, circunscrita a uma margem insondável da ação, um modo de agir a ser determinado na experiência. É assim que,
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dessubjetivada, a densa fatura estará vinculada a qualidades relativas ao circuito plástico, obedecendo a uma exigência interna do sistema. O esforço de entrever na tela uma situação pictórica inaugural revela a escala das intenções do artista. É que essas pinturas não tomam o espaço como fenômeno abstrato. A intensidade de suas matérias e cores almeja uma intervenção concreta no mundo: não se trata de diluir suas qualidades na vida, mas de confrontar a precariedade de uma cultura material específica. Ativando o espaço, essas telas conquistam a condição de lugar no mundo, reagindo de maneiras diversas ao ambiente em que se encontram. De todo modo essa experiência é operada sobre um horizonte afirmativo, em que a situação do eu no mundo se mantém aberta à construção constante dos sentidos. A perspectiva existencial do pintor não vem envolvida em halo cético, mas, ao contrário, repõe o movimento de reconstrução da pintura, lidando com os dilemas de seu funcionamento junto à precária realidade legada pela investida moderna. É assim que as destruições evitam a reposição e sistematização do método, apelando para novas qualidades do espaço e da matéria. A extrema habilidade em construir com cores torna ainda essa pintura mais provocante. A inteligência de seus acordes repercutindo no espaço imprime sobre nós, é verdade, uma sensação de síncope, uma espécie de vazio consumindo o olhar saturado de seu espectador. Mas não se trata de um vazio qualquer, pois, paradoxalmente, essas telas não deixam de preencher o espaço com cor e matéria. Cores e matérias que tornam positiva, dialeticamente, a própria vida, como acontecimento frágil e indeterminado, recortada pelos vazios que a consomem.
Gilton Monteiro Jr. é graduado pelo Instituto de Artes e Design da UFJF e mestre em História e Crítica da Arte pelo PPGArtes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. / gmonteirojr@hotmail.com
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Uma exposição topológica imaginária Renata Reinhoefer França
A estranha familiaridade de alguns encontros com obras de arte como experiência labiríntica e vertiginosa. A palavra escrita como forma de afastar-se do turbilhão para organizá-lo em pensamento. O desafio de escrever sobre a experiência da arte sem a trair, sem se afastar da verdade fundamental de sua forma. Um exercício de escrita sobre uma exposição topológica imaginária. Obra de arte, estranho-familiar, escrita. Introdução A estranha familiaridade de alguns encontros com obras de arte se revela apenas em ato, no atravessar das coisas. No entanto, parafraseando Guimarães 1 Rosa, João Guimarães. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, p. 51.
Rosa,1 em meio à travessia não vemos. Ali, simplesmente percorremos sua opacidade clara de labirinto, e tudo se dá a ver em ato, sendo impossível prever o porvir. Atravessar um labirinto, porém, implica manter o mundo em suspenso. Como não o suportamos por muito tempo, na tentativa de nos livrar do que não podemos compreender, nos movimentamos em busca de significação. Nesse movimento, é pela palavra que nos afastamos do turbilhão vertiginoso para organizá-lo em pensamento. No entanto, o sucesso dessa tentativa de conceituação é sempre limitado e por isso frustrado de saída: nadamos em busca de significação, mas nos regozijamos ao esbarrar na impossibilidade de resolvê-la totalmente; somos salvos pela revelação dessa incapacidade de completude e pela incapacidade de acesso total ao fenômeno apenas por seu nome, por seu conceito. É o que está para além dele que nos move, é o que está para além de seu sentido. E é essa falta de que a significação não dá conta que nos mantém em movimento na busca incessante de significação. Talvez escrevamos justamente em nome dessa opacidade, numa ânsia de partilhar a solidão daquela impregnação. Esse ato, quem sabe, nos faz crer que seja possível seguir desdobrando aquele encontro singular em outros tantos. Sim, porque, se há uma vertigem de assombro nesse encontro que, em espiral crescente e vertiginosa, verga colunas de certezas e racha pontes de signos, fica, para a escrita, o
Cildo Meireles. Fontes. Fonte: Herkenhoff, Paulo, Mosquera, Gerardo e Cameron, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.
desafio de tentar falar dessa experiência sem a trair, sem afastar-se demasiado da verdade fundamental de sua forma.
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Assim, faremos um exercício de escrita a partir de um encontro de segunda ordem com a obra original, ou seja, com obras jamais vistas frente a frente, fisicamente, já a partir de uma transmissão. Será um exercício sobre a possibilidade de não se estancar a experiência originária da obra mediante reflexão sobre a transmissão entre linguagens, já que, ao falarmos a respeito das obras, estamos sempre transformando-as em outras coisas a partir da palavra: tomaremos então a palavra como ato, ato de transmissão. Logo de início, salta ao pensamento uma questão: como seria a forma da escrita sobre uma exposição como essa, imaginária? *** ela não acontece em uma galeria ou salão, mas em uma casa misteriosa e distante. Uma casa comprida e longa. Conto minha experiência na exposição. Imaginaria impossível alcançá-la, dado que o acesso é cinzento e brumoso, e a casa blefa uma existência duvidosa em meio ao nevoeiro denso que embaça a visibilidade. Vai-se de carro pela estrada inacabada até o caminho desaparecer na neblina grossa, opaca. Por desconhecida, às vezes a auto-estrada insinua auto-envolver-se num contínuo infinito e circular. A percepção eleva-se na bruma – vejo vãos na via. As falhas de continuidade na estrada surgem em vagas e causam estranhos vazios e angústia na quebra da expectativa (tornando impraticável prever o porvir). O mapa – praticamente inviável e quase imaterial – sugere dobrar-se à esquerda e, em cada encruzilhada do caminho, novamente à esquerda. No limite, entre o invisível e o visível, sem saber o porquê, acontecem buracos que formam passagens de acesso à casa. Na parte externa, há duas portas cinzentas similares, de madeira muito velha e maçaneta desgastada e ferrugenta. São moldadas por pegadas. Abro aleatória e lentamente uma das portas. Dentro, um corredor muito comprido e escuro conduz o visitante. Ao fim surgem duas portas. Escolho uma e abro-a – uma sala delineia-se com dificuldade no escuro. Há um número peculiarmente alto de armários – uns só de portas, outros com gavetas, alguns cofres. Há uma parede só de livros, outra de espelhos e armários de variados tamanhos e molduras. A terceira parede é coberta por um grande véu, como uma cortina. Não há objetos de arte visíveis. Em uma das paredes da sala, ao lado dos armários, uma escada conecta o pavimento superior. É feita de inox, vertical e leva à piscina na cobertura. Subo. Anoitece. Obedecendo à arquitetura de Rem Koolhaas (sim, reconheço a piscina de uma raia da Villa Dall’Ava), entro e caminho dentro d’água. A água está morna. Sinto o corpo de maneira totalmente diferente. O contato com a água retarda minha locomoção. Penso em Duchamp e nos retardos, tão necessários. Nada ocorre em um instante, mesmo que tudo esteja apresentado naquele instante. Há o invisível no visível, e o invisível do visível ironiza o instante. A subversão das possibilidades rasga certezas e revela impossibilidades2 diante de meus olhos. Apesar de sua primeira aparência reconfortante e em concordância total com o que seria meramente um lazer doméstico, na piscina tudo é incerto. A movimentação é
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2 Vidler, Anthony. The Architectural Uncanny. Cambridge & London: The MIT Press, 1992.
mais difícil, o corpo mais perceptível. O tempo fica mais lento. Não adianta correr. Fico mais leve – estranho como tudo é relativo. Logo penso que não sou, mas que estou em relação a alguma outra coisa, e que só existo em relação. Ao deslocar-me, desloco a água, modificando o que me modifica. Faz-me pensar que estar-no-mundo é estar-em-relação, é constituir-se no processo de interação com o outro. Estar-em-relação é estar em processo, ter mobilidade, conhecer, nascer conjuntamente com o que difere de mim mesma. Essa simultaneidade anima re3 Holderlin, Friedrich. Reflexões. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994.
lação, faz nascerem as partes envolvidas, nesse e desse encontro, ao mesmo tempo.3 Na experiência estética da arte, é a relação viva com a obra que dispara o co-nascimento simultâneo das partes. Ao experimentá-la sou transformada pela obra e a transformo, mais ainda, em si mesma. Esse paradoxo não deve ser resolvido, não pode ser resolvido. Devo sustentá-lo, tirar prazer dele, mesmo (e principalmente) em sua angústia inevitável. Sua conclusão é o fim da experiência poética. A Torre Eiffel exibe-se, sedutora como um prêmio, brilhando piscante ao fim do eixo de caminhada. Vem buscar-me, chama. Apanho-a com os olhos, mas o corpo na água adverte da impossibilidade de agarrá-la desse modo. Trata-se de uma ilusão: ainda é preciso atravessar o labirinto da cidade que se interpõe entre nós, e o abraço líquido rememorame que não sou uma consciência desencarnada apta a voar sem espaço. Adverte-me dos processos incessantes que a opacidade e escuridão dos labirintos incertos da cidade me oferecem. São passagens que levam a passagens, muitas delas. É um labirinto. Ao quebrar a segurança da abstração intelectual que indubitavelmente leva ao fim e ao prêmio, sonho-me pensando e percebendo a relevância da existência material, em seu deslocar-se atritado e único. Por instantes, parece ser possível apreender o inapreensível. E, antes que me dê novamente às costas (sua fugacidade é implacável), experimento a felicidade trágica do processo da vida. Com alguma resistência, saio da piscina. Observo que ao descer a escada já estou seca. Como a luz no interior da sala é um tanto obscura, nada parece claro, explícito, mas brumoso, nevoento. O olho embaçado percebe um trabalho que quase se confude com a sala, por sua apresentação: uma arquitetura escultórica, ou uma escultura arquitetônica,
4 Herkenhoff, Paulo, Mosquera, Gerardo e Cameron, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac&Naify, 2000.
que se parece com um canto de sala.4 É Espaços virtuais: cantos (1967-68), de Cildo Meireles. Com o uso de três planos, o artista cria algo como um canto de sala doméstica, com paredes, rodapé e o típico piso em taco das casas brasileiras. No entanto, o espaço cria uma disrupção no canto, onde o rodapé insinua uma virada em 90 graus na parede e a formação de um canto através de um recurso projetivo e de contraste entre as cores rosa da parede e vermelha do rodapé. O olho complementa imaginariamente a linha, a partir dos efeitos induzidos pela diagonal e pelas cores, aceitando a dobra. Simultaneamente, o mesmo olho percebe uma estranheza na formação. Algo está fora de ordem. Há outro
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canto dentro do canto, um canto aparentemente gerado pela ordem geométrica, mas que é desordem da ordem euclidiana. Os princípios euclidianos de espaço estão deformados.5 O espaço torna-se mágico, de acesso a um mundo fantástico. Para Bachelard6 um canto é um refúgio de assegurante imobilidade. No canto, um quarto imaginário se constrói ao redor do corpo. No entanto, o canto de Cildo Meireles dá-se
5 Cildo Meireles. Through the Labyrinth: An Interview with Cildo Meireles – modern artist. Art Journal, out. 2000. Acesso em: jun. 2006. Disponível em: findarticles.com/p/articles/ mi_m0425/is_3_59/ai_66238362. Entrevista. 6 Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p. 145.
paradoxalmente como imobilidade e como passagem.Torna-se, assim, um tanto ameaçador. Sendo uma porta para o desconhecido, a passagem criada comporta entradas e saídas – tanto posso entrar quanto criaturas monstruosas podem sair de lá. Mas como a razão só adormece quando certa de si, só uma desordem estranhamente familiar a desestabiliza. Cildo Meireles usa os próprios meios da razão para convocar a desrazão. A tontura da guarda facilita a entrega das chaves de acesso àquilo que não compreendo. É o estranhamento que, por excessivamente familiar, cria a passagem. Há ordem, mas de outra ordem. Torno a circular pela sala poeirenta. Ao levantar o véu da cortina, noto vários buracos nas paredes, como escotilhas – ou bolhas de sabão – que permitem várias vistas do exterior – e nenhuma é igual à outra. Mas por todas passa luz, a não ser por duas, mais perto do chão, que se parecem com túneis de fuga escavados na parede. Ao inserir a cabeça em uma delas para ver o que há dentro, vejo-me despencando em um tubo cilíndrico escuro e muito fundo. Percebo que caio dentro de outro túnel, desta vez circular, cuja curva parece não ter fim. Ou o túnel não tem fim ou não é exatamente um túnel. Ao acomodar os olhos percebo que não é um túnel, mas o filme de um túnel, projetado em uma parede. O filme contínuo projeta indefinidamente uma seção do Túnel Dois Irmãos, no Rio de Janeiro. A imagem mostra um túnel sem fim e sem princípio, uma figura topológica, um toro imaginário, uma continuidade escavada no interior da rocha. Tunga declara7 que o mesmo processo de realização dessa obra terminaria por conduzi-lo muito longe de suas intenções iniciais, internando-o em uma série – talvez tão infinita como o túnel mesmo – de relatos enigmáticos e achados quase arqueológicos. A música é familiar: “Night and day”.8 Ao ouvi-la, começo a sussurrá-la, certa de seu domínio. Mas, estranhamente, começa a faltar-me o ar necessário para acompanhar a canção.9 Repentinamente, a voz canta Day and day/night and night,10 e à falta de ar soma-se uma ansiedade pelo espanto diante daquela inesperada mudança. Uma paranóia de aprisionamento configura-se, e aquele aparente ingênuo torna-se monstruoso. De sobressalto sou tomada pela desorientação e pelo pavor de permanecer para sempre encerrada naquele túnel, com aquela voz morto-viva afligindo-me com sua zombeteira maldição – dia e noite, dia e dia, noite e noite – é tudo o mesmo ali. Não há tempo, porque o dia e a noite são invenções que dependem de uma referência – claro, escuro, claro. A mesma luz me acompanhará para sempre naquele labirinto curvo. Estou enterrada viva na pedra.
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7 Tunga: 1977-1997. NY/North Miami: Bard College/MOCA North Miami, 1997, p. 42. 8 A música “Night and day” interpretada por Frank Sinatra. 9 Frank Sinatra canta com tal controle de respiração, que se torna praticamente impossível acompanhá-lo. 10 “This is a work from 1981, Ão. (…) Music can be heard: an old ballad, Night and Day. A voice, accompanied by a large orchestra, begins to sing in English the standard lyrics of the ballad: Night and day/day and night. But as in some of the works of Bruce Nauman from the period of Ão (Live and Let Die from 1983, for example) the discursive situation grows increasingly complicated – or rather, deteriorates – and the voice ends up singing nonsensically, Day and day/night and night as if it were unable to keep from losing coherence. Like the film image, the soundtrack repeats ad infinitum.” Laddaga, Reinaldo. Tunga. Art Nexus [periódico na Internet], jan./mar. 1998 [acesso em jun 2006]; n.27. Disponível em: http://universes-in-universe.de/artnexus/ no27/english.htm.
Rem Koolhaas. Piscina de uma raia da Villa Dall’Ava. Fonte: Koolhaas, Rem e Mau, Bruce. S,M,L,XL. Nova York: The Monacelli Press, 1998.
Mas não há pedra nem túnel, apenas filme. É filme feito, pronto, projeção de topologia infinita – um paradoxo em termos. Filme cuja película entra e sai continuamente do projetor, traçando um círculo de linha no nível do chão da sala. Ao transpor o cone de luz emitida pelo aparato minha sombra lança-se na tela. Sou incluída em negativo no movimento
11 Tunga, op. cit., p. 43.
contínuo incansável que se prolonga incessantemente no túnel.11 E, ainda que permaneça parada, vejo-me circulando num filme que sai da projeção circular de um rolo. O trabalho intitula-se Ão. O que é Ão? Ão é título – é começo, mas Ão é uma terminação. É um fim, em português. Só em português. Uma terminação quase impronunciável por um estrangeiro. Ão é começo que já é fim, começo e fim fundidos em um título-terminaçãofragmento de nada, de nenhuma e de muitas palavras. Não é elemento, é fragmento, uma falta em si mesmo – falta o resto da palavra. E se não fizesse sua arqueologia, se não traçasse sua história, se não buscasse seus ascendentes – o que Ão, apenas, diria? Terminação, não, elevação. Um fim aumentado sem começo. Um nada em si, mas sempre muito quando terminação. E, se o ato de nomear cria a forma, que forma cria Ão? É uma terminação sem princípio, sem história relacional possível, sem passado perspectivado a partir de proporções de um presente, sem projeção de futuro. Nesse túnel, moverse para frente ou para trás dá no mesmo, não há entrada ou saída. Ão não me deixa viver em perspectiva – ali vivo em ato, em processo. Desperto no túnel infinito para esse mundo que é movimento e onde vivo no plano, sem parar, dia e noite, noite e dia, sem saída nem chegada. Participo de um filme que rola sem mim, em que minha sombra entra e sai de cena sem nada modificar no fluxo contínuo, longo infinito. De nada adianta minha vontade, nada decido nesse trabalho de Tunga. Sufocante liberdade.
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Ão é um sem-fim sem começo, que é todo em sua unidade de filme e de música, não perspectivada e contínua. Mas é também um fragmento de outro com o qual se relaciona, outro que se move da mesma forma continua e circular. Trunca-se a idéia de que seja apenas aquilo: é uma coisa dentro de outra que é a mesma e que está dentro de outra, como um infinito de bonecas russas. Ão é toro e toro dentro de toro, título e sufixo. Saio por um corredor curvo, turvo, sombrio cujas paredes estão recobertas de livros empoeirados. Atordoam-me os livros dormindo em estantes, milhares de livros que nunca lerei. Problema irresoluto, sigo caminhando e deparo-me com uma trilha de números negros no chão. Sigo-os. Entro em uma sala que brilha, amarela, de luz que cega. O trabalho é uma floresta de números, denso conjunto de réguas e relógios que cobrem toda a extensão. Uma floresta é uma vastidão, um universo impregnado de verde-natureza. Essa floresta é, porém, artificial, as árvores não verdejam, funcionam para medir. Floresta abstrata de números, linhas, círculos e espirais, das matemáticas, da astronomia e da arte. Progressões do sem-fim e do sem-princípio. O verde de Fontes é amarelo, cor que a retina não vê na floresta. A cor é expressiva, construída, simbólica de um campo de trigo12 que não é sol, mas angústia e solidão. Cor da experiência de um mundo como dentro, não fora. Na sala, mil relógios amarelos redondos cobrem as paredes. Os ponteiros de cada relógio indicam uma hora diferente. Os números aparecem em diversos pontos do raio do círculo, marcando diferentes medidas de tempo. Do teto pendem 6.000 réguas amarelas de carpinteiro, de medições diferentes marcadas em preto. Seus fios choram números. Cobrindo o chão amarelo jazem 500.000 números negros de plástico de dimensões variáveis. As
12 Apesar de estar latente no trabalho, a referência feita aqui deriva, em primeira instância, de uma entrevista do artista. (Cildo Meireles: “With Fontes, I wanted to make a work about displacement. It’s constructed in the shape of the Milky Way. From the top you can see that it’s a double spiral. It’s also inspired by what was once thought to be Vincent van Gogh’s last painting, Crows in a Wheat Field (1890). I wanted to bring that yellow and black into the piece. This is actually one of three versions.”). Meireles, op. cit.
réguas-samambaias choram os números que sobram tornando-se elementos solitários, como filhos que não foram. Sujeira de uma ordem que não se criou, de uma ordem que desertou. O espaço chove, é impregnado, não sólido – é pespontado, recortado, instável. O espaço espiral derretido pinga cor e impregna o chão de amarelos. Há resíduos de números e de cor, mas aqui é o excedente que impregna tudo. Vãos esforços de ordenação pela razão. O amarelo resplandecente solar brilha, e sua claridade beira o insuportável. Estrela mãe, procedência de nossas gravitações. Gravitar é ir e vir em torno, obedecer à “atração mútua que os corpos materiais exercem uns sobre os outros”.13 Tornar-se torcendo-se, rodando e curvando linhas que talvez fossem retas. Seu círculo (ou elipse) não termina, é infinito. Tempos infinitos esperam e marcam todos os grãos de mudanças de todos os tempos. Já o giro das horas é um giro de muitos giros que nada registram. Zeram como se fosse possível. Marcam um tempo que não marca, não atrasa, não retarda e não espera. Espera apenas impor-se. Por isso, desaparece na impregnação, quase por irrelevância. Fontes revela mundos dentro de mundos. Medidores fontes de pretensos inícios e fins somem na floresta de réguas; floresta que é vastidão e que é mínima dentro da Terra;
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13 Conforme a definição do termo “gravitação” em Houaiss, Antonio. Dicionário Houaiss Eletrônico. CD-ROM. Rio de Janeiro: Ed.Objetiva, 2002.
planeta apagado que gravita em torno de um cegante sol que é estrela de quinta grandeza em sua galáxia, a Via Láctea, que é outra das fontes no jogo de espelhos de Fontes. Além da atmosfera cromática de Campo de trigo com corvos, Fontes tem também em comum com a obra de Van Gogh a convocação à participação. Em Campo de trigo com corvos, a perspectiva invertida – com as linhas de fuga convergindo do horizonte para o primeiro plano – abraça-me e empurra-me para dentro. A cena é penetrável, estilhaçada, ferida. Não é sólida, rígida ou estática. Dentro, a velocidade e fluidez do movimento para o primeiro plano são de uma aproximação aterradora – os corvos negros e os trigais (que se movimentam como corvos amarelos) vêm buscar-me onde estou. Minhas alternativas se configuram: ou me engolem, ou corro e penetro o espaço bifurcado torto, torcido, beco ou não, que vai para além dali, que não começa nem termina comigo, que não começa nem termina na tela, que pontua minha condição de passagem. Não há a opção de esperar e assistir, como um espectador passivo. A convocação à ação é carregada da angústia do paradoxo do mover-se em algo movente, porque nada pára nunca, em nenhum momento, na tela. Fontes não admite o espectador distanciado, o mero presenciador passivo. O trabalho convoca à entrada em seu espaço. Os números jogados no chão sussurram “siga-me” e conduzem-me para dentro do labirinto de réguas. Vejo, com o olho angustiado, os paradoxos contidos nos metros – unidades singulares racionais que são fragmentos de um todo que só se forma no sensível. Ao passear pelo espaço, minha existência torna-se latente e duvidosa, infinita e efêmera. O espaço dilata-se, e o tempo encolhe. Sim, talvez a arte seja ação fundamental da intersubjetividade, mas como dimensionar seus impactos no movediço interminável, no sem-fim sem princípio esférico do mundo? Qual a sensibilidade do processo? Parece haver na exposição uma crença em um acontecimento específico da forma não só visual, mas corporal, por inteiro, que não está apenas fazendo uma crítica ao sistema de arte ou exprimindo a subjetividade do artista, mas que acredita num coeficiente de realidade visual que é pensamento e que, assim, toca a sensibilidade humana. Rara coincidência em um mundo cada vez mais voltado para o discurso cultural, para o monólogo expositivo de cada um em que discussões morrem de inanição e uma grande ordem única paira no ar. Estranha autonomia. Em Fontes, os sistemas de medição (e dominação) do tempo e do espaço criados pelo homem não dão conta da experiência. Não se importam nem mesmo em prevê-la. Nada os fará arredar um milímetro ou segundo sequer de suas certezas. Impossível admitirem outra medida, tão decidido e certo de si estão. Mas relógios e réguas nada medem: nem o tempo, nem o espaço. Aglutinados, todos sobram, como restos de uma ordem total não encontrada, como excedente desordem de qualquer ordem geral um dia pretendida. Uma desordem feita de ordens, um excesso de racionalidade que gera o caos.
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Com Trois Stoppages, Marcel Duchamp propõe um teorema: se um fio horizontal esticado, de um metro de comprimento, cai de uma altura de um metro sobre um plano horizontal,
Tunga. Ão. Fonte: Tunga. Barroco de lírios. São Paulo: Cosac & Naify, 1997.
nessa queda movendo-se a seu bel-prazer, temos uma nova imagem da unidade de comprimento, do metro. Duchamp faz o experimento, repetindo três vezes a operação. De cada uma deriva uma configuração diversa. Adere então os fios às telas – para preservar seus enunciados – e corta as curvas pelo perfil formado. Cria, assim, novas réguas curvas, todas díspares, outras unidades de medida que incorporam o acaso, que nascem justamente da vertigem da racionalidade do sistema métrico, da racionalidade do sistema de medição do espaço levada ao absurdo. Em Fontes, uma acumulação de ordens é desordem, mas também a ordem advém da grande desordem daquelas pequenas ordens. O somatório das medidas que os homens criam é uma medida sem medida – o todo, como soma dessas ordens, é o caos. Qual instrumento preciso para medir o espaço? E o tempo? Fontes aponta para uma total falta de unicidade nas medidas que, ainda assim, se querem existentes como unidades-todo, mas que, mediante um olhar para o céu, para o alto, se tornam fragmentos de uma ordem galáctica, espiral e matemática. Mundo dentro de outro dentro de outro. Verdade estranha? Lembrome das palavras correnteza de Guimarães Rosa: “A estranheza dessa verdade deu para estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia.”14
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14 Rosa, Guimarães. A terceira margem do rio. In Rosa, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
O campo de Van Gogh e a floresta de Cildo Meireles fundem-se no imensurável e no interminável dos tempos e espaços. Verdades estranhas acontecem em seus trabalhos. As pinceladas são linhas que se dobram como réguas dobráveis quase desdobradas. Réguas dobráveis abertas são pinceladas esticadas. Penetro espaços desdobrados, simultaneamente lentos e rápidos, como os espaços de um rio. Espaços penetráveis de diferenças aglutinadas e limites fluidos. A régua retrátil ao se desdobrar revela sua inteireza em partes que são visivelmente fragmentos colados dobráveis, reversíveis. Entre as réguas, caminhos curvos mais curvos que as retas de suas réguas de linhas retas coladas. Curvas mais fluidas e contínuas, sensuais e bifurcadas arrastam-me e confundem-me no devagar depressa dos tempos. Para compreender preciso desorganizar a razão desnorteandome no emaranhado de números, retas e círculos. O passeio espiral é confuso. Mas na impregnação de luz o clarão que cega deixa ver melhor, ordena as coisas em ordem de impregnação de ser. Schlegel escreve que “somente 15 Schlegel, Friedrich. O dialeto dos fragmentos. São Paulo: Iluminuras, 1997, p. 153. (Fragmento 71 de “Idéias”).
é um caos aquela confusão da qual pode surgir um mundo”.15 No passeio que angustia o olho, que não resolve, que desordena, sou tomada pela clareza da lucidez daquilo que se pensa e comunica pela sensibilidade, como se houvesse uma única medida comum. Fontes aponta as impossibilidades contidas na ordenação por um racionalismo reinante na ilusão da dominação do tempo e do espaço. A questão da experiência em arte carrega como fundamental o fluxo de interação entre espectador e obra, o fluxo de comunicação, mas não explicação ou enunciação de verdade imposta. Palavras que impõem ou explicam cansam e adormecem entediadas. Às vezes ressecam ao sol e abreviam. Não, não é comunicação excessiva pela razão, explicada e isenta. É sofrimento, diálogo (e dor) em aberto com tempo infinito, ainda que os interlocutores passem. E passam – passam porque são passantes por princípio,
16 Brito, Ronaldo. En Passant. In Brito, Ronaldo. Quarta do singular. São Paulo: Duas Cidades, 1989, p. 19.
humanos de passagem.16 Retardos enormes servem talvez para lembrar-nos que, como nada começamos, também nada terminamos: deixamos em aberto, à espera. Lançamos às tempestades questões que bóiam. Não há o tempo do saber porque o saber nada sabe do tempo. A beleza está na espera do Outro, em uma única jogada no xadrez do tempo e na longa espera que a sucede. Não há linearidade nesse tempo, não é o tempo dos que sabem. Por isso essa beleza é velha e vive muito longamente à espera do tempo ideal, que é o seu próprio e que nunca chega. Comunico-me quando não explico. Só ele soubesse. Assassina não é a certeza de estar para sempre condenada a viver às margens de mim mesma – à espera do tal impossível encontro com o indecifrável que me habita –, mas a solidão que acompanha essa estranha verdade. O acontecimento da obra liberta, ainda que temporariamente, pelo encontro. Não há encontro de marginais, diria o matemático – é marginal o que não encontra nada, grito surdo aos ecos. No encontro saio da margem, ainda que por um breve instante.
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A palavra Fontes faz pensar nas experiências que não são reconhecidas como arte, como aquela de Tony Smith na auto-estrada ou como o estranho encontro com um crítico de arte quando sucede em recriar a experiência poética da obra sendo ainda outra coisa, que se elabora e tem poética própria, que tem estabilidade estrutural e faz convergirem os sentidos como o faz um vale para o rio. O que será que as separa da arte? Estão claramente fora por um conceito de inserção no sistema de arte. Mas recriar criando outra presença viva não é arte? Não é criar a partir do mesmo sendo ainda outro o verdadeiro novo em arte? Que descontinuidade pode prescindir da continuidade? Não, do mesmo ao mesmo não dá mil voltas, não quando leva o outro a turbilhonar-se consigo, não quando há co-nascimento. Ao embaralhar a razão, Fontes revela o embate como a única passagem de acesso aos códigos cifrados do ser, a senha de seus mundos. E, ainda que nada resolva – porque essa não é sua questão –, talvez a estranha verdade sensível seja como o rio de Guimarães Rosa que nunca pára, que segue deslocando margens em dia de cheia, redefinindo-as sempre, em um formar-se infinito. Percorro as obras lidando com as incertezas do imprevisível, com o acaso, com minhas próprias decisões, com as surpresas que se podem apresentar. É esse processo que vai determinando o espaço que experimento, que esgarça o contínuo pela tensão e angústia. Duvido do que acredito certo: racho – abre-se uma fenda em meu ser. Eu e meu duplo atrasado caminhamos juntos, mas dessincronizados, em tempos diferentes. Estranha superposição. Saio dali e entro em outro corredor longo curvo, onde a luz da manhã lentamente desbota até apagar-se na escuridão. Tateio outra porta e noto que o corredor desemboca em um interior de armário. Saio dele e fecho sua porta – estou em uma sala circular com uma parede circular recoberta de armários e portas. Abro uma. Há outro corredor torto, com mais duas portas. Abro outra. Outro corredor. Tenho sono, e a vista embaçada. O corredor bifurca. Na turva transparência das idéias observo que é um labirinto. Claro, sua narrativa é esférica, penso, resignada. Não há tempo para experimentar tudo. Vale a tentativa de falar ao Outro? Sim, minha experiência é um dos percursos da exposição de muitas possibilidades apenas pela presença marcada desse Outro. É por isso que desejo mover-me e não sou apenas movida. Se há uma narrativa não a vejo, talvez só compreenda as inscrições quando na carne, mas apenas no veredicto final. Isso não importa hoje. O caminhar pela espiral, pelas curvas, sugere ao meu corpo que o pensamento talvez esteja sempre para além da curva, fugidio, e que só se possa ver a ponta de sua orelha. Só vejo a margem das coisas. Saio, mas preciso escrever. Se o que define uma coleção é uma narrativa comum,17 ao diluir-se nela seu autor contorna sua própria narrativa, constitui-se a partir do que
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17 Cavell, Stanley. “The world as things. Collecting thoughts on collecting”. In: Rendezvous. Masterpieces from the Centre Georges Pompidou and the Guggenheim Museums. Catálogo da exposição realizada no Solomon R. Guggenheim Museum, Nova York, de outubro de 1998 a janeiro de 1999. Nova York: Guggenheim Museum Publication, 1999.
conta. Será escrever uma busca da impossível compreensão de si? Penso se as portas selecionadas o foram aleatoriamente ou por uma estranha atração que desconheço, que me empurra para algumas coisas e não outras, e que vão formando um conjunto imenso, mas não infinito, de combinações possíveis. Há, desconfio, um universo que não reconheço, mas esse passa ao largo de mim. Retiro um papel em branco do bolso, me acomodo em um canto e começo a escrever sobre minha experiência na exposição,
Renata Reinhoefer França é doutoranda em História Social da Cultura pela PUC-Rio e mestre em Artes pela UERJ, na linha de pesquisa História e Crítica da Arte. É pós-graduada pela PUC-Rio (Especialização em História da Arte e da Arquitetura no Brasil, 2002) e pela UERJ (Especialização em Teoria da Arte – Fundamentos e Práticas Artísticas, 1999). / franca.renata@terra.com.br
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Torreão 15 anos de trabalho Elida Tessler e Jailton Moreira
A Torre é uma nota para os grandes sonhos. A Poética do Espaço, Gaston Bachelard. Esta entrevista celebra os 15 anos de trabalho do Torreão – espaço de intervenções e pesquisas artísticas no ateliê de Elida Tessler e Jailton Moreira, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. A convite de Sheila Cabo, editora da Concinnitas, Roberto Conduru, Luiza Interlenghi, Ricardo Basbaum e eu começamos uma conversa por e-mail finalizada em um encontro de trabalho na UERJ, com a equipe do Instituto de Artes, e também em mesa-redonda realizada na Escola de Artes Visuais do Parque Lage, em outubro de 2008, eventos que contaram com o apoio da Faperj. (Malu Fatorelli) Comemoramos o “aniversário carioca” do Torreão fazendo reverberaStefan Sous. Mapa turístico, 2005. Foto: Jailton Moreira.
rem conversas e reflexões sobre arte, compartilhando a experiência da torre como laboratório poético em que transitam imagens e palavras em torno de diferentes práticas artísticas. Sheila: A comemoração desse processo que envolve o Torreão me parece uma ótima oportunidade para discutir a existência de espaços não institucionais de promoção de experiências artísticas. Para mim, do Rio de Janeiro, que não conheço o Torreão, seria muito bom saber como foi a idéia da criação do espaço e de que maneira vocês pensam a relação, ou não-relação, com as instituições de arte, como galerias, museus, centros culturais, etc. Jailton: Sobre a idéia de criação do espaço: em um primeiro momento, o Torreão deveria abrigar nossos espaços de ateliê e também as aulas de orientação em arte que eu desenvolvia em outra escola. Porém a própria arquitetura do local, um casarão dos anos 30 com uma pequena torre, sugeriu, desde o início, outras atuações. Convidar artistas para responder ao espaço dessa torre foi idéia que frisou um foco que se prolongaria para os outros campos de ação do local, isto é, as relações de arte com lugar. As orientações em arte também se foram ajustando e expandindo a partir desse foco. Por exemplo em 2002 iniciou-se um projeto de workshops chamado de Atelier Aberto que se constitui de uma série de viagens de trabalho com o grupo de alunos deslocando-se para diferentes tipos de paisagens a fim de exercitar propostas específicas. Nos deslocamos para trabalhar em lugares tão distintos como o pampa gaúcho e o salar de Uyuni, na Bolívia.
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O Torreão nunca foi um projeto fechado, mas sim um processo. Tentar entender suas necessidades e dinâmica é o nosso desafio constante. Se, passado esses anos, o Torreão adquiriu certa consistência e coerência, elas nunca foram projetadas. É sempre a resposta de uma escuta prévia. Elida: Sobre a relação, ou não-relação, com as instituições de arte: galerias? museus? centros culturais?... A criação do Torreão coincidiu com um momento em que conversávamos muito, eu e Jailton, sobre os espaços de arte da cidade, suas dinâmicas de trabalho, suas concepções acerca das formas de apresentação e/ou desenvolvimento de processos em arte contemporânea. Pensávamos nos tipos de identificação que porventura poderíamos ter com tais espaços. Em Porto Alegre, desde que começamos nossa formação no Instituto de Artes da UFRGS, galeria de arte era coisa rara, e mesmo hoje continuam sendo poucas. Os centros culturais foram-se estabelecendo lentamente, acompanhando, de certa forma, um movimento nacional, e todos eles ligados ao estado ou ao município. O Atelier Livre da Prefeitura já tinha certa tradição, que marcou a formação de muitos artistas aqui do Sul. A Casa de Cultura Mário Quintana, inaugurada no início dos anos 90, muito dinamizou as discussões em torno da arte contemporânea, com exposições importantes e a presença de artistas nacionais e estrangeiros, com a realização de seminários e palestras. Foi criado, aliás, o Museu de Arte Contemporânea do RGS, constituindo acervo, mas com condições muito precárias de conservação. A própria universidade, instituição de ensino por excelência, também com dinâmica de exposições em sua Pinacoteca, mantinha-se, na época e dentro de seus propósitos, como lugar de incentivo e aprimoramento da pesquisa em artes visuais, em seus diferentes níveis: graduação e pós-graduação. Então, se nos perguntávamos a respeito de nossas relações com esses espaços, tínhamos muito claro para nós que “a criação do Torreão nunca veio para concorrer e sim dialogar”. Não nos faltaram oportunidades de compartilhamento de projetos. Apenas para dar alguns exemplos: Dudi Mais Rosa foi o primeiro artista a aceitar o convite do Torreão, para realizar uma exposição individual na Galeria Xico Stockinger da Casa de Cultura Mário Qintana. Sempre denominamos essas participações “promoção conjunta” e assim as divulgamos até hoje. Eliane Chiron e Jean Lancri, artistas franceses, realizaram suas intervenções no Torreão como artistas visitantes do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais do Instituto de Artes UFRGS. Muitos outros artistas nacionais, professores de universidades federais, vieram apoiados por suas instituições inserindo o trabalho realizado no Torreão como atividade de pesquisa, o que é sempre muito bom. Waltercio Caldas realizou seu trabalho no mesmo período de sua exposição individual (Livros) no Margs. Foi curioso, pois carinhosamente Waltercio considerava sua intervenção uma página. Seu trabalho intitulava-se Frases sólidas. Uma das definições mais concisas que temos do Torreão vem, aliás, de uma declaração de Waltercio durante a montagem de seu trabalho: “O torreão é um copo d’água quase cheio.” O Atelier Livre também manteve, durante certo período, a realização de promoções conjuntas durante o Festival de Arte da Cidade de Porto Alegre. Não podemos esquecer que essa instituição foi a que prestou homenagem a nosso aniversário de 10 anos, convidando-nos a realizar uma palestra sobre o Torreão em seu simpósio
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anual. Ricardo Basbaum, por exemplo, é um desses artistas convidados pelo Atelier Livre, que realizou seu projeto no Torreão, convocando também seus alunos a participar. Essas promoções conjuntas foram e são sempre muito bem-vindas. Vamos agora pontuar uma das instituições que mais prolongaram uma parceria conosco: Goethe-Institut de Porto Alegre. Juntos, criamos um programa de residência artística que já se realiza há 10 anos, continuamente. São 10 artistas alemães trazidos pelo Goethe, que permanecem um mês na cidade, com todas as condições para realizar seu trabalho na torre, exercitando a convivência com nossos alunos. Nesse mesmo projeto, o artista faz duas palestras, incluindo-se em nosso programa geral de atividades, que sempre propõe ao artista um espaço de conversa com o público. É preciso dizer que a maioria dos artistas que aceitaram o nosso convite para realizar intervenção no Torreão o fez assumindo todos os custos, pois não temos como oferecer mais do que o espaço, nossa hospitalidade e uma certa infra-estrutura de apoio à produção do trabalho (ajuda que muitas vezes vem dos próprios alunos do Torreão, com vontade de estreitar relações com o artista e seus modos de trabalhar). A dinâmica de trabalho do Torreão não depende de nenhuma instituição, mas acredita em suas profícuas interlocuções. Malu: Para mim foi uma experiência importante trabalhar no Torreão. Um pequeno espaço imantado por sucessivas intervenções. Penso que a continuidade do Torreão ao longo de 15 anos é algo extraordinário. O que vocês acham de comemorar o aniversário “carioca” do Torreão? Jailton: Nesses 15 anos estamos fazendo muitas comemorações, porém esse convite para um aniversário carioca tem sabor especial. Reafirma a idéia de interlocução dessa experiência. Foi um tempo de conversas e encontros com artistas e críticos de diferentes regiões. Do Rio de Janeiro, Arthur Barrio, Waltercio Caldas, Ricardo Basbaum e você fizeram trabalhos específicos para a torre. Também tiveram a oportunidade de vivenciar maior compreensão de todo o projeto, em que as intervenções são apenas um elemento conectado com toda uma dinâmica de pensamento e produção em arte. Elida: Iniciamos o ano comemorando e estar com vocês no Rio, poder conversar sobre o trabalho, apresentar um pouco de nossas idéias, tudo isso está colado naquilo que acreditamos que o Torreão é: “lugar de conversa”. Por essa razão, estamos felizes em poder compartilhar com vocês nossa dinâmica de trabalho, nosso processo, enfim... ampliando justamente esse espaço de interlocução. Mas o que estamos comemorando, é preciso dizer, não é apenas uma data redonda, e sim, algo que se faz durar em seu tempo de realização, sem planejamentos formais ou ambições institucionais. Simplesmente, nós conferimos valor a um estado de atenção constante às questões de arte contemporânea com as quais estamos envolvidos, e com pessoas que nos suscitam curiosidade e interesse, fazendo com que haja o desejo de estar perto. Como agora, com a situação criada pelo convite de vocês. Estar perto, eis tudo!
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Ricardo: Elida, gostaria que você desenvolvesse mais a noção de “lugar de conversa” que mencionou como uma das principais características do Torreão. Elida: Ricardo, às vezes estamos tão habituados a um certo vocabulário, que o utilizamos acreditando em uma escuta cúmplice... mas nem sempre nos fazemos claros na exposição de nossas idéias. Pois bem, conversa, aqui no contexto da história do Torreão, é tudo o que promove diálogo, não necessariamente apenas entre eu e Jailton. Os próprios espaços conversam entre si, no sentido em que as salas de ateliê se tornam laboratórios de leitura e escrita, os trabalhos produzidos especificamente para a torre ecoam na produção dos alunos, trazendo muitos elementos importantes para discussão. A partir de um determinado momento, acho que após os oito primeiros anos do Torreão, os alunos passaram a reivindicar salas para experimentar situações espaciais que correspondiam, de certa forma, às intervenções na torre que eles presenciavam cotidianamente. Três salas foram disponibilizadas para tal, sem se caracterizar como espaço de exposição, aberto ao público. Os alunos realizam seus projetos em tempo determinado, os trabalhos são discutidos com o grupo, provocando conversas. Por outro lado, as projeções de imagens comentadas por Jailton a cada final de aula acabam também produzindo a necessidade de ampliar o repertório de referências da história da arte que já temos, e, nesse caso, procuramos conversar com outros autores e artistas. No que se refere ao trabalho das intervenções artísticas na torre, cada vez que recebemos um artista convidado, o primeiro passo é sentar em volta da mesa, perguntar sobre a proposta, perceber o embate com o local, para que o projeto do artista encontre as ressonâncias desejáveis ao nosso, incluindo possíveis desafios ou desvios. Gosto de pensar o Torreão como um campo de pouso para as idéias, e a conversa, como conseqüência das fricções entre elas. Conduru: Como vocês vêem a situação do Torreão entre as instituições de formação e experimentação em arte nesses 15 anos? Depois desse tempo e do reconhecimento local, regional, nacional e internacional, bem como diante do quadro das instituições de arte no Brasil, é possível falar do Torreão como espaço não institucional? Jailton: Tem algo que ainda não foi colocado, que é o fato de o Torreão ser uma experiência absolutamente pessoal, isto é, suas demandas, ambições e seus movimentos estão totalmente ligados ao desenvolvimento de nossas poéticas de trabalhos e idéias do que poderia ser uma educação em arte. Se essas decisões, depois de um tempo, adquiriram coerência, visibilidade e reconhecimento isso foi conseqüência e nunca o objetivo. Creio que, às vezes, isso é confundido com certa institucionalização informal, mas acho que é um engano pensar assim. Não temos qualquer tipo de responsabilidade em manter ou negociar essa visibilidade e esse, dito, espaço institucional. Ainda buscamos respostas à escuta que fazemos das nossas demandas processuais. Aceitar a idéia de institucionalização do Torreão seria aceitar a idéia de institucionalização do processo artístico. Por mais que, sem qualquer ingenuidade ou modéstia, reconheçamos
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que essa experiência está definitivamente instaurada em um contexto, por mais que isso nos alegre e mesmo que busquemos entender e dialogar com esse espaço, ele não foi e não é o nosso centro. Reafirmo o que Elida coloca sobre o Torreão como atitude afirmativa e não negativa em relação a um panorama. Tentamos dizer “sim” a algumas coisas. Muitas vezes essas afirmações estão em sincronia ou assincronia a um contexto. É tão complexo tentar dizer “sim”, que não há tempo nem paciência para tentar construir ou debater o “não”. Uma dessas afirmações é a ênfase nas discussões das relações de arte e lugar, o que acabou também definindo um lugar do Torreão na formação de artistas e na exibição dessas questões. Se esse lugar for pensado como um espaço definido é fácil institucionalizá-lo. Porém sentimos como um campo de ações instável, cheio das incertezas que os processos artísticos e educacionais estão sempre a gerar. Ricardo: Elida e Jailton, como vocês vêem a atuação junto ao Torreão enquanto indicadora da elaboração de outra ‘imagem’ do artista? Ou seja, além de vocês desenvolverem uma obra pessoal, autoral, o trabalho de agenciadores ou educadores ganha uma dimensão considerável na vida de cada um. Interesso-me em saber em que medida, para cada um de vocês, essas atuações se aproximam e se complementam ou mesmo entram em conflito e se movem para longe umas das outras (já que sempre é necessário traçar limites). Pois se há espaços diferenciados para o ‘artista’ e o ‘educador’, há também a riqueza da mistura dos papéis e o desenvolvimento de imagens diversas que se desviam do percurso único do ‘artista de carreira’, voltado majoritariamente para o circuito, para o mercado. Gostaria de um depoimento de vocês acerca dessa questão, uma vez que acredito que a importância de uma experiência como a do Torreão – que não deixa de ser ‘autoral’ – invariavelmente se relaciona com as buscas e as poéticas do trabalho de cada um. Jailton: É curioso como essa questão foi reincidentemente colocada para mim em diálogos e entrevistas nestes últimos anos. Não é à toa, pois esse projeto é justamente a problematização e a resposta diária desse pseudo-impasse. Se falamos e defendemos a diluição das categorias da arte no contexto contemporâneo, muitas vezes mantemos uma posição hierárquica, ainda modernista, em relação à atuação do artista. Para eles, a obra como produto de expressão, inserção e visibilidade continua tendo posição privilegiada em relação a outras atividades, por exemplo, a educação em arte. Para mim, o Torreão é um projeto que destruiu a hierarquia com que eu costumava tratar minhas diversas atuações com a arte. De certa forma, a coisa é bem simples. Começa por tirarmos as aspas que isolam as palavras artista e educador, para quem arte é um processo/ ferramenta de entendimento do mundo; existem muitos caminhos para essa abordagem, e nenhum é necessariamente melhor do que o outro. São apenas maneiras distintas de se aproximar do assunto. Com o Torreão, as atuações como artista, educador, curador e viajante se mesclaram. Acho um exagero pensar que esse trabalho pode indicar outra
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imagem do artista. Tudo o que fizemos e fazemos não tem qualquer ambição de criar algum paradigma exemplar. São apenas duas pessoas conciliando seus diferentes interesses sem os compartimentar. Pensar numa poética nesses termos é tentar entender como o trânsito entre esses setores é encaminhado. É claro que complicaria bastante se a ambição fosse ter uma imagem facilmente apreensível e negociável, mas, se isso não é um desejo, esse problema, não existe. Elida: Vocês bem podem imaginar o quanto a nossa noção de arte foi sendo lapidada nestes últimos anos. Digo lapidada no sentido de um movimento lento e cuidadoso em relação à compreensão de nossas próprias concepções de trabalho. É Haroldo de Campos que diz, em meio a suas Galáxias, que uma vontade polida é como um diamante. Então, confesso certa vaidade por esse tesouro que temos nas mãos: uma idéia que, ao ser mantida e realimentada, repensada e redimensionada inúmeras vezes ao longo do tempo, vem tornar-se pedra preciosa – algo que podemos chamar legitimamente de experiência, sem enrijecimento de conceitos ou definições entre uma atividade e outra. Foi com Jailton que aprendi a reposicionar-me em relação a supostas hierarquias, como, por exemplo, entre o contexto acadêmico e o universo mais amplo de uma pesquisa em artes visuais. Considero o Torreão meu laboratório de trabalho, onde desenvolvo pesquisas que estão, evidentemente, inscritas tanto no Departamento de Artes Visuais e no Programa de Pós-Graduação do Instituto de Artes da UFRGS quanto no CNPq. Quero dizer com isso que não separo meus interlocutores e/ou alunos e meus colegasprofessores de acordo com o lugar em que estão situados ou, como dizíamos antes, com uma determinada situação institucional. Gosto dessa proximidade. Tudo é uma espécie de ampliação de conteúdo e de discussões que nos interessa manter acesas. Tenho muito claro para mim que eu não poderia apenas atuar na universidade sem a trajetória artística que o Torreão me ajudou a construir. As datas coincidem: no mesmo ano em que o Torreão foi inaugurado ingressei como professora no IA. E ainda no mesmo ano iniciei um projeto que mantenho até hoje, intitulado Falas Inacabadas, cujo processo de trabalho artístico incorpora elementos decorrentes de associações inusitadas, seja entre tempo e memória, seja entre arte e palavra. O que me interessa é cultivar os entrecruzamentos possíveis e, ainda parafraseando Haroldo, tentar visualizar a arte lá no seu horizonte do provável. Malu: Acho importante marcar a aproximação e o diálogo do ensino de arte na universidade com outros espaços. A ampliação de um território não só para alunos, mas também para artistas/professores. Gosto muito da imagem de um campo de pouso, do lugar que se diferencia ao acolher cada artista. Gostaria de saber um pouco sobre a questão do registro das intervenções feitas no Torreão. Como acontece? Como reverbera nas atividades de trabalho com os alunos ou delas se origina? Jailton: Desde o início achamos que era importante registrar as intervenções por fotografia e vídeo. Isso hoje gerou um DVD duplo de 135 minutos, em que cada intervenção
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tem registro de um minuto e meio. Também criamos para cada ano um portifólio fotográfico. Em 1996 participamos de um CD-ROM que disponibilizava farto material de nossos primeiros três anos de atividades. De 1998 até 2005 editamos um pequeno folder anual colecionável. Para compor esses textos, convidávamos uma pessoa do público, no dia da abertura, para escrever sobre o que estava vendo. Lançávamos na intervenção seguinte e, assim, mobilizamos pessoas das mais diferentes áreas no sentido de registrar suas impressões sobre essas experiências. Ainda em relação às intervenções, de 2003 até 2006, uma aluna do Torreão, Gabriela Motta, resolveu gravar longas entrevistas com os artistas que realizaram trabalhos por lá. Algumas foram transcritas, mas muitas ainda não. É um material precioso, que ainda pretendemos disponibilizar. Do projeto Atelier Aberto, fizemos sete documentários em vídeo. Porém muita coisa ficou sem registros, e muitos encontros com artistas e documentação dos processos de construção das intervenções tiveram documentação precária. Esse material é constantemente visto, revisto e consultado pelos alunos e por qualquer interessado que nos visite para alguma pesquisa. Pela internet uma parte dessa documentação está disponível no site artewebbrasil.com.br. Elida: Apenas para complementar, gostaria de dizer algo a respeito das opções que fazemos. Desde o início, alguns amigos nos incitavam, por exemplo, a gravar todas as conversas realizadas com os artistas ou intelectuais convidados para os encontros de discussão (que geralmente acontecem aos domingos, final de tarde). Nossa escolha foi registrar apenas em foto, quase como a assinatura de Van Eyck: “Eu estive aqui”... porque há algo de testemunho em cada uma de nossas atividades, algo que valoriza a presença, a palavra, a escuta, o diálogo. Todos os outros materiais citados pelo Jailton, álbuns de fotografias, vídeos, textos produzidos, site... tiveram a função, por um determinado tempo, de caderno de anotações, registros de experiências, mas é claro que a cada ano todo o material era organizado de maneira a compartilhar e, com isso, incrementar nossas trocas de experiências com aqueles que nos visitam. Luiza: Estou entrando agora na conversa. De saída estou contente por incluir a EAV do Parque Lage na comemoração dos 15 anos do Torreão em especial quando a Escola está refletindo sobre sua própria história e seu lugar na formação em arte. Um diálogo com o Torreão enriquece esse processo. Certa constância, disposição e ousadia são necessárias para manter projetos de cultura em atividade por mais de uma década. O que teria sido mais determinante para que o Torreão se mantivesse em sintonia com a produção mais instigante da arte contemporânea? Elida: Se há algo que o Torreão nos oferece desde seu início é este prazer do encontro e do diálogo. Talvez tenha sido esse um dos fatores que podemos chamar de determinantes no que concerne à continuidade de nosso trabalho. Uma das coisas que sempre mantivemos como princípio é nossa curiosidade diante de produções, independente de o artista ser re-
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conhecido, jovem ou com percurso mais avançado em sua pesquisa artística. Nós dois, cada um em seu ritmo e em oportunidades diversas de interlocução, nos deparamos com proposições que nos atingem, que entram em nossa conversa, a ponto de querermos ver em nosso espaço o embate do artista como uma experiência da relação arte/lugar. E, por incrível que pareça, nossa sintonia é tão fina, que muitas vezes, ao começar a dizer um nome, o outro já completa, dizendo: “pois eu estava justamente pensando em convidar este artista!” Isso no que concerne exclusivamente às intervenções na torre. Há mais, porém, para ser dito. Me parece que outro dado determinante em relação a nosso contato com o que há de instigante nas produções contemporâneas é nossa prática diária de aproximações e diálogos com a história da arte, como um todo: brasileira ou internacional. Não há como deixar de tecer essas conversas! Freqüentamos exposições, participamos de juris, de curadorias, de residências artísticas, viagens, enfim... Há algo que nos mobiliza, que é o acesso à linguagem específica da arte, e insistimos em nos manter atualizados quanto ao que nela é acrescentado. Vamos a um exemplo do que quero apontar: Jailton mantém grupos no Torreão que freqüentam as aulas semanalmente para desenvolver projetos individuais. A cada final de aula, ele organiza projeção de slides e filmes, nos proporcionando base de referências que possibilita olhar mais atento e crítico sobre o que é produzido hoje. Quando posso, me incluo como aluna. O que mantém essa nossa atividade é a inquietação e também o prazer que uma produção em arte contemporânea possa nos proporcionar. Conduru: Elida, Jailton, Malu e Basbaum, em que medida a experiência no Torreão afetou seus trabalhos individuais como artistas, suas obras? Jailton: Uma boa parte dessa resposta já está na resposta da questão anterior do Basbaum. Insisto na idéia da supressão da hierarquia do lugar que esta coisa chamada “meu trabalho” ocupava. O Torreão definitivamente redefine essa questão. Desloca a importância do objeto para ater-se a uma maneira de agir como cerne de uma poética. A produção plástica passa a ser uma das possibilidades de abordagem e não a única e privilegiada forma de expressão e reflexão artística. Ricardo: O espaço do Torreão demanda de fato uma “intervenção” – e não uma “exposição”. Tenho três lembranças fortes, correspondentes aos principais momentos de contato com vocês: lembro de nosso primeiro encontro, em julho de 1996, quando estive em Porto Alegre com Eduardo Coimbra, para lançamento da revista item-3. Houve imediata convergência de interesses, e você nos convidou para conhecer o Torreão e participar de uma conversa e apresentação de slides de nossos trabalhos, junto com outros artistas – ocasião em que conheci o Jailton. Fiquei feliz pela troca estabelecida, pela generosidade e pelo acolhimento: o convite e a conversa se deram de modo direto, franco, interessado, sem formalidades – foi um momento significativo para mim. Nos anos seguintes, continuamos nossas conversas de maneira intermitente, mas com os canais de contato em aberto – eu estava envolvido com o espaço Agora/Capacete, e via o Torreão como uma ação próxima e afim, e isso trouxe mais elementos para nossas conversas. Quando realizamos (eu, Paulo Reis e Ricardo Resende) a
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curadoria do Panorama 2001 (MAM-SP), o Torreão foi incluído na discussão acerca dos espaços autônomos agenciados por artistas – sem dúvida um momento de reconhecimento da relevância do projeto dentro do novo mapa do circuito de arte brasileiro. O convite de vocês para que eu realizasse uma intervenção se efetivou em julho de 2003, quando pude ir a Porto Alegre para ministrar uma oficina no Festival de Inverno. Gosto muito de desenvolver oficinas que tenham relação direta com alguns de meus projetos de trabalho (em afinidade com dinâmicas de grupo ou agenciamentos educativos, como vocês mencionaram). Então procurei articular a intervenção com a oficina, de modo que a torre fosse um dos pontos de referência do projeto, a partir de um desenho sobre o mapa de Porto Alegre. Construí a intervenção de maneira que uma das linhas do desenho passasse, naquele momento, pela torre – um dos ângulos do desenho foi ali materializado sob a forma de uma cortina, que o visitante tinha que atravessar ao entrar na sala. Assim, o corpo era tocado pelos fios, gerando uma presença física do desenho, que seguia de modo ‘invisível’ pelo resto da cidade (e era interessante abrir as janelas da torre para ‘ver’ a continuação do desenho...). Foi a primeira realização efetiva de uma ação da série Re-projetando, gerando ótimo material em vídeo e o contato com alguns artistas, que se prolonga até hoje. Malu: A intervenção que realizei no espaço do Torreão intitulou-se Nota de rodapé. No trabalho propus uma relação entre arquitetura e paisagem que tem sido retomada em obras recentes. Acho que o mais importante na experiência do Torreão foi sem dúvida ter meu trabalho desde a montagem – em sua proposição técnica, plástica e conceitual – como objeto de reflexão compartilhado por Jailton, Elida e por alunos e artistas. Isso inclui conversas, palestras, entrevistas e perguntas, muitas perguntas... Elida: Retomando um pouco a história do início do Torreão, eu tive o privilégio de ser quem primeiro ocupou o espaço da torre com uma intervenção elaborada especificamente para aquele local. Na verdade, durante nossas combinações iniciais, eu e Jailton decidimos que eu realizaria um trabalho como forma de apontar uma possibilidade. Resistimos muito em chamar de “exposição”, e, desde então, o nome “intervenção” foi o que melhor assumiu o caráter dessa experiência em torno da relação arte/lugar. Meu trabalho teve por título Golpe de asa, com referência direta ao poema “Quase”, de Mario de Sá-Carneiro. Se vocês me permitem, transcrevo aqui os versos iniciais que impulsionaram o projeto: Um pouco mais de sol – eu era brasa. Um pouco mais de azul – eu era além. Para atingir, faltou-me um golpe de asa... Se ao menos eu permanecesse aquém... (...) Quase o amor, quase o triunfo e a chama, Quase o princípio e o fim – quase a expansão... Mas na minh’alma tudo se derrama...
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Pois naquele momento, junho de 1993, recém-chegada de um período longo no exterior, o espaço me sugeria ventos, vôos, passagens. Muito mais que ar simplesmente, entrava pelas aberturas das janelas o vapor de uma espécie de sonho. Golpe de asa foi um trabalho que desejou derramar-se no espaço. Partiu dos altos ângulos do quarto, experimentou os vértices e a vertigem. Mas que espécie de quarto era esse, exilado dos demais aposentos da casa, nos altos, com três janelas em cada uma de suas quatro paredes? Espaço vazado, certo, onde uma pia, estrategicamente alojada em um dos cantos, encarregava-se de fazer escoar o que ficou entre o antes e o depois da viagem, um fim-começo que se materializou sob forma de quase. Para Golpe de asa escolhi o branco imaculado de lençóis para falar justamente de algumas manchas cotidianas: marcas de poucos, porém irreversíveis, gestos. O fio perigoso das coisas, o tênue contorno da ferrugem, a condensação de um tempo que passa em um vidro de conservas (conversas) de cozinha. Já contamos 15 anos dessa data, e o que identifico como marca da experiência é uma espécie de absorção desse todo derramado. O que tenho de individual engloba um conjunto de tantas outras vivências dentro do Torreão, e faço questão de manter como privilégio o espaço que criamos como aglutinador de sonhos, projetos e expansões. Desde então, percebo que meus projetos estão quase sempre colados ao espaço em que são apresentados. Gosto muito quando Jailton diz que meus objetos se acomodam e aí sim configuram o trabalho especificamente falando. Eu poderia dizer também que, de lá para cá, aprimorei contatos e interseções: tempo-espaço, arte-palavra, objeto cotidiano-criação artística... E ainda a literatura como fonte principal das idéias. E o que mais posso dizer? O Torreão, desde o início, é o meu ateliê no mais amplo sentido que essa palavra pode ter. Toda obra é conseqüência desse laboratório.
Elida Tessler é artista plástica e professora do DAV e PPGAV em Artes Visuais do Instituto de Artes da UFRGS. É pesquisadora do CNPq. Foi fundadora em 1993 e coordena até a presente data, junto com Jailton Moreira, o Torreão, espaço de produção e pesquisa em arte contemporânea, em Porto Alegre. Em maio de 2000, lançou o livro Falas Inacabadas, junto com o poeta Manoel Ricardo de Lima (Porto Alegre, Tomo Editorial). Bolsista-residente em Civitella Ranieri Center, Itália, 2005, em RMIT South Project, Austrália, 2006 e Aldaba Arte/ 17, Instituto de Estúdios Críticos, México, 2007. / elidatessler@uol.com.br
Jailton Moreira é artista plástico, professor e curador. Como artista participou de diversas exposições como a III e V Bienal do Mercosul, o Panorama da Arte Brasileira de 2001, 2003 e 2005 no MAM, SP. Criador do Torreão (1993), juntamente com Elida Tessler. Curador do Rumos Visuais do Itaú Cultural (1999/2003). Como professor ministrou cursos de história da arte e orientação de trabalhos em diversas cidades do Brasil. / jailtonm@brturbo.com.br
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Poesia com dromos: “À”1 de Luis Andrade O encontro-reflexo dos dois lados do espelho* Ana Paula de Miranda
Este pequeno artigo-ensaio aborda o trabalho do artista plástico, Luis Andrade intitulado “À”, a partir de conceitos dos filósofos Gilles Deleuze, Merleau-Ponty, Nietzsche e Martin Heidegger. A inspiração de abordálo conceitual e fenomenologicamente, por meio do viés do pensamento desses filósofos, foi resultado da exposição dos palíndromos nos campos da UERJ em 2001, que gerou a trama autoral aberta pela escrita que aqui é oferecida como possibilidade de leitura do trabalho artístico. Arte brasileira contemporânea, filosofia, Luis Andrade. Entre a realidade dada como um fato, instituída, e a essência secreta que a sustenta, existe um momento instituinte no qual o Ser vem a ser. (Merleau-Ponty) Ante à fraqueza da palavra humana, tudo o que há de belo, o olhar traduz. (Machado de Assis) Palíndromo remonta à Antigüidade grega e significa “palavra ou frase *Artigo recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008.
que tem a mesma leitura, seja da esquerda para a direita, seja da direita para a esquerda”:
1 O título do trabalho “À” (que durante um tempo virou assinatura do artista hipermídia) marca o momento de justaposição de dois “As” num círculo palindrômico: “o instante em que o verso e reverso do espelho de onde as frases se originam são coadunados milagrosamente”, segundo declaração do artista em entrevista a mim concedida. De acordo com minha interpretação dessa provocação no efeito que produzem as frases se nelas tentamos mergulhar, a experiência artística com a obra conduz do não-dito ao teor do dito, e vice-versa. Mais adiante, aprofundarei esse meu entendimento.
ficação mística, mágica, em linguagem sibilina.
haveria, na leitura, algo que, por trás de palavras simetricamente iguais, ocultava signi-
Por isso, tentar decifrar palíndromos pode parecer, para incautos estudantes de filosofia, um desafio-enigma que oferece não poucos riscos... [[ao lê-las, um silêncio inexplicável e profundo se interpõe no mistério com que essas frases nos toca quando buscamos um sentido ao encontrá-las: delas ecoa um vazio... [ ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ] O mesmo vazio que Merleau-Ponty adjetivaria como “cheio de sentido” – impossível de ser expresso em palavras... [ ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ]] (Talvez aquele mesmo vazio que guarda o inominável...)
2 Refiro-me a Deleuze e seus blocos de sensação, seus compostos de perceptos e afectos – que transbordam a força daqueles que são atravessados pela obra de arte – guardando tantos vazios quanto seja permitido para que neles saltem cavalos. Cf. Deleuze, Gilles. Guattari, Félix. O que é a filosofia, cap. “Afectos e perceptos”.
Considerando, por outro lado, o que Deleuze nos sinaliza sobre a capacidade da imaginação “ver cavalos” nos vazios-instantes dos blocos de sensação que compõem uma obra de arte,2 o trabalho intitulado “À”, de Luis Andrade, parece oferecer as pistas para o espectador-leitor de seus palíndromos os encontrar.
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Ao galgar o caminho indicado por ele, temos a ilusão de seguir para uma clareira em meio a uma floresta... E como uma experiência que nos puxa para a realidade que a movimenta “por detrás”, somos surpreendidos por uma visão doadora de caos e forma, revelação e ocultamento – na esteira aberta pela palavra-música que lhe serve de pano de fundo, nessa busca incessante de transposição perfeita-e-idêntica das palavras para a imagem e da imagem para a sonoridade – revelando um vazio fecundo: de um nada que pode conter tudo, em que todas as possibilidades se escondem – como acesso a tudo o que é e pode ser, no mistério do que subjaz o real e precisa vir ainda, como um presente, à visibilidade. Ora, Nietzsche pediu aos filósofos do futuro: “lê tua vida, e aprende nela os hieróglifos da vida universal”.3 Ao lado de sua tão falada “metafísica de artista”, que atribui à arte a tarefa de explicar a existência, podemos imaginar, como numa fábula, que essas frases “À” funcionariam como os tais hieróglifos da vida universal, inscritos na vida particular do artista. Se nos permitirmos dessa maneira receber suas mensagens e nos deixarmos levar pela vontade de explicar seu sentido e consistência, seremos tomados pela sensação que nos remete a um Eterno-Retorno sem fim, um ir e vir infinitos, um eterno criar e recriar sem começo nem ponto final. Assim, guardando a encantadora ilusão de as frases exprimirem a promessa de revelar o imponderável de quem, um dia, desejou ousar empreender uma incursão no âmago do mistério da vida, uma experiência, incomum, pode ser acessada: uma experiência da ordem do contato com o ser – como diria Heidegger – que se nos abre, em seu percurso silente, para uma reausculta do real – em meio ao caos, a todo tipo de excesso na contemporaneidade, sua poluição, sonora e visual, e verborragias gnosiológico-intelectuais, com sua hybris mentecapta de racionalidade. Com efeito, somente cessada toda operação intelectual pode o real se expor, senão o discurso o mantém em seu pequeno achatamento: quando vivemos sob a lei da linguagem, a lei lógica, reduzimos o acontecimento artístico a um plano no qual a vida permanece em nós como se não existisse. Nesse sentido, essa re-ausculta se daria à medida que seguimos as frases e vislumbramos o não-dito no interior do dito, refazendo o caminho das possibilidades inexauríveis de significação criativa salvaguardadas no silêncio em que, surpreendentemente, recaem. Movidos por esse interesse, sobretudo, aprendemos pouco a pouco: os palíndromos não como resposta, mas como pergunta, para fazer pensar, que nos envia à experiência interminável da interrogação. Realizar essa experiência, na predisposição de negar os significados que limitam o possível, nos remete imediatamente ao sentimento de “angústia” heideggeriano: analogia do desespero ao se perceber que ela não procede de uma revelação; ao contrário, nela nada tampouco se revela, a não ser o desconhecido. Tem início, então, uma estranha sensação em que a angústia de que elas estão ali e são oferecidas como enigmas a resolver combina-se com ousadia. É então o desespero que traz de novo a palavra a sua função de mudar aqueles que ela toca, refazendo os laços do silêncio, a parte muda, furtada, inapreensível, como dramatização daqueles que ela joga. Assim é que, como possibilidade de trama aberta em cada círculo reflexivo de frase-palíndromo, podemos ler o terreno em
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3 F. Nietzsche. Obras incompletas. In Os Pensadores. Considerações extemporâneas. p. 80.
que célebres questões encontram a polpa ambígua do verso e reverso, côncavo e convexo, perceber e percebido, até atingirmos a fusão do objeto e do sujeito: um dia diante de uma dessas frases, para encontrarmos o cerne de sua razão de ser, teremos a mesma sensação de estar diante da simetria especular que faz retornar cada letra a seu par, e, como diante desse espelho horas a fio, já não saberemos quem é quem: quem espelhado é real ou ilusão, pois o sujeito passa a ser, definitivamente, o não-saber, ao passo que, cessando qualquer perscruta do objeto, este se mostra como o desconhecido que nos pergunta. Até que todas as questões supostas pelos filósofos de todos os tempos cheguem ao mesmo termo com que Nietzsche ironiza a Vontade de Verdade na história: o que se apresenta a nossa frente? (ou será que somos nós que se nos apresentamos diante dela?) Quem é 4 Cf. Nietzsche. Além do Bem e do Mal – prelúdio a uma filosofia do porvir, § 1.
Édipo no caso? Quem, afinal, é a esfinge?4 Intrigando-nos dessa maneira, as frases surgem de um imenso vôo sob a silhueta arquitetônica dos prédios como se quisessem refazer suas bases com capitéis capazes de devol-
5 Essa expressão me veio à lume como efeito que tive da exposição na UERJ no final de 2001. É concorde ao realismo rilkiniano, para quem a beleza de uma imagem é a verdade e a força que ela encerra. A expressão assinala aqui as cidades, depois do Rio, por onde as frases (em diversas línguas) de LA visitam em exposição de 2002 a 2006, entre elas Liverpool (Bienal), Nova York (The American Society e MOMA – Museu de Arte Moderna de Nova York), Belo Horizonte (Museu de Arte da Pampulha), Sttutgart (Württembergischer Kunstverein) e Petrópolis (Museu Imperial).
ver a carga de um impacto de pensamento5. Ambicionando a espacialização das cidades urbanas, o trabalho em bloco parece erigir-se como “obra de uma realidade profunda” – enquanto mensagem que se impõe à vida, pois não fora por ela tocada, mas formada, em tudo e contudo. O NABUCODONOSOR...O SONO DO CUBANO Em um jogo de espelhos de reduplicação do real, súbito descoberto, são as frases que trazem a palavra sempre de volta à origem, para a outra margem do silêncio: como resposta a uma época em que a linguagem, saturada de dizer, se faz surda para o ser das coisas... Como efeito, somos reconduzidos ao ponto silente de que se parte e no qual se chega – onde [o] nada contém [o] tudo ou [o] tudo contém [o] nada, como o Tao – em seu processo espontâneo, de produção e transformação de todas as coisas, em acordo perfeito com sua natureza essencial. Nesse sentido, essa re-ausculta se daria à medida que seguimos as frases e somos reconduzidos ao dito e ao pensado desde sua força originadora inexaurível: para, com acerto admirável ao final, em alcance exato e inacreditavelmente poderoso de caracteres, nos re-velar, tão-somente, a vida em sua expressão mais simples... Se sob a advertência de outro filósofo, Heidegger, desconfiamos do engano que se pode esconder no que se dá de imediato nas palavras, talvez seja necessário – antes – que atentemos em reflexão ao profundo que se dá no velado... É que, quando lemos um palíndromo, uma voz velada do mais profundo parece pedir acesso a todos os apelos que a palavra não é capaz de atender... Cada frase parece reverberar, com isso, o mistério que oculta a própria vida... Se a filosofia de Heidegger aponta a palavra mítico-poética como o privilégio que a linguagem nos dá ao reunir o que se configura na existência, com todas as suas idas e vindas, todas as suas rupturas, paradoxos e ambigüidades – e, no entanto, plena em cada
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presença, em cada instante, em cada efetividade realizada – “À” de Luis Andrade reproduz os enunciados que velam algo do que é revelado, pois precisa carregar, ainda, toda a
Luis Andrade. Desenvolvimento simultâneo, performance pirotécnica, Rio de Janeiro, 1999.
imensa possibilidade que a vida traz a cada novo dia... Como sugere Merleau-Ponty, a arte é aquele trabalho que concretiza a presença habitada por uma ausência que não cessa, por um aspirar ao que não se conhece, por uma plenitude nascida de um vazio e de um instante de prazer, de uma carência, pois é no vazio determinado em que “algo” falta que a arte surge como promessa. E é o “volume” do que há ainda para ser dito que chama o artista à necessidade de preenchimento desse vazio, transpassando à força de qualquer vivido, uma vez que sempre “algo de indizível sustenta por dentro o dizível”.6 Há sempre uma parte muda, furtada, inapreensível em nós que subsiste enquanto necessidade premente do dizer.
6 M. Ponty. A Linguagem indireta e as vozes do silêncio. In O Olho e o espírito, p. 82.
A LETRA MARTELO-LETRA MARTELA Tradução dos palíndromos Em entrevista7, o artista se remeteu “ao logodédalo” Haroldo de Campos, que conseguiu o êxito de traduzir palíndromos do poeta russo Khlebnikov. Como decifrar este ponto – o si-
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7 Entrevista realizada para a UERJ por Ana Paula de Miranda e Fernanda Pequeno publicada no site “MEIO“, endereço: www.meio.art. br em 29.06.2004.
lenciar dos entendimentos habituais do dizer – ao qual os palíndromos retornam?! É claro que o autor não pode responder, como artista, à repercussão e as sentido que suas frases causam aos transeuntes aos quais são expostas. Todo pesquisador, cientista ou filósofo é sedento de conhecimento, de entendimento, em sua obsessão apolínea pelo saber. Que sentido, perguntavam eles, teriam querido dizer aquelas frases? Ou, como um estudante de artes, qual “a intenção de significar” daquele trabalho? Será possível entender nisso a forma como os deuses, jogando dados, estejam querendo nos dizer algo? Talvez. Para os estudantes de filosofia aquelas palavras, que vêm e voltam, carregam a possibilidade de devolver à linguagem o alcance indizível de expressão: silente, de pausa, de vazio, do “nada” enquanto pura possibilidade, participando do sentido do que é comunicado – e ocultado... Por outro lado, se podemos ver nos vestígios deixados pelos palíndromos o fascínio dos fragmentos dos gregos antigos e seu irremediável perder-se no tempo, eles parecem – com uma força plástica, configuradora de physis –, comunicar o que sempre existiu, como que
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tocando os temas que fizeram a história da humanidade ocidental. ........................................................................................................................... E o que dizer da frase que criou para fechar, como naquelas fábulas de Esopo, o textoapresentação de um de seus projetos, Objeto Intermediário:8 “arretado logos: o golo da terra”? Que “verdade” essa frase quer nos fazer ver no velado perfeito de sua justa e
8 Publicado no Caderno de Linguagens Visuais do Programa de Pós-Graduação, pela EBA/ UFRJ, em 1999.
enigmática aparição? Saltando de uma intuição do Logos heraclitiano, o logos gerador de mundo, como intuição imediata do que os filósofos em todos os tempos estariam dizendo sobre o logos criador de physis (e que, por acaso, a Bíblia dos hebreus9 registra ainda nesse sentido, dos povos antigos), em “arretado logos: o golo da terra”, podemos ler o verbo divino que teria originado a Terra... Ou seja, o verbo que, com a autoridade de um deus, “faz ver” o que existe na origem. Se transpusermos para um sentido mais amplo, que a frase pode acusar,
9 Para desdobramentos futuros desse estudo, a quem possa interessar, cabe lembrar a curiosa coincidência dessa menção aos hebreus, uma vez que LA, chegou a compor palíndromos na língua hebraica.
diríamos, ainda, o logos significando a unidade de reunião constante, e em si mesma imperante, que, reunindo em sentido originário, é o manifestar-se de tudo o que existe e vem a existir na Terra. O logos dos pré-socráticos, por outro lado, é o verbo que constitui o mundo do homem, sendo concomitante àquilo que “aparece” (physis em grego), e fiel ao que se dá na realidade, em seu movimento próprio de eterna expansão e retração, revelação e ocultamento, construção e destruição... E se o fragmento 123 “Physis krypthesthai philey”, de Heráclito, aponta para a ambigüidade inerente à physis, que, segundo ele, “ama esconder-se” (posto que o Ser do real é ambíguo em seu emergir e esconder-se), esse parece ser também o estilo – a particularidade – com que, saindo de si e de sua tão inconfundível singularidade, o artista dá a ver e conhecer a universalidade que faz brotar de sua obra: e o faz a partir de algum elemento velado, algum dado irremediavelmente perdido, como paradoxo da aparição com que nos vem trazer suas frases – originais anti-sentenças: OI... LIXE-O, O EXÍLIO. É como se a obra se erigisse na busca ávida por algo que se perdeu a partir de uma ruptura, um acaso, uma quebra do entendimento. E é justamente como se essa busca incessante desse forças a seu caminhar – semelhante a uma procura num fragmento pré-socrático, em que verdades profundas ficaram perdidas no tempo e que faz com que a procura seja, e continue sendo, a cobiça nostálgica de todos os historiadores da Antigüidade... 10 M. Merleau-Ponty. A dúvida de Cézanne. In Obras incompletas. p. 123.
Mitologia Se, como diria Merleau-Ponty, artista e obra não se confundem, “na obra o artista mostra a necessidade de expressão de um trabalho motivado pela vida”.10 Sendo o artista aquele que ex-põe sua interioridade como obra, LA emerge como o navegante mitológico da Odisséia Moderna, que deseja exaurir sua obra ao modo das infinitas dízimas periódicas...11
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11 A passagem faz referência às inúmeras cidades, do Brasil e do exterior, que LA viajou com o trabalho em diferentes exposições, contabilizando cerca de 2.500 palíndromos, de 1993 até 2006.
Será isso o que nos diz “o argonauta atua no grão”? A partir da visão de uma epígrafe sentenciada a Odisseu, que iniciaria um percurso sem chegada, já que o leme do navio aquiesce ao lugar para onde o espírito sopra... Uma epígrafe, que não seria outra, do homem ocidental – do homem cosmopolita que busca, no fundo de tudo, a Mãe-Pátria no curso de uma viagem perigosa, de aventuras, para encontrar a si mesmo em nossa odisséia hodierna – num Mundo em que o ser humano se torna solitário, pois não descobre Pátria em lugar nenhum, como diria Nietzsche, 12 Uma referência direta do filósofo alemão a esse respeito encontramos em O Nascimento da tragédia, § 23.
ante o desaparecimento do “seio maternal do mito”.12 Epopéia sem deuses, que outrora davam sentido e direção à vida... o que, todavia, possibilita, rumar para o oriente de inquietações profundas: LUSÍADAS. UMA MUSA. DAÍ SUL Nesse contexto, o trajeto singular vivido por sua Arte (como busca descontínua e travessia arriscada) re-memora e re-faz os muitos caminhos que Odisseu teria seguido até uma meta, mas sem que lhe sejam dados os seus fins e meios de maneira imediata, e pela qual a existência ganha sentido rumo às configurações que cria junto ao lema distintivo da angústia moderna – que diante de um Nada, em meio aos acasos, às incoerências e rupturas da existência que nos devora e desorienta, tudo decai em um vir-a-ser ininterrupto. É que ainda para a moderna ausência de destino, corolário da morte de Deus – essa presumível aranha de propósito e moralidade por trás da grande tela e teia da causalidade13 –,
13 Nietzsche, Genealogia da Moral, III Dissertação, § 9.
permanecemos em hysteresis pela ausência de sustentação ontológica ou âncora em terra
14 Cf. Nietzsche. Sobre o niilismo e o eterno retorno. In Obras incompletas § 12A. p. 388.
mergir como elemento de supremo valor.14 Odisseu contemporâneo, diante do temor que
firme que propicie um sentido maior para as criações, nas quais o singular possa subo caminho não leve a parte alguma, é levado a negar toda crença, dada a crença, como necessidade vital, no poder de se conhecer através da criação – e a se dar sua medida e sua essência –, assumindo sua proveniência jogada, no poder de criação incessante, sem razão nem por quê, isso contra o que a razão nada pode já que se move desde o acontecimento súbito de criar a partir de si mesmo e não visando a nada além de si mesmo. Nesse impulso, súbito, pode emergir o momento de assunção das possibilidades que o momento contemporâneo nos oferece, podendo descobrir mesmo, na busca e criação incessantes de transformação da realidade, seu próprio ”poder-ser”, sua singularidade, numa palavra: o si mesmo conquistado “desde”, “a despeito” e “a partir” de fluxo soberano do devir; iluminando com isso a sombra em espectro de perseguição da sacralidade perdida, a sombra, recusada pelo excesso de informação, do apelo que ela, silenciosamente, re-coloca diante de nós. Descobre, então, que a expressão do acontecimento “morte de deus” estabelece a capacidade de suportação e de exposição voluntária ao devir como princípio de avaliação da grandeza de manter a tensão trágica do real, sem consolos ou asseguramentos de um “além metafísico”. A arte passa a ser o lugar de realização de uma experiência incessante, na qual o si próprio está em jogo em meio à vigência aterradora da vida e seus riscos.
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LAR, O MAR ERA MORAL No entanto, o perigo para uma arte entregue à errância de fúria de dominação do mundo – arte que traz sua própria informação repetida e dividida – é a perda de seu extravio em afã tão-somente de reflexão tornada irrefletida, saída de seus eixos, em que venha à tona de forma fragmentária e sem aporte para um público que não consiga preencher os cacos que ela oferece, transformando-a apenas em um ocupar-se automático, ou interesse fugaz, em que impere a curiosidade sem comoção a partir do impulso pela descoberta alijada de seu mistério essencial. Portanto, fazer essa viagem exige que o homem seja retirado do cotidiano para redefinir sua situação e reconduzido ao encontro consigo mesmo negando os valores existentes que limitam o possível. A SUASTIKA, K, IT’S A U.S.A. A face trágica do palíndromo Nessa busca des-esperada, percorridos todos os caminhos dos modos de procura da verdade na filosofia, podemos chegar, enfim, ao termo com que compreendemos melhor a conclusão nietzscheana sobre a busca des-esperada de razão e verdade metafísica corroborada pela analogia do palíndromo com a superfície especular da vida.15 O ensinamento que nos oferece o espelho dos palíndromos é a indicação em resposta para a obsessão apolínea pelo rosto de Dioniso enquanto verdade racional. Esse ensinamento é aquele que aponta, na mitologia, Dionisio mascarado, deus em díade complementar a Apolo na arte,
15 Essa intuição foi-me dada pelo vídeo do trabalho, “Á”; em que, ao final, em círculos concêntricos, o artista, sob a talargarça de suas frases palindrômicas, aparece diante de um espelho.
utilizando-se de tantas máscaras quantas possíveis para cada circunstância, sempre que elas se lhe abrem em sua genuinidade, convicto assim de que haja requisição por posicionamento veraz. Uma vez que Dionisio mesmo não tem face, qualquer busca de seu rosto – metáfora de verdade lógica na vida – é fracassada (zeroed). Eis, assim, um ensinamento que podemos tirar do desejo de sentido lógico a todo custo a que Nietzsche contrapõe em palavras: “Se tentarmos contemplar o espelho em si, não descobriremos nada além das coisas que aí se refletem. Se quisermos apreender as coisas, não atingiremos nada além do que o espelho. Esta é a história universal do conhecimento”.16
16 F. Nietzsche, Aurora, § 243.
AO BARRO PORRA BOA O conhecimento trágico desse espelho revelado pela busca do sentido dos palíndromos, se transforma no meio pelo qual a vida explora as fronteiras do impossível, os horizontes do imaginário e da natureza. Uma vez que a tensão entre o bom e o correto repercute em cada indivíduo e não nos livra do sofrimento, diz o filósofo de Roecken, é pelo espelho trágico do real que é possível ter contato com a nossa sombra submergida no uno originário17 e freqüentemente encoberta pelo véu da individuação apolínea. A força da tensão trágica emerge, nesse caminho, da capacidade de manter o altíssimo nível de tensão interna, e livre de quaisquer constrangimentos significantes, manter o fervor na revelação do que está diante de nós – e saber esperar. Esse é o poder real da tensão entre Apolo-Dionisio,
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17 Idem, O Nascimento da tragédia, § 2.
esse nível de tensão que mantém o arco da vida distendido e se sustenta no entusiasmo da revelação. Só com esse posicionamento afirmativo diante do trágico, poderíamos ter amplificada a capacidade de ensinamento ilustrativo da vida como instrução diante de uma situação inalterável em toda a sua gravidade. O ensinamento que Nietzsche nos dá a respeito do homem trágico que assume essa fé e essa capacidade de renovação infinita em júbilo diante do sofrimento-conhecimento que uma tal situação nos traz é: “A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou o fato de alcançar a vitória na derrota. Nesse grave confronto trágico, intuímos algo da já aludida estima suprema da individuação: aquela que um originário precisa para alcançar seu último objetivo, de modo que o perecer se revele tão digno e respeitável quanto o nascer, e de modo que o nasci18 Nietzsche, Sabedoria para depois de amanhã (os escritos póstumos 1869-1889), 7[128] p. 12. 19 Cf. O Nascimento da tragédia, § 9: “A lança do conhecimento sem limites é um crime contra a natureza e volta-se contra Édipo na forma de dissolução” eis o que o mito nos clama com as suas palavras terríveis.
mento deve a cumprir, ao perecer, a missão que lhe é imposta como indivíduo”.18 Ainda que um Odisseu nobre e generoso venha a rasgar o véu do futuro e decifrar o enigma da esfinge – espezinhando as leis da individuação em hybris que não conhece limites,19 se precipitando no abismo do não-ser e experimentando todos os efeitos da desintegração –, por sua assunção plena da existência, alcança a tal vitória na derrota. Odisseu-Édipo em seu aspecto aqui abordado como exemplo de amor-fati,20 compreende então que, em
20 Amor-fati, amor ao porvir, é o posicionamento afirmativo do indivíduo diante de tudo o que a vida traz tanto no seu aspecto alegre e de contentamento, quanto de seus mais atrozes sofrimentos.
seu modo de ser, a realidade-verdade não se pode dar de outro modo; e ainda que inocen-
21 Nietzsche, O Nascimento da tragédia, § 10.
arte como esperança jubilosa de que hão de ser quebrados os limites da individuação, e
temente inserido nela, acata as ocorrências de seu destino trágico e assume que não há volta. Com ele, lembramos os “Mistérios da Tragédia”: “a idéia fundamental da unidade de todos os existentes, a consideração da individualidade como causa primeira do mal, a o pressentimento de que a unidade há de ser restabelecida”.21 Nesse mais alto perigo para a vontade, por haver contemplado o fundo trágico da realidade, a ponto de se predispor a aceitar o perigo do aniquilamento budista da vontade, a arte recompõe a dinâmica de realização da vida e salva-nos, transformando a consciência da verdade contemplada pela primeira vez em imagens ideais que torna agradável e possível a existência. Eis como ecoam, assim, a diversidade da afirmação do que aparece e mesmo a face trágica do real, nas palavras em paráfrase de um belíssimo fragmento de Nietzsche: Uma tal arte experimental, antecipa a título de criação mesmo as possibilidades de um vazio fundamental. “Ela quer muito mais atravessar o pólo inverso – até um dizer-sim dionisíaco ao mundo, tal como ele é, sem subtração, sem exceção e escolha – ela quer o eterno curso circular – as mesmas coisas, a mesma lógica e não-lógica dos nós. O estado mais elevado que um [homem] pode alcançar: postar-se dionisiacamente frente à existência: minha fórmula
22 Nietzsche, Sabedoria para depois de amanhã (os escritos póstumos 1869-1889). Fragmento de início do ano e o verão de 1888, “Onde reconheço os meus iguais”.
para isto é amor fati”.22 UNIVERSO, VOS REVI NU Música incidental Que “intenção de significar” deseja, por sua vez, a música que lhe serve de pano de fundo, nos registros de áudio? Com a “música”, entendemos o que é provocado por aquilo que as frases têm de expressivo, por si mesmas, a melodiosa sonoridade que brota de sua recitação contínua, sem um sentido para além das impressões que causam, ou uma
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compreensão buscada segundo um alcance metafísico – que incorre no erro de pensar que pode prescindir da efetividade, da sensibilidade e da existência, e perde toda a riqueza na aparição e processo com que os fenômenos se dão. Assim sendo, já que não se pode extrair um sentido literal e semântico das frases sem se abrir aos “sentidos” (ao que as palavras “dizem“, enquanto emoções que suscitam), seu entendimento só acontece a partir de uma experiência estética. Com a palavra “experiência” conjugando-se ao ato de sentir e entender – um sentir (da música) que não pode vir sem um “entendimento”, e um entendimento que não pode vir sem um sentir. Como música e dança, que não podem vir uma antecedendo a outra, mas, no pano de fundo da música, a dança (das palavras) obedece e abre as significações que lhe cabem dar – na proporção dos instantes em coabertura simultânea... O SÓSIA RAP... O PARAÍSO SÓ Beleza especular Pelo eixo central do espelho das frases, temos o encontro com um sentido de beleza clássica, simétrica, sem contradição ou vazio uma vez que cada metade se abre e se contempla simultaneamente. No entanto, se nos lançamos em mergulho profundo, deixando-nos levar por elas, chegamos aos pontos de periferia do contorno circular, onde a beleza das frases se revela no sentido com-pleto de “verdade trágica”, sem fundo lógico-conceitual, ou contorno definido, isto é, plena de contradições e abismos: até aquele saber alçado a certos pontos da periferia circunvilínea da arte em que ficamos interditos perante o inexplicável – quando, então, estes, finalmente, se nos mostram em toda a sua simplicidade, deixando-nos paralisados em seus mistérios,23 como aqui: DESTINO SENTIDO Portanto, a beleza das frases só emerge plena quando entendida em sua riqueza de proporcionar essa experiência: sensibilidade e contemplação do belo que, aparecendo concomitantemente em cada dizer, transforma-nos a nós próprios na superfície especular de onde elas se miram e se auscultam em seu sentido. É o êxtase da intuição enquanto esquecimento de si que nos alça ao olhar límpido do universo inteiro. Ou como diria Schopenhauer, a contemplação da idéia daquele que consegue sustentar diante de nós o
23 Com efeito, Nietzsche nos diz em Além do bem e do mal – prelúdio a uma filosofia do porvir, no aforismo § 146: “Aquele que luta com demônios deve acautelar-se para não se tornar um também. Quando se olha muito tempo para o abismo, o abismo olha para você”, e também na mesma obra o § 37: “como? Isto não significa, falando de modo popular: Deus está refutado, mas o Diabo não?” Pelo contrário! Pelo contrário, meus amigos!”, reverberados, pela fresta de sua trajetória, a partir do palíndromo exposto junto à ocupação que o artista Jarbas Lopes realizou no Arizona Art Museum, em 2007: “O ASMODEU É DEUS, UÉ? DEU É DOM SÃO”. Este palíndromo não aceita resolução possível, segundo afirma o artista, se atentarmos que asmodeu é um demônio.
claro espelho do mundo para vermos reunido na luz mais cristalina tudo o que é essencial e significativo à existência humana, liberta de todas as estranhezas e futilidades.24 Nessa perfeição especular, um sentido profundo e oculto se nos abre enquanto inseparabilidade
24 Cf. Arthur Schopenhauer, Metafísica do belo, cap. 16, p. 211.
entre “esse” entendimento-intuição e o apelo ao que o sentido da visão requer. Quando esse apelo nos toca, na exuberante revelação de um rosto em plena afirmação com a tragicidade da existência e seus destinos-envios, entendemos por que “beleza é a eternidade 25 Gibran. O Profeta. p. 79.
mirando-se no espelho”.25
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Referências bibliográficas DELEUZE, Gilles. Guattari, Félix. O que é a filosofia? Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Munoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992. GIBRAN, Khalil Gibran. O profeta. Tradução Mansour Challita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969. HEIDEGGER, Martin. Heráclito. Tradução Márcia Sá Cavalcante Schubach. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1998. MERLEAU-PONTY, Maurice. Obras incompletas. Seleção Marilena Chauí, Traduções e notas: Marilena Chauí, Nelson Alfredo Aguilar, Pedro de Souza Moraes. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção Os Pensadores. ________________. A linguagem indireta e as vozes do silêncio. In O olho e o espírito. Tradução Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira; prefácio Cláudio Lefort, posfácio Alberto Tassinari. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. NIETZSCHE, Friedrich. Obras incompletas. Seleção Gerard Lebrun; Tradução Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Abril Cultural, 1974. Coleção Os Pensadores. ________________. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ________________. Sabedoria para depois de amanhã (os escritos póstumos 1869-1889). Tradução de Karina Janini. São Paulo: Martins Fontes, 2005. RILKE, Rainer Maria. Rodin. Tradução Daniela Caldas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1995. SCHOPENHAUER, A. O Mundo como Vontade e Representação. Tradução de M. F. Sá Correia. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001. ________________. Metafísica do belo. Tradução, apresentação e notas de Jair Barbosa. São Paulo: Editora Unesp, 2003.
Ana Paula de Miranda é professora mestranda em Filosofia Contemporânea. Tem artigos publicados nos jornais A Tribuna da Imprensa, A Tribuna, Niterói, e entrevistas em sites especializados em arte. / apaulabmiranda@yahoo.com.br
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Zumbi. Monumento rel贸gio de sol. Porto Alegre, 1997.
Arte e ciência = simetria e tempo* Claudia H. Stern
Nesta conferência, tento descobrir as relações entre arte, ciência e tradição, propondo modelos novos de pensamento que podem recuperar para a cultura e a sociedade um ser humano mais completo, capaz de encarar os desafios da complexidade – o assunto sobre as relações entre conhecimento, disciplinas e sistemas (natural, cultural e econômico) que caracteriza o mundo contemporâneo. Arte pode nos ensinar como ver e como olhar. Para ilustrar, apresentarei alguns exemplos de experiências em comunidades diferentes não só no processo de construir o trabalho público, mas também uma experiência com o III Programa de Liderança em Desenvolvimento Internacional, da Fundação Kelloggs. Sistemas, olhar, simetria. Quando um olhar pode ver Eu sinto um prazer enorme pensando. É no processo de pensamentos *Artigo recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008.
geradores que procuro idéias que possam traduzir-me ou qualquer outro assunto a mim apresentado através de uma escultura. A diferença entre olhar, no senso biológico, e contemplar, no senso antropológico, é a diferença entre nossos gestos e atos. Nossa cultura visual está por etapas se tornando mais e mais rica; porém, somos constrangidos por um mundo de imagens que nem mesmo entendemos. Olhamos, e é como se não pudéssemos ver; ou, melhor, não contemplamos quase nada – apenas lançamos olhares. Arte pode ensinar como contemplar! Olhar é rápido e imediato, e não nos dá a medida de qualquer tempo – é somente aquele momento. O ato de olhar não nos envia automaticamente ao ato de pensar. Depois de olhar (no senso biológico) é necessário olhar atentamente para algo, contemplar (no senso antropológico). Olhar, ver e contemplar podem ser complementares; são movimentos do mesmo gesto envolvendo sensibilidade e atenção. Por que precisamos reconstruir um objeto com os olhos? Para realmente vê-lo! Nesse momento entra a simetria ou a falta de simetria com a mesma força. O olhar é unido à contemplação. Ver é prestar atenção às coisas até que você possa adquirir uma visão do todo. Uma obra de arte pode nos ensinar sobre o que ainda não notamos e sobre aquilo que ainda não percebemos.
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(Ao criar, eu preciso ouvir o silêncio). Uma obra de arte não só nos deixa ver isso, mas também nos faz pensar nisso. Olhamos e vemos algo em simetria total! A simetria da arte A tecnologia atual mostra-nos que as formas da natureza, a geometria do mundo (plantas, pedras, animais) sempre parecem projetadas em quadrados e triângulos, e, se unirmos os pontos com linhas diretas, teremos a ilusão de curvas. Platão, na Grécia antiga, estudou os sólidos regulares: o icosaedro, um sólido com um número infinito de lados que resulta na forma de esfera. Na Idade Média: os trabalhos apresentavam-se com duas dimensões. No Renascimento: havia preocupação com a terceira dimensão. No Modernismo: surge a geometria de espaço. Não há ponto de fuga, como havia no Renascimento; agora há vários pontos de fuga. O Cubismo entra no cenário. Uma visão completa é formada por uma relação entre as ciências ao longo do tempo. Como podemos representar os Caos do mundo? Mondrian divide espaço dentro horizontal e vertical. Depois, Krajberg complementa isso com suas árvores queimadas: “É necessário repensar o quadrado para achar a árvore”, um alerta contra a destruição da natureza. O verdadeiro conteúdo está lá em um ângulo certo ou em um espiral da vida. A internet é nada além de uma pré-visão do coletivo inconsciente ou, como Einstein colocou: “o mundo das idéias”. Depois da invenção da televisão nada mais é escondido; estamos muito perto de alcançar a unidade de nossa mente. Modelos novos de pensar podem recuperar para nossa cultura e sociedade um ser humano mais completo, capaz de enfrentar desafios novos e complexos. O assunto de relações entre conhecimento, disciplinas e sistemas (natural, cultural e econômico) caracteriza este mundo contemporâneo. Um indivíduo vive só – nós estamos sós! A procura de razão deu lugar à falta de sensibilidade. Deveríamos estabelecer paralelos com outros campos do conhecimento durante o processo altamente criativo e reflexivo da arte. O processo sutil da simetria Criatividade vive como um germe debaixo da superfície visível do trabalho. Temos que estabelecer comparações com outros campos do conhecimento para enriquecer esse processo altamente criativo. Meus trabalhos interagem com criatividade, filosofia, astronomia e físicas, como veremos no DVD/CD de meus trabalhos públicos (15 exemplos retirados dos 44 trabalhos em espaços públicos). A simetria de arte é processo sutil; um processo sem tempo. A criatividade é usada para questionar a vida cotidiana.
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Profecia. Relógio de sol, Porto Rico, 1996.
O gozo de arte é algo especial e individual em nosso sistema interno, capaz de gerar idéias pessoais. Assim como também a rebeldia, o processo de simetria e falta de simetria tem dois aspectos; um potencial destrutivo e um criativo, capaz de interrogar e provocar mudanças de comportamento. Vida é arte, arte é vida!
Referências bibliográficas SCHULER, M. Núcleo de Excelência Humana. Porto Alegre: Escola de Administração de UFRGS, 2007. TIBURI, M. Museu de Arte do Rio Grande do Sul - Margs. Jornal, 2006.
Claudia H. Stern é professora e escultora, cria esculturas que refletem as emoções da experiência humana. Combina a ciência com a arte na busca do conhecimento.Tem 44 obras instaladas em espaços públicos (Prophecy, relógio de sol Jardin de Esculturas Internacional Puerto Rico) e no acervo de 16 museus internacionais; representou o Brasil em exposições individuais e coletivas, tendo recebido 21 prêmios. Teses e oficinas incluindo a análise de sua obra resultaram no livro Sob o véu transparente, recortes do processo criativo com Claudia Stern, Ed. Pallotti, 200 pág, il., cores, tradução para inglês e francês. / claudiastern @ terra.com.br
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Raphael Domingues: o traço em seu percurso poético* Claudio Castro Filho
Reflexão sobre as criações de Raphael Domingues, artista que produziu no ateliê de terapia ocupacional coordenado por Nise da Silveira no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no Rio de Janeiro. Além de apresentar dados biográficos do artista, analisa sua produção à luz da crítica de arte, comparando-a também à poética surrealista. Raphael Domingues, Nise da Silveira, Surrealismo. A linha de Raphael tem aquela pureza mineral da linguagem moderna do desenho – a linha, antes de ser contorno, é linha como nos desenhos de Picassso ou Matisse. (Ferreira Gullar) Ante a alta qualidade das produções plásticas de Raphael, fica demonstrada a impropriedade de admitir-se um processo de demenciação na esquizofrenia. (Nise da Silveira) A esquizofrenia pode manifestar-se em quaisquer fases da vida, mas *Artigo recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008.
muito dificilmente essa manifestação dar-se-á antes da fase adulta ou, pelo menos, antes da passagem pela adolescência. Isso ocorre pelo fato de o comprometimento mental estar ligado não somente a fatores orgânicos, mas a contextos psicossociais mais amplos. Nise da Silveira critica a orientação cartesiana da psiquiatria tradicional exatamente pelo fato de ela desconsiderar o histórico socioeconômico do paciente psiquiátrico, em prol de uma abordagem científica voltada exclusivamente para as causas orgânicas da doença. Entre os estudos de caso que a psiquiatra apresenta em O mundo das imagens, vêem-se histórias de vida marcadas pela experiência do sofrimento em níveis extremos; a exposição à miséria, a vivência de perdas afetivas e a violência familiar apresentam-se como apenas alguns dos fatores que, desestabilizando emocionalmente os indivíduos, levam o ser humano em direção àquilo que se chama de ‘perda da razão’. A doença mental apresenta-se, assim, como aspecto decorrente de extrema vulnerabilidade à qual o sujeito é submetido ao longo de sua sofrida existência. É preciso considerar, portanto, as causas sociais (familiares, econômicas, afetivas...) da doença, mais do que conferir diagnósticos que, muitas vezes, não vão além da estigmatização de quem vivencia o distúrbio psíquico. Silveira compreende a manifestação da doença, nesse sentido, como uma tentativa do
Raphael Domingues. Nanquim sobre papel, 49 x 34 cm, 1949. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
organismo de buscar, externamente, um equilíbrio para aquilo que, internamente, se encontra conturbado.
Raphael Domingues: o traço em seu precurso poético Claudio Castro Filho
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A forma hebefrênica da esquizofrenia tende a ser considerada, pela medicina psiquiátrica, a mais grave manifestação da doença mental. Trata-se de comprometimento psíquico tamanho, que o doente é considerado praticamente incapaz de conviver harmoniosamente em sociedade, de interagir socialmente. Se numa modalidade não tão grave da esquizofrenia o paciente experienciará as primeiras crises já na vida adulta, na hebefrenia os primeiros surtos tendem a aparecer pouco depois da infância. Foi precisamente o que se deu com Raphael Domingues. Nascido em 1913, primogênito de uma família de quatro irmãos, Raphael é obrigado a deixar a escola aos 11 anos, quando, em decorrência da separação dos pais, o menino passa a ser responsável pelo sustento da família. Trabalhou numa tipografia ao mesmo tempo em que desenhava para escritórios particulares, realizando cartazes para publicidade, desenhos decorativos etc. Sua atração pela arte fez com que, aos 13 anos, se matriculasse no curso de desenho do Liceu Literário Português. Raphael não desperdiça a oportunidade e, a passos largos, desenvolve-se tecnicamente, aproveitando o caráter acadêmico do curso e destacando-se dentre os demais alunos ao realizar desenhos que pareciam insuflar vida aos modelos de gesso utilizados como referência. Entretanto, “todas essas atividades simultâneas, somadas às responsabilidades de filho mais velho, tornaram-se demasiado pesadas”1 e, por volta dos 15 anos, Raphael manifesta os primeiros sintomas da doença: crises de gargalhada, alusão a vultos que o perseguiam,
1 Silveira, Nise da. O mundo das imagens. São Paulo: Ática: 2001, p. 29.
satisfação das necessidades fisiológicas mesmo em lugares públicos. Apesar dos graves sintomas, o temperamento dócil, pacífico do rapaz faz com que sua mãe o mantenha em casa por alguns anos; nessa fase de acolhida familiar, Raphael mantém o vínculo com o desenho, realizando produções nas quais Silveira identifica, seguindo a idéia de ‘projeção’, o auto-retrato de um esquizofrênico: “não enganam a atitude rígida, a expressão fisionômica reveladora de que a tensão está voltada para dentro, onde se agitam pensamentos estranhos e angustiosos”. Interessante perceber que alguns dos pressupostos teóricos que balizam a interpretação da psiquiatra são de ordem marcadamente estética, como é o caso das observações de Leonardo da Vinci: os pintores freqüentemente representam a si mesmos nos personagens que pintam, impondo suas qualidades físicas e morais aos modelos mais dessemelhantes e não lhes poupando nenhum de seus defeitos.2 A doença de Raphael, porém, progride de forma acelerada; os sintomas acentuam-se: abandona os hábitos de higiene pessoal, lança os objetos domésticos pelas janelas, perambula pelas ruas de Santa Teresa, esfrega alimentos pelo corpo durante as refeições, refugia-se em intermináveis solilóquios, fala de maneira desconexa. Em 1932, aos 19 anos, é internado no Hospital da Praia Vermelha. Na fase anterior à internação, a perda da unidade, no sentido da dissociação, já se observava em seus desenhos caseiros, de maneira que sua produção, inicialmente ligada a parâmetros acadêmicos, se desvincula de modelos exteriores. Na Praia Vermelha, desenha garatujas nas paredes da enfermaria, o que o faz ser encaminhado, 14 anos depois de sua internação, para o ateliê de desenho
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2 Id., ibid., p. 29-30.
e pintura da Seção de Terapêutica Ocupacional, já no Hospital Psiquiátrico Pedro II, no bairro do Engenho de Dentro, subúrbio carioca. Analisando sua própria prática psiquiátrica, Nise da Silveira destaca o sucesso da terapêutica ocupacional, até pelo caráter coletivo de tal atividade, já que, na realidade sociopolítica dos hospitais psiquiátricos brasileiros (em geral, superlotados), torna-se impraticável uma terapia individual adequada. A especificidade da terapêutica ocupacional está na possibilidade de trazer à tona aspectos não verbalizáveis do sofrimento vivido pelo paciente, proporcionando, ainda, avanço no relacionamento com o meio social. As imagens produzidas como resultado das oficinas de T.O. (trabalhos em pintura ou modelagem) são compreendidas, então, como sintomas cujas informações dão acesso a uma interioridade que, uma vez expressa, tende ao equilíbrio de impulsos, emoções e pensamentos. E é no frutífero ambiente do Engenho de Dentro, onde Silveira desenvolvia sua corajosa abordagem anticartesiana do tratamento psiquiátrico, que Raphael construirá sua reclusa trajetória como artista. A prática no ateliê do Engenho de Dentro, desde aquela época e até hoje, compreende a não-intervenção como pressuposto fundamental para resultados plásticos auto-expressivos. Ou seja, a apreensão de técnicas determinadas e/ou de visões teórico-práticas específicas são substituídas pela livre experimentação de materiais, a partir dos quais o paciente-artista definirá seu percurso criativo. De certo modo, os primeiros passos de Raphael no sentido de retomar a produção gráfica que desenvolvera antes de seu ingresso no ambiente hospitalar configuram-se como aprimoramentos formais das garatujas que desenhava pelas paredes. O espaço do papel, nessa época, é completamente recoberto por uma interessante trama de linhas entrecruzadas, complementadas, ainda, por variadas ornamentações que dão ao desenho, quase, a qualidade de textura. Silveira observou nos relatos de Prinzhorn gêneses semelhantes no percurso de criação plástica de pacientes psiquiátricos, de maneira que a convergência para traços ornamentais e o jogo linear de caráter compulsivo manifestam-se como características de uma necessidade auto-expressiva. O ritmo incessante com que Domingues preenchia de traços e ornamentos a folha do papel parecia não ter fim, a não ser que o responsável pelo ateliê lhe tirasse o papel, como que determinando o esgotamento do trabalho, concedendo-lhe nova folha. Já aqui se percebe uma relativização da idéia de total não-intervenção na produção do ateliê do Engenho de Dentro, já que, se não há, naquele espaço, as implicações pedagógicas de um ambiente escolar, há, por sua vez, a delimitação de objetivos próprios à terapêutica ocupacional. Esse momento, que podemos considerar primeira fase abstrata de Raphael, vai além, sem dúvida, de um mero estágio embrionário na constituição de uma futura poética visual do artista. Estão presentes, já nesses desenhos, elementos como: delicados jogos de proporção entre as formas empregadas; interessantes relações, de ordem gráfica, entre escrita e desenho; explorações quase infinitas de possibilidades de combinar, plasticamente,
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pequenos traços. Quando emprega o guache, essa exploração formal ganha, ainda, a qualidade de exploração cromática. São de grande delicadeza as tramas em que Raphael lança mão de diferentes tonalidades de uma mesma cor, sugerindo volumes a partir de variações sutis de tons pastéis do azul, do bege, do cinza, dos alaranjados. Esses trabalhos, datados de meados da década de 1940, são de elogiável riqueza plástica, apresentando organização formal e elaboração cromática criativas e delicadas. Já nessa época, a capacidade criativa com que Raphael se expressa vai violentamente de encontro às concepções médicas que acreditavam num processo de demenciação provocado pela esquizofrenia, o que, supostamente, deveria acentuar-se no caso de um paciente hebefrênico. Em Raphael, a doença mental não foi capaz de anular o artista, cuja notável sensibilidade não deixa escapar a menor oportunidade de desenvolver-se criativamente. Foi assim que, certa vez, desconhecendo as normas da não-intervenção (praticadas pelo ateliê), um atendente da secretaria, que, ao acaso, passava pela sala, deparou-se com Raphael no instante em que ele produzia um de seus abstratos: “Raphael, pinte uma cara.” O artista o fez. “Agora, pinte um burrinho.”3 Eis o segundo trabalho de uma fecunda fase figurativa de Domingues. A partir daí, o caminho criativo de Raphael construir-se-á no sentido de uma fusão entre os caracteres gráficos anteriores e os elementos figurativos agregados na nova experiência. Será de fundamental importância o contato com Almir Mavignier, funcionário do Hospital que se habilita como monitor do ateliê e também se desenvolve como artista no decorrer de um afetuoso contato com Raphael. Nise da Silveira comprova sua hipótese de que as inter-relações sociais baseadas no afeto são de importância sem igual para a potencialização criativa do esquizofrênico quando Mavignier deixa o Engenho de Dentro para aprofundar na Europa seu desenvolvimento artístico. A partir dessa ocasião, Raphael vai retornando, aos poucos, à abstração anterior, abandonando as representações simbólicas, as complementações lineares entre figuração e grafismo. Um novo clímax criativo será observado na trajetória de Raphael a partir de 1968, quando a desenhista Martha Pires Ferreira é convidada por Nise da Silveira a acompanhar o trabalho do artista, no intuito de desempenhar papel semelhante ao de Mavignier anos antes, ou seja, estimular, por meio das trocas afetivas, a prática criadora. No entanto, em vez de permanecer acompanhando, de forma cronológica, as relações entre biografia e desenvolvimento artístico, cabe propor uma reflexão mais detida na fase em que a frutífera parceria Raphael-Mavignier consagra como artista o paciente psiquiátrico. Nesse período, Raphael eleva à máxima potência sua propensão ao jogo linear, tomando modelos reais como ponto de partida para o desenho, mas criando imagens que reinventam a realidade numa poética visual calcada na ornamentação gráfica. Contraditoriamente, o ornamento é compreendido, no desenho de Raphael, não como excesso de vocabulários plásticos, mas como resultado criativo das infinitas possibilidades de articular um único e contínuo elemento: a linha. A legitimação da obra de Raphael como produção de arte dar-se-á,
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3 Id., ibid., p. 33.
Raphael Domingues. Guache sobre papel, 31 x 48 cm, 1948. Acervo do Museu de Imagens do Inconsciente.
portanto, nessa fase, muito por conta do interesse que o ateliê do Engenho de Dentro passa a despertar em artistas e críticos ligados à parcela carioca da vanguarda artística brasileira. Em texto elaborado para a exposição Raphael: desenhos, realizada, em 1980, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, o crítico Mário Pedrosa, responsável pela seleção dos trabalhos expostos, escreve: O fluido rítmico presente em toda forma autêntica é o imponderável que dá forma às obras artísticas como a tudo o que é dotado de existência no mundo. É a fonte da corrente melódica, na música como no desenho. Constitui o segredo do desenho de Raphael. Os impulsos do jogo e do ornamental, que exercem sua ação sobre a própria pessoa do criador, conduzem os arabescos daquele artista, exibindo-se nos brincos, turbantes, medalhas, crachás, colares, plumas das suas figuras. Não é só, porém, nas figuras que desenha que se nota essa manifestação lúdica; ele também consegue transpô-la para outros gêneros, e
4 Pedrosa, Mário. Museus brasileiros 2: Museu de Imagens do Insconsciente. Rio de Janeiro: Funarte, 1980, p. 88.
assim temos esse caráter extremamente rico, orientalmente luxuoso de suas naturezas-mortas.4
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O próprio Pedrosa reúne alguns desenhos de Raphael e mostra-os ao surrealista André Breton, que se entusiasma diante da qualidade visual daquela produção. De fato, podese verificar no traço de Raphael alguns aspectos em comum com a poética surrealista, principalmente no que diz respeito à fluidez da linha, que percorre o papel num pulso tão contínuo que nos dá a sensação de constituir-se a partir de um único gesto. Trata-se de um resultado plástico que nos rememora a idéia de automatismo psíquico, presente no ideário surreal, sobretudo na poesia, da qual Breton é representante legítimo. A escrita automática, celebrada pelos surrealistas, consiste num procedimento de subversão da escrita usual por meio de um automatismo que faça emergir, sem censuras, frases inesperadas, dando acesso a uma interioridade que não se expressaria nos moldes tradicionais de lidar com a linguagem. Segundo Eliane Moraes, entende-se por que a escrita automática foi elevada a ‘técnica de produção das mais belas imagens’, motivada pelo objetivo de expandir a realidade, e não de reproduzi-la. Tudo se passa como se a criação poética pudesse surpreender não somente o leitor, mas o próprio criador, e efetuar combinações insuspeitas para ele mesmo.5 Em alguma medida, o processo de expansão da realidade em direção a uma fluidez psíquica está presente na poética visual de Raphael, sobretudo se considerarmos o procedimento de seu desenho, que parte da observação de objetos e corpos reais em direção a uma interpretação ornamental dessa mesma realidade. Nise da Silveira, por sua vez e provavelmente, desconfiaria dessa relação passiva que o criador surreal estabelece com o automatismo, já que interpreta a idéia de um traço automático não como uma via de fluidez poética, mas como uma – às vezes, rudimentar – repetição de traços estereotipados. Haveria, assim, em trabalhos plásticos nos quais se percebe uma visão expandida do real, uma iniciativa orgânica de estruturar o caos, de maneira que pensamento e ressonâncias emocionais se fundiriam de forma ativa, caracterizando o ato criador por excelência. De qualquer forma, é possível verificar certa aproximação entre algumas obras surreais e determinados desenhos de Raphael, sobretudo no que se refere à manifestação de uma reserva onírica de imagens – segundo propõe o Surrealismo –, bem como com a construção de um “espaço psíquico” no desenho – tal qual observa Ferreira Gullar em relação à obra de Raphael. Uma vez que no ambiente da terapêutica ocupacional a construção plástica é interpretada como sintoma – isto é, como chave de acesso a uma compreensão mais aprofundada do distúrbio psíquico –, as imagens constituídas no desenho funcionam como projeção de uma interioridade que, no papel, se organiza simbolicamente. Tal compreensão também encontra suporte na poética surrealista, já que as relações entre representação e psiquismo constituem elementos significativos para uma leitura coerente do movimento. Talvez uma possibilidade a mais de compreender possíveis relações entre o desenho de Raphael e a poética surreal esteja na observação de alguns trabalhos de outro artista que,
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5 Moraes, Eliane Robert. O corpo impossível: a decomposição da figura humana de Lautréamont a Bataille. São Paulo: Fapesp/Iluminuras, 2002, p. 42.
embora contemporâneo à referida vanguarda européia, não se vincula diretamente ao grupo. Trata-se do espanhol Federico García Lorca, que – paralelamente a sua produção como poeta, dramaturgo, conferencista e músico – executa inúmeros dibujos nos quais podemos observar, à semelhança de Raphael, traços fluidos que dão o testemunho de um gesto quase ininterrupto na construção do desenho. A leveza com que a linha percorre o espaço pictórico confere ao desenho lorquiano aquele predicado de continuidade gestual observado no traço preciso de Raphael. Também em Lorca, a aparente simplicidade de um desenho avesso à construção da perspectiva é pretexto para o jogo ornamental, que se dá em movimentos inesperados da linha que – ora contornando espaços livres, ora se entrecruzando – constrói pequenas tramas, volutas, arabescos. Desconstruindo o olhar perspético, o desenho de Lorca, tal qual o de Raphael, institui uma espécie de espacialidade arbitrária, no qual aquilo que, tradicionalmente, deveria estar em primeiro plano reorganiza-se ao estabelecer compromissos outros que não com a relação de figura e fundo. Para Gullar, essa singular maneira de lidar com as impressões espaciais é uma das características marcantes do trabalho de Raphael, cujo desenho tem, para o crítico, “um sentido de espaço que lhe é peculiar, exclusivo: uma 6 Gullar, Ferreira. Relâmpagos: dizer o ver. São Paulo: Cosac & Naify, 2003, p. 116.
bidimensionalidade que sugere volume”.6 Outro aspecto a se destacar quanto à proximidade entre a produção plástica de Raphael e a tendência surrealista do desenho de Lorca diz respeito ao tratamento dado à cor. Nos desenhos coloridos de Lorca, percebe-se a utilização difusa da cor, mesclando-se de forma mais ou menos indefinida com a própria cor do papel. O tratamento diluído da cor apresenta-se, assim, em contraste com a precisão gestual da linha preta, obtendo-se, no todo, um resultado visual extremamente harmônico. Raphael, por sua vez, demonstra acurada capacidade de lidar com a dissolução da tinta, no intuito de relativizar as cores mais fortes, obtendo novas vibrações cromáticas a partir da variação de tonalidades. Como resultado plástico, alguns trabalhos provocam surpresa quando constatamos tratar-se, por exemplo, de uma composição em guache, já que a delicadeza com que a tinta se espraia pelo espaço do papel nos dá a nítida sensação de um trabalho em aquarela. Outro interessante aspecto de surrealidade verificado nas produções plásticas de Raphael e Lorca diz respeito à ocorrência de continuidade entre corpo e natureza nas imagens apresentadas, de maneira que representações híbridas emergem como resultado de uma linha inquieta, que vincula o corpo ou a face do humano diretamente a elementos vegetais ou minerais. É a partir daí que ramas, na qualidade de cílios, pendem dos olhos representados, caracterizando a face segundo a idéia de mascaramento. Trata-se de uma visão fragmentada do corpo humano, o que, para Nise da Silveira, diz respeito, exatamente, à dissociação da psique, que, na produção plástica, se apresenta como iniciativa de estruturação do caos: “a vivência da dissociação psíquica torna-se perceptível através de
7 Silveira, op. cit., p. 33.
imagens de desmembramento”.7
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Do ponto de vista de uma compreensão das vanguardas européias, as imagens de desmembramento corpóreo configuram-se como representação de um corpo em crise. Nesse corpo problematizado, ecoam as vozes de um mundo em crise, panorama advindo, em alguma medida, de um sentimento de instabilidade provocado pela crise do humanismo assistida pela Europa entre a década de 1870 e o princípio da Segunda Guerra Mundial. Segundo Moraes, a arte moderna respondeu à trama do caos através de formas fraturadas, estruturas parodísticas, justaposições inesperadas, registros de fluxo de consciência e da atmosfera de ambigüidade e ironia trágica que caracterizam tantas obras do período.8
8 Moraes, op. cit., p. 57.
Comentando o período em que acompanhou a rotina de trabalho de Raphael Domingues, Martha Pires Ferreira observa, nessa idéia de uma humanidade desintegrada, a reverberação de uma ruptura definitiva com a realidade. Segundo a artista, Raphael, mal começava a dar forma aos seus afetos, a desenvolver suas forças criativas no que há de mais sensível e íntimo, foi dilacerado, rompeu com a realidade externa, se fragmentou ou foi fragmentado.9
9 Pedrosa, op. cit., p. 108.
A proposta de uma inter-relação orgânica entre formas anteriormente dispersas pode configurar, em Raphael, a elaboração de símbolos que dizem respeito, segundo o ideário surreal, a um mergulho na condição natural do humano. Pelo viés da psicanálise, a simbolização comporta-se como sintomática de uma memória arquetípica, caracterizando um arcaísmo típico dos mais remotos rituais.10
10 César, Osório. A arte dos loucos e vanguardistas. São Paulo: Flores e Mano, 1934, p. 49.
Como reflexão que se encaminha para um desfecho, faz-se mister perguntar: como se relacionam, na obra de Raphael, aspectos que dão conta de uma expressão imagética do inconsciente e questões que aproximam sua visualidade às discussões estéticas vanguardistas? Não há como negar a validade dos apontamentos interpretativos que Nise da Silveira realiza sobre a produção dos artistas do Engenho de Dentro, até pelo fato de a produção daquele ateliê dar-se com objetivos terapêuticos, o que, por si só, constrói uma atmosfera propícia a realizações de cunho auto-expressivo. Por outro lado, são inegáveis as trocas que Raphael realiza com a arte, num circuito mais amplo, de sua época. Basta considerar que figuras como Murilo Mendes, Abraham Palatnik, Mário Pedrosa, Sérgio Milliet, entre outros influentes artistas e críticos de arte da época, visitavam o Engenho de Dentro no intuito de conhecer de perto seu processo de criação. Quanto às possíveis semelhanças com o desenho de Lorca, cabe ressaltar a ascendência espanhola de Raphael, cuja memória, em sua herança arquetípica, bem que poderia ter
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Federico García Lorca. Payaso de rostro que se desdobla, 1936. Fundación Federico García Lorca, Granada.
trazido à tona essa carga afetiva de hispanidade, por exemplo, na ocasião do primeiro contato entre Domingues e Martha Pires Ferreira. Depois de um inusitado sorriso direcionado, por Raphael, a Martha, uma das monitoras do ateliê interpelou, de forma bem-humorada, o artista: “Arranjou uma namorada? Como ela se chama?” Prontamente,
11 Silveira, op. cit., p. 4.
Raphael contestou: “Espanholita.”11
Claudio Castro Filho é doutorando em Literatura Comparada e mestre em Artes pela Universidade Estadual de Campinas. / claudioscf@ig.com.br
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http://cinecritica.wordpress.2006/09/28ossertoes
O jogo do teatro em Os Sertões do Oficina* Iremar Maciel de Brito
Crítica do espetáculo teatral Os Sertões, montado pelo Teatro Oficina – Uzyna Uzona, com direção de José Celso Martinez Corrêa, no Rio de Janeiro, em outubro de 2007. Observando as relações entre a linguagem do teatro e a da literatura, o artigo investiga as regras do jogo entre elas e o público. Os Sertões, Euclides da Cunha, Teatro Oficina. Introdução O encontro público carioca com Os sertões do Teatro Oficina – Uzyna *Artigo recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008.
Uzona, no Rio de Janeiro, durante a mostra teatral do Riocenacontemporânea, em outubro de 2007, foi algo de emblemático. Aconteceu um inesquecível momento de magia e encantamento. Parecia um encontro marcado entre dois amantes. Um mergulhou no outro antropofagicamente. O público carioca deglutiu e foi deglutido pelos cinco espetáculos de Os sertões, numa grande cerimônia teatral, em que a alegria, o conhecimento e o prazer eram importantes partes do jogo. Assim, todos os jogos propostos pelos atores, sob a direção surpreendente e criativa de José Celso Martinez Corrêa, eram imediatamente aceitos pela platéia. Portanto, a cada momento, estabelecia-se uma profunda relação entre esse dois lados do teatro, que sempre buscam encontrar-se. Nesse encontro e no jogo que surgia a partir dele estava o verdadeiro prazer da arte, a comunhão do teatro. O teatro não deve ser chato. Não deve ser convencional. Tem que ser inesperado. O teatro nos leva à verdade através da surpresa, da excitação, dos jogos, da alegria. Integra o passado e o futuro no presente, permite que tenhamos uma distância entre nós e aquilo que normalmente nos rodeia, e elimina a distância entre nós e o que normalmente
1 Brook, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999, p. 81.
está longe.1 Assim, o humor, o erotismo e o deboche do espetáculo repercutiam imediatamente no público. Todos se divertiam, riam e se sentiam parte de um grupo que entendia e criticava os sistemas de poder que atuam sobre o homem. Todos sentiam naquele momento que participavam de um grande jogo. Johan Huizinga afirma, em Homo ludens, que o jogo tem uma função “significante” na vida, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Assim, enumera os diversos elementos que fazem parte do jogo,
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bem como suas funções no jogo da vida. Dentre elas, destacamos a função catártica do jogo, assim apresentada pelo filósofo: A natureza nos deu o jogo como um conjunto de úteis funções de descarga de energia excessiva, de distensão após um esforço, de preparação para as exigências da vida, de compensação de desejos insatisfeitos etc., sob a forma de exercícios e reações puramente mecânicas. Ela nos deu a tensão, a alegria e o divertimento do jogo (...) Este último elemento o “divertimento” do jogo, resiste a toda análise e interpretação lógicas.2
2 Huizinga, Johan. Homo ludens. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996, p. 5.
Essa catarse é precedida pela tensão que existe em qualquer jogo. Ele é tenso, pois há, ao mesmo tempo, a possibilidade do acerto e o perigo do erro. Também isso acontece na criação teatral que, como outros jogos, alcança a catarse, depois de momentos de tensão. Mas, afinal, o que é de fato o jogo do teatro? em que ele consiste? O grande objetivo do jogo do teatro é a busca de tornar visível o invisível. Esse é também seu grande desafio. O ponto de partida do jogo do teatro é a ação dramática. Ela, como todo jogo, acontece num espaço e num tempo determinados. É isso o que faz com que o tempo do jogo seja sempre o presente, nunca o passado nem o futuro. Para explicar melhor o jogo, Huizinga aborda suas características formais: Numa tentativa de resumir as características formais do jogo, poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual, mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total. É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro, praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras.3 Entretanto, diferente de outros, o jogo do teatro também tem como objetivo a criação de uma verdade própria da arte, que vai ocorrer num espaço e num tempo determinados. Portanto, no jogo do teatro, a busca da verossimilhança é um elemento fundamental para sua criação. Assim, a brincadeira entre a verdade e a imaginação, entre a realidade e o sonho é o território em que se inscreve o teatro. Além desse grande jogo, o teatro é constituído por um grande número de jogos, como aquele entre o palco e a platéia. Nos espetáculos de Os sertões, por exemplo, em inúmeras ocasiões, a platéia era chamada a entrar em cena e representar. Todas as pessoas são capazes de atuar no palco. Todas as pessoas são capazes de improvisar. As pessoas que desejarem são capazes de jogar e aprender a ter valor no palco (...) O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários
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3 Id., ibid., p. 16.
para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar (...) Os jogadores tornam-se ágeis, alerta, prontos e desejosos de novos lances ao responderem aos diversos acontecimentos acidentais 4 Spolin, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987, p. 3.
simultaneamente.4 Em todos os espetáculos de Os sertões, o público entrava em cena e aprendia, muito rapidamente, as regas do jogo que o Oficina promovia. Assim, partindo desse envolvimento, tudo se transformava numa grande representação lúdica, em que a história contada no livro de Euclides da Cunha acontecia em meio a inúmeras outras narrativas que, de alguma forma, com ela se relacionavam. A estética e o pensamento antropofágico-cultural do Teatro Oficina criavam um permanente jogo em que a estética e o pensamento da tradição eram sempre postos de lado ou criticados. As convenções de palco e platéia, constantemente subvertidas, transformavam-se, propondo novos e surpreendentes jogos aos espectadores. Não se tratava de espetáculos que pretendessem apenar recriar e discutir Canudos artisticamente. Era muito mais do que isso, era também uma celebração, um ritual, um encontro coletivo, marcado pelo prazer, numa grande celebração da vida. Em vez de propor que o espectador feche a obra que se apresenta aberta, com uma elaboração responsiva, definindo significados para os signos propostos, o teatro contemporâneo pretende que a platéia participe, acrescentando significantes ao jogo de linguagem. Menos interessada em formular a compreensão, o fechamento, a sintetização da obra, ou criar uma unidade para as partes, a arte da contemporaneidade quer propor ao espectador que teça análises, elabore outros significantes, empreendendo, assim, uma atitude mais extremadamente autoral. O artista está menos preocupado com o entendimento que a
5 Desgranges, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Hucitec, 2003, p. 161.
obra suscita no espectador do que com a provocação que lhe faz.5 O palco e a platéia são os dois lados diferentes de uma mesma moeda, chamada teatro. O Oficina se propôs a levar esse jogo a um nível extremo, fazendo a platéia converter-se em palco ou levando os atores a ocupar a platéia. Assim, em vez de manter a costumeira distância entre esses lados, o Oficina procurou criar pontes e aproximações. Em muitos momentos de Os sertões, a platéia, convidada a entrar em cena, perdia por completo o sentimento de distância do palco e mergulhava prazerosamente no jogo do teatro. Entretanto, algumas perguntas se fazem necessárias: por que aconteceu essa interação tão grande entre o espetáculo e o público carioca? quais foram os jogos trabalhados pelo Oficina que criaram essa relação tão imediata e profunda entre o palco e a platéia? qual foi o jogo do Oficina? São essas perguntas que pretendemos ampliar ao longo deste tra-
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balho, já que os momentos de amor entre o palco do Oficina e a platéia do Rio de Janeiro fazem parte dos grandes mistérios da arte do teatro. O épico humanizado O livro de Euclides da Cunha Os sertões, do início do século XX, discutindo a Guerra de Canudos, que ocorrera no final do século XIX, foi detalhadamente adaptado para seu espetáculo pelo grupo Oficina. Isso é algo que, de imediato, surpreendeu o espectador, pois se tratava de uma obra bastante extensa. Entretanto, o Oficina não se satisfez apenas em realizar a encenação de momentos da história de Canudos. Foi muito além, encenando toda a narrativa do livro, o que resultou numa seqüência de cinco espetáculos, tendo cada um deles duração que variou de quatro a seis horas. O grupo chegou ao requinte, aliás, de encenar as plantas do sertão, em criações teatrais completamente alegóricas. Assim, a partir da adaptação teatral da obra literária, na busca de teatralizar tudo o que havia de importante no livro, na profunda revelação dos aspectos mais profundos do texto, formou-se um jogo de absoluta fidelidade entre o teatro e a literatura, levando Euclides da Cunha para o centro da cena, até como personagem. Os sertões do Oficina assemelhava-se a um ser humano na divisão de seus espetáculos. Nessa analogia percebemos o corpo formado por uma cabeça, os dois braços e as duas pernas. A terra, o primeiro, correspondia à cabeça desse corpo imaginário. O segundo e o terceiro, O homem I e O homem II, representavam as pernas, a base do corpo. O quarto e o quinto, A luta I e II, eram os braços. O corpo, ou mais propriamente, seu tronco, surgia da junção de todas as partes. Assim, pela própria seqüência da montagem do Oficina, o grande épico de Euclides da Cunha começou a ser visto de uma perspectiva mais humanizada. Tendo em vista esse pensamento, podemos afirmar que, permanentemente, ao longo dos cinco espetáculos, acontecia um verdadeiro pulsar da vida humana, envolvida sempre numa tensão absolutamente dionisíaca, plena de teatralidade. Assim, surgia uma espécie de orgia antropofágico-cultural, em que a nudez se transformava numa veste ritual daquela cerimônia. O desnudar é um tema recorrente na pintura e na literatura. É o momento em que o corpo se faz de arte viva. Para alguns autores, o “pôr a nu” é como “ pôr à morte”, como se o corpo, desvestindo-se, se abandonasse às vertigens do nada e se separasse de toda aparência de ser ainda um sujeito. É o momento em que o corpo, na visão e no ato de ser visto, faz desaparecer a distinção sujeito/objeto. O desnudar é um momento atemporal da soberania do desejo na epifania das imagens 6 Jeudy, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2002, p. 71.
corporais.6 Tudo isso representava um corpo sem órgãos, relembrando o pensamento de Antonin Artaud, citado no espetáculo. Esse corpo era conduzido pela dialética da vida, sob o domínio do sexo ao longo de toda a narrativa teatral. Entretanto, cada uma de suas partes
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era autônoma, constituindo-se num espetáculo completo. Mas, quando acompanhávamos em seqüência as cinco peças, com sua narrativa multifacetada, chegávamos à conclusão de que estávamos num jogo, em que se discutiam e se jogavam os caminhos da vida. Portanto, nesse espetáculo, que seguia com precisão e muita criatividade praticamente todo o texto de Euclides da Cunha, o jogo ocupa um lugar preponderante. A terra O primeiro espetáculo de Os sertões, A terra começava com um prólogo cantado por vários coros. Enquanto cantavam, os coros ocupavam plasticamente os espaços, criando impactos visuais e momentos de rara beleza. O espetáculo, então, ao longo de suas quatro horas, mostrava, entre outras coisas, o surgimento da terra, do sertão, da caatinga e o povoamento. Encenava o surgimento da seca e o peso de sua miséria com belas imagens teatrais. Além disso, criava discussões profundas relacionadas à terra, esclarecendo, por exemplo, como se faz um deserto ou como ele pode ser extinto.O fenômeno da seca, também na obra de Euclides da Cunha, foi analisado com clareza e profundidade. Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março. Fora de tais limites não há um exemplo único de extinção de secas. Se os atravessam, prolongam-se fatalmente por todo o decorrer do ano, até que se reabra outra vez aquela quadra. Sendo assim e lembrando-nos que é precisamente dentro deste intervalo que a longa faixa das calmas equatoriais, no seu lento oscilar em torno do equador, paira no zênite daqueles Estados, levando a borda até aos extremos da Bahia, não poderemos considerá-la, para o caso, com a função de uma montanha ideal que, correndo de leste a oeste e corrigindo momentaneamente lastimável disposição orográfica, se anteponha à monção e lhe provoque a parada, a ascensão das correntes, o resfriamento subseqüente e a condensação imediata nos aguaceiros diluvianos que tombam então, 7 Cunha, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002, p. 34.
de súbito, sobre os sertões?7 No espetáculo, antes do surgimento de Canudos, a terra, do Rio de Janeiro à Bahia, foi mostrada aos espectadores através dos mais diversos jogos de imagens teatrais. Fazendo essa viagem, do litoral ao interior, discutiu a topografia e a botânica das regiões atravessadas. No decorrer dessa viagem, chegava a Canudos. A cidade nos foi mostrada no espetáculo, sobretudo, em seus momentos de guerra. O espetáculo não colocou seu principal interesse no dia-a-dia dos sertanejos, mas preferiu discutir sua luta e seu martírio. Assim, a cidade apareceu mais como campo de batalha, ficando em segundo plano o jeito de viver daquela gente, que era mostrado apenas em alguns momentos. O homem I e II Em sua primeira parte, O homem I discutia dramaticamente o problema etnológico bra-
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sileiro. Assim, a partir de uma série de cenas de cruzamentos contava o surgimento do sertanejo. Em seguida, a história evoluía através de coros, como o dos corpos índios queimados e o dos africanos. Depois, então, surgiam os primeiros povoados, a catequese, os jagunços e o homem que seria o habitante de Canudos. Então era contada a história da família de Antônio Conselheiro, o surgimento do jagunço e do crime organizado. Em O homem II, em sua primeira parte, apresentava o caminho de Antônio Conselheiro até tornar-se pregador da palavra de Deus. Relacionando-se com a grande história contada, a Guerra de Canudos, surgiam, nesse espetáculo, inúmeras narrativas teatrais. Representavam muitas vezes uma espécie de parábola, relacionada a Canudos. A inclusão do mundo do circo, por exemplo, foi uma delas. Esse espetáculo circense, entretanto, era apresentado sob a forma de ópera, criando belas e surpreendentes imagens teatrais. Outra parábola apresentada foi a luta do Oficina pelo espaço, a guerra por sua terra no bairro do Bixiga, em São Paulo. Finalmente, tudo acabava num grande maracatu, cantado e dançado em meio ao público, relacionando tudo ao que espetáculo chamou de trans-homem. Em O homem I os espectadores eram introduzidos no espaço cênico por uma grande ciranda, que todos cantavam e dançavam. Em seguida era discutida dramaticamente toda a história do homem, mostrando a evolução das raças, até chegar ao sertanejo. Depois disso, O homem II mostrava a história dos sertanejos e, particularmente, a de Antônio Conselheiro, principal personagem de toda a história, seguindo sempre o texto de Euclides da Cunha. O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida, num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar ligeira conversa com um amigo, cai logo
–
cai é o termo
–
de cócoras, atravessando largo
tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo
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fica suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma simplicidade a um tempo ridícula e adorável. É o homem 8 Id., ibid., p. 77.
permanentemente fatigado.8 A visão de cientista, a perspicácia jornalística e as qualidades literárias de Euclides da Cunha fizeram dele um dos melhores narradores de sua época. Seu texto tem um compromisso muito claro com a verdade e a descrição objetiva dos fatos. Sob essa perspectiva, portanto, não busca atenuar a realidade, mas discuti-la de uma forma profunda e clara. No entanto, há uma certa dialética em sua maneira de retratar os fatos, pois, seguindo-se a esse perfil um tanto desabonador do homem nordestino, ele vem com um surpreendente complemento desse texto. Mostra então o outro lado da realidade do homem sertanejo, ou seja, um homem forte e lutador, um verdadeiro guerreiro, quando a vida se transforma em guerra. Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude. Nada é mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas. O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias. Este contraste impõe-se ao mais leve exame. Revela-se a todo o momento, em todos os pormenores da vida sertaneja – caracterizado sempre pela intercadência impressionadora entre extremos impulsos e apatias longas.9
9 Idem.
Assim fala Euclides da Cunha em Os sertões sobre o surgimento do homem nordestino. Em seguida, ele nos mostra esse homem na vida prática e nos revela um de seus momentos de maior heroísmo, a Guerra de Canudos. Antes disso, porém, nos dá um retrato do líder espiritual dessa rebelião, Antônio Conselheiro. É mostrado como filho de uma família abastada que sofre revezes políticos e financeiros. Essa situação ruim fez Conselheiro descobrir o caminho de Deus e a pregação como poderosas armas contra os inimigos. Assim sua vida passou a ser caminhar pelo interior do Nordeste, pregando a palavra de Deus, criticando os costumes e a jovem República brasileira. Assim, diante do desespero da seca, das injustiças sociais ou da mais pura fé em sua doutrinas, acumulava seguidores por onde passava. Toda essa seqüência proposta pelo texto sobre o Conselheiro era desenvolvida pelo espetáculo. Sua vida era contada, de uma forma um tanto documental, sem que aparecesse
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uma discussão mais profunda sobre sua origem. Tratava-se de um dos momentos em que as imagens deixavam de ser grandiosas e passavam a ser mais próximas do cotidiano. A história da família Maciel (a família do Conselheiro) não acontecia em meio ao público, mas diante dele. Havia, na verdade, até um certo didatismo na explicações dos fatos que geraram o Conselheiro, sem, no entanto, criar qualquer tipo de crítica em relação a eles. O espetáculo do Oficina trabalhava diretamente com essas imagens, recriadas a partir de uma visão teatral própria: colocava as cenas principais no meio da passarela central, mas, na verdade, ocupava os mais diferente e surpreendentes espaços do teatro. Tudo isso em meio a uma profunda entrega dos atores a seu trabalho, marcado em vários momentos por cenas de nudez e sexo, já que esse é um dos principais signos do surgimento das raças. Pode-se afirmar que o verdadeiro artista está sempre disposto a qualquer sacrifício para atingir um momento de criatividade. O artista medíocre prefere não correr riscos, e por isso é convencional. Tudo que é convencional, tudo que é medíocre, está relacionado a este medo. O ator convencional põe um lacre em seu trabalho, e lacrar é um ato defensivo. Quem se protege “constrói” e “lacra”. Quem quer se abrir tem que destruir as paredes.10
10 Brook, op. cit., p. 21.
Foi esse signo que o espetáculo elegeu como elemento básico parar criar, dramaticamente, o aparecimento do homem nordestino. São imagens de pessoas despidas, gerando pessoas despidas, sem transformar a nudez em erotismo superficial. Assim, plasticamente, as cenas de sexo e nascimento eram apresentadas de uma forma crua e impactante, transformadas em poderosas imagens teatrais com os atores despidos. Pôr “a nu” é como pôr “à morte” o desejo. Mesmo o corpo considerado como mais feio é tomado por uma estranha beleza no momento em que se desnuda, pois toda intensidade do desejo é então concluída nesse instante estético em que aquele que olha se avalia pela perda de seu próprio poder na mise en scène do olhar.11 O erotismo, que está no princípio da vida, é parte fundamental em tudo o que se refere ao ser humano. Entretanto, esse erotismo em Os sertões também pode ser encarado como uma linguagem escolhida para recriar momentos da história de uma perspectiva mais humanizada. Assim, o espetáculo trabalhou com todas as misturas raciais relatadas pelo escritor de Os Sertões, sem, no entanto, perder seu foco principal, a criação de um teatro vivo. A luta I e II A preparação da primeira expedição militar contra Canudos aparecia em destaque no início do espetáculo A luta I. Em contraste com isso apresentava a vida em Canudos e sua preparação contra o ataque iminente. Assim surgia um rap dos vaqueiros, um outro
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11 Jeudy, op. cit., p. 71.
rap funk dos guerrilheiros, prontos para a luta, duelando com as palavras. Em seguida, acontecia o confronto. O Exército, atacado por guerrilheiros emboscados ou por exímios atiradores, que acertavam seus oficiais, mesmo apoiado por canhões, começava a perder a batalha. Aconteciam, então, belos momentos de combates corpo a corpo, com os facões chocando-se no ar, enquanto o Exército, derrotado, realizava uma desesperada retirada. Em A luta II, o grande assunto da guerra já havia chegado à cidade, e o povo, na Rua do Ouvidor, era convocado para a luta. O espetáculo então passava a relacionar, mais uma vez, a luta de Canudos e a luta do Teatro Oficina, ambos reagindo contra a prepotência armada e o poder financeiro. Em seguida, a luta explodia em todos os lugares, com as expedições militares atacando Canudos e os sertanejos defendendo-se bravamente. Inúmeras situações de luta e as forças que buscavam destruir Canudos eram mostradas na narrativa teatral. Finalmente, fragilizada por completo e quase deserta, a cidade, que jamais se entregou caía, sendo completamente destruída pelos canhões da República. Euclides da Cunha nos mostra o homem sertanejo seguindo os caminhos que a vida lhe proporciona. Um deles está na revolta, na atitude contra a força opressiva dos donos da miséria. Sem trabalho melhor para ganhar a vida, vira jagunço, colocando suas armas a serviço de quem quiser pagar por elas. Além dos jagunços, ele discute também o papel do vaqueiro e do bandeirante. Entretanto, é no guerreiro que a narrativa mais se vai fixar, descrevendo a luta entre soldados e jagunços na Guerra de Canudos. O assalto seria iniciado por duas brigadas, a 3a e 6a, dos coronéis Dantas Barreto e João César Sampaio, a primeira endurada por três meses de contínuos recontros e a última, recém-vinda, de combatentes que ansiavam a medir-se com os jagunços. Aquela deixou, então, a sua antiga posição na linha negra, sendo substituída por três batalhões, 9o, 22o e 34o, e contra marchando para a direita, seguiu rumo à Fazenda Velha, de onde juntamente com a outra, formada dos 29o, 39o e 4o batalhões, se moveu até estacionar à retaguarda e flancos da igreja nova, objetivo central do acometimento. Completariam este movimento primordial outros, secundários e supletivos: no momento da carga, o 26o de linha, o 5o da Bahia e a ala direita do batalhão de São Paulo, tomariam rapidamente posições junto à barranca esquerda do Vaza-Barris, à ourela da praça, onde se conservariam até nova ordem. À sua retaguarda se estenderiam em apoio os dois corpos do Pará, prontos a substituírem-nos ou a reforçarem-nos, segundo as eventualidades do combate. De sorte que este, iniciado à retaguarda e aos flancos da igreja, iria, a pouco e pouco, deslocando-se para a linha de baionetas que se cosia à barranca lateral do rio, na face sul da praça. Era, como se vê, um arrochar vigoroso – em que colaborariam os demais corpos guarnecendo as posições recém-conquistadas e o acampamento. Interviriam na ação à medida
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das circunstâncias, ou quando tombassem diante das trincheiras e das barrancas as chusmas de inimigos repulsados.12
12 Cunha, op. cit., p. 347.
Continuando com seu estilo narrativo, em que faz uma afirmação e, em seguida, nega essa afirmação, tudo através de um jogo dialético, Euclides da Cunha nos mostra o outro lado da guerra. Os sertanejos mal vestidos, mal alimentados e quase desarmados, conseguem vencer as poderosas forças militares. E foi uma debandada. Oitocentos homens desapareciam em fuga, abandonando as espingardas; arriando as padiolas, em que se estorciam feridos; jogando fora as peças de equipamento; desarmando-se; desapertando os cinturões, para a carreira desafogada; e correndo, correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que a recortam, correndo para o recesso das caatingas, tontos, apavorados, sem chefes (...) Entre os fardos atirados
– tristís– o cadáver do comandante. Não o defenderam. Não
à beira do caminho ficara, logo ao desencadear-se o pânico simo pormenor!
houve um breve simulacro de repulsa contra o inimigo, que não viam e adivinhavam no estrídulo dos gritos desafiadores e nos estampidos de um tiroteio irregular e escasso, como o de uma caçada. Aos primeiros tiros os batalhões diluíram-se.13 No espetáculo, as várias situações de luta armada entre jagunços e o Exército eram criadas pelo Oficina, buscando estabelecer um verdadeiro clima de guerra, trabalhadas em todo o espaço cênico, e não apenas na passarela dos atores, mas também na platéia, espaço do público. Assim, a guerra acontecia à frente, atrás, de um lado e de outro da platéia, deixando-a, literalmente, no centro dos acontecimentos. Jogos do espaço em Os Sertões Um dos grandes jogos propostos pelo Oficina em sua montagem de Os sertões estava diretamente relacionado a sua criação de espaços, em que se desenrolavam as ações teatrais. Era o jogo teatral espalhado por vários espaços, muitas vezes usados em conjunto, que funcionava como uma poderosa força na dinâmica das ações dramáticas. Além disso, criava, constantemente, uma profunda relação com o público. Eram tantos e tão diferentes os espaços trabalhados no jogo do Oficina, que cabe uma pergunta: afinal, o que é o espaço no teatro e qual a sua importância na criação de uma estética? Entre muitas teorias sobre o tema, encontramos o pensamento de Anne Ubersfeld, em Para ler o teatro, discutindo a relação entre o signo literário e o signo teatral: O duplo estatuto do signo cênico – Observamos que essas definições não se aplicam ao signo cênico sem algum tipo de adaptação. Em primeiro lugar, trata-se de não mais “convenções gráficas”, mas de outros
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13 Id., ibid., p. 210.
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tipos de convenções codificadas; depois, ao contrário da pintura e do cinema, o signo não necessita de um “suporte material”, como a tela ou a película; mas, se assim se pode dizer, o suporte material é o próprio objeto, o próprio espaço. O objeto teatral é um “objeto no mundo”, em princípio idêntico (ou fundamentalmente semelhante) ao objeto do “real” não teatral, do qual é ícone. Trata-se de um objeto
14 Ubersfeld, Anne. Para ler o teatro. Tradução de José Simões. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005, p. 98.
situado em um “espaço concreto”, que é o espaço da cena.14 Havia, portanto, no espetáculo do Oficina um jogo entre os diferentes espaços, uma permanente alternância entre eles. Ora sendo trabalhados separadamente, ora unidos, sem, no entanto, deixar de seguir as palavras de Euclides da Cunha. O arraial, adiante e embaixo, erigia-se no mesmo solo perturbado. Mas vistos daquele ponto, de permeio a distância suavizando-lhes as encostas e aplainando-os – todos os serrotes breves e inúmeros, projetandose em plano inferior e estendendo-se, uniformes, pelos quadrantes, davam-lhe a ilusão de uma planície ondulante e grande. Em roda uma
15 Cunha, op. cit., p. 24.
elipse majestosa de montanhas...15 O espaço físico de todos os espetáculos que fizeram parte de Os sertões era sempre o mesmo. Tratava-se de uma passarela, entre duas arquibancadas, semelhante ao Sambódromo do Rio de Janeiro. O espaço da passarela, bem como os espaços no alto da arquibancada, eram destinados ao trabalho dos atores. O público tinha seu espaço nas duas arquibancadas que ladeavam a passarela. Durante todo o espetáculo o espaço da passarela era usado tanto como um lugar para desfiles (militares, por exemplo), como espaço dramático de criação das cenas e como um espaço ritual que unia o público e a platéia numa só ação.
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As passarelas no alto, em volta do público, principalmente as duas que ficavam nas extremidades, eram constantemente ocupadas pela encenação de momentos dramáticos ou alegóricos (a representação da República, por exemplo). Finalmente um outro espaço era utilizado em várias cenas, o poço, com diversas descidas ao longo da passarela, criando espaços subterrâneos. Jazia num dos casebres anexos à latada, e foi encontrado graças à indicação de um prisioneiro. Removida breve camada de terra, apareceu no triste sudário de um lençol imundo, em que mãos piedosas haviam disparzido algumas flores murchas, e repousando sobre uma esteira velha, de tábua, o corpo do “famigerado e bárbaro” agitador.16
16 Id., ibid., p. 230.
Durante todo o espetáculo, câmeras de vídeo eram utilizadas, gravando a ação dramática, o público ou, em detalhe, os atores. Todas essas imagens eram projetadas em dois grandes telões, localizados no centro das duas arquibancadas, contando com outros dois provisórios, que surgiam nas extremidades da passarela central. Além dessas gravações, víamos também imagens históricas da Guerra de Canudos. O espaço do cinema, assim, penetrava o espaço do teatro e passava a fazer parte dele. À multiplicidade de espaços físicos que o espetáculo utilizava somava-se o espaço das imagens projetadas. Criava um desafio permanente na mente do espectador, que agora podia ver imagens em todos os espaços do teatro e, além disso, os detalhes cinematográficos dessas imagens. Todo esse jogo de espaços contribuía para criar no público a sensação de estar participando da obra de arte, que se estava criando naquele momento. O jogo dos espaços, portanto, criava um tal jogo com o espectador, que ele passava a sentir-se, como os atores, também um jogador do jogo do teatro. Em muitos momentos era usado o poço, como na encenação do seguinte texto: Estava hediondo. Envolto no velho hábito azul de brim americano, mãos cruzadas ao peito, rosto tumefacto e esquálido, olhos fundos cheios de terra
– mal o reconheceram os que mais de perto o haviam
tratado durante a vida. Desenterraram-no cuidadosamente. Dádiva preciosa – Único prêmio, únicos despojos opimos de tal guerra! – faziamse mister os máximos resguardos para que se não desarticulasse ou deformasse, reduzindo-se a uma masa angulhenta de tecidos decompostos.17
17 Idem.
O espetáculo, então, acontecia numa multiplicidade de espaços, em que, muitas vezes, vários eram usados ao mesmo tempo. Tudo isso à frente, atrás, de um lado e do outro dos espectadores. Essa configuração de espaços nos sugeria, de imediato uma divisão entre o palco e a platéia. Essa divisão, de fato, acontecia no espetáculo. Entretanto, uma surpresa aguardava a platéia. Seu lugar, antes protegido na semi-obscuridade, passava a ser constantemente invadido pelos atores. Subiam, desciam, pulavam e sentavam-se na platéia,
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muitas vezes, sobre a platéia. Essa transgressão espacial criava uma nova relação entre as duas partes que queriam encontrar-se. Assim, em diversos momentos, graças a esse jogo de alternâncias espaciais, o público sentia-se no meio da ação dramática, no centro da Guerra de Canudos. Por outro lado, nada disso era feito com calma e tranqüilidade, mas num clima de guerra e, muitas vezes, de perigo (facões, manejados pelos atores, por exemplo). Assim também o encontro do cadáver de Conselheiro, que, retratado por Euclides da Cunha, foi criativamente recriado pelo Oficina, usando o espaço do fosso do teatro e auxiliando a visão do público com suas projeções. Fotografaram-no depois. E lavrou-se uma ata rigorosa firmando a sua identidade: importava que o país se convencesse bem de que estava afinal extinto aquele terribilíssimo antagonista. Restituíram-no à cova. Pensaram, porém, depois, em guardar a sua cabeça tantas vezes maldita
– e como fora malbaratar o tempo exumando-o de novo, uma faca
jeitosamente brandida, naquela mesma atitude, cortou-lha; e a face horrenda, empastada de escaras e de sânie, apareceu ainda uma vez ante aqueles triunfadores (...) Trouxeram depois para o litoral, onde deliravam multidões em festa, aquele crânio. Que a ciência dissesse a última palavra. Ali estavam, no relevo de circunvoluções expressivas, 18 Idem.
as linhas essenciais do crime e da loucura...18 O criativo uso da multiplicidade de espaços era uma das forças desse espetáculo. Os espaços dramáticos eram criados a partir de elementos essenciais, nunca utilizando decorações com o mero objetivo de marcar um ambiente. Pelo contrário, o espetáculo trabalhava muito com espaços vazios, criando sua caracterização a partir da indumentária e da atuação dos personagens. Assim, surgiam a todo momento os mais diversos espaços usados na narrativa teatral: a caatinga, as serras, a cidade, Canudos, o espaço das autoridades da República, etc. O jogo desses espaços nos levava para o centro da obra de Euclides da Cunha. Não tínhamos uma linearidade na apresentação desses espaços, mas tínhamos seu surgimento, de acordo com as necessidades do jogo. Assim esse jogo tornava-se cada vez mais envolvente, à que medida atraía uma multiplicidade de atenção do espectador, participando visualmente de vários espaços ao mesmo tempo. Isso se transformava, afinal, numa maneira de ler o espetáculo e mergulhar nos jogos que ele estava propondo. Jogos do tempo em Os Sertões Outro grande jogo proposto pela criação do espetáculo Os sertões do Oficina era o jogo do tempo. O tempo dramático do espetáculo surgia no ponto exato do cruzamento de vários tempos. Havia, em primeiro lugar, um tempo cronológico, em que o espetáculo conduz o público no jogo dos tempos. Em seguida, podíamos pensar no tempo dramático das ações teatrais, feito de fragmento, relacionando sempre o passado e o presente. Finalmente, os tempos das cenas e das ações teatrais. Também podíamos acrescentar a isso as várias épocas que faziam parte do espetáculo. Essas épocas seguiam do presente ao século
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XIX, num caminho de idas e vindas, fazendo do tempo o jogo e não uma certeza. Era exatamente a partir desse jogo que o tempo presente se relacionava no espetáculo com tempo passado, a época de Canudos. O massacre dos sertanejos em Canudos era repetido na favela da atualidade. Os significantes temporais – O problema fundamental do tempo no teatro é que ele se situa no “aqui-agora” que é aqui-agora da representação e que é, também, o presente do espectador: o teatro é o que por natureza nega a presença do passado e do futuro. A escritura teatral é uma “escritura no presente”. Tudo o que será signo do tempo está, portanto, por natureza, contido numa relação com o presente. O significante do tempo no teatro é marcado tanto pela denegação quanto pelos outros significantes do teatro (...) O problema dos significantes do tempo é que designam um referente necessariamente extracênico: a dificuldade do tempo no teatro é que não podemos denominá-lo (...) “referente”, não podemos “mostrá-lo; situa-se por natureza fora da 19 Ubersfeld, op. cit., p. 132.
“mímesis”.19 A seqüência dos cinco espetáculos que faziam parte da saga teatral Os sertões do Oficina começava discutindo a história do sertanejo, seguindo Euclides da Cunha, desde a origem das raças. Depois dessas primeiras imagens, o espetáculo passeava por diversas épocas. Assim, mostrava os sertanejos na luta de Canudos, o poder governamental da época, além de Conselheiro e seus seguidores. O traje regional é simultaneamente um objeto e um signo ou, mais exatamente, o portador de uma estrutura de signos. Atesta a relação de pertinência com uma classe, nacionalidade, fé religiosa etc., indica a situação econômica de quem o usa, sua idade, e assim por diante. Da mesma forma, uma casa não é apenas uma coisa, mas também o signo da nacionalidade, da condição econômica, da fé religiosa de seu proprietário.20
20 Bogatyrev, Piotr. Os signos do teatro. In Semiologia do teatro. São Paulo: Perspectiva, 1988, p. 71.
Todos os momentos da história de Canudos nos eram revelados através de sucessivos jogos, em que as mais diversas épocas eram discutidas, em sucessivas cenas soltas. Entretanto, não havia a preocupação de criar seqüências de significados lógicos, mas de significantes teatrais que levassem o público a criar seus próprios pensamentos sobre a história narrada. E quando a vanguarda lhe atingiu o meio, estourou uma descarga de meia dúzia de tiros. Era afinal o inimigo. Algum piquete de sobre-ronda à expedição, ou ali aguardando-a, que aproveitara a conformação favorável do terreno para um ataque instantâneo, ferindo-a de soslaio, e
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furtando-se a seguro pelas passagens cobertas das ribanceiras do rio. Mas atirara com firmeza: abatera, mortalmente ferido, um dos subalternos da companhia de atiradores, o alferes Poly, além de seis a sete soldados. Descarregara as armas e fugira a tempo de escapar à réplica, 21 Cunha, op. cit., p. 194.
que foi pronta.21 O tempo cronológico era constantemente misturado ao tempo cinematográfico, já que aconteciam muitas projeções de documentários ou fotografias da Guerra de Canudos. Além disso, havia um permanente jogo entre o tempo real e o tempo cinematográfico, uma vez que o espetáculo era permanentemente gravado em vídeo e projetado nos telões. Esse jogo levava o espectador a envolver-se com os mais diversos tempos, novamente, como um participante da ação e não apenas como um mero coadjuvante. O grande número de situações narradas no espetáculo fazia com que seu tempo físico parecesse excessivamente longo. Muitas vezes chegava a cansar o espectador, mas, em seguida, as imagens teatrais eram tão cheias de vida, que uma nova energia despertava o espectador cansado. Graças à linguagem da encenação esse tempo físico funcionava como um jogo. Nesse jogo, o espectador, além de sua própria função, assistir ao espetáculo, era levado a outra, ou seja, participar do espetáculo com a função de coro. Todo esse jogo era favorecido pelo texto claro e profundo de Euclides da Cunha. O comandante-em-chefe abraçou, num lance de alegria sincera, o oficial feliz que dera aquele repelão valente no antagonista, e considerou auspicioso o encontro. Era quase para lastimar tanto aparelho bélico, tanta gente, tão luxuosa encenação em campanha destinada a liquidar-se com meia dúzia de disparos. As armas dos jagunços eram ridículas. Como despojo, os soldados encontraram uma espingarda pica-pau, leve e de cano finíssimo, sobre a barranca. Estava carregada. O coronel César, mesmo a cavalo, disparou-a para o ar. Um tiro insignificante, de matar passarinho. “Esta gente está desarmada...”, disse tranqüi-
22 Idem.
lamente.22 Os mais diversos momentos da saga de Canudos eram transformados em imagens teatrais altamente eficientes dramaticamente. O espetáculo fazia um grande jogo com os tempos dramáticos, misturando diferentes épocas e diferentes momentos da narrativa teatral. Muitas vezes funcionava como uma parábola ou uma comparação, quando, por exemplo, o tempo da Guerra de Canudos era relacionado ao tempo da guerra de Hitler. Da mesma maneira a época de Canudos era relacionada à época atual, como se o tempo fosse cíclico, quando se tratava de um dominação do homem sobre outro. As constantes mudanças entre passado e presente acabavam levando o espectador a acompanhar os acontecimentos do passado como se fossem coisas do presente.
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Jogos das ações em Os Sertões Em meio a saltos e correrias acontecia uma súbita mudança de ritmo. Então o espectador
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se deparava com ações dramáticas construídas como jogos, em que tudo funcionava como parte de uma ampla narrativa. Assim, surgiam, inesperadamente, novos espaços, no alto, no meio ou no alçapão, definidos pela luz, revelando ações dramáticas plenas de teatralidade e nos mostrando tudo o que era importante no livro. Vinham de todos os pontos, carregando os haveres todos; e, transpostas as últimas voltas do caminho, quando divisavam o campanário humilde da antiga capela, caíam genuflexos sobre o chão aspérrimo. Estava atingido o termo da romagem. Estavam salvos da pavorosa hecatombe, que vaticinavam as profecias do evangelizador. Passavam, afinal, à terra da promissão – Canaã sagrada, que o Bom Jesus isolara do resto do mundo por uma cintura de serras.23
23 Cunha, op. cit., p. 116.
As ações dramáticas eram mostradas em Os Sertões como parte de um grande jogo. Representavam cenas da história, de Canudos ou da humanidade. Entretanto, fossem de Canudos, fossem da atualidade, as ações dramáticas eram sempre trabalhadas como jogos. O discurso do ator no palco é um sistema de signos bastante complexo; veicula quase todos os signos do discurso poético e, além do mais, faz parte da ação dramática (...) Todos esses signos são utilizados pelo dramaturgo e pelo ator como meio de exprimir as relações de pertinência social ou nacional da personagem representada.24
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24 Bogatyrev, op. cit., p. 75.
Todas as situações da montagem eram criadas de uma maneira não realista, porém sempre verossímil. Buscavam, sobretudo, criar climas dramáticos, abrindo o espaço para o surgimento de um teatro vigoroso e profundamente humano. No entanto, essa força dramática não tinha a intenção apenas de emocionar, mas de levar o espectador a perceber os lados mais ocultos daquela história. Dito de outro modo, o que a representação teatral exprime, sua mensagem própria, não é tanto o discurso das personagens, mas as condições de exercício desse discurso (...) Todas as camadas textuais (didascálias + elementos didascálias no diálogo) que definem uma situação de comunicação das personagens, determinando as condições de enunciação de seus discursos (...) É a condição de enunciação do discurso que constitui a mensagem e inscreve-se, pois, no discurso global do objeto25 Ubersfeld, op. cit., p. 161.
teatro endereçado ao espectador.25 O jogo entre cinema e teatro que percorria todos os espaços da montagem do Oficina mostrava de diferentes ângulos novos e inesperados aspectos das cenas, recriando sempre com extrema liberdade aquilo que Euclides da Cunha havia falado no livro. Assim, em todos os momentos do espetáculo, a ação dramática era, imediatamente, transformada em ação cinematográfica. A luta, que viera perdendo dia a dia o caráter militar, degenerou, ao cabo, inteiramente. Foram-se os últimos traços de um formalismo inútil: deliberações de comando, movimentos combinados, distribuições de forças, os mesmos toques de cornetas, e por fim a própria hierarquia, já materialmente extinta num exército sem distintivos e sem fardas. Sabia-se de uma coisa única: os jagunços não poderiam resistir por muitas horas. Alguns soldados se haviam abeirado do último reduto e colhido de um lance a situação dos adversários. Era incrível: numa cava quadrangular, de pouco mais de metro de fundo, ao lado da igreja nova, uns vinte lutadores, esfomeados e rotos, medonhos de ver-se, predispunham-se a um suicídio formidável. Chamou-se aquilo o “hospital de sangue” dos jagunços. Era um túmulo. De feito, lá estavam, em maior número, os mortos, alguns de muitos dias já, enfileirados ao longo das quatro bordas da escavação e formando o quadrado assombroso dentro do qual uma dúzia de moribundos, vidas concentradas na última contração dos dedos nos gatilhos das espingardas, combatiam contra um exército. E lutavam com relativa vantagem ainda. Pelo menos fizeram parar os adversários. Destes os que mais se aproximaram lá ficaram, aumentando a trincheira sinistra de corpos esmigalhados e
26 Cunha, op. cit., p. 359.
sangrentos.26
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As duas linguagens então se uniam no espetáculo, formando um duplo a cada momento: era teatro e era cinema. Por outro lado, também era cinema e teatro ao mesmo tempo. Esse permanente jogo fazia com que o espectador deixasse de pensar no cinema ou no teatro e participasse do espetáculo como que fazendo parte de um grande ritual, de uma grande cerimônia coletiva. Viam-se, salpintando o acervo de cadáveres andrajosos dos jagunços, listras vermelhas de fardas, e entre elas as divisas do sargento-ajudante do 39o, que lá entrara, baqueando logo. Outros tiveram igual destino. Tinham a ilusão do último recontro feliz e fácil: romperem pelos últimos casebres envolventes, caindo de chofre sobre os titãs combalidos, fulminando-os, esmagando-os... Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados.27 A multiplicidade das ações, quase um bombardeio de umas sobre as outras, ou, em dados momento, uma calmaria quase zen na condução das ações envolvia completamente o espectador em seu jogo. Na verdade, não havia muito tempo para pensar entre uma ação e outra. Isso ocorria por um motivo muito simples: uma ação não era sucedida por outra, mas por uma multiplicidade de ações, acontecendo nos mais diferentes espaços cênicos disponíveis. Assim, o público saltava de uma sensação para outras, de uma emoção para outras, de um pensamento para outros, constantemente. Esse jogo das ações dramáticas fazia com que o público se sentisse no centro do teatro, participando da grande cerimônia na narrativa teatral da Guerra de Canudos. A representação de momentos da história da República, bem como da Guerra de Canudos misturavam-se a outros momentos da história. Entre estas encontramos momentos em que são lembrados, pelos mais diversos motivos, Hitler, madre Teresa de Calcutá, o papa, Sílvio Santos, etc. Assim, no jogo se suas ações, o espetáculo nos mostrava a equivalência entre ações do passado e atitudes do presente. Sobretudo as atitudes revestidas de intolerância e de um poder que esmaga os outros. Todas as ações tramadas e executadas contra Canudos eram comparadas pelo espetáculo às ações realizadas contra as minorias que não detêm o poder. Assim, a multiplicidade de ações acabava levando o espectador, num grande jogo que misturava o passado e o presente, a sentir-se sempre perto ou mesmo dentro dos acontecimentos mostrados. O espetáculo, assim, seguia de perto a seqüência traçada por Euclides da Cunha em Os sertões, trabalhando os mais diversos signos do teatro de uma maneira profundamente viva.
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27 Idem.
Conclusão Criado a partir da relação entre os jogos dos espaços, dos tempos e das ações, Os sertões se constitui na síntese de todos esses jogos. É, exatamente, através do caminho do jogo que o espetáculo estabelece uma relação clara e verdadeira com a platéia: estamos aqui para jogar teatro. Todos buscamos juntos a criação da magia. E, poder alcançá-la é a nossa vitória nesse jogo. Assim, a partir do momento em que o invisível se revela a nossa frente, a essência do teatro é desvelada. Depois de instaurado esse jogo, nos deixamos conduzir pelos mais diversos caminhos, indo da Antigüidade à Modernidade, com uma outra visão das coisas. Nada é separado, mas tudo é parte de um conjunto: o massacre de Canudos e o massacre da favela moderna são um apenas. O Oficina é um grito contra nossa imobilidade diante das coisas. Precisamos refazer Canudos, refazer a favela e recriar as relações humanas não mais a partir do poder, mas sobretudo do debate e da discussão democrática.
Referências bibliográficas BOGATYREV, Piotr. Os signos do teatro. In Semiologia do teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1988. BROOK, Peter. A porta aberta. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2002. DESGRANGES, Flávio. A pedagogia do espectador. São Paulo: Editora Hucitec, 2003. HUIZINGA. Homo ludens. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1996. JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Ed. Estação Liberdade, 2002. SPOLIN, Viola. Improvisação para o teatro. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1987. UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Tradução de José Simões. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2005.
Iremar Maciel de Brito é doutor em Letras pela UFF. Diretor teatral, formado pela UNIRIO. Professor adjunto do Departamento de Interpretação da Escola de Teatro da UNIRIO. Romancista e autor teatral. / iremar@globo.com
O jogo do teatro em Os Sertões do Oficina Iremar Maciel de Brito
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Ocupação experimental de lotes vagos (Projeto Lotes Vagos: Ação Coletiva de Ocupação Urbana Experimental – Belo Horizonte, 2005/2006). Plantio de 100m2 de grama (esquerda) / Praia (direita). Trabalho de Louise Ganz e Ines Linke. Fotos: Louise Ganz.
Paisagens e experiências* Louise Ganz
A partir da obra de quatro grupos artísticos, traço algumas reflexões sobre a paisagem em suas escalas micro (proximidade) e macro (pública). As obras e/ou os artistas possuem alguns pontos coincidentes: a existência do percurso ou da infiltração em um espaço urbano ou na natureza como procedimento artístico; os tipos de lugares ou espaços escolhidos por eles são banais ou marginais, revelando uma cidade não formalista ou fora dos parâmetros do planejamento urbano; os trabalhos são vinculados à experiência, à inserção e à ação do corpo no ambiente; o uso de métodos de registro da ação em forma de mapas, fotografias e narrativas; necessidade de expressar a relação arte e vida, falando de cotidiano e realidade; as obras implicam novas relações com o público, sendo ele participador a partir de proposições deterministas da obra ou da própria ausência de público de arte, que passa a ser atuante ou agente realizador. Paisagem, espaços banais ou marginais, arte e vida.
A superfície terrestre apresenta-se hoje como uma extensão desorde*Artigo recebido em janeiro de 2008 e aceito para publicação em março de 2008.
nada, fragmentada e diluída de cidades e aglomerados, de grandes redes de transporte, mercadorias e energia, de áreas agrícolas industriais, áreas de extração vegetal e mineral, de infra-estruturas de turismo implantadas a partir de discursos neoliberais, e falsos, de sustentabilidade ambiental. A cidade, sobretudo, dá a ilusão de que a geografia e a geologia da terra não existem, gerando um processo de amnésia. Isso devido a cortes, terraplanagens, extrações, plantações artificiais, sobreposições de camadas de edifícios e infra-estruturas, ou seja, um processo de retiradas e inserções. As modificações da fisionomia do mundo, ocorridas principalmente no século XX, constituem paisagens contemporâneas. Paisagem é noção moderna que nasce como representação de ordem estética, como imagem, seja ela mental, verbal, pictórica ou realizada sobre o território (in situ). Trata-se de exercício do olhar, que enquadra ou revela modos como o mundo é construído e visto. Sabe-se que os poetas e pintores construíram inicialmente essa noção. A fisionomia dos lugares é percebida ou apreciada, o que qualifica primeiramente os modos de olhar, e não os de fazer. Outros saberes, porém, como a geografia, a botânica, a geologia, a arquitetura e a engenharia, ampliam essa noção para além da estética, associando-a a outros campos de conhecimento e ao fazer. Partindo da estética, tangencio, em alguns momentos, esses
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outros campos e os modos de fazer e transformar a terra. Considero dois pontos de vista ou escalas – macro e micro, distância e proximidade. Na macroescala pode-se olhar a paisagem como uma superfície. Esse olhar distanciado é fundamental para perceber as conexões, articulações, mobilidades e transformações que redesenham diariamente o mapa da superfície, para fazer prospecções e reconhecer as aparências. Essa cartografia é também aquela que permite a realização de projetos, abstrações, controles, estratégias de guerra, demarcação de terras, domínios e fronteiras. Após o vôo sobre a superfície na macroescala, abordar a micro escala implica relações de proximidade, de embates, de encontros, ou seja, experiência distinta da anterior. Na microescala o que muda completamente é o tipo de olhar, de relação e envolvimento que se estabelece com o espaço. Alguns profissionais trabalham de dentro, como o fazendeiro, o camponês ou, muitas vezes, o artista. Isso gera outra cartografia, que aborda, simultaneamente de modo objetivo e subjetivo, diversas questões. Georges Perec, em seu livro L’infra-ordinaire1 realiza o mapeamento de uma pequena rua de Paris em que morava e que estava então em processo de contínuas demolições. Seu procedimento foi acompanhar de
1 Perec, Georges. L’infra-ordinaire. Paris: Éditions du Seuil, 1989. Coll. La Librairie du XXe. siècle.
1969 a 1975 as transformações, fazendo visitas freqüentes ao local, anotando as modificações, casa por casa, construindo uma espécie de inventário pessoal. Pela numeração dos edifícios registrava aqueles que estavam habitados, os que passavam a ter placas de ‘aluga-se’ ou ‘vende-se’, os que estavam abandonados, os que eram demolidos. Ano após ano a paisagem foi-se modificando, até chegar à total demolição. A partir desse simples procedimento ele revela a história de habitantes e do espaço de um trecho de rua. Em outro livro, Espèces d’espaces2 utiliza-se do mesmo método da repetição para apresentar outra paisagem: a de sua própria casa. Os capítulos se dividem em descrições obsessivas dos espaços de sua intimidade, começando pela folha de papel em branco, em que exercita seu trabalho diário da escrita. Passa em seguida para longas descrições: das camas em que já dormiu; de todos os quartos em que pernoitou; da sala de sua casa; de sua escrivaninha e dos objetos sobre ela, da rua, de calçadas e elementos do espaço público, ampliando cada vez mais a escala até abarcar a cidade, o país, o mundo e o universo. Isso provoca, em nós, leitores, um estado de suspensão, que parece ocorrer pela descrição excessiva de detalhes e desdobramentos repetitivos de um pequeno espaço, como o da folha de papel, expandindo-o espacialmente. Há um deslocamento dos sentidos dado pela intensidade da infiltração no micro, que o faz expandir-se. Trata-se da sensação de amplitude espacial. Perec parte de uma relação de profunda intimidade com objetos e espaços. O procedimento de inventariar os objetos ou as casas ano após ano não só revela os acontecimentos cotidianos e íntimos, como também os coloca na esfera pública. Da dimensão das histórias particulares de objetos ou pessoas pode-se construir uma história sobre uma rua, uma cidade ou uma nação. Interessa-me, assim, comentar obras e procedimentos de artistas que
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2 Perec, George. Espèce d’espace. Paris: Éditions Galilée, 1974. Coll. L’Espace Critique.
trabalhem na escala micro de experiência e que com suas obras redefinam as paisagens públicas. Escolhi quatro obras e/ou projetos de artistas e/ou grupos para formar quatro paisagens: uma experiência dadaísta, a deriva situacionista, os monumentos de Passaic, de Robert Smithson, e o conceito ambiental de Hélio Oiticica. A idéia de associá-los à noção de paisagem, como espaço enquadrado e modificado pelo homem, vem pelas relações que estabelecem com os espaços abertos, urbanos ou “naturais”, não apenas pelo olhar contemplativo, mas a partir da infiltração ou do percurso do próprio corpo nos lugares. Assim, todos eles vão desenhando paisagens móveis e orgânicas. Busco alguns pontos de aproximação entre essas paisagens, alguns mais evidentes, outros nem tanto. Não são comparações entre obras, mas a constatação da existência de pontos coincidentes: a existência do percurso ou da infiltração em um espaço urbano ou na natureza, como procedimento artístico; os tipos de lugares ou espaços escolhidos por eles são banais ou marginais, revelando uma cidade não formalista ou fora dos parâmetros do planejamento urbano; os trabalhos são vinculados à experiência, à inserção e à ação do corpo no ambiente; o uso de métodos de registro da ação em forma de mapas, fotografias e narrativas; uma necessidade de expressar a relação entre arte e vida, falando de cotidiano e realidade; as obras implicam novas relações com o público, sendo ele participador a partir de proposições deterministas da obra ou da própria ausência de público de arte, passando este a ser atuante ou agente realizador. Por fim, a idéia de paisagem me parece potente quando vista a partir das obras, em vez de tentar estabelecer conceitos estáticos e inflexíveis desvinculados da realidade da obra. Ambas as escalas (micro e macro) interessam para olhar esses artistas. Paisagem 1 Em 1921 um grupo de dadaístas ocupa um terreno em Paris que fica na lateral de uma igreja pouco conhecida, Saint-Julien-le-Pauvre. Esse terreno tem a aparência de um jardim bastante banal e familiar. Ali permaneceu o grupo durante parte do dia, fazendo leitura de textos do dicionário e casualmente distribuindo alguns presentes aos transeuntes. A documentação da ação, como relatos e fotografias, não passou por revisão posterior. Os registros fotográficos apenas mostram os dadaístas posando, nada fazendo. Não realizaram nenhuma operação material no terreno, nem deixaram rastros físicos. Apenas ocuparam o local durante algumas horas. O modo adotado para tornar pública a operação foi através de anúncio em revista e um artigo no dia seguinte. Intitulada A visita, essa ação, que eles consideram um ready-made urbano, atribui valor estético a um espaço, em vez de a um objeto. Dada, que já havia inserido um objeto banal no campo da arte, passa a levar a arte – aqui considerada como sendo as próprias pessoas e seu corpo – a um lugar banal da cidade. A nova interpretação da nature-
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za aplicada desta vez à vida, e não à arte, representa uma chamada revolucionária à vida e contra a arte, do cotidiano contra o estético, que contesta abertamente as modalidades tradicionais da intervenção urbana, campo este de ação que pertencia à arquitetos e urbanistas.3 Nessa operação os dadaístas adotaram uma atitude de revelação de um certo tipo de espaço – um lugar banal, ordinário, sem nenhuma importância histórica, turística ou sequer monumental. Adotaram também uma atitude de exploração e de descobrimento, que os leva a encontrar realidades e situações presentes em qualquer parte da cidade. Apenas praças, parques e canteiros, espaços formalmente construídos e autorizados como públicos, existiam como possibilidade para a instalação de obras de arte. A idéia de arte pública até então se relacionava à ornamentação e ao embelezamento pela instalação de objetos artísticos nesses espaços oficiais. Num contexto pós-guerra, de niilismo justaposto às visões modernistas de reconstrução, os dadaístas jogam por água abaixo a idéia de cidades ideais, platônicas e utópicas. Incorporam o existente, o mais banal do existente. Desse modo, a paisagem e seus campos de abordagem são ampliados, já que passam a incorporar espaços banais, comuns, como possibilidade de espaço público ou de uso coletivo. A experiência dada de permanecer no terreno, ocupando-o apenas de modo efêmero e sem gerar nenhum tipo de modificação ou traço que indique fisicamente sua presença, revela um desprendimento da matéria e do objeto. A permanência no terreno, em si, é uma ação banal que qualquer pessoa poderia estar fazendo. O que importa para uma reflexão no campo da arte é justamente o fato de eles conceberem essa ação banal; Deslocar-se até esse local e lá permanecer. Isso revela também a aproximação de arte e vida como uma ação revolucionária. Será que os dadas queriam de fato ser legitimados pelos salões e museus ou tinham outra proposta? O que pretendiam ao debater sobre a arte nas instituições: sua própria legitimação ou continuar questionando esse lugar da legitimação institucional? Essa aproximação de arte e vida pode ser também identificada na relação que estabelecem com o público. Qual é esse público? Nesse dia esforçaram-se por tentar trazer as pessoas de dentro de suas casas para a rua, simplesmente para permanecer na rua. Não as convidaram para ser espectadores de um espetáculo nem mesmo para ter uma atitude participativa. Provocavam ou, talvez até menos do que isso, apenas convidavam para a ocupação da rua. Trata-se, portanto, desse público. Um público local. Sua ação comunica a um cidadão comum que as forças poéticas e políticas de transformação do cotidiano e do espaço estão nos próprios desejos, muito mais do que na formulação e instalação de belos monumentos pela cidade. A construção da paisagem se faz, aqui, por microação, o que é um ato político, ou seja, um ato de transformação dos modos de vida.
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3 Careri, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: GG, 2002:76.
Paisagem 2 Criada na Itália em 1957, a Internacional Situacionista (IS) surge a partir da fusão de três grupos: a Internacional Letrista (da qual veio Debord e Bernstein), o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista (do qual veio o artista Asger Jorn do grupo Cobra) e a Associação Psicogeográfica de Londres (apenas Ralph Rumney). Existiu durante 12 anos e teve no total 70 integrantes de 16 nacionalidades, mas devido às constantes exclusões a IS poucas vezes teve mais de 10 integrantes ao mesmo tempo. Sua primeira fase (até os anos 60) foi marcada pela importância que davam aos temas Arte e Cultura, principalmente pelo fato de seus membros serem, na maioria, artistas. Os conceitos da deriva e da psicogeografia pertencem a essa primeira fase. A IS reconhece no perder-se pela cidade uma possibilidade expressiva concreta de anti-arte, e o assume como um meio estético–político atra4 Careri, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: GG, 2002.
vés do qual podem subverter o sistema capitalista pós-guerra.4 A deriva era a soma de uma leitura subjetiva e de um método objetivo de exploração da cidade: “o espaço urbano era um terreno passional objetivo, e não só subjetivo e
5 Id., ibid.
inconsciente”.5 Em oposição aos surrealistas, que freqüentavam os lugares marginais em busca de um inconsciente dos espaços urbanos, os situacionistas queriam materializar, na
6 Teoria da Deriva, 1956.
realidade cotidiana, um novo estilo de vida. Teorizada por Guy Debord,6 a deriva é uma operação construída que aceita o acaso, mas nele não se baseia, pois está submetida a certas regras, por exemplo: fixar antecipadamente com base em cartografias psicogeográficas as direções de penetração em uma unidade ambiental (esses mapas são o resultado de investigações dos efeitos psíquicos que o contexto urbano produz nos indivíduos); a extensão do espaço a investigar pode variar de uma residência até um bairro, ou extensões maiores como uma cidade e suas periferias; a deriva deve ser empreendida por grupos de duas ou três pessoas unidas por um mesmo estado de consciência, pois a confrontação entre as impressões deve levar a conclusões objetivas; sua duração média é de um dia, mas pode estender-se a semanas ou meses; pode ser estática, tratando-se da permanência durante um dia inteiro em um certo local, bastante movimentado, como numa estação
7 Id., ibid.: 100-101.
8 Id., ibid.
de trem ou numa praça.7 Guy Debord, em A sociedade do espetáculo,8 aponta uma aversão ao trabalho, aos sistemas de circulação urbana ditados pela lógica do automóvel e das grandes distâncias, às modernas setorização e hierarquização das cidades, à transformação do cotidiano em produto e espetáculo, em que há distância cada vez maior entre as ações feitas pelo homem e o sentido dessas ações. Aponta a ruptura entre as coisas que um habitante de cidade faz e
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o sentido que essa ação carrega – tudo passa a ser mediado pela imagem. O que Debord vislumbra é a transformação do uso do tempo e do espaço na vida cotidiana. A idéia é despertar os desejos latentes das pessoas, que possam se sobrepor àqueles impostos pela cultura dominante. Assim, criar situações (situ = lugar + ação) em espaços públicos constituía-se em experimentação e materialização de novos comportamentos na vida, em modos de habitar a cidade, não tendo caráter de happenings nem performances. Seu interesse era na transformação da vida. Desse modo, a deriva dificilmente poderia ser incorporada ao sistema da arte, pois não deixava traços. Era ação fugaz, presente, sem preocupação em ser representada e conservada no tempo; atividade estética concorde com a lógica dadaísta da antiarte. Algumas materializações foram feitas, como mapas com memórias e amnésias urbanas, fragmentos de colagens e desenhos. Em 1957 Debord elaborou o Guia Psicogeográfico de Paris (um mapa que convida o turista a perder-se) e The Naked City: Illustration de l’hypothèse des plaques tournantes em psychogéographie (placas, flechas e território vazio – bairros flutuando dentro de um espaço líquido, ligados por flechas). Nesses mapas a cidade forma uma paisagem construída com lacunas, para que, mediante o vazio, infinitas cidades possam ser construídas. Também confeccionavam descrições em forma de guias turísticos e manuais de uso da cidade, que eram distribuídos publicamente. Muito semelhante aos panfletos dadaístas e às narrativas ficcionais, eram também inseridas em meios públicos de divulgação já existentes. Tendo sido, posteriormente, incorporados pelo sistema da arte, esses mapas têm a função radical de propor outra cidade, partindo da cidade como é e construindo a partir daí ficção totalmente real, com base na experiência. Também os situacionistas não operavam transformações físicas no espaço, como no procedimento dadaísta. A paisagem situacionista é mutável e depende completamente da experiência e do envolvimento de quem faz a deriva. Após início dos anos 60, passam a aprofundar seu projeto em questões políticas, sendo seus membros mais atuantes Raoul Vaneigem e Guy Debord. Este último, sempre presente, queria que a IS se libertasse das características de grupo vanguardista de arte para transformá-la em uma verdadeira organização política. “O tempo da arte já passou, tratase agora de realizar a arte (...) Nosso tempo já não necessita mais fazer relatos poéticos, mas executá-lo”.9 Propunham-se como tarefa modificar a realidade. A questão que suscita é, mais uma vez, como fizeram os dadás, sobre a relação arte e vida. Circunscrita em suas disciplinas específicas, poderá a arte incorporar essa relação com a vida? Paisagem 3 Comecei a questionar seriamente a noção de gestalt, a coisa em si, objetos específicos. Comecei a ver o mundo de um modo mais relacional. (Robert Smithson, 1968)
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9 Careri, op. cit.
Em 1967, Robert Smithson realizou o trabalho intitulado A tour of the Monuments of 10 Um passeio pelos monumentos de Passaic. Passaic é um subúrbio de Nova Jersey, EUA.
Passaic,10 que nos é apresentado por fotografias do local e narrativa textual em que descreve seu percurso pelo subúrbio. Assim, inicia o texto: no sábado, 30 de setembro de 1967, dirigi-me ao edifício das autoridades portuárias na Rua 4 com Avenida 8. Comprei um exemplar do New York Times e um de Earthworks, de Brian W. Aldiss. Depois fui ao guichê 21 e comprei um tíquete de ida para Passaic. Dirigi-me em seguida à plataforma 173 e embarquei no ônibus de número 30 da Companhia Inter-City. Sentei-me, abri o Times e dei uma olhada na seção de arte. (...) Detive-me na reprodução de uma pintura romântica, Allegorical Landscape: céu cinza e nuvens parecendo manchas sensíveis de antigas aquarelas. Uma pequena estátua com um braço erguido. Edifícios
11 Smithson, Robert. Robert Smithson: The collected writings. California: University of California Press, 1996: 68 (tradução minha).
“góticos” nessa alegoria tinham aparência desbotada.11 Segue assim a descrição dessa pintura de paisagem romântica, entremeando a narrativa com observações do que vê através da janela. Toma o exemplar de Earthworks para tomar conhecimento de que se trata. Parecia que o livro era sobre solos carentes, empobrecidos, e os ear-
12 Id., ibid.: 69.
thworks referiam-se à técnicas de manufatura de solos artificiais.12 Ao descer do ônibus inicia a descrição daquilo que vem a chamar de monumentos. Tratase de pontes, guindastes, máquinas paradas, tubos, tonéis flutuantes, caixas de areia, um estacionamento, canos que despejam no rio um líquido sujo. Ouvia o som de pessoas jogando futebol. Hoje a paisagem não é paisagem, mas um tipo de mundo de cartão-postal se autodestruindo por imortalidade falida e grandiosidade opressiva. Pareciam ruínas ao reverso. É o contrário das ruínas românticas, porque as construções não decaem, arruinadas, depois de algum tempo, mas já são ruínas antes de serem construídas. Isso reverte a noção de tempo. Os subúrbios existem mesmo sem passado e sem os grandes eventos da história. Não há passado, apenas o que passa para o futuro. Passaic parece cheia de buracos. Esses buracos são os monumentos, os vácuos, que de certo
13 Id., ibid.:71-72.
modo definem os traços de memória de um futuro abandonado.13 Os procedimentos artísticos adotados por Smithson nesse trabalho envolvem o percurso, o registro fotográfico e a narrativa, os quais revelam seu modo de olhar as coisas, o mundo. O percurso é um modo de experiência, e, ao fazê-lo a pé, o artista estabelece aproximação com o local, pois tem mais sensibilidade à luz, à temperatura do dia, aos sons, aos odores, às matérias que pisa, assim como o próprio corpo manifesta interesse,
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cansaço ou vontade de prosseguir ou não. O interessante é que esse percurso não é feito em parque, zona formal da cidade ou região em que a natureza prepondera, mas em um espaço aberto no subúrbio, às margens de uma rodovia em construção, repleto de restos e destruições, pouco convidativo para passeios. Assim, nos buracos citados, esse passeio de aproximação torna-se um jogo de relações entre inospitabilidade/repulsa e aproximação. O inóspito gerado pelos restos da infra-estrutura e pelo espaço fragmentado e desintegrado, e a aproximação pela experiência do próprio ato de percorrer. Talvez pudéssemos supor que essa seria, para os situacionistas, uma das zonas apagadas e em branco, os vácuos representados em seus mapas, pelo fato de esse subúrbio ser localidade em que não se travam relações ou promovem encontros. É área desolada, o oposto do que procuravam os situacionistas em suas derivas. Ao fotografar a ponte, Smithson comenta ter tido a impressão de estar fotografando uma fotografia e, ao andar sobre ela, a de estar andando sobre uma fotografia. Essa experiência revela outra dimensão: a da cartografia, pois é a sensação de distanciamento na experiência. Andar sobre a foto é como andar sobre um mapa, que é o elemento abstrato, de contenção. A sobreposição de experiência in situ e cartografia configura dois procedimentos artísticos de Smithson, que são desenvolvidos em seus trabalhos Site/Non-Site. Nesse trabalho, porém, a fotografia parece mais do que apenas registro ou mapeamento do local. Ao enquadrar a paisagem, constrói quadros em que a lembrança da pintura Allegorical Landscape reproduzido na revista e observado quando ainda estava no ônibus, parece bastante presente. Em The Pumping Derrick e em The Great Pipe Monument14 podese notar composição bastante semelhante: primeiro plano, água e reflexo das margens, paisagem embaçada ao fundo, torres de “castelos”, manchas de árvores. Seu olhar, porém não é ingênuo e traz antes especificidade advinda de seus conhecimentos – suas paisagens falam de desintegração, fragmentação e irreversibilidade. As imagens da revista que ele vira no percurso de ida estão presentes como referência e contraponto. A composição pictórica romântica é utilizada para produzir as fotos desse campo devastado. Também a idéia da irreversibilidade está presente no sentido de monumento que ele adotou. Monumentos agora são os territórios devastados, patrimônio de uma era industrial, em que grandes áreas caem em desuso, em que obras são iniciadas mas não finalizadas. Paisagem obsoleta e esvaziada de sentido gerada por grandes infra-estruturas que passam pelo território desprendidas de qualquer sentido de localidade, revela a ausência de passado e a sensação de futuro sem passado, como o próprio Smithson observa. Já o solo é a sedimentação de camadas ao longo de milênios. É em si a memória, o registro de distintas épocas sobrepostas. Assim, o solo que não tem mais recuperação perde sua potência e sua memória. A solução de recuperação artificial não lida com a memória, mas com a superfície. E é justamente essa imagem de ausência de memória, de passado, que existe nessa paisagem.
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14 Títulos dados às fotografias dos monumentos encontrados no local.
Por fim, o procedimento da narrativa, também usado pelos dadas e pelos situacionistas, nos insere no percurso. Ele não só descreve o que vê, como tece pensamentos que trazem referências das ciências, da arqueologia, da física e de um olhar estético. Ele nada introduz ou modifica no local, apenas olha; lança o olhar sobre o que está presente. Paisagem 4 A partir de 1964, Hélio Oiticica começa a freqüentar o Morro da Mangueira. Na favela há características espaciais e comportamentais muito específicas, como a porosidade dos espaços, em que as noções de público e privado não se manifestam com limites muito precisos, ocorrendo infiltração simultânea de um no outro. Sua estrutura é labiríntica, pois não se pode ter percepção do espaço como um todo, apenas fragmentos seqüenciais. Os materiais das casas são precários, e a construção se dá de modo contínuo e sem fim – por toda a vida. Não ocorre a seqüência formal que incluiria desenho, planejamento, obra e finalização. A topografia e a geografia estão parcialmente visíveis e presentes, o que significa estarem as construções justapostas aos vestígios da natureza. Em A estética da ginga, Jacques observa que: A experiência de Oiticica nesta favela desencadeou muitas descobertas simultâneas: a descoberta do samba, que é também uma descoberta do ritmo, de uma nova temporalidade e, sobretudo, uma descoberta do corpo; a descoberta de uma outra forma de sociedade, não burguesa, muito mais livre, mas ao mesmo tempo marginal, e também muito menos individualista e mais anônima, que gera a descoberta da idéia de comunidade; e a descoberta de outra arquitetura, uma forma diferente de construir, com materiais precários, instáveis e efêmeros. Essas novas descobertas formam a base da primeira obra de Oiticica totalmente 15 Jacques, Paola Berenstein. A estética da ginga. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2001:28-29.
influenciada pela favela: os Parangolés.15 Oiticica apropria-se da experiência cotidiana na favela para propor o que chamará de “Bases fundamentais para uma definição do Parangolé”, texto escrito em 1964, evidenciando seu caráter antiarte. Posteriormente passará a chamar Parangolé a todos os princípos que irá formular. Por mais que tenha sido exaustivamente estudado, uso aqui o exemplo do Parangolé, para falar sobretudo de apropriação e proposição. Entender o que ele chama de apropriação é fundamental, pois é esse procedimento a base para a realização de obras a partir de espaços e coisas encontradas. Ao referir-se à apropriação afirma não se tratar da transposição de algo achado para outro plano. Não é a atitude ready-made de deslocamento para um espaço reconhecido como do universo da arte. Em um dado objeto, busca reconhecer, de forma objetiva, seus elementos constitutivos e estruturantes, para a posterior construção de uma proposição. No caso dos espaços urbanos marginais ou da favela da Mangueira, esses elementos constitutivos seriam: a
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porosidade dos espaços, as relações de proximidade entre as pessoas, a continuidade espacial, a materialidade a partir de sua funcionalidade, a relação construção/tempo. Assim, a pesquisa dos elementos estruturantes é método fundamental de sua pesquisa ao se apropriar e propor. Hoje, 40 anos depois, Oiticica tornou-se referência e citação em diversas produções artísticas, porém seu modo de entender a apropriação raramente é compreendido. O discurso da apropriação tornou-se fácil na contemporaneidade, pois permanece a atitude readymade de deslocamento de objetos de um ambiente específico para o do circuito da arte, não passando por uma pesquisa dos elementos estruturantes, como o próprio Oiticica propunha. Seu método de apropriação levou a uma atitude propositiva, o que implica atuar na transformação e invenção de novos modos de produção e de vida. Assim, sua definição de obra envolve totalidade advinda da relação entre partes. A estrutura-cor, termo criado por ele, teve nos bólides uma radicalização: um jarro de vidro e o pigmento que o preenche não interessam separadamente, mas sim a relação de um com o outro, que o transforma em um todo. Isso constitui a “obra”, que é algo orgânico. Dessa totalidade dos elementos constituintes parte para a “totalidade ambiental”, o que, além de envolver a relação entre partes, implica a participação do espectador ou “participador”. Essa participação gera a “obra-ação”. A própria ação é a obra. Isso revela novos espaço e tempo na obra, que são sua vivência e não um objeto situado em relação ao tempo-espaço. A totalidade ambiental, portanto, também recorre à idéia de elementos constitutivos e estruturantes. Os elementos isolados nada constituem. Essa é a lógica presente em toda a sua obra. Quase ecológica, ou seja, uma estrutura com dinâmica orgânica. Não à toa ele usou o termo ambiental em todas as suas elaborações teóricas. É evidente que isso impõe questões para o público que, numa circunstância de roda de samba na favela, incorpora e produz a obra de modo distinto daquele que o faz quando está no museu ou na galeria. Nestes últimos o público é distanciado. Pergunto, então, se a obra participativa instalada na galeria ou no museu gera por si um congelamento de todo o seu conteúdo. Robert Smithson ao realizar seus Site-Non-Site declarou: Ainda, se arte é arte, deve ter limites. Como se pode conter esse site oceânico? Desenvolvi o Non-Site, que, fisicamente, contém a quebra do site. O container é um fragmento em si, poderia ser chamado de mapa tridimensional. Sem apelo para gestalts ou antiforma, ele existe como fragmento de fragmentação maior. Trata-se de perspectiva tridimensional que se partiu de uma totalidade, enquanto contém o resto de seu próprio “conter”.16
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16 Smithson, op. cit.
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Entende, assim, que há uma passagem de estados: do oceânico para o de contenção. O espaço da galeria condiciona outros modos de construção do espaço e de estabelecimento de relação com o público. É visível que Oiticica propunha a transformação do comportamento do espectador. Como observou Mário Pedrosa, desejava o “exercício experimental da liberdade”. Ao falar do supra-sensorial, em carta a Guy Brett, em 1968, Oiticica manifesta o sentido profundo de totalidade em sua obra. O sentido do suprasensorial chegou a um ponto de vista claro: para mim ele seria um “exercício para a realidade total” – tenho a sensação de que a vida mesma será a continuação de toda experiência estética, como totalidade, e que nada deveria ser separado intelectualmente dela. Um regresso ao mito. Cresce a necessidade de uma comunidade nova, baseada em afinidades criativas. Não uma comunidade para fazer obras de arte, mas algo como uma experiência na vida real – qualquer tipo de experiência que possa resultar em um novo sentido da vida e da sociedade – algo como a construção de um entorno para a vida mesma (...) Não quero desligar mais minha experiência da vida real (talvez não fosse esse o caminho, mas agora ocorre como se a coerência fosse uma urgência para mim – não uma urgência formal, mas sim uma interiorizada, a busca de uma integridade completa). Toda minha experiência com a Mangueira me ensinou que as diferenças sociais e intelectuais são a causa da infelicidade: a criatividade é inerente a qualquer um; o artista pode incendiá-la, pode levar a libertar dos condicionamentos. Ele não é algo inatingível.17
17 Hélio Oiticica. Barcelona: Fundació Antoni Tápies, 1992.
Diante de sua iluminação a respeito da arte como experiência na vida real, de ser “algo como a construção de um entorno para a vida mesma”, resta a pergunta do que teria feito esse artista caso não tivesse morrido? se teria afastado dos sistemas de cooptação da arte? teria construído espaços para se viver, não transferíveis para galerias ou museus? ou como teria feito as traduções para esses espaços da contenção? Ou, ainda, por outro lado, caso não fizesse tais traduções para galerias e museus, como o sistema da arte – críticos e curadores – teria lidado com sua “construção de um entorno para a vida mesma”? Conclusão As ações desses artistas ou grupos de artistas atravessam ou rompem com os determinismos e funções dos traçados urbanos, e reconfiguram as cidades através de percursos e de descobertas de lugares banais e comuns como paisagem: o terreno baldio para os dadas; a deriva situacionista que reconstrói uma cidade pelos percursos feitos a pé e não pelas funções dos espaços; o subúrbio arruinado e ausente de memória que diz da construção
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de uma possível identidade atual; e o morro da favela, o espaço poroso, que aproxima ou dilui a dicotomia entre público e privado. Todos eles têm como campo de produção os espaços abertos da cidade, e é comum a todos fazer-se a pergunta sobre arte e sobre vida. Será então um ponto coincidente? Atuar nos espaços públicos lança o artista num campo de imprevisibilidades que o coloca diante da necessidade de estabelecer relações e negociações com pessoas, espaços e ambientes, sobre os quais não se tem pleno domínio. Não há a proteção dos espaços privados e fechados, seja para a produção, seja para a exposição da obra. Talvez surjam daí tantas questões para se pensar arte, vida, política e sociedade. A noção de obra é revista, assim como a de público da arte, pois passam a ser coisas, relações e pessoas comuns, não exercitadas na esfera da arte. A questão arte-vida que perpassa os quatro momentos apresentados parece ser um problema teórico, que depende de onde se fala. Talvez seja marco inicial dessa questão a proposta dadaísta de incorporação de um espaço banal e a intenção de provocar nos habitantes de uma cidade o desejo de possuí-la. Tanto os dadas, quanto Debord e Oiticica pretendiam que os espaços e as ações fossem incorporadas na vida cotidiana das pessoas. Se para os dadas e Oiticica suas ações são antiarte, para Debord não são arte. Isso significa que o parâmetro para os dois primeiros realizarem suas obras surge da arte, ao passo que para Debord isso não importa – não há arte em suas proposições, afirma; há política. Debord nega a arte e com muita freqüência utiliza a palavra aventura, para se referir ao modo como as pessoas deveriam encarar a cidade. Sem nenhum drama, Smithson tem clareza da distinção entre as experiências de se produzir in situ e para o espaço específico da galeria. Nem mesmo levanta a questão arte-vida, nem quer situar seu trabalho como antiarte. Considera, sim, a distinção entre agir no espaço externo e no espaço interno. Para finalizar, pensando em paisagens construídas pela proximidade e pelo envolvimento com o espaço, poderia citar uma das Merz, de Schwitters,18 feita durante o período em que permaneceu na prisão. Sob a mesa da cela, com pedaços de coisas enxertadas, gerou um ambiente para ele mesmo habitar. Por um lado, a reciprocidade entre vida e arte fica bastante evidente em seus atos de transformação do cotidiano. O que interessa nessa dupla aproximação é que o objeto construído não quer ser uma representação do passado ou do presente, ou da destruição, ou da melancolia. Talvez nem quisesse ser apresentado a um público específico das artes, mas apenas vivido pelo artista. Talvez essas questões que envolvam a não-representação e a nãoexistência de um público nos permitam, portanto, aproximar arte e vida. Por outro lado, será que essa dupla associação arte-vida não deveria ser jamais levantada, se partirmos do princípio de que na arte é necessário o distanciamento – portanto, a representação?
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18 Kurt Schwitters (1887-1948) artista dadaísta. A Merzbau tem sua origem nas colagens dadaístas; feitas no espaço, acumulam sentidos diversos enquanto são construídas, pois são, ao mesmo tempo, utilitárias, escultóricas e arquitetônicas.
Referências bibliográficas BÉGUIN, François. Le Paysage. (col Dominos). Paris: Flammarion, 1995. CARERI, Francesco. Walkscapes: walking as an aesthetic practice. Barcelona: GG, 2002. Hélio Oiticica. Barcelona: Fundació Antoni Tápies, 1992. JACQUES, Paola Berenstein. A Estética da Ginga. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2001. KASTNER, Jeffrey, Land and Environmental Art. Londres: Phaidon, 2000. PEREC, George. L’Infra-ordinaire. Éditions du Seuil, 1989. PEREC, George. Espèce d’Espace. Éditions Galilée, 1974. (Coll. L’Espace Critique) SADLER, Simon. The situationist city. Cambridge: the MIT Press, 1998. Situacionista: teoria e prática da revolução. São Paulo: Conrad Ed. , 2002. (coleção Baderna) SMITHSON, Robert. Robert Smithson: The collected writings. California: University of California Press, 1996.
Louise Ganz é mestranda em Artes Visuais, EBA UFMG (2005), graduada em Arquitetura e Urbanismo UFMG e Artes Plásticas – Escola Guignard, BH. Projetos coletivos de intervenção urbana em publicações de âmbito nacional e internacional. Em 2003 1º Prêmio no Concurso Internacional de Arquitetura E2: Exploring the Urban Condition, França. Em 2004 9a Bienal Internacional de Arquitetura de Veneza. Em 2005 mapeamento Rumos Itaú Cultural. Em 2006 selecionada pelo Programa Petrobras Cultural 2005/2006 de curtas para mídias digitais; DOCTVIII “M2- construindo espaços públicos temporários”. Em 2007 Projeto Trajetórias 2007/ Recife, Fundaj; edital do Palácio das Artes/BH -exposição Percursos; e edital Conexão Artes Visuais/Funarte/Minc/Petrobras. Participou de diversos festivais de cinema e vídeo entre 2005 e 2007, como 15o e 16o Videobrasil. / louiseganz@gmail.com
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Michael Asher. Installation Münster (Caravan), 1977. Vista da instalação, Skuptur Projekte, Münster, estacionado na posição referente à quarta semana, entre 25 de julho e 1o de agosto, Alter Steinweg, em frente ao KiffePavilion, parquímetro n. 274 ou 275. Foto: Rudolf Wakonnig. À direita: Michael Asher. Installation Münster (Caravan), 1987. Vista da instalação, Skuptur Projekte, Münster, estacionado na posição referente à quarta semana, entre 29 de junho e 6 de julho, Alter Steinweg, em frente ao Kiffe-Pavilion, parquímetro n. 2.200. Foto: Christiane Forster.
Em torno da instituição e da crítica de Andrea Fraser Gisele Ribeiro
O artigo que apresentamos, por motivo da publicação de sua tradução nas páginas a seguir, é texto crucial, tendo em vista a necessária retomada da atividade crítica realizada por artistas em momento no qual a relação entre arte e política ou arte e “esfera pública” tem ocupado grande parte das discussões no campo. A retomada e revisões de determinadas produções constituem procedimento fundamental no campo da arte, já que são grandes as pressões que levam à redução e conseqüente rápida superação de atividades e teorias. Com o modernismo, experimentamos uma aceleração no processo de assimilação de tudo que surge no terreno artístico, a ponto de tornar-se uma das características básicas da arte moderna a “superação” ou o “novo” como valor. Que tal aceleração tenha como fundo o avanço do capitalismo e sua incessante necessidade de mercadorias, muitos já apontaram. Por conseguinte, ainda que distanciados da lógica moderna do “choque do novo” e operando em terreno de simultaneidades, de coexistência de diferentes produções prático-teóricas, persiste no campo, como um dos sintomas mais comuns da redução de uma prática a um mero produto do mercado de arte, a categorização de atividades em gêneros e subgêneros. Assim, o que seria uma ação involucrada na crítica à instituição “arte” acaba por tornar-se um gênero, como tantos outros, facilmente superável (tanto mais por incomodar a instituição). Desse modo, a crítica institucional, ou IC (de Institutional Critique), teve destino igual ao de outras práticas: engavetamento. Reabrir a discussão proposta por essas práticas, tal como no caso da arte conceitual, é resistir ao arquivamento e a sua fácil assimilação como mercadoria, não mais como problema específico de objetos/ produtos vendáveis (acusação constante contra as práticas conceituais), mas como produto simbólico. Essa visão motiva tanto o artigo apresentado, publicado originalmente na revista Artforum em setembro de 2005, como sua tradução agora, em 2008, nesta edição de Concinnitas. O texto “Da crítica às instituições a uma instituição da crítica”, da artista Andrea Fraser, cuja prática é associada com a crítica à instituição da arte, pode ser entendido, portanto, como uma espécie de réplica às alegações correntes de que a crítica institucional se teria “institucionalizado”. Tratando primeiro da redução do termo, Fraser retoma o momento de sua “nomeação”, vinculando sua própria assinatura à primeira aparição do termo em publicação. Embora essa sua inscrição na história da crítica institucional seja um dos pontos fracos do texto, por deixar transparecer apego à lógica historiográfica de “quem foi o primeiro a...”, a ambigüidade representada por essa inserção é impor-
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tante para os argumentos que se seguem. Entre lisonjeada e envergonhada, Fraser se responsabiliza por fazer parte do processo de redução e simplificação daquilo que vinha sendo uma atividade complexa. Essa autocrítica (por ambígua que seja) recoloca a prática artística como também responsável, e nunca passiva, diante dos movimentos da instituição. Isto é, os artistas são – também – a instituição, queiramos ou não. Tanto em suas ações quanto em seus textos, Andrea Fraser demonstra grande atenção aos distintos aspectos do sistema da arte, incluindo, portanto, os muitos papéis que aí atuam. Seja nas famosas performances, Museum Highlighsts: A Gallery Talk (1989) e Untitled (2003), ou May I Help You? (1991) e Services (1994-2001), seja em artigos como How to Provide an Artistic Service: An Introduction (1994) e In and Out of Place, sobre o trabalho de Louise Lawler (1985), a artista investiga as funções e os posicionamentos dos segmentos envolvidos na constituição dessa instituição, mediante diversos tipos de ação e pontos de vista, colocando os “serviços”, prestados atualmente também pelos artistas, sob o mesmo foco crítico que um dia mereceram os “objetos” de arte. Respondendo então às acusações de “institucionalização” e obsolescência das práticas críticas em tempos nos quais museus e mercados estão por toda parte e engolem toda experiência, Fraser retoma conceitos básicos por trás da atividade de artistas que trabalhavam nesse enquadramento, como Michael Asher, Marcel Broodthaeres, Daniel Buren e Hans Haacke, e os confronta com a idéia de que “a crítica institucional opõe a arte à instituição ou supõe que práticas artísticas radicais podem existir, ou algum dia existiram, fora da instituição da arte antes de serem ‘institucionalizadas’ pelos museus”. Os escritos e trabalhos desses artistas, analisados cuidadosamente pela autora, desmentem tal presunção e revelam a passagem de uma noção de “instituição” como espaço físico para outra muito mais fluida, abarcando todo o “campo da arte como universo social”.1 A instituição não pode, portanto, ser pensada como algo externo ao trabalho ou ao artista – que um dia os assimilaria; a instituição é a “condição irredutível” da existência do trabalho “como arte” e está internalizada tanto nas mentes dos artistas, curadores, críticos, galeristas, historiadores, colecionadores quanto na dos visitantes da arte, seja em museus, na internet ou na rua. E, respondendo finalmente à pergunta-chave “a crítica institucional foi institucionalizada?”, a autora conclui: “a crítica institucional sempre foi institucionalizada. Só poderia ter surgido de dentro e, como toda arte, só pode funcionar dentro da instituição arte”. A negação dessa participação implica acreditar na separação entre esfera artística e demais esferas públicas, divisão essa tão própria dos que insistem na mitificação da arte e/ou buscam mascarar seus interesses econômicos e sociais. Tais conclusões são grandes contribuições do texto para o debate sobre a premente possibilidade de atuarmos criticamente dentro do campo artístico. Com relação à percepção do que seriam as metas (ou efeitos pretendidos) dos movimentos de vanguarda, contudo, levantaríamos algumas dúvidas. Baseando-se no conhecido, embora recém-editado em português, livro de Peter Bürger Teoria da vanguarda, Fraser
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1 Essa e outras afirmações são exemplos da afinidade entre a autora e as teorias de Pierre Bourdieu, que assina o prefácio de seu livro: Andrea Fraser, Alexander Alberro (ed.), Museum Highlights: The Writings of Andrea Fraser (Writing Art), Cambridge: The MIT Press, 2005.
tenta diferenciar as atividades da crítica institucional e a autocrítica levada a cabo pela “vanguarda”, atribuindo-lhe, genericamente, intenções comuns como a superação da arte e sua completa integração à “vida prática”, ambas, segundo Bürger e Fraser, fracassadas. A projeção de expectativas radicalmente libertadoras por parte de Bürger com relação aos objetivos e estratégias das vanguardas não deixa de reproduzir igual decepção frente ao pretenso fracasso da crítica institucional denunciada por Fraser no início de seu artigo. A generalização de distintas práticas, assim como dos diversos atos realizados pelas vanguardas, serve a tal frustração. Em todo caso, se o reconhecimento do fracasso frente à impossível fuga das determinações institucionais, e suas conseqüências, não tem origem na crítica institucional, não importa; o que, sim, interessa é que esta o reafirma e, assim sendo, entende que a “institucionalização” da crítica não inviabiliza a crítica à instituição.
Gisele Ribeiro é artista, professora da UFES e doutoranda em Nuevas prácticas culturales y artísticas, na Universidad de Castilla-La Mancha, Cuenca, Espanha. / gisele.b.ribeiro@uol.com.br
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Daniel Buren. Photo-Souvenir: Peinture-Sculpture, 1971. Vista da instalação, Museu Solomon R. Guggenheim, Nova York.
Da crítica às instituições1 a uma instituição da crítica Andrea Fraser
Quase 40 anos após sua primeira aparição, as práticas atualmente asTradução Gisele Ribeiro. 1 Se, no original, “the critique of institutions” nos remete à “the critique of pure reason” e demais “críticas” kantianas, poderíamos levar em consideração a tradução dos títulos de Kant para o português, como “Crítica da Razão Pura”, e utilizar “crítica das instituições”. No entanto, optamos pela expressão “crítica às instituições” ao longo de todo o texto, por nos parecer mais esclarecedora. (NT) 2 O texto se refere à entrevista publicada na Artforum de maio de 2005. Daniel Buren, Olafur Eliasson, In Conversation: Daniel Buren & Olafur Eliasson, Artforum, vol. XLIII, n. 9, maio 2005, p. 208-214. (NT) 3 Expressão de nojo em inglês. (NT)
sociadas à “crítica institucional” parecem estar, para muitos, bem... institucionalizadas. Só na última primavera, Daniel Buren retornou com uma importante instalação ao Museu Guggenheim (responsável pelas famosas censuras a seu trabalho e ao de Hans Haacke em 1971); Buren e Olafur Eliasson discutiram o problema que permeia “a instituição” nas páginas desta revista;2 e o Museu de Arte do Condado de Los Angeles – LACMA abrigou a conferência Institutional Critique and After. Outros simpósios planejados para o centro The Getty e a conferência anual do College Art Association, junto com um número especial de Texte zur Kunst, podem muito bem demonstrar a conseqüente redução da “institutional critique” a seu acrônimo: IC. Ick,3 ou melhor, eca! No contexto de exposições museológicas e simpósios de história da arte como esses, nota-se cada vez mais que a crítica institucional vem sendo tratada com o inquestionável respeito freqüentemente atribuído a fenômenos artísticos que atingiram certo status histórico. Esse reconhecimento, entretanto, transforma-se rapidamente em ocasião para dispensar as reivindicações críticas a ela associadas, à medida que o ressentimento contra suas inferidas exclusividade e arrogância rapidamente vem à tona. Como podem artistas que se tornaram eles próprios instituições da história da arte reivindicar uma crítica à instituição da arte? Michael Kimmelman ofereceu um breve exemplo de seu ceticismo em resenha crítica sobre a mostra de Buren no Guggenheim, publicada no New York Times. Enquanto a “crítica à instituição do museu” e “ao status de mercadoria da arte” eram “idéias contra o establishment quando surgiram, mais ou menos 40 anos atrás, como no caso do sr. Buren”, argumenta Kimmelman, Buren é agora um “artista oficial da França, papel que não parece perturbar alguns de seus (um dia) radicais fãs. Nem, aparentemente, o fato de que sua marca ou tipo de análise institucional (...) invariavelmente dependa da generosidade de instituições como o Guggenheim”. Kimmelman segue com a comparação desfavorável a Buren com relação a Christo e Jeanne-Claude, que “operam, na maior parte das vezes, fora das instituições tradicionais, com independência fiscal, em esfera pública
4 Michael Kimmelman, Tall French Visitor Takes up Residence in the Guggenheim, New York Times, 25 de março de 2005.
que ultrapassa o controle legislativo dos experts da arte”.4 Mais dúvidas sobre a eficácia histórica e atual da crítica institucional surgem junto a lamentos sobre como tudo vai mal no mundo da arte, quando o MOMA abre suas novas galerias de exposição temporária com uma coleção empresarial, e fundos de proteção em arte vendem quotas de uma única pintura. Nessas discussões, nota-se certa nostalgia da crítica institucional como artefato (agora) anacrônico de uma era anterior ao megamuseu
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corporativo e ao mercado global da arte em funcionamento 24 horas, sete dias por semana, tempo em que artistas podiam ainda, possivelmente, tomar uma posição crítica contra ou fora da instituição. Hoje, segundo tal argumento, não há mais um fora. Como, então, podemos imaginar, e muito menos realizar, uma crítica às instituições artísticas quando museus e mercado se tornaram um aparato de reificação cultural que tudo engloba? Agora, quando mais necessitamos, a crítica institucional está morta, vítima de seu sucesso ou fracasso, engolida pela instituição contra a qual se posicionava. As avaliações sobre a institucionalização da crítica institucional e as acusações de obsolescência na era dos megamuseus e mercados globais, porém, se fundam em uma concepção básica equivocada do que é a crítica institucional, ao menos à luz das práticas que levaram a sua definição. É necessário um reexame de sua história e suas metas, e uma reiteração das questões mais urgentes em jogo neste momento. Recentemente descobri que nenhuma da meia dúzia de pessoas que freqüentemente são consideradas “fundadoras” da “crítica institucional” reivindica o uso do termo. Utilizei, eu mesma, a expressão, pela primeira vez em veículo impresso, em um ensaio de 1985, In and Out of Place, sobre o trabalho de Louise Lawler, quando apresentava a lista (agora já familiar) de artistas como Michael Asher, Marcel Broodthaers, Daniel Buren e Hans Haacke, comentando que, “embora muito diferentes, todos esses artistas estavam engajados 5 Andrea Fraser, In and Out of Place, Art in America, junho de 1985, p. 124.
na crítica institucional”.5 Provavelmente, encontrei pela primeira vez essa lista de nomes atrelados ao termo “instituição” no ensaio de Benjamin H. D. Buchloh Allegorical Procedures,6 em que descreve “as análises, realizadas por Buren e Asher, da posição e função históricas das construções estéticas no âmbito institucional, ou as operações, de Haacke e Broodthaers, que revelavam as condições materiais daquelas instituições como ideológicas”.7 O ensaio segue fazendo referência à “linguagem institucionalizada”, ao “enquadramento institucional”, a “tópicos relativos à exposição institucional”, e define como uma das “características
6 Texto publicado em português in Benjamin Buchloh, Procedimentos alegóricos: apropriação e montagem na arte contemporânea, Arte&Ensaios, n. 7, novembro de 2000, p. 178-197. (NT) 7 Benjamin Buchloh, Allegorical Procedures: Appropriations and Montages in Contemporary Art, Artforum, setembro de 1982, p. 48.
essenciais do Modernismo” o “impulso à autocrítica, operada de dentro, a fim de questionar sua institucionalização” – mas a expressão “crítica institucional” não aparece nunca nesse artigo. Em 1985, já havia lido também o livro Theory of the Avant-Garde,8 de Peter Bürger, que fora publicado em alemão em 1974 e finalmente em inglês em 1984. Uma das teses cen-
8 Em português: Peter Bürger, Teoria da Vanguarda, São Paulo: Cosac&Naify, 2008. (NT)
trais de Bürger é que “com os movimentos histórico-vanguardistas, o subsistema social que é a arte entra no estágio de autocrítica. O Dadaísmo (...) não critica mais as escolas que o precederam, mas sim a arte como instituição e o curso de seu desenvolvimento na sociedade burguesa.”9
9 Peter Bürger, Theory of the Avant-Garde, Minneapolis: University of Minnesota Press, 1984, p. 22.
Tendo estudado com Buchloh e também com Craig Owens, responsável pela edição de meu ensaio sobre Lawler, acho muito provável que um deles tenha deixado escapar a
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expressão “crítica institucional”. Também é possível que em meados dos anos 80 seus alunos da School of Visual Arts de Nova York e do Programa de Estudos Independentes do Whitney (onde Haacke e Martha Rosler também lecionaram) – incluindo Gregg Bordowitz, Joshua Decter, Mark Dion e eu – tivessem começado a usá-la como mera abreviação de “crítica às instituições” em nossos debates depois das aulas. Não encontrando nenhuma utilização da expressão em publicações anteriores, é curioso considerar que o cânone que pensávamos estar recebendo poderia estar sendo estabelecido naquele momento. Pode ser, aliás, que nossa recepção de trabalhos de 10 ou 15 anos atrás, de textos reeditados e de traduções tardias (de autores como Douglas Crimp, Asher, Buren, Haacke, Rosler, Buchloh e Bürger), e nossa percepção daqueles trabalhos e textos como canônicos, constituíssem um momento central do chamado processo de institucionalização da crítica institucional. Vejo-me, portanto, envolta nas contradições e cumplicidades, ambições e ambivalência, das quais é freqüentemente acusada a crítica institucional, presa entre a possibilidade de auto-indulgência, como a primeira pessoa a mencionar a expressão em publicação impressa, e a criticamente vergonhosa perspectiva de ter representado um papel na redução de certas práticas radicais a uma breve frase, embalada para cooptação. Se, de fato, a expressão “crítica institucional” surgiu como abreviação de “crítica às instituições”, hoje a frase de efeito foi reduzida ainda mais a uma interpretação restrita de suas partes constitutivas: “instituição” e “crítica”. A prática da crítica institucional é normalmente definida por seu objeto aparente, “a instituição”, que é entendida, por sua vez, primordialmente em referência a lugares estabelecidos, organizados para a apresentação da arte. Como descreve o folder do simpósio do LACMA, a crítica institucional é a arte que expõe “as estruturas e lógicas dos museus e galerias de arte”. “Crítica” aparece de modo ainda mais vago do que “instituição”, vacilando entre um bastante tímido “expor”, “refletir” ou “revelar”, por um lado, e, por outro, visões de uma revolucionária derrocada da ordem museológica vigente, com a crítica institucional funcionando como guerrilheiro engajado em atos de subversão e sabotagem, rompendo paredes, chãos e portas, provocando censura, colocando abaixo poderes estabelecidos. Em qualquer dos casos, “arte” e “artista” geralmente figuram como contrários, antagonicamente, a uma “instituição” que incorpora, coopta, transforma em mercadoria, senão usurpa, práticas um dia radicais – e não institucionalizadas. Essas representações podem, é verdade, ser encontradas em textos de críticos associados à crítica institucional. Entretanto, a idéia de que a crítica institucional opõe arte e instituição ou supõe que práticas artísticas radicais podem existir, ou algum dia existiram, fora da instituição da arte antes de serem “institucionalizadas” pelos museus, é desmentida ponto a ponto pelos escritos e trabalhos de Asher, Broodthaers, Buren e Haacke. Desde o anúncio de Broodthaers de sua primeira exposição em galeria em 1964 – em que ele começa confidenciando que “a idéia de inventar algo insincero finalmente passou por minha 10 Broodthaers apud Benjamin Buchloh, Open Letters, Industrial Poems, October, n. 42, outono de 1987, p. 71.
[sua] cabeça” para então nos informar que seu marchand “levaria 30%”10 –, a crítica do aparato que distribui, apresenta e coleciona arte tem sido inseparável da crítica à própria
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prática artística. Como coloca Buren em The Function of the Museum,11 de 1970, se “o Museu deixa sua ‘marca’, impõe sua ‘moldura’ (...) em tudo que exibe, de modo profundo e permanente”, o faz tão facilmente porque “tudo que o museu mostra só é considerado e produzido tendo em vista sua colocação aí”.12 Em The Function of the Studio, escrito no ano seguinte, Buren não poderia ser mais claro ao argumentar que a “análise do sistema da arte deve inevitavelmente ser levada adiante” através da investigação de ambos o ateliê e o museu “como costume, como o costume ossificante da arte”.13
11 Em português: Daniel Buren, Função do Museu, in Paulo Sergio Duarte (ed.), Daniel Buren: textos e entrevistas escolhidos (19672000), Rio de Janeiro: Centro de Arte Hélio Oiticica, 2001. (NT) 12 Daniel Buren, The Function of the Museum, in A. A. Bronson, Peggy Gale (eds.), Museums by Artists, Toronto: Art Metropole, 1983, p. 58. 13 Daniel Buren, The Function of the Studio, in Bronson e Gale, op. cit., p. 61.
De fato, a crítica mais consistente em evidência no trabalho pós-ateliê de Buren e Asher é direcionada à própria prática artística (um ponto que pode muito bem não ter passado despercebido aos demais artistas da 6a Exposição Internacional do Guggenheim, já que foram eles, e não os administradores ou membros do conselho do museu, que pediram a remoção do trabalho de Buren em 1971). Como deixam claro seus escritos, a institucionalização da arte em museus, ou sua mercantilização em galerias, não pode ser concebida como cooptação ou usurpação da arte de ateliê, cuja forma portátil a predestina a uma vida de circulação e troca, incorporação mercadológica e museológica. Suas intervenções em site-specific, rigorosamente específicas para o lugar, foram desenvolvidas não só como um modo de refletir sobre essa e outras condições institucionais, mas também de resistir às várias formas de apropriação sobre as quais refletem. Por serem transitórios, esses trabalhos são ainda conscientes da especificidade histórica de qualquer intervenção crítica, cuja eficácia estará sempre limitada a tempo e lugar particulares. Broodthaers, entretanto, era o mestre supremo em representar a obsolescência crítica em seus gestos de cumplicidade melancólica. Apenas três anos depois de fundar o Musée d’Art Moderne, Département des Aigles em seu ateliê de Bruxelas, em 1968, ele põe à venda sua “ficção museológica”, “por motivo de falência”, em um prospecto que servia como papel de embrulho para o catálogo da Feira de Arte de Colônia – cuja edição limitada era vendida pela Galeria Michael Werner. Finalmente, a declaração mais explícita a respeito do papel elementar que os artistas mantêm na instituição da arte pode ter sido dada por Haacke. “Os artistas”, escreveu em 1974, “assim como seus apoiadores e inimigos, independente de qualquer tonalidade ideológica, são parceiros involuntários. (...) Participam conjuntamente da manutenção e/ou desenvolvimento da maquiagem ideológica de sua própria sociedade. Trabalham nesse enquadramento, marcam-no e são enquadrados.”14
14 Hans Haacke, All the Art That’s Fit to Show, in Bronson e Gale, op. cit., p. 152.
De 1969 em diante, começa a emergir uma concepção de “instituição da arte” que não inclui só museu ou mesmo só os sites15 de produção, distribuição e recepção da arte, mas todo o campo da arte como universo social. Nos trabalhos de artistas associados à crítica institucional, a expressão começa a abarcar todos os sites nos quais a arte é apresentada – de museus e galerias a gabinetes corporativos e casas de colecionadores, e até mesmo espaços públicos quando neles há arte instalada. Também inclui os sites de produção da arte, ateliês, assim como escritórios, e os sites de produção do discurso artístico: revistas de arte, catálogos, colunas direcionadas à arte na imprensa popular, simpósios, conferências e aulas. E ainda os sites de produção de produtores da arte e
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15 O termo site será mantido em inglês, devido a sua relação com as discussões em torno das práticas site-specific, tão importantes para Andrea Fraser. (NT)
do discurso artístico: programas de ateliês e residências, programas de história da arte e, agora, estudos curatoriais. E finalmente, como Rosler coloca no título de seu ensaio seminal de 1979, também inclui os próprios “espectadores, compradores, comerciantes e 16 Martha Rosler, Lookers, Buyers, Dealers, and Makers: Thoughts on Audience in Brian Wallis, Marcia Tucker (eds.), Art After Modernism: Rethinking Representation, Nova York: The New Museum of Contemporary Art, 1984. (NT)
realizadores”, todos eles.16 Essa concepção de “instituição” pode ser vista de modo mais claro no trabalho de Haacke, que chegou à crítica institucional por uma guinada, de sistemas ambientais e físicos nos anos 60 a sistemas sociais, a começar por suas enquetes com visitantes das galerias, entre 1969 e 1973. Mais do que uma superabrangente lista de substantivos, espaços, lugares, pessoas e coisas, a “instituição” na qual se engaja Haacke pode ser mais bem definida como rede de relações sociais e econômicas entre esses elementos. Como em seu Condensation Cube, 1963-65, e seu MOMA-Poll, 1970, a galeria e o museu figuram menos como objetos de crítica, eles próprios, do que como recipientes nos quais as forças e relações, altamente abstratas e invisíveis, que atravessam um espaço particular podem tornar-se
17 Nesse ponto, há um paralelo entre o trabalho de Haacke e a teoria da arte como campo social desenvolvida por Pierre Bourdieu.
visíveis.17 Na passagem de um entendimento da “instituição” basicamente como lugares, organizações e indivíduos específicos a sua concepção como campo social, a questão referente ao que está dentro e fora torna-se muito mais complexa. Engajar-se nessas fronteiras tem sido uma preocupação coerente de artistas associados com a crítica institucional. Desde
18 Em francês no original. (NT)
1969 com um travail in situ18 na Wide White Space, Antuérpia, Buren realizou vários trabalhos que ligavam interior e exterior, sites artísticos e não artísticos, revelando como a percepção do mesmo material, do mesmo signo, pode variar radicalmente dependendo de onde seja visto. Entretanto, pode ter sido Asher quem realizou com mais precisão a precoce compreensão de Buren de que mesmo um conceito, a partir do momento em que é “enunciado e, sobretudo, quando ‘exposto como arte’ (...) torna-se um objeto-ideal, que nos leva novamente
19 Daniel Buren, Beware!, Studio International, março de 1970, p. 101. Em português, Daniel Buren, Advertência, in Glória Ferreira, Cecilia Cotrim (orgs.), Escritos de artistas, anos 60/70, Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2006, p. 253. (NT) 20 Além da edição de 1977, Asher voltou a apresentar o trabalho nas de 1987, 1997 e 2007, participando assim de todas as versões da mostra com o mesmo trabalho. (NT)
à arte.”19 Com sua Installation Münster (Caravan), Asher demonstrava que a institucionalização da arte como arte depende não de sua localização dentro de limites físicos de um enquadramento institucional, mas de enquadres conceituais e perceptivos. Apresentado pela primeira vez na edição de 1977 do Skulptur Projekte em Münster,20 Alemanha, o trabalho consistia de um trailer alugado estacionado em diferentes partes da cidade durante o período da exposição, mudando de local a cada semana. No museu que servia de ponto de referência para a mostra, os visitantes podiam encontrar informações sobre o lugar em que o trailer poderia ser visto, in situ, naquela semana. No próprio site, entretanto, não havia nada que indicasse que o trailer era arte ou que tivesse qualquer relação com a exposição. Para um transeunte ocasional, não era nada além de um trailer. Asher levou Duchamp um passo mais adiante. Arte não é arte porque está assinada por um artista ou porque é exibida em um museu ou qualquer outro site institucional. Arte é arte quando existe para discursos e práticas que a reconhecem como arte, seja como
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objeto, gesto, representação ou apenas idéia. A instituição da arte não é algo externo a qualquer trabalho de arte, mas a condição irredutível de sua existência como arte. Não importa quão pública seja sua localização, quão imaterial ou transitório, relacional, cotidiano ou mesmo invisível, o que é enunciado e percebido como arte é sempre já institucionalizado, simplesmente porque existe dentro da percepção dos participantes do campo da arte como arte; uma percepção não necessariamente estética, mas fundamentalmente social em sua determinação. O que Asher demonstrava então é que a instituição da arte não é só “institucionalizada” em organizações como museus e objetos de arte presos ao objeto. Também é internalizada e incorporada nas pessoas. É internalizada em competências, modelos conceituais e modos de percepção que nos permitem produzir, escrever sobre e entender a arte ou simplesmente reconhecer arte como arte, seja no papel de artistas, críticos, curadores, historiadores da arte, galeristas, colecionadores ou visitantes de museus. E, sobretudo, tal internalização existe em nossos interesses, aspirações e critérios de qualidade que orientam nossas ações e definem nosso senso de valor. Essas competências e disposições determinam nossa própria institucionalização como membros do campo da arte. Elas formam o que Pierre Bourdieu chamava de habitus: o “social incorporado”, se o social torna-se corpo, a instituição torna-se mente. Há, obviamente, um “fora” da instituição, mas esse não tem características fixas, essenciais. É apenas o que, num dado momento, não existe como objeto de discursos e práticas artísticas. Mas assim como a arte não pode existir fora do campo da arte, tampouco nós podemos existir fora do campo da arte, ao menos não como artistas, críticos, curadores, etc. E o que fazemos fora do campo, enquanto permaneça fora, pode não ter efeito algum dentro dele. Logo, se não há fora para nós, não é porque a instituição é perfeitamente fechada ou porque existe como aparato em uma “sociedade totalmente administrada” nem sequer porque se tornou algo que tudo abarca, tanto por seu tamanho como por seu campo de investigação – mas porque a instituição está dentro de nós, e não podemos estar fora de nós mesmos. A crítica institucional foi institucionalizada? A crítica institucional sempre foi institucionalizada. Só poderia ter surgido de dentro e, como toda arte, só pode funcionar dentro da instituição arte. A insistência da crítica institucional sobre a inescapável determinação institucional pode ser, de fato, o que a distingue de modo mais preciso de outros legados da vanguarda histórica. Pode ser distinta em relação a outros legados por reconhecer o fracasso dos movimentos vanguardistas e as conseqüências desse fracasso; isto é, reconhece não a destruição da instituição da arte, mas sua explosão para além das fronteiras tradicionais de objetos especificamente artísticos e critérios estéticos. A institucionalização da negação duchampiana da competência artística com o readymade transformou essa negação em uma afirmação suprema da onipotência do olhar artístico e seu poder ilimitado de incorporação. Isso abriu caminho para a conceitualização artística – e mer-
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cantilização – de tudo. Como Bürger escrevia já em 1974, “se um artista hoje assina uma chaminé e a exibe, esse artista certamente não denuncia o mercado da arte, mas adapta-se a ele. Tal adaptação não erradica a idéia de uma criatividade individual, mas a 21 Bürger, Theory of the Avant-Garde, op. cit., p. 52-53.
reafirma, e a razão disto é o fracasso da vanguarda”.21 São os artistas – assim como os museus e o mercado – que, em seus esforços de fugir da instituição da arte, geraram essa expansão. Em cada tentativa de fuga dos limites da determinação institucional, a fim de abraçar um fora, de redefinir a arte ou reintegrá-la no cotidiano, para alcançar pessoas “comuns” e trabalhar no mundo “real”, expandimos nossa moldura e trazemos mais do mundo para dentro desse enquadramento. Mas dele nunca escapamos. Obviamente, esse enquadramento também foi transformado no decorrer do processo. A questão é como? As discussões sobre essa transformação têm a tendência a girar em torno de oposições como dentro e fora, público e privado, elitismo e populismo. Quando, porém, esses argumentos são usados para atribuir valor político a condições específicas, fracassam freqüentemente ao deixar de levar em consideração a subjacente distribuição do poder que é reproduzida mesmo quando variam as condições, e terminam, portanto, por servir de legitimação a essa reprodução. Para dar um exemplo óbvio, o enorme crescimento da audiência em museus, celebrada sob a bandeira do populismo, veio de mãos dadas com um contínuo aumento no preço das entradas, excluindo cada vez mais os visitantes de baixa renda, e criando novas formas de participação da elite com o aumento de diferenças hierárquicas nos modos de associação, visita, e convite para aberturas, cuja exclusividade é amplamente anunciada em revistas de moda e páginas de colunas sociais. Longe de se tornarem menos elitista, museus sempre-mais-populares se transformaram em veículos de um massificador marketing de gostos e práticas da elite que, embora talvez menos elitistas em relação às competências estéticas que demandam, o são cada vez mais em termos econômicos como no aumento dos preços. Tudo isso também amplia a demanda de produtos e serviços de profissionais da arte. O fato de estarmos presos a um campo, entretanto, não significa que não produzimos efeito sobre ele ou que não somos afetados pelo que ocorre além de suas fronteiras. Uma vez mais, Haacke pode ter sido o primeiro a entender e representar, em toda sua amplitude, o jogo entre o que está dentro e fora do campo da arte. Enquanto Asher e Buren examinavam como um objeto ou signo é transformado quando atravessa fronteiras físicas e conceituais, Haacke involucrava a “instituição” como uma rede de relações sociais e econômicas, tornando visíveis as cumplicidades entre as aparentemente opostas esferas da arte, do Estado e empresariais. Pode ter sido Haacke quem, mais do que qualquer outro, aludiu às caracterizações da crítica institucional como um desafio heróico, que destemidamente diz a verdade ao poder – e com razão, já que seu trabalho tem sido sujeito a vandalismo, censura, e enfrentamentos parlamentares. Contudo, qualquer um que tenha familiaridade com seu trabalho deve reconhecer que, longe de tentar desmantelar
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o museu, o projeto de Haacke é uma tentativa de defender a instituição da arte da instrumentalização por parte de interesses políticos e econômicos. Que o mundo da arte, agora uma indústria global multibilionária, não seja parte do “mundo real” é uma das ficções mais absurdas do discurso artístico. O boom do mercado atual,22 só para mencionar o exemplo mais evidente, é produto direto das políticas econômicas
22 As condições econômicas a que se remete a autora são relativas a 2005, ano de publicação do texto. (NT)
neoliberais. Em primeiro lugar, faz parte do boom do mercado de consumo de bens de luxo que acompanha os crescentes disparates de renda e concentração de riqueza – os beneficiários da redução de impostos de Bush são nossos patrocinadores – e, em segundo, pertence à mesma força econômica que criou a “bolha imobiliária” global: falta de confiança no mercado de ações decorrente da queda de preços e escândalos financeiros corporativos, falta de confiança no mercado de bônus derivado da alta da dívida interna [americana], queda da taxa de juros, e corte regressivo de impostos. E o mercado de arte não é o único site do mundo da arte em que se encontram reproduzidos os crescentes disparates econômicos de nossa sociedade. Eles também podem ser reconhecidos naquilo que (agora só no nome) se proclama organizações “sem fins lucrativos” como universidades – cujos programas de pós-graduação em belas artes se sustentam à base de mão-de-obra barata contratada temporariamente – e museus, cujas políticas anti-sindicato têm produzido compensações proporcionalmente díspares, entre os mais bem pagos e os piores salários, chegando a ultrapassar 40:1. Representações do “mundo da arte” como algo totalmente distinto do “mundo real”, assim como representações da “instituição” como discretas e apartadas de “nós”, servem a funções específicas no discurso artístico. Elas mantêm uma distância imaginária entre os interesses sociais e econômicos, nos quais investimos através de nossas atividades, e eufêmicos “interesses” (ou desinteresses) artísticos, intelectuais e até mesmo políticos que provêm essas atividades com conteúdo e justificam sua existência. E com essas representações, nós também reproduzimos as mitologias de liberdade voluntarista e onipotência criativa que têm feito da arte e de artistas emblemas tão atrativos ao empreendimento neoliberal e ao otimismo da “sociedade-da-propriedade”.23 Que tal otimismo tenha encontrado sua perfeita expressão artística em práticas neoFluxus, como a estética relacional, que se encontram agora em voga contínua, demonstra até que ponto o que Bürger chamava de meta da vanguarda de integrar “arte na vida prática” se tornou forma altamente ideológica de escapismo. Mas isso não diz respeito apenas à ideologia. Não somos meros símbolos da recompensa do regime vigente: nesse mercado da arte, somos materialmente seus beneficiários diretos. Toda vez que mencionamos a “instituição” como algo distinto de “nós”, executamos nosso papel na criação e perpetuação de suas condições. Evitamos as ações contra ou a responsabilidade pelas cumplicidades, compromissos e censuras – acima de tudo autocensuras – cotidianos que são direcionados por nossos próprios interesses no campo e pelos benefícios que dele derivam. Não é uma questão de dentro e fora ou de número e escala
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23 A expressão ownership society faz parte de um slogan propagado pelo presidente americano George W. Bush na defesa de valores como “responsabilidade pessoal”, “liberdade econômica” e “direito à propriedade”, em detrimento daqueles que favoreceriam o direito à assistência social e saúde pública gratuita. (NT)
dos vários sites organizados para a produção, apresentação e distribuição da arte. Não é uma questão de ser contra a instituição: Nós somos a instituição. É uma questão de que tipo de instituição somos, que tipo de valores institucionalizamos, que formas de práticas remuneramos, e a que tipos de recompensas aspiramos. Por ser a instituição da arte internalizada, incorporada, e representada por indivíduos, estas são as questões que a crítica institucional demanda que perguntemos, sobretudo, a nós mesmos. Finalmente, é o autoquestionamento – mais do que uma questão de temática, tipo “a instituição”, não importa quão amplamente concebida – que define a crítica institucional como prática. Se, como sugere Bürger, o autocriticismo da vanguarda histórica visava à “abolição da arte autônoma” e sua integração “na vida prática”, ele fracassou tanto nas 24 Bürger, Theory of the Avant-Garde, op. cit., p. 54.
metas quanto nas estratégias.24 Entretanto, a própria institucionalização que marcou esse fracasso se tornou a condição da crítica institucional. Ao reconhecer esse fracasso e suas conseqüências, a crítica institucional deixou de lado os esforços, cada vez mais malintencionados, das neovanguardas em desmantelar ou escapar da instituição da arte e tomou como meta, ao contrário, a defesa da própria instituição que a institucionalização do “autocriticismo” da vanguarda tinha propiciado: uma instituição da crítica. E pode ser essa mesma institucionalização que permite à crítica institucional julgar a instituição da arte contra as alegações críticas de seus discursos legitimantes, contra sua autorepresentação como site de resistência e contestação, e contra suas mitologias de radicalidade e revolução simbólica.
Andrea Fraser é artista de Nova York dedicada à performance, à arte contextual e à crítica institucional. Desde meados dos anos 80 vem trabalhando em performances, vídeos, instalações e publicações, tanto em galerias como em museus, como o MOMA de Nova York (1986). Entre 1986 e 1989 fez parte do grupo de performance V-Girls. / afraser@ucla.edu
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Patrimônio imaterial afrodescendente: o tambor-de-crioula Ana Beatriz Soares Cascardo e Tadeu Mourão
Por mais de 300 anos o Brasil recebeu grande número de africanos originários de diversas regiões do continente negro: Iorubás do noroeste, Bantos das áreas do Congo e de Angola, entre outros. Cada região e cada etnia abrangem diferentes grupos culturais, todos deslocados de seus espaços, escravizados, porém não aculturados passivamente. Esses grupos étnicos são, em terras desconhecidas e em situação inesperada, obrigados a conviver. A relação social que se estabelecia com a forma de coletivo tribal, ou “família” tribal, foi violentamente rompida. Em sua nova realidade social e geográfica viam-se subjugados à hegemonia branca cristã, que se esforçou, ao longo dos séculos, em extinguir sua base cultural, repleta de insígnias do paganismo. Os mitos cosmogônicos, as manifestações religiosas e festejos dos africanos relocados na colônia portuguesa sofreram inegáveis transformações. No século XVIII, as irmandades negras católicas já estavam firmemente constituídas, os negros eram batizados e recebiam nomes cristãos. Uma negociação entre culturas díspares, uma dominante e outra dominada, acontece, e em cada localidade do país essa tensão entre aceitação e resistência se dá de forma diferente. Entretanto, vários elementos culturais da matriz africana permanecem, sincretizados, amalgados, enfim, adaptados ao novo contexto social no qual passam a se inserir. A visão cosmogônica de diversas culturas africanas compreende o mundo material que os circunda como produto da ação de agentes míticos, que se fazem visíveis tanto por suas manifestações na natureza e no cotidiano quanto nos cultos religiosos propriamente ditos. A ritualização do sagrado, dificilmente ocorre sem o acompanhamento da plasticidade fornecida pela música, que nasce do canto, das palmas, dos instrumentos e é complementada pela visualidade da dança, elemento que faz notar, aliás, a presentificação dos deuses e dos ancestrais míticos, que ao possuírem os corpos de seus descendentes os impelem a dançar. As manifestações populares afrodescendentes do Brasil têm como base originária as ce1 Ramos, 2007.
rimônias religiosas de matriz africana, tal qual assinala Artur Ramos.1 A dança e a música acompanhavam variados momentos da vida social do africano de diferentes grupos étnicos, nagôs, jejes, bantos etc. Isso ocorria, primordialmente, pelo fato de esses momentos sociais também fazerem parte da dimensão do sagrado. A caça, a guerra, o nascimento e os ritos de passagem em geral eram acontecimentos ritualizados, portanto, a música e a dança se faziam necessárias, pois também são formas estéticas indissociáveis
Tambor-de-crioula. São Luís do Maranhão, fevereiro de 2007. Foto: Sheila Cabo Geraldo.
dos elementos míticos. No entanto, em um ambiente cultural diferente, no qual uma hegemonia branca católica vigilante perseguiu até meados do século XX as manifesta-
Patrimônio imaterial afrodescendente: o tambor-de-crioula Ana Beatriz Soares Cascardo e Tadeu Mourão
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ções afrodescendentes, chegam até o século XXI, modificadas, no entanto vivas. Várias ritualizações de base ancestral africana se hibridizaram e se transformaram ao penetrar e se mesclar à religiosidade cristã popular e a vários outros elementos existentes no Brasil. Não só os cultos religiosos de ascendência negra como os Candomblés, Umbanda e Xangô, conservam em seus rituais manifestações performáticas permeadas por musicalidade e dança, mas também nos reisados, maracatus, congos e jongos é possível notar a presença contemporânea de uma cultura afrodescendente ativa, que aos poucos ganha seu merecido reconhecimento como elemento artístico-cultural brasileiro. Tal qual o jongo do Sudeste, filho do batuque angola-conguense2 o tambor-de-crioula ma-
2 Idem.
ranhense está prestes a se tornar oficialmente Patrimônio Imaterial Brasileiro. No Brasil, a primeira preocupação com o Patrimônio apareceu no início do século XX. Em 1937, foi criado o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN) atual Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) tendo como principal função a salvaguarda de monumentos históricos e artísticos nacionais. Sua preocupação restringia-se ao patrimônio material, baseado no critério de “excepcionalidade” dos monumentos.3 Paralelamente outro movimento era deflagrado no país. Nos anos 40
3 Londres, 2004.
foram criadas as Comissões Estaduais de Folclore vinculadas diretamente à Comissão Nacional de Folclore, cuja missão era pesquisar as manifestações populares nacionais, mapeá-las, identificar suas origens e inter-relações. Adotam critérios diferentes daqueles que nortearam os trabalhos iniciais do SPHAN, pois preocupava-se em documentar “matrizes variantes de folguedos, lendas, festas religiosas e profanas, melodias, cantos, dança e outras formas de expressão”.4 Com o tempo, conhecer, registrar e pesquisar o
4 Id. ibid., p. 9.
folclore pareceu não ter sido suficiente, pois até então, conforme afirma José Jorge de Carvalho: O pesquisador de artes performáticas nutria uma profunda identificação com seu objeto concreto de pesquisa. Por outro lado ele não se envolvia nos dilemas sociais, políticos e econômicos da comunidade, cultivando porém, um envolvimento passional com as formas culturais, atividade que também poderia ser política em outro sentido.5 O Patrimônio Imaterial viria a constituir-se de saberes na maioria das vezes passados hereditariamente: maneira de viver, dança típica, culinária característica e várias outras manifestações culturais. Elementos esses não tangíveis em seu contexto, mas que precisariam de suportes materiais para se desenvolver. Uma moradia é material, a indumentária também é constituída por materialidade, mas ambos provêm de um saber e de uma tradição imateriais. Nota-se que não seriam tipologias de patrimônio antagônicas, pelo contrário, se complementariam: o imaterial precisaria do material e vice-versa, pois a produção do patrimônio material pode ser oriunda dos conjuntos de saberes, costumes e valores incutidos no imaterial. A Unesco define como Patrimônio Cultural Imaterial:
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5 Carvalho, 2004, p. 67.
(...) práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas e também os instrumentos, objetos, artefatos e lugares que lhes são associados e as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos que se reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural. O Patrimônio Imaterial é transmitido de geração em geração e constantemente recriado pelas comunidades e grupos em função de seu ambiente, de sua interação com a natureza e de sua história, gerando um sentimento de identidade e continuidade, contribuindo assim para 6 Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Imaterial. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/ montarPaginaSecao.do?id=10852&retorno=p aginaIphan>.
promover o respeito à diversidade cultural e à criatividade humana.6 Salvaguardar o patrimônio intangível vai além de realizar registros fotográficos, gravação de filmes e entrevistas. Tão importante quanto tudo isso é fornecer condições para sua continuidade. O imaterial é essencialmente dinâmico e para que permaneça existindo deve ser praticado e continuamente transmitido às futuras gerações. Seu dinamismo latente advindo da memória social faz com que sejam notadas variações com o passar do tempo. Nesse intento os registros mostram como ocorrem as modificações, e os fomentos garantiriam a sua existência como prática. A ação conjunta de registro e fomento se faz, portanto, de extrema importância. Pensando nisso a Unesco instituiu em 15 de novembro
7 United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Recomendación sobre la salvaguardia de la cultura tradicional e popular: adoptada por la Conferencia General em su 25ª sesión. Paris, 1989. Disponível em: <http://www.unesco.org/culture/laws/paris/ html_sp/page1.shtml>. Acesso em: 15 out. 2006. Tradução nossa. 8 United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Recomendación sobre la salvaguardia de la cultura tradicional e popular: adoptada por la Conferencia General em su 25ª sesión. Paris, 1989. Disponível em: <http://www.unesco.org/culture/laws/ paris/html_sp/page1.shtml>. Acesso em: 15 out. 2006.
de 1989, em Paris, a Recomendação sobre a Salvaguarda da Cultura Tradicional e Popular.7 Esse documento orienta os países membros, incluindo o Brasil, à preservação do patrimônio imaterial e recomenda expressamente o fomento às práticas culturais de certas comunidades. Tal fomento consiste em promover congressos, debates e estudos, incentivando, para isso, pesquisas na área com exigência de o retorno às comunidades, que devem ter acesso ao conhecimento produzido por elas próprias e condições de realizar seus costumes.8 O documento reconhece a extrema importância da cultura popular para a sociedade local e mundial, ressaltando a relevância primordial de seu inventário. Este se revela como levantamento das manifestações populares, obtendo análises e registros diversos não só de objetos e técnicas, como também dos demais elementos culturais que perpassam a estrutura social na qual se inserem. Praticado em louvor a São Benedito, geralmente como pagamento de promessas, o tambor-de-crioula, apesar de todas as perseguições sofridas pelas cerimônias dos descendentes dos africanos, chega à atualidade contabilizando mais de 60 grupos de praticantes registrados pelo IPHAN na cidade de São Luís. Até o fim da década de 1970 o número de grupos de praticantes dessa performance popular da capital maranhense não contabilizava mais de 20. Contudo, devido ao grande fluxo migratório ocorrido na década seguinte, essa manifestação inicialmente rural passa a ser mais presente no contexto urbano, aumentando significativamente o número de seus participantes.
9 Termo utilizado para designar o conjunto de versos entoados na roda, outras manifestações culturais afrodescendentes também utilizam esse termo para designar seus cânticos, como o jongo da Região Sudeste, por exemplo.
Sua origem remete ao período do regime escravista em que os tambores e as toadas9 tornavam-se ritmo para um misto entre dança e golpes, similares aos existentes na capoeira, ensaiados por seus praticantes, na época, apenas homens. Por vezes o tambor era
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realizado de forma clandestina, nas matas, à noite, longe do olhar repressor dos senhores brancos.10 Hoje o papel dos homens nessa manifestação se restringe à função de coreiros,
10 Ferreti, 1977.
os responsáveis pelo canto das toadas e pelo toque dos tambores. O papel da dança cabe às mulheres, que trajam longas e multicolores saias de chita que rodopiam na evolução de sua performance, criando forte sensação de movimento ressaltada pela presença da cor viva das flores estampadas que fazem circular irrefreavelmente no espaço ritmado pelo som penetrante da percussão e do canto. De forma similar ao jongo e não muito diferente do ocorria no batuque,11 as dançarinas executam a punga ou umbigada12 para designar qual delas sairá da roda. Não há época ou local certo para realizar o tambor-de-crioula, entretanto, é comum presenciá-lo mais freqüentemente nos festejos de São João, em meados de agosto e também juntamente com os festejos do bumba-meu-boi maranhense. O tambor-de-crioula existe até os dias atuais pela vontade de seus integrantes em praticálo em torná-lo atual e ativo. Sua incorporação ao Patrimônio Cultural Nacional de Natureza Intangível não significa seu engessamento no tempo, pois seu inventário e registro também não são estanques, podendo e devendo ser constantemente complementados. Tornar-se patrimônio pode garantir a essa manifestação popular o seu fomento estatal e o apoio de particulares, não apenas para sua existência como prática, como também para sua difusão conceitual, entre membros da comunidade em que ocorre a expressão e pesquisadores. E mostra que apesar de séculos de perseguição à cultura afrodescendente, o Brasil, gradualmente, se redime ao buscar preservar a produção artística de sua face mestiça popular e assim busca retirar a cultura afrodescendente da senzala do descaso, e aos poucos, a coloca na casa-grande do reconhecimento tardio, porém vindouro.
Referências bibliográficas CARNEIRO, Edson. Samba de Umbigada. Ministério de Educação e Cultura. Companhia de Defesa do Folclore Brasileiro.1961. LONDRES, Cecília. Os Inventários nas Políticas de Patrimônio Imaterial. In: LONDRES, Cecília. (org). Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, 2004. 5v. passim. VIANNA, Letícia. Patrimônio Imaterial: legislação e inventários culturais. A experiência do Projeto Celebrações e Saberes da Cultura Popular. In: LONDRES, Cecília. (org). Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, 2004. 5v CARVALHO, José Jorge de. Metamorfoses das tradições perfomáticas afro-brasileiras: de patrimônio cultural a indústria de entreterimento. In: LONDRES, Cecília. (org). Celebrações e saberes da cultura popular: pesquisa, inventário, crítica, perspectivas. Rio de Janeiro: Funarte, Iphan, CNFCP, 2004. 5v. 67. FERRETI, Sergio Figueiredo. Tambor de Crioula: ritual e espetáculo. São Luís: Comissão Maranhense de Folclore, 2002.
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11 Ramos, 2007. 12 Movimento em que os ventres se encontram, podendo ser efetiva ou simulada.
RAMOS, Artur. O Folclore Negro no Brasil: demopsicologia e psicanálise. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007. United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization. Recomendación sobre la salvaguardia de la cultura tradicional e popular: adoptada por la Conferencia General em su 25ª sesión. Paris, 1989. Disponível em: <http://www.unesco.org/culture/laws/ paris/html_sp/page1.shtml>. Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Patrimônio Imaterial. Disponível em: <http://portal.iphan.gov.br/portal/montarPaginaSecao.do?id=10852&retorno=pagin aIphan>. <http://www.maxpressnet.com.br/e/iphan/iphan_13-06-07b_link.htm>.
Ana Beatriz Soares Cascardo é mestranda em Artes pela UERJ. Pesquisa atualmente produção visual popular urbana. / ana_cascardo@ig.com.br
Tadeu Mourão é arte-educador e mestrando em Artes pela UERJ. Pesquisa atualmente produção artística visual religiosa afrodescendente. / tadeumlopes@yahoo.com.br
Patrimônio imaterial afrodescendente: o tambor-de-crioula Ana Beatriz Soares Cascardo e Tadeu Mourão
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Marcel Duchamp (ou o problema de expor Marcel Duchamp) Danielle Rodrigues Amaro
Resenha da exposição Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”, em exibição no Museu de Arte Moderna de São Paulo de 16 de julho a 21 de setembro de 2008. O que faz a diferença entre uma obra de arte e algo que não é uma obra de arte quando não se tem nenhuma diferença perceptual interessante entre elas?1 Não faz muito tempo, ainda na graduação, em algumas das várias visi1 Danto, Arthur. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006, p. 39-40.
tas a exposições fui acompanhada de minha irmã mais nova. Na época ela ainda não havia ingressado no ensino superior e, mesmo tendo aulas de arte no ensino médio, não se “iniciara” na produção de arte contemporânea. Sua “iniciação” se deu sob minha tutela (algo que realmente não consigo mensurar o quão traumático tenha sido). Admito que um processo como esse não é tão simples quanto se possa antecipadamente imaginar: afinal, tentar condensar o contorno (ou a falta de um) que a produção artística do século XX tomou e explicá-lo de uma forma “compreensível” para um leigo é um exercício e tanto de síntese. Lembro-me de que, em uma dessas visitas, ocorreu uma situação engraçada e da qual me aproprio inicialmente a fim de introduzir o tema. Em espaços museológicos encontramos com freqüência, ao lado das obras “de arte”, aparelhos de controle e monitorização do ambiente (tais como desumificadores, termômetros e medidores de umidade, sismógrafos, etc.) necessários para a manutenção e conservação dos objetos nele encerrados. Certa vez, após deter-me em uma obra (da qual realmente não me recordo no momento, nem, aliás, da exposição que visitávamos), voltei-me procurando minha irmã e a percebi observando diligentemente um sismógrafo (!). Trata-se de aparelho interessante, curioso, até pelo fato de não sabermos que é um sismógrafo antes que alguém nos dê essa informação. Acrescente-se a esta descrição o fato de ele normalmente estar sobre um pedestal. Em suma, é quase uma escultura! E, depois de um tempo, tendo trabalhado em instituições museológicas, passei a perceber que a contemplação de sismógrafos era prática constante em museus, em especial em mostras de arte contemporânea.
Sismógrafo utilizado pelo MAM-SP, presente nas dependências da exposição Marcel Duchamp: uma obra que não é uma ‘obra de arte’. Foto: Danielle Rodrigues Amaro.
Retomando o exemplo de minha irmã, minha primeira reação foi de riso. Em seguida, adverti-a de que aquilo não era uma obra “de arte”. Fato que me levou ao arrependimento, pois, além de não conseguir mais discernir o que era e o que não era uma obra de arte pu-
Marcel Duchamp (ou o problema de expor Marcel Duchamp) Danielle Rodrigues Amaro
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ramente por uma experiência visual, minha irmã se sentiu envergonhada e constrangida. Logo pensei: “Aí está o legado de Marcel Duchamp!” A pintura acabou. Quem pode fazer algo melhor do que uma hélice? Diga-me, você pode fazer algo assim?2 Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”, inaugurada em 15 de julho de 2008, marca os 60 anos do Museu de Arte Moderna de São Paulo e fica em cartaz até o dia 21 de setembro. Segundo a curadoria, é a maior exposição já realizada do artista na
2 Marcel Duchamp, observando extasiado um avião no Salão de Locomoção Aérea, em 1912, dirigindo-se ao seu amigo, o escultor Brancusi (1876-1957). In Filipovic, Elena (org.) et. al. Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”. Buenos Aires/São Paulo: Fundação Proa/Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2008, p. 34.
América do Sul. Com cerca de 120 peças, traz ao público réplicas de obras de Duchamp. A curadora, Elena Filipovic, ressalta que seu mote é uma colocação de 1913 do próprio Marcel Duchamp: “Pode alguém fazer obras que não sejam ‘de arte’?”. Ainda segundo a curadoria, o foco da mostra é o repensar insistente da obra “de arte” empreitado pelo artista mais influente dos séculos XX e XXI. Dividida em partes temáticas, enfatiza as pesquisas artísticas nas quais Duchamp se embrenhou: Ready-mades, Transparência / Perspectiva, Acaso / Xadrez / Humor, Óptica, Reprodução, Performatividade, Erotismo. De forma a introduzir o visitante, uma linha do tempo explicita a trajetória pessoal e artística de Marcel Duchamp (desde seu nascimento em Blanville, em 28 de julho de 1887, até sua morte em 1968; e após seu falecimento, com a doação da Étant donnés... ao Philadelphia Museum of Art, a pedido do próprio artista, como sua última – e póstuma – ação).3 Ainda nesse espaço introdutório, mas destacado em um ambiente propício, são apresentadas algumas experiências cinematográficas de vanguarda das quais Duchamp participa na década de 1920 (até mesmo atuando). São exibidos cronologicamente, por exemplo, Retour à la raison (1923), Emak Bakia (1926), L’étoile de mer (1928), Les Mystères du château du Dé (1929), de Man Ray; Entre’acte (1924), de René Clair (com a participação de Duchamp),4 e neles é possível perceber o caráter experimental: artistas interessados em explorar as possibilidades da imagem-movimento. Em seguida, passado esse momento de aclimatação do público, destaca-se a Roda de bicicleta, sobre pedestal, estrategicamente iluminada, inaugurando tanto a exposição como um todo (pois é a primeira réplica de uma obra de Duchamp com a qual o visitante se depara) quanto o primeiro dos nichos temáticos que se apresentam a partir dela: Ready-mades. Tal escolha não foi ao acaso: Roda de bicicleta enceta a série de ready-mades e foi produzida num ano considerado pela curadoria o divisor de águas na produção de Duchamp. Por volta de 1913, algo fundamental mudou para Duchamp (...) Era um momento em que a modernidade rendia cada vez mais culto à tecnologia, à eficiência e, em geral autoconfiante movimento contínuo do pro-
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3 “Em 1965, quando deve deixar seu ateliê da rua 14, leva pessoalmente Étant donnés..., já quase completo (...). No ano seguinte, convida Willian Copley, artista amigo e membro fundador da Fundação Cassandra, para ir ao ateliê ver a obra e conversar com ele sobre seu destino final. Duchamp queria que, após sua morte, a obra se somasse ao acervo do Philadelphia Museum of Art, junto com outras obras suas, e Copley foi encarregado de realizar as negociações para que isso acontecesse. A Fundação Cassandra compra a obra e, depois da morte de Duchamp em 1968, doa-a ao museu. Enquanto isso, Duchamp escreve à mão toda uma série de instruções (...) para indicar a maneira como Étant donnés... deve ser montado e desmontado (...). No fim de 1966, assina e data a obra (...). Sem nenhum anúncio e sem inauguração oficial (Duchamp havia pedido expressamente a mais absoluta discrição), em junho de 1969 é aberta ao público (...).” In Filipovic et. al., op. cit., p. 69-70. 4 Todos os filmes exibidos são facilmente encontrados na internet. Le Retour à la raison, Emak Bakia, L’Étoile de mer e Les Mystères du château de Dé, de Man Ray estão disponíveis (também para download) em http://www. ubu.com/film/ray.html. Entre’acte, de René Clair, pode ser encontrado em http://www. youtube.com/watch?v=FjFW138iqpc.Sites acessados em 24 de agosto de 2008.
gresso (não se deve esquecer: era um clima em que circulavam as teorias tayloristas de produção em massa, no qual Ford introduziu a linha de 5 Filipovic et. al., op. cit., p. 79.
montagem na produção de automóveis, e no qual foi inventado o zíper).5 Algo curioso é a insistência da curadoria em advertir ao público que nenhum dos readymades é “original”, justificando que, de fato, nenhum “original” existe mais: todos se perderam, foram jogados fora ou quebrados nos primeiros anos de existência. Nessa exposição são apenas apresentadas réplicas autorizadas por Marcel Duchamp, tais como a já citada Roda de bicicleta (1913) e outros: Porta-garrafas (1914); Em antecipação ao braço quebrado (1915); Com ruído escondido (1916); Item dobrável... de viagem (1916); Pente (1916); Fonte (1917); Armadilha (1917); Apolinère esmaltado (1917); Ar de Paris (1919); L.H.O.O.Q. (1919); Fresh Widow (1920); Por que não espirrar, Rrose Sélavy? (1921). O grupo temático que se segue, Transparência / Perspectiva, aborda esses assuntos de forma a tornar explícita a combinação entre os interesses do artista por ambos. São apresentados os estudos referentes a A noiva desnudada pelos seus celibatários, mesmo ou O Grande Vidro (1915-1923), incluindo uma réplica da obra. O nicho Acaso/Xadrez/Humor refere-se à tríade de elementos que freqüentemente surge na obra de Duchamp. Leis do acaso, como aponta a curadoria, foram usadas em muitas peças, como nas composição musicais Erratum Musical (1914), gravação sonora de partitura musical composta por Duchamp usando o acaso; e Marcel Duchamp and John Cage Reunion (1968), gravação sonora de uma partida de xadrez entre Duchamp e Cage com um tabuleiro especialmente preparado. Aficionado por xadrez, em várias de suas obras o jogo se faz presente, seja matérica ou conceitualmente. Finalmente, o humor refinado evidente em vários trocadilhos utilizados pelo artista, de forma que seu trabalho não pode ser entendido descontextualizado da linguagem. Esse é um poderoso recurso do qual Duchamp muito se valeu. Com relação ao nicho Óptica, podem ser vistos vários experimentos que objetivavam a manipulação da visão. Além do filme produzido por Marcel Duchamp em parceria
6 Disponível em http://www.youtube.com/ watch?v=upvYAAh8RuU.
com Man Ray e Marc Allégret, o Anémic Cinema (1925-1926),6 são expostos máquinas e aparelhos ópticos, como em Placas de vidro rotativas (1924) e Rotorrelevos (1935). Essas pesquisas, nas quais se esclarece o interesse de Duchamp pelo movimento e pela percepção óptica, são afirmadas pela curadoria como resposta ao “retiniano”, à ênfase na visualidade pura: Tive a intenção de fazer não uma pintura para os olhos mas uma pintura em que o tubo de cores fosse um meio e não um fim em si (...) Há uma grande diferença entre uma pintura que só se dirige à retina e uma pintura que vai além da impressão retiniana – uma pintura que se serve do tubo de cores como um trampolim para saltar mais longe (...)
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a pintura pura não me interessa em si nem como finalidade. Para mim a finalidade é outra, é uma combinação ou, ao menos, uma expressão que só a matéria gris pode produzir.7 (Marcel Duchamp)
7 Paz, Octávio. Marcel Duchamp ou o castelo da pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002, p. 48-49.
No que se refere ao eixo Reprodução são apresentadas cópias em papel, réplicas e miniaturas do que considerava suas principais obras de arte: um museu portátil de sua produção artística. Destacam-se: um exemplar da Caixa-Valise (1942) e reproduções de notas do artista, como a Caixa verde (1934). O eixo Performatividade se atém ao personagem criado por Duchamp, o alter ego Rose Sélavy. Duchamp chega a se travestir de mulher e registrar-se dessa forma em fotografias (também expostas na mostra). Rose Sélavy, aliás, assina parte dos ready-mades. Por fim, Erotismo apresenta algumas obras em que se pode observar como o tema é influência importante em seu trabalho. Este último bloco é encerrado com Etant Donné: 1. La chute d’eau; 2. Le gaz d’éclairage [Sendo Dados: 1. A cascata; 2. O gás de iluminação] (1946-1966). No conjunto da exposição, ainda são criados alguns ambientes isolados, nos quais são projetados o estúdio de Duchamp e algumas obras exibidas em mostras surrealistas, como 1.200 sacos de carvão, na Exposição Internacional do Surrealismo, na Galeria de Belas Artes de Paris, 1938; e Milha de fio, na Primeiros Documentos do Surrealismo, em Nova York, 1942. Em Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”, o público tem a oportunidade de refazer o percurso de um artista que colocou em xeque os paradigmas artísticos, questionando não apenas os conteúdos estéticos da obra como a dinâmica do sistema em que ela está ensejada. O espaço moderno redefine a condição do observador; mexe com sua auto-imagem.8 O artista não é o único que consome o ato criador, pois o espectador
8 O’Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 36.
estabelece o contato da obra com o mundo exterior decifrando e interpretando suas profundas qualificações para acrescentar então sua própria contribuição ao processo criativo.9 (Marcel Duchamp) Há que considerar, no entanto, o fato de que uma exposição de Marcel Duchamp causa incomodo ainda hoje. É lógico que o problema de se expor Marcel Duchamp quase um século depois de Roda de bicicleta e Fonte é diferente. Se antes o problema latente era o de aceitação por parte do público dessa produção artística (isso não significa que o afastamento temporal tenha tornado as pessoas menos avessas a seu trabalho), questionando se aquilo era ou não arte, hoje o grande problema é como expor Marcel Duchamp de forma que não crie um ambiente de contradição?
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9 In Filipovic et. al., op. cit., p. 72.
Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”, apesar do grande esforço da curadoria em esclarecer ao público que as obras ali expostas são réplicas (sendo assim, acredito que na afirmativa está embutida a idéia de que não importa que não seja o original, pois ele não se faz necessário), em virtude do próprio espaço museológico e da forma como os objetos são apresentados (os ready-mades como Roda de bicicleta e Fonte sobre pedestais) cria uma aura ao redor dos objetos. A sensação que se tem é a de um grande paradoxo: Marcel Duchamp, artista que questionou o sistema da arte é celebrado, exposto e apreciado de uma forma ainda extremamente tradicional. A distinção entre “original” e “réplica”, apesar de pretender informar, é problemática. Como falar de um suposto “original” de uma obra que é retirada de uma série? O original, afinal, é o objeto ou a atitude do artista diante de um objeto banal? Na idéia de “original”, ainda está incluso o gênio, o virtuose. É fato que uma conseqüência marcante da evolução do homem enquanto ser cultural é a dependência de objetos, estabilizadores da vida humana. Essa dependência é justificada tanto pela sobrevivência física (quando falamos dos objetos enquanto extensões do corpo humano, tecnologia que tem como função a atenuação das dificuldades de convivência e sobrevivência no mundo) quanto cultural. Sendo assim, os objetos não têm valor em si, um valor “real”, mas seu valor é culturalmente atribuído, especulativo. Neste contexto, os museus ocupam importante lugar na vida social. Neles se encontra abrigado tudo aquilo que merece ser memorado. De alguma forma, por mais que um artista como Marcel Duchamp questione a atribuição da aura ao objeto, apropriando-se de algo banal, parte de uma série industrial, acessível a qualquer um que o queira adquirir (basta pagar por ele); ainda assim, esse objeto se transfigurará. O objeto colocado no museu está em patamar mais elevado de existência e importância em relação aos demais. Como afirma Thomas McEvilley na introdução do livro No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte, “A eternidade implícita nos nossos recintos de exposição 10 O’Doherty, op. cit., p. xviii.
é ostensivamente a da posteridade artística, da beleza imortal, da obra-prima.”10 Os museus, sobretudo, são marcados pelos objetos sensacionais. Potencialmente, tudo é “museável”, passível de ser incorporado ao museu. A musealização é sempre resultado de um ato de vontade. O museu é produtor de patrimônio, e, dentre suas funções, destacamse a preservação dos objetos não apenas em sua dimensão tangível, mas igualmente, em sua dimensão imaterial; a investigação de suas relações históricas (o que abrange inúmeras instâncias, como social, cultural, econômica, artística); e a comunicação com o público, tornando esse objeto não apenas fisicamente acessível, mas propondo um discurso compreensível e com o qual o público se sinta à vontade para dialogar. É evidente que os objetos artísticos falam por si. A instância estética é inseparável do ser humano, já que ele se relaciona com o mundo por meio dos sentidos, e de outra forma isso não lhe é possível. No entanto, a construção do conhecimento não se restringe à esfera do sensível.
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Considerando o público que tem circulado na exposição, chegando a formar longa fila de espera nos finais de semana (domingo é gratuito), é possível afirmar que boa parte dele não está lá por gostar ou não de Duchamp, por se interessar ou não por sua obra que não é uma obra “de arte”. Inegável é a quantidade de informação a respeito vinculada nos meios de comunicação de massa (em especial na televisão), o que torna a visita à exposição obrigatória. Visitar a exposição anunciada é estar em dia com os eventos sociais, uma forma de demonstrar que se está in. A postura do público diante das obras de Duchamp em nada difere daquela adotada diante das gravuras de Rembrandt há alguns anos no CCBB do Rio de Janeiro, na qual os visitantes recebiam lupas para poder observar melhor os mínimos detalhes de cada uma delas. As lupas tornaram-se símbolo de visita “minuciosa”, “acurada”. Por fim, essas lentes se tornaram tão significativas quanto as gravuras de Rembrandt, sendo até disputadas em longas filas. Esclarece-se que em nenhum momento a entrada na exposição foi condicionada à posse da lupa. O que era para ser apenas um instrumento de mediação que melhorasse a percepção visual dos detalhes das gravuras de Rembrandt, tornou-se mais apreciado do que as próprias obras de arte. A lupa transformou-se em objeto de “fetiche”. Em exposição “tradicional”, estar diante, em presença da obra e nela se deleitar não é algo preocupante. Pelo contrário: a cada dia é mais difícil ver visitantes tão atenciosos, tendo em vista a avalancha de imagens. Retomando o objeto desta resenha, numa exposição de obras que não são “de arte”, observar pessoas pararem horas diante de um urinol, como se procurando algum resquício de virtuosismo que realmente não faz parte daquele contexto, que não é o interesse do artista, é algo para se levar em consideração. O público, o grande público, notavelmente ainda ignora quem seja Marcel Duchamp como também a dinâmica da arte do último século. Tomo-me como exemplo: recordo que a primeira vez que ouvi falar algo sobre o artista foi em uma aula de introdução à história da arte (já na universidade), na qual o professor nos apresentou a imagem do Porta-Garrafas no sentido de nos instigar sobre a possibilidade daquilo ser ou não uma obra de arte, logicamente revelando após que aquilo já havia sido afirmado como uma obra de arte por um artista. Durante todo o ensino fundamental e ensino médio nada me foi mencionado sobre o artista nem sua produção. Diante de tanta precariedade de (in)formação, nada mais natural do que visitantes “cismarem” com um sismógrafo. Atirei-lhes o Porta-garrafas e o Urinol como desafio, e agora, eles o admiram por sua beleza estética.11 (Marcel Duchamp)
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11 De Duve, Thierry. Kant depois de Duchamp. In Arte & Ensaios, revista do mestrado em História da Arte, EBA/UFRJ. Rio de Janeiro, 1998, p. 131.
Uma última “anedota”: na primeira visita à exposição, em um dos sismógrafos (e, mais uma vez, o sismógrafo) algum visitante colocara uma etiqueta com a seguinte inscrição: “Duchamp, 2008”. Pensei: “Preciso registrar isso!” Inúmeras foram as tentativas de fazer uma foto de qualidade. Mas a tecnologia de que dispunha naquele momento, por demais precária, não me permitiu. Por fim, quando desisti, ao levantar-me para seguir o caminho, deparei-me com um grupo de pessoas paradas atrás de mim, contemplando o sismógrafo. Logo (mais uma vez) pensei: “Aí está o legado de Marcel Duchamp!”
Referências bibliográficas DANTO, Arthur. Após o Fim da Arte: A Arte Contemporânea e os Limites da História. São Paulo: Odysseus Editora, 2006. ___________. A transfiguração do lugar-comum: uma filosofia da arte. São Paulo: Cosac Naify, 2005. De DUVE, Thierry. Kant depois de Duchamp. In Arte & Ensaios. Revista do mestrado em História da Arte, EBA/UFRJ. Rio de Janeiro: 2o semestre, 1998. p. 125-152. FILIPOVIC, Elena (org.) [et. al.]. Marcel Duchamp: uma obra que não é uma obra “de arte”. Buenos Aires: Fundação Proa; São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, MAM-SP, 2008. O’DOHERTY, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002. PAZ, Octavio. Marcel Duchamp ou o Castelo da Pureza. São Paulo: Perspectiva, 2002. RAMOS, Francisco Régis Lopes. A danação do objeto: o museu no ensino de história. Chapecó: Argos, 2004.
Danielle Rodrigues Amaro é mestranda em Artes pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (bolsista Capes). Tem atuado como arte-educadora em diversas instituições, entre elas o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, em especial na pesquisa e na ação educativa; como pesquisadora assistente na produção do material educativo de diversas exposições itinerantes realizadas pelo Sesc e, mais recentemente, pelo Museu Histórico Nacional (em comemoração ao bicentenário da transferência da família real para o Brasil). / danielle.amaro@gmail.com
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Participação do GRAP no evento de encerramento do Festival. Foto: Giovanna Piazza.
O campo ampliado da poesia no Festival de Poesia de Berlim 2008 Renato Rezende
No final de 2007, o dr. Thomas Wohlfahrt, diretor do Literaturwerkstatt de Berlim, uma das mais importantes instituições européias de estudo e difusão da poesia do mundo, responsável, entre outros eventos, pelos anuais Festival de Poesia (em julho) e o Zebra, festival de poesia em vídeo (em outubro), esteve no Brasil. Visitou a exposição Poiesis, Poema entre Pixel e Programa, então em cartaz no Cento Cultural Oi Futuro, Rio de Janeiro, com curadoria de André Vallias, Friedrich W. Block e Adolfo Montejo Navas, onde apresentou os filmes vencedores do Zebra em 2007, conheceu diversos poetas e voltou para a Alemanha com a mala cheia de livros de poesia, especialmente de jovens poetas. O tema central (mas não exclusivo) da nona edição do Festival de Poesia de Berlim, de cinco a 13 de julho de 2008, seria a poesia lusófona (incluindo os cerca de 20 idiomas crioulos de base portuguesa), e o Brasil era escala fundamental. Há quase uma década o Festival de Poesia de Berlim estabeleceu-se como o maior e mais importante evento do gênero da Europa, ganhando reputação internacional e recebendo, em seus nove dias e nove noites de intensas atividades, audiência superior a 10 mil pessoas. Durante meses uma equipe formada por jovens universitários selecionou poetas de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique e outras regiões lusófonas do mundo, no intuito de oferecer um panorama da poesia contemporânea em língua portuguesa e organizou os recitais, oficinas de tradução, performances e debates, assim como os intercâmbios literários entre os representantes dos vários países. Se os critérios de seleção dos poetas foram discutíveis (sempre são), cabe ao festival o mérito de almejar promover intercâmbio entre poetas, escritores e tradutores de língua portuguesa buscando fugir das indicações oficiais e do lugar-comum. É notável também que um encontro dessa natureza aconteça em solo alemão. A organização de tais eventos parece não ocorrer, por exemplo, à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa – CPLP, organização que tem como missão instigar a aliança entre os países lusófonos, mas cujas discussões parecem estar restritas à polêmica em torno do acordo ortográfico entre seus signatários. O Festival foi aberto no sábado dia cinco com o evento Weltklang (Som do mundo), em que poetas consagrados de 10 países apresentaram seus poemas no original, sem tradução, ressaltando a plasticidade sonora de cada idioma, de cada poema. Nessa noite, Arnaldo Antunes (que também apresentou show com Chico César, um dos pontos altos do Festival) subiu ao palco para ler seus poemas ao lado de Tomaž Šalamun (Eslovênia), Hiromi Ito (Japão), Israel Bar Kohav (Israel), Inger Christensen (Dinamarca) e Manuel Alegre (Portugal), entre outros poetas. A versatilidade do campo de pesquisa do Festival, promovendo uma
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visão da poesia em uma espécie de campo ampliado, atento a suas manifestações em zonas de fronteira intersemióticas, que exploram seus aspectos sonoros e visuais e sua relação com outros mediums e suportes, é um dos pontos altos do trabalho do dr. Thomas e sua equipe. O projeto “e.poesie”, por exemplo, explorou a relação entre poesia e música no contexto contemporâneo, colocando para trabalhar juntos (a colaboração se desenvolveu durante meses antes do início do Festival) cinco compositores de música eletrônica e cinco poetas. Assim, por exemplo, o norte-americano Sidney Corbett musicou poemas do alemão Johannes Jansen, e o tcheco Vit Zouhar, do austríaco Peter Waterhouse. O spoken-word também esteve presente nas apresentações dos norte-americanos Ursula Rucker (que engajou o público com mensagens feministas de forte conteúdo político e o uso de elementos do jazz, soul e triphop) e Mike Ladd (com elementos do electro ao punk e ao pop). Durante toda a semana houve apresentações e debates sobre poesia digital, videopoesia e graffiti. Na quinta, dia 10, André Vallias (ganhador do Prêmio Sergio Motta de Arte & Tecnologia em 2003 pelo poema interativo “Oratório”) apresentou videopoemas de sua autoria e de Augusto de Campos. No sábado, dia 12, foi a vez do GRAP (grap + graffiti + poesia), um grupo de poetas, grafiteiros, DJs e VJs do Rio de Janeiro, representados no Festival por Claudia Roquette-Pinto, Renato Rezende, Ment, Bragga e Machintal, participar de uma mesa-redonda moderada pela jornalista Julia Reinecke. O Festival foi encerrado no domingo, dia 13, com grande festa pública inspirada no trabalho do GRAP, que o dr. Thomas conheceu no Rio de Janeiro. Quarenta grafiteiros da Alemanha, Espanha e do Brasil fizeram trabalhos baseados em poemas de poetas desses países. Os melhores foram premiados – e, muito embora a maioria tenha simplesmente ilustrado ou, no máximo, procurado uma condição de isomorfia com o texto, houve válida tentativa de ampliar as fronteiras da poesia. A festa terminou com a apresentação do GRAP, um evento multimídia de falas poéticas, música e graffiti. Além desses eventos, vale ressaltar o “Mar de África”, que buscou apresentar as novas vozes da poesia lusófona do continente, e o tradicional Versschumuggel (“Contrabando de Versos”), nos quais poetas do Brasil, Angola, Moçambique e Guiné-Bissau se reuniram com poetas alemães e, por intermédio de um intérprete, trabalharam na tradução de seus poemas. Entre os poetas brasileiros que participaram desse encontro – cujos resultados foram apresentados em sarau durante o Festival e serão publicados em livro no Brasil pela Editora 34 – estão Ricardo Domeneck (residente de Berlim), Paulo Henriques Britto, Angélica Freitas e Marco Lucchesi.
Renato Rezende é poeta. Publicou, entre outros, Passeio (Record, 2001), com o qual recebeu a Bolsa da Fundação Biblioteca Nacional para obra em formação, Ímpar (Lamparina, 2005), ganhador do Prêmio Alphonsus de Guimaraens da Biblioteca Nacional e Noiva (Azougue, 2008). / renato@renato-rezende.com
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