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9 ano 7, volume 1, nĂşmero 9, julho 2006 1


Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Educação e Humanidades Instituto de Artes Reitor Nival Nunes de Almeida Vice-Reitor Ronaldo Martins Lauria Sub-Reitora de Graduação Raquel Villardi Sub-Reitora de Pós-Graduação e Pesquisa Albanita de Oliveira Sub-Reitora de Extensão e Cultura Maria Georgina Washington Diretora do Centro de Educação e Humanidades Maricélia Bispo Diretor do Instituto de Artes Ricardo Basbaum Vice-Diretora do Instituto de Artes Maria Lúcia Galvão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Artes Vera Beatriz Siqueira Concinnitas Revista do Instituto de Artes da UERJ Editora Sheila Cabo Geraldo ART-UERJ Co-editores Luiz Felipe Ferreira ART-UERJ Roberto Conduru ART-UERJ Equipe de Produção Adelino Gomes Bolsista Proiniciar UERJ Claudia Cerqueira Bolsista Estágio Interno Complementar UERJ Lia Gauterio Bolsista Estágio Interno Complementar UERJ Lygia Santiago Bolsista Proatec UERJ Mariana Maia Bolsista Extensão UERJ Thaís da Silva Bolsista Proiniciar FAPERJ

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Conselho Editorial Alberto Cipiniuk ART-UERJ / PUC-RJ Arlindo Machado USP / PUC-SP Carlos Zilio UFRJ Christine Mello SENAC-SP Cristina Salgado ART-UERJ / PUC-RJ Eduardo Kac Art Institute of Chicago Evandro Salles Artista plástico e crítico de arte Gilles Tiberghien Paris I Gustavo Bonfim PUC-RJ Hélio Fervenza UFRGS Hugo Segawa USP Isabela Nascimento Frade ART-UERJ Jorge Luiz Cruz ART-UERJ José Thomaz Brum PUC-RJ Kátia Maciel UFRJ Lorenzo Mammi USP Luciano Migliaccio USP Luis Andrade ART-UERJ

Manuel Salgado UFRJ Márcia Gonçalves IFCH-UERJ Maria Beatriz de Medeiros UnB Maria de Cáscia Frade FAV-RJ Maria Luiza Saboia Saddi Artista plástica Mario Ramiro USP Michael Asbury Camberwell College of Art Milton Machado UFRJ Nanci de Freitas ART-UERJ Nuno Santos Pinheiro Fac. de Arq. de Lisboa Paulo Sergio Duarte UCAM Rafael Cardoso Denis PUC-RJ Ricardo Basbaum ART-UERJ Rodrigo Naves CEBRAP Rogério Luz UFRJ Sonia Gomes Pereira UFRJ Vera Beatriz Siqueira ART-UERJ Vitor Hugo Adler Pereira IL-UERJ


Sumário 5

Apresentação Dossiê arte e arquitetura

6 10 20 25 32 40

Carlos Eduardo Comas O céu brasileiro de Siza Yve-Alain Bois Cubístico, cúbico e cubista Malu Fatorelli O espaço entre as imagens: ensino de arte/obra de arte Collin Rowe Da arquitetura conceitual Guilherme Wisnik O ‘informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas Tom Vanderbilt Cidade circuito

Ensaio de artista 46

Paulo Mendes da Rocha MNBA

Dossiê desdobramentos, redes e labirintos 58 64 70 77 82 90 97

Luiz Cláudio da Costa Arte como tecnologia: do fazer ao pensar Carlos Nóbrega Arte como um campo de interações Ricardo Basbaum O artista como pesquisador Luis Andrade Póslítico_artecnologia José Da Costa A cena de Os Sertões: imagens em rede e recepção corporal Rogerio Luz Arte da rede e arte do labirinto Kátia Maciel Cinema e presença – notas sobre a exposição Mantenha distância

Artigos 100 110 126 144 151 165

Felipe Scovino As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha Daniela Vicentini Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares Danrlei de Freitas Azevedo Aparência pop – uma leitura a partir da Teoria Estética de Adorno Marco Aurélio Brandt Fotografia: como funciona? Antonio Vargas A influência do mito do herói na aceitação das práticas artísticas Fabíola Silva Tasca A intervenção como meio – considerações sobre certas práticas artísticas contemporâneas

Tradução 180

Ernst Bloch Educação formativa, manejo da forma, ornamento

Resenhas 191 194 201

Marcelo Campos Olho d´água: gestualidade e autoficções na arte de Efrain Almeida Leila Danziger Séculos de melancolia Felipe Ferreira A cidade do samba

204 206 207

Abstracts Sobre Concinnitas Normas para publicação 3


Revisão Maria Helena Torres Projeto Gráfico Eliane Bettocchi Designer Responsável Lygia Santiago Produção Gráfica DIGRAF-UERJ Capa Paulo Mendes da Rocha. MNBA, 2005 Quarta capa Gordon Matta-Clark. Conical Intersect, Paris, 1975 Álvaro Siza Vieira. Museu Iberê Camargo, Porto Alegre, 1998 (projeto)

Catalogação na fonte UERJ/REDE SIRIUS/PROTEC C744

Concinnitas: arte, cultura e pensamento / Jorge Luiz Cruz, ed. - Vol. 0, n. 0 (nov. 1997)- . Rio de Janeiro: UERJ, DEART, 1997v. Assumiu a editoria a partir do vol.4 n.1 Sheila Cabo Geraldo. Semestral ISSN 1415-2681 1. Arte - Periódicos. 2. Cultura - Periódicos. I. Cruz, Jorge Luiz. II. Geraldo, Sheila Cabo. III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Artes. CDU 007

2006 Concinnitas é uma publicação semestral do Instituto de Artes/ART, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Arte. Este volume recebeu apoio da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e da Associação de Pesquisa em Arte Reis Junior (APARJ). Os artigos são de responsabilidade dos autores e não refletem a opinião do conselho editorial.

Concinnitas 4

[http://www.concinnitas.uerj.br/abertura.html]


Apresentação

Para abrir este número de Concinnitas, a editoria organizou um dossiê sobre arte e arquitetura. Como escreve Paul Virilio,1 ao analisar o processo de constituição da modernidade, Walter Benjamin 2 entendera que, como a fotografia e o cinema, a arquitetura fornecia a matéria essencial para a forma coletiva, nova e revolucionária da arte. Enquanto espaço construído e habitado, o espaço arquitetônico moderno não seria apenas o espaço do material e da aparência, mas aquele que se constituiria enquanto imagem simultânea, que se abre a todos os níveis de experiência, desde a visual e a tátil até a que envolve o processo de rememoração e despertar, implícitos no ser da arte, como o pensador identificara ao estudar as Passagens de Paris, construídas no século XIX. Para constituir o dossiê, então, foram selecionados artigos que, em seus diversos aspectos, debatem a arte e a arquitetura como relações e sintomas do moderno e do contemporâneo. Publicamos, então, os textos dos arquitetos, críticos e historiadores da arquitetura Carlos Eduardo Comas, Collin Rowe e Guilherme Wisnik, assim como os dos críticos e teóricos da arte e da arquitetura YveAlain Bois e Tom Vanderbilt. Ainda integrando o dossiê, publicamos o texto da artista e arquiteta Malu Fatorelli, que trata a arquitetura como espaço implícito no pensamento artístico. Apresentamos, como ensaio de artista, o projeto que o arquiteto Paulo Mendes da Rocha desenvolveu para a readequação do Museu Nacional de Belas Artes, em 2005, projeto que, apesar de não executado, é um exemplo das relações que o tema do dossiê aborda. Enquanto colaboração para o debate em torno da arquitetura, publicamos, ainda, o artigo “Educação formativa, manejo da forma, ornamento”, do filósofo e teórico da arte Ernst Bloch, uma referência no debate sobre a arte e a arquitetura enquanto utopia moderna e, por que não, contemporânea. Este número conta também com o dossiê “Desdobramentos, redes e labirintos”, cujos textos foram apresentados no evento Rio Cena Contemporânea pelos artistas e pesquisadores Luiz Cláudio da Costa, Carlos Nóbrega, Ricardo Basbaum, Luis Andrade, José Da Costa, Rogerio Luz e Kátia Maciel. Completam a publicação os artigos que recebemos dos ensaístas Felipe Scovino, Daniela Vicentini, Danrlei de Freitas Azevedo, Marco Aurélio Brandt, Antonio Vargas e Fabíola Silva Tasca, assim como as resenhas dos pesquisadores e professores Marcelo Campos, Leila Danziger e Felipe Ferreira, cujo a colaboração agradecemos. Sheila Cabo Geraldo 1 Virilio, Paul. Espaço crítico. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. 2 Benjamin, Walter. “A obra de arte na época da reprodutibilidade técnica”. In Textos escolhidos. São Paulo, Abril Cultural, 1980. 5


Carlos Eduardo Comas

Ă lvaro Siza Vieira. Museu IberĂŞ Camargo, Porto Alegre, 1998 (projeto)

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O céu brasileiro de Siza

O céu brasileiro de Siza Carlos Eduardo Comas* O autor apresenta o edifício da nova sede da Fundação Iberê Camargo, que está em fase final de construção, analisando-o em relação a outras obras d e s e u a u t o r, Á l v a ro S i z a V ie i ra ; à t i p o l o g ia arquitetônica (especialmente a de museus); à arquitetura moderna e contemporânea, no Brasil e internacionalmente; à paisagem e ao contexto urbano da cidade de Porto Alegre. Álvaro Siza Vieira, Fundação Iberê Camargo, museu de arte

Iberê Camargo foi o principal pintor expressionista brasileiro. O museu da fundação que leva seu nome está na fase final de construção e é o primeiro trabalho do arquiteto português Álvaro Siza no país que já foi colônia portuguesa. Apesar de seus interiores ainda estarem inacabados, o prédio já alterou o horizonte de Porto Alegre, metrópole de três milhões de pessoas situada a meio caminho entre São Paulo e Buenos Aires, e sede de uma influente bienal de arte latinoamericana. Impecavelmente executada, a massa de concreto branco eleva-se de um terreno plano, entre o declive verde de um promontório e uma avenida de tráfego intenso ao longo do rio Guaíba. Até onde se pode ver, o museu é Siza em sua melhor forma, contrariamente à opinião de Richard Ingersoll. Quando o projeto ganhou o Leone d’Oro na Bienal de Veneza de 2002, o crítico norte-americano o menosprezou, dizendo ser uma “versão opaca do High Museum de Richard Meier, com um átrio cavernoso abraçado por passarelas Tradução Jason Campelo *Carlos Eduardo Comas é graduado em Arquitetura – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Planejamento Urbano – University of Pennsylvania e doutor em Projet Architectural et Urbain – Université de Paris VIII. Atualmente é professor titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde atua como responsável pela disciplina Projeto Arquitetônico II, no curso de graduação em arquitetura e urbanismo, e pelas disciplinas Arquitetura Moderna Brasileira I e II, no curso de pós-graduação em arquitetura. Tem publicado extensamente sobre a arquitetura e o urbanismo modernos brasileiros e elaborado um número significativo de projetos de arquitetura e urbanismo. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

fechadas e desajeitadas” (http://www.techstrategy.com). É claro que os dois museus compartilham o mesmo esquema básico, assim como o Cassino de Niemeyer, agora Museu de Arte da Pampulha. Uma espinha de circulação em forma de L cola-se a um prisma dividido em quatro partes, três delas contendo galerias sobrepostas, enquanto a parte interna torna-se um átrio coberto. Como Siza uma vez notou, formas em L (como em seu trabalho para a Fundação Granell) e em U (como em seu projeto do Museu Serralves) são ferramentas disciplinares que se prestam a inumeráveis aparências. A opacidade e solidez de seu trabalho brasileiro são justificadas por necessidades museográficas, a orientação oeste e o ruído da avenida. Contudo, ecoando os truques de Lina Bo Bardi no Sesc-Pompéia, as 7


Carlos Eduardo Comas

aberturas que, vistas de fora, parecem ser mínimas se ampliam telescopicamente vistas por dentro, aqui enquadrando o rio, o céu, a vegetação do morro ou o Centro da cidade sobre a península a uns 15 minutos de distância. Siza produziu uma máquina de contemplação em mais de um sentido. Esse mirante também é um marco. Longe de ser cavernoso mesmo inacabado, o átrio curva-se para enfrentar a avenida de acesso, abraçado por um sistema de rampas duplas conectadas a elevadores em suas extremidades. Sem interesse na planta e na fachada livres, Siza não emprega uma estrutura de esqueleto. Compartilha, porém, com Le Corbusier e Wright a fascinação por rampas. As internas são abertas e seguem a parede curva do átrio. Aquelas fechadas nas passarelas externas libertam-se progressivamente para transformarse em alças e gerar um impressionante átrio descoberto. A distância parecem um elmo de Henry Moore, ante um vaso esplêndido que poderia ter sido desenhado por Aalto. Sua falta de jeito é definitivamente planejada, de uma maneira que poderia ter sido orientada por Lucio Costa e Lina Bo: um lembrete de que a perfeição não pertence a este mundo, replicando surrealmente a ingenuidade maravilhada e maravilhosa de um desenho de criança. No canto oposto do térreo, que acomodará a recepção e a loja do museu, um corte convexo cria uma plataforma de serviço coberta e coopera com as rampas aéreas para aliviar o volume aparente do museu de quatro andares. Alargado na parte superior, ele se torna um contraponto feliz ao declive. E o Guggenheim de Wright vem de novo à mente, assim como os museus de Niemeyer em Caracas e Niterói. Mas ao contrário da geometria monótona que distingue esses exemplos — respectivamente um cone invertido e torcido e uma pirâmide invertida e uma taça— a amarração das rampas em suas extremidades enfatiza dois momentos de verticalidade bem como uma simetria diagonal, assim vitalizando a estratificação das fachadas principais, cujo viés figurativo é exagerado pelas elevações chapadas e chãs em frente ao declive. De fato, esse volume emerge de uma plataforma que cobre o subsolo com depósitos, escritórios de administração, uma biblioteca, um auditório e duas oficinas, assim como a garagem sob a avenida. E ele não se ergue autônomo, é complementado por uma ala inferior. Triangular de modo a se encaixar na outra metade do terreno, em forma de flecha, esse anexo é um prelúdio esparramado ao museu propriamente dito. Um poço de luz separa o volume que contém as seções superiores das oficinas da lanchonete que faz face ao átrio 8

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O céu brasileiro de Siza

Álvaro Siza Vieira. Museu Iberê Camargo, Porto Alegre, 1998 (projeto)

descoberto. Essas partes fragmentadas lembram placas de armadura sobre um braço estendido, intensificando as conotações antropomórficas das rampas, mas surpreendentemente abertas. Quando se anda em direção ao museu flanqueando as oficinas, uma janela permite ao mesmo tempo visão dos interiores e do morro além — através das grandes aberturas na parede oposta. Duas outras janelas panorâmicas aliviam a esquina da lanchonete. Uma delas encara o rio e o justamente celebrado pôr-do-sol de Porto Alegre, a outra enfrentando as portas do museu. A fragmentação da ala reforça o peso do volume dominante, enquanto a escala doméstica modera sua monumentalidade. À média ou longa distância, a composição estendida tem a densidade de um bloco urbano sem perder as características de um bloco isolado no parque. A ambivalência é fator constituinte do empreendimento brasileiro de Siza, e isso parece ser apropriado para os muitos que pensam que a ambivalência é um fator constituinte da “brasilidade”.

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Yve-Alain Bois

Pablo Picasso (1881-1973). Garrafa de Vieux Marc, Taça e Jornal. Carvão, colagem e pinos sobre papel, 63 x 49cm, 1913. Musée National d'Art Moderne, Centre Georges Pompidou, Paris 10

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Cubístico, cúbico e cubista

Cubístico, cúbico e cubista Yve-Alain Bois* Para Francesco Passanti Questionando a existência de uma arquitetura cubista, o autor recusa aproximações morfológicas: seja o entendimento do cubismo como um estilo geometrizante, ou como uma operação com formas puras. Entendendo o cubismo como um sistema semiológico, a partir da subversão das condições de representação empreendida por Picasso e Braque, considera cubistas as obras arquitetônicas que resultam do jogo estruturalista no qual signos arbitrários têm definida sua significação. Cubismo, arquitetura moderna, Le Corbusier

Há uma arquitetura cubista? Talvez não. Por exemplo, não vejo nada de cubista – mas nada mesmo – na celebrada Maison Cubiste de DuchampVillon. E, apesar de possuir a seu respeito conhecimento apenas limitado, eu poderia dizer o mesmo da chamada arquitetura “cubista” de Praga. É tudo uma questão de definição. Minha definição do cubismo é decididamente restrita: tem pouco a ver com o estilo geometrizante1 que provocou agitações por todo mundo ocidental nos primeiros anos do século XX e se desdobrou em art déco uma década depois. De preferência, minha definição leva em conta exclusivamente a análise das condições da representação pictórica, e sua subversão deliberada, feita por Picasso e Braque. Em outras palavras, aferro-me à distinção acerca do trabalho desses dois artistas, primeiramente colocada por Daniel-Henry Kahnweiler, que depois foi mais elaborada por John Golding e Edward Fry, e se refere aos Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru *Yve-Alain Bois é professor na School of Historical Studies, no Institute for Advanced Study, em Princeton. Publicou Painting as Model, Formless: A User's Guide (com Rosalind Krauss) e Matisse and Picasso. 1 A palavra inglesa é geometrizing. Optamos por um neologismo por entender não só que as obras cubistas, pelo recurso à geometria, trariam a iniciativa de colocar a nu a questão representativa, como também que as próprias linhas, combinadas, induziriam o olhar do espectador a um movimento dinâmico e ininterrupto de construção de formas para o qual o termo “geometrizante” forneceria uma perspectiva mais sugestiva. (NT) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

trabalhos do período de 1907 a 1914. Distinção essa que também serve a todos os outros pintores e escultores comumente colocados sob o pendão do cubismo (sobretudo os tão aplaudidos “teóricos” do “movimento”, Gleizes e Matzinger). Apesar de tal distinção poder ser feita de muitas outras maneiras, o que há de mais eminente nela é a percepção de que o cubismo de Braque e Picasso teria sido mais ou menos um caso privado, enquanto o de outros pintores ocupava os Salões e era vastamente discutido na imprensa. A questão do eixo público-privado, apesar de extrínseca às próprias obras, é notavelmente consistente. Foi, em grande parte, justamente com o objetivo de não serem confundidos com os outros que Braque e Picasso, sob a recomendação de Kahnweiler, deixaram sua arte relativamente indisponível para o grande público na França (e isso não é o mesmo que dizer que não 11


Yve-Alain Bois

havia público para sua arte, mas sim que essa arte era extrema e voluntariamente limitada).2 De fato, uma exceção pode ser feita para Juan Gris e Fernand Léger. Apesar de ambos terem exercido importante papel na cena do cubismo público, esses artistas não podem ser completamente colocados nesse cenário e não se equiparam a seus colegas. É certo que o Gris do período 1913-1914, particularmente em seus papiers collés, manteve um diálogo bem informado com a produção recente de Picasso e Braque.3 Já Léger, apesar de ter a princípio trilhado o caminho de Gleizes, Metzinger e companhia (aos quais passaremos a chamar, daqui em diante, de G. M. & Cia.), ou seja, o de empreender uma imitação do cubismo analítico de Picasso e Braque sem dele entender muito, logo desenvolveu seu estilo próprio, baseado na recombinação de elementos seletos e emprestados de Braque e Picasso – entre outros, a busca de um “modo unitário de notação”, conforme dito por Pierre Daix,4 e da dissociação entre armação linear, graduação e cor. (Além disso, a forma exclusiva de cubismo de Léger levouo a cruzar a soleira da abstração em 1913 e, novamente, em 1924, sendo que dessa segunda vez tal ultrapassagem se deu como uma “síntese” intencional entre a pintura e a arquitetura. Ademais, há o fato de que, de todos os pintores cubistas, até onde conheço, ele foi o único que em vários momentos de sua vida dedicou atenção à arquitetura; isso o coloca em uma categoria exclusiva. Mas o tópico “Léger e a arquitetura”, por mais fascinante que seja, já vem sendo bem explorado por Christopher Green5 e também por Robert Herbert em seu artigo6 e desloca-nos da questão que aqui nos preocupa, ou seja, pode-se ou não falar em uma arquitetura cubista.) É tudo uma questão de definição, eu disse, e o cubismo, desde seu princípio, tem sido para muitos o “movimento” que emergiu em1909-10 e foi aglutinado em dois Salões (o des Indépendants e o d’Automne) em 1911, consolidando-se nos mesmos Salões em 1912, como também na exposição Section d’Or, ainda nesse ano, e sendo definitivamente lançado no livro de Gleizes e Metzinger. Picasso e Braque não têm papel nisso (simplesmente condescenderam): os heróis são os inevitáveis G. & M. e também artistas como La Fresnaye, os irmãos Duchamp e, até mesmo – ainda que obviamente de maneira diafanamente perpendicular –, Marie Laurencin. Tomemos o caso de um dos primeiros dissidentes do movimento, como Le Fauconnier. Apesar de sua fama ter correspondido a uma pequeníssima parte no todo do movimento (por volta de 1912 mesmo G. & M. já o tinham como figura de outrora, excluindo-o da exposição do Section d’Or), sua reputação vacilante durante o período 1909-1911 oferece-nos o exemplo mais saliente de uma linha divisória no eixo do público-privado. Além disso, quando sua reputação começou a tropeçar em casa, encontrou outros caminhos: seus textos foram largamente publicados em muitos países, e no 12

2 Quase que desde o início, pelo menos de 1911 em diante, a literatura sobre o cubismo reconheceu tanto a lacuna entre cubismo público e privado quando tentou fechá-la, conforme foi feito de forma abundantemente clara na antologia dos textos da época escritos por Edward Fry, Cubism (Londres: Thames and Hudson, 1966). A situação não mudou muito nos dias de hoje. Ninguém nega a existência de uma grande divisão, e todo mundo concorda que poucas obras de Braque e Picasso tenham ficado à mostra, em qualquer momento, nas paredes da minúscula galeria Kahnweiler; e ainda que alguns acadêmicos tendam a exagerar o número de visitantes nos ateliês desses dois artistas (Patrícia Leighten, por exemplo, firma em 300 o número de visitantes à mostra pública, apesar de não oferecer nenhuma evidência para isso. Em contraste, ao falar particularmente do período Bateau-Lavoir, Pierre Daix nos lembra que mesmo testemunhas privilegiadas, como Kahnweiler, Salmon e Gertrude Stein, tinham conhecimento muito limitado do que acontecia no ateliê de Picasso no período de 1908-1909. Cf. discussão que seguiu o ensaio de Theodore Reff in Picasso and Braque: A Symposium, editado por Lynn Zelevansky [Nova York: Museu de Arte Moderna, 1992, p. 44-56.) Por outro lado, o “cubismo” é discutido de maneira contínua como uma entidade homogênea, e as teorias de Gleize e Metzinger ainda são lidas como fontes de valor explicativo no que diz respeito à obra de Braque e Picasso; como se a divisão a ponto de ser admitida devesse ser repudiada no que tange à análise das obras. Uma exceção na literatura atual nos é fornecida pela análise de David Cottington: ele usa o conceito de “subcultura”, cunhado na escola de sociologia de Birmingham, com o objetivo de definir o público limitado de Picasso e Braque (Kahnweiler, Stein e daí por diante) como um grupo social específico com expectativas artísticas específicas; também para destruir o mito da “torre de marfim” que é implicado pela oposição público/privado. De qualquer maneira, ao fazer isso, Cottington não consegue erradicar a oposição, e até mesmo a fortalece (Cf. Cottington, “Cubism, Aestheticism, Modernism”, in Picasso e Braque: A Symposium, p. 58-72.) 3 A respeito dessa questão específica, cf. Christine Poggi, In Defiance of Painting (New Haven: Yale University Press, 1992), especialmente p. 105-123. Para uma realvaliação séria de Gris, em geral, cf. Christopher Green, Juan Gris, (New Haven: Yale University Press, 1992). 4 Veja Pierre Daix e Joan Rosselet, Picasso: The Cubist Years, 1907-1916 (Boston: New York Graphic Society; London: Thames & Hudson, 1979). Para uma discussão da noção do “modo unitário de notação” ver meu “The Semiology of Cubism”, in Zelevansky, ed., Picasso and Braque: concinnitas


Cubístico, cúbico e cubista

Raymond Duchamp-Villon (1876-1918). Fotógrafo anônimo. Fachada da Maison Cubiste, 1932 (modelo). Foto: Arquivos André Mare, Paris A Symposium. Sobre a imitação cabeça oca de Picasso e Braque pelos outros artistas “cubistas”, eu não estou de modo algum propondo algo novo aqui: isso aparece muito cedo na literatura (primeiro, talvez, em “Anedoctal History of Cubism” de André Salmon, de 1912, traduzido em Cubism, de Edward Fry, p. 81-90), e é aceito por muitos especialistas. Entretanto, apesar de os textos clássicos sobre o cubismo, como os de Golding (Cubism: A History and an Analysis 1907-1914, 3d ed. [Cambridge: Belknap Press of Harvard University Press, 1988]) e Fry, proverem amplas evidências consolidando essa linha de argumentação, eles paradoxalmente tiveram o efeito oposto e contribuíram para a percepção comum do cubismo como um movimento homogêneo no qual haveria diferenças de grau (em qualidade) e não de natureza entre a arte de um Picasso e a de um Gleizes. Além disso, especialistas em Gleizes, Metzinger e outros artistas cubistas “públicos” tenderam a negar a validade do argumento de Salmon como um clichê. Eu estou simplesmente afirmando que, por vezes, clichês são justificados. 5 Cf. Christopher Green, Léger and the AvantGarde (New Haven: Yale University Press, 1976). 6 Herbert, Robert L. “‘Architecture’ in Léger’s essays, 1913-1933". Blau, Eve & Troy, Nancy (editores) Architecture and Cubism. Cambridge: The MIT Press, 1997, p. 77-88. (NT) 7 Sobre a fama precoce de Le Fauconnier, cf. Ann H. Murray, “Henri Le Fauconnier’s Das Kunstwerk”: um relatório inicial sobre a Teoria Estética Cubista e seu entendimento na Alemanha”, Arts Magazine 56, n. 4 (dezembro de 1981), p. 125-131. A respeito da carreira holandesa de Le Fauconnier, cf. o excelente artigo de Jan van Adrichem, “The Introduction of Modern Art in Holland, Picasso as pars pro toto”, Simiolus 21, n. 3 (1992), p. 162-211. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

final de 1912 ele já havia participado de exposições na Rússia, Alemanha (incluindo uma retrospectiva no Museu Folkwang, em Hagen, uma espécie de Meca primitiva do Modernismo), Suíça, Bélgica e Holanda. É verdade que, quando ele se mudou para este último país (em 1914), já perdera grande parte de seus defensores, mas também é fato que, na exposição em que os artistas holandeses descobriram o cubismo – a primeira exposição organizada pelo Moderne Kunst Kring no outono de 1911, em Amsterdã –, ele desfrutava de muito mais prestígio do que Braque ou Picasso. Mesmo Mondrian, durante um breve instante, foi enganado.7 13


Yve-Alain Bois

Prestemos atenção, agora, ao trabalho mais celebrado de Le Fauconnier, L’abondance, comprado pelo crítico e artista holandês Conrad Kickert logo após sua (muito aclamada) exposição no Salon des

Raymond Duchamp-Villon (1876-1918). Fotógrafo anônimo. Fachada da Maison Cubiste, 1932 (modelo). Foto: Arquivos André Mare, Paris

Indépendants de 1911 e mais tarde doado ao Gemeentemuseum, em Hague. É fácil concordar com Golding: nesse trabalho Le Fauconnier “simplesmente apodera-se do aspecto mais acessível do cubismo, ou seja, o tratamento das formas em termos de facetas simples, angulares, como sendo uma maneira fácil de lidar com um objeto monumental. Não há suspensão atmosférica, e a perspectiva é completamente tradicional. As casas e a estrada têm um ponto de fuga mais ou menos consistente (a rua indubitavelmente conduz o olho para seu centro, para o fundo), e há uma diminuição lógica de escala, de um plano para outro”.8 Resumindo, é uma pintura pompier do século XIX sobre cuja superfície foram rapidamente borrifados alguns cézannismos, como na urgência de correr atrás do trem que já vai saindo da estação.9 É claro que ele perde o trem – não só porque lá pelo ano de 1911, desde sua investigação inicial sobre a obra de Cézanne, Picasso e Braque já estavam quilômetros à frente, mas também porque Le Fauconnier não tinha a menor idéia da motivação que compelia Picasso e Braque à geometrização da figura (e de tudo mais), pelos idos de 1908-09. Agora, qualquer um que deseje considerar tal obra cubista – conforme vários críticos contemporâneos abundantemente fizeram – de fato deve também aceitar a Maison Cubiste de Ducham-Villon: assim como Le Fauconnier faz alguns ajustes cosméticos na superfície de um quadro de Salão do século XIX, Duchamp-Villon polvilhou uma versão burguesa oitocentista do hotel particulier Luís XVI com partículas de facetamento angular. 14

8 Golding, Cubism, p. 158-159. 9 Penso que van Adrichen é muito indulgente com Le Fauconnier quando relaciona L’abondance à escola da Alegoria de Outono, de Botticelli, no Musée Conde em Chantilly (“Introduction of Modern Art in Holland”, p. 165). Em vez disso, eu teria procurado uma versão estilo Bourguereau, do mesmo objeto. concinnitas


Cubístico, cúbico e cubista

De minha parte, já que são necessários de rótulos, eu chamaria esse tipo de trabalho não de cubista, mas de cubístico. *** O projeto parcialmente realizado de Duchamp-Villon representa a primeira tentativa de expandir o “cubismo” ao território da arquitetura. Parece-me que a segunda tentativa de realizar tal desejo por expansão veio dos arquitetos. A mediação foi suprida pelo discurso acerca do cubismo (e não só aquele dedicado ao cubismo público, já que até mesmo Kahnweiler produziu uma versão do argumento – versão kantiana –, que dizia respeito aos próprios Braque e Picasso): um dos clichês mais persistentes da literatura referente ao cubismo desse período de fato tem a ver com a idéia de que o cubismo se relaciona à “essência” atemporal do objeto (na medida em que é oposta a sua “aparência” contingente). Claro que isso nada tem a ver com Picasso, mas mostrouse extremamente popular. Ouso dizer que isto também não tem muita relação com Braque, apesar de ter sido ele quem inaugurou esse topos idealista, em 1908.10 A invocação às formas geométricas do Filebo de Platão foi um acontecimento relativamente tardio em toda essa peleja (de acordo com Fry, a primeira ocorrência pode ser encontrada em um artigo de Ozenfant, em 1916),11 porém, em 1912, o despropósito acerca da “essência” e da “verdade absoluta” já estava em todo lugar (nos escritos de Roger Allard, Olivier-Hourcade, Jacques Rivière, Maurice Raynal, entre outros), variando apenas nos graus de sua crueza. Se por acaso menciono o nome Ozenfant aqui, certamente o faço porque a vertente neoplatônica foi elevada por ele e por seu acólito, Le Corbusier, ao nível de uma plataforma programática. De qualquer maneira, esse purismo pode ser um mero epifenômeno, e a translação que se testemunha do discurso sobre pintura para a arquitetura, na época imediatamente posterior à Primeira Guerra Mundial, talvez acontecesse mesmo sem tal purismo. (Pode-se recordar, entre outros exemplos, a invocação ao cubismo de J. J. P. Oud em muitos textos, escritos a partir de 1916, completamente ignorantes a respeito da posição de Le Corbusier – ignorância essa que, aliás, levou Oud, ao ler o Por Uma Nova Arquitetura, de Le Corbusier, a acreditar que fora plagiado). Mas, se o purismo não era essencial para que a translação 10 Cf. declaração de Georges Braque a Gelett Burgess, primeiramente publicada em 1910, mas possivelmente de data anterior, durante o outono ou inverno de 1908: “Eu quero expor o Absoluto, não simplesmente a mulher factícia”. Reimpresso in Fry, Cubism, p. 53. 11 O texto de Ozenfant foi publicado em L’Elan, n. 10 (1 dezembro de 1916). Cf. Fry, Cubism, p. 153. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

mencionada acima ocorresse, a própria translação deve ser tida como um sinal da potência do discurso sobre o cubismo público daquele tempo. Arquitetos, lutando contra as ordens clássicas e a ornamentação, e a favor da verdade dos materiais e dos meios de construção, foram levados a saudar a geometria pura como seu código retórico mestre. Eles não precisavam do cubismo (nem de sua versão purista diluída) 15


Yve-Alain Bois

para isso: até onde sabemos, nem Tony Garnier, nem Adolf Loos devotaram muita atenção a isso. O que parece ter atraído os arquitetos é o fato de que, graças ao debate que envolvia o cubismo público na imprensa, uma explicação modernista tinha sido amplamente divulgada (a “lei da economia”, a pintura como uma entidade autônoma, etc.), um discurso ready-made12 de que eles – ou, com muito mais freqüência, seus campeões – poderiam facilmente se apropriar. Não importava que houvesse alguns poucos cubos precisos na pintura cubista: os arquitetos advogavam em prol dos prismas – não é? – e cubos eram prismas, não? Havia algumas vantagens óbvias em trabalhar em conjunto com os “cubistas”. Tal combinação nominalista foi suficiente para garantir o sucesso de toda uma literatura devotada ao efeito da arte cubista na arquitetura do século XX. Para poder ser rotulada cubista, foi suficiente que a arquitetura fosse simplesmente cúbica. Há versões mais sofisticadas de tal amálgama na crítica arquitetônica, segundo as quais não é o cubo a ser invocado, e sim outros itens selecionados a partir da coleção de clichês que abundam na literatura sobre o cubismo. O mais penetrante é dado por Sigfried Giedion, em Space, Time and Architecture, um livro outrora lido como uma grande, se não a principal, avaliação histórica do movimento moderno de arquitetura. Endossando totalmente a leitura idealista do cubismo mencionada acima, Giedion repete a hipótese, formulada por Metzinger em 1911 e servida ad nauseam na maioria dos relatos acerca do cubismo analítico. De acordo com essa hipótese, os pintores cubistas “haviam-se permitido mover ao redor do objeto, de modo a dar, sob o comando da inteligência, uma representação concreta dele, feita de muitos aspectos sucessivos”, dessa maneira incluindo o tempo em seu arsenal pictórico.13 Cubismo como um empreendimento cognitivo, cubismo como a legitimação de um conceito moderno de espaço-tempo: torna-se desnecessário discriminar os inumeráveis textos escritos nessas linhas, freqüentemente apresentando a invocação direta a Bergson (se não a Einstein). Eu seria o último a negar a fascinação de G. M. & Cia. pela filosofia de Bergson e seria até levado a aceitar que ela teve algum efeito na arte deles (eu seria levado a aceitar se me dessem uma descrição satisfatória desse efeito em suas obras efetivas). Mesmo assim, eu não aceitaria o reforço negligente de Giedion sobre o “espaço-tempo” e os múltiplos pontos de vista do cubismo em geral, pois nego categoricamente que o cubismo de Picasso e Braque tenha qualquer coisa a ver com isso. Há que ter em mente: eu não sou o primeiro a protestar. A quem interessar possa, 16

12 Mantivemos o termo em inglês por causa de sua associação imediata aos ‘ready-mades’ propriamente ditos, mas o autor parece fazer um uso dúbio da expressão, porque o empregaria tanto no de discurso ‘ready-made’ quanto (preferivelmente, devido ao teor crítico do ensaio) de discurso “pré-fabricado”. (NT) 13 Jean Metzinger, “Cubism and Tradition” (1911), trans. Em Fry, Cubism, p. 66-67. Veja Sigfried Giedion, Space, Time and Architecture: The Growth of a New Tradition (Cambridge: Harvard University Press, 1941 – Espaço, Tempo e Arquitetura. São Paulo: Martins Fontes, 2004), p. 357. concinnitas


Cubístico, cúbico e cubista

sugiro a extraordinária demonstração de Leo Steinberg em “The Algerian Women and Picasso At Large”, em que, para todos os efeitos, aquele cubismo talvez represente o único momento, na longa carreira de Picasso, em que sua “fantasia de um observador-Argos, cujos olhos vêem de centenas de pontos” encontra temporariamente algum abrigo. “Um objeto cubista nunca é apreensível a partir de muitos lados de uma só vez, nunca o aspecto reverso disso é concebível, e nenhum objeto, em uma obra de cubismo ‘analítico’ de Picasso ou Braque, aparece como a soma de visões diferentes”, conclui Steinberg.14 O clichê do tempo-espaço no livro de Giedion é seguido por outro, o da “transparência” dos planos sobrepostos e interpenetrantes, o que poderia caracterizar a sintaxe do cubismo analítico. Estou longe de ter certeza de que o termo “transparência” tenha sido particularmente bem escolhido para o que procura descrever (uma disjunção radical entre desenho e gradação, as contradições espaciais que essa disjunção produz). Mas, mesmo que se pudesse admitir que a transparência tem o papel principal no cubismo, o que têm a ver os planos grandes e sobrepostos da L’Arlésienn, de Picasso (exemplo dado por Giedion mais adiante)15, ou seu Retrato de Vollard (para nos referirmos a uma obra mais conhecida) com a austera fachada de vidro da Bauhaus de Gropius? Entre aqueles que contestaram a importância da “transparência” na pintura cubista, Colin Rowe e Robert Slutzsky rapidamente denunciaram a associação superficial de Giedion, caracterizando a parede de vidro de Gropius como uma “superfície sem ambigüidade aplicada sobre um espaço sem ambigüidade”.16 O “cubismo” da Maison Cubiste ao menos era baseado em sua similaridade a alguma coisa como, por exemplo, L’abondance, de Le Fauconnier (nego o cubismo de ambos, mas aceito inteiramente a afinidade entre os dois); não há a menor similaridade entre os planos flutuantes de Picasso e a tela seca de Gropius. O único elo possível entre eles é a escassez de linguagem (o fato de que o mesmo termo, “transparência”, seja usado para denotar fenômenos visuais expressamente diferentes). 14 Leo Steinberg, “The Algerian Women and Picasso at Large”, in Other Criteria: Confrontations with Twentieth Century Art (Londres: Oxford University Press, 1972), p. 160. 15 Giedion, Space, Time and Architecture, p. 402. 16 Colin Rowe e Robert Slutzky, “Transparency: Literal and Phenomenal” (1963), in Colin Rowe, The Mathematics of the Ideal Villa and Other Essays (Cambridge: MIT Press, 1976), p. 167. (“Transparência: literal e fenomenal”. Gávea, Rio de Janeiro, PUC-Rio, setembro, 1985, p. 33-50.) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

*** Ao criticar a atração mal concebida de Giedion

por Gropius,

substituindo-o pela arquitetura de Le Corbusier, Rowe e Slutzky nos dão uma pista de como a questão referente à existência de uma arquitetura cubista (em oposição à cubística e cúbica) pode ser respondida. Aquilo que eles designam como “transparência” na villa em Garches de Corbusier, e para o qual acham um precedente no cubismo analítico de Braque e Picasso, de fato foi descoberto pelo 17


Yve-Alain Bois

cubismo – apesar de não ser o que supõem. A “transparência” em questão é consangüínea ao plano virtual da famosa escultura de 1912 de Picasso, Guitar, em que é um produto (assim como a arquitetura de Le Corbusier) da articulação do espaço vazio como um signo positivo. A Guitar de Picasso assinala uma aceitação revolucionária do espaço na história da escultura ocidental, que é feita por uma lógica estruturalista que Le Corbusier emula – conscientemente ou não – na “transparência” de Garches: e assim é porque os signos não são definidos pela sua substância, mas por sua relação de oposição a todos os outros signos em um dado sistema, de modo que uma ausência, uma virtualidade, pode manter uma valor positivo e se tornar um marco entre outros.17 A mesma lógica, como demonstrou Bruno Reichlin em vários artigos, governa o tratamento que Le Corbusier dispensa às janelas (em Garches como nas demais obras), assim como às paredes.18 Apesar de tal tratamento abstrato (pelo menos antianatômico) de elementos arquitetônicos ser mais diretamente dependente do trabalho formal do De Stijl do que da própria leitura acerca do cubismo feita por Corbusier (tal coisa ocorre pela primeira vez nas Villas La Roche-Jeanneret, a construção na qual seu débito com o De Stijl é mais notável),19 e tal coisa não seria possível – nem também muito da escultura moderna – sem o que eu chamaria de invenção picasseana do espaço como assunto escultural. Mas e quanto à pintura cubista (isto é, o cubismo de Picasso e Braque)? Ela produziu algum efeito sobre a arquitetura? Podemos encontrar algum equivalente arquitetônico seu? Estaríamos errados, creio eu, em procurar isso no simples nível morfológico (o nível superficial no qual operam as analogias que definem a arquitetura cubística e cúbica). Tal coisa poderia antes ser encontrada no nível estrutural da formação do cubismo como um sistema semiológico. Venho escrevendo uma pequena história da semiologia do cubismo na qual a grade tem um papel decisivo no desdobramento do cubismo analítico de Braque e Picasso, e na qual a descoberta da total potencialidade do que Saussure chamou de arbitrariedade do signo marca o nascimento do cubismo sintético. 20 Contrariamente ao que se poderia esperar, não estou convencido de que a análise da função da grade no cubismo analítico possa render qualquer insight interessante no que diz respeito à arquitetura (assim como arquitetos não precisaram do cubismo para pensar a respeito de formas prismáticas, eles não precisaram dele para saber algo sobre grades). Por outro lado, o tipo de multivalência que Picasso explora em seus papiers collés parece-me muito próximo às contradições e “falsas relações” detectadas há muito tempo por Steen 18

17 A esse respeito, cf. meu “Kahnweiler’s Lesson”, in Painting as a Model (Cambridge: MIT Press, 1990), p. 65-97. 18 Veja, em particular, Bruno Reichlin, “Le Corbusier vs De Stijl”, em Yve-Alain Bois e Bruno Riechlin, eds., De Stijl et l’architecture en France (Brussels: Pierre Mardaga, 1985), p. 91-108. 19 Reichlin compara o tratamento formal de janelas nas casa La Roche-Jeanneret a esta passsagem do manifesto de Theo van Doesburg “Towards Plastic Architecture” (1924): “A nova arquitetura não possui momento passivo. Ela abandonou o uso de espaços mortos (buracos na parede). A clareza de uma janela tem um significado ativo contra a clausura da superfície de uma parede. Um buraco ou vácuo não conduz a nenhum lugar avante, tudo é estritamente determinado pelo seu contrário”. Traduzido por Joost Baljeu (aqui levemente modificado) em seu texto Theo van Doesburg (Londres: Studio Vista, 1974), p. 144. 20 Sobre isso tudo, cf. meu “The Semiology of Cubism”. concinnitas


Cubístico, cúbico e cubista

Eiler Rasmussen (bem mais tarde por Robert Venturi, depois novamente por Bruno Reichlin) na obra de Le Corbusier. Rasmussen cita como exemplo uma sala da casa La Roche (nas Villas La Roche-Jeanneret), em que Corbu estende a margem superior de uma grande janela até o balcão da biblioteca, de modo que a verga da janela parece nele descansar. Ele analisa essa inversão formal da estrutura anatômica (suporte/suportado) por meio do copo de Rubini, um famoso caso de reversibilidade figura/ fundo, discutido em grande parte dos tratados acerca da psicologia Gestalt.21 Se conhecesse melhor a obra de Picasso, Rasmussen teria sem dúvida preferido uma alusão a suas collages cubistas – pois enquanto o copo de Rubini demonstra uma relação de “em vez de/ou”, uma alternativa exclusiva, Picasso beneficia a polissemia da relação “e/ou”. A jocosidade semiológica de Le Corbusier me faz lembrar de um papier collé bem específico, de 1913: Bottle of Vieux Marc, Glass and Newspaper. Nele, há não apenas um copo definido por uma lacuna (sua base é a silhueta negativa recortada de uma peça de papel de parede decorativo representando a toalha de mesa na qual esse copo supostamente estaria situado), mas o conteúdo do copo, passando por cima da borda, é feito do mesmo recorte de papel cuja ausência define a base. Este tipo de manipulação, um jogo sem fim com a mutabilidade dos signos que seguem seu caráter arbitrário, abunda no cubismo sintético de Picasso. Quando Le Corbusier se entrega aos mesmos tipos de jogos caprichosos – e o faz muito freqüentemente – fico satisfeito em lhe conferir o título de arquiteto cubista.

21 Steen Eiler Rasmussen, “Le Corbusier — die kommende Baukunst?”, Wasmuths Monatshefte für Baukunst 10, n. 9 (1926), p. 381, citado por Reichlin, “Le Corbusier vs. De Stijl”, p. 98-99. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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Malu Fatorelli

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O espaço entre as imagens: ensino de arte/obra de arte

O espaço entre as imagens: ensino de arte/obra de arte Malu Fatorelli* Partindo do relato de uma experiência didática, o texto apresenta uma discussão sobre possíveis aproximações entre obra de arte e ensino de arte no âmbito da produção contemporânea. Arte contemporânea, ensino de arte, arte e espaço

O artigo apresenta uma reflexão em torno da relação arte/ensino de arte, no domínio da produção contemporânea, problematizando abordagens e proposições artísticas, para questionar limites, aproximações e convergências entre produção e ensino de arte. A partir de um trabalho realizado pela Funarte, no projeto da Rede Nacional de Artes Visuais, fiz uma espécie de “diário de aulas” como referência para identificar algumas relações entre arte e ensino aqui apresentadas. O workshop,1 realizado em julho de 2006 em Vitória, ES, teve a duração de uma semana, com seis horas diárias de trabalho. E dele participaram 20 artistas e estudantes da Faculdade de Artes da Universidade Federal do Espírito Santo. Foi a partir de meu trabalho como artista que opera em um domínio entre arte e arquitetura,2 no qual questões relativas ao espaço e ao lugar são centrais, que elaborei a proposição “Arte contemporânea: o espaço entre as imagens”. A proposta do trabalho realizado em Vitória constou da análise de diferentes aspectos da produção de arte contemporânea tendo como referência a questão do espaço, entendida como o vínculo criado entre uma obra e um determinado *Malu Fatorelli é artista plástica, doutora em artes visuais pela EBA/UFRJ, mestre pela ECO/ UFRJ, professora Instituto de Artes da Uerj e da Escola de Artes Visuais do Parque Lage. 1 “Arte contemporânea – O espaço entre as imagens”, de 17 a 21 de julho de 2006, em Vitória. Participantes: Thaís Frota Fundão, Lílian Robinson, Miro Soares, Maria Socorro Poleti, Wilma Netto Carvalho, Dayse Egg de Resende, Rubiane Vanessa Maria da Silva, Amanda Freitas Coutinho, Wania P. Oliveira Soriano, Luciano Coutinho Cardoso, Raquel Baelles, Sandra Resende, Irineu Ribeiro, Alzina Maria Leal Alves, Júlio W. Schmidt, José Augusto Nunes Loureiro, Franquilandia Gonçalves Rangel Raft, Hilal Sami Hilal, Sérgio Oliveira. 2 Fatorelli, Malu. O longe e o perto como distâncias contemporâneas in Arte & Ensaios, ano XI, n.II, 2004, p 44-49. 3 Wenders, Win. A paisagem urbana in Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, “Cidade”, n. 23, 1994, p. 180-189. 4 Idem, ibidem, p. 186. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

lugar. O “lugar”, pensado como “espaçamentos” entre corpo, arquitetura e paisagem, foi o tema de diferentes exercícios propostos aos participantes. O “espaço entre as imagens” pode ser abordado de diferentes maneiras, no âmbito da produção de arte contemporânea. Seguindo a filiação dos “ready mades”, a apropriação de objetos do cotidiano, cada vez mais freqüente na produção atual, poderia ser pensada como um espaçamento entre imagem e conceito, um deslizamento de significados, abrindo frestas para novas percepções. Da mesma forma, o “espaçamento” do tempo no trabalho de Bill Viola transforma radicalmente a imagem permitindo novas visibilidades. O cineasta Win Wenders, em um texto sobre cidade e cinema,3 fala dos espaços vazios como lugares que contam histórias. Segundo ele, assim como algumas cidades, certos filmes são como peças imóveis em que não há brechas entre as imagens que permitam ver alguma coisa diferente do que o filme mostra, olhares e pensamentos não têm espaço. Como estratégia de trabalho, ele declara “aquilo que se quer mostrar, isso que se quer ter na imagem, explica-se pelo que se deixa fora dela”.4 21


Malu Fatorelli

O sentido do “espaço entre as imagens” no workshop buscou justamente estabelecer uma tensão na proposição de trabalho que não se restringe a um tema, mas opera como um espaçamento, um intervalo a ser ocupado ou instaurado no trabalho de cada artista. Deixar espaço pressupõe a construção de margens, bordas que estabelecem limites e legitimam diferentes propostas/processos artísticos. Três propostas foram apresentadas consecutivamente no workshop objetivando que o desenvolvimento do trabalho conectasse cada uma delas. A primeira relacionada ao corpo e ao lugar, com a idéia de estabelecer alguma relação de medida entre corpo e arquitetura; a segunda abordou a expansão desse “lugar” de cada um, transformando a arquitetura; e a terceira propôs a inclusão de um elemento urbano em diálogo com as propostas anteriores. Imagens e a descrição de alguns “exercícios” foram selecionadas para tornar possível este “diário de aula” que tenta mostrar e discutir o percurso dos processos artísticos durante o workshop, foi ministrado no primeiro andar da galeria Homero Macena, situada em um edifício de oito andares no Centro de Vitória. No térreo, uma galeria de arte; no primeiro andar, preparado para o workshop, um grande pavimento com algumas mesas e cadeiras para o trabalho. Acima desse pavimento andares abandonados e depredados nos serviram para uma primeira investigação.5 Uma visita de observação evidenciou as marcas de ocupações anteriores, os restos impressos nas paredes ainda existentes e também a transformação dos espaços semidestruídos, sugerindo algumas intervenções e o recolhimento de algum material para ser utilizado posteriormente. Voltando para o espaço do primeiro pavimento iniciamos o workshop com muitas discussões em torno de diversas obras contemporâneas, e os trabalhos começaram a “tomar lugar”. Um “homem vitruviano”6 aparece no meio da sala, linhas feitas com giz sobre o chão. Constatamos que as medidas do desenho são muito diferentes da proporção do corpo do aluno. A métrica renascentista não fecha, não funciona para o corpo contemporâneo. Utilizando uma cópia do desenho de Leonardo, refazemos a segunda posição do “homem vitruviano” com as roupas do aluno, dessa vez mais maleáveis às diferenças temporais e às exigências métricas. No centro da sala, escolhido especificamente como lugar de trabalho, o corpo desenhado no chão, como um centro deslocado, tenta atualizar a história. O trabalho permaneceu no espaço da sala à espera da última proposta, a do estabelecimento de uma relação com a cidade. Surge então sobre o círculo, em que se inscreve o desenho uma espécie de tracejado laranja e branco. Ao olhar mais de perto pode-se identificar pequenos bilhetes de ônibus e metrô da cidade de Vitória refazendo a circunferência, incorporando um elemento urbano ao trabalho e aprofundando o estranhamento do tempo e do espaço. Um novo “personagem” aparece. Não mais o homem de Leonardo, mas a identificação indicial de diferentes vestígios humanos recolhidos nos andares abandonados do prédio. Calça, camisa, escova de dente, um pacote de envelopes de escritório e uma série de outros objetos pessoais são reunidos nesse 22

5 O coletivo Maruípe em 2004 realizou uma intervenção na Galeria Homero Macena incorporando o espaço dos andares desocupados do prédio. 6 Famoso desenho de Leonardo Da Vinci que delimita as dimensões da figura humana dentro de um círculo e de um quadrado. concinnitas


O espaço entre as imagens: ensino de arte/obra de arte

“personagem” construído pouco a pouco como assemblagem conceitual. Primeiro a dificuldade de entrar em contato com esses “pertences”, posteriormente o questionamento em torno da forma de organizá-los e mostrá-los, e por fim o desafio de estabelecer uma relação com a cidade, fora do espaço de trabalho. Em uma estante de metal foram arrumados os “pertences”, os envelopes recolhidos levaram cartas desse “ready made”, quase humano, para vários lugares da cidade. Andando pelo espaço da sala encontro uma linha horizontal sobre a parede. Um risco negro, como um pequeno horizonte, corresponde à medida da altura da aluna. Flutuando acima da linha um grande círculo construído a partir de diferentes procedimentos associados à pintura, sobre um suporte de papel craft. Estranha relação formal que revela, ou esconde, uma correspondência entre a altura e a circunferência formatada na medida do corpo da artista. A tomada de consciência dessa estranha proporção, formalmente inscrita na arquitetura, leva a uma série de atitudes no sentido de marcar médicos e academias de ginástica. Tangenciando a clínica, foi completada a terceira proposição do trabalho. Novamente a altura do aluno é explorada, dessa vez em linhas verticais, pendendo da arquitetura. Um banco igualmente invertido é colocado próximo às linhas tentando demonstrar a relação da posição do corpo no espaço. Uma segunda proposta é desenvolvida com bolas de gude trazidas pelo artista, e, uma das linhas é deslocada para o chão e recoberta com as pequenas bolinhas de vidro que contam uma história. Como um negativo de João e Maria, as bolas de gude/ memória não são deixadas para trás, mas, ao contrário, colocadas à frente do caminho como memórias associadas à cidade e à história pessoal do aluno. Outra relação biográfica é estabelecida por uma aluna que escolhe a matéria de um outdoor como material de trabalho. Nessa intervenção o elemento urbano associa-se à história pessoal. A retícula gráfica do outdoor, olhada de perto, assemelha-se a células da pele, criando uma relação intensa entre espaço público e privado. Nesse trabalho a medida linear do corpo da artista é transferida para uma fita recortada com a matéria do outdoor, para ser recolocada como um grande retângulo “vazio” sobre a arquitetura. Sobre essa fita de papel, uma escrita pessoal, não revelada, contribui no estabelecimento do limite desse espaço, território outdoor/indoor que acolhe, em seu espaçamento, a inscrição “SE…”. Cheio vazio, positivo negativo, estabelecendo intensa ativação poética do espaço. Em outra obra realizada durante o workshop, uma espécie de maquete afetiva como uma escada, uma escala ou uma linha de trem é construída com pequenos pedaços de madeira e barbante. Essa espécie de caminho foi associada posteriormente à silhueta do artista impressa na parede juntamente com fotos e outros elementos biográficos. O limite do corpo é utilizado por uma das artistas que, em uma pesquisa com têmpera de grafite, estabelece, com o limite de sua silhueta, diferentes ocupações do espaço de trabalho. Limites de dentro e de fora do corpo povoam o espaço, criando contornos, recortes e ocupações estratégicas do espaço de trabalho. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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A altura dos olhos do artista é a medida de referência para o deslocamento de um teto de metal remanescente em um dos andares abandonados do edifício. O “rebaixamento” das tiras de metal do teto, associado a outros procedimentos, alude a uma “escultura moderna” criando instigantes relações com o lugar. Durante o workshop foi proposto aos participantes a realização de uma das proposições artísticas de Lygia Clark o Caminhando. Construído como uma fita de Moebius, a proposição oferece uma experiência de espaço contínuo de ligação e continuidade entre interior exterior “avesso e direito”. Alguns participantes estenderam a experiência do Caminhando para outros domínios de seu processo de trabalho. Os delicados desenhos de uma das artistas expandiram-se para a arquitetura, em um primeiro momento, apenas como formas circulares e retangulares que utilizaram como matriz elementos de fechamento dos interruptores, chamados de espelhos, recolhidos nos andares abandonados do prédio. Para o desenvolvimento da terceira parte do trabalho a aluna encontrou um cartão-postal, desses oferecidos gratuitamente em bares, cuja imagem a fez lembrar do Caminhando. A partir de então os círculos e retângulos foram recortados com a utilização desses cartões, ocupando e transformando a arquitetura, evocando continuidades formais e conceituais entre a cidade e o lugar. Arte e arquitetura, medidas do corpo e da cidade foram trabalhadas nesses dias. Parece-me importante evidenciar a diversidade no desenvolvimento das propostas artísticas e também o envolvimento individual de cada participante na possibilidade de “inventar” processos e se apropriar de materiais, abrindo mão de práticas, muitas vezes, já conhecidas e confortáveis. “Nosso olhar não dobra esquinas“7 – a afirmação de Gombrich refere-se à perspectiva, que constituiu o espaço da pintura, no Renascimento, a partir de um ponto de vista segundo o qual o “espaço entre as coisas” foi simulado virtualmente por artifícios da geometria. Alguns séculos se passaram até a modernidade assumir a planaridade do quadro, abolindo a representação e trazendo o “espaço” para um novo contexto. Desde então, múltiplas relações entre espectador, obra, autor e lugar têm sido propostas, como as nominadas por Hélio Oiticica “totalidades ambientais”8. No workshop o espaço entendido como fresta de visibilidade, espaçamento, permitiu a articulação entre história e memória, ativando repertórios individuais a partir de poéticas artísticas elaboradas no contexto do desenvolvimento dos trabalhos. Perguntado sobre o tema base de sua obra, o artista Anselm Kiefer declara que toda pintura e também toda literatura são como caminhar ao redor de um inexplicável, ao redor de um buraco negro ou da cratera de um vulcão cujo centro não se pode penetrar e o que se capta em temas são como pedrinhas ao pé da cratera – marcos que formam círculos e vão-se estreitando em direção ao 9

centro. Da mesma forma, compartilhar esse “diário de aula” busca estabelecer alguns marcos, espaçamentos e margens no domínio da relação entre produção e ensino de arte. 24

7 Pintar como feito heróico: A primeira entrevista com Anselm Kiefer – Revista Gávea, p. 112-124. 8 Gombrich, Eduard. Arte e Ilusão. Londres,1960. 9 Oiticica, Hélio.Aspiro ao Grande Labirinto. Rio de Janeiro, 1986. concinnitas


123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 123456789012345678901234567890121234567890123456 Da arquitetura conceitual 123456789012345678901234567890121234567890123456

Da arquitetura conceitual* Collin Rowe** O texto interroga a existência da arquitetura conceitual refletindo sobre a relação de mão dupla gerada por pares de termos e conceitos: processo e produto, material e imaterial, norma e desvio, instituição e revolução, tradição e traição, ordem e espontaneidade, conceito e processo, estímulo intelectual e físico, presença e ausência. Conceitualismo, Arquitetura moderna, Le Corbusier

Minha primeira reação foi a seguinte: mas toda a arquitetura é conceitual... E essa deve ser a reação brutal que muitas pessoas devem ter. Então minha segunda reação foi: não; não deve ser bem dessa maneira; isso deve ter alguma coisa a ver com Marcel Duchamp. Certamente. Então descobri que se esperava um pronunciamento meu mais prolongado e que essa informação foi recebida um pouco tarde demais, porque eu gostaria de ter reunido um conjunto de imagens, o que não foi possível. De qualquer maneira, aos temas relevantes, acrescento que: há processo, preferivelmente ao produto; e, é claro, há a desmaterialização do objeto – algo que acho imensamente difícil. Veja só, até onde pude me informar, essa desmaterialização vem acontecendo já há um bom tempo, tanto que se pode imaginar que o objeto poderia já ter desaparecido há algum tempo. Por outro lado, o assunto é Tradução Jason Campelo Revisão técnica Roberto Conduru *Uma pequena conversa quase completamente ad hoc por ocasião da conferência da Art Net sobre Arquitetura Conceitual, Londres, nos dias 17 e 18 de janeiro de 1975. Primeiramente publicada em Art Net (1975). **Colin Rowe (1920-1999) é arquiteto, crítico de arquitetura e professor. Seu livro Collage City (com Fred Koeter) propôs uma nova maneira de analisar a forma urbana, enquanto resultado fragmentado e incompleto de toda tentativa feita para organizá-la logicamente. 1 A palavra inglesa “object” tanto se refere a objeto quanto a assunto. Até aqui tínhamos em conta a primeira acepção. Porém, parece-nos que neste momento há uma mudança, significativa e intencional por parte do autor, para o segundo sentido. (NT) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

extraordinariamente persistente.1 Então, ainda inclui, indubitavelmente, algo chamado a presença da ausência; e, naturalmente, pode-se justificar essa presença da ausência com várias formas de argumento, do zenbudismo às tradições místicas do cristianismo e, provavelmente, a Elena Petrovna Blavatsky. Alguns minutos atrás eu estava falando, lá em cima, com Cedric Price, a respeito da presença da ausência, indagando se essa coisa conceitual (apesar de mística – e eu não tenho objeção a isso) é algo que se possa especificar e mandar a especificação por telegrama; se é sobre a existência de prédios sendo desmaterializados e sem presença corporal – quer tal coisa possa ou não existir. Mas eu também sei que isso pode. Não se pode tocar, não se pode cheirar nem medir isso, mas, novamente, neste ponto estamos falando obviamente a respeito de alguma forma de essência mística. 25


Collin Rowe

Então, ao falar com Cedric, fiquei estimulado com a possibilidade da cozinha conceitual. Daí imagina-se a situação na qual se convidam pessoas para um jantar conceitual, e todo mundo chega equipado com seu livro de receitas, que essas pessoas começam a contemplar, sendo a natureza da especificação o equivalente à refeição em si. De novo, eu considero isso um bem de valor. Por exemplo, eu preferia sem dúvida sentar-me com um bom livro de receitas a entrar no estabelecimento logo ao lado e comer uma daquelas salsichas inglesas deploráveis, consumir aquela cerveja abominável. Um aparte frívolo? Mas claro que sim. Já que devemos ter essa conversa, decidi então que deveria lançar alguns temas para discussão. As coisas estão muito antiquadas e “carolas”. Penso que são temas de alguma maneira relevantes – apesar de sua relevância ser um pouquinho dúbia, e as conexões da relevância serem um pouquinho tênues – não é? De qualquer maneira, minha primeira citação é (e isso vai agradar o pessoal de semântica e de semiótica): “No princípio havia a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus”. (Eu acho que isso vai cativar os doidos chomskianos.) E isto é seguido pela seguinte declaração: “A Palavra fez-se carne e habitou entre nós”. Certo, considero que isso possa ser traduzido como “No princípio havia a Idéia e o Conceito, e o Conceito fez-se palpável”, foi guarnecido de comprimento, largura, altura, textura e, se quiser, cheiro e substância. Ou seja, o que quer que seja isso com que se está lidando, fez-se corpo de uma maneira ou de outra. E não vejo muito o que se argumentar aqui. Estou perfeitamente disposto a conceder que no começo possa ter havido a Palavra. Por que não? Mas a questão da “Palavra fez-se Carne” suscita interrogações, acho. Pode-se perguntar: a Palavra pode fazer-se carne? Ou não teria sido isso uma fantasia cristã? A Palavra deve fazer-se carne? Essa incorporação da Palavra ocorre para fazê-la inteligível? Ou simplesmente para adulterar a Palavra? Responderei a todas essas questões (por minha conta) afirmativamente. A Palavra pode, suponho, fazer-se carne – até um ponto –, e essa incorporação ajuda a tornar a Palavra inteligível. Porém, tornar a Palavra carne também é adulterar a palavra. Então, isso tudo entra em diálogo com outro texto, e este próximo texto é igualmente “carola”; agora é a Epístola de São Paulo aos Romanos: “Sobreveio a lei para que abundasse o pecado”.2 Esse é um dos acontecimentos mais cativantes da Bíblia e, obviamente, uma declaração muito, muito mais difícil para se trabalhar. Será que isso significaria que o normativo poderia ser algo usado como superfície ou suporte para a exibição do desviante? Acho que quer dizer 26

2 Romanos 5, 20. Bíblia Sagrada. Trad. Centro Bíblico Católico. 24ª edição, São Paulo: Editora “Ave Maria” Ltda., 1977, p. 1.454. Nossa recorrência à citação exata da Bíblia pode trazer algumas controvérsias. O autor cita, em inglês, o seguinte trecho bíblico: “The law came in that the offense might abound”. Enquanto a citação inglesa considera a palavra “offense”, a versão em português à qual fazemos referência traduz do grego como “pecado”, e essas duas palavras podem conduzir a caminhos interpretativos distintos. Pecado em português seria, segundo o Aurélio (Ferreira, Aurélio B. de Hollanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 1.289) “1. Transgressão de preceito religioso. 2. Falta, erro; culpa, vício: os pecados da juventude. 3. Maldade, crueldade: É um pecado exigir tanto de uma criança”, ou seja, a palavra “pecado” encontra-se impregnada de uma certa carga de significação religiosa (talvez de viés católico), diferentemente do significado dessa palavra em inglês. Nessa língua, a palavra “offense” também significa pecado, mas esta é só uma das significações possíveis. Segundo Serpa (Serpa, Oswaldo. Dicionário Inglês-Português/PortuguêsInglês. 8ª edição, 2ª tiragem. Rio de Janeiro: MEC/Fename, 1977, p. 472), a palavra “offense” significa “s. ofensa, culpa, falta, pecado; ataque; crime, transgressão, delito; dano; prejuízo; agressão; injúria, agravo, afronta, acometimento; ultraje = (E.U.) Offense. # give offence, ofender. Take offence, ofender-se”. ou seja, o primeiro significado para “offense” não traria traços imediatos de religiosidade. Sendo assim, fica feita a ressalva: é de nossa inteira responsabilidade a citação destacada da Bíblia conforme está, já que a citação originalmente colocada pelo autor nem sequer faz menção exata às fontes – visto o caráter informal do texto. Deixamos bem claras as diferenças, mantendo em mente a sugestão de que a palavra “pecado” poderia não ser utilizada na acepção mais religiosa expressa na citação correspondente em português, e sim no sentido mais lato de ‘transgressão’ ou ‘ofensa’. concinnitas


Da arquitetura conceitual

isso, entre outras coisas. Isso significaria que o típico é útil enquanto valida as exceções? Também acho que sim. Também acho que isso significa que o Fundo – se estivermos nos referindo às questões da Gestalt – o Fundo estimula a apreensão íntima da Figura. Acho ainda que – se usarmos a linguagem de Lévi-Strauss – isso seria o que ele chamaria de “balanço precário entre Estrutura e Evento”. E também há esta pequena frase de Serlio: “através do erro pretendo fazer o oposto aos preceitos de Vitrúvio”. Isso também indica, de algum modo, o comércio em mão dupla que deve existir (e sempre existe) entre essas coisas corolárias, as quais se podem distinguir no jargão atual como sendo a Instituição e o Revolucionário – como atividades interdependentes, é claro. Certo, eis o segundo dos meus textos: “Sobreveio a lei para que abundasse o pecado”, e creio ser muito importante para o tema que discutimos – poderia ser discutido por horas, imagine tipos discutindo o Talmude ou escolásticos medievais seguindo nisso por várias horas ou mesmo anos. Certo. Minha próxima menção diz respeito àquela ocasião famosa, na década de 1860, quando o deão de Windsor disse a Disraeli que não acreditava em dogma. E, é claro, temos a resposta de Disraeli: “Bem, realmente, senhor deão, temo que um não ao dogma seja um não ao deão, senhor deão”. Bom, suponho que isso seja uma crítica (por parte de Disraeli) a certos aspectos do liberalismo. Uma crítica – de um ponto de vista judeu – ao empirismo inglês (e também a tudo mais). Isso é uma crítica ao positivismo francês. Também é uma crítica ao utilitarismo inglês, às muitas pretensões das ciências sociais. É uma crítica, anterior ao evento, à arquitetura moderna e à doutrina de Walter Gropius, além de à mentalidade característica do planejador. Vejo nessa declaração uma crítica a todas essas coisas. Infere-se dela que não há uma observação neutra, como tal, ou seja, toda observação é orientada por uma cultura (como sabemos); não podemos nunca esperar uma visão objetiva das coisas – o melhor a que se pode aspirar está em discussões entre estilos diferentes de subjetividade. Tendo deixado essa citação, quero ocupar-me com a questão da tradição. Muitas pessoas ontem usaram a palavra tradição, e de vez em quando ouve-se a respeito de tais e tais tradições da arquitetura moderna. Se consultar o Shorter Oxford Dictionary, ver-se-á que um dos primeiros significados conferidos à palavra tradição – fora a vertente da acepção de “legado” – é o de “ceder, render-se, ou traição”. O verbete segue com a declaração de que “uma tradição é também, ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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especificamente, uma traição aos livros sagrados em tempos de perseguição”. Em outras palavras, pode-se ‘cometer’3 uma tradição – algo que me entretem como possibilidade. Não alego conhecer economia e seus congêneres, mas certas noções de comércio dizem respeito à palavra ‘tradição’.4 Como a ‘traição’,5 e ‘tratados’, deslealdade de princípios e feitura de acordos. Além de habilidades diplomáticas de baixo nível e, também, tradução. Pode-se observar isso mais claramente no francês, quando um traité significa um acordo e um traitre um traidor. A implicação certamente é a de que alguém que faz um tratado é um traidor. Ele está traindo princípios em prol da sobrevivência. Mas, nesse sentido, creio que se deve olhar Judas como homme idéal dos tradicionalistas. Ele executou um ato de traição necessário para que a religião cristã fosse institucionalizada. Essa é uma deserção proveitosa para a Instituição – proveitosa para o Princípio Revolucionário. Certamente, o que Judas faz é salvar a humanidade dos desertos do espírito – que o Cristianismo inclemente condena –, dispor sua salvação, guiá-la ainda mais uma vez rumo aos portos quentes e suaves da carne. Certo. Então esses são argumentos diferentes, que certamente alguém vai agarrar. Então temos a idéia de “No princípio havia a Palavra e a palavra fez-se Carne e habitou entre nós”, logo depois a engraçada questão de sobrevir “a Lei para que abundasse o pecado”. E, agora, essa da ‘tradição’ enquanto traição e deslealdade. Mas, talvez todo dia, nesse contexto, a arte deva trair princípios. E talvez se deva todo dia reviver esses princípios – algo que se deve matar para manter verdadeiramente vivo. Então, esta manhã ocorreu-me que, neste ponto, eu deveria interpor outra citação: do doutor Johnson, em sua revista The Rambler, de 25 de janeiro de 1752: Espírito, bem sabem, é a copulação inesperada de idéias. A descoberta de alguma relação oculta entre imagens de remota aparência. Portanto, uma efusão de espírito pressupõe uma acumulação de Conhecimento; uma memória armazenada junto com noções que a imaginação pode selecionar para compor novas assemblages. Qualquer que seja o vigor nato da mente, ela nunca poderá formar inúmeras combinações a partir de novas idéias, da mesma maneira que inúmeras variações nunca podem ressoar a partir de uns poucos sinos. De fato o acaso pode produzir, algumas vezes, um feliz paralelo ou um contraste impressionante, mas esses dons da fortuna não são freqüentes, e aquele que nada possui de próprio e, ainda assim, se condena a experiências desnecessárias, deve viver de rendas ou do roubo. 28

3 Lembremos que verbo inglês “to commit” também significa ‘se comprometer’, além das outras significações comuns que o próprio verbo “cometer” (que usamos nessa tradução) compreende tanto em português quanto em inglês. Tal distinção é importante em face do que será colocado no prosseguimento do raciocínio, em que o autor parece, deliberadamente, utilizar a palavra em um espectro maior de possibilidades significativas, incluindo aí a possibilidade de um ‘compromisso’. (NT) 4 Apesar de um pouco obscura na tradução para o português, a relação entre as palavras “tradição” e “comércio” estabelecida pelo autor fica mais evidente em inglês, entre as palavras “trade” (comércio) e “tradition” (tradição). (NT) 5 “Tradição” e “traição”, em português, possuem antepassado comum: a palavra traditione. Conforme registra Antenor Nascentes (Nascentes, Antenor. Dicionário Etimológico Resumido. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1966, p. 741), tradição e traição vêm “Do lat. Traditione “entrega”, por via semi-erudita”. Na mesma medida, a ‘traição’ também seria um ato de entrega, pois “o traidor entrega a pessoa ao inimigo dela”. (NT) concinnitas


Da arquitetura conceitual

Vemos aqui temas subseqüentes que, eu acho, são relevantes à posição atual. Incluem-se aí as idéias de ‘espírito’, de ‘colagem’, de ‘ready-made’, de todo esse tipo de coisas, as quais estão implicadas nesta declaração. Então pensei em rememorar algo brevemente, o que é sempre um feito deplorável. Enquanto alguém falava ontem, eu me lembrei de uma ocasião no Texas, há um bom tempo já, durante o ápice da era Eisenhower, em que a universidade promovia algo que se chamava ‘Semana da Ênfase Religiosa’ (Não importava muito qual religião se enfatizasse, afinal de contas somos uma sociedade pluralista e liberal, e simplesmente queremos que as pessoas se comovam e se sintam religiosas. Não estamos realmente interessados na substância ou na estrutura de suas crenças). Pois é, estávamos nesta Semana da Ênfase Religiosa, e ela se inseria naquele período em que havia aqueles slogans terríveis do tipo “Um mundo em oração é um mundo em paz”, o que é absurdo. Além dessa, aquela declaração, ainda mais deplorável, de que “a família que reza unida permanece unida” — esta última, por sinal, durante o ápice do período Manson, há pouco tempo, modificou-se para “a família que assassina unida permanece unida”.6 Certo, então estamos em uma terra de assuntos heterogêneos. E cedo ou tarde todos nós entraremos nessa terra se as tendências atuais de pluralismo continuarem. Mas então, eu estava andando por uma rua do Texas com John Hejduk, quando surpreendentemente ele me disse: “De-e-eus do céu, não é realmente fascinante que haja um Papa em Roma?!” Eu não sou um entusiasta do Papa, mas há certas circunstâncias, certas situações em que alguém se encontra, em que ele se torna uma entidade de dedução bem útil. Pode-se apagar ‘o Papa’, é a coisa mais fácil do mundo (e o protestantismo, para começo de conversa, é exatamente isso); ou substituir, se quiser, a Corte Suprema dos Estados Unidos. Pode-se ainda apagar ‘o Papa’ e propor que todos nós vagueemos por aí, à moda Superstudio, 7 preferivelmente nus seguindo as coordenadas cartesianas da liberdade, eis aí outra coisa que se pode fazer. Mas, novamente, tudo isso a que viemos nos referindo seria 6 Refere-se ao assassinato, ocorrido em 9 de agosto de 1969, da atriz Sharon Tate, casada com o diretor Roman Polanski, e do filho do casal, Paul Richard Polanski. Eles (entre outros) foram assassinados por um grupo de oito pessoas, lideradas por Charles Manson. (NT) 7 Superstudio foi uma firma de arquitetura fundada em 1966, na Itália, por Adolfo Nataline e Cristiano Toraldo di Francia. Seus projetos iam da ficção à ilustração de storyboards e fotomontagem. (NT) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

certamente uma versão de “Sobreveio a lei para que abundasse o pecado”. Estamos falando a respeito de uma garantia de ordem que deve haver caso a espontaneidade também exista. Estamos novamente falando a respeito do infinito comércio em mão dupla entre atitudes institucionais e princípios revolucionários. E não se pode se entender bem com ambos. Também me lembrei, esta manhã, de outro episódio. Não darei o nome da pessoa envolvida, mas aconteceu há algum tempo em Cambridge 29


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(Inglaterra). Alguém me ligou – alguém que gagueja muito – e disse “CC-C-Colin, v-você acha que poderíamos combinar um j-jantar?” Eu disse “Sim, por que não? Que tal hoje à noite?” “Bem, eu acho que vou estar no c-centro, jantando no Reform Club”. Passamos então por toda uma lista de datas possíveis, e a primeira viável para se marcar o jantar seria dali a três semanas. Então, ao fim da conversa essa pessoa me falou, “sabe, o que eu queria r-r-realmente conversar era sobre e-e-eespontaneidade”. Esse caso é um pouco cruel, mas eu também não mencionei nenhum nome. De qualquer maneira, às vezes sinto que, se se está na presença de um falar dilatado a respeito da espontaneidade, isso significa que a espontaneidade certamente nunca irá acontecer. E também temos este verso de Shelley: “Raramente, raramente vens, Espírito do deleite”; obviamente quer-se que ele venha freqüentemente, que as coisas cheguem espontaneamente, mas isso é mais fácil de se falar do que de fazer. E se devo falar mais propriamente, gostaria de ter deixado, como primeira imagem, aquela figura do livro de memórias de Albert Speer, durante o primeiro Comício de Nuremberg, 8 em que o palco do acontecimento era engrandecido pela montagem de holofotes, que ficavam inclinados. E aos quais Sir Neville Henderson se referiu como uma “catedral de gelo”. Speer ficou particularmente tocado pela estrutura dos holofotes, por meio dos quais se podia imaginar um movimento um tanto wagneriano das nuvens que passavam tanto pela frente quanto por trás dos focos de luz. E, de novo, pode-se ver isso como sendo Estrutura e Evento, tomando, assim, as nuvens como ‘Evento’. Mas eu suponho que aquele palco para o Comício de Nuremberg seria a ilustração perfeita de uma arquitetura desmaterializada. Você presiona um botão, e ela está lá, pressiona novamente, e ela vai embora. Também é uma arquitetura que poderia ser especificada em um telegrama. Acho que é um tipo de imagem realmente eloqüente. Mais uma vez, acredito que Marcel Duchamp se impõe nesse cenário e se poderia levá-lo a um paralelo com, digamos, Fernand Léger. Eu aprecio Duchamp infinitamente mais, pois ele me parece ser lúcido, esclarecedor, interessante, frágil, poético, lírico e tudo o mais. Ao passo que se poderia dizer, certamente em comparação, que Léger é pomposo, opaco, pesado, e, depois de algum tempo, cansativo. Por outro lado, suspeito que Léger esteja mantendo a Instituição – contra a qual, em algum grau, o tipo duchampiano de personalidade possivelmente seria capaz de agir. Então eu considero ainda que se deve introduzir a Maison Domino como exemplo de uma controvérsia. Deve-se também ter em mente que 30

8 Os Comícios de Nuremberg eram as reuniões promovidas anualmente pelo Partido Nazista. Tal iniciativa tinha como objetivo simbolizar a união entre o povo alemão e o Partido Nazista. Esse objetivo foi plenamente realçado pelo crescente número de participantes, que chegou a meio milhão de pessoas, provenientes de todas as seções do partido, da população, do Estado e das forças armadas. Era costume, nesses comícios, em grande desfile militar, a demonstração do poder bélico do Terceiro Reich. Além disso, a partir de 1935, inclui-se nela a apresentação da abertura da obra “The Meistersingers”, de Richard Wagner. (NT) concinnitas


Da arquitetura conceitual

Le Corbusier. Maison Dom-ino, 1914 (projeto)

ela nunca foi construída. Em outras palavras, a Maison Dom-ino é uma forma de necessidade conceitual, um dispositivo heurístico. Mas então isso deve ser modificado por causa das exigências da percepção, e acaba sendo modificado na mais extraordinária variedade de maneiras. Agora, suponho que deva haver um comércio de mão dupla entre Conceito e Processo, ou seja, entre estímulo intelectual e físico. E fico um pouco perplexo – apesar de esperar ser instruído – pelo fato de que uma pessoa deva reagir a alguma coisa que simplesmente não está ali (exceto em algum momento zen dessa pessoa). As especificações dessa coisa estão ali, nada mais. Ali está, novamente, a presença da ausência. E, para que a ausência seja sentida como presença, deve haver muita presença em muitos outros lugares, pois, como vocês sabem, “nenhum buraco é visível se não houver um sólido em que se faça o buraco.”

Resposta a uma pergunta da platéia Existe essa coisa na arquitetura moderna chamada ‘fixação no objeto’. Talvez nunca tenhamos visto tantas pessoas preocupadas em fazer objetos significantes quanto no século XX. Ao mesmo tempo, essas pessoas sentem uma culpa enorme em fazê-los e querem que esses objetos sumam. Uma completa ambivalência em reação ao ‘objeto’. Isso é evidente numa pequena citação de Corbu:9 na qual ele disse: “Grandes blocos de habitações traspassam a cidade, que diferença faz se estão atrás das árvores? A natureza entrou no arrendamento”. Isto é, simultaneamente, uma afirmação 9 Le Corbusier. (NT)

ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

do objeto e uma inibição a respeito desse objeto. E também penso que isso tem muito a ver com arquitetura conceitual.

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Guilherme Wisnik

Gordon Matta-Clark. Conical Intersect, Paris, 1975

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concinnitas


O ‘ informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas

O ‘informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas* Guilherme Wisnik** Comparando realizações do artista plástico norteamericano Gordon Matta-Clark e do arquiteto holandês Rem Koolhaas, o texto empreende uma leitura transversal às duas áreas, marcando pontos de tangência entre essas obras – analogias visuais, coincidências biográficas e, sobretudo, a questão do informe. Gordon Matta-Clark, Rem Koolhaas, Informe

1. No escopo deste ensaio, o cruzamento comparativo das obras do artista plástico norte-americano Gordon Matta-Clark com as do arquiteto holandês Rem Koolhaas tem o objetivo de permitir uma leitura transversal às duas áreas. Não se pretende, no entanto, realizar uma investigação exaustiva acerca dos pontos de tangência entre as artes plásticas e a arquitetura, mas apenas seguir uma determinada chave de leitura. De forma complementar, é preciso dizer que a analogia entre os dois personagens não visa estabelecer uma unívoca identidade de propósitos entre as suas obras, e sim identificar a permanência de certas questões essenciais entre elas – questões essas que se traduzem em diferenças cruciais, a indicar a complexidade do diálogo cruzado entre as duas “artes”. A analogia entre Matta-Clark e Koolhaas é, antes de tudo, visual e se torna evidente quando tomamos obras como Office Baroque (1977) e Circus – Caribean Orange (1978), do primeiro, e o projeto para a Biblioteca Nacional da França (1989), do segundo. Em linhas gerais, trata-se, em ambos os casos, de operações de subtração volumétrica no interior de sólidos existentes, resultando na “construção” pelo avesso de “espaços * Texto redigido a partir de questões colocadas por mim na palestra “Do informe à negação da forma: desencontros produtivos”, realizada em primeiro de abril de 2006 no auditório da Fundação Bienal (curadoria de Adriano Pedrosa), como evento integrante da 27 a Bienal Internacional de São Paulo “Como viver junto”. Da mesma forma, é o embrião de um ensaio maior a ser publicado no catálogo 27a Bienal de São Paulo: Seminários (2007, no prelo). ** Guilherme Wisnik é arquiteto, sócio do escritório Metro Arquitetos Associados, formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), e mestre em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da mesma universidade (FFLCH-USP). Colunista do jornal Folha de S. Paulo, é autor de Lucio Costa (Cosac Naify), e Caetano Veloso (Publifolha). ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

negativos”, que embaralham a distinção tradicional entre verticalidade e horizontalidade, ou entre corte e planta, figura e fundo etc. Ainda, como introdução às questões, salta aos olhos um curioso entrelaçamento biográfico entre os dois personagens que tem Nova York como palco histórico e foco de problematização. Matta-Clark, filho do artista surrealista chileno Roberto Matta, nasceu em Nova York em 1943. Logo após ter cursado arquitetura na Cornell University, onde tomou contato com artistas como Dennis Oppenheim e Robert Smithson, tornou-se conhecido e atuante no meio artístico, morrendo também precocemente, de câncer, em 1978, aos 35 anos de idade. Rem Koolhaas, por outro lado, embora pertencendo à mesma geração do artista americano (nasceu em 1944, em Rotterdam), trabalhou a princípio como jornalista e roteirista de cinema, chegando tardiamente ao campo da 33


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arquitetura. Sua entrada na cena arquitetônica acontece exatamente em Nova York – entre a Cornell University e o Institute for Architecture and Urban Studies –, onde desenvolve e defende uma pesquisa sobre a história da cidade, publicada com o título de Delirious New York: a Retroative Manifesto for Manhattan, justamente em 1978. Se esse cruzamento biográfico é, em si mesmo, casual, seus desdobramentos são eloqüentes. A partir dele, podemos traçar diferentes hipóteses. A primeira delas é a de que ambas as obras revelam, e de algum modo “constroem” conceitualmente, duas cidades de Nova York distintas e opostas: de um lado, os bairros underground tornados centros da contracultura nos anos 60 e 70, com seus lofts comunitários e a vitalidade no movimento das ruas. De outro, a abstração da cidade de torres multifuncionais sobre uma malha regular, e a investigação genealógica de uma “cultura do congestionamento”, progressivamente revalorizada após o ajuste conservador do final dos anos 70 e início dos 80. A segunda hipótese é a de que essas “duas” cidades não são estanques, e que há uma questão comum percorrendo a obra desses dois pensadores, transmitida subliminarmente de uma à outra na forma de uma sobrevivência problemática. 2. Ao aproximar arte e arquitetura contemporâneas sob o prisma do “informe”, valho-me da leitura proposta por Rosalind Krauss e Yve-Alain Bois na exposição homônima realizada no Centro Georges Pompidou, em Paris (L’informe, 1996). Embora, naquele caso, a arquitetura não estivesse incluída diretamente como campo de discussão, o projeto curatorial partia das provocações de Georges Bataille, escritor surrealista dissidente, que dava à arquitetura um papel proeminente na sociedade, considerando-a a expressão da geometria autoritária que sustenta seu funcionamento. É justamente em contraposição a essa razão ordenadora “arquitetônica”, a um tempo artificial e ilusória, que Bataille afirma o caráter informe do mundo, excluindo qualquer hipótese de inspiração mimética para as artes. O “universo não se assemelha a nada”, diz ele, “é informe como uma aranha ou uma cusparada”.1 Portanto, não é difícil imaginar o protagonismo reservado às intervenções “anarquitetônicas” de Matta-Clark na referida mostra, capazes de encarnar o niilismo escatológico de Bataille ao atacar edifícios abandonados, em operações de subtração que desmontam a linguagem da arquitetura e, por conseqüência, a ilusão de unidade e uniformidade por ela criada. Como observam Krauss e Bois, essas intervenções não se esgotam no afrontamento físico dos edifícios em si. Elas visam, antes, colocar em xeque a própria função social da arquitetura.2 34

1 “A dictionary begins when it no longer gives the meaning of words, but their tasks. Thus formless is not only an adjective having a given meaning, but a term that serves to bring things down in the world, generally requiring that each thing have its form. What it designates has no rights in any sense and gets itself squashed everywhere, like a spider or an earthworm. In fact, for academic men to be happy, the universe would have to take shape. All of philosophy has no other goal: it is a matter of giving a frock coat to what is, a mathematical frock coat. On the other hand, affirming that the universe resembles nothing and is only formless amounts to saying that the universe is something like a spider or a spit.” Georges Bataille, in Yve-Alain Bois e Rosalind Krauss, Formless – a user’s guide. New York: Zone Books, 1997, p.5. Extraído de Georges Bataille, Visions of Excess, traduzido a partir de Oeuvres complètes. Paris: Gallimard, 1970-88. 2 Cf. Formless, p. 188. concinnitas


O ‘ informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas

Evidentemente, a tentativa de tradução desse conjunto de questões para o campo da produção arquitetônica stricto sensu foi ensaiada de diversas maneiras e, em linhas gerais, aponta para o chamado desconstrutivismo norte-americano, reconhecidamente influenciado pela “desconstrução” filosófica de Jacques Derrida. Um bom exemplo de investigação nessa direção é o número 50 da revista espanhola Arquitectura Viva (setembro-outubro de 1996), em que se aventam paralelos entre as distorções fraturadas de Peter Eisenman, Coop Himmelblau, Daniel Libeskind e Zaha Hadid, ou os tentáculos flácidos e invertebradas de Frank O. Gehry e Ben van Berkel, e o projeto dissolvente de Bataille, então elevado à categoria de referência fundamental para a arte contemporânea. Tratava-se, por meio da noção de “informe”, de encontrar caminhos interpretativos que pudessem dar conta do malestar reinante no panorama cultural com a ressaca do figurativismo historicista pós-moderno – o que, no caso da arquitetura, implicava evidente paradoxo, já que ela é, por definição, “construção e forma”.3 O “informe”, portanto, não vem a ser exatamente a negação frontal da forma, mas uma dimensão situada aquém da formalização. Com efeito, sendo as distorções fraturadas e os volumes amorfos, no caso

Rem Koolhaas. Projeto da Biblioteca Nacional da França, Paris, 1989

da arquitetura, recursos expressivos usados para dar forma ao “informe”, é difícil deixar de considerar postiça a aproximação com a arte por essa via. Por essa razão, antes de avançarmos na comparação crítica entre ambas, é preciso desfazer um nó conceitual que torna a conversa entre artistas e arquitetos, em regra, um diálogo de surdos. Refiro-me ao termo “formalismo”, que assume significações contrárias em cada um dos casos, sem que isso seja notado. Quer dizer, se na arquitetura a noção de formalismo refere-se à expressividade plástica da obra, posta muitas vezes em detrimento da sua dimensão tectônica e acentuando um gesto francamente subjetivo do autor, nas artes plásticas ela ampara o princípio de reflexividade da obra, recuo expressivo que visa, em nome do antiilusionismo, destacar a autonomia de seus elementos

3 “La arquitectura informe es muy formal. Tal como sucediera con su antecesora, la arquitectura deconstructiva, su propia formulación resulta paradojica. Si la arquitectura es sobretodo construcción y forma, despojarla de cualquiera de esos atributos puede entederse solo desde la intención polémica y la provocación literária.” Ainda, em outra passagem, afirma o seguinte: “Si esta hipotética arquitectura informe es, como aquí se sugiere, un informalismo expressionista de raiz romántica com pinceladas orgánicas, el tiempo lo dirá.” Luis Fernández-Galiano, Arquitectura Viva n. 50. Madrid: 1996, pp.25 e 03. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

construtivos: planaridade do suporte, fatura à mostra, ausência de temas narrativos etc. Ocorre que a partir dos anos 60, com a crise do projeto moderno, a arte e a arquitetura seguem caminhos consideravelmente opostos em sua relação com a formalização. Se a primeira se retrai, colocando em xeque a capacidade da forma de ordenar as coisas, a segunda reage ao enrijecimento do mundo exacerbando sua dimensão formal – escultórica, visual, compositiva –, espelhando a consciência de relações fragmentadas na distorção geométrica de seus volumes. Nesse movimento, enquanto o arquiteto migra progressivamente para a condição de “artista”, o 35


Guilherme Wisnik

artista torna-se cada vez mais um projetista, engenheiro ou mestre-deobras – lembre-se, aqui, a titulo de exemplo, de Robert Smithson ou Michael Heizer comandando helicópteros, escavadeiras, equipes de operários etc. 3. O engenheiro-calculista Cecil Balmond define o “informe” como as características não lineares de uma volumetria e/ou comportamento estrutural, algo semelhante ao verso e ao reverso de uma fita de Moebius, em que uma cobertura se torna parede, um piso vira coluna, uma pele é estrutura: “onde o limite não é fronteira, mas parte integrante.” 4 Inúmeros projetos de Koolhaas podem ser enquadrados nessa descrição, muitos deles, aliás, feitos em parceria com Balmond. Pode-se dizer, mesmo, que a “dobra” tem sido um elemento definidor de sua obra recente, exemplarmente empregada no projeto da Biblioteca de Jussieu (1992), em Paris, cuja seqüência de pisos é formada pela continuidade reversa de um plano único. Tendo na bagagem uma influência declarada do “informalismo” artístico – notadamente das performances experimentais do grupo Fluxus e, sobretudo, das obras ambientais de Hélio Oiticica e Lygia Clark 5 –, Koolhaas busca explorar o potencial do vazio como “antiforma” no interior de seus edifícios. Para tanto, parte de volumes regulares, neutros, como contêineres esvaziados de conteúdo expressivo, aptos a serem vazados internamente de modo a desfazerem a distinção tradicional entre verticalidade e horizontalidade no espaço, ou entre corte e planta, figura e fundo etc. Características que se tornam paradigmáticas no projeto para a Biblioteca Nacional da França (1989), marco de uma transformação decisiva na história do OMA (Office for Metropolitan Architecture). A analogia entre Matta-Clark e Koolhaas é, antes de tudo, visual, e se torna evidente quando tomamos exatamente esse projeto. Trata-se de um grande cubo sólido vazado interiormente por “espaços negativos” descontínuos e irregulares: barras semicilíndricas, cones ovóides, amebóides, espirais em revolução etc. Já que a maior parte do programa deveria abrigar depósitos de acervo – aproximadamente 75% –, o arquiteto definiu a volumetria total de maneira inversa ao raciocínio habitual: aqui, os espaços públicos surgem como “ausências de edifício”, vazios escavados na massa sólida de informação (livros, cds, microfilmes, computadores, arquivos etc). Como “embriões em uma placenta tecnológica”,6 ou seixos espalhados ao acaso, os volumes de auditórios, cinemas, salas de leitura, cafés, rampas, galerias de circulação, flutuam em meio a uma massa uniforme de acervo. 36

4 “The twisting-turning inside out of a Moebius strip belongs to the informal. A roof that turns to wall, a floor that moves into column, a skin that is structure, where boundary is not border, is part of it.” Cecil Balmond, Informal. London: Prestel, 2002, pp. 113-114. 5 Segundo Koolhaas: “les oeuvres d’art aléatoire et éphémère ont travaillé et travaillent encore inconsciemment mes projets.” E completa: “Pour moi, le travaille d’un Hélio Oiticica ou d’une Lygia Clark est essenciel.” Rem Koolhaas, “Changement de dimension”, L’architecture d’aujourd’hui n. 361. Paris: 2005, p. 89. 6 Rem Koolhaas, S, M, L, XL. New York, The Monacelli Press, 1995, p. 616. concinnitas


O ‘ informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas

É importante notar que o que se postula aqui como “informe” não é uma explosão fragmentária da forma visando mimetizar o caos da experiência contemporânea. Trata-se, aliás, de seu exato contrário. Egresso do chamado desconstrutivismo, Koolhaas tornou-se um crítico ferrenho daquela corrente arquitetônica, denunciando o caráter profundamente nostálgico da aproximação literal entre geometrias irregulares e a idéia de um mundo fraturado e sem valores fixos. É justamente na mão contrária dessa representação ainda visual, compositiva, “formalista” e, em última instância, decorativa, que ele postula sua indiferença pela forma como codificação lingüística. Como observa Alejandro Zaera, seus projetos buscam a “geração de um corpo unitário” mas “desorganizado”,7 distinto tanto da fragmentação pósmoderna quanto da composição estruturada de partes – herança clássica da arquitetura moderna. Mais uma vez, a dedução do partido adotado no projeto para a Biblioteca da França oferece elementos para a compreensão desse procedimento operativo, e não lingüístico. Nesse caso, a distinção fortemente marcada, no edital do concurso, entre cinco diferentes bibliotecas (científica; catálogos; referências; aquisições recentes; e cinemateca), servia como convite natural à variedade volumétrica. A propósito de seus primeiros ensaios, Koolhaas diz o seguinte: “ficamos irritados em pensar que teríamos que imaginar as cinco bibliotecas diferentes como cinco formas: uma divertida, uma feia, outra bonita e assim por diante. Em outras palavras, estávamos cada vez mais resistentes às normas de uma arquitetura que resolve tudo pela invenção da forma. Buscávamos, pela primeira vez, realmente inventar arquitetonicamente.”8 A solução, como já disse, foi reunir todo o programa em um contêiner único, atravessado por uma trama quadrada de nove prumadas de circulação vertical mecânica, e estruturado por paredes-viga repetidas paralelamente em vãos pequenos (a cada 12 metros e meio), passíveis de serem rompidas aleatoriamente em suas zonas neutras, de forma a gerar grandes espaços vazios em seu interior. Nota-se, portanto, que o partido adotado tem grande clareza conceitual e construtiva, desdobrando brilhantemente seu raciocínio a partir da concepção estrutural do edifício – paradoxalmente antitectônico. No entanto, como dissemos, essas “formas negativas” desconstroem a apreensão tridimensional e axial do espaço, como num magma sem 7 Alejandro Zaera, “Notas para un levantamiento topográfico”, El Croquis 53+79: OMA, 19871998. Madrid: 1998, p. 42. 8 Rem Koolhaas, Conversa com estudantes. Barcelona: Gustavo Gili, 2002, p. 23. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

coordenadas cartesianas. Além disso, como nota Zaera, seus planos dobrados, ou loopings helicoidais, não procuram restaurar os percursos narrativos humanistas, no sentido da fruição moderna do espaço contínuo. Ao contrário, são “táticas de desregulamentação formal”. 37


Guilherme Wisnik

4. Para Robert Smithson, a arquitetura é um sistema de ordenação que entra em falência diante da entropia da natureza, como se vê em “Partially Buried Woodshed” (1969), em que uma casa submerge em meio a um monte de terra. Já Matta-Clark trouxe princípios da land art, como o site specific, para o interior da cena urbana: mais especificamente os subúrbios e arredores de Nova York, como Queens, Bronx e Nova Jersey. Perfurando e extraindo partes de edifícios abandonados (vigas, lajes, paredes, portas, janelas), tomou artefatos arquitetônicos como ready-mades, que não apenas deslocava de seu contexto original, ressignificando-os, mas os mutilava por dentro, como numa colagem cubista às avessas e em grande escala. Nesse sentido, como observou Dan Graham, sua obra é uma espécie de “agit prop urbana”,9 semelhante à ação dos situacionistas em Paris. Quer dizer, seu ataque à arquitetura diz respeito à ilusão de perenidade e eficiência que nela se materializa, tornando-a uma poderosa metáfora do status quo social. Agindo na direção contrária, ao eliminar sua “coluna vertical semântica”,10 o artista revela o caráter efêmero, precário e inútil da arquitetura como construção

Gordon Matta-Clark. Office Baroque, Antuérpia, 1977

simbólica. Assim, ataca o ciclo de produção e consumo da cidade, vale dizer: sua obsolescência programada, o abandono dos bairros suburbanos, e a compartimentação excessiva dos espaços domésticos, normalmente ocultada pela uniformidade protetora das fachadas. De forma complementar, em obras como Fake Estates (1973), em que compra parcelas mortas de terreno por apenas 25 dólares – como um quadrado de 30 centímetros em um miolo de quadra –, desvela a irracionalidade dos processos urbanos escondidos sob a aparente disciplina ordenadora de suas edificações. Pode-se dizer, por essa via, que suas mutilações nos edifícios replicam, inversamente, as cicatrizes urbanas abertas por Robert Moses na malha viária desses mesmos bairros, substituindo antigas ordens comunitárias pela impessoalidade fáustica e desagregadora da modernização capitalista. A Nova York de Matta-Clark é, portanto, o caldeirão de uma vitalidade cultural sem par, forjada na vitalidade “nômade” da cultura de rua de bairros “decadentes” e fabris, subitamente ocupados por imigrantes e artistas, como o Soho. Ali, entre o final dos anos 60 e início dos 70, grupos de artistas ligados ao que se convencionou chamar de “contracultura” desenharam um modo de vida alternativo à eficácia produtiva de Wall Street, extraindo força artística exatamente dessa não-integração radical ao sistema. Agindo nos espaços residuais da cidade, como as galerias subterrâneas, os molhes abandonados, o ermo dos ferro-velhos, os espaços embaixo de ponte, MattaClark associa a arquitetura à pujança pragmática dos edifícios corporativos de Manhattan, isto é, à aura impessoal e tecnocrática do International Style. 38

9 Dan Graham, “Gordon Matta-Clark” [1985], in Corinne Diserens (ed.), Gordon Matta-Clark. London/New York: Phaidon, 2003, p. 199. 10 Marianne Brouwer, “Dejando al descubierto”, in Maria Casanova (org.), Gordon Matta-Clark. Valéncia: IVAM, 1993, p. 51. concinnitas


O ‘ informe’ a partir de Matta-Clark e Rem Koolhaas

Rem Koolhaas está no pólo oposto. Seu desencantamento irônico e aderente ao mundo contemporâneo, às vezes considerado cínico, encarna em grande medida a ideologia liberal vigente. De certo modo, a loja da Prada projetada por ele na Prince Street – a apenas dois quarteirões do antigo restaurante performático Food, de Matta-Clark – pode ser tomada como símbolo da transformação vivida pelo Soho nas últimas décadas: a substituição dos lofts-ateliês, dos galpões de fábrica e do pequeno comércio, por butiques caras e galerias de arte, tornando-se o centro fashion do mundo. Por outro lado – e aqui é que a comparação ganha a riqueza necessária –, Koolhaas é, no star system atual da arquitetura, a figura que mais conserva o arejamento libertário da geração anterior não apenas pelo sentido provocativo, despojado e heteróclito de seu trabalho, mas sobretudo pelo modo como trabalha os programas em vez de manipular técnicas e formas isoladamente, com os olhos postos sempre nos problemas da cidade contemporânea. Este é o substrato de sua fascinação por Nova York: a construção de um mundo inteiramente artificial, cujo sucesso pragmático alimenta-se do ludismo fantástico – em Delirious New York, Koolhaas localiza a origem do ímpeto de construção de “paraísos artificiais” nas experiências prévias dos parques de diversão em Coney Island, junto à foz do rio Hudson. É nessa passagem do fantástico ao hedonismo de mercado que está o princípio gerativo do século XX, que ele chama de “dupla vida utopia”: uma “utopia” capitalista, bem entendido. Se a reação pós-moderna à patologia da cidade funcional tinha sido o abandono nostálgico da cidade em nome da recuperação “contextualista” de tipologias tradicionais, Koolhaas propõe uma “anistia do existente”, isto é, um olhar desideologizado sobre a realidade: subúrbios genéricos, shoppings centers, automóveis etc. Nesse sentido, assume lucidamente a acusação de Bataille e Matta-Clark de que a arquitetura, ao contrário das artes, esteja sempre condenada a uma atitude de positividade em relação à sociedade. Posição que é, portanto, colocada em debate aberto, e que nos leva à discussão sobre o lugar social da arquitetura em tempos de espetacularização da imagem, que Koolhaas afirma polemicamente ter-se tornado uma mistura esquizofrênica de impotência e onipotência.

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Tom Vanderbilt

Esquerda: Seul, 2005. Direita: Galleria Mall, Seul, 2005. Fotos: Tom Vanderbilt

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Cidade circuito

Cidade Circuito Tom Vanderbilt* Traçado do perfil urbanístico de Seul, cidade que ostenta a nova face arquitetônica da era digital, onde as fachadas não mais apenas refletem passivamente a luz da ambiência externa, como no glass curtain wall modernista, mas elas próprias a emitem, projetando as imagens programadas. Arquitetura, design, tecnologia

A respeito da arquitetura pixelada Viva a fachada como uma tela de computador! Viva as fachadas que não refletem, mas emanam luz – o edifício como uma fonte lampejante de informação, e não como uma abstrata fonte ardida de luz!... Viva a iconografia – não aquela esculpida em mármore para a eternidade, mas a digitalmente mutante para o agora, de modo que a propaganda fascista inerentemente perigosa, por exemplo, possa ser temporária, mas não eternamente proclamada! (Robert Venturi, Architecture as Signs and Systems for a Mannerist Time, 2004) Seul não possui muito daquilo a que urbanistas se referem como “legibilidade”. Em vez de possuir um centro compacto com marcos reconhecíveis e fábricas coesas nas vizinhanças, é um lugar agressivamente disperso, ocupado por torres comerciais matizadas e multidões de quarteirões residenciais de construção barata, erigidos em meio à fúria da urbanização. Por ser uma cidade que resistiu a inúmeras invasões para então passar por um dos períodos de crescimento urbano mais explosivos já vistos no século XX, a paisagem citadina acaba assemelhando-se a uma tábula rasa de urbanismo genérico, uma laçada sem fim de modernidade envolta em neblina. Mas, após passar alguns dias navegando pelas ruas repletas de carros, uma característica urbana bem distinta começou a se salientar: a ubiqüidade da tela. Parecia mesmo que eu dificilmente ficaria sem ter qualquer um daqueles quadros brilhantes longe da vista, mesmo a distância. Também havia telas nos metrôs, lojas de conveniência, elevadores – encontrei uma tela até mesmo no chão de um cassino, Tradução Jason Campelo Revisão técnica Sheila Cabo Geraldo *Tom Vanderbilt é autor de Survival City: Adventures among the Ruins of Atomic America. Vive no Brooklyn e escreve para a Artforum.

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talvez visando atrair o olhar baixo de um jogador azarado. O prédio SK T-Tower – projetado por Aaron Tan –, no distrito financeiro da cidade, base da matriz da empresa de telecomunicações SK, estava envolto por uma fina faixa de LED. Acompanhando um grupo de telas no lobby do 41


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prédio, o feixe de LED exibia uma série de obras criadas por artistas coreanos. O curador da galeria Art Center, em Seul, dedicada às novas mídias, levara-me para conhecer o prédio e contou-me que as imagens do lobby – representações digitalizadas, ativadas por movimento, de pessoas que passam por suas portas – logo seriam interpoladas por imagens em tempo real geradas por um conjunto semelhante no lobby de outro prédio da SK, no sul de Seul. Eu me perguntava: seria isso a “interconectividade” ou apenas uma extensão da desordenação urbana – a multidão anônima em teleconferência? Uma noite, não muito tempo após a visita à Torre SK-Tower, enquanto dirigia pelo elegante distrito de Apgujeongdong, deparei-me com o Galleria Mall, um prédio enorme, quadrado, cujo exterior era de um total e esplendoroso verde luminescente. Animações aleatórias deslizavam por sobre sua superfície pixelada. O exterior do Galleria – antes uma caixa de concreto monótona – foi trabalho do designer de luz holandês Rogier van der Heid, da Arup Lighting, que no ano passado revestiu a estrutura com mais de quatro mil discos de vidro. Com um sistema de iluminação em LED que é capaz de gerar em torno de 16 milhões de cores, o prédio, que durante o dia parecia simplesmente possuir um exterior elegantemente opalino, tornou-se uma tela na escuridão. O que estava acontecendo com essa cidade de telas? Claro que não era algo meramente limitado à arquitetura ou aos sinais. Conforme nota o teorista urbano Anthony Townsend, os residentes de Seul passam mais tempo on-line que os habitantes de outras metrópoles; o tráfego nas redes coreanas é cinco vezes superior ao de qualquer outro lugar. Além disso, há mais casas conectadas à internet de banda larga em Seul do que em toda a Alemanha ou Reino Unido. Uma combinação de política governamental com densidade urbana e outros fatores tecnológicos e sociais ajudou a criar a cidade mais conectada do planeta. Isso significa, é claro, mais telas. As ruas de Seul estão repletas de pedestres perscrutando seus telefones celulares de última geração (muitos agora apresentando recursos de transmissão televisiva ao vivo), de adolescentes tirando fotos uns dos outros com seus celulares (presumivelmente para as enviar a amigos em algum outro nó urbano). Pode-se simplesmente acrescentar a isso tudo o fato de que a Coréia é a terra da LG e da Samsung, duas das maiores produtoras mundiais de monitores. Junto ao arranha-céu, a tela tem sido um dos aspectos particulares da modernidade asiática. A visão de Los Angeles centrada em telas, representada por Ridley Scott no aclamado Blade Runner (1982), foi – segundo o diretor notou – inspirada por sua estada em Hong Kong 42

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Cidade circuito

durante a década de 1960. Scott descreve uma cidade paradoxal cujo horizonte eletrônico negligenciava um porto repleto de quinquilharias de pesca do século XIX. Mas essas telas eram simples veículos estáticos para a transmissão de mensagens comerciais, melhoramentos mecânicos de uma tradição em propaganda pública. O mais interessante que descobri em Seul a respeito das telas é que essas não eram meros apêndices arquiteturais transmitindo mensagens, mas arquitetura em si mesmas. Não eram simples veículos remetendo informação de mão única para um público passivo, mas uma camada ativa das matrizes de redes da cidade. Parar em uma rua era parar em uma rua de centenas de telas, e, ao falar “telas”, quero dizer a manifestação externa – a interface de usuário coletiva – do fluxo digital despercebido que pulsava abaixo, na mesma rua, invisível, mas tão parte da experiência da cidade quanto o concreto das calçadas. Seul parece ser o local apropriado para testar as teorias aventadas em Placing Words: Symbols, Space and the City (2005), o livro mais recente de William J. Mitchell, professor de arquitetura e artes de mídia no MIT, que dedicou muita energia preliminar (por exemplo, no livro City of Bits: Space, Place and the Infobahn [1996]) ao estudo da interseção entre tecnologia e urbanismo. A nova coleção de ensaios de Mitchell percorre um largo espectro de possibilidades, mas possui vários temaschave que interessam especificamente à cidade das telas. A idéia da própria tela como um elemento arquitetural é a mais pertinente – conforme visto no SK T-Tower e no Galleria Mall. Como Mitchell diz, os avanços na tecnologia de displays LED maleáveis e em outras tecnologias “permitiram a fabricação de conjuntos de fontes de luz muito extensas, confiáveis e controláveis, que podem ser ajustados sobre praticamente qualquer tipo de superfície... As distinções tradicionais entre design de luz, arquitetura e computação gráfica estão começando a desaparecer. Tudo que ilumina pode ser tratado como um pixel direcionável e programável.” O que acontece com um prédio quando até mesmo seus tijolos são pixels e ele se transforma em uma tela? Ele pode ser apreciado como prédio em si mesmo, ou a imagem que ele transmite simplesmente o engole por inteiro? Julgamos o prédio pelo conteúdo de sua tela ou pelo mecanismo que a mantém? O meio ou a mensagem? Mitchell tem uma teoria: “Pode-se argumentar que a arquitetura sempre lidou com superfícies animadas – efeitos clássicos de quebra-luz e sombras à medida que o sol e as nuvens se movem. Os efeitos de reflexão e transparência criados com vidro, metal e superfícies polidas a máquina, como no Pavilhão Barcelona, ou com combinações sutis dos dois últimos, ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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como no novo Disney Concert Hall, de Los Angeles.” Mediante sua geometria, esses efeitos são calculados nos prédios. Não obstante, Mitchell escreve que “podemos separar o software de dinâmicas arquiteturais do hardware e executar este software, em alta velocidade, em aparelhos digitais de baixo custo, reprogramando os efeitos conforme nossa necessidade.” Assim, a tela se está tornando a fachada icônica da era digital, como foi, para o modernismo, o glass curtain wall, que solapou a distinção entre os domínios do público e do privado; a tela porém, oferece revisões ainda mais radicais de espaço. Por exemplo, este ano a Los Angeles Architects Eletroland propôs a colocação de uma série de luzes LED no exterior de um prédio. Como o grupo descreve, “uma matriz de luzes LED embutidas no saguão de entrada responde à presença dos visitantes, enquanto um display maciço de luzes na fachada do prédio reflete esses padrões. A fachada do prédio age como uma representação visual em tempo real das atividades humanas no interior das fronteiras físicas, colocando pelo avesso o conceito arquitetural das fachadas”. Para citar

SK T-Tower, Seul, 2005

outro caso, instalou-se no museu Kunsthaus Graz da Áustria um campo de 8.600 pés quadrados1 com luzes circulares fluorescentes que agem como pixels na fachada oriental do prédio. O museu pretende usar essa “tela urbana” não apenas para “projetar seu aspecto comunicativo no espaço público”, como também para abrigar instalações que digam respeito à “interação entre mídia e espaço”. A tela é uma fachada local – ou seja, um intermediário em mão dupla entre interior e exterior – e outro espaço que não está em nenhuma parte nesse intervalo: um display conectado a redes de dados globais. De modo ainda mais significativo, o museu alega que, uma vez que as margens da tela não são vistas a não ser quando ativadas, a instalação “dá a impressão de que não a tela, mas o próprio Kunsthaus envia imagens e figuras” (grifo meu). Isto é exponencialmente triunfante: a tela desmorona em si mesma, entrelaçada à arquitetura, com suas próprias fronteiras também quebradas. Conforme predito pelo teórico das novas mídias Lev Manovich, em 2002, “em um prazo mais longo, todo objeto pode vir a ser uma tela conectada à rede, sendo o espaço construído um conjunto de superfícies com displays e mostradores”. A ironia da cidade das telas é que a tela, mesmo pretensamente, tornaria a cidade obsoleta: a internet passaria a ser um tipo de nãolugar metaurbano, e a tela do computador, uma interface constante com esse sem-lugar, sete dias por semana, 24 horas por dia. Ainda assim, como Mitchell aponta, “contrariamente às expectativas outrora populares, as redes digitais ubíquas não extirparam as diferenças 44

1 798.965 metros quadrados. (NT) concinnitas


Cidade circuito

entre lugares, permitindo que qualquer coisa acontecesse em qualquer lugar, a qualquer hora. Ao contrário, elas produziram um mecanismo para a injeção contínua de informação útil em contextos nos quais isso era antes impossível e em que tal fato cria novas camadas de sentidos”. Em outras palavras, a tela e a cidade fundiram-se, uma informando a outra. Seul, por exemplo, tem miríades de bangs, palavra que significa – grosso modo – “salas”, que essencialmente funcionam como espaços de transição entre os domínios públicos e privados. São lugares íntimos, onde pessoas se reúnem para cantar karaokê, paquerar ou beber soju. 2 A cidade das telas não dizimou a “cidade do bang” (como descrito em uma exposição no pavilhão coreano da Bienal de Veneza deste ano); ao contrário, aumentou e até mesmo acelerou seu crescimento. Um dos tipos predominantes de bang é o “pc bang”, em que pessoas jogam, em conjunto, partidas de video game em rede, ou seja, indivíduos se encontram em um espaço construído para participar de um mundo virtual. Os exemplos não terminam aí, aliás. Pois não é incomum que um jogador, tendo saído do bang para dar uma volta pelas ruas da cidade, receba – via SMS, em seu telefone celular – atualizações de seu progresso no mundo virtual. Exemplo inverso vem da Europa, onde dezenas de milhares participam de BotFighters, um jogo baseado em plataforma de aparelhos de telefonia celular que utiliza tecnologias de rastreamento para localizar jogadores à medida que eles se movem pela cidade, que, na tela se transforma em um reino virtual. A tela não chega a matar a cidade, mas a absorve. A extensão de quanto a cidade das telas está evoluindo e mudando me foi demonstrada em uma tarde recente, enquanto andava pela Times Square, possivelmente o lugar de origem da cidade das telas. Por entre os muitos displays relampejantes que observei estava o da Nike iD, mostrando um tênis de atletismo e um número de telefone. Não dei muita atenção a princípio, mas fui entender, mais tarde, que não estivera olhando para um painel comum: o passante poderia digitar aquele número em seu telefone celular, e depois, imediatamente, usar as teclas do telefone para projetar e encomendar o seu próprio calçado. Nosso novo designer receberia então, via SMS, uma foto de seu calçado e um endereço de internet em que poderia encomendá-la. Nesse caso, as pessoas estão usando suas telas particulares para manipular uma tela pública, 2 O soju é bebida alcoólica à base de arroz, às vezes combinado a outros ingredientes, como batata, cevada ou tapioca. De cor muito clara, tem teor alcoólico variável de 20 a 45% por volume. (NT) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

permanecendo em um ponto urbano fixo apenas para participar do design e comércio virtual. Em algum outro lugar, a imagem dessas pessoas interagindo com a tela foi gravada por câmeras e vista em outra tela. As margens das telas diluem-se para dentro da cidade. 45


MNBA


RUA MÉXICO

AV. RIO BRANCO

CORTE



1 CLUBE NAVAL 2 I.N.S.S. 3 TEATRO MUNICIPAL 4 M.N.B.A. 5 MINISTÉRIO DA SAÚDE 6 CÂMARA MUNICIPAL 7 BIBLIOTECA NACIONAL 8 A.B.I. 9 SUPREMO TRIBUNAL 10 PALÁCIO GUSTAVO CAPANEMA

10

5

8 2

7

4

9 1 3

6


FACHADA AVENIDA RIO BRANCO


PLANTA DO NÍVEL TÉRREO COM SERVIÇOS E ACOLHIMENTO


PLANTA DO NÍVEL DOS SALÕES DE EXPOSIÇÃO


PLANTA DO NÍVEL DA BIBLIOTECA COM SALA DE LEITURA SOB A CÚPULA E ACESSO ÀS VARANDAS SOBRE A AV. RIO BRANCO


CORTE COM ESQUEMA ESTRUTURAL

Museu Nacional de Belas Artes, RJ Projeto de Readequação Paulo Mendes da Rocha, 2005 Área construída: 23.000 Colaboradores: Martin Corullon, Guilherme Wisnik, Anna Ferrari, Gustavo Cedroni, Stefan Baumberger e Carolina Castro Estrutura: Heloisa Maringoni


MNBA – Rio de Janeiro O edifício sede do Museu Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, posto em questão quanto à sua restauração e atualização, exige uma abordagem técnica, na essência. Toda a situação, do ponto de vista dos conceitos de memória e futuro, deve incidir sobre a idéia de como intervir. Convoca e submete a técnica a esses conceitos amplos – a cidade atual – o único e último recurso para uma aproximação possível de realização. Uma visão de idéia e coisa. Construção – restauração. A preocupação principal é a restauração da monumentalidade histórica deste recinto da cidade do Rio de Janeiro, com a oportuna presença deste museu reformado, atualizado. Reconstruir o MNBA. Para tanto, o partido adotado visa duas operações básicas: 1.Restaurar e recompor o edifício original, com sua característica histórica peculiar, para exclusivos recintos expositivos, abertos ao público. Esvaziá-lo de todas as instalações secundárias de apoio e, ainda, demolir o que foi acrescentado de modo prejudicial. 2.Construir uma estrutura nova, anexa, para abrigar todas as instalações administrativas técnicas de apoio e do maquinário, indispensáveis à modernização do museu. Um anexo de serviços técnicos por dentro do antigo edifício, implantado no vazio do pátio interno. Uma torre circundada pela construção horizontal existente. Diante desta nova configuração, alguns destaques podem ser dignos de nota: - O anexo será realizado com estruturas metálicas de fácil montagem e as fundações adequadas à situação e condição do prédio atual. - O sistema construtivo desenhado é usual

e oportuno, intercalando andares estruturais com andares livres, sistema muito propício às novas e desejadas instalações de apoio do MNBA. Depósitos do acervo, salas de trabalhos e montagens, laboratórios de restauro, máquinas, sistemas de climatização e demais exigências indispensáveis, estabelecidas no programa. - Os níveis de pisos nesta nova estrutura, coincidindo com os níveis dos salões de exposição na coroa antiga, ampliam as áreas expositivas das salas originais sem tocar no caráter de coisa restaurada. O novo deve aparecer de modo claro, constituindo a atual integridade dos espaços do museu. -No nível do chão da cidade, toda a quadra do museu estará livre para a máxima imprevisibilidade possível dos eventos e convívio com a vida urbana cotidiana. Exposições temporárias, café- restaurante, vendas, áreas de recepção... A entrada principal do público visitante será mantida na Av. Rio Branco e através da escadaria do projeto original. - O acesso do público à torre limitase aos andares expositivos coincidentes nas duas construções. Os demais níveis do anexo serão restritos ao pessoal especializado ou convidados. - Quanto à cota superior da torre, é possível fazê-la coincidir com a cota da torre do MEC. - Do ponto de vista do cenário urbano, a torre será confundida com outra qualquer do entorno. Sua implantação deverá parecer enigmática no conjunto e não existir para o pedestre no passeio público na vizinhança. Esta é uma breve introdução para os demais elementos descritivos, bem como os desenhos, plantas, secções e modelo do conjunto proposto.


1234567890123456789012345678 1234567890123456789012345678 1234567890123456789012345678 1234567890123456789012345678 Luiz Cláudio da Costa 1234567890123456789012345678 1234567890123456789012345678 1234567890123456789012345678

Arte como tecnologia: o que determina que algo seja ainda arte? Luiz Cláudio da Costa* “Arte como tecnologia” é o nome provisório do grupo de pesquisa que teve início na Uerj. Esse nome deveria evitar a separação entre arte contemporânea e arte tecnológica e o equívoco do privilégio do meio na reflexão sobre arte. Desessencializar o meio, porém, não significa necessária ausência de preocupação com a forma, mas a compreensão da formação heterogênea de todo meio. A arte expandiu suas técnicas e linguagens a ponto de encontrar-se com a ética e a lógica, a antropologia e a comunicação, o entretenimento e a publicidade, a engenharia e a computação. O artista compreendeu com isso que seu problema não é o meio ou técnica específica com que trabalha, mas acima de tudo seu próprio campo, a arte em geral. Então, a questão crítica desse campo deveria ser antes o que determina que algo seja ainda arte quando da interferência heterogênea dos campos e não o que é a arte tecnológica. Arte contemporânea, arte tecnológica, autonomia da arte

“Arte como tecnologia” é o nome provisório1 do grupo de pesquisa que teve início na Uerj, originalmente discutido por mim e Ricardo Basbaum. Pensávamos esse nome como uma maneira de evitar a separação entre a arte contemporânea e a arte tecnológica. Rejeitávamos dar à tecnologia enquanto meio o primeiro plano da realização artística. Todo fetichismo sobre um meio seria danoso para a arte contemporânea que se lançou à expansão de seus territórios desde os anos 60. O artista plástico passou a utilizar várias linguagens, artísticas ou não, atravessando as especificidades formais da teatralidade, da dança, do filme, da fotografia, encontrando a postagem, os objetos cotidianos, os meios de comunicação de modo geral – rádio, tevê, jornal. Dessa época, sem mencionar o início do século XX com as vanguardas históricas, deriva a prática de investigação de novas modalidades de produção e recepção. Uma simples ação ou atitude poderia ser arte se feita por um artista, ainda que buscasse levantar questões éticas ou filosóficas. A expressão “arte como tecnologia”, na falta de outra, deveria servir para evitarmos o equívoco do privilégio do meio. Seria, portanto, um engano dar a uma técnica, tradicional ou avançada, o lugar de 56

1 Atualmente o nome definitivo do grupo é “Tecnologias da arte: sistemas dispositivos e fissuras”. concinnitas


Dossiê desdobramentos, redes e labirintos

protagonista na produção artística, pois se poderia facilmente sucumbir a um formalismo envelhecido. Desessencializar o meio, porém, não significa necessária ausência de preocupação com a forma, ainda que muito da produção atual se efetue na dimensão do informe e do conceitual. Ocorreu, com efeito, desde os anos 60 uma conscientização das instituições que estão envolvidas na sustentação da Arte, conduzindo alguns artistas à desmaterialização do objeto e a uma certa desestetização da arte. Mas não essencializar o meio material, técnica ou meio, levou a descobertas sobre o espaço ambiente da obra artística e a participação do corpo na construção do sentido. A pintura de Pollock não pode ser pensada somente a partir do parâmetro de uma autoreflexividade da obra sobre seu meio específico, uma vez que não está em jogo apenas a planaridade da tela, mas também os movimentos do corpo do artista. Deu-se a partir desse momento uma diminuição da importância formal do meio específico ou uma maior compreensão da formação heterogênea de todo meio, ao mesmo tempo em que a arte se expandia em direção a campos heterogêneos do conhecimento. No movimento de desterritorialização da arte, o artista não perde de vista a necessária tensão entre meios versáteis e campos expandidos do conhecimento, problematizando ora um ora o outro, mas sempre criando instabilidades sobre verdades universais, identidades fixas, o determinado de maneira geral. Se a técnica não é apenas mero instrumento para a formalização artística em um dado meio, a negação ou morte da arte também não esgota a insistência da arte. Por um lado, a técnica atua no campo da significação, jamais sendo passiva ou homogênea. Por outro, os questionamentos levados a cabo pelas vanguardas históricas e revistos pelos artistas das décadas de 1960 e 1970 não implicam a morte literal da arte. A produção artística, tensionando as fronteiras dos meios, dos gêneros e dos campos, problematizando o lugar da arte e a fetichização do objeto artístico, sempre formaliza sensações indeterminadas, mesmo que sob a modalidade de ações ou acontecimentos efêmeros. O que estou tentando formular se coloca de modo simples: o artista plástico não precisa saber fazer solda para projetar uma placa dobrável de ferro, ainda que precise saber do efeito ético-estético que tal dobra no ferro possa produzir. Um ambiente em que o espectador vê e sente o sal grosso, o bacalhau e o café é muito distinto de outro em que esses produtos pudessem ser simulados tecnicamente. Os efeitos são distintos, e os sentidos, diferenciados, ainda que essa diferença não seja hierarquizável. O artista, utilizando ou não a tecnologia digital e a internet, precisa saber antes que efeitos ele busca. Saber trabalhar com a técnica não é o fundamental, ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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uma vez que pode projetar e solicitar um técnico que o execute. Pragmaticamente, o que importa são os sentidos produzidos na recepção, a subjetivação efetuada. Sobre uma obra de arte não se pergunta o que ela significa, mas o que ela faz. E o que ela produz são sensações que atravessam corpos e sujeitos através dos agenciamentos diversos de meios, técnicas e campos do conhecimento. Certo é que há diferenças entre os meios, no que diz respeito aos efeitos estéticos, éticos, sensoriais e mentais. As diferenças de sentido, entretanto, não podem implicar a fetichização de uma nova técnica. Essa pode implicar a renovação dos questionamentos e a atualização de noções, mas os problemas da cultura artística de um determinado momento histórico não podem ser abandonados. Os problemas da arte contemporânea só se podem agravar no contexto do aparecimento de uma nova técnica: como fazer um filme, escultura ou pintura e não levar em conta a relação heterogênea entre o meio artístico, o corpo do participante, a formação de subjetividades, mais do que a especificidade de uma técnica? Como não pensar no problema da arte em geral, mais do que na arte específica? Como fazer instalações, objetos e não-objetos e não considerar a problematização da autonomia do meio, do gênero, da arte e do objeto artístico levantados pela compreensão heterogênea dos campos e das técnicas? Como não observar a relevância dos novos circuitos quando se trata de apresentar um web site ou web filme que alcança públicos tão variados e incertos? Como propor ações, atitudes ou performances sem pensar no local oportuno politicamente? Como produzir mostras e festivais de vídeo sem pesar os circuitos alternativos gerenciados pelos próprios artistas? As tecnologias avançadas trazem problemas e noções específicas – presença, ausência, tempo, verdade, atualidade, memória, subjetividade, corpo, interação, imersão –, uma vez que elas estão atuando como meio. Mas esses problemas não surgiram com as novas tecnologias, e nem as condições da arte mudaram por conta desse contexto. É claro que a possibilidade de alcançar espectadores longínquos para interagir com o trabalho é menor numa obra escultural mesmo que pública e localizada numa praça do que num filme na rede. A interação entre um espectador-participador com um objeto ou não-objeto é muito distinta daquela possibilitada por um site na web. A interação com um Bicho de Lygia Clark ou um Parangolé de Hélio Oiticica é física, ao passo que com web site é virtual. O hipertexto digital interativo coloca problemas para a recepção do participador diferentes daqueles postos por um livro hipertextual de artista. O retorno à forma original antes das modificações propostas pelo participador de um hipertexto virtual pode ser efetuado 58

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apenas digitando algumas teclas ou clicando com o mouse. Já com um livro físico de artista, tudo deve ser reorganizado materialmente. No segundo caso, os problemas para o participador continuam até a finalização e reorganização do trabalho original. No primeiro caso, voltar à forma original é um momento em que a obra já não é mais problemática. A presença de uma nova mídia agrava ou dobra questões mais antigas. No mundo da videoesfera e da sociedade do espetáculo, a arte que produz eventos midiáticos estampa os mecanismos de nossa cultura de mercado, paradoxalmente, jogando o jogo do espetáculo. Orson Welles colocou no ar o programa de rádio A guerra dos mundos e mostrava a qualidade de simulacro desses eventos. Andy Warhol com outras técnicas e já no contexto da televisão exacerbou de modo ainda mais ácido o problema. Warhol mostrouse perversamente consciente e apto para a manipulação dos processos da cultura midiática. Fosse com o silk-skeen ou com a imagem-movimento, em seus retratos de celebridades, Warhol investigou os mecanismos de inscrição do individual, a fabricação da identidade, o mundo do simulacro. Mas nem por isso tornou-se sociólogo ou antropólogo. É verdade que avançando no território alheio, questionando sua linguagem e suas técnicas, problematizando a função da arte, o artista corre o perigo de se tomar pelo que não é: um antropólogo medíocre que nem antropólogo é. Do mesmo modo, as façanhas da tecnologia podem levar perversamente o artista a confundir seu trabalho com a pura diversão dos acontecimentos midiáticos espetaculares. Se o artista se volta para o mundo e se aborda o campo do designer gráfico ou do engenheiro ou se se aproxima da cidade, do cotidiano, da cultura como um etnógrafo ou um publicitário, ele não deixa de ser artista enquanto formaliza as questões condicionadas por seu campo. Do mesmo modo, se ele investe no entretenimento e na comunicação não é como técnico, mas como artista que deseja criar tensões e problemas. É na verdade essa estranha tensão que o mantém artista em função e campo específicos, ainda que ampliados. O artista problematiza a linguagem e o meio em que trabalha; mas, sabendo que todo meio é sempre heterogêneo, ele questiona acima de tudo seu próprio campo, a arte em geral. Ampliando seu território ao do técnico ou do designer gráfico no entretenimento tecnológico, há que manter a tensão necessária entre os domínios da arte e os da diversão: fazendo outdoors, o artista problematiza essa relação, não faz publicidade. Não seria diferente com o artista das tecnologias avançadas. O artista ou o teórico de arte que lida com as novas tecnologias pode facilmente cair no discurso protoformalista, defendendo as ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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especificidades do meio e das técnicas. Não se rejeita aqui o formalismo, mas entende-se que a questão formal não se pode dirigir a uma suposta essência do meio, pois esse se articula sempre com um corpo presente e sensações ausentes indeterminadas. Por isso não se pode ingenuamente acreditar que as noções de interação e imersão são originárias dos meios tecnológicos. Elas são essenciais na arte de maneira geral. A imersão dos participantes nas Cosmococas de Hélio Oiticica e Neville de Almeida questionava a modalidade de recepção do espectador do cinema tradicional, liberando seu corpo para interagir mais do que contemplar, multiplicando a possibilidade de mobilização de sensações, sentidos e efeitos não previstos. As Cosmococas problematizavam a arte cinematográfica fazendo arte e produzindo o efeito-cinema das imagens em movimento. Mesmo que o jogo lúdico no interior daqueles ambientes fosse quase o de um parque de diversões um tanto perverso, as Cosmococas atuavam ainda nesse campo heterogêneo da estética. Podese hoje colocar a pergunta no contexto das tecnologias avançadas: o que é fazer um ambiente com as novas tecnologias e manter a tensão da heterogeneidade e a produção de sensações imprevistas, ambas necessárias a um trabalho artístico? Desde os anos 90 falamos de ciberespaço. Nos anos 70, falava-se em videosfera. O computador pessoal surge por volta do mesmo momento em que apareciam os equipamentos Portapack de vídeo. A Sony levou ao mercado esse equipamento no final dos anos 60, e o início da década seguinte introduziria o videocassete no mercado. Pierre Lévy fala que a internet é criada nos anos 60 por uma geração que deseja compartilhar seus conhecimentos e idéias livremente. Com efeito, o uso civil do computador, segundo o próprio Lévy disseminou-se na década de 1960, mas foi nos anos 70 que se deu a “virada fundamental” com o desenvolvimento e a comercialização do microcomputador. O computador pessoal aparecia na efervescência da contracultura que, segundo Lévy, “apossou-se das novas possibilidades técnicas”.2 As condições da arte estavam em transformação no mesmo momento histórico em que apareciam o vídeo (Portapack e depois o VHS) e o computador. O vídeo foi imediatamente encampado pelos artistas – afinal era uma mídia de gravação tecnicamente simples para o usuário – que desejavam se aventurar em novos meios, no contexto da crise da pintura e da escultura. Para utilizar o computador em larga escala, os artistas teriam que esperar até o aparecimento das interfaces amigáveis nos anos 80. De qualquer forma, essas técnicas ao alcance do usuário comum surgem nos anos 60/70 no contexto de uma cultura que queria experimentar eticamente o mundo e a vida. No âmbito da cultura, havia 60

2 Lévy, 1999, p. 31. concinnitas


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um questionamento político intenso das instituições de modo geral. Os artistas já vinham desde o final dos anos 50 questionando o formalismo dos meios e já pesquisavam outras técnicas, incluindo o cinema. E nas décadas seguintes experimentariam o vídeo e, logo, o computador. O contexto da crise da arte era o mesmo que o do aparecimento das novas técnicas: a arte contemporânea surgia junto ao desenvolvimento dessas novas ferramentas. Considerar que as chamadas novas tecnologias teriam questões muito distintas daquelas dos artistas e da arte em geral seria um equívoco. É certo que os meio e os novos equipamentos técnicos haviam de ser investigados em seus problemas específicos, mas sem deixar de se engajar no contexto heterogêneo das condições da cultura artística, mesmo que para problematizá-los. Com a crise da autonomia atravessada por múltiplos campos do conhecimento e utilizando significantes tão heterogêneos, a arte contemporânea descobriu novos lugares para acontecer e revelou mais do que novos gêneros ou técnicas. A arte contemporânea deu a conhecer novas noções, qualidades e condições. A arte expandiu suas técnicas e linguagens a ponto de encontrar-se com a ética e a lógica, a antropologia e a comunicação, o entretenimento e a publicidade, a engenharia e a computação Então, a questão hoje deveria ser antes o que determina que algo seja ainda arte quando da interferência heterogênea dos campos e não o que é a arte tecnológica. Tal problema deve ser aquele que condiciona a arte. Sendo a questão que a arte contemporânea tem tencionado como condição crítica de sua permanência, esse problema não pode ser abandonado pela arte tecnológica, ainda que haja necessidade de se compreender esse meio tão específico.

Bibliografia PARENTE, André (org.). A imagem máquina: a era das tecnologias do virtual. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1993. FOSTER, Hal. El retorno de lo real: la vanguardia a finales de siglo. Madrid: Akal, 2001. LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Ed. 34, 1999. BASBAUM, Ricardo (org.). Arte contemporânea: texturas, dicções, ficções, estratégias. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001.

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Arte como um campo de interações Carlos Nóbrega* Esta comunicação busca pensar a arte interativa pela perspectiva da arte como simbiose entre campos de energia: a energia vital de nosso corpo físico e a energia do corpo eletrônico digital. Não podemos esquecer que diante de todo dispositivo tecnológico que nos monitora e nos percebe se encontra o nosso corpo, que participa com seu sistema biológico, emitindo sinais de vida e consciência em toda sua complexidade. Somos corpo e alma num território que requer a emergência de novos paradigmas, novos dispositivos imaginários, novas visualizações e novos afetos. Energia, interação, simbiose

Complexidade Conta Vasari, contemporâneo e biógrafo de Michelangelo, que depois de terminar o Moisés e diante de sua perfeição o artista teria batido no joelho da escultura e pronunciado a expressão: Parla! Esse gesto pode ser interpretado como a tentativa de acrescentar à matéria física, esculpida, uma substância ou sopro vital que lhe atribuísse vida, tornandoa, assim, um organismo vivo. Tal evento antecipa a distinção ocidental moderna, segundo a qual, os seres vivos, corpos animados, se diferenciariam dos corpos inanimados por conter uma substância vital. O corpo seria assim uma biomáquina, ativada por reações bioquímicas e pela alma. Essa distinção decorre (e a ela reage) de uma visão do mundo natural que, em síntese, o apresentava como um grande mecanismo, operando tal qual as engrenagens de um relógio, ajustadas e concatenadas de maneira que o funcionamento global de todo o sistema correspondesse ao comportamento individual de suas partes.1 Um dos *Carlos Nóbrega é professor de desenho da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro onde se graduou em Artes com formação em gravura e Mestre em Comunicação e Tecnologia da Imagem pela Escola de Comunicação da UFRJ. Como principais interesses estão interatividade e interface como um meio para se pensar e construir novas realidades com o auxílio das tecnologias digitais, assim como explorar híbridações entre corpo digital e corpo físico. 1 Oliveira, 2003, p. 140. 2 Entenda-se por prótese qualquer aparelho que auxilie ou aumente uma função natural, como visão ou audição, por exemplo. 3 Oliveira, op. cit., p. 142. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

pressupostos de tal visão é que em seu nível elementar a natureza seria simples, ou seja, mesmo que subdividida em partes infinitesimais, essa grande máquina universal, da qual fazemos parte, teria poucos atributos, ainda que seu funcionamento fosse complicado, com diversos elementos realizando inúmeras funções. Contudo, o século XX nos apresenta, com a revolução científica e o auxílio de poderosas próteses2 de sensibilidade, uma nova concepção de mundo natural. Em detrimento da visão clássica da natureza e sua imagem maquínica, surge a então chamada imagem da complexidade.3 Com efeito, essa nova imagem implica a revisão de certos fenômenos, observando-se a existência de classes distintas e formas variadas de 65


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estruturação e funcionamento de suas partes. Em outras palavras, podemos dizer que a natureza deixa, por essa ótica, de ser unânime e simplificada para ser ambígua e complexa conforme o foco e escala do que se queira investigar. Essa concepção revela um novo paradigma para esse milênio, o qual implica transformações essenciais para o Ocidente, repercutindo em sua herança cultural e concomitante percepção do mundo. Entre essas mudanças estão as diluições das fronteiras entre natureza e cultura, sujeito e objeto e entre interioridade e exterioridade.4 Para pensarmos o corpo e sua sensibilidade dentro de um ambiente assistido tecnologicamente é importante levarmos em conta que a base para compreensão da realidade contemporânea, em especial no que diz respeito à arte do século XXI, se encontra rizomaticamente entrelaçada aos fundamentos dessa nova cosmovisão complexa, baseada nos paradigmas atuais da ciência e da tecnologia. A percepção da mudança de uma imagem mecanicista do mundo para uma imagem de complexidade, auxilia-nos a entender a arte tecnológica como um microssistema no qual o corpo participa como um agente ativo, compartilhando seus afetos e percepções. De biomáquinas individuadas, passamos a ser processo em tempo real em labirintos informacionais. As mesmas próteses que nos concederam uma nova visão da natureza em suas múltiplas escalas agora estão voltadas para nós. Somo seres em permanente formatação.

Novos paradigmas Aos poucos a história da arte foi-se mostrando como a história da passagem de um sujeito que percebe o mundo para um sujeito que se percebe no mundo. Na medida que o olhar retorna para si, o corpo se coloca cada vez mais no centro de sua própria investigação. Desde Velásquez, em seu quadro Las Meninas, somos capturados para dentro de um sistema de significação cuja imagem nos denuncia como participantes na obra, antecipando a Duchamp a consciência de que a participação do observador é importante em sua constituição. O gesto corporal expresso na action painting, amplificado nos happenings, performances, body-art e na obra de Ives Klein, sem esquecer os brasileiros Hélio Oiticica e Lygia Clark, aponta para um corpo investido e acoplado5 com as técnicas de produção. Interfaceado com as tecnologias digitais de comunicação, nosso corpo biológico produz um diálogo com diferentes entidades físicas e virtuais. Palavras, sons, movimentos gerados e memorizados tecnologicamente são agora interlocutores e não mais reflexos de uma mente criadora. Os limites do corpo, sua materialidade, sua presença 66

4 Ibid., p. 143. 5 Domingues, 2002, p.61. concinnitas


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física, sua energia são informações, inputs de dados que transitam em feedbacks interativos nos ambientes numéricos. Sistemas artificiais se alimentam de nossos sinais vitais. A obra nos vê através de seu cérebro eletrônico. Suas redes neurais, compostas de camadas de interfaces, são agentes cognitivos do transe eletrônico. Em comunhão com a ciência, a experiência artística sempre funcionou como um amplificador dos sentidos, e hoje, mais do que nunca, auxiliada pela instrumentação tecnológica, a obra torna-se um microcosmo caótico revelando novas visualidades, novos significados, estruturas outras, baseadas em trocas de sensibilidades.

Simbiose homem/máquina Se nos ambientes mediados eletronicamente nossos gestos se estendem para além dos limites do corpo, é, ao mesmo tempo, para dentro do corpo que os organismos digitais e suas redes se ramificam. É no cruzamento desses campos de energias que ecoam nossos desejos e é através dessa malha complexa que nossos níveis de consciência se reestruturam em novas arquiteturas cognitivas. O corpo é a mídia e a interface. Diante desse novo paradigma, o corpo interfaceado é sujeito e objeto para uma consciência que se expande além das superfícies. McLuhan já antecipava que “os sistemas elétricos de informação são ambientes vivos no pleno sentido orgânico”.6 Isso reforça nossa hipótese de que a experiência interativa com as obras de arte fundadas nas tecnologias digitais da comunicação eleva esse sujeito interativo da categoria de usuário para a categoria de simbionte,7 levando-se em consideração a obra como um sistema simbiótico entre organismos e campos de forças que se interconectam. Na medicina vibracional, veremos que uma nova abordagem do corpo é considerada em detrimento de uma visão mecanicista que insiste em encarar os seres humanos como um conjunto de engrenagens biológicas.8 Esse novo modelo de medicina, baseado na física quântica e einsteiniana, vê o corpo como um sistema dinâmico de energia. A mente e o espírito, como verdadeira fonte da consciência, seriam os operadores que controlam o grande biocomputador conhecido por cérebro. Essa medicina leva em consideração as diversas formas e freqüências de energia vibratória que contribuem para formar o sistema de energia humana multidimensional. Esse modelo de medicina, que tem por base as 6 Kerckhove, 1995, p.273. 7 Segundo o Aurélio, “diz-se do, ou organismo que toma parte de uma simbiose.” 8 Gerber, 1997, p. 14. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

modernas descobertas científicas sobre a natureza energética dos átomos e moléculas de nosso corpo, auxiliado por antigas observações místicas sobre nossa energia vital, acredita que a consciência exerce um papel fundamental para o estado geral do corpo, acreditando que ela não 67


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seja simplesmente um subproduto do processamento de sinais elétricos e químicos pelo cérebro humano. A consciência é ela própria uma espécie de energia,9 ela surge então como o elo fundamental que nos acopla à obra, e o corpo biológico, como seu veículo primordial, torna-se parte de um sistema dinâmico de trocas e sensibilidades.

Parla, o corpo como medida Parla, trabalho criado por mim em 2004, é uma instalação interativa projetada para gerar um ambiente de realidade aumentada.10 Nosso sistema tem como base a “animação” de um corpo virtual segundo a emissão de nossa energia sonora. Essa instalação é fundamentalmente composta por um computador, um microfone e um projetor de dados. Esse conjunto é montado num espaço de aproximadamente 6m x 6m (esquema A) no qual vemos projetada numa tela de 2,5m x 1,6m a imagem de um corpo estável, sem movimento. Essa imagem, subdividida em 10 partes no sentido vertical, permanecerá assim, inalterada, até que o ambiente em que ela se encontra receba algum input sonoro, o que deve ser causado pela presença humana nesse meio. Sendo assim, ao penetrarmos o espaço da obra e produzirmos um ruído ou som (energia sonora ou gestual), o sistema modificará o corpo virtual apresentado combinando suas partes secionadas com parte de outros corpos que se encontram armazenados em sua memória (figura 1). A interface gerada nesse trabalho cria uma espécie de level humano ao fazer imagens digitalizadas de pessoas responderem qualitativamente às alterações dos níveis de energia sonora. Seu funcionamento baseia-se num código que analisa os níveis de áudio captados por um microfone (transdutor), transforma estes dados em variáveis dinâmicas e os aplica no corpo digital fazendo com que suas 10 subdivisões (camadas) se alterem na medida da sonoridade presente. Em outras palavras, quando uma pessoa entra no ambiente da instalação e emite um som em nível baixo (uma palavra, frase ou sussurro), o corpo apresentado na tela faz trocas no nível dos pés. Por outro lado, se gritamos nesse ambiente, as trocas ocorrem em níveis distintos, começando pelos pés e subindo até a cabeça, ou seja, acompanhando exatamente a emissão e evolução do estado de energia produzido pelo fruidor dessa obra interativa (figura 2).

Conclusão Abrimos este artigo relatando uma experiência artística que é reflexo de um modo de pensar e ver o mundo que já não mais opera. Parla é um trabalho que nasce sob um novo paradigma. Não mais trabalhamos sobre a ótica de universo cujo funcionamento se assemelha ao de uma 68

9 Ibid., p. 22. 10 Num ambiente de realidade aumentada, através de um aparato tecnológico, a realidade humana é transformada pela reorganização da relação espacial e temporal com os diversos canais de um dado sistema. concinnitas


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máquina. Passamos da era da imagem maquínica clássica para a imagem da complexidade, a era do processo e da informação. É preciso ter consciência de que nossa energia é parte de um grande sistema que transformamos e que nos transforma a cada momento. A obra de arte pode ser vista então como um ambiente complexo, com suas variáveis transformadoras, seus campos de afetos sensíveis nos quais interagimos com nossas energias sutis. Penetrar esse ambiente é fazer do corpo um agente interligado por conexões físicas e conceituais aos diversos níveis estruturais da obra. É criar e ser criado. É deixar que a consciência e seus vetores de energia percorram os fluxos das constantes e intermináveis formatações.

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Ricardo Basbaum. Sistema-cinema, câmeras de circuito-fechado, monitor, seqüencial, videocassete, mobiliário, plantas, rede, texto, dimensões variáveis, vista de instalação na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2003

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Dossiê desdobramentos, redes e labirintos

O artista como pesquisador Ricardo Basbaum* Neste artigo são discutidas as relações entre arte contemporânea e pesquisa universitária, procurando questionar o perfil do artista-pesquisador dentro do quadro atual da universidade. São tratadas de modo produtivo as diferenças entre ‘circuito de arte’ e ‘espaço acadêmico’, procurando-se diagnosticar as dificuldades de relacionamento entre os dois campos a partir da falta de fluência, diálogo e passagens constantes entre eles. O perfil interessante do ‘artista-pesquisador’ não seria aquele do ‘artista-de-vanguarda’ isolado em seu pioneiro e historicista ‘laboratório de pesquisa de ponta’, mas sim aquele permeado por uma inquietação na produção de passagens produtivas e ritmos relacionais entre diversos campos e papéis. Só assim se estabeleceria um “influxo do laboratório universitário para dentro do sistema de arte”, e vice-versa, indicando possíveis transformações em ambos os espaços. Pesquisa em arte, artista-pesquisador, imagem do artista

Gostaria de contribuir aqui com algumas questões relacionadas à atuação do artista na universidade, dentro do quadro mais amplo da pesquisa em artes.1 Trabalho regularmente em uma unidade universitária e portanto sou diretamente atravessado pelo problema. Mas, de modo mais amplo, este debate se faz pertinente também porque, neste momento, em diversas universidades estaduais e federais do país (podese pensar também no planeta em geral...) encontraremos ali trabalhando *Ricardo Basbaum é artista, escritor e curador. Professor-assistente do Departamento de Teoria e História da Arte do Instituto de Artes / Uerj. Organizou a coletânea Arte contemporânea brasileira: dicções, ficções, texturas, estratégias (Rio de Janeiro, Contra Capa, 2001). Colaborador do livro Art after conceptual art, organizado por Alexander Alberro e Sabeth Buchmann (MIT Press, Generali Foundation, 2006). Possui artigos publicados em diversas revistas, coletâneas e catálogos. Desde 1981, participa regularmente de exposições, no Brasil e no exterior. 1 Salvo quando explicitado, discuto aqui mais especificamente a produção ligada à presença do artista na universidade. Os estudos de história, crítica e teoria da arte, além da curadoria e ensino de arte, também se inscrevem no quadro de uma pesquisa em artes – mas não são esses os segmentos que gostaria de enfatizar. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

artistas voltados à prática da arte contemporânea – desenvolvendo pesquisas, ministrando aulas, orientando alunos, organizando eventos e mesmo ocupando cargos administrativos. Isso pode indicar um momento particularmente favorável para a área de artes na universidade, uma vez que um número expressivo de artistas atuantes junto ao circuito de arte pode trazer, para dentro da academia, um fôlego de trabalho urdido em outras instâncias da interface arte/sociedade. Ora, temos desde logo uma primeira distinção: o espaço de artes, dentro do aparelho institucional universitário, manifesta-se a partir de uma mediação diversa daquela a que estamos acostumados dentro do circuito de arte habitual: trata-se do aparelho acadêmico afirmando sua presença, impondo-se como interface concreta – à qual devemos especialmente atentar – ao conjunto de caminhos a partir dos quais se apreendem as questões artísticas. Logo, é preciso pensar em que residem 71


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– e quais seriam – suas especificidades. Atenção: não há aqui qualquer hierarquização apressada: trata-se de apostar na presença da arte a partir da universidade como um caminho de ação possível – e potente – para os artistas contemporâneos, e então reforçar as possibilidades de intervenção que se abrem. Se a universidade é parte de um circuito mais amplo, pertencente ao sistema de arte, não se pode perder de vista a dobra própria que constitui e deflagra nesse circuito: aí temos que estar atentos, se queremos que as ações no campo da produção artística, crítica, teórica e histórica geradas na universidade produzam algum efeito de intervenção no quadro geral dos saberes, na dinâmica ampla arte-sociedade ou na área específica em que estão inseridas? Não há como escapar desta máxima: dentro da universidade, o trabalho de arte se transforma em pesquisa, e o artista, em pesquisador. Escrevese “artista-pesquisador”, portanto, e temos aí um outro personagem, com suas peculiaridades; dentro dessa outra instância mediadora que é o aparato universitário, transforma-se logo também o ator, imerso em outra rede. É preciso tomar consciência desse deslocamento entre circuitos – e aí podemos recorrer à semiótica e à cibernética (signos e circuitos), mas não será suficiente – para perder (de modo mais forte ou mais suave) a inocência do processo. Enquanto habitantes do polifacetado mundo contemporâneo, estamos habituados a diversos deslocamentos, e a cada vez (praticamente passo a passo) somos capturados por diferentes circuitos: é em uma multiplicidade de redes que nos deslocamos. Logo, a partir de um pressuposto de autonomia de processos, ser artista junto ao circuito de arte não garante a manutenção dessa posição junto à universidade; e, mais claramente, ser artista-pesquisador junto à universidade não é garantia de ser artista junto ao circuito. Trata-se de diferentes instâncias de valoração e legitimação, sabe-se bem: mercado de arte, agência de fomento, coletivo independente – cada qual com seus rituais e mecanismos de assimilação e expurgo, cada núcleo institucional ou parainstitucional apontando para certas configurações estratégicas e determinadas imagens de seus personagens e atores; portando, camadas próprias de mediação. Que fique claro: as diferenças – entre um possível circuito de arte aberto a diversas instâncias da sociedade e um pretenso circuito acadêmico/universitário para a arte com características próprias – devem ser vistas como produtivas e não estigmatizadoras: certamente essa ‘dobra’ a mais, representada pela universidade, vem estabelecer outro território; deve-se reconhecer a diferença como ganho; assim, cabem as perguntas: que caminhos podem ser inaugurados? Quais possibilidades podem ser apontadas? Se tomarmos a arte enquanto produção de pensamento e processamento sensorial, quais modos problematizadores 72

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Dossiê desdobramentos, redes e labirintos

Ricardo Basbaum. Diagrama (reprojetando [UERJ]), vinil adesivo sobre fundo monocromático, dimensões variáveis, 2003

são trazidos para o primeiro plano? Etc. Daí que é preciso não temer as diferenças entre maneiras de circulação e economias próprias, para perceber que pode ser possível a produção de arte em relação com o aparato acadêmico/universitário. Mas, atenção: é preciso não apostar em continuidade simples entre os circuitos: quem conhece os problemas relativos a passagens, fronteiras, linhas-limite sabe perfeitamente (ou mesmo já experimentou de modo claro, em seu próprio corpo e através da pele) que qualquer deslocamento implica sua não-manutenção. O que se percebe é que o principal obstáculo para o impedimento de relações mais proveitosas e produtivas entre o circuito de arte e o espaço de trabalho e investigação próprios do aparelho universitário residiria não nas diferenças, mas na falta de conexões e ligações mais estáveis estabelecidas entre um e outro circuito. Vê-se assim a importância de se criar um espaço de passagens entre ambos os campos: trabalhar interfaces e espaços de conexão que permitam aflorar as especificidades dos diferentes lugares, para nesse jogo evitar o enclausuramento em um ou outro lado. Pois do ponto de vista da presença da arte na universidade, de seu desenvolvimento enquanto pesquisa, um dos lugares que se tenta evitar é aquele do isolamento acadêmico: comumente se diz que a universidade se protege atrás de seus muros – expressão que indica má compreensão de sua autonomia. Mas, dentro do campo da pesquisa em artes, o perigo residiria em se ter como espaço de valoração dos trabalhos apenas seu trânsito pelas instâncias acadêmicas: corre-se aí o risco de legitimar o trabalho de maneira parcial, sem o embate com outros segmentos do circuito (sabe-se, através da arte conceitual, que o sentido da obra é constituído em seu deslocamento pelo circuito de arte em seus

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diversos caminhos). Trata-se de um ponto delicado: critérios acadêmicos – pensados em termos generalizantes – não são fácil e diretamente aplicáveis à área de artes: a universidade (em seu funcionamento altamente tributário a uma tradição basicamente cientificista do conhecimento, filtrada por cristalizações tecnocráticas e produtivistas) ainda não encontrou um caminho mais claro, que possa fluir e ramificar (“fazer rizoma”, com todas as implicações de transformação e mudança) a partir do “saber da arte”2, de modo decisivo. É necessário que se repensem, a rigor, diversos aspectos da chamada “carreira acadêmica” em função de outro conjunto de parâmetros que apontem para o ‘artistapesquisador’ e suas demandas e especificidades próprias. Sabe-se, contudo, que os últimos anos assistiram a um radical aprimoramento dessa área de pesquisa, a partir de consultores especialmente dedicados a delinear os traços próprios do campo junto a agências de fomento e avaliação universitária; trata-se de tema amplo e ainda em processo de desenvolvimento. A exigência de grau de doutor, por exemplo, para que um artista (mesmo que com ampla experiência) possa oferecer um curso de pós-graduação, indica claramente um conflito de legitimações, em que o aparato universitário não abre mão de abrigar primeiramente aqueles reconhecidos por seu próprio processo de formação/formatação – é clara a resistência e a autoproteção sem as quais, enfim, a academia veria dissolver-se a constelação de valores científico-humanistas e seu pensamento da arte em termos não artísticos que ainda a estruturam (subaparelho assistencialista de Estado). Seria interessante vislumbrar o espaço universitário sob uma contaminação de fazeres-saberes que gradualmente instalasse uma prática de valores decorrentes das formas de ação da arte contemporânea. Aqui, o que se poderia desenvolver (passando ao largo das pontuações que avaliam a produção docente) seriam critérios de mérito menos burocráticos e quantitativos, em que o aparelho universitário reconhecesse, mais prontamente, os mecanismos sociais de deslocamento e legitimação do artista – o circuito de arte, em suas curvas, linhas e pontos diversos – e os incorporasse de modo regular, deixando-se atravessar de maneira mais franca pelo “mundo lá fora”. Ou seja, a produtividade própria da área de artes, enquanto saber, não necessitaria diretamente (no sentido mais raso possível, é claro) da universidade para se efetivar – uma produtividade singular, com todos os traços de uma ‘não-produtividade’ no sentido standard do termo: basta se pensar em Beuys e seus métodos de trabalho, que acabaram por precipitar sua demissão da Akademie. Mas, pode-se fazer do espaço universitário, em sua região ligada às artes, uma dobra portadora de potência, área de intensidade propensa a saltos. 74

2 Como indica Ronaldo Brito, “hoje aparece cada dia com mais clareza a distinção – senão a contradição – entre o saber da arte e o saber sobre a arte. Entre a verdade produtiva dos trabalhos de arte, ao longo da história, e o discurso da história da arte”. Cf. “O moderno e o contemporâneo: o novo e o outro novo”, in Sueli de Lima (org.), Experiência crítica, São Paulo, Cosac Naify, 2005. concinnitas


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3 Em 1994, Andrea Fraser e Helmut Draxler desenvolveram o projeto “Services: the conditions and relations of service provision in contemporary project-oriented artistic practice”, inaugurado no Kunstraum da Universität Lüneburg: “A introdução do termo ‘serviços’ [services], como um modo de descrever certos aspectos do projeto de trabalho contemporâneo, foi amplamente estratégica. Não havia a intenção de distinguir qualquer conjunto de trabalhos como novo ou como substituto para algumas das categorias em uso naquele momento, de ‘crítica institucional’ [institutional-critique] a ‘prática pós-estúdio’ [post-studio practice], passando por ‘arte de local-específico’ [site-specific art], ‘arte de contexto’ [context art], ‘arte baseada na comunidade’ [community-based art], ‘arte pública’ [public art], a genérica ‘arte de projeto’ [project art] ou a ainda mais genérica ‘produção cultural’ [cultural production]”. Andrea Fraser, “What’s intangible, transitory, mediating, participatory, and rendered in the public sphere?”, in October, 80, Massachusetts, MIT Press, 1997. 4 Segundo Peter Sloterdik, “será necessário falar de um fim da História“: “Considerando-se que a História real é o processo no qual foi criado o sistema mundial, não há senão um único episódio realmente histórico: é o trajeto que tem início em meados do século XV, com a conquista do oceano pelos navegadores portugueses e a primeira viagem de Cristóvão Colombo, para ter seu ponto culminante em meados do século XX, com a criação de um sistema mundial pós-colonial tendo como referência, de um lado, a emergência de um sistema monetário global (...) e, de outro, o processo de descolonização da década de 1950. O último capítulo dessa série de acontecimentos concretizou-se em 1974, com a saída dos portugueses de suas possessões ultramarinas após a famosa Revolução dos Cravos. Portanto, a História, no sentido exato do termo, vai de 1492 a 1974 (...) Do ponto de vista de uma teoria da ação, a História seria a fase bemsucedida do unilateralismo. O estilo de ação unilateral é o modus operandi adotado pelos europeus do período crítico: digamos, de Cristóvão Colombo a Adolf Hitler (...) O que chamamos História corresponde exatamente a esse período em que o êxito se obtinha sem que fossem questionados os meios ou a reação das vítimas. Se a História terminou, é porque entramos numa época dominada pela descoberta dos efeitos secundários e retroativos. O futuro pertence à preocupação com relações mútuas e reciprocidades. Um mundo em rede é necessariamente estruturado pela lógica da multipolaridade e por um feed-back mais ou menos imediato para cada iniciativa tomada”. Entrevista com Peter Sloterdik, in Melik Ohanian e JeanCristophe Royoux (eds.), Cosmograms, Kristale Company, Paris, 2005. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Se cada biólogo, físico ou químico possui seu laboratório, cada artistapesquisador deveria buscar construir seu estúdio ou ateliê, dentro dos Cursos de Artes? Certamente que a comparação, assim tão simplista, não procede por completo; mas serve para se perceber o quanto a academia torna-se impulsionada por outra dinâmica quando acontece a instrusão do fazer artístico em seu território – a partir da presença, por exemplo, daquele artista-visitante extremamente instigante que recebe bolsa de trabalho na universidade (figura mais-do-que-rara dentro de nosso horizonte de fomento à pesquisa em artes...) e que modula sua dinâmica de práticas em outra tabela de horários, diversa das “horasaula”: aqui, o impacto no dia-a-dia da universidade certamente se faria sentir, e certos fluxos seriam interrompidos enquanto outros se instalariam. Sabemos entretanto que nem todos os artistas utilizam o ‘estúdio’ como núcleo de suas produções – fala-se em “post-studio activities”;3 daí percebe-se que a questão é bem mais complexa, ao envolver ainda aspectos que não têm, entre suas estratégias de visibilidade, as ‘habituais figuras da arte’: em geral, vigora na academia uma visão do fazer artístico marcado por alguns estereótipos, defasados da prática que se processa para lá de seus muros. Logo, poderia ser interessante trabalhar a perspectiva do ‘artista-pesquisador’ assemelhando-se, em seu perfil, ao ‘artista-de-vanguarda’ – indivíduo lotado na ponta mais avançada do conhecimento, inventor do novo – como sendo, enfim, o personagem que coroaria a integração dos mundos acadêmico e artístico. Sob essa caracterização, a universidade surgiria como possível espaço por excelência da criação artística, voltada à pura produção do conhecimento e protegida das perversões persuasivas dos mecanismos do mercado, mais afeitos à promoção do que quer que seja comercialmente viável, sem qualquer contenção. Como se sabe, entretanto, as figuras da ‘vanguarda artística’ têm estado sob ataque há algumas décadas – não em decorrência do domínio da torrente comercialista (“está tudo dominado”), mas devido à falência do modelo historicista4 próprio do modernismo, em sua concepção de autonomia formal evolucionista (os “pioneiros”). Desaparece a localização linearizante (“de ponta”), pois agora o artista que se quer “avançado” dentro do circuito é aquele que flui através de linhas de fronteira para experimentar posições diversas, traçando e retraçando continuamente os indicadores de sua prática; há, é claro, inquietação positiva, no sentido de uma atividade afirmativa de questões; há pesquisa e risco na busca de percursos, atividade, movimento. De imediato, o que se pode perceber é que, em sua inserção acadêmica, o artista-pesquisador não se configura de maneira homóloga àquele herói histórico, à frente de seu tempo, 75


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apenas por estar à frente da linha de pesquisa – na academia, há outro enfrentamento e sobretudo uma complexa mediação institucional pouco fluida, indicando a necessidade de movimentação diversa daquela junto ao circuito. Parece óbvio (ainda que, para alguns, seja invisível), mas não há como o artista-pesquisador colocar-se à frente dos procesos artísticos se seu ambiente de trabalho não for também perpassado pelas questões da sociedade, do circuito de arte e suas relações: o artista ‘avançado’ não se caracterizaria simplesmente por trabalhar de modo singular uma série de ferramentas conceituais importantes, por ele desenvolvidas em laboratório, mas sobretudo por efetivamente estabelecer os ritmos relacionais a partir dos quais essas ferramentas se entrelaçam com questões do ambiente (sistema de arte incluído). Estar à frente dos estudos acadêmicos não significa, necessariamente, desenvolver estratégias interessantes para o debate artístico se a academia apenas se movimentar na circularidade de dinâmicas isoladas autolegitimadoras, em que a avaliação se preocupa mais com a aferição de seus próprios mecanismos burocráticos do que com as dinâmicas que lhe escapam e buscam ressonância além de seus muros. Não é tarefa simples, portanto, construir um espaço de pesquisa em artes, na universidade, que mantenha em aberto os canais com o circuito de arte: há escassez de conexões preparadas para conduzir as ligações entre um e outro setor, com a flexibilidade necessária; logo, aproximar ‘artista’ e ‘artistapesquisador’ em um contorno produtivo implica considerável esforço de entrelaçar diferentes demandas e diversos processos de legitimação. A estranha esquizofrenia – se é possível falar assim – que se manifesta quando afinal se quer combinar arte e pesquisa, ao envolver a perspectiva de se trabalhar duplamente para atender a ambas as demandas – tensionando ambos os lugares com o redirecionamento das dinâmicas de um para o outro –, manifestase quando a cisão entre as partes se cristaliza, reduzindo ao mínimo a possibilidade do cruzamento de fronteiras. Construindo-se passagens produtivas, é de esperar um influxo do laboratório universitário para dentro do circuito de arte, produzindo a possibilidade de um lugar em que os projetos de intervenção (obras e demais variações) sejam portadores de uma dinâmica de pensamento interessante e potente; assim como o esforço em produzir um desvio do circuito que se propague pelos meandros da universidade certamente conduzirá uma corrente de ar que poderá dissolver certos hábitos normativos próprios do espaço acadêmico, que freqüentemente impedem a emergência de processos. É necessário fôlego e insistência constante, seja de um como de outro lado, a partir de uma atuação lá ou cá – o que importa, afinal, é acreditar numa força ácida da arte em flexibilizar impedimentos e afirmar lugares e espaços a partir de passagens e ligações. 76

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Póslítico_artecnologia Luis Andrade* De sua origem enquanto fenômeno da cultura, na pré-história, ao sincrônico e difuso das sociedades pós-industriais, a arte incorporou à sua fatura as mais díspares tecnologias, em função de sua efetividade epistêmica. O presente artigo explora as relações que a arte teria com os medias à sua disposição, considerando de forma ampla o fenômeno estético – isto é, a própria arte – como tecnologia: a arte enquanto tecnologia, considerada no instante histórico em que nossa percepção da realidade acontece principalmente pelas mediações tecnológicas do século XXI. Procedimentos tecnológicos, políticas, arte brasileira contemporânea 11 de setembro. CNN ao vivo, segundo avião, 2001

Na genealogia de um possível pensamento estético brasileiro, delineado pronunciadamente por Mário Pedrosa – ao defender o exercício experimental de liberdades como moto vocativo da arte realizada no Brasil –, proponho aqui uma reavaliação do significado que as relações entre arte e tecnologia têm no contexto das transformações em voga no mundo atual, a partir de um ponto de vista local – vista do Brasil. Desde que equipamentos para a produção de imagens técnicas – ou tecnológicas, analógicas ou digitais – se tornaram acessíveis para os artistas, a arte parece ter descrito uma curva desconhecida até então pela história. Livre da artesania, para a arte tudo mudou. No Brasil não foi diferente, embora aqui – num primeiro momento, e mesmo depois – tenhamos seguido, com exceções, bastante influenciados pelos

* Luis Andrade é artista hipermídia. Mestre em Linguagens Visuais, com graduação em Artes Cênicas, ambos pela EBA/UFRJ, e cursos em Comunicação Visual, na PUC/RJ, e na Scuola Europea di Teatro e Cinema, em Milão, onde residiu por dois anos. Integra as seguintes associações de artistas: Atrocidades Maravilhosas e RRadial. Professor do Instituto de Artes/Uerj e membro da equipe editorial das revistas Concinnitas e GLOBAL – Brasil. Publicou vários textos em revistas especializadas e catálogos no Brasil e no exterior, além dos livros/CD: à [barrockbeat] (Rio: Ed. Do Autor, 2006) e À (Rio: Ed. do Autor, 2000), e ainda Love´s House (Rio: Ed. Casa da Palavra, 2002). ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

procedimentos e interpretações das técnicas levadas a cabo nos grandes centros internacionais do circuito de arte. Novas tecnologias, velhas idéias. Arte + tecnologia. Esse binômio vem norteando há algum tempo grande parte da produção artística em geral. O que não significa que essa relação se dê apenas pela instrumentalização de dispositivos tecnológicos, na realização de algo que possamos chamar de arte. Ou que o namoro entre tecnologia e arte não existisse já na idade da pedra. Devemos tentar compreender essa relação de forma mais abrangente. Até, quem sabe, compreender o fenômeno da própria atividade criativa ou da arte como tecnologia. Seria um desvio cognitivo para o sutil, necessário lance para se 77


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compreender a razão desse exercício experimental da arte diante das tecnologias. Essa interface, com proliferação em muitos domínios da criação, na verdade discute – pela própria motivação dos desenvolvimentos tecnológicos – as relações de poder e controle que organizam nosso presente e nossas ações atuais. Importante esclarecer que, com esse enfoque, não pretendo estabelecer aqui, com outras palavras, um campo de ações e relações similares ao que teria sido a prática artística revolucionária na Rússia de 1917 ou, ainda, as experiências do CPC no Brasil, durante os anos 60 do século passado, entre outros movimentos que buscaram fazer da arte um meio e uma tecnologia de transformação da realidade.

Matsushita. Componente de desenvolvimento funcional avaçado para toilets, 2006

Pronunciadamente no plano político. Essas manifestações históricas seriam anteriores a um momento decisivo dos desdobramentos históricos da arte. Mais precisamente aqueles que procuraram aproximá-la, cada vez mais, da vida. Se considerarmos a existência dos vários filtros e instâncias pelas quais a realidade acontece para nossa experiência hoje, isto é, uma realidade que se faz sensível através de inúmeras mediações tecnológicas, regendo a percepção e cognição do próprio real, devemos admitir de imediato dois importantes aspectos. O primeiro deles reside no fato de que, do ponto de vista da pesquisa científica, não existem mais campos de experimentos e observações que sigam valendo-se do olho nu, ou do “sentido nu”, para efeito de suas análises. O olho científico, hoje, é irremediavelmente eletrônico. Inúmeras são as áreas que não avançariam em seus desdobramentos não fosse a

Matsushita. Urinol hightech, 2004

evolução histórica das imagens técnicas. Os olhares eletrônicos, portanto, substituíram o “olho nu”. Nenhuma das disciplinas investigativas conhecidas – nesse momento – sustenta a própria credibilidade sem se valer dos dispositivos e equipamentos de alta tecnologia para produzir conhecimento ou valor. Diante dessa, digamos, teleologia tecnológica da produção de informação, conhecimento e valor no mundo contemporâneo, nossos sentidos estariam privados de suas certezas, quando a aferição de um fenômeno, um evento, passa cada vez mais pela ativação dos microcircuitos e sistemas lastreados no uso do silício e do lítio. O segundo aspecto seria assumir essa nova dimensão da arte, cada vez mais indissociável da vida, quando todo e qualquer território constituinte de nossa experiência do real estaria virtualmente regido pela alta tecnologia. Ou por mediações dessa ordem. O que nos permite inferir ser hoje a vida, bem como sua assimilação pela arte, uma forma de contraponto à ópera logarítmica em que se transformou 78

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o próprio real. Independentemente dos avisos de William Burroughs sobre os ciclos dos vírus lingüísticos ou do nascimento das sociedades controladas. Seriam essas as prerrogativas das narrativas imersivas. Implosões da fotografia como técnica. Se um meio deve necessariamente implodir para difundir-se – claro caso da fotografia – passando de um estado compacto e maciço a massivamente difuso, estaríamos assim diante de uma ultrapassagem da imagem crônica pela imagem imediata. A cyberart ou arte virtual já nasce assim. Essa transição não se dá do mesmo modo com relação a outros meios técnicos no campo da produção da arte. Esses meios, com a própria difusão – que por vezes assumiram caráter hegemônico, como a pintura um dia – parecem enfraquecer ao se ver amplamente utilizados, como se os meios técnicos/tecnológicos portassem um gen de diluição simultâneo à própria difusão. Longe de ser uma hipótese a ser comprovada, mais importante seria pensar que a cyberart não se presta a tal discussão, pelo fato de o espaço virtual acarretar desde o início essa possibilidade: já nasce difuso. Emerge ontologicamente como algo difuso, em que o conceito de difusão estaria bastante associado àquele do sincrônico: da capacidade que essa dimensão do espaço – virtual – tem de proporcionar inúmeros acessos de forma imediata e simultânea, segundo a tentativa científica de defini-lo por hipótese. Enquanto dispositivo técnico, a virtualização digital é perfeitamente material. Pois concentraria a potência de produzir ‘realidade’. Chequemos. À medida que os sistemas de virtualização se difundam, o ‘mundo concreto’ ganhará novas dimensões, novos campos de ação. O cybereal já começa a ser habitado. A imagem tecnicamente produzida como elemento de escrita produz habitat. À diferença da imagem perceptiva ou mental, seja essa consciente ou inconsciente, a tecnologia proporciona algo novo. Algumas questões poderiam ser inferidas desse aspecto da cyberart, dado o equipamento necessário para sua realização ser ainda de alcance remoto à imensa maioria de diferentes populações mundo afora. Questões que deixamos para o debate aberto sobre o meio. Do paleolítico superior até as manifestações espetaculares de massa, a trajetória do corpo humano na criação de algo sofreu enormes transformações – quanto ao próprio nascimento da arte, esse já é um tópico que deverá permanecer envolto em nuvens do mais misterioso gás, por muito mais tempo... Mas uma das transformações foi que sua presença com relação à própria realização e manifestação da arte migrou de uma integração parcial do corpo – como a utilização ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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das mãos, por exemplo – até a plena imersão do corpo na criação do fenômeno estético, tecnológico ou não. O termo ‘imersão’ deve ser aqui apreendido tanto em sua dimensão técnico-digital quanto nas alterações perceptivas do corpo humano, em acordo com as novas compreensões da realidade espaço-temporal. Poderíamos dizer, contudo, que talvez nenhuma dessas transformações foi tão perturbadora quanto a introdução das tecnologias industriais e pós-industriais na criação e circulação da arte. O que fez com que, no presente imediato, o fenômeno da criação – portanto, da arte – se venha confundindo também com aquilo que se conhece por frutos da indústria cultural. Um braço das indústrias em geral, gerado segundo necessidades inerentes ao próprio processo evolutivo-desenvolvimentista do capital e das culturas por ele criadas – em que a arte, na forma de cultura, vira produto; o fruidor, consumidor; e o interdito, entretenimento. Acontece que o caso concreto não se subsume à norma. Utilizando uma abordagem toponímica, isto é, de localidade, em que um determinado grupo de pessoas estaria desenvolvendo alguma coisa – por exemplo, praticando arte como tecnologia –, poderíamos dizer que o problema adquire assim uma estranheza familiar à própria arte. Ou, numa análise tipológica, isto é, ditada por suas funções comuns, verificaríamos que esse fenômeno se daria tanto no emprego e manuseio de algum media tecnológico específico, quanto na simples constatação de admitir a si mesmo parte da arena técnica. Do próprio topos tecnológico que é a realidade cada dia mais imersiva. A exceção seria alguma lembrança forçada da existência da Natureza, sob a forma de alguma catástrofe ou cataclisma. Isso se dá, sobretudo, quando reconhecemos a verdadeira origem das tecnologias de ponta: a busca do controle ambiental pelo uso aplicado de equipamentos. Ao criar uma nova realidade, a disparada tecnológica do século XX trouxe alguns efeitos colaterais indesejados. Sobretudo na forma de mudanças comportamentais da sociedade como um todo, que cobrem desde a aparente facilidade para se escrever um texto na tela de um computador – como o que tenho na minha frente – até as reais dificuldades que temos em lidar com o desempenho de um sistema de informações cada vez mais totalitário. Efeitos igualmente responsáveis pelo crescimento global da indústria farmacêutica, com suas vitaminas sintéticas e ansiolíticos em geral. Com relação à evolução das imagens técnicas, essas transformações proviriam tanto das atividades da inteligência e estratégias militares quanto das mesas de apostas em dinheiro ou pistas de turfe – caso 80

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das experiências pioneiras com as imagens técnicas do movimento de Muybridge, ainda no século XIX, numa corrida de cavalos. Por involução, ninguém poderia prever que as pesquisas inaugurais de Louis Daguerre, ao registrar tecnicamente a realidade, se desdobrariam na invenção de satélites espiões, scanneando cada metro quadrado terrestre – e tudo que nele acontece: o bebê da gigamídia... Uma ciência da imagem, segundo Oliver Grau. Desse Ação RRADIAL [Dani Castinheira (violão) e Luis Andrade (chão). Insensatez, em intervalo do show de Tom Zé, no palco do Circo Voador, 2005 Imagem (Video-still): Paulinho Dread

modo, poderíamos admitir a arte como um processo igualmente imersivo. Pelo qual se crê promover uma alteração perceptiva, cognitiva e afetiva do/no outro, transformando a experiência social. Portanto, implicaria uma compreensão dessa interface não apenas como uma assimilação e incorporação das contribuições tecnológicas da criação no campo da arte, segundo a invenção de obras que existam a partir do emprego dessas tecnologias. No jogo, estaríamos diante de outra abordagem: a apreensão da arte como tecnologia – sendo ela mesma um instrumento tecnológico, partilhando das contribuições tecnológicas, rumo a algo cujo nome ainda não temos. Seria justamente da revisão dos conceitos do que vem a ser o científico, o tecnológico, o emocional, o político e o epistêmico, a partir de uma superação do Modernismo enquanto tal – da especialização progressiva de suas disciplinas – que surgiriam os novos valores a ser cultivados. Uma atualização da consciência contemporânea frente ao império do silício e do lítio. A pergunta de Oiticica sobrevive: é “a aspirina ou a cura?”

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A Luta I. Em cena, soldados e comandandes republicanos. Fotos: Lenise Pinheiro

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A cena de Os Sertões: imagens em rede e recepção corporal José Da Costa* O artigo analisa o ciclo das cinco peças teatrais realizadas a partir de Os sertões, de Euclides da Cunha, sob a direção de José Celso Martinez Corrêa. O texto concentra-se especialmente sobre a experiência corporal do espectador e a intensa utilização de imagem técnica no quarto espetáculo do ciclo. Teatro oficina, teatro contemporâneo, José Celso Martinez Corrêa

Em finais de abril de 2005 estreou em São Paulo, no Teatro Oficina, o quarto espetáculo do ciclo de trabalhos por meio dos quais Zé Celso Martinez Correia e sua equipe vêm desenvolvendo o projeto de teatralização do livro de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos². Como se sabe, o livro de Euclides é dividido em três partes. A terra é a parte em que o autor faz uma descrição minuciosa de aspectos físicos, climáticos, hidrográficos e relativos à vegetação não só na região sertaneja em que se localizava o arraial de Canudos, mas estruturando, inicialmente de maneira ampla, uma visada geográfica e geológica sobre o país e suas várias regiões, antes de deitar o olhar, de modo mais circunscrito, sobre Canudos e suas cercanias. Na segunda grande parte do livro, O homem, o autor aborda a dimensão etnológica do suposto homem brasileiro, verificando seus traços étnicos híbridos, fazendo hierarquias que favorecem as supostas raças puras, mas mostrando-se *José Da Costa é professor e pesquisador do Departamento de Teoria e do Programa de PósGraduação em Teatro da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO), sendo atualmente diretor da Escola de Teatro da mesma instituição. 1 Seguem os títulos completos dos quatro espetáculos do ciclo Os sertões já exibidos com as respectivas datas de estréia: Os sertões primeira parte: A Terra (estréia: dezembro de 2002) / Os sertões - O Homem - primeira parte: Do pré-homem à revolta (estréia: agosto de 2003) / Os sertões - O Homem: da revolta ao trans-homem (estréia: outubro de 2003) / Os sertões - A Luta: primeira parte – 1a, 2a. e 3a. expedições + Rua do Ouvidor (estréia: abril de 2005). Todos os espetáculos tiveram encenação de José Celso Martinez Corrêa e foram criados pela equipe do Teatro Oficina, tendo sido exibidos inicialmente da sede na companhia, no bairro do Bexiga, em São Paulo. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

admirador da energia do mestiço do interior, do sertanejo nordestino, e de sua capacidade de dar respostas efetivas às dificuldades enfrentadas nas condições duras em que vive, nas regiões áridas do interior do Nordeste. É apenas na última parte do livro, A luta, que Euclides da Cunha enfrenta o propósito de relatar as várias etapas em que se desdobrou a guerra movida pelo Exército brasileiro, no período inicial do regime republicano (1897), contra os homens e mulheres sediados no Arraial de Canudos, ao norte da Bahia, por considerar que aquela população, liderada por Antônio Conselheiro, urdia uma desestabilização do governo, objetivando a restauração da monarquia (Cunha; 2004). Antes desse quarto espetáculo (primeiro dedicado à luta ou guerra propriamente dita), foram exibidos A Terra, O Homem I e Trans-Homem1. A atual encenação debruçou-se sobre a primeira metade da última parte do livro, isto é, o trecho em que Euclides narra as três expedições 83


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militares iniciais que foram organizadas com o intuito de debelar os canudenses, tendo sido todas elas derrotadas em seus propósitos, apesar da superioridade de recursos bélicos e dos armamentos de que dispunham. O espectador que assiste ao novo espetáculo tem uma experiência, em muitos aspectos, semelhante àquelas que o público tinha nos outros espetáculos do ciclo de Os sertões do Teatro Oficina. Como nos três empreendimentos anteriores, propõe-se de novo, agora, uma experiência teatral festiva, em que se pode dançar no espaço cênico e participar vivamente da ação, de modo mais ou menos direto, ao longo do espetáculo, que, como os primeiros, tem longa duração, superando o formato habitual de aproximadamente duas horas de exibição do teatro comercial. Agora a aventura dura seis horas, extrapolando ainda a média de quatro horas de cada um dos três espetáculos anteriores do ciclo, mas repetindo a experiência de seis horas de duração do Ham-let,2 que o Oficina produziu em 1993 e retomou aproximadamente 10 anos depois. Ao longo de cada um dos espetáculos do ciclo de Os sertões, os espectadores podem mudar de posição no interior do espaço físico do teatro, seja durante os intervalos, seja aproveitando os momentos de movimentação e participação mais intensa do público, momentos esses em que os receptores respondem ao convite dos atores para que a eles se juntem em suas evoluções pelo espaço. O espectador, porém, não é obrigado a ter participação diretamente física. Não há esse caráter compulsório na participação do público nos espetáculos que o Teatro Oficina realizou a partir dos anos 90. O receptor pode, por exemplo, optar, desde sua entrada no teatro, por não se localizar no andar térreo, no nível da pista (faixa comprida ladeada por espectadores e que constitui o espaço cênico principal), visando, com esse afastamento relativo da cena, ter recepção menos direta ou intensamente corporal. Esse distanciamento parcial é previsto como opção possível do receptor e considerado legítimo pelos criadores, conforme o que se detecta tanto pela estrutura do edifício, quanto pela organização espacial do espetáculo, que não define, como poderia fazê-lo, uma área restrita para os espectadores, levando-os a uma inevitável proximidade física com a cena. Entretanto, os trabalhos do Oficina não são dados apenas aos olhos e os ouvidos do espectador. Demandam, em algum nível, um comprometimento tátil, uma relação de atuação e um tipo particular de compartilhamento (não centrado no modo tradicional de projeção emocional do espectador em relação ao personagem) das intensidades acionadas durante o evento, intensidades essas que, muitas vezes, necessitam da intervenção do público para se constituir ou se desdobrar por algum tempo no espetáculo, como nos momentos em que parte dos 84

2 O título da peça de Shakespeare recebeu , na encenação de Zé Celso Martinez Corrêa, um hífen separando as duas sílabas e enfatizando a divisão interna do protagonista. concinnitas


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espectadores, reunindo-se aos performers, passam por um percurso específico ou realizam uma ação determinada assistida pelos demais receptores. Nesses momentos, é preciso esperar que todos os que desejem passem por aquele percurso, pratiquem ou vivenciem aquela ação pontual. Em um dos espetáculos do ciclo de Os sertões, havia uma cena em que os espectadores eram convidados a se batizar, submetendo-se ao sacramento ministrado pelo padre interpretado por um dos integrantes do elenco. A cena não era uma representação factual e mimética de batismo, mas uma experiência festiva de jogo burlesco, parodicamente organizado e associável à idéia de batismo. Formava-se uma longa fila e os candidatos ao batismo teatralizado do Oficina iam um a um até um trecho central do palco, onde há um grande tanque que recebe o intenso jato de água, que vem do alto quando é aberta a torneira, que se localiza em um dos andares superiores do teatro. O que se verificava era um tipo de ação ou movimento físico que se repetia nos exemplos de cada um dos vários espectadores que se levantavam de seus lugares, entravam na fila à espera do alegre e profano “sacramento” teatral, iam até o tanque, recebiam o jato de água, depois tinham a cabeça enxugada por um dos atores que tinha uma toalha em mãos, voltando o sujeito batizado a seu lugar na platéia. Exemplo próximo a esse é, em A luta – primeira parte, o trecho em que os espectadores fazem fila para percorrer o longo túnel subterrâneo (espaço de trincheira, de guerrilha e de resistência dos sertanejos, mas também da morte, do Hades e associando-se, ainda, às profundidades e intensidades tectônicas, dionisíacas, possivelmente não domadas pelo pensamento logocêntrico, intensidades tecnônicas essas capazes de operar ondas de desestabilização do que é sedimentado e fixo, seja como significados, seja como identidades). O túnel-trincheira foi construído, para o quarto espetáculo do ciclo de Os sertões, pelo cenógrafo e diretor de arte Osvaldo Gabrieli ao longo do palco. Esse último, no interior do edifício retangular do Teatro Oficina, tem a forma de uma pista ou passarela. Em certo momento, os espectadores que assim o desejarem são levados a cruzar em procissão toda a extensão dessa passagem subterrânea, construída pelo cenógrafo sob a faixa central do palco-pista. Esse momento de procissão subterrânea liga-se, em termos narrativos, à informação sobre as numerosas perdas humanas efetivadas tanto entre os sertanejos, como no campo dos soldados governistas, nas várias batalhas da Guerra de Canudos. O caráter corporal da recepção não é dado apenas pelo movimento dos espectadores, mas também pelo intenso trânsito dos atores pelo ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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espaço do teatro, no interior do qual não se delimitam de modo rígido setores diferenciados do público e da cena. A passagem dos atores por entre os espectadores, nos vários andares da estrutura de ferro das galerias, gera uma percepção inevitavelmente tátil, sensível e material do evento teatral. As sonoridades também desempenham nisso um papel significativo. O espetáculo é todo cantado e há músicos ao vivo. Os atores, em seu trajeto físico estabelecem também linhas sonoras pela verticalidade e pela horizontalidade, uma vez que não só se deslocam no palco-pista e no chão das galerias, mas também sobem e descem verticalmente, usando não apenas as escadas, mas também as barras de ferro da estrutura de suporte das galerias. O elenco é, como nos demais espetáculos do ciclo, muito numeroso. Há um grande grupo de crianças e adolescentes, como há também um elenco de atores maduros também muito amplo. O conjunto é acrescido de músicos, operadores de câmaras, contra-regras, camareiras e outros técnicos que muitas vezes cruzam também o espaço cênico da pista e do teatro como um todo, realizando suas operações técnicas (projeção de luz, tomada de imagens, contra-regragem, etc) como performers que também cantam, dançam e atuam como integrantes do grande coro que realiza o evento cênico, como co-partícipes das situações teatralizadas. Ninguém está apenas ajudando de fora. A co-participação performática dos técnicos e músicos, mais ou menos intensa na cena visível, pode, em certos casos, ser percebida apenas pelos espectadores mais próximos ou, em outras circunstâncias, tornar-se visível de modo mais geral por todo o público. A dimensão corporal e tátil da experiência teatral que se tem no Oficina é, para lembrar Deleuze e Guatarri, de caráter rizomático e extraindividual. A atenção não é levada à concentração em um foco único, a um aprofundamento vertical (arborescente3) definido. As linhas se entrecruzam incessantemente, e mesmo a imensa árvore que há no Oficina – árvore que nasce dentro do teatro e cruza a parede de alvenaria para se expandir do lado de fora do edifício – é absorvida pelo rizoma, pela rede constituída pelas várias camadas de linhas horizontais e pelos movimentos nômades, coletivos e corais dos atores e das atrizes no espaço. A atenção do receptor é, de fato, levada a assumir percursos pluridirecionais no interior da multidão de ocorrências que se verifica a cada instante. Aspecto que não implica a impossibilidade de que se detenha em alguma ocorrência particular por algum tempo. O devir não exclui a intensificação do instante e da singularidade.4 Esse tipo de recepção corporal e tátil – que , apoiado de modo talvez excessivamente livre em Deleuze e Guatarri, estou chamando de rizomática – é definido também, em seu nomadismo e pluralidade 86

3 A árvore e a raiz se contrapõem ao que Deleuze e Guatarri chamam de rizoma no texto inicial do livro Mil platôs. O rizoma opera conexões múltiplas e não se constitui como verticalidade ou fundamento único. As imagens de árvore e de raiz e, por outro lado, a de rizoma, expressam no texto dos dois autores tipos ou orientações distintas do pensamento. DELEUZE, GUATARRI: 1995, 11-37. 4 Muitos aspectos dos quais estou falando como referentes ao espetáculo discutido são concernentes a uma espécie de concepção teatral já previamente dada pelo projeto arquitetônico do teatro, projeto de autoria de Lina Bo Bardi e Edson Elito, construído em diálogo direto e permanente com o encenador José Celso Martinez Corrêa. As estruturas removíveis da platéia, o tanque e a possibilidade de intenso jorro de água sobre o mesmo, a árvore que nasce dentro do edifício e cruza sua parede em direção ao exterior, o janelão ou parede de vidro em uma das faces do teatro são alguns elementos arquitetônicos que ajudam a constituir uma complexa mobilidade cênica e uma dinâmica de interior e exterior, de aberturas múltiplas que o próprio edifício propõe aos espetáculos ali realizados. concinnitas


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constitutivos, pelas intervenções da iluminação e da projeção de imagens. Esses dois aspectos podem cumprir funções diferenciadas ou se unir em uma atuação aproximada. Vou aqui deter-me particularmente no que diz respeito ao uso da imagem técnica em cena. O vídeo desempenha um papel significativo nos espetáculos do ciclo de Os sertões, mas não é um elemento inexistente nos outros trabalhos que o Teatro Oficina apresentou ao longo dos anos 90. O que aconteceu com o novo espetáculo (a primeira parte de A luta) foi uma intensificação dos recursos ligados à imagem. Aumentou o número de câmeras que, durante o espetáculo, captam imagens dos atores; trabalhou-se mais a atuação cênica dos operadores de câmera no interior do espetáculo e na relação com os eventos da cena; instalaram-se três grandes telões em pontos distintos do espaço físico do teatro; e, além das câmeras móveis, passou-se a contar ainda com câmeras instaladas em pontos fixos. As imagens tomadas pelas duas câmeras móveis e pelas duas câmeras fixas durante o espetáculo, mescladas às imagens pré-gravadas, são exibidas nos telões por meio dos três projetores utilizados durante o espetáculo.5 No programa da peça, lê-se, a propósito do trabalho de Elaine César (diretora de vídeo da encenação): Expande o espaço real do Oficina para o Mundo, com imagens gravadas, sampleadas, bordadas, e nas ruas vizinhas do teatro, nos camarins, em lugares ocultos para a visão direta do público, expande o campo da ação do espaço fazendo cinema ao vivo. Lanterna Mágica por onde transitam os atores entre o virtual e o atual (...).6 As imagens projetadas são, elas próprias, múltiplas em sua constituição e diferenciadas em suas funções. A elas, juntam-se aquelas que são tomadas dos atores e do espaço físico do teatro durante o espetáculo e aquelas que são pré-gravadas. Estas últimas podem ter sido captadas pela equipe de vídeo do espetáculo ou podem ser imagens aproveitadas do campo da mídia, sendo sampleadas de diferentes modos, 5 O projeto arquitetônico de Lina Bo Bardi e Edson Elito já dispôs uma série de monitores de TV no edifício. Esses monitores foram substituídos no espetáculo atual pelos telões. Agradeço a Elaine César a gentileza de me fornecer esclarecimentos técnicos (sobre a quantidade de câmeras e projetores utilizados, dentre outros) e sobre suas opões artísticas no trabalho (modos de manipulação da imagem etc), em conversa telefônica que tivemos em 11.06.2005. Assisti o espetáculo, no Teatro Oficina, em 28.05.2005. 6 Na ficha técnica do espetáculo consta, além do nome de Elaine César, como Diretora de vídeo, o de Marília Halla, como Vj. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

isto é, sofrendo intervenções e alterações de vários de tipos e realizadas em computador. Mudança nas cores, no contraste, na resolução, e fusão e justaposição com novas imagens são algumas das intervenções que se efetivam. As tomadas realizadas no interior do teatro têm, por vezes, um caráter erótico (como no caso em que um ator se masturba até chegar a ejaculação, parcialmente encoberto por um longo tecido colocado à sua frente, e no da atriz cuja vagina é focalizada em close pelo operador de câmera, que se aproxima ostensivamente da performer que, nesse momento está no chão com as pernas abertas e o sexo aparente). Outras vezes, as tomadas dão visibilidade ao oculto, chamando a atenção 87


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para as dobras do edifício do Teatro Oficina (como é o caso das tomadas de atores em espaços que funcionam como camarins e daquelas que se dão no interior do túnel subterrâneo do palco-pista). As projeções de imagens pré-gravadas podem ter função referencial de localização do espaço e do tempo das ocorrências enfocadas pelo relato de Euclides da Cunha (utilização de mapas que se encontram nas várias edições do livro, projeção de datas, de boletins sobre as batalhas com informações sobre o número de soldados e de sertanejos conselheiristas envolvidos em cada uma delas, bem como sobre o número de perdas humanas dos dois lados em cada um dos enfrentamentos). Mas as imagens têm também a função de ampliação e multiplicação do campo referencial, como é o caso de fotografias que se associam a aspectos da realidade política e social atual cobertos pela mídia e pelo jornalismo diário (desmatamentos ilegais, escândalos políticos e econômicos, etc). As imagens de guerra, no espetáculo, são também variadas, incluindo aquelas que parecem pertinentes à primeira e à segunda Grandes Guerras, à explosão de Hiroshima, à Guerra do Iraque, a seqüências de guerras como as do filme pacifista de ficção intitulado Glória feita de sangue (realizado pelo cineasta Stanley Kubrick em 1957 e tratando do contexto da Primeira Guerra Mundial e, em especial, de contradições internas às noções de república democrática e de exército nacional), a cenas de convulsão social extraídas de filmes de Glauber Rocha (a exemplo de Deus e o diabo na terra do sol também inspirado em Os sertões de Euclides da Cunha), a conflitos agrários atuais no Brasil envolvendo o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e milícias contratadas por proprietários, etc. Mas isso ainda não é tudo no que diz respeito à imagem no espetáculo. Além da dimensão erótica – de um erotismo dionisíaco que implica fragmentação, desindividualização e ampliação de partes do corpo individual –, além do contato corporal, da função de penetração nas dobras recônditas do edifício, de localização temporal e espacial do relato, de ampliação multidirecionada da referência, há ainda outros modos de atuação da imagem neste último espetáculo do ciclo de Os sertões: a produção de intensidades e a atenuação ou abstração da referência. Esses dois funcionamentos da imagem estão interligados e se fazem sentir nos momentos em que as projeções ora parecem grafismos indeterminados (traços de uma escrita que não constituem mensagens lingüísticas articuladas), ora lembram texturas não ancoradas referencialmente. O ritmo das projeções, sem dúvida, contribui de modo decisivo, em vários momentos, para a intensificação da dinâmica rizomática e nômade, para as linhas de fuga da estabilidade significacional. Mas é 88

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preciso reconhecer também que a intensificação rítmica quase sempre tem algum apoio e justificativa referencial no relato de Euclides da Cunha. Esse é o caso dos ataques epiléticos do comandante da terceira expedição. O caráter explosivo do militar, seu temperamento tenso e difícil, suas convulsões epiléticas são aspectos, de fato, mencionados e descritos por Euclides. Porém, os momentos de surtos epiléticos de Moreira César (o comandante da terceira expedição enviada contra Canudos) ensejam, no trabalho do Oficina, experiências convulsivas que ultrapassam qualquer projeto de mera reprodução inteligível daquelas ocorrências patológicas na vida individual do comandante. A experiência convulsiva, em grande medida obtida por meio da conjunção entre projeção de imagens e iluminação cênica,7 em associação com a música e as sonoridades produzidas por atores e músicos em cena,8 é fundamentalmente experiência de desterritorialização ou de explosão da referência e da linearidade narrativa. Nos momentos de intensificação rizomática, nômade e convulsiva da cena, as linhas teleológicas e unidirecionadas do tempo cronológico e do significado determinado e atual se rompem. Em seu lugar, linhas de fuga – dadas pela imagem, pelo trabalho dos atores, pela música e pela iluminação – operam, em níveis diversos, uma ampla desestabilização dos significados fixos e delineiam, de modo contundente, a inevitabilidade do teor corporal na experiência receptiva do espectador do quarto espetáculo do ciclo de trabalhos de Teatro Oficina dedicados a Os sertões, de Euclides da Cunha. Nesse sentido é que eu afirmaria que a recepção – inevitavelmente corporal – do quarto espetáculo do ciclo de Os sertões é também uma experiência intelectual do múltiplo, do rizoma, da rede, das dobras: simultaneamente interior e exterior, individual 7 A Direção de iluminação é de Marcelo Drummond. 8 O diretor de trilha sonora é Lira Paes (Lirinha).

e coletiva, dada ao olhar e aos ouvidos como vivência tátil, sensível, material, mas também virtual, do agora ampliado, sampleado, virtualizado, não só, mas em grande medida, pela imagem e pela luz.

Bibliografia DELEUZE, Gilles e GUATARRI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol 1. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1995. ZOURABICHVILI, François. O vocabulário de Deleuze. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2004. BARDI, Lina Bo; ELITO, Edson e CORRÊA, José Celso Martinez. Teatro Oficina. Lisboa: Editorial Blau, Instituto Lina Bo e P.M. Bardi. CUNHA, Euclides. Os sertões. Edição crítica de Walnice Nogueira Galvão. São Paulo: Ática, 2004. TEATRO OFICINA. Os sertões / A Luta: primeira parte – 1a, 2a, e 3a, expedições + Rua do Ouvidor (programa da peça). São Paulo: Teatro Oficina; 2005.

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Arte da rede e arte do labirinto Rogerio Luz* Propõe-se uma tipologia de direcionamentos da arte contemporânea, à maneira de uma ficção teórica. Com o intervalo produzido entre dois tipos de arte – da rede e do labirinto – no qual surgem formas mistas e múltiplas, evita-se formular um princípio único de ordenação da arte moderna, a que sucederia um outro e único princípio de ordenação da arte contemporânea. Arte é aqui tomada como um modo de pensar que se deixa afetar, enquanto abertura, pela singularidade do que ocorre. Arte contemporânea, rede, labirinto

Arte da rede e arte do labirinto A busca da especificidade de cada linguagem e de cada prática artística parece que caracterizou uma certa maneira teórica de pensar o sistema das artes. Creio que a fotografia foi um dos primeiros sintomas de que os padrões de experiência de tempo e de espaço estavam mudando e afetavam o modo de representação em imagem do sujeito e do mundo. O cinema, de uma vez por todas e em escala de massas, acabou por misturar e confrontar espaços e tempos múltiplos, superando a unidade de tempo e ação sem se importar em garantir uma especificidade qualquer, nem obter nada que se aparentasse com uma nova síntese das artes... Já nos anos 50 do século passado, Pierre Francastel falava sobre a experiência espaço-temporal

*Rogerio Luz é formado em filosofia pela UFRJ. Doutor em Comunicação pela Universidade de Louvain, Bélgica. Professor aposentado da ECOUFRJ (1973-1998), da qual é pesquisador junto ao N-Imagem, núcleo de tecnologia da imagem. Atualmente, professor visitante do Iart-Uerj. Cofundador e coordenador do Espaço Winnicott – estudos em psicanálise e cultura. Artista plástico, ensaísta e poeta. 1 Francastel, Pierre. L’image, la vision, l’imagination. Paris: Denoël/Gonthier,1983, p.183-184. 2 Idem, ibdem, p.184. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

possibilitada pelo cinema nos seguintes termos: O espectador que reflete dá-se conta facilmente dos inumeráveis ‘pontos de vista’ que contribuem para que nasça nele uma visão sintética do espaço. Espaço visual e cada vez mais espaço sonoro; espaço tátil, sensações cinestésicas geradoras de um espaço motor – pelo qual o filme avizinha-se, com freqüência, da música e da dança – confrontação de espaços tão diferentes quanto o espaço pensado pelo autor que imaginou o roteiro, o espaço concretizado pelos técnicos, o espaço materialmente registrado pela câmara, o espaço percebido pelo espectador. O espaço fílmico é plural material e abstratamente.1 O autor antecipa o que se pode pensar, hoje, sobre a prática visual e sua promoção de um novo espaço-tempo: De qualquer maneira, o homem não reconhece diretamente o espaço, justamente porque ele o inventa. E este espaço é sempre um espaço-tempo e, simultaneamente, um espaço experimental e social.2 91


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O avanço tecnológico dos meios de produção e reprodução de imagens – não apenas visuais e sonoras, mas também táteis, gestuais, comportamentais – acompanha as novas modalidades estéticas de experiência dos corpos, em contextos urbanos interativos, e obriga a pensar as novas condições de experiência sensível do espaço e do tempo. Desse modo, sensação e ação, afecção e conceito na arte encontram-se permanentemente revolucionados em suas relações no interior de cada prática artística e nas supostas fronteiras – na verdade, limiares de transgressão – entre essas diferentes práticas. Inespecificidade e hibridismo atravessam a arte que se faz desde o final do século XIX no Ocidente. Eis um importante fato de civilização, o qual não pode ser explicado isoladamente, seja pelo fator técnico, seja pela vontade de arte, seja por fatores histórico-sociais. Como recuperar esse fato para o pensamento, como dimensioná-lo na perspectiva da invenção cultural hoje? Essa a questão – para a qual não há respostas prontas – que gostaria de colocar em debate. Lamentar o desaparecimento de certas maneiras modernas de fazer e de pensar a arte ou, ao contrário, fazer o elogio inconsiderado das chamadas novas propostas não fará avançar muito nesse terreno. Imaginei encontrar no subtítulo deste encontro – redes e labirintos na arte contemporânea – uma possibilidade de encaminhamento para a questão acima. Refiro-me a uma diferença nocional, e também, normativa, entre labirinto e rede. Aplicada à arte de hoje, ela produz, como ficção teórica, uma tipologia fictícia. Trata-se, é claro, de uma ficção de natureza teórica. Procurei apoio nas novas maneiras, híbridas e inespecíficas, de se apresentar, em arte, a experiência sensível de espaço-tempo. Sugiro que a arte contemporânea se apresenta ora como rede, ora como labirinto. Não se trata de uma tipologia que exclua outras formas de apresentação, nem a mistura delas. Rede e labirinto têm, cada um, múltiplas e diferentes acepções.

Rede Selecionei, no dicionário, algumas acepções de rede que, na minha perspectiva, são as mais produtivas. Rede: Entrelaçamento de fios, cordas, cordéis, arames, etc., com aberturas regulares, fixadas por malhas [v. malha – alças ou voltas], formando uma espécie de tecido. Fig. Qualquer conjunto ou estrutura que por sua disposição lembre um sistema reticulado. Fig. O conjunto dos meios de comunicação ou de informação (telefone, telégrafo, rádio, 92

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televisão, jornais, revistas, etc.), ou o conjunto das vias (e do equipamento) de transporte ferroviário, rodoviário, aéreo, etc., que, pela sua estrutura e modo de distribuição, se assemelha a uma rede, e se difunde em áreas mais ou menos consideráveis.3 Temos, portanto, uma estrutura de conexões associadas e uma distribuição difusa de algo: coisa, corpo, força, energia. A obra entendida como rede – rede de conexões, contigüidades e passagens por coordenação e não por subordinação – é uma arte de efeitos comunicativos encadeados: a ênfase é dada não à forma, mas às materialidades, aos dispositivos, aos processos e aos conceitos que ali se justapõem. Esse conjunto é colocado a serviço da interatividade e da participação e visa a algum tipo de influência, que convoque uma ação. Tal ação decorre dos objetivos inscritos, pelo conceito, nos dispositivos que devem ser processados. A arte da rede é uma arte da motricidade mais do que da percepção, dos deslocamentos físicos mais do que da contemplação extática, os quais se efetivam por meio de conexões horizontais, sem hierarquia nem centralidade. O significado da obra é uma série finita de operações de uso e de seus efeitos mais – ou menos – previsíveis. O participante responde à obra com atos comunicativos, selecionáveis e atualizáveis singularmente no interior das virtualidades abertas: ele deve realizar, para que a obra aconteça, pelo menos algumas das conexões previsíveis. A arte da rede é semelhante a um “jogo com regras”, uma ação virtual que obedece a certos comandos e se desdobra no espaço e no tempo, até esgotar suas possibilidades de conexão. A rede, então, se esgarça e perde o interesse. É necessário lançar uma nova rede.

Labirinto Retenho a primeira acepção de labirinto, encontrada no Aurélio. Labirinto: edifício composto de grande número de divisões, corredores, galerias, etc., e de feitio tão complicado que só a muito custo se lhe acerta com a saída. E duas acepções figuradas: Disposição irregular e confusa; dédalo. Coisa complicada, confusa, obscura.4 A obra entendida como labirinto convoca a experiência de perda de orientação, por meio de irregularidade, complicação, confusão, obscuridade. Para tanto, a obra supõe duas coordenadas de um percurso capaz de estruturar o espaço e o tempo: a saída e o centro, a busca de uma saída e a existência de um centro. Na arte do labirinto, a busca de uma saída é destinada a 3 Cf. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, edição eletrônica. 4 Idem. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

permanecer como tal: convive-se com sua impossibilidade. Ao contrário da lenda, o fio de Ariadne seria um expediente esperto, mas sua 93


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utilização elimina a obra, tornando-a banalidade técnica. O fio, com suas conexões, associações, extensões e nós, é elemento da rede, não do labirinto. Por sua vez, no centro do labirinto – sedutor, aterrorizante, violento e mortal – não há mais deus ou monstro. O centro repele e atrai ao mesmo tempo, mas repele e atrai agora com o seu vazio, a que não se pode atribuir um nome, fosse ele um nome histórico ou mítico. Essa experiência de centro é a dimensão complementar da saída impossível: o centro vazio, o vazio como centro. A arte do labirinto é semelhante a um “jogo sem regras”: o pensamento gira em torno daquele centro vazio, em direção a uma saída que não pode ser encontrada. A arte da comunicação em rede – dos procedimentos e dos efeitos comunicativos – tem chamado para si, de maneira explícita, o repositório mais conhecido dos mitos e das causas de caráter político, científico, ético ou ecológico: o amor e o ódio, a vida e a morte, a paz e a guerra, a justiça e o arbítrio, a fraternidade e a competição entre os homens, a repressão e a liberdade sexuais, a destruição e a preservação da natureza, a perseguição e a defesa das minorias, o conflito e o entendimento entre grupos, povos e culturas diferentes e assim por diante. Ela produz, para o participante, situações comunicativas com conteúdo moral e objetivo pedagógico, por meio de ações práticas. É uma arte ética – suas possibilidades tanto tecnológicas quanto conceituais parecem depender de objetivos éticos em diferentes áreas da experiência humana. Sem isso, a obra de um Krajcberg, por exemplo, estaria reduzida a apresentar e dar forma estética, por meio de diferentes procedimentos, à madeira de galhos e troncos colhidos na floresta. A arte do labirinto é uma arte da não-comunicação. Ela coloca o expectador – o expectante, aquele que espera uma saída e um centro – diante do que não tem sentido, isto é, significado, nem nunca terá. Ela é capaz, por aí, de dar acesso à dimensão propriamente trágica da existência moderna. O expectador é aquele que se coloca à disposição do sentido, na expectação ou na espera, ou na esperança do sentido que, no entanto, nunca é dado, não é um dado que possa decorrer de operações de uso. Jorge Luis Borges fala-nos a respeito dessa relação do expectador como leitor frente ao texto literário: a leitura é o surgimento do sujeito leitor e da obra lida, que mutuamente se engendram num jogo constituinte do fato estético: O fato estético requer a conjunção do leitor e do texto e só então existe. É absurdo supor que um volume seja muito mais do que um volume. Começa a existir quando um leitor o abre. A partir de então 94

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existe o fenômeno estético, que pode assemelhar-se ao momento no qual o livro foi engendrado.5 Sem dúvida, o uso é constitutivo da obra. Em Outras Inquisições, porém, Borges nos diz o que parece realmente importante para compreender o tipo de efeito da arte do labirinto: a iminência de uma revelação – que não se produz, que não se realiza, que nunca se pode reduzir também a um dado da experiência – essa iminência talvez seja o próprio fato estético.6 O labirinto é uma rede, mas uma rede de impasses: ele promete nos conectar com o impossível, o vazio e a morte. Em sua deriva trágica, ele não exclui, porém, a alegria e o júbilo. As imagens produzidas por ele surgem do lance de dados que, em vez de convocar as forças determinantes e justiceiras do destino, põe-nos agora diante do acaso – e este não se pode nem se deve abolir. A arte das redes é a arte dos percursos aleatórios, cuja probabilidade pode ser programada. A razão técnica é investida eticamente por dispositivos de cálculo. A arte dos labirintos não tem sentido ou direção, embora se ponha em marcha pela procura deles. Ela se efetiva nas desconexões e rupturas entre projeto, realização do dispositivo e ação conseqüente. Seu acaso, seu caráter aleatório, é antes função do alheamento frente a trajetos tanto simbólicos quanto pragmáticos, norteados por conteúdos cognitivos e éticos, próprios a uma arte das redes. Em vez de existir para noções e ações, a arte do labirinto insiste na sensação. Estamos longe, portanto, como se pode compreender, de diferenciar rede e labirinto a partir de critério de meios e materiais utilizados ou de formas de exibição. Trata-se de distinguir a verdade que justifica o desdobramento da obra, constituinte da experiência de arte que ela propõe e efetivamente abre. Um exemplo de uma arte do labirinto foi a mostra de Sonia Andrade nas Cavalariças do Parque Lage, em 2004, no Rio de Janeiro. Uma série de localizações pontuais indica um atrator de sentido, que se configura poeticamente em forma de questão sobre o tempo, a partir do poeta metafísico inglês John Donne. Para tanto, são mobilizados objetos, técnicas e procedimentos antigos e atuais, que abrem para cada passado a possibilidade de um futuro, na indicação e expectação de uma resposta que não virá. A experiência se dá no intervalo entre o passado a que se 5 Borges, Jorge Luis. Borges Oral. Buenos Aires: Emecé/Belgrano, 1997, p.84-85. 6 Cf. Borges, Jorge Luis. Otras Inquisiciones. Buenos Aires: Sur, 1952. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

refere a pergunta e sua suspensão ao futuro de uma resposta: experiência de devir, movimento de repetição daquilo que não se conecta nem necessária nem aleatoriamente, mas relança o próprio jogo da experiência para além das materialidades, das técnicas e dos 95


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procedimentos utilizados. A obra é um memorial erguido ao futuro da própria memória, durante a suspensão do tempo presente, em sua opacidade empírica, feita das meras vivências do participante. Ao contrário, o expectador é impelido a se subjetivar em um pouco de tempo puro. O labirinto é essa suspensão do efeito no encadeamento das ações: expectação ou esperança do que não se encontra, não se revela, nem se conclui. Tensão entre a abertura das saídas para o distante, o estranho, o estrangeiro e a intimidade de um centro no entanto vazio. O dicionário define a palavra expectação como esperança fundada em supostos direitos, probabilidades ou promessas.7 A arte da rede provoca uma expectação no nível das probabilidades e dos direitos, como dispositivos prático-teóricos, tecnológicos e éticos. Na arte do labirinto, o expectador não é sujeito de ações de fato ou de direito ou de operações de cálculo: ele é sujeito das promessas, daquilo que há de vir, do sentido futuro, que nunca será dado, que não se poderá nomear, nem com o qual se pode operar com eficácia, real ou simbólica, no presente. Deslocamentos no espaço-tempo – real ou virtual – na arte da rede, em vista de novas articulações. Suspensão do espaço e do tempo, das conexões ativas e das ações direcionadas, na arte do labirinto. Ação e sensação.

7 Aurélio, op.cit. 96

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Cinema e presença – notas sobre a exposição Mantenha Distância Kátia Maciel* O texto descreve algumas situações-cinema a partir de 4 instalações realizadas pela artista na exposição intitulada Mantenha Distância. Cinema, interação, instalação

A armadilha do cinema sempre foi a de nos fazer crer que quando não estamos olhando para a tela, o filme pára, se ausenta. O filme mantém com o espectador uma relação de intimidade que nos torna cúmplices do que assistimos. Talvez, por isso, sentimos um certo mal-estar quando precisamos sair da sessão de cinema, temos a impressão de abandonar um encontro. Essa idéia de presença é estrutural se pensamos que o cinema enquanto dispositivo se cria a partir de uma imagem que gera um espaço para uma situação a ser compartilhada. Com as tecnologias recentes de produção e finalização de imagens experimentamos cada vez mais novas situações-cinemas geradas pela agilidade Kátia Maciel. Ciclovia, exposição Mantenha à distância, Paço das Artes, 2004

de uma imagem-sistema que permite um acesso de input e output em tempo real nos colocando literalmente do outro lado do espelho. Por meio do uso de sistemas que integram sensores à programação realizei uma série de experiências de filmes interativos que foram reunidas na exposição Mantenha distância no Paço das Artes de São Paulo em 2004. Em cada uma das quatro instalações apresentadas as imagens reagiam à presença do espectador. A exposição Mantenha distância reuniu algumas experiências do que conceituamos como transcinema, ou seja, uma imagem pensada para gerar ou criar uma nova construção de espaço-tempo cinematográfico em que a

*Kátia Maciel é graduada em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestre em Cinema e História - Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, doutora em Comunicação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e pós-doutorado na Universidade de Wales. Atualmente é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Núcleo de Tecnologia da Imagem e diretora das coleções N-Imagem e N-ensaios. Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em arte e mídia. 1 Conceito criado por Hélio Oiticica para caracterizar o espectador como parte da obra. Sem a participação do espectador, a obra não existe. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

presença do participador1 ativa a trama que se desenvolve. Uma imagem em metamorfose que se atualiza em projeção múltipla, em ambientes interativos e imersivos. Transcinema é uma forma híbrida entre a experiência das artes visuais e do cinema na criação de um espaço para o envolvimento sensorial do espectador. Construímos experiências na forma de cinema-instalação, isto é, um cinema concebido para um ambiente predeterminado, no qual a espacialização da projeção é essencial para que a experiência fílmica se realize.

Mantenha Distância A idéia de manter distância remete imediatamente ao trânsito. Como maneira de prevenir acidentes, os caminhões e ônibus carregam uma 97


Kátia Maciel

sinalização fixada na parte posterior do veículo pedindo ao o motorista que vem atrás: Mantenha distância. Aproprio-me aqui dessa dinâmica para pensar outros fluxos que muitas vezes nos paralisam, como o da relação amorosa e o da interatividade proposta pelos novos circuitos da comunicação. Nessa exposição escolhi momentos distintos da minha produção audiovisual e multimídia a partir da lógica das instalações interativas. Repensei a situação de exibição de trabalhos realizados anteriormente levando em conta os novos dispositivos interativos e criei, também, outros filmes. A idéia foi construir, a partir da inversão da lógica interativa Mantenha distância, possibilidades de acesso às imagens. Por meio de um circuito de sensores sensíveis à aproximação do visitante, a cada vez que este não mantém distância as projeções disparam. Quatro instalações foram apresentadas: elas tratam dos fluxos entre as experiências do cinema, do vídeo e da arte eletrônica. Na primeira instalação projetamos um caminhão em movimento em uma estrada. Ao nos aproximarmos, o caminhão também se aproxima e

Kátia Maciel. Mantenha à distância, exposição, Paço das Artes, 2004

lemos na placa traseira a frase “Mantenha distância”. Uma certa perversidade indica o paradoxo: a leitura só se realiza na proximidade, tarde demais para produzirmos a distância. Na segunda instalação, estamos imersos em três imagens, três seqüências em loop de um casal em uma estrada. São seqüências de um curta metragem, que realizei com a idéia de criar uma situação paradoxal de simultaneidade e continuidade ao mostrar momentos da vida de um casal. Nessa montagem vemos as seqüências projetadas simultaneamente em três telas; cada aproximação do visitante aciona, porém, o som e a cor da tela da qual ele se aproxima. A terceira instalação possibilita ao espectador a escolha de dois rostos para a montagem de diálogos aleatórios, tendo por base um repertório de frases clichês da relação amorosa. Esta experiência surgiu a partir da leitura do livro Um, nenhum e cem mil, de Luigi Pirandello. “Mas que culpa temos eu e vocês, se as palavras, em si, são vazias? Vazias, meus caros. E vocês as preenchem com o seu sentido, ao dizê-las a mim; e eu ao recebê-las, inevitavelmente as preencho com o meu sentido.” Em nossa pesquisa trabalhamos com a idéia de rostos como superfícies interativas. Em primeiro lugar, porque os níveis mais elementares da comunicação humana têm no rosto um elemento central. As mudanças de expressão, assim como qualquer palavra, são sinais de comunicabilidade. Isso significa que a forma de comunicação interpessoal passa por um gestual 98

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Kátia Maciel. Um nenhum cem mil, exposição Mantenha à distância, Paço das Artes, 2004

codificado, por uma comunicação entre faces. Em segundo lugar, porque o rosto foi um dos temas maiores da história da pintura, assim como os closes são elementos da narrativa cinematográfica e da arte eletrônica. Nossa experiência é baseada em diálogos com palavras vazias reunidas em frases clichês. A idéia é gerar algum sentido a partir da repetição de frases sem sentido conectadas randomicamente. Como Pirandello, propomos experimentar o nonsense nas relações amorosas. O que eu estou dizendo para você? O que você está me dizendo? Essas perguntas ganham sentido em função das conexões. É apenas por acaso que o sentido ocorre. Na quarta instalação Ciclovia: duas visões panorâmicas da paisagem carioca são dispostas uma diante da outra. Na primeira vemos um menino que aprende a andar de bicicleta na ciclovia da praia. Na segunda vemos um adolescente que corre na ciclovia da Lagoa. A situação sonora indica mudanças nas velocidades dos percursos, e as velocidades se opõem durante o percurso do participador ao longo do corredor panorâmico. As situações de exibição remetem à situação da impossibilidade da distância, tornada possível a partir da lógica virtual. Não é possível, fora da dimensão dessas poéticas visuais, estar no meio de, estar dentro e fora, estar perto e longe. Dessa tensão surgem trabalhos que apontam para uma dimensão da participação – que não se resume ao acionar de um botão; trata-se de acionar uma situação que não pára de se repetir e da qual não podemos escapar. Em um circuito aleatório e repetitivo, esse conjunto de trabalhos formula uma questão sobre a percepção dos ciclos em suas dimensões pessoais, espaciais e temporais: experiência de encontro com a passagem contemporânea entre as imagens, em que a forma nada mais é do que uma perseguição técnica do tempo.

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Antonio Manuel. O corpo ĂŠ a obra, 1970

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As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha

As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha Felipe Scovino* Como as categorias de jogo e guerrilha representaram situações de resposta a um sistema de poder que controlava a instância do corpo no campo artístico brasileiro nos últimos 40 anos, é a provocação deste ensaio. Jogo, guerrilha, arte contemporânea

Entender o corpo como processo cognoscitivo no campo das Artes Visuais brasileiras passa necessariamente por estudar duas situações aparentemente antagônicas que ele sofreu nos últimos 40 anos. Situações em que a categoria de sarcasmo é envolvida em duas “frentes” de batalha, onde a resistência a uma política conservadora é necessária. Nos tempos da ditadura, a resistência, era mais do que necessária, era um compromisso com a vida. Nesse sentido, reexistir significava transpor barreiras e tomar conhecimento de si numa época em que “provocar” o Outro, no sistema da Arte, poderia ser sinônimo de eletrochoques, tortura e morte. Paralelo a esse painel, propostas foram formuladas e saídas metafóricas orquestradas. O sarcasmo, o jogo, o lúdico e, em algumas ocasiões, uma atitude extremada, eram as soluções encontradas para o corpo se expor, e a Arte romper a prisão em que estava acondicionada. Antes de tudo, gostaríamos de lançar a pergunta: a obra de arte serve para provocar ou divertir o público? Esse tipo de questionamento acaba traçando um paralelo entre a linguagem artística dos anos 60 e uma certa produção artística brasileira a partir da década seguinte. Não queremos afirmar que os artistas que se estabeleceram no final da década de 1960 sejam considerados os “filhotes” do neoconcretismo ou os “herdeiros da vanguarda construtiva”. Nos anos 70 o fim de um “projeto construtivo brasileiro” já estava consolidado e já teríamos a emergência de obras que apontavam a presença de novos suportes nas artes visuais brasileiras. O lúdico na arte não surgiu nos Bichos (1960-64) nem muito menos

*Felipe Scovino é doutorando em Artes Visuais na linha de pesquisa Estudos da História e Crítica de Arte pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Curador da Associação Cultural “O Mundo de Lygia Clark”. Mestre em Artes Visuais (EBA/UFRJ) e bacharel em História (IFCS/UFRJ). ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

nas experiências neoconcretas. É difícil localizar sua gênese e nem interessa como objetivo para este momento, mas é importante deixarmos claro que foram exatamente essas experiências participativas que redimensionaram o estatuto do jogo na arte e impuseram um novo elemento à sua estrutura: a função do sensível como modulador de experiências cognoscitivas, lançando dessa forma a participação do corpo para um novo entendimento ou apropriação do objeto. 101


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Duas categorias mostram-se cada vez mais aparentes no campo da produção artística brasileira nestes últimos anos: o jogo e o lúdico. Eles compõem um mesmo sistema na produção cognoscitiva do objeto dentro da arte contemporânea. Enquanto o primeiro representa a estrutura de uma operação de trocas simbólicas, o lúdico exerce a função do movimento ou circulação dessas trocas. O lúdico valoriza um perde-ganha de investimentos pulsionais que reduz o trabalho de arte a um objeto de apropriações e desapropriações momentâneas. Não é mais a Profundidade, “que sublima o corpo da obra sob a forma de um Ideal, mas principalmente a Superficialidade (uma certa ausência de raciocínios questionadores) quem subtrai à obra quaisquer possíveis dimensões interrogadoras”1 e a simplifica como imediatismo do objeto de prazer dado. No fluxo contemporâneo do jogo a obra não está mais aprisionada pelo Ideal ou uma certa verdade eterna. Outra espécie de manobra vai segurá-la. Agora os sentidos podem movimentar-se, transformar-se, negar-se até uns aos outros, mas sob a forma estanque de troca. O trabalho de arte vai sofrer leituras diversas, aleatórias até, mas regido por uma mesma lei, que as reduz todas a um denominador comum: um certo valor de moeda, que praticamente se esgota ao ser exibido ou simplesmente trocado. Para a completa realização cognoscitiva destas obras que agrupam o jogo contemporâneo da arte, o importante é o ‘fazer’. Em certos casos, é na experiência tátil que o artista, ou o espectador, transformado em participador, caminha; onde são apontados novos rumos, e nesse sentido o jogo proposto pelo artista daria um conteúdo de verdade irrefutável: voltada para o outro, engajando progressivamente a participação material do outro, ela resume um convite e uma provocação para a tarefa de construir o objeto interminável do homem-no-mundo. Por outro lado, seguindo uma linha de pensamento, toda produção artística é imaginativa, já que a capacidade de imaginar é inerente a qualquer processo. Mas existe um segmento dessa arte que remete à compleição da obra, numa estrutura ausente no plano físico, que depende da capacidade imaginativa (ou sarcástica) para a sua total formatação. É exatamente no “espaço vazio” deixado pela obra (que em sua organização espacial e proposicional já denuncia um fim lúdico) que o espectador se transforma em complementador, instaura uma existência num espaço em aberto. Esse ‘vazio’, vamos aqui chamá-lo de “vazio sarcástico”, é resolvido esquematicamente por nós. Nesse sentido, imaginação e participação são atividades complementadoras e mútuas: uma relação de dependência é mantida. Para Quasi Cinema, Block Experiments in Cosmococa, que produziu com Neville d’Almeida, Hélio Oiticica desloca a relação modelo/cópia de Marcelinho,2 problematiza o caráter de autenticidade nas artes visuais e, 102

1 Brito, Ronaldo. Waltercio Caldas Jr.: Aparelhos. Rio de Janeiro: GBM Editoria de Arte, 1979, p. 98-100. 2 Ou Marcel Duchamp, como preferirem. concinnitas


As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha

ainda, questiona, pela paródia, o artista como figura “carreirista de arte”. Por processos, a que deu o nome de Mancoquilagens, em que trilhas de cocaína acompanham o desenho padrão que lhe serve de base, acusa o conceito de plágio: “A COCA q se camufla plagiando o desenho-base não faz crítica do conceito mas brinca com o fato de q essa oportunidade de brincar haja surgido”.3 O participante, pólo estrutural do sistema, age num campo de estruturas abertas, vivenciando a transmutação espacial. Não se trata de um espaço em que operam formas, mas de um sistema que desata a fantasia. Reinvenção, o quase-cinema agencia estruturas-percepções que relevam de uma outra ordem do simbólico: o comportamento. O seu tempo é o das ações desregradas, ora previsíveis, ora improvisadas, da invenção e da surpresa. São dispositivos que desencadeiam experiências exemplares com o objetivo de “violar” o “estar” dos participantes como indivíduos no mundo, transformando-lhes os comportamentos em coletivos. A imaginação complementa o que os olhos enganam. É também o caso do jogo proposto por Nelson Leirner em A mesa e seus Pertences (2002), exposto na XXV Bienal de São Paulo. Não há movimento nesse jogo. Bolas e raquetes mantêm-se aprisionadas em vitrinas. Suspensa no alto, uma placa negra de acrílico acaba funcionando como um placar que condensa uma situação, posto que o que está em jogo é o improviso do jogador (fantasmagórico) em aliança com sua disposição física, que o faz deslocar-se para os lados em atos frenéticos, sabendo que é iminente o momento em que ele terá que se postar num lugar em volta da mesa que ele ainda não sabe qual será. Todas são situações descritas por um som que chega ao ouvido do participador: sons secos da bolinha, movimentos dispersos, situações que imaginamos... O jogo inicia-se e, em determinado momento, ‘acaba’. Joga-se até que se chegue a um certo fim. Enquanto está decorrendo tudo é movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação. E há, diretamente ligada à sua limitação no tempo, uma outra característica interessante do jogo, a de se fixar imediatamente como um certo fenômeno cultural. Mesmo depois de o jogo ter chegado ao fim, ele permanece como uma criação nova do espírito. É transmitido, torna-se tradição. Pode ser repetido a qualquer momento, quer seja ‘jogo infantil’ ou jogo de manipulação, como um mistério. Uma de suas qualidades fundamentais reside nessa capacidade de repetição, que não se aplica apenas ao jogo em geral, mas também à sua estrutura interna. Em quase todas as formas mais elevadas de jogo, os elementos de repetição e de alternância constituem como que o fio e a ‘tessitura’ do objeto. 3 Brett, Guy; David, Catherine; et. alli. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1996, p. 178. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Deixar-se tomar pelo prazer do instante parece ser uma prática negligenciada hoje em dia, mas há que se reaprender a perder tempo, 103


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a estar nas coisas e com estas coisas sem nenhuma preocupação produtiva. É a intensidade desse tempo, aparentemente lúdico, que abre a possibilidade de essa poética assumir-se também como o chamado exercício experimental da liberdade. Inventar novas potencialidades é uma forma consciente de liberdade e conhecimento de si. O artista não pretende nenhum tipo de ‘cura’ psicológica, mas um novo condicionamento de viver, de se relacionar e conhecer a si e os seus próximos. Algo em suas estruturas transitórias apontam para o que há de realmente atemporal: portanto, é uma obra em suspenso, não cumpre um programa prévio. Esses elementos acabam articulando unidades provisórias, já que nunca são estáticos, pois logo anunciam as próximas combinações. O trabalho interroga o puro aparecer, nunca o que já apareceu. Entretanto, para que o jogo pudesse ser reconhecido como arma de uma participação, o corpo precisou ser reinventado muitas vezes nos últimos anos por uma certa produção artística brasileira. Mesmo não sendo a política stricto sensu a direção dessa produção artística, podemos afirmar seguramente que as transfigurações brasileiras eram uma questão no início dos anos 60 e são outra hoje, quando aquilo a que se resiste não tem rosto nem definição clara. Em tempos de ditadura, os museus, enquanto instituições oficiais, passam a ser pequenos espaços alegóricos e diagramas desse sistema de poder, que no Brasil significava a escalada da repressão de 1964. Os artistas montavam processos traumáticos de desnudamento das instituições do Estado, revelando esse braço repressivo ou construtor de opacidade sobre a cultura da consciência crítica. Nessa estratégia, a Caixa de baratas, de Lygia Pape (1967), Camisa de Força, de Lygia Clark (1968), e a performance de Antonio Manuel no Salão Nacional de Arte Moderna de 1970, no MAM, quando inscreve seu corpo como uma obra e, à revelia das autoridades culturais, apresenta-se nu no evento, são dilemas de resistência numa ditadura (política e corporal). “Hoje em dia, eu acho que qualquer coisa que se faça deve estar tão ligada a um ato político que não deve haver mais diferença entre a política em si e a arte do outro lado... um gesto, uma fala, uma atitude, devem ser coisas politizadas”,4 diria Lygia Clark. Essa “biopolítica” confronta “a plenitude do possível” do participador ao “controle de um saber” que investiga “seus prazeres”;5 seu corpo deixa de ser um simples objeto de códigos sociais, das ciências naturais, ou das ciências do comportamento, transformandose num sujeito político: um outro relativamente aos poderes que o disciplinam. Foucault opera a experiência do sujeito na sociedade em função de três situações: saber, poder e sujeito. Segundo ele, o indivíduo possui a capacidade de efetuar determinadas operações sobre si mesmo para se transformar e constituir uma forma desejada de existência, processo 104

4 Clark, Lygia. In: Hollanda, Heloísa Buarque de; Pereira, Carlos Alberto M. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1980, p. 157. O trabalho de Clark por não apresentar temas de denúncia social não foi cerceado pela censura: “No meu caso, posso dizer que continuei a minha pesquisa livre, porque qualquer censor que olhe minha obra não vai alcançar o que estou propondo dentro do grande contexto social: que é reaprender a viver, se desbloquear, criar, em vez de continuar fazendo uma obra de arte” (idem, idem, p. 155). 5 Foucault, Michel. História da sexualidade In: a vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985, p. 134-136. concinnitas


As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha

denominado ascese ou tecnologias de si. A ascese representa uma arma, uma possibilidade de se “equipar”, e a relação consigo mesmo ofereceu a Foucault uma forma de resistência diante do poder moderno. O deslocamento teórico representado pela introdução do cuidado de si permitiu a Foucault conceder uma voz a essa resistência: “Não [existe] nenhum ponto de resistência ao poder político mais útil e com mais prioridade (...) que o consistente numa relação consigo”.6 O cuidado de si apareceu, portanto, como uma “conversão do poder”, uma forma de mantê-lo sob controle. O que é reivindicado pela guerrilha e serve de objetivo é a vida, entendida como a necessidade fundamental, a essência concreta do homem. Pouco importa que se trate ou não de utopia; temos aí um processo bem real de luta; a vida como objeto político foi de algum modo tomada ao pé da letra e voltada contra o sistema que tentava controlá-la. Sobre tal pano de fundo, pode-se compreender a importância assumida pelo sarcasmo como arma de disputa política. É que ele se encontra na articulação entre os dois eixos ao longo dos quais se desenvolveu toda uma tecnologia política da vida. De um lado, faz parte das disciplinas do Homem: invenção e participação de um ideário imaginativo e interrogador, intensificação e ajustamento das energias. Do outro, o sarcasmo foi utilizado na Arte como campo de experiências para o corpo. Veículo de proposta, indo além de Marcelinho, a Arte brasileira conseguiu criar mecanismos de desconexão do real que elevaram a sugestão sarcástica a um ponto de reflexão sobre a própria instância do corpo como meio de apropriação do real. Tornou-se arma de combate, mesmo às vezes não sendo o enfrentamento a causa primária da proposta que motivou o aparecimento da categoria do sarcasmo, para que a manifestação conseguisse atingir novos níveis de inteligibilidade. O sarcasmo também pode ser um via de mão dupla: tanto pode ser uma intenção do artista ao propor uma situação desconfortável para o espectador, como foi o caso do Porco Empalhado, de Nelson Leirner, em que havia clara sugestão de um certo humor negro na proposta de reavaliação de um quadro conservador de Bienais ou avaliações em forma de concursos do que seria “Arte”. O dado principal desse trabalho é o lúdico em conjunto com a ironia ou uma verdade que nem sempre é a que imaginamos (ou, no caso, enxergamos) ser. O fascínio e a beleza estética podem nem sempre ser uma experiência agradável. Por outro lado, o elemento de tensão desempenha no jogo um papel especialmente importante. Tensão significa incerteza, acaso. Há um esforço 6 Michel Foucault apud Ortega, Francisco. Michel Foucault: os sentidos da subjetividade. In: Júnior, Benilton Bezerra; Plastino, Carlos Alberto (org.). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 158. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

para levar o jogo até o desenlace; o jogador quer que alguma coisa ‘vá’ ou ‘saia’, pretende ‘ganhar’ à custa de seu próprio esforço. Por sua vez, essas regras são um fator muito importante para o conceito de jogo. Todo jogo tem suas regras. São elas que determinam aquilo que ‘vale’ dentro 105


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do mundo temporário por ele circunscrito. As regras de todos os jogos são absolutas e não permitem discussão. Dentro desse entendimento, a obra pode ser qualquer coisa, até jogo. Quem “joga” não deve esperar nenhuma relação metafísica, deve apenas estar lá, reorganizando o espaço, sentir-se lá. Pode parecer pouco, mas representa muito. Jogando com a percepção, o artista confronta representações naturais de valor e inutilidade, atração e repulsa. Em Eureka/Blindhotland (197075), a idéia era criar um campo de objetos visualmente semelhantes que na realidade mentiam sobre sua aparência visual; houve uma inversão da percepção normal. À medida que experimentava, tocando, jogando, o espectador reorganizava suas referências, redefinia seu próprio corpo a partir de elementos externos. Como alerta Cildo Meireles, “passei a me interessar por trabalhos que não fossem feitos exclusivamente para o olho, o trabalho tem de ser uma demonstração da possibilidade de sua recriação”.7 O legado do seqüestro do espectador e o corpo como fator de transformação redefine suas propostas nessas novas linguagens visuais. Na forma e na função do jogo, que em si mesmo é uma entidade independente desprovida de sentido e de racionalidade, a consciência que o homem tem de estar integrado numa ordem cósmica encontra sua expressão primeira. Motivo lúdico, mas superação de barreiras emotivas – a timidez é deixada de lado – para uma construção de uma celebração da própria positividade da vida, do desejo e sua eterna transmissão de fluxos. O resistir pode ser decorrente de várias situações de violência contra si. A reação contra um artista pode ser contra a sua produção, a sua inovação ou o medo diante do novo indo em direção a conceitos conservadores do que seria a Arte. Resistir, nesse caso, significa (re)existir. Produção de ‘energia’ para entendimento de singularidades. Combate contra políticas de segregação artística (o espaçamento museológico versus as ‘trouxas’ de Barrio) e social (como Tiradentes, de Cildo Meireles, em 1970, ou os ‘caixões’ em Urna-quente, de Antonio Manuel, em 1968). A política corporal, o corpo sendo ‘usado’ para uma produção artística é, muito mais do que ‘crítica’, uma resistência. Palavra de inúmeras possibilidades semânticas, resistência, aqui, significa não ter medo, continuar a todo custo: arte de guerrilha. A resistência é luta, afrontamento, relação de força, situação estratégica. Não é um lugar, que se ocupa, nem um objeto, que se possui. Ela se exerce, se disputa. Não é uma relação unívoca: nessa disputa ou se ganha ou se perde. Numa época de corpos torturados, eletrochoques, desaparecimentos, massacres e mortes, a relação corpo/poder se mostrava institucionalizada. O homem se exerce como produção desse poder. O corpo é vítima, mas também operação de resistência. 106

7 Meireles, Cildo. Entrevista a Antonio Manuel. Herkenhoff, Paulo; Mosqueira, Gerardo; Cameron, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000, p. 125. concinnitas


As multiplicidades de uma (re)existência na recente produção artística brasileira: o corpo entre o jogo e a guerrilha

Artur Barrio. Situação T/T, 1, colocação de 14 trouxas ensangüentadas em um rio/esgosto no Parque Municipal de Belo Horizonte, Minas Gerais, 1970

A produção da verdade do Estado entendia um conjunto de procedimentos regulados a efeitos de poder que ela induz e que a reproduzem. E é justamente esse aspecto que explica o fato de que tem como alvo o corpo humano não para supliciá-lo, mutilá-lo, mas para aprimorá-lo, adestrá-lo. O que interessa ao poder não é expulsar os homens da vida social, impedir o exercício de suas atividades, mas discipliná-los, controlá-los em suas ações para que seja possível e viável utilizá-los ao máximo, aproveitando suas potencialidades e utilizando um sistema de aperfeiçoamento gradual e contínuo de suas capacidades. ‘Regime’ da verdade. A produção artística, sob esse regime do Estado brasileiro, não apenas criticava os conteúdos ideológicos dessa prática, mas pretendia construir uma nova política – corporal – da verdade. Os trabalhos participativos dos neoconcretos acabaram tornando-se o ponto

8 “A lenda de Prometeu reflete os perigos formidáveis inerentes ao dom da luz e da consciência; a tal ponto que aquele que trouxer essa luz para os mortais não o pode fazer a não ser cometendo o crime de violar as leis dos deuses, e deve expiar esse ato pelo eterno ferimento no centro de sua vida instintiva”. In: Bachelard, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 107. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

de partida para essa discussão sobre a instância do corpo como tomada de posição que anos mais tarde, como demonstramos, transforma-se em ‘guerrilha artística’. Há ainda a barreira social que é transposta por essa produção ‘guerrilheira’: o trágico e famoso “não toque na obra”. Não cabe aqui discutirmos a política educacional ou a questão dos seguros das obras pela instituição museológica, mas valorizarmos essa “desobediência engenhosa”8 da criança que quer fazer como seu pai e, 107


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longe dele, e qual um Prometeu, manipula e experimenta todas as possibilidades. O esforço para completar a ordem mobiliza o sujeito perante o desafio de uma obra íntegra, porém esquiva. O equilíbrio das coordenadas espaciais depende agora do Eu, nessa tarefa de reinterpretar o que lhe foge. O trabalho interroga o puro aparecer, nunca o que já apareceu. Instala o transitivo, o visível em constante alteração ou esta ‘estrutura em dúvida’. Um espírito que faz do artista mais do que um propositor, um Tentador. Tal gênero de tentação, notoriamente, não se contenta em reformar: atira-se incondicionalmente ao transformar. E o fluxo ininterrupto de transformação recusa imobilizar-se nesta ou naquela forma. Daí em diante, a produção de arte torna-se suspeita, pois encerra a ação num ciclo regular e previsível. Em todo caso, ela assume o risco de existir em suspenso, sustentando indefinidamente a tensão com o metafísico. Representar: apresentar de novo diante de si, através da imagem, construção do imaginário que assim se dá a ver, entregando-se ao olhar. Olhar que sobre si mesmo se volta, quando confrontando a um outro, pois só o outro coloca como questão nossa própria existência ou identidade. É essa a condição humana. A diferença está no outro. O outro é o nosso espelho. E semelhante contato estético situa-se, desde logo, na dimensão do fazer: trata-se de fazer (com tudo o que o verbo implica de prospectivo) a experiência da Arte enquanto agente da forma móvel do mundo circundante. A verdade de cada obra coincide, pontualmente, com a atividade intensa de apreendê-la. Nada ilusionista, nem mesmo especulativa, ela, entretanto, paradoxalmente atesta (e suas características formais só vêm ajudar a promoção desse paradoxo) a vibração sempre um pouco “aberta”, indeterminada, inerente à nossa presença transitiva no circuito do mundo. Portanto, um contato produtivo com a obra passa, de saída, pela reavaliação dos fundamentos racionalistas, platônicos, que ainda governam a nossa compreensão de Arte. Nossas ousadias e torções fenomenológicas e mesmo nossas aberturas existenciais são, pois, todas elas relativas a uma tradição intelectualista de uma certa vertente geométrica a que a Arte foi relegada nos últimos anos. Talvez, por isso mesmo, a reinvenção de valores para o estatuto do que costumamos chamar de Arte passa pela apropriação do corpo como práxis, modelo de construção, e não como contemplação de figuras ideais. Nesse sentido, a participação torna-se elemento fundamental, fazendo com que o elemento da reexistência signifique também uma produção de agentes formais destinados à experiência de apreensão concreta, poética e 108

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política, do fenômeno do espaço. Portanto, situações como o sarcasmo e o lúdico vieram propor tensões, iminências e desequilíbrios materiais, sempre a nos defrontar com situações espaciais-limites. O jogo e a guerrilha como propositores dessa estética do sarcasmo permanecem fiéis à noção da Arte como o pensamento próprio da experiência física da presença, a investigação por excelência da participação do corpo no mundo, mas como vontade de surpreender, expor e reinventar a própria existência.

Bibliografia BRITO, Ronaldo. Waltercio Caldas Jr.: Aparelhos. Rio de Janeiro: GBM Editoria de Arte, 1979. BRETT, Guy; DAVID, Catherine; et. alli. Hélio Oiticica. Rio de Janeiro: RioArte, 1996. CLARK, Lygia. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; PEREIRA, Carlos Alberto M. Patrulhas ideológicas: arte e engajamento em debate. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1980. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. 6. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1985 ORTEGA, Francisco. Michel Foucault: os sentidos da subjetividade. In: JÚNIOR, Benilton Bezerra; PLASTINO, Carlos Alberto (org.). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001 JÚNIOR, Benilton Bezerra; PLASTINO, Carlos Alberto (org.). Corpo, afeto, linguagem: a questão do sentido hoje. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. MEIRELES, Cildo. Entrevista a Antonio Manuel. In: HERKENHOFF, Paulo; MOSQUERA, Gerardo; CAMERON, Dan. Cildo Meireles. São Paulo: Cosac & Naify, 2000. BACHELARD, Gaston. Fragmentos de uma poética do fogo. São Paulo: Brasiliense, 1990. HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 1993.

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Waltercio Caldas. Talco sobre livro Ilustrado de H. Matisse, 30x40cm, 1978

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Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares Daniela Vicentini* Neste artigo, propõe-se uma leitura da trajetória artística de Waltercio Caldas, que se inicia no final da década de 1960, a partir da escolha de cinco trabalhos que apresentam relação com a História da Arte, mais especialmente com a pintura. Seguindo a seqüência cronológica, a leitura das obras nos conduz sucessivamente a fazer referências ao Neoconcretismo, à Pop Art e ao Minimalismo. Tais referências nos dão elementos para compreender sua obra como continuidade do debate da morte do plano, que surge com o Neoconcretismo. Waltercio Caldas, arte contemporânea, neoconcretismo

Esta discussão sobre a trajetória poética de Waltercio Caldas, começa pelo final da década de 1960, a partir de obras que apresentam uma particularidade comum. Espelho com luz (1973), Matisse com talco (1978), Escultura em mogno e imbuia (1989), O ar mais próximo (1991) e Série Veneza (1996) mantêm uma relação com a História da Arte, mencionando e utilizando materiais e matérias que nos remetem mais especificamente à pintura. Tal referência surge de diferentes modos em cada uma das obras, e será nosso propósito aqui investigar o processo de significação que as envolve.

Espelho com luz e Matisse com talco Espelho com luz (1973) é um espelho emoldurado, como quadro, sobre o qual há uma pequena luz vermelha e um interruptor para acendê-la. De saída, a obra sugere uma ação que, no entanto, frustra o próprio sentido do gesto: em nada resulta. No limite da moldura, permanece o quadro distinto do espaço real. A moldura pode ser vista como a materialidade de um pensamento às voltas com o próprio campo da arte; sem ela não poderíamos entender o espelho como o elemento de tensão entre o plano da arte distinto do plano do mundo. O espelho emoldurado constrói desse modo um quadro como fragmento do espaço circundante, dissolve o quadro na contingência do mundo. Esse é, podemos afirmar, um pensamento do trabalho. Deve-se, de início, contemplá-lo à luz do contexto específico em que

* Daniela Vicentini é mestre em História Social da Cultura pela PUC-Rio. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

atua. Ao menos, fazer-se referência a uma das discussões presentes na produção artística desde o final da década de 1950, no Brasil, proposta no Neoconcretismo e teorizada por Ferreira Gullar: a discussão da morte do 111


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plano. Suprimir a moldura, na pintura, e o pedestal, na escultura, em favor da inserção do fato artístico no ambiente real, constitui a questão essencial no processo de legitimação da autonomia da arte: no Brasil, as práticas dos neoconcretistas criaram um não-objeto, nas palavras de Gullar. O termo nasceu da dificuldade de se encontrar definição para certo trabalho de Lygia Clark e depois veio a ser um pensamento comum à obra dos outros artistas do movimento: Um dia a Lygia começou a desmembrar um quadro, e fez um troço com tábuas de madeira, umas em cima das outras, umas pretas outras brancas. Ela queria nos mostrar isto, e nos convidou para jantar, olhei aquilo, e achei um troço bacana, diferente. O que é isso? Por que não era um quadro nem era escultura. O Mário [Pedrosa] falou: isso aí é um relevo. Eu disse: não, não é relevo; relevo é uma coisa cavada numa superfície e aí não tem nenhuma superfície cavada. Achei que era um outro objeto. Fiquei rodando, conversando, e falei: isto é um não objeto.1 Na obra de Lygia Clark, e também na de Hélio Oiticica, a ruptura da moldura ativa o percurso que vai das telas neoconcretas à radicalização das experiências sensoriais. Como afirma Gullar, nos aprofundamos na linha mais radical do questionamento da arte contemporânea, chegamos ao impasse e conseqüentemente estouramos. Estouramos antes dos outros (...) Estouramos o plano, o tempo, o suporte, antecipamos a participação do espectador na obra de arte, o penetrável, a arte corporal. Está tudo proposto antes por nós.2 Em tal questão há, certamente, considerações imprescindíveis para a reflexão teórica sobre a arte moderna e contemporânea, a exemplo da inserção da obra de arte no mundo entendida como questionamento do conceito de representação: se a perspectiva renascentista, forma simbólica de representação que se desdobrou por 400 anos na arte ocidental, apresenta um mundo que abarca o infinito dentro do próprio quadro – na geometria euclidiana duas linhas paralelas só se encontram no infinito e, na perspectiva clássica, no ponto de fuga –, o espaço da arte moderna passa a construirse enquanto fato plástico no mundo. Deve-se dizer que a noção de autonomia da arte moderna, a partir do objeto-quadro cubista e de seu desdobramento na arte geométrica de Mondrian e Malevich, ganha uma interpretação viva e pessoal, na cultura brasileira, quando um poeta e teórico “maranhense subdesenvolvido”3 e um grupo de jovens artistas concebem um olhar próprio para a arte geométrica. Isso os envolve num processo de realizações artísticas e teóricas que vai do objetoquadro ao não-objeto, passando pelas pinturas neoplásticas de Mondrian e suprematistas de Malevich e pelo contra-relevo de Tatlin. 112

1 Ferreira Gullar, em entrevista a Fernando Cocchiarale e Anna Bella Geiger. In Abstracionismo geométrico e informal, p. 98. 2 Idem, ibidem, p. 100. 3 Idem. concinnitas


Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

Neste contexto, a pergunta apresentada a Espelho com luz é: “como continuar a fazer arte quando tudo já fora feito?” A resposta do trabalho é investigar seus próprios processos de significação no objeto. Na década de 1970, impunha-se a necessidade de se compreender o processo de inserção da arte na sociedade a partir do exame crítico do caráter institucional específico do ambiente brasileiro – a questão era pensar os meios que permitissem fazer arte como trabalho. O espelho vem refletir a (e sobre a) precariedade da instituição – entenda-se, do mercado e da História da Arte no Brasil. Curioso perceber que no Neoconcretismo é somente a reflexão artística que leva a arte a tomar a forma de ações efêmeras e, às vezes, deixar de ser arte, mesmo sem que houvesse um solo institucional público e efetivo ao qual se opor. Desse modo, Espelho com luz critica o processo de significação da obra quando, dada a participação concreta do espectador, questiona o fato de a obra significar ao concluir-se na ação do espectador. Não sem intenção, sugere um gesto vazio. De fato, no processo da obra de Waltercio Caldas, em nenhum momento as propostas extrapolam a atividade da visão; “o que há”, afirma Ronaldo Brito em Aparelhos, “é um cálculo estratégico sobre a presença do olho, o peso efetivo de sua ação nas práticas que constituem o real da arte”. 4 Ao que tudo indica, havia no Rio de Janeiro, na década de 1970, um meio artístico estimulante e decidido a promover a arte como uma atividade de saber específico, um conhecimento a ser ainda teorizado e instituído como reflexão intelectual – uma História da Arte a ser construída. É o que se pode intuir, para citar um exemplo, pela discussão de alguns textos publicados na revista Malasartes,5 como: A querela do Brasil, de Carlos Zilio, o Neoconcretismo, de Ronaldo Brito, e a reedição da Teoria do não-objeto, de Ferreira Gullar, célebres reflexões que mostram o esforço nessa direção. Waltercio Caldas, juntamente com os outros editores da revista, participou de ricas discussões acerca da produção das artes plásticas e da literatura nesse período. Enfim, Espelho com luz, assim como outros conhecidos trabalhos do artista, revela-se uma investigação sobre o processo de transmissão dos 4 Apud Waltercio Caldas. Aparelhos, p. 36. 5 Publicada no Rio de Janeiro, com apenas três números, entre os anos de 1975 e 1976. Os editores eram Bernardo Vilhena, Carlos Vergara, Carlos Zilio, Cildo Meireles, José Resende, Luiz Paulo Baravelli, Ronaldo Brito, Rubens Gerchman e Waltercio Caldas. 6 Brito, Ronaldo. “O moderno e o contemporâneo (o novo e o outro novo)”. In: Basbaum (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001, p. 213. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

meios de expressão, sabendo não poder mais constituir-se como representação da expressão. Esse problema aciona todo o percurso de inventividade da obra do artista. Afinal, sua poética surge tendo em vista que, na arte contemporânea, “recusar a racionalização é negar a própria inteligência, aceitar a condição de objeto decorativo”.6 De início, devido à sua “estranheza”, os trabalhos do artista costumavam ser tomados como mágicos, esotéricos, místicos. O esforço crítico de Ronaldo Brito, no texto “Espelho Crítico”, escrito para o catálogo de A Natureza dos 113


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jogos (a primeira individual do artista, ocorrida em 1975), foi o de encaminhar a leitura para outro plano cultural de significação. Refutando a interpretação dominante que filiava o artista “à onda de esoterismo característica do início dos anos 70 e ao aparente uso de uma linguagem do nonsense”, Brito procurava entender os trabalhos de Waltercio Caldas como “uma especulação até certo ponto analítica sobre o comportamento do homem, frente aos processos de comunicação que o envolvem”.7 Com tal tomada de posição, o crítico pretendia combater a apreensão “simplista” que “recuperava o dispositivo Waltercio Caldas para o interior do circuito oficial de arte, tentava integrá-lo à ideologia vigente e com isso, é claro, esvaziava seus efeitos críticos”.8 O texto de abertura do primeiro número da Malasartes, também de Ronaldo Brito, ao propor, como diz o título, uma “Análise do Circuito”, revela que textos esotéricos eram uma constante na crítica brasileira. Apresentada no contexto em que se consolidava o mercado de arte brasileiro – o chamado boom de 1972, com o “milagre” econômico promovido pelo então ministro da Economia Delfim Netto, impulsionando o mercado em todos os níveis, mesmo que ainda de forma bastante frágil no campo da arte –, a proposta da revista era “recolocar a manifestação plástica em atividade no contexto cultural de forma atuante”.9 Para melhor contextualizar tal propósito, parece-nos importante transcrever um trecho do texto O Boom, o pós-boom e o dis-boom, publicado no jornal Opinião, em 1976, assinado por Carlos Zilio, José Resende, Ronaldo Brito e Waltercio Caldas: Está patente que as linguagens emergentes com os anos 1970 não pretendem tanto – como as vanguardas do início do século XX – promover rupturas formais e sim construir um ponto de vista diferente acerca da arte e sua inserção cultural e ideológica. Este ponto de vista, sobretudo político, não implica obviamente submissão a programas partidários, nem significa uma redução do trabalho de arte à categoria de reflexo das situações políticas em que aparece. Trata-se de superar a opacidade mítica em que a instituição arte mantinha protegidos os seus lances e ainda o ingênuo platonismo da condição de artista. O pólo de referência para essas linguagens permanece sendo, inevitavelmente, a História da Arte. O que mudou foi o modo de encará-la: ela deixou de ser uma entidade quase sagrada, um patrimônio fechado em si mesmo, para aparecer como uma construção das ideologias dominantes. A discussão artesociedade, eixo central de todas as vanguardas, passa a ser referida agora a um solo institucional concreto que é o responsável pelo modo de penetração do trabalho de arte na sociedade: o chamado sistema de arte. O debate no trabalho e por meio do trabalho desse solo institucional talvez seja mais eficaz do que a retórica 114

7 Ronaldo Brito. “Espelho Crítico”. In: Waltercio Caldas. A Natureza dos jogos, 1975. Catálogo de Exposição. p, 3. 8 Idem. 9 Cf. José Resende. A palavra do artista. Entrevista concedida a Lúcia Carneiro e Ileana Pradilla. Rio de Janeiro: Lacerda, 1999, p. 41. concinnitas


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com a qual costumava investir contra o tipo de circulação social imposto à arte.10 Nesse sentido de ação podemos situar o trabalho Matisse com talco (1978), que se constitui por um livro de reproduções da obra do pintor com suas páginas abertas veladas com talco. Um trabalho em que: Uma imagem desaparece diante de nossos olhos revelando-se, tênue e poderosa, como nas páginas daquele livro antigo, em que a cor do mundo esvanece junto com as suas histórias. Agora, a cor e a história retornam ao branco pela espessura do branco e neste adensar de névoas o apagamento torna toda reconstrução possível – não é isso o que sonhamos para o mundo? Uma página em que a cor retorna à luz que a manifesta e onde a narrativa volta ao zero sem esquecer o que já narrou.11 A pulverização do talco torna espessas as páginas impressas, confere corpo ao que era imagem. O trabalho realiza-se como interpretação de uma matéria de pintura diante da sua dispersão pela técnica da reprodução. Mostra um gesto que, procurando tornar “toda reconstrução possível”, nos conduz a certas considerações acerca do contexto da arte Pop. Talvez seja viável dizer que, diante de Espelho com luz e Matisse com talco, nos surpreendemos como David Antin diante das telas do mais “mítico” artista pop, Andy Warhol. Temos a mesma impressão “de que há alguma coisa ali que reconhecemos e, contudo, não conseguimos ver”. 12 Reconhecemos o quadro, o espelho e o interruptor, o livro de Matisse e o talco, mas o modo preciso como estas coisas se mostram e se relacionam nos leva a pensar que não conseguimos realmente vê-las. Por mais variados e díspares que sejam os suportes, o sentido escapa a suas aparências, mesmo que delas não possa ser cindido: a forma surge por “uma mão certa, pouca e extrema”,13 que cria, entretanto, o vacilante, o hipotético, o irresolúvel. Frente a esses objetos, entramos num campo de paradoxos e dúvidas talvez análogo ao que impregna a linguagem da arte Pop norte-americana. Não, obviamente, pela maneira pop de confeccionar as imagens da cultura de massa com a linguagem própria do campo artístico, caso das serigrafias 10 In: Basbaum (org.). Op. cit., p. 191. 11 Geraldo Leão assim se refere à obra exposta na XII da Mostra da Gravura, de Curitiba, em 2000. Apud “Matrizes da Linguagem”. In: Paulo Herkenhoff e Adriano Pedrosa (org.) Marcas do corpo, dobras da alma. Catálogo de exposição. 12 Leo Steinberg. “Outros Critérios”. In: Cecília Cotrim e Glória Ferreira (org.). Clement Greenberg e o Debate Crítico, p. 206. 13 João Cabral de Melo Neto. Alguns Toureiros. In: Antologia Poética, p.156. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

de Warhol ou das telas de Lichtenstein, e sim pelo fato de o nosso autor, na seqüência desses artistas, compreender o novo significado da imagem como linguagem de transmissão de informação, e não como puro fenômeno estético. A Pop, como se sabe, disseca o modo como é construída a imagem que circula nos mass media, investiga o processo de transmissão da informação, a rapidez com que se reproduz nos vários meios e depois é esquecida, por mais conspícuo o assunto veiculado, como nos ilustram as repetidas imagens 115


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de Warhol, sempre prestes a desaparecer. Tem-se em consideração, ao traçarmos tal analogia, a diferença entre o domínio público da Pop e o contexto acanhado da cultura brasileira. Acreditamos que esta cultura não comportava, pelo menos antes da década de 1990, uma discussão realmente pop; não podemos, no entanto, deixar de indicar as investidas desse movimento como essenciais na formação do contexto de reflexão sobre os processos de significação da arte e da sua linguagem. O artista norte-americano Jasper Johns teria sido o primeiro a pôr em xeque a percepção das imagens reconhecíveis.14 Em sua primeira exposição individual, em 1958, ele apresenta pinturas com variações de quatro temas: a bandeira norte-americana, alvos, números e letras dispostos sobre telas. Pinturas em que a natureza plana dos objetos coincide com o espaço bidimensional da pintura pós-cubista. Flag (1954-5) é uma bandeira norte-americana pintada como coisa. Não uma representação da bandeira hasteada a um mastro e sim a imagem decalcada literalmente sobre a superfície da pintura. Do mesmo modo foi construído o alvo em Target with Plaster Casts, de 1955, onde partes humanas ainda são montadas como coisas, moldadas em gesso e “estocadas” em prateleiras na parte superior do quadro. A experiência do crítico Leo Steinberg nessa exposição foi de angústia diante de “uma cidade morta terrivelmente familiar. Somente os objetos permanecem – signos feitos pelo homem e que, na ausência deste, tornaram-se objetos. E Johns antecipou seu abandono”.15 O que torna mais pungentes esses trabalhos, segundo o autor, é a conotação de ausência humana em um ambiente criado pelo homem. Uma sensação de ausência diante de coisas que “aguardam a manipulação de alguém que não virá”.16 Jasper Johns, no campo específico da pintura, apresenta obras que frustram o olhar “através da utilização de objetos funcionais que simplesmente não operam”.17 Para citar três exemplos, em Jasper Johns observa-se: moldura que não emoldura – Canvas (1956); livro que não pode ser lido – Book (1957) e um quadro sobre o qual há um interruptor para acender que, no entanto, não resulta em nada – Field Painting (1963-64). Como vimos, há um procedimento algo semelhante nos objetos de Waltercio Caldas, em que o interruptor não acende uma imagem, e o talco obstrui a reprodução da obra de Matisse. Espelho com luz, um “aparelho cruel”,18 e Matisse com talco apresentamse como mecanismos que ironizam a expectativa de sua própria função. Como o célebre ready-made de Marcel Duchamp, solicitam uma forma de percepção de caráter circular, segundo a historiadora norte-americana Rosalind Krauss, “a forma circular de uma perplexidade (...) a de remeter o espectador continuamente ao início da pergunta por quê?”.19 116

14 Para o entendimento da obra de Jasper Johns, que é um ponto de referência para as nossas reflexões, tem sido importante a leitura da dissertação de mestrado de Christina Bach. A representação da solidão nas obras de Caspar David Friedrich, Giorgio de Chirico e Jasper Johns. PUCRio, 1998. 15 Leo, Steinberg. “A arte contemporânea e a situação de seu público”. In: Gregory Battock. A nova arte, p. 259. 16 Idem. 17 Christina Bach. Op. cit., p.134. 18 A respeito da designação Aparelhos, dada tanto à exposição de 1979 na galeria Luisa Strina, em São Paulo, quanto ao livro, publicado no mesmo ano, com texto de Ronaldo Brito, talvez seja oportuno mencionar o contexto de sua origem, que pode ajudar a ampliar a compreensão dos propósitos de estranhamento inerentes aos trabalhos de Waltercio Caldas nesta fase de sua atividade. É uma escolha singular, feita em parceria com o crítico, em referência aos locais, casas e apartamentos – aparelhos, precisamente, na linguagem especial dos militantes políticos, ou mesmo da polícia – destinados, naqueles anos de lutas terroristas, ao desempenho de atividades clandestinas. 19 Rosalind Krauss. “Formas de ready-made: Duchamp e Brancusi”. In___. Caminhos da Escultura Moderna., p. 96. concinnitas


Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

O célebre gesto duchampiano – enviar um urinol para um salão de arte – notoriamente promoveu uma nova forma de entendimento do objeto artístico, um outro jogo entre espectador e obra. O seu efeito foi decisivo: testar as convenções que regem toda a arte da tradição –essencialmente pictórica – produzida no Ocidente e a vida que ela “representava”.20 Os ready-mades estetizados da Pop, e os dos dois artistas protopops, Robert Rauschenberg e Jasper Johns, têm objetivos diversos, não pretendem um ato revolucionário de tamanha amplitude, o efeito desses objetos é agir na cultura específica de mass media entertainment. Não por acaso, Flora Süssekind, num artigo em que analisa a indústria cultural brasileira a partir de 1976 – destacando a espetacularização da paisagem cotidiana –, associa o gesto sugerido por Espelho com luz a “um dos gestos mais característicos no cotidiano brasileiro: o movimento de ligar esta outra tela, às vezes semelhante a um espelho, que é a TV”.21

Escultura em mogno e imbuia A Pop, com certeza, não constitui apenas um movimento artístico, mas inaugura a condição da arte na atualidade; se é difícil definir o teor crítico em suas ações, certamente, pelo menos, introduz na nossa percepção cotidiana o fato de que o mundo poderia ter-se tornado uma imagem diferente desta que se processa. A Pop instaura a consciência do risco do desaparecimento da arte diante do crescente processo de entertainment da própria arte – Andy Warhol, à primeira vista, não se importava com isso. Desse modo, continuar a fazer arte implica sempre lidar com o peculiar funcionamento desse sistema pop da arte. A resposta de algumas obras de Waltercio Caldas a essa questão tem sido a de reclamar, na própria visualidade de seus trabalhos, um saber específico para o campo da arte, constituir-se enquanto pensamento sobre a arte. Isso ocorre, como vimos, em objetos na década de 1970, coisas que se inserem no mundo questionando o caráter de sua presença no seu âmbito específico de ação, o campo da arte. As obras analisadas, Espelho com luz e Matisse com talco, foram especialmente escolhidas, em meio às múltiplas obras do artista, pela relação explícita que estabelecem com a História da Arte. Uma relação a ser examinada em Escultura em mogno e imbuia (1989), como exemplo da inserção da linguagem da escultura, em sua poética, que se inicia na década de 1980. Na década de 1990, as esculturas realizam-se enquanto 20 A esse respeito, veja-se Hall Foster. “Who’s afraid of the Neo-Avant-Garde?”. In____ The return of the real: the avant-garde at the end of the century, p. 4. 21 Flora Süssekind. A lógica da vitrina. Isto É. 07/05/1986. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

desenhos no espaço, ativando-o mediante a alusão a ferramentas tradicionalmente vinculadas ao campo pictórico. Pressupomos que, nesses trabalhos, um isolamento da gramática da pintura ocorre como fato do espaço, onde o fundo é o mundo, um mundo em processo. Nesse sentido, 117


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em obras da década de 1990 ocorreria uma seqüência do debate acerca da morte do plano ideal, em que os trabalhos realizam-se no plano real incorporando uma memória histórica a seu processo de significação. Como foi dito, na década de 1980 as obras de Waltercio Caldas passam a se apresentar de maneira mais contundente em coisas definidas pelo próprio artista como “instantes escultóricos”. Ao analisar a Escultura em mogno e imbuia observamos um efeito volumétrico que, por assim dizer, coincide com o movimento da superfície. O que constatamos ao imaginar a seguinte operação: traçar duas linhas de uma mesma dimensão, em cada uma das quais a pressão da mão sobre o papel tem três intensidades de duração distinta. Essa operação ocorre de modo diferenciado em cada uma delas: na primeira, o leve traçar acentua-se e torna-se leve outra vez; na segunda, a linha vai do forte ao fraco, de novo ao forte. Cada linha assim traçada, com tempos de qualidades distintas, configura, para a percepção, distintas qualidades de espaço: na primeira, o espaço se expande, se distende, esvai-se; na segunda, ele se contrai, se fecha, se adensa. Percebemos que esta dupla qualidade do espaço se apresenta, na escultura, como o volume dos objetos, sendo a escultura a relação entre os dois. Sensação confirmada na superfície pela diferença no desenho conformado pelos veios das madeiras: paralelos e longitudinais na madeira clara (estendidos) e em propagação curva ao redor dos nós, na escura (contraídos). Ao mesmo tempo em que reativa uma memória histórica – fazendo uma citação do claro-escuro do espaço renascentista –, o trabalho se dá enquanto algo fugidio. O jogo de texturas que o conforma faz com que, em última instância, a matéria física perceptível nos limites da madeira clara se estenda virtualmente: num dos objetos, enquanto prolongamento longitudinal quase linear; no outro, como expansão circular em halos. A obra parece aspirar ao vazio. E a história, no caso, é usada como algo que simplesmente ativa o presente do ato perceptivo. Não há como encontrar na história “explicação” para a obra; não se pode, de fato, encontrar explicação. Já nos adverte o artista: “Poderia dizer que na arte a aparência tem características de transparência. Não há nada ‘por dentro’ dos trabalhos; estes sempre são peles, uma pele exposta; eles sempre são claros, tão claros que às vezes as pessoas passam através. Interessa-me muito este olhar que atravessa as coisas”.22 A forma brancusiana é uma referência explícita nessa escultura de Waltercio Caldas. A inovação de Brancusi foi tornar suas esculturas objetos que captam a essência da forma antropomórfica: fragmentos de cabeças, torsos e mãos tornam-se uma totalidade, um fato plástico auto-suficiente. Na célebre Sleeping Child (1908) podemos ver a independência da cabeça enquanto objeto contido em si mesmo. Como afirma Sidney Geist, “é a 118

22 Apud Celso Fonseca. Waltércio: transparência até no opaco. Jornal da Tarde. São Paulo, 23/ 11/89. concinnitas


Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

cabeça ansiando ser um objeto independente: uma ambição contrária ao seu estado natural”.23 Nas formas concisas de Brancusi, vemos que o significado do corpo se dá como que na pele, superfícies que reverberam a luz num jogo de reflexos e texturas que vinculam o objeto ao lugar, ao espaço real. De fato, a noção da escultura enquanto presença no espaço real se verifica também no modo como o artista passa a conceber as bases. Às vezes quase suprimidas, outras vezes construídas com elementos geométricos, intensificam as relações das formas com o espaço circundante e superam assim a condição de pedestais. Toda a complexidade da Escultura em mogno e imbuia está no fato de não aludir a nada além de si mesma, ser exatamente aquilo que parece ser, provocando um enigma, certo desconforto que surge por se ter que aceitar algo que simplesmente é. Segundo o artista, “o interesse de toda a arte está nesta sua impossibilidade de ser reduzida diferente de si mesma. É através desta irredutibilidade que ela se torna capaz de questionar o real...”.24 Nesse sentido, retomamos as palavras de Ferreira Gullar acerca da teoria do não-objeto: “ao eliminar a base e a moldura liberta-se a obra de qualquer significação que não a de seu próprio aparecimento”.25 É a significação tácita da obra, prescrita por Gullar a partir da fenomenologia de Merleau-Ponty. O Neoconcretismo reclamava para si um “novo espaço expressivo” incutindo à obra o tempo como virtualidade, em contraposição ao tempo de produção, mecânico, do Concretismo. Trata-se do processo de espacialização da obra: esse fenômeno que dissolve o espaço e a forma como realidades causalmente determináveis e os dá como tempo – como espacialização da obra. Entenda-se por espacialização da obra o fato de que ela está sempre se fazendo presente, está sempre recomeçando o impulso que a gerou e de que ela era já a origem.”26 A tensão entre a condição estática dos corpos e seu permanente ato de espacialização está presente na Escultura em mogno e imbuia. A obra 23 Sidney Geist. Brancusi: a study of the sculpture.“Is the head striving to be an independent object: an ambition at odds with its naturalism”, p. 32. 24 Apud Roels, Reynaldo Jr. A transparência da escultura. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 6/7/ 88. Caderno B. 25 Ferreira Gullar. Teoria do não-objeto. In: Amaral, Aracy (org.) Projeto Construtivo Brasileiro na Arte. São Paulo; Rio de Janeiro: Funarte, 1977, p. 90. 26 Ferreira Gullar. Manifesto neoconcreto. In: op. cit., p, 83. 27 Lorenzo Mammì. In: Waltercio Caldas. s/t. Rio de Janeiro: Joel Edelstein , 1995. Catálogo de exposição. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

concretiza-se como uma pausa, ativa um campo de ação dando à percepção o presságio de uma reconfiguração iminente; como observa Lorenzo Mammì, “a obra convida-nos a olhar além dela, e todavia não podemos abstrair de seu corpo (...) Atrás da obra se encontra apenas a obra”.27

O ar mais próximo Imaginemos uma grande sala vazia em forma de U. Agora, visualizemos essa sala “preenchida” com 35 fios de lã, divididos em grupos de oito “esculturas”, de diferentes tons cromáticos, conformados por linhas curvas e retas que caem do teto, umas próximas, outras distantes do solo. Se pudéssemos percorrê-la, estaríamos na exposição O ar mais próximo, 119


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realizada no Museu de Belas Artes, do Rio de Janeiro, em 1993. Provocando uma inserção simultaneamente crítica e poética na instituição, o trabalho nos remete às palavras escritas a respeito do início da produção do artista, na década de 1970: O trabalho está preso aos limites da arte, a sua exigência é de ali situar-se nos extremos máximos. Mais do que consciência, o trabalho tem a obsessão dos limites. Respira essa tensão e extrai força dessa ambigüidade. O que é arte e o que não é, quando é e quando deixar de ser, como pode sê-lo e como pode não sê-lo, são essas as questões. Mas ele não as coloca diretamente porque isso equivaleria a negá-las, escapar de sua pressão contínua, definir-se como consciência que interroga e responde. O trabalho vibra nessas questões, estas são o seu meio ambiente: só ali produz sentido, organiza e agita sentidos. O seu espaço é portanto a iminência do vazio, os limites, o que está entre, as linhas que existem enquanto processo de demarcação de regiões diferentes. É sobre essas linhas que atua, captando a tensão circundante. E o trabalho não é senão essas linhas.28 Por outro lado, podemos afirmar que a distribuição dos fios de lã no espaço – assim como, acreditamos, a pulverização do talco sobre o livro de Matisse – dá início ao “evento que acorda os lugares”.29 Cada grupo de escultura, em O ar mais próximo, se estabiliza como uma espécie de natureza-morta em escala proporcional à sala do museu. Como se as curvas e as retas criassem planos virtuais e conferissem corpo ao que está entre. Instantes mínimos de cor se relacionam em diferentes gamas cromáticas, linhas que ativam planos virtuais no espaço. Linhas que se interceptam “no exato instante de formar uma figura e, por isso, não permitem fechá-las em planos unitários para formar um corpo”. Podemos afirmar, seguindo as palavras de Lorenzo Mammì, que a escultura admite todos os ângulos de visão, inimigos um dos outros, como se se tratasse de diferentes corpos.30 Não podemos dividir cada escultura nos seus diversos elementos, é um todo aberto ao espaço, sem contorno, sem distinção de continente e conteúdo. Lembramos as definições de Gullar sobre o não-objeto: “ele não tem nem alto, nem baixo, nem costas, nem frente, está no espaço”.31 Apenas por um instante, a escultura permanece estática, como uma natureza-morta ou como o horizonte de uma paisagem; logo, porém, o espectador é convidado a mover-se a fim de experimentar o trabalho: “linhas e cores são tão sutis que podemos perceber plenamente a proporção do trabalho só quando nos aproximamos demais dele, e o destruímos com a nossa presença. A obra não admite uma distância ideal, e por isso é praticamente impossível fotografá-la. Assim, ela nunca é realmente vista, mas apenas intuída, no exato momento em que se desmancha”.32 120

28 Ronaldo Brito. In: Waltercio Caldas. Aparelhos, p.11. 29 Na palavra espaço, nos ensina Heidegger, está contido o fazer – e deixar – espaço. Isso significa desmatar, preparar o terreno. Fazer espaço é livre doação de lugares. No fazer espaço se expressa e se esconde ao mesmo tempo um acontecer. Como se dá o fazer e deixar espaço? É um dispor e pôr em ordem, e isso, por sua vez, no dúplice modo do acordar [harmonizar] o acesso e do instalar. Fazer-espaço é o evento que acorda os lugares. Martin Heidegger. L’arte e lo spazio, p. 27. 30 Lorenzo Mammì. Op. cit. 31 Gullar. Op. cit. 32 Lorenzo Mammì. Op. cit. concinnitas


Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

A participação do espectador não seria, portanto, aproximar-se ou afastar-se até encontrar o lugar certo para ver a obra. Como no trabalho Shift, de Richard Serra, a posição ideal para perceber O ar mais próximo não existe. Sem procurar uma relação formal entre os trabalhos dos dois artistas, nos referimos a Shift por sua peculiar visibilidade, explicitada pelo próprio Serra num texto de 1973: “o sistema de espaço da Renascença depende de medidas fixas e imutáveis. Aqui [em Shift], os degraus são ligados a um horizonte continuamente em movimento, e, como as medidas, são inteiramente transitivos: elevam-se, rebaixam-se, estendem-se, reduzemse, contraem-se, comprimem-se e transformam-se. A linha enquanto elemento visual torna-se gradualmente um verbo transitivo”.33 A reduzida matéria de O ar mais próximo configura um raro lugar, de exatidão e silêncio, oscilante ao menor deslocamento de onda, e doa a qualquer presença estranha – o corpo do espectador – uma carga dimensional extra. O enfoque de significação transfere-se para esse corpo que, mais do que completar, parece romper a estabilidade, considerada ideal, da obra – a presença do espectador transpassa “o silêncio das linhas que procuram permanecer o tempo suficiente para lembrar o gesto que tornou possível a imagem”.34 Seguindo esse critério de análise, podemos, agora, apontar um caráter de exterioridade da linguagem na obra de Waltercio Caldas que nos permite apreendê-la, aproximadamente, com um modelo de significação análogo ao do Minimalismo, dos anos 60. A obra minimalista procede mais de escolha do que propriamente de construção: ela resulta da disposição de elementos seriais anônimos (cubos, tijolos, lâmpadas, placas de cobre, etc.). Sua prática consiste numa exploração de elementos ready-mades que, como analisa Rosalind Krauss, leva em consideração suas implicações estruturais: são unidades abstratas sem conteúdo, ao contrário das imagens altamente difundidas dos meios de comunicação, utilizadas pela Pop.35 Aparentemente, essa arte adquire a forma de uma “estética desumanizada”,36 que rejeita a expressão subjetiva, a narrativa, o trágico, em favor do mundo das coisas.37 De acordo com uma ordem não hierárquica, 33 Richard Serra. Shift. Tradução de trechos por Cecília Cotrim. 34 Waltercio Caldas. Desenhos. Rio de Janeiro: Reila Gracie, 1997. 35 Rosalind Krauss. “O duplo negativo: uma nova sintaxe para a escultura”. In: Caminhos da Escultura Moderna, p. 298. 36 Harold Rosenberg. “Defining Art”. In: Battcock, G. Minimal Art, p. 298. 37 Barbara Rose. “ABC Art”. In: Battcock, G., op. cit., p. 274. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

dispõe os elementos “um depois do outro”. Curiosamente, o fato plástico minimalista permite, contudo, ao aludir ao processo estrito da serialização, interpretações equívocas. Assim, por exemplo, contrapondo-se à resposta crítica inicial ao Minimalismo, a de que tal estética fosse apenas um ataque à possibilidade de significação da arte, Rosalind Krauss propõe uma leitura positiva da arte desses artistas: “Os artistas minimalistas estão simplesmente reavaliando a lógica de uma fonte particular de significado 121


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e não negando um significado ao objeto estético em absoluto”.38 Com o uso de elementos que resistam ao aspecto de manipulação, fabricados em princípio para outro uso social, tais esculturas proíbem que se identifique nelas “a alusão de uma vida interior da forma”,39 aludem a um espaço público e não ao privado, transmitem a idéia de simples exterioridade. Para entender teoricamente a arte minimalista, sua recusa em produzir obras de “caráter singular, privado e inacessível da experiência”, a historiadora volta-se principalmente para a filosofia de Wittgenstein, cuja obra, em sua fase final, questiona a idéia da possível existência de algo que pudéssemos classificar como linguagem particular – uma linguagem em que o significado é determinado pelo caráter singular da experiência interna do indivíduo de tal modo que, se aos outros não é dado ter essa experiência, não lhes é dado conhecer verdadeiramente o que determinada pessoa designa com as palavras que usa para descrevê-lo.40 No Minimalismo, o significado adquire um caráter de exterioridade que se refere a um Eu presente diretamente no mundo. “Sentimos um certo terror”, afirma a autora, “quando pensamos no eu como construído na experiência e não anterior a ela. Terror porque é preciso abdicar de algumas noções de controle, porque algumas certezas acerca da fonte ou função do conhecimento deverão ser modificadas ou reformuladas”.41 Jasper Johns teria sido o primeiro a advertir que não podemos realmente controlá-las. O fato plástico no Minimalismo ocorre a título de condutor de uma experiência que se faz na própria percepção, valorizando o processo e não o objeto. Em tal arte destaca-se um tipo de objeto que, para Robert Morris, “é somente um dos termos da nova estética”, ou seja, “os melhores desses novos trabalhos tomam relações exteriores a ele e os fazem uma função do espaço, da luz, e do campo de visão do espectador”.42 O trabalho de Morris conformado por três sólidos geométricos idênticos em forma de L, dispostos em diferentes posições, produz a sensação de distintas dimensões. De fato, segundo Krauss, pouco importa se compreendemos que os três “Ls” sejam ou não idênticos, na realidade, é impossível que sejam percebidos como tal.

Série Veneza A Série Veneza, feita especialmente para a Bienal de Veneza de 1996, mostra “quatro instantes congelados de uma estória da arte”.43 Conformada por quatro trabalhos enfileirados – Sem Título, Rodin-Brancusi, A distância entre... e O transparente – a série inclui em sua visualidade 122

38 Rosalind Krauss, op. cit., p. 313. 39 Tal tema será a questão do livro Caminhos da escultura moderna de Rosalind Krauss. Segundo a autora, nas esculturas de Gabo e Pevsner, Moore e Arp, e em boa parte da escultura do século XX, há a celebração de um espaço interior das formas. Nas esculturas de Moore e Arp, por exemplo, há a ilusão de que no centro da matéria inerte — de uma escultura não naturalista — existe uma energia que dá forma e vida à escultura. Nas esculturas dos Construtivistas russos, por outro lado, tal caráter de interioridade se dá a partir de uma lógica construtiva pela qual estruturas simétricas emanam de centros visíveis, um modo de apresentar visualmente o poder criativo do pensamento, a Idéia. 40 Cf. Rosalind Krauss. “Sense et sensibilité”. In L’originalité de l’avant-garde et autres mythes modernistes. 1993. 41 Rosalind Krauss. “Balés mecânicos: luz, movimento e teatro”. In: Caminhos da escultura moderna, p. 276. 42 “The better new work takes relationships out of the work and makes them a function of space, light, and the viewer’s field of vision”. Robert Morris. “Notes on Sculpture”. In: Battcock,G. Op. cit., p. 232. 43 Waltercio Caldas. A Série Veneza. Entrevista concedida a Ligia Canongia. Rio de Janeiro: Centro Cultural Light, 1998. Catálogo de exposição. concinnitas


Waltercio Caldas: pensar arte, acordar lugares

formas e palavras que mencionam a História da Arte. Não sem intenção, foi pela primeira vez realizada no país que criou a arte come cosa mentale e considerou o desenho “pai das artes”. Numa disposição perspectivada, a Série apresenta-se em quatro paralelepípedos vazados construídos somente nas arestas por finos cilindros metálicos, de aproximadamente 2,40m na altura por 1,50 na largura. A forma geométrica do paralelepípedo determina o limite de ocupação de cada trabalho. É no seu interior que o metal, junto com a lã, plaquetas de acrílico ou o vidro, desenha as particularidades. Pela repetição do módulo geométrico, um ultrapassa seu limite e se dirige ao outro, interligando-se para o olhar. Motivos históricos são construídos na própria visualidade dos trabalhos, mediante a linha de metal que faz uma alusão à forma ovóide própria de uma escultura de Brancusi, ou desenha a natureza-morta com ânforas e copos, por meio de plaquetas de acrílico com nomes de artistas coladas nessas linhas de metal, para dar alguns exemplos. Cada trabalho é um centro energético que atrai a atenção e se desdobra em vetores e desenhos espaciais, signos inéditos ou conhecidos, nomes de artistas, que remetem o observador para um espaço mental. Trazem para a quase inefável matéria do trabalho uma quantidade considerável de referências. Para nos atermos a um dos trabalhos, em A distância entre... plaquetas de acrílico são fixadas no desenho de uma natureza-morta feita apenas de ânforas e copos. Etiquetas onde estão gravados os nomes de artistas, de Giotto a Pollock. Discute-se, conjeturamos, uma narrativa para a História da Arte. Embora a materialidade do trabalho se desmanche, no exato momento em que nos aproximamos e nos detemos na possível interpretação das palavras gravadas. “A um leitor conceitual corresponde um trabalho conceitual”,44 justifica com ironia o artista. Mais uma vez o espectador é convidado a ir e vir, procurando, sem êxito, encontrar o lugar certo para ver a obra. A natureza-morta, enquanto gênero histórico, assim como a paisagem, não só exclui a figura humana, como dá a entender que nela está implícita a ausência da narrativa, do trágico, em favor do mundo dos objetos. Em oposição à importância dos retratos e dos eventos históricos, o gênero mostra somente a presença das coisas. Para Gadamer, com a naturezamorta – e com a paisagem – iniciou-se o calar-se da pintura européia, que atinge na arte moderna seu ponto culminante. Como afirma o autor: “pertence à efetiva iconografia da natureza-morta, além de tudo o que pode ser interpretado simbolicamente, a significação da auto-manifestação que consiste no simples aparecer, no aspecto das coisas como tais”. 45 44 Ibidem. 45 Hans Georg Gadamer. ‘L’ammutolire del quadro’. In: L’Attualitá del bello., p. 136. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Na obra de Waltercio Caldas, as naturezas-mortas são feitas no espaço mostrando copos, ânforas e ar – não favorecem, por exemplo, uma leitura 123


Daniela Vicentini

simbólica como nas pinturas holandesas. São compostas por coisas e espaço, o que remete às naturezas-mortas de Giorgio Morandi, nas quais as coisas e o espaço têm a mesma densidade luminosa. Uma luz que na obra do pintor italiano, no entanto, se dá pela relação entre as tonalidades das cores, ausente, obviamente, nos desenhos espaciais realizados na Série; ainda que, em A distância entre..., se possa estabelecer uma analogia entre o acontecimento visual no espaço das plaquetas de acrílico transparente e as pequenas pinceladas que estruturam as pinturas de Morandi. A Serie Veneza, com toda a gama de referências que ativa, tende a intensificar o seu “emudecimento” em favor de sua presença no espaço real. O calar-se, assevera Gadamer, não significa não ter nada a dizer, ao contrário, é sempre um modo de falar: “no calar-se vem à luz o que seria necessário dizer como algo para o qual estamos à procura de novas palavras”.46 Pensar arte e acordar lugares, esta nos parece a dupla afirmação presente nas obras aqui analisadas de Waltercio Caldas. Investigando seus próprios processos de significação, gestos precisos criam espaço. A realização da obra parece ter sempre em consideração uma indagação acerca da estrutura de um objeto de arte a ser posto no contexto contemporâneo. Leva-se em conta, uma noção de experiência que convive, às vezes ironicamente, com uma noção de informação: a crítica em Espelho com luz se dirigia contra o fato de a obra significar na experiência do espectador, a Série Veneza opõese ao fato de a obra significar na explicação do espectador. Nesse sentido, na trajetória traçada para sua poética, sugerimos uma

Waltercio Caldas. Espelho com Luz, 1974, 100 x 100cm, 1974

discussão da obra enquanto continuidade do debate da morte do plano ideal proposta entre nós pelo Neoconcretismo. Devemos mencionar o curioso título de duas esculturas construídas com o auxílio do motivo de naturezasmortas, Objeto de Terceiro tipo (1997 e 1998). Tal escolha nos traz à memória os termos objeto-quadro, contra-relevo, não-objeto. Parece-nos que os trabalhos – peças e gestos – se realizam tendo em mente uma relação com a linguagem tradicionalmente associada ao fazer da pintura – por exemplo, relações entre tons de claro-escuro, relações cromáticas, passagens entre planos, citação de artifícios como o da perspectiva e de gêneros, como o de naturezas-mortas. Sugerindo distâncias e relações, mais do que propriamente objetos, os trabalhos ativam o espaço real. Acontecem no ambiente, furtando-se à condição de imagens, declarando por sua visualidade mesma um amor à arte.

46 Idem ,ibidem, p.133.

Bibliografia BASBAUM, Ricardo (org.). Arte Contemporânea Brasileira. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 2001. BATTCOCK, Gregory. Minimal Art: A critical Anthology. Qual é a cidade? California Press, 1995. 124

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Andy Warhol. Liz, serigrafia sobre tela, 106 x 106cm, 1965

Danrlei de Freitas Azevedo

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Aparência pop – uma leitura a partir de Teoria Estética, de Adorno

Aparência pop – uma leitura a partir de Teoria Estética, de Adorno Danrlei de Freitas Azevedo* O artigo se propõe a pensar a Pop Art a partir da idéia de negação da aparência estética, conforme desenvolvida por Teoria Estética, de Theodor Adorno. A produção artística da Pop é avaliada, portanto, tendo em vista o vínculo que estabelece com aquela dinâmica da arte moderna que Adorno identificou com um processo de recusa da síntese estética. Na medida em que a Pop Art representa um desdobramento desse processo, não se pode desvinculá-la do problema da aparência estética – como o faz Arthur Danto, em nome de uma abertura para a essência filosófica da arte – sem que se atrofie o seu horizonte de compreensão. Pop art, Theodor Adorno, aparência estética

I. O caráter pernicioso da aparência artística é assinalado em A República, de Platão, em que o poeta é banido do Estado idealmente projetado. A obra de arte, pelo efeito da mímesis, entendida como imitação de objetos, estaria destinada a provocar o afastamento do conhecimento das coisas em si mesmas. “Desse modo, o autor de tragédias, se é um imitador, estará por natureza afastado três graus do rei e da verdade, assim como todos os outros imitadores”. 1 Nas palavras de Sócrates, são enumerados os motivos pelos quais a aparência estética deve ser depreciada: o artista reproduz as coisas sem conhecer verdadeiramente como vieram a ser, copiando a obra do artesão sem dominar seu ofício ou possuir a capacidade para julgá-la; imita caracteres e estados de alma inferiores, propensos à fraqueza das paixões; corrompe ao provocar prazer mediante a apresentação de ações e condutas que nada têm de exemplar. Em suma, “o criador de imagens, o imitador, não entende nada da realidade, só conhece a aparência”. 2 *Danrlei de Freitas Azevedo é bacharel em Teoria do Teatro, UNIRIO; mestre em História Social da Cultura, PUC-Rio; doutorando em História Social da Cultura, PUC-Rio. Atualmente é professor assistente de Estética e Teoria do Teatro, do Departamento de Teoria do Teatro na UNIRIO. Este artigo contou com o apoio do CNPq. 1 Platão, 2000, p. 324. 2 Idem, ibidem, p. 328-329. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

É possível dizer que a arte moderna reflete a explosão de tal hierarquia delineada por Platão, na qual se afirma a disparidade entre o conhecimento filosófico e o produto artístico. Com Kant, confere-se ao domínio estético a devida autonomia frente aos demais, ao mesmo tempo em que desmorona a relação platonicamente estabelecida entre ser e conhecimento. Conforme assinala Nietzsche, “a enorme bravura e sabedoria” que desponta com a filosofia kantiana 127


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revela-se no fato de “expor os limites e condicionamentos do conhecer em geral”, reconhecendo como tal “aquela idéia ilusória que, pela mão da causalidade, se arroga o poder de sondar o ser mais íntimo das coisas”. 3 Com base em tais limites instaurados pelo pensamento de Kant, o autor de O Nascimento da Tragédia, arriscando um passo adiante, chega a inverter aquela ordem promulgada por Platão, elevando a arte acima da perspectiva teórica. Esta última é a que de fato estaria submetida ao poder das aparências, encobrindo com ideais e verdades eternas a real condição de uma existência precária, fatalmente destinada ao mundo dos fenômenos, terminando por “fazer adormecer ainda mais profundamente o sonhador”. 4 Uma existência regida, ao contrário, por uma “sabedoria estética”, trágica, enfrentaria com o “destemor do olhar” seu próprio destino, sem se apoiar em verdades situadas além da esfera das aparências. A arte mantém, para Nietzsche, um contato mais legítimo com o ser justamente por assumir seu caráter de aparência: ela não aparenta ser mais do que é, como o faz a “ciência”. E, se a tragédia é o evento artístico por excelência é porque nela se sustenta a tensão entre Apolo e Dioniso, quer dizer, entre a configuração da aparência artística e o princípio de sua dissolução. A potência máxima da arte é alcançada no próprio instante em que se manifesta a realidade ilusória de seu ser; a exposição de seu poder de ilusão – seu desmascaramento, portanto – é também o sinal de sua proximidade da verdade. Teoria Estética, de Adorno, assinala a incorporação desse aspecto problemático pela arte moderna, que, embora se desvencilhando da subordinação a verdades mais elevadas, abre-se àquela tensão que simultaneamente proporciona a justificação e a transfiguração do ser. O preço da autonomia da arte é, conforme indicado pelo filósofo, o investimento contra seu próprio caráter de aparência, na medida em que nesse repercute não só a fidelidade à verdade, mas ainda sua falsificação. “A dialética da arte moderna é, em larga medida, a que deseja desembaraçar-se do caráter de aparência, como os animais dos chifres acumulados”, 5 pois o meio pelo qual as obras de arte “se tornam um desdobramento da verdade é ao mesmo tempo o seu pecado capital e dele não se pode absolver a arte”. 6 Esta não se torna emancipada do jugo do conhecimento teórico meramente por lançar em descrédito a acusação proferida por Sócrates, mas por mostrar-se capaz de absorver aquela velha crítica, desdobrando-a internamente e realizando-se em função dessa contradição. Nesse sentido, a arte moderna, enquanto arte da época do esclarecimento, 128

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Nietzsche, 1992, p. 110. Idem, ibidem, p. 111. Adorno, 1988, p. 122. Idem, ididem, p. 123.

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atinge um grau de consciência que a faz voltar-se contra sua própria essência, isto é, contra sua característica fundamental de ser aparência. Segundo Adorno, a ambigüidade envolvida na aparência estética diz respeito à arte enquanto tal, sendo que na modernidade ela chega à reflexão artística, conduzindo a uma situação em que a arte só faz justiça a sua verdade ao trazer consigo o estigma de sua própria morte. A arte moderna é aquela em que a aporia da aparência estética é reconhecida intrinsecamente. Ela sobrevive e retira sua força, porém, dessa denúncia que imputa a si mesma, fomentando e negando num mesmo golpe a possibilidade de reconciliação: Em consideração a sua verdade, a arte deve voltar-se contra o princípio da síntese estética. ‘A negação da síntese tornase o princípio da figuração artística’. O que esta formulação paradoxal está dizendo é que a arte só pode sobreviver e permanecer autêntica se consegue articular a negação da síntese como seu sentido estético, e produzir com isso a síntese estética no próprio processo de negá-la. A obra de arte moderna deve, num único lance, produzir e negar o sentido estético; ela deve articular o sentido como a negação do sentido, equilibrando-se, por assim dizer, no fio da navalha entre a aparência afirmativa e uma antiarte que é privada de aparência. 7 A “crise da aparência estética” não se coaduna, de acordo com a visão de Adorno, com a idéia hegeliana de uma superação da arte compreendida como necessária ao processo de realização do espírito, o qual abandonaria o meio de expressão sensível para conformar-se àquele que lhe é mais próprio, o conceito. A negação da aparência é ainda um modo paradoxal de afirmação da arte, um modo que se contrapõe à aparente identificação entre espírito e realidade. A obra de arte resulta de uma relação em que o espírito não procede, como na razão teórica, conceitual, subsumindo o particular no universal, mas resguarda aquilo que existe de diverso ou não idêntico nas coisas. A rejeição da aparência por parte da arte moderna corresponde à recusa explícita do espírito em adequar o múltiplo da natureza a uma suposta unidade, ainda que estética, de forma que a arte deve exercer, conseqüentemente, para

7 Wellmer, 1993, p. 10. 8 Adorno, op. cit., p. 15. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Adorno, um papel de extrema negatividade numa época que se distingue por um intenso processo de racionalização: Toda obra de arte aspira por si mesma à identidade consigo, que, na realidade empírica, se impõe à força a todos os objetos, enquanto identidade com o sujeito e, deste modo, se perde. A identidade estética deve defender o não-idêntico que a compulsão à identidade oprime na realidade.8 129


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O potencial negativo da arte moderna pode ser verificado não apenas na revolta contra a aparência estética, como também na recorrente oposição dos ideais artísticos à ordem social vigente. A expansão da cultura capitalista significa o predomínio de uma razão instrumental cuja lógica de abstração e sistematização violenta o que é vivo, o não idêntico que a arte quer preservar. Adorno vê na forma-mercadoria a antítese da essência da obra de arte, uma vez que ela permite igualar o que seria o diverso das coisas, pela recorrência a um valor de troca. Com o dadaísmo, a arte assume radicalmente a contradição de sua existência no seio do capitalismo, só obtendo sentido enquanto antiarte. O caráter ideológico da aparência estética evidencia-se à medida que contrasta com a ordem do real: “Perante aquilo em que se torna a realidade, a essência afirmativa da arte, esta essência inelutável, tornou-se insuportável”. 9 O ready-made de Duchamp exibe artisticamente o que é de fato a obra de arte lançada no mundo, algo que sua aparência deveria transcender: um objeto como outro qualquer, porque no fundo sujeito à mesma disponibilização que os demais. Mas Teoria Estética lança luz ainda sobre a ambigüidade de tal manobra artística, mostrando que ela vive da tensão de ser tanto uma supressão quanto uma concessão da aparência estética, a qual buscaria resgatar e reconciliar com o espírito os produtos de sua mais extrema reificação. Se parece difícil enxergar nos ready-mades de Duchamp um movimento nesse segundo sentido, ou seja, o impulso de espiritualizar os objetos mundanos, as montagens de Schwitters, por exemplo, que reúnem elementos não menos cotidianos, indicam abertamente retirar seu potencial estético de tal espiritualização do que é ordinário, de utensílios e fragmentos de objetos comuns, apreendendo-os no momento em que, já descartados como detritos, ensaiam um retorno à matéria que os libertaria da manipulação. A arte gostaria, por uma cedência aos materiais brutos, visível e por ela realizada, de reparar um pouco o que o espírito, o pensamento como a arte, faz sofrer ao outro, aquilo a que ele se refere e gostaria de fazer falar. É o sentido determinável do momento absurdo e anti-intencional da arte moderna, até às artes marginais e aos happenings. Deste modo, não se faz tanto um processo farisaico-arrivista à arte tradicional quanto se tenta absorver ainda a negação da arte com a sua própria força. 10 A aparência das obras de arte não é sua characteristica formalis nem se refere fundamentalmente a seu momento sensível, mas, segundo Adorno, “promana da sua essência espiritual”, 11 da qual 130

9 Idem, ibidem, p. 12. 10 Idem, ibidem, p. 288. 11 Idem, ibidem, p. 128. concinnitas


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provém a aparência de um em-si que se opõe a sua realidade de artefato. Se “as obras modernas abandonam-se mimeticamente à reificação, ao seu princípio de morte”,12 esse abandono é também um processo de espiritualização. A migração de elementos originariamente não estéticos para o interior da obra de arte devese ao movimento histórico do espírito que busca a integração com seu outro sem o submeter à identidade consigo. “Pois enquanto negação do espírito dominador da natureza, o espírito das obras de arte não surge como espírito. Inflama-se naquilo que lhe é oposto, na materialidade”. 13 A crise da aparência estética não denota, portanto, unicamente um processo de autonegação por parte da arte, ela é também conseqüência de uma aproximação em relação ao mundo, por meio da qual componentes e fragmentos representantes da própria reificação são convocados a adentrar o âmbito da obra. Pois é precisamente em sua incompatibilidade com o espiritual que se encontra a possibilidade de se fazer reviver a velha estranheza entre espírito e natureza – e não em alguma noção idealizada desta última –, e então fomentar uma reconciliação. As formas da reificação resistiriam à identidade do sentido humano tal qual o não idêntico da natureza. Elas se aproximam do natural no que diz respeito a uma participação no inumano, naquilo de que o espírito não pode se apropriar. Desse modo, na condição artística moderna, segundo palavras de Adorno, “o que é sensualmente desagradável possui uma afinidade com o espírito”.14 A despeito do fato de a Pop Art ser freqüentemente associada a uma superação dos limites do moderno, é notável como os traços que Teoria Estética confere ao modernismo não só continuam presentes como também exercem papel fundamental no âmbito de sua produção. Não surpreenderia se a desconsideração desses traços, em nome de uma ruptura ou entrada na pós-modernidade, resultasse, em vez de na demarcação de um novo paradigma artístico, no atrofiamento do horizonte de compreensão da Pop. Ao contrário do que alega Arthur Danto, para quem o grande mérito da Pop Art – mais exatamente por intermédio da figura de Andy Warhol – foi o de ter finalmente descerrado a natureza filosófica da arte, “mostrando que nenhum critério visual poderia servir ao propósito de definição da arte”,15 a questão da aparência estética não ocupa de modo algum um lugar 12 13 14 15

Idem, ibidem, p. 154. Idem, ibidem, p. 138. Idem, ibidem, p. 222. Danto, 1997, p. 287.

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dispensável, ou mesmo acessório, junto a esse movimento artístico; ela sofre apenas um deslocamento de sentido em comparação ao que obtinha em meio ao ímpeto de negação das vanguardas. Importante, contudo, é perceber que, apesar desse deslocamento, 131


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não é completamente desfeito o nexo com a recusa da síntese estética, que, para Adorno, distingue arte moderna e tradição. Por outro lado, é preciso reconhecer que a maior resistência para se pensar a Pop Art a partir de conceitos de Teoria Estética seja talvez causada por esta última, ou melhor, seja provocada por noções difundidas acerca da visão estética de Adorno, as quais, certamente, não são de todo infundadas. Já em Dialética do Esclarecimento, o ensaio A Indústria Cultural evidenciava o contraste marcante entre os produtos consumidos na cultura de massas e a obra de arte. Aqueles, mesmo quando desejando aparentar o contrário, consistiriam na expressão da lógica da identidade a que a produção verdadeiramente artística se opõe. Enquanto as obras de arte preservam o particular frente ao universal, os produtos da indústria cultural, desde o início a serviço do valor de troca e da padronização, eliminam a tensão entre esses pólos: “o universal pode substituir o particular e vice-versa”.16 Entretanto, uma vez que o domínio da indústria cultural – e, por conseguinte, as leis da troca – atinge a sociedade como um todo, a análise de Adorno estabelece uma situação tal que a legitimidade da obra de arte dependeria de sua orientação negativa em relação à ordem social, então degenerada em reino da identidade. Inversamente, isso levanta suspeitas sobre qualquer manifestação pretensamente artística que obtenha imediata repercussão ou que se propague com sucesso dentro dos limites da indústria cultural. É o que acontece com o cinema da época e com o jazz, que têm sua realidade artística rejeitada praticamente em bloco pelos autores de Dialética do Esclarecimento. Justifica-se, portanto, que a idéia de negatividade, bem como a de uma certa incomunicabilidade das obras de arte modernas, seja referida ao pensamento de Adorno. Ambas se reúnem na idéia de uma negação de sentido por parte das obras, que, assinala Albrecht Wellmer, constitui uma “resposta da consciência estética emancipada ao inautêntico e violento aspecto das totalidades de sentido tradicionais”.17 Porque a lógica do sistema social vigente é, na verdade sem sentido, porque a linguagem que nele predomina é a da alienação, as obras, ao se furtarem a essa lógica ou ao se erguerem em protesto direto contra ela, aparecem como estranhas, ilegíveis, mudas, enfim, como desprovidas de sentido. Logo, a carência de sentido não é, para Adorno, um atributo fundamental da arte moderna, mas principalmente da própria realidade contra a qual ela se choca. Permanece, de qualquer modo, delineada uma oposição que continua ecoando em Teoria Estética: “a arte é a antítese social 132

16 Adorno e Horkheimer, 1985, p. 122. 17 Wellmer, op. cit.,p.19. concinnitas


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da sociedade e não deve imediatamente deduzir-se desta”.18 Por isso, a expressão artística genuína deveria, na visão de Adorno, refletir essa condição antitética e devolver à realidade sua própria imagem, recusando integrar-se a ela: Para subsistir no meio dos aspectos mais extremos e sombrios da realidade, as obras de arte, que não querem vender-se como consolação, deviam tornar-se semelhantes a eles. Hoje em dia, a arte radical significa arte sombria, negra como sua cor fundamental. Grande parte da produção contemporânea desqualifica-se por não atender nada a este fato, comprazendose infantilmente nas cores. O ideal do negro constitui, conteudalmente, um dos mais profundos impulsos da abstração. 19 Tais palavras realmente não deixam dúvidas quanto ao grau de divergência que se pode apresentar entre as concepções estéticas de Adorno e a produção artística da Pop. Enquanto não haveria dificuldades em fazê-las concordarem, por exemplo, com boa parte da poética do expressionismo abstrato, a negatividade que pressupõem não parece corresponder à relação que a Pop Art estabeleceu com o contexto cultural de que participava. “Se Adorno tivesse voltado sua atenção para a arte, a pintura e a escultura, teria recorrido – só poderia ter recorrido – às fontes do expressionismo abstrato para atingir seus objetivos”, atesta Jay Bernstein,20 ao passo que seria inviável declarar tão categoricamente o mesmo acerca da Pop Art. Não é exagero, aliás, dizer que quase há consenso quanto à existência de profundas diferenças entre as propostas artísticas dos dois movimentos, de maneira que a suposta proximidade do expressionismo abstrato indicaria naturalmente o quanto a perspectiva estética de Adorno passaria longe da Pop. Com esta, declinaria aquele potencial negativo próprio às vanguardas modernas, que, no expressionismo abstrato – talvez a última clara manifestação desse potencial –, estaria associado ao impulso de abstração e à identificação da arte com o lugar em que obteria sua mais plena expressão uma subjetividade ameaçada pelo crescente processo de reificação. Em resumo, não é possível encarar a Pop Art como antítese da indústria cultural, “respondendo em negro” ou numa linguagem ininteligível à lógica do sistema, quando ela mantém um intenso diálogo com os próprios elementos dessa indústria, reproduzindo seus símbolos, sugerindo adaptar-se a seus esquemas de produção ou, mesmo, “comprazendo-se infantilmente nas cores”. Esse hiato, que se impõe com nitidez entre a produção artística 18 Adorno, op. cit., p. 19. 19 Idem, ibidem, p. 53. 20 Bernstein, 1998, p. 82. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

da Pop Art e Teoria Estética, de Adorno, não constitui, porém, obstáculo intransponível. Ele, ao contrário, começa a se dissolver 133


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assim que se atenta, com o devido rigor, para dois pontos principais. O primeiro deles diz respeito ao caráter ambíguo da relação que se efetua entre a Pop Art e seu horizonte cultural. Se é verdade que a Pop jamais se encaixaria tão bem quanto o expressionismo abstrato àquele padrão de negatividade atribuído por Adorno à arte moderna, seria, por outro lado, um erro passar imediatamente para o extremo oposto e dotá-la de um impulso meramente afirmativo, dizendo-a motivada por uma “celebração do ordinário”. 21 Para que um tal equívoco seja evitado, basta perceber que a dinâmica de negação da aparência estética – cerne do potencial negativo da arte para Adorno – não é banida do terreno da Pop Art, e que, portanto, esta não pode ser realmente compreendida quando circunscrita à idéia de celebração, por exemplo. O que é necessário colocar em questão é o modo como se dá esse processo de negação da aparência estética no âmbito da produção artística da Pop, visto que ele parece ocultar sua própria negatividade. O ponto seguinte está ligado ao fato de Teoria Estética tanto destacar o potencial negativo da arte moderna quanto torná-lo relativo. Se, de acordo com Adorno, a arte se constitui enquanto um Outro da realidade, chegando a ser concebida como sua antítese, vale lembrar que o movimento pelo qual ela se volta contra sua própria aparência de arte é também um movimento em direção ao que lhe seria mais estranho, quer dizer, ao Outro. Isso significa que a arte é levada a acolher justamente aquilo de que deveria se diferenciar, o que, em conseqüência, compromete seu poder de negação. Não pode haver dúvida de que Adorno tinha plena consciência disso: Se, após o começo da modernidade, a arte absorveu objetos estranhos à arte que se integram na sua lei formal não inteiramente modificados, a mimese da arte abandona-se até à montagem, ao seu contrário. A arte é forçada a isso pela realidade social. Embora se oponha à sociedade, não é contudo capaz de obter um ponto de vista que lhe seja exterior; só consegue opor-se, ao identificar-se com aquilo contra que insurge. 22 Essa constatação demonstra não ser estranho a Teoria Estética o tipo de relação instaurada pela Pop Art com seu contexto cultural. A arte compactua inevitavelmente com a realidade de que faz parte, e negar essa condição deve ser tão falso quanto aceitá-la inteiramente. Não há diferença entre uma arte que se entrega totalmente ao sistema e outra que se quer totalmente apartada dele, pois ambas se ajustariam ao ideal de uma realidade sem contradições. A arte só tem o poder de negar a realidade ao negar a si mesma enquanto tal, 134

21 Danto, op. cit., p. 130. 22 Adorno, op. cit., p. 155. concinnitas


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ou seja, enquanto realidade autônoma, e isto ela só pode fazer ao acolher a própria realidade, identificando-se com ela. Na Pop Art, essa tensão entre oposição e identificação, apontada por Adorno, não é desfeita, mas desdobrada e talvez conduzida ao extremo. De qualquer forma, é sobretudo a sua renovação o que garante a peculiaridade e a relevância desse movimento artístico. II. É quase impossível não associar as estratégias de produção da Pop Art, a apropriação de imagens, logomarcas e ícones culturais amplamente divulgados, com o desenvolvimento da sociedade capitalista que levou a uma configuração à qual Guy Debord aplicou o conceito de espetáculo: “Considerado de acordo com seus próprios termos, o espetáculo é a afirmação da aparência e a afirmação de toda a vida humana – isto é, social – como simples aparência”. 23 Sem dúvida, a Pop Art se relaciona abertamente com o novo universo de profusão de imagens que lhe é contemporâneo. No entanto, ao se integrarem ao campo da obra de arte, os elementos tomados do “espetáculo” cumprem uma função particular em comparação aos procedimentos de apropriação tão recorrentes na arte moderna. Essa função não pode ser de todo equiparada à que os objetos e fragmentos do real desempenhavam junto às colagens cubistas ou às montagens de Schwitters, por exemplo, nem tampouco aos objetos dadaístas ou ao ready-made de Duchamp. Tanto no caso do cubismo quanto no de Schwitters, os elementos eram retirados da realidade e submetidos a uma rigorosa organização formal mediante a qual se deslocava seu aspecto de fragmento para o de parte de um todo estruturado. O fato de serem em geral fragmentos, pedaços de papel, tecido ou madeira, contribuía para que a unidade final a ganhar evidência fosse a da totalidade da obra, no interior da qual esses componentes funcionavam como planos integrando uma mesma superfície. Já das assemblages de Rauschenberg, embora algumas delas lembrem bastante as obras de Schwitters, não se pode dizer o mesmo, pois parece que a totalidade da obra não obedece a um princípio associativo que reúna suas partes. Alguns elementos permanecem “soltos” em relação aos demais, exibindo unidade própria, como se tivessem sido agrupados porém não completamente integrados. As próprias imagens utilizadas por Rauschenberg, e combinadas por vezes com elementos não imagéticos, inserem-se na obra com uma moldura própria, na forma de fotografias, o que 23 Debord, 1997, p. 16. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

compromete sua associação como parte de um todo. Essa diferença faz-se ainda mais palpável, contudo, em obras como as de Johns e 135


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Warhol, em que imagens ou ícones culturais apropriados pelos artistas aparentam coincidir com a unidade da obra, como se dá com as “bandeiras” e “alvos” do primeiro ou com os “retratos” de personalidades notórias realizados pelo segundo. Aí chega a ser problemático falar em componentes da obra, na medida em que sugerem conferir-lhe sua aparência integral, de modo que remetem ao conceito paradoxal de ready-mades pintados. Entretanto, tais produções da Pop Art distinguem-se do ready-made duchampiano – a inserção de um objeto cotidiano no universo da arte – sobretudo por se mostrarem apropriações da aparência, justo daquilo de que originariamente o ready-made indicava querer livrar-se. Se fazia parte da dinâmica artística moderna, segundo Adorno, privar-se da aparência estética flertando com o princípio de reificação, ela agora regressa à aparência, mas a uma aparência já reificada. Isso torna suspeita qualquer tentativa de enxergar na Pop Art os sinais de uma relação meramente afirmativa entre arte e mundo, pois a aparência estética enquanto tal continua a sofrer um processo de negação ao se dissolver em outra que não é o produto da arte. Nesse sentido, mostrase também um equívoco compreender a Pop Art como algum retorno à figuração, visto que as imagens que nela surgem não são fruto de uma síntese estética, e sim a marca radical de sua ausência. Paradoxalmente, o último resquício da aparência, a aparência de sua própria negação, é extirpado por uma afirmação da aparência que não é posta pela obra, mas que, do exterior, a ela se impõe. Aquele movimento denunciado pela teoria estética de Adorno, segundo o qual o espiritual na arte moderna busca reconciliar-se com seu outro não tanto o espiritualizando, mas assemelhando-se a ele, confirma-se de modo extremo na Pop Art, em que o próprio espírito ensaia submergir entregando-se a uma aparência totalmente alheia a sua manifestação. Não deixa de ser lógico que a aparência estética, concebida como aparência do espírito, se negue mais radicalmente por uma aparência que é só aparência, isto é, que, como assinala Guy Debord, é sua própria realidade. Ao se fazer simplesmente aparência é que a obra de arte mais se aproxima de uma condição de objeto. Prosseguindo seu paradoxo, dá à imagem a materialidade que lhe falta e, de aparência de realidade, passa a realidade da aparência. As imagens que habitam a Pop Art não são produzidas pela obra; são, antes, seu material, mas sua potência estética reside em conseguir transfigurá-las em sua matéria, e, por conseguinte, nessa transfiguração é que se encontra sua verdadeira aparência. Tais obras da Pop são como readymades em processo e, portanto, sua negação: elas obtêm sua aparência 136

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da materialização da aparência de que se apropriam. Adentrando o campo da obra e nela fixando-se, a imagem, ao materializar-se, tem necessariamente negado seu ser. Logo, não há real identidade entre a aparência da obra e a da imagem de que ela se apropria, pois a primeira se concretiza em função da dissolução do ser imagético da segunda. A aparência estética da obra habita essa diferença e não coincide nem com a imagem apropriada, nem com a recusa do estético que é própria ao ready-made de Duchamp. Esse processo se faz visível em várias obras de Andy Warhol, por exemplo, nas quais as imagens freqüentemente apresentam um aspecto de deterioração, ou ameaçam diluir-se em manchas de cor. Embora Arthur Danto pense o contrário, é fundamental que as caixas de Brillo Box, que para ele representam o momento em que “o problema filosófico da arte foi clarificado a partir do interior da arte, em que aquela história havia chegado a um fim”,24 tenham sido reconstruídas por Andy Warhol, pois não faria sentido ter a presença do próprio objeto, mas apenas sua imagem, sua aparência pura. Alegar que os gestos de Duchamp e de Warhol são distintos porque este celebraria o ordinário enquanto aquele ainda estaria “reduzindo o estético e testando as fronteiras da arte”25 deixa, na verdade, implícito que eles são no fundo equivalentes. De fato, para Danto, tanto Warhol quanto Duchamp, ao apresentarem um objeto comum como arte, algo originariamente desprovido de atributo estético – seja um urinol, uma pá, ou caixas de sabão – estão comprometendo a aparência da obra, fazendo com que sua existência se sustente em algo mais que sua forma sensível. Mas, com essa interpretação, a distinção entre o ready-made e as Brillo Box termina se situando na espécie de relação que as obras estabelecem, no efeito que são capazes de provocar: ambos os gestos se explicam como a inserção de um objeto comum no universo da arte, como a supressão da particularidade estética (sensível) da obra, sendo que um deles produz um efeito de transgressão, de questionamento dos limites da arte, e o outro, um efeito de celebração pela transfiguração do ordinário. Ao que parece, Danto não percebe que os dois gestos, e com eles a natureza das obras que mobilizam, são intrinsecamente diferentes, ainda que não se refute a especificidade da relação que cada um estabelece com o contexto artístico ou cultural. Certamente, o ready-made suprime a particularidade estética da obra de arte, por meio da exposição de um objeto cotidiano; com as Brillo Box, num sentido quase inverso, o que se tem não é nenhum objeto, mas apenas sua aparência. Se um dos 24 Danto, op. cit., p. 125. 25 Idem, ibidem, p. 132. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

significados principais do ready-made de Duchamp foi o de ter mostrado não haver diferença constitutiva entre uma obra de arte e um objeto 137


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qualquer, Warhol desarma esse significado ao revelar que a realidade de nenhuma Brillo Box pode ser sustentada pela categoria de objeto. O que dá legitimidade a uma Brillo Box diante de uma outra caixa com os mesmos atributos físicos é sua aparência. O importante, nesse caso, é notar que a aparência não pertence ao objeto; ela não é um atributo seu, mas, ao contrário, sustentando a realidade de seu ser, ela é algo independente dele. Nenhum objeto, nenhuma caixa de sabão Brillo em particular é a Brillo Box, e, no entanto, o oposto não é verdadeiro, pois a Brillo Box, enquanto imagem, ícone, abarca com seu ser todas as caixas de sabão Brillo. Desqualificada a categoria de objeto, Warhol lança para um outro nível o problema colocado por Duchamp e devolve à arte a possibilidade de ter a realidade de seu ser fundamentada na aparência. Isso basta para tornar claro como é contraditório querer descartar da Pop Art o papel da aparência estética, por mais frágil ou problemática que se constitua sua presença. O que talvez gere dificuldades na compreensão da Pop Art, volta e meia também provocando equívocos, é o fato de que em suas produções o componente estético da obra não é nem evidente nem privado de aparência, mas encoberto justamente por ela. Se a arte moderna se caracterizava, de acordo com Adorno, por uma renúncia à síntese estética, ainda que a devesse produzir no próprio ato de negá-la, na Pop Art a realização dessa síntese é mera aparência, funcionando como o paradoxal processo de construção de um readymade. Os alvos ou as bandeiras pintados por Jaspers Johns não são realmente configurados por suas pinceladas, mas têm suas imagens públicas ou extremamente convencionais materializadas por meio do ato pictórico. Indispensável é perceber que essas imagens, que proporcionam unidade à obra, não resultam de modo algum de uma síntese estética, pois são retiradas pelo artista de um domínio público, como se fossem ready-mades que necessitam ser paradoxalmente pintados. Pelo uso da imagem, a Pop Art transforma a criação do ready-made em um processo, e, com isso, sua obra consiste em algo mais do que a imagem apropriada. Sem dúvida, ela confere, inevitavelmente, sua aparência à obra de arte, que, entretanto, não coincide com a aparência estética, a qual foi engendrada performaticamente e exibe as marcas do processo de materialização da imagem – ainda que essas marcas sejam mínimas, como nas serigrafias de Warhol. Isso implica dois fatores estritamente relacionados e, no mínimo, curiosos: o estético é, na Pop Art, retirado de um ready-made, e a própria aparência estética da obra passa a ter também uma aparência. 138

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Aparência pop – uma leitura a partir de Teoria Estética, de Adorno

O impulso moderno de negação da síntese estética permanece, portanto, em vigor, uma vez que a unidade da obra é propiciada por aquilo que não seria o estético, ou seja, por uma imagem já reificada. Há, contudo, uma considerável transformação nesse impulso, pois a pintura de Jaspers Johns, por exemlpo, não efetua uma síntese no próprio ato de negá-la – como se poderia dizer de Pollock –, ela a desfaz no ato de afirmá-la. Cada pincelada do artista é a negação da construção de uma bandeira, porque de fato sua imagem já está pronta, antecipando a unidade da obra. O trabalho artístico não opera em direção à síntese da imagem, nem tampouco contra ela, porque sua aparência é a condição para uma unidade da obra que não seja fruto do estético. A ironia que recai sobre Arthur Danto quando ele negligencia esse jogo entre a aparência estética e sua recusa, em nome de uma natureza filosófica da arte, é que ele acaba aderindo justamente à aparência mais imediata da obra. Ao proclamar que não há diferença perceptual entre as obras da Pop Art e “alguma coisa que não é uma obra de arte”,26 e que os elementos então tomados do cotidiano servem a uma celebração do ordinário, Danto identifica a aparência apropriada pela obra de arte com sua totalidade. Só é viável falar em celebração na medida em que se entende a apropriação de imagens e de ícones pela Pop num sentido exclusivamente afirmativo, menosprezando o processo de negação da aparência que ocorre no próprio momento de sua materialização. Mas, com isso, ao descuidar do estético que assoma desse processo, Danto confunde a aparência apropriada e a obra como um todo. Em suma, para sustentar a idéia de essência filosófica da arte e a conseqüente irrelevância do atributo sensível, Danto tem de ficar preso àquela aparência que talvez seja a mais “aparente”, porque, conferindo unidade à obra, envolve sua própria aparência estética. É ainda esse problema ligado à unidade da obra, à constituição da síntese estética, o que ilumina a necessidade de se pensar a lógica de produção da Pop Art em relação não só com o dadaísmo, mas também com o expressionismo abstrato. Se as imagens de Jonhs e Warhol e a formaquadrinho de Lichtenstein remetem a estratégias de apropriação similares às da criação do ready-made, elas também não deixam de fazer menção ao all over de Jackson Pollock. Enquanto Duchamp tornou problemática a síntese estética por meio de um gesto singular, suprimindo a particularidade sensível da obra de arte, Pollock o realizou de um modo performático. Em ambos os casos, a constituição da unidade da obra de arte é radicalmente comprometida, seja pelo fato de ela estar pronta antes de sua própria 26 Idem, ibidem, p. 35. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

construção, seja porque o artista já não é capaz de apreendê-la enquanto tal, enquanto totalidade. É legítimo associar essas instâncias criativas tão 139


Danrlei de Freitas Azevedo

distintas para fazer justiça ao modo como as imagens adentram as obras da Pop Art, pois elas não são simplesmente fruto de um gesto voluntário que, manipulando-as, as retira do mundo e as lança no universo da arte; antes, impõem-se como ready-mades, representando um desdobramento da condição expressada por Pollock ao configurar suas telas a partir de dentro delas: o artista Pop encontra-se numa posição tal que é envolvido pela totalidade da obra, não sendo mais possível projetar sua unidade, nem mesmo enquanto negação de uma síntese. Na Pop Art, o ser lançado no mundo característico do expressionismo abstrato é agravado até um ponto em que à arte já não cabe furtar-se às próprias imagens da reificação sem falsificar sua condição, nem tampouco se manter distanciada do sistema de produção vigente, como se apresentasse um produto completamente diferenciado. Confirma-se aquele movimento de aproximação com o mundo destacado por Teoria Estética, de Adorno, ao mesmo tempo em que o impulso de negação da aparência é renovado de forma paradoxal – acolhendo as imagens da cultura de massas, a arte investe contra o que ainda restava de particular em sua aparência: a aparência de negatividade. A identificação entre linguagem artística e sociedade, conforme ressaltada por Adorno, chega, com a Pop Art, a um momento extremo. Tanto que Rosalind Krauss, ao abordar a escultura minimalista e certas obras de alguns artistas Pop, como Jonhs e Warhol, observa com razão uma mudança em sua lógica sintática, caracterizada pela renúncia sistemática à expressão de conteúdos de uma linguagem privada que remeteria à subjetividade do artista. Em vez disso, tais obras buscariam corresponder aos elementos e convenções de uma linguagem pública, o que, sem dúvida, está basicamente de acordo com aquela dinâmica moderna de aproximação da obra em relação ao mundo. Porém, apesar de Rosalind Krauss articular essa tendência com a produção do readymade, ela a contrapõe à poética do expressionismo abstrato, por entender que, neste último, a atividade artística é concebida sobretudo como projeção de conteúdos subjetivos, ou seja, de uma linguagem privada. O Alvo de Johns, ou suas Latas de Cerveja Ale, ao negarem a internalidade do quadro expressionista abstrato, rejeitam, ao mesmo tempo, a interioridade de seu espaço e o caráter particular do eu para o qual esse espaço servia de modelo. A rejeição por ele manifestada referia-se a um espaço ideal que existe anteriormente à experiência, esperando para ser preenchido, e um modelo psicológico segundo o qual o eu existe repleto de seus significados, anteriormente ao contato com seu mundo.27 Tal oposição armada pela autora é decorrência, contudo, de uma leitura insuficiente do expressionismo abstrato, o qual não se enquadra 140

27 Krauss, 1998, p. 309. concinnitas


Aparência pop – uma leitura a partir de Teoria Estética, de Adorno

de nenhum modo aos limites impostos pelos conceitos de interioridade ou linguagem subjetiva. Mesmo que as obras desse movimento artístico façam alusão a um embate entre sujeito-artista e mundo, o que elas manifestam não é, afinal, a vitória de uma subjetividade cuja expressão se preserva na obra, e sim a impossibilidade da arte em efetuar uma síntese cuja unidade corresponda à da realidade. Essa impossibilidade culmina na fusão da superfície da obra com a da realidade, na imagem do artista dentro da tela indicando o fim de toda a distância projetiva. O que se insinua como exclusivamente particular, como uma assinatura individual, significa, na verdade, o sinal da mais aguda dissolução da síntese pictórica. Na Pop Art, ocorre o desdobramento dessa condição, dando-se nada mais que a aparência de uma síntese.

Jasper Johns. Target, encáustica e colagem sobre tela, 40,6 x 40,6cm, 1974

Por outro lado, Rosalind Krauss deixa escapar o que no fundo é o mais alto indício de uma abertura à linguagem pública ao preferir abordar o assunto a partir dos minimalistas, com a justificativa de que esses exploravam “a idéia do ready-made de uma forma bem menos anedótica do que os artistas pop, considerando antes suas implicações estruturais do que suas implicações temáticas”. 28 Mas

28 Idem, ibidem, p. 300. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

são exatamente os aspectos que a autora chama de temáticos os responsáveis pelas dimensões, até então sem par, adquiridas pelo 141


Danrlei de Freitas Azevedo

público no âmbito da Pop Art. Observar que no minimalismo o aspecto público estava quase sempre ligado a implicações estruturais equivale a dizer que ele era incorporado fundamentalmente ao domínio sintático da obra, de modo que os artistas “se valiam de elementos aos quais nenhum tipo específico de conteúdo fora conferido”. 29 O erro, contudo, é daí concluir que a publicidade das obras da Pop estaria relegada a um nível mais superficial, porque não exerceria papel determinante junto à estrutura da obra. Em vez disso, a radicalidade da linguagem pública da Pop Art é precisamente aquela que rompe com essa diferenciação entre temático e estrutural, a qual está fatalmente comprometida com a perspectiva modernista que postula a separação entre a lógica lingüística da arte e a da realidade. Com a Pop Art, os aspectos temáticos ocupam a obra enquanto os próprios componentes de sua sintaxe. A publicidade do real invade a obra de arte Pop de tal maneira, que seus temas se transformam simultaneamente nos signos com os quais ela efetua sua elaboração sintática. Diluem-se explicitamente as fronteiras entre o sintático e o semântico. Talvez esta seja a mais surpreendente transformação da linguagem artística promovida pela Pop Art: tornar inviável falar na obra de arte em termos de sintaxe ou de tema, separadamente, extrapolando, com isso, o círculo de qualquer crítica que se baseie na dissociação dessas categorias. Pois as imagens da Pop não são uma referência ao mundo nem tampouco podem ser dispensadas como algo secundário; elas são os próprios constituintes de uma linguagem artística agora indissociável de uma linguagem pública. A referência à realidade não é obra da Pop, mas seu ponto de partida inelutável. Todavia, esse vínculo inegável com o mundo é ele mesmo negado, quebrado, por se fazer aparência ao chegar ao plano da obra de arte. Se aquele movimento, descrito por Teoria Estética, de Adorno, que levava à identificação das obras modernas com a própria realidade a que se opunham parece atingir um ponto máximo na Pop, não se deve perder de vista seu complemento. Este, enquanto oposição da arte em relação ao real e também a si mesma, mostrou-se presente no modo como a aparência estética da obra é encoberta por uma aparência já reificada. Com isso, a arte prossegue negando a autonomia de sua síntese estética e ainda exibe o mero caráter de aparência daquilo que no cotidiano poderia ter força de realidade. E na medida em que os elementos provenientes do real conferem a própria unidade às obras da Pop, esse processo deixa-se compreender como a transformação de um ready-made em aparência estética – algo que tem seu paradigma nas latinhas de cerveja de Jonhs. 142

29 Idem, ibidem, p. 298. concinnitas


Aparência pop – uma leitura a partir de Teoria Estética, de Adorno

Mas se a aparência estética retorna na Pop Art arrancada de um ready-made, a aparência Pop deve ter algo da aparência de um morto. Tal aparência – que lança uma vasta sombra sobre qualquer idéia de “celebração Pop” – talvez obtenha sua expressão mais evidente nas obras de Warhol, repletas de imagens de personalidades que sofreram morte violenta, de cenas de acidentes de carros, suicídios ou cadeiras elétricas. O intrigante na produção artística da Pop, supondo que se queira destacar seu traço realmente antimetafísico, não é que a arte, tendo alcançado seu fim, seja despida do atributo sensível, e sim que ela, após sua morte, continue a ter aparência.

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ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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Marco AurĂŠlio Brandt

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Fotografia: como funciona?

Fotografia: como funciona? Marco Aurélio Brandt* Durante cinco anos venho desenvolvendo um projeto de fotografia em escolas da rede pública e comunidades carentes, utilizando uma tecnologia simples, barata e de fácil apreensão. O processo, conhecido internacionalmente como pinhole, consiste na utilização do princípio da câmara escura para a produção de artefatos fotográficos rudimentares, construída a partir de tubos de papelão e latas comuns. Esse projeto se baseia em dois pontos-chave: levar a fotografia a um público infanto-juvenil que normalmente não tem recursos para praticá-la e, a partir daí, iniciar um processo de reeducação do olhar. Arte-educação, câmara escura, subjetividade

Introdução (...) a imagem fotográfica não é um espelho neutro, mas um instrumento de transposição, de análise, de interpretação e até de transformação do real, como a língua, por exemplo, e assim, também, culturalmente codificada [Philipe Dubois]1 Enquanto os meios de comunicação de massa voltam-se cada vez mais para as populações carentes de favelas e comunidades, o que se percebe, de imediato, ao analisarmos os signos que são transmitidos/manipulados tanto pela indústria cultural quanto pela mídia em geral, é uma visão parcial, uma leitura oriunda de alguns poucos segmentos da sociedade.2 Sob diversas formas esta visão acaba refletindo uma manipulação de estereótipos, distorcendo personagens, situações e o que é apresentado como realidade, nem sempre de fato pertinente àquele grupo enfocado. Trabalhando há quatro anos com crianças e jovens carentes em um projeto de reeducação do olhar por meio de oficinas com a utilização de fotografia artesanal (a partir de sucata e material reciclável), pude * Marco Aurélio Brandt é formado em Cinema e Jornalismo pela UFF. É cineasta, fotógrafo e professor na Unipli. Trabalha há quatro anos com oficinas de fotografia em comunidades e escolas públicas e mais recentemente com vídeo, através da ONG Campus Avançado, em que coordena o Cineclube CineolhO. Realiza experiências com fotografia pinhole, colorizada após o registro em papel ou negativo 120. 1 Dubois, 1990, p. 26. 2 Quatro grupos controlam os meios de comunicação segundo Coimbra, 2001. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

fazer algumas constatações que fornecem subsídios para uma reflexão, enfocando o uso da produção artística como possibilidades da representação da subjetividade, construção da própria história, registros da memória coletiva. Um dos conceitos fundamentais do trabalho consiste na idéia de que a subjetividade seja expressa a partir do próprio grupo social, através dos meios de produção da imagem técnica, evitando-se a representação do olhar externo de modelos de cultura e saberes institucionalizados. 145


Marco Aurélio Brandt

Fotografia por dentro Agosto de 2000. Decidido a elaborar um curso de fotografia para crianças deparei na pesquisa bibliográfica com um livro de Cláudio Kubrusli. Era um pequeno mas significativo livro de bolso que versava sobre os princípios básicos, algo como um primeiro contato, uma introdução ao mundo da fotografia; seu título: O que é fotografia nele o autor cita a frase que ouviu de uma criança tentando responder justamente a essa pergunta, que seria o tema de seu livro. “Fotografia?… É quando a televisão pára de mexer, fica tudo paradinho, e a gente pode olhar as coisas devagar.” A frase provocou um estalo em minha cabeça e surtiu um efeito quase mágico, que me fez consolidar idéias que até então flanavam em minha mente sem ter ainda tomado forma, virado um método de trabalho, um plano de curso elaborado. A menção feita pela criança à televisão caiu como uma luva, pois andava na época preocupado e indignado com a televisão, que acaba sendo um dos entretenimentos preferidos da criançada. O mundo que vivemos hoje coloca para nossas crianças um verdadeiro carnaval de imagens que são emitidas em velocidade crescente, sem que haja tempo para reflexão ou análise crítica. A mídia exerce presença sufocante, impondo um universo inflacionado de propagandas apelativas, banalização da violência, teledramaturgias de gosto duvidoso. E essa poluição visual não é exclusividade da tevê, ela se estende por todo um universo imagético que a vida urbana tem a ‘oferecer’ hoje em dia: outdoors, capas de revista, anúncios gigantescos afixados em prédios, internet. Minha proposta de curso então surgia como uma iniciativa no sentido de tentar promover uma educação do olhar ou, ainda, uma reeducação do olhar, desde cedo aviltado por tantos signos no mínimo discutíveis e, sabe-se, adequados a essa injusta e destrutiva globalização. O exercício da fotografia deve compreender o saber ‘ver’, ler as imagens com senso crítico e a partir daí provocar também uma escrita. Dessa forma a ‘escrita da luz’ torna-se uma arma poderosa nessa batalha. E meu caminho passou a enveredar por uma questão, que de certa forma dava seqüência ao trabalho citado de Cláudio Kubrusli. Minha pergunta agora seria: fotografia: como funciona? E para responder a essa pergunta precisaria levar a criança numa viagem, prazerosa e lúdica, ao mundo da fotografia pelo seu lado ‘de dentro’, penetrar o mistério da câmara escura, descobrir a mágica da imagem projetada em seu interior, que um dia alguém teve a brilhante idéia de capturar e, registrar, congelando-a no tempo, eternizando-a. 146

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Fotografia: como funciona?

Assim fizeram Niepce e Daguerre, em meados do século XIX. E agora, com a utilização do processo da fotografia em lata ou caixinha, poderíamos, eu e minhas crianças aprendizes, recriar esse momento, repetindo o gesto mágico dos pioneiros da fotografia ao capturar a imagem e registrá-la em papel. Esse processo artesanal de fotografia, conhecido internacionalmente como pinhole (pin = alfinete ou agulha; hole = buraco) consiste fundamentalmente na produção de artefato que gere imagens fotográficas sem uso de lentes, ou seja, uma ‘câmera de orifício’, mais ou menos como eram os primeiros modelos de câmera fotográfica, cuja lente era na verdade um pedaço de vidro, colocado numa pequena abertura circular em um caixote de madeira. Nas oficinas em que logo se transformaram os princípios teóricos e práticos que formavam o curso que projetei inicialmente, tenho utilizado um modelo feito com latas de leite ou Nescau, enfim, produtos em pó solúvel comuns encontrados no mercado alimentício. Dei ao projeto das latinhas o nome de “1.000 idéias na cabeça e uma lata na mão” e parti para a ação começando pelo Ciep Geraldo Reis, em São Domingos, Niterói. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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Marco Aurélio Brandt

A estruturação do curso a ser apresentado, foi inicialmente concebida em quatro módulos: Módulo 1 – Consultar um dicionário e ler em grupo o verbete “fotografia”; repassar a noção de escrita da luz; breve histórico do surgimento; transição do retrato na pintura para a fotografia como ‘máquina de tirar retrato’ – uso de projeção de slides ou retroprojetor; descrição da fotografia, com ilustrações e/ou desenhos em quadronegro com esquema da câmera escura, interior da câmera fotográfica; demonstração do efeito da câmera escura com visor pinhole ou com a própria sala de aula. Módulo 2 – Trazer fotos de casa: da família ou de revistas, que serão examinadas e comentadas em grupo; explicação de fenômenos científicos ligados ao tema, como velocidade da luz, refração, formação do espectro colorido da luz, de forma envolvente com projeções; construção de visor pinhole; bate-papo para que cada um conte as experiências com fotos, coisas engraçadas e marcantes; finalizando, construção de uma câmara escura a partir de caixa de papelão, semelhante a um lambe-lambe, que permite visualizar a projeção da imagem invertida. Módulo 3 – Apresentação da pinhole; lista de materiais necessários para seu fabrico e rápida explicação da revelação do papel utilizando luz convencional incandescente (ou ampliador) em sala escura; mostra de fotos produzidas com pinhole; confecção coletiva das caixas ou latas. Módulo 4 – Prática fotográfica com as latas preparadas em sala; locação aprazível nos arredores da escola ou comunidade – brincadeiras, fantasias – o tema é livre; revelação do material na escola com a participação dos alunos; com as fotos prontas, preparação da exposição.

A primeira turma No Ciep peguei uma turma de crianças entre oito e 12 anos – havia um bom número de pequenininhos. Logo descobri que, numa turma assim, meu trabalho seria quase como um número de mágico ou coisa parecida, ou seja, eu tinha que entreter a criançada, sem me perder muito em explicações teóricas. Comecei a praticar a manufatura dos objetos ópticos. O primeiro contato de uma criança com os visores pinhole é um verdadeiro êxtase. Seu efeito varia de ‘olho para olho’, às vezes a imagem vem rápido, às vezes demora mais um pouco para aparecer. De qualquer maneira, as crianças ficam loucas, excitadíssimas, querendo saber como aquilo acontece, como fazer aquele objeto. 148

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Fotografia: como funciona?

Descobri que os visores podiam ser confeccionados com tubos de papelão do tipo usados em papel higiênico ou papel-toalha de cozinha. Juntei vários tubos, e na escola me conseguiram outros tantos. Fizemos então uma lunetinha de tubo de papel higiênico para cada aluno. Uma das características da minha oficina é a de proporcionar um contato com o mundo da fotografia a um público que normalmente vive distante desse universo, como no caso do Ciep, onde estudam crianças das classes mais pobres, muitas delas morando em favelas da região. Nesse contexto torna-se plenamente adequada e significativa a utilização de tubos e caixas de papelão, latas e outros materiais recicláveis de baixo custo e fácil aquisição. Em outra aula, fabricamos um lambe-lambe com uma caixa de papel de xerox que também fez sucesso com a criançada. Tinta preta, papel vegetal, um pano preto para cobrir a cabeça, e pronto. E ainda veio uma menina trazer-me um desenho que acabara de fazer, em que mostrava que ‘estava faltando uma coisa no lambe-lambe’. Era o tripé, que ficara guardado na sua lembrança, talvez pela passagem por uma praça do centro da cidade, onde até pouco tempo ainda havia a saudosa figura do ‘fotógrafo lambe-lambe’. No último encontro, nas festividades de encerramento do ano letivo, fomos à pracinha perto da escola fotografar com as latas que já tinham sido preparadas em outra aula. Algumas crianças chegaram a fazer a foto sozinhas, sem que eu estivesse perto. A praça estava agitada, numa alegre confusão. Ao final, voltamos ao Ciep para a revelação, um momento sempre caótico (várias crianças num quartinho escuro com uma luzinha vermelha), mas muito estimulante. O vislumbre da imagem surgindo na banheira com revelador é a apoteose, o ponto culminante da magia fotográfica. Imagino que seja um momento que ficará registrado para sempre na memória da maioria daquelas crianças e que pode, quem sabe, provocar a germinação de novos fotógrafos. A semente, sem dúvida, fica plantada.

Possíveis conclusões A imagem não é somente uma ordenação do mundo. Ela traz consigo uma tipificação ideológica que se desvela através de um prisma por onde a etnologia deve investigar. A fotografia como método pode, usando palavras de Lévi-Strauss, nos ensinar acerca dos processos conscientes e inconscientes, traduzidos em experiências concretas, individuais e coletivas pelas quais homens que não possuíam uma instituição chegaram a adquiri-la, quer por invenção, quer por transformação de instituições, quer por tê-la recebido de fora. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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Nesse sentido os grupos sociais desprovidos do capital cultural hegemônico produzem seus próprios meios e “moedas” transformando, inventando ou recebendo, ainda que excluídos economicamente. O trabalho apresenta uma tentativa de intervenção nesse processo, propondo uma experiência de inserção desses grupos como agentes produtores de signos, em que estarão expondo sua concepção, sua leitura, registrando sua subjetividade pela imagem técnica e, por conseguinte, produzindo cultura e exercendo o papel de agentes da história. Trabalhar o recurso da imagem por meio do ato fotográfico pode revelar tão-somente o presente. Mas a que história deveremos recorrer para descobrir por que tal enquadramento ou tema parece ser tão sistemático e recorrente em pessoas diferentes de um mesmo grupo social? Esse resultado pode revelar mais uma disfunção do que uma forma regular de como esse grupo social funciona – que passa por sua maneira de ver a si mesmo a ao outro através da fotografia. Um olhar construído historicamente. A partir desse ponto (do ponto histórico) é que aquele comportamento comum passa a nos levar a questões essenciais. Uma foto mostra seu lugar e seus habitantes a partir de um ponto de vista e, assim, pode servir para que o indivíduo se veja e ao outro, para demarcar instrumentos e a presença do poder vigente do Estado, por exemplo. A principal relevância de um trabalho como este é apresentar um outro ponto de vista, o ponto de vista do lado de dentro. A imagem técnica de um modo geral, como imaginário coletivo, pode ser utilizada como instrumento levando em conta a possibilidade de se constituir uma unidade real do objeto. A importância do ato fotográfico está no fato de que resultará em alguma expressão coletivamente reconhecida. Aliando o sentido da descoberta, o potencial para construir e um meio de registrar o próprio olhar, espero estar contribuindo num sentido mais amplo para a formação de um olhar crítico, criar novas formas de ver o mundo, a partir do simples gesto de registrar seu cotidiano, seu ambiente, seu grupo. E quem sabe a partir daí, poder no futuro interferir em sua realidade e de seu meio, com esse novo olhar, esse novo enquadramento.

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A influência do mito do herói na aceitação das práticas artísticas

A influência do mito do herói na aceitação das práticas artísticas Antonio Vargas* O artigo exemplifica a ação do mito do herói na construção social da imagem do artista. Explica como o mito do artista atua no cruzamento dos interesses entre o social (coletivo) e o individual, participando de forma efetiva na instauração e consolidação do reconhecimento artístico e, portanto, ocupando papel determinante nos jogos simbólicos construtores da identidade artística. Mito do artista, mito do herói, teatro

A mitocrítica formulada por Durand1 pode ser grosso modo apresentada como uma metodologia para análise ou crítica literária. Trata-se de fato de uma metodologia de apoio (pois fornece substratos) para a realização da análise ou da crítica. Isso porque sua aplicação revela a presença de mitos ou estruturas míticas que atuam inconscientemente na construção do sentido, influenciando, portanto, a aceitação ou a rejeição da obra. O mito atua como um fio condutor que guia o leitor durante aquele processo hermenêutico no qual o sentido passa do intuído ao percebido ou significado. Das diferentes etapas metodológicas, a primeira trata da identificação dos mitemas. Sendo o mito uma narrativa, podemos entender o mitologema como uma parte da narrativa de um acontecimento importante do mito. Segundo Durand2 é um resumo abstrato de uma situação mitológica; um esqueleto da obra. O mitema, por sua vez, é a menor unidade com sentido que compõe o mito. E é esse sentido que, pela repetição, pela redundância, cria o sentido mítico. Além disso, um mitema pode estar presente em mais de um mitologema. Mas é importante destacar que é o mitema — muito mais que o mitologema — que dá a significação mítica exatamente porque é a repetição afirmativa de uma mesma ação que coloca em destaque a sua qualidade mítica. Uma vez realizada a identificação dos mitemas, os mitos passam a ser identificados, e sua presença e relação na trama recebem as demais etapas de contextualização, vinculando-os com o autor e com o contexto *Antonio Vargas é doutor em Artes pela Universidad Complutense de Madrid, possui pósdoutorado na Universitat de Barcelona. Artista plástico com exposições no Brasil e no exterior, possui artigos em diversos periódicos. É docente do Mestrado em Teatro-Udesc e do Mestrado em Artes Visuais-Udesc. 1 Durand, 1993. 2 Durand, 1983. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

social. Assim, Durand define a mitocrítica como uma metodologia unificadora apoiada sobre três bases:

Análise psicológica (Psicologi a profunda e psicocrítica )

O autor

Mitocrítica Análise das estruturas constitutivas

Análise do contexto socio-histórico

(estru tur alismo)

(an ális e m arxi sta)

O texto

O meio social 151


Antonio Vargas

Mas as aplicações da mitocrítica não se esgotam em suas possibilidades de análise e crítica literária. A identificação contextualizada de mitemas e mitos pode contribuir para os estudos sobre os processos de construção da identidade artística e também para análises pontuais sobre os processos de aceitação ou rejeição de determinadas práticas artísticas. Porém, como a metodologia foi concebida para análise de obras literárias e, portanto, de discursos, sua aplicação às artes ausentes de textos ou de imagens figurativas (pintura abstrata, várias obras contemporâneas, instalações, performances e algumas práticas teatrais) apresenta diversas dificuldades. Para tais situações propus 3 uma via alternativa cruzando os pressupostos epistemológicos e metodológicos apresentados por Durand com outros oriundos dos estudos sobre a mitologia artística. O resultado preserva os três pilares e assegura o lugar da obra como lugar central da discussão, mas substitui a identificação dos mitemas nas obras para localizá-los nos discursos da crítica sobre as obras e o autor e do autor sobre sua obra e seus conceitos de ser artista. Também não considera a obra isoladamente de outras do mesmo autor, isto é, considera um conjunto de obras. “Narra tiva” do autor sobr e a ob ra/artist a

Mitocrítica

Análise psicológica

“Narra tiva” da crítica sobr e a ob ra/au tor

Do contexto sócio-histórico

(Psicologi a profunda e psicocrític a)

(an ális e m arxi sta)

O autor

Um conjunto de obras

O meio social

Análise das estruturas mítico-heróicas

Análise das estruturas constitutivas da imagem

Análise das estruturas mítico-heróicas

(estru tur alismo/Cír culo de Eranos)

O texto

(FLV, História da Arte)

A imagem

(estru tur alismo/Cír culo de Eranos)

O texto

Essas proposições metodológicas permitem, como já disse, o uso de uma ferramenta para estudos pontuais. Mas uma análise conjunta dos mitemas presentes no discurso da crítica x discurso do artista somada à análise das obras correspondente ao período das críticas aporta dados interessantes para um estudo que busque compreender a aceitação ou rejeição da obra em cada momento histórico. Porém, a simples identificação dos mitemas heróicos presentes nos discursos da crítica e dos artistas já é suficiente para que tenhamos uma dimensão da influência exercida pela mitologia no processo de reconhecimento artístico, que leva a transformação da imagem social do artista e serve como balizador na construção da identidade artística. Para visualizar algumas das características heróico-artísticas presentes nas declarações de críticos especializados, de artistas e de 152

3 Vargas, 1997. concinnitas


A influência do mito do herói na aceitação das práticas artísticas

jornalistas é preciso fragmentar os discursos para identificar os mitemas assim como os indicativos dos mitologemas heróicos. E saberemos que são mitologias não apenas porque coincidem com as características míticas do heroísmo, mas porque muitas dessas declarações quando isoladas carecem de significado maior para a compreensão da obra, sendo algumas até mesmo irrelevantes. Mas, em seu conjunto, as diversas referências atuam como um recurso psicolingüístico que, por variações sobre um mesmo tema mítico – o da criação –, reafirmam o caráter de excepcionalidade da obra ou do artista, imprimindo um significado de diferença que singulariza aquele objeto ou indivíduo de outros considerados comuns. Só assim as particularidades de cada obra ou indivíduo adquirem um significado artístico, uma vez que enquanto particularidades são históricas e culturais; portanto, temporais. Mas a obra de arte é atemporal. Por isso se diz que o mito não fala da história e da cultura e sim que dá sentido à história e à cultura. Mas apesar disso é importante ter presente que fragmentar os discursos não é a forma correta de se relacionar com o mito. O mito exige vivência. É a narrativa em seu conjunto, com sua beleza estrutural e imagens, que nos permite “sentir” o mito. Pois só assim o mito é vivo. Realizar uma análise da mitologia presente nos discursos serve apenas para exemplificar pedagogicamente o que se disse acima: que a redundância é a forma de atuação mítica e, portanto, é em conjunto nos textos que cumprem sua função ao adquirem seu verdadeiro sentido. Ao contrário das tautologias, que apenas repetem variações de uma mesma situação, as redundâncias míticas são variações que em seu conjunto possuem uma função de aperfeiçoamento do sentido, ou seja, expressam as tentativas do narrador de “cercar” um fenômeno que em sua totalidade lhe escapa. São esforços de definir a singularidade que, por sua natureza, resiste a definições totalizadoras. Por fim cabe lembrar que, embora o mito heróico seja uma narrativa que conta uma história e portanto possui uma linearidade (o herói encontra o protetor depois de ser abandonado, etc.) os diferentes mitemas que o constituem não aparecem obrigatoriamente todos em conjunto em cada narrativa e quando o fazem em maior número não aparecem obrigatoriamente em sentido diacrônico, isto é, um após o outro, construindo um sentido literal. O sentido que eles auxiliam a construir não é literal, mas metafórico, simbólico, poético. Mas é claro que, quanto mais longo o texto que descreve o artístico, maior o número de mitemas encontrados e mais fácil sua aceitação como um argumento que de fato descreve o artístico. Por este motivo, um texto deve ser analisado sistematicamente várias vezes para que os diferentes mitemas possam ser evidenciados. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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O mito em ação O primeiro mitologema ao qual se pode prestar atenção é o do nascimento, que está diretamente relacionado ao tema da origem heróica. Uma vez que a mitologia artística entende a obra como feita por um indivíduo “escolhido” é compreensível que este tenha uma origem diferenciada dos demais. O problema é que, como recorda Brandão,4 a “etimologia, a origem e a estrutura ontológica do herói ainda não estão muito claras”. Esse autor esclarece que os diversos estudos acerca da natureza e origem dos heróis apresentam teses diferentes. O resultado é que a origem algumas vezes é afirmada como sendo o herói um Deus (tese a), ou seja, cujo nascimento não se explica, em outras como um humano descendente de ancestrais famosos ou de pais da alta nobreza, habitualmente um rei (tese b). Importante, porém, é entender que os mitologemas heróicos do nascimento desejam afirmar a natureza sobre-humana do herói, e é por essa razão que é bastante comum entendermos o herói, assim como Aquiles foi definido como o filho de uma divindade com um ser humano. Relacionados a esse mitologema, ganham sentidos os mitemas que falam do nascimento e da infância do artista. E é interessante observar como o fazem em sintonia com as duas formas: uma mostrando que o artista descende de outros artistas, ou de família de destaque, o que afirmaria a continuidade da “linhagem heróica” (tese b); e outra mostrando justamente o contrário, isto é, que o artista descende de pessoas simples, sem nenhuma relação com a arte, caso em que se estaria destacando a ausência de uma explicação para o talento (tese a). Neste caso a mitologia heróica apresenta o artista como um “escolhido” dos deuses, que o protegem para que possa realizar seus feitos. E são mitologias porque tanto uma situação como outra não são características que, de fato, determinem que a criança nascida será um artista talentoso. Talentosos artistas e intelectuais têm filhos que seguem carreiras sem nenhuma relação com a arte. Em muitos casos, como quaisquer seres humanos, possuem uma vida bastante tediosa e até mesmo fracassada. Por sua vez, nascer em uma família sem nenhuma relação com a arte é o mais comum e obviamente não determina que ali surgirá um artista. Mas tanto o texto crítico quanto o histórico formam sentido juntos, afirmando a natureza excepcional do artista desde o berço. Em um artigo sobre Cacilda Becker, Luís André do Prado5 autor da biografia da atriz brasileira que tem como título Cacilda Becker, fúria santa demonstra as tendências excepcionais da atriz, que não se originariam no berço da família natural e sim em uma suposta herança divina dos criadores do teatro: os gregos. 154

4 Brandão, 1990. 5 Prado, 1998. concinnitas


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Cacilda nasceu em 1921, numa família sem nenhum histórico artístico (...) Primordialmente, a família é originária da Grécia. Tanto que a própria Cacilda acreditava ter descendência direta dos gregos: “meus avós maternos são alemães e minha avó paterna, italiana, meu avô paterno, grego. Nosso jeito é primitivo – vivemos do instinto, agarramo-nos às coisas, ao jardim. Temos apenas o vício de viajar”.6 E é relacionado ao nascimento que os mitemas indicativos da Precocidade surgem. O herói, desde criança e jovem, já revela sua natureza incomum; e da mesma forma o artista revela seu talento. Prado se serve desse mitema quando diz que Cacilda: (...) integrou pela primeira vez um elenco teatral sem nunca ter assistido a uma peça7... Aos nove anos, apresentou-se num palco pela primeira vez, numa festa de colégio, ainda em Pirassununga. Isso virou um hábito: além de dançar em casa para “espantar a fome”, em toda festa de encerramento do ano letivo, do primário ao secundário, lá estava Cidinha (apelido de infância) com a dança inventada por ela mesma.8 De forma semelhante, Fernando Eichenberg, ao falar do teatrólogo e diretor Peter Brook, diz: Brook fez sua primeira montagem de Hamlet aos sete anos de idade, quando, com a ajuda de marionetes de papelão, encenou para seus pais a conhecida tragédia do príncipe da Dinamarca.9 Incontáveis crianças encenam para seus pais. E, na Europa, o fato de uma criança encenar Shakespeare não constitui nenhuma singularidade, mas a possibilidade (real ou não) de Brook tê-lo feito é útil e importante para criar a significação mítico-artística. Alguns mitemas relacionados com o nascimento muitas vezes indicam as dificuldades (e até riscos de vida) pelas quais o herói passou e são bastante freqüentes. Buscam dessa forma reforçar a imagem do artista como alguém escolhido, pois, apesar das adversidades, não apenas sobreviveu, mas, superando-as, transformou-se em artista. Muitas vezes ocupam um espaço tão expressivo nas narrativas, que se constituem em verdadeiros mitologemas, pois, como recorda Brandão: Acrescente-se, ademais, que muitos heróis, além do nascimento difícil ou irregular, são expostos, por força normalmente de um Oráculo, que prevê a ruína do rei, da cidade, ou por outros motivos, caso o recém-nascido permaneça na corte ou na pólis.10 6 Idem, ibidem, p. 74. 7 Idem. 8 Prado, 1998, p.77. 9 Eichenberg, 2002, p.115. 10 Brandão, 1990, p. 22. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

No caso de Cacilda Becker, o abandono do pai gerou as dificuldades financeiras e emocionais necessárias para que Prado se servisse desse mitema: O casamento de Alzira Becker com Edmundo Laconis durou até 1930, época em que vivia na capital com as filhas Cacilda, Dirce 155


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e Cleyde. Após o rompimento, Alzira retornou com as filhas para o interior e lutou arduamente pela sobrevivência (...) Elas enfrentaram a pobreza – muitas vezes até sendo obrigadas a roubar. 11 Ao abandono seguem-se os mitemas que compõem o mitologema do Encontro com o protetor. Eles são importantes porque já indicam o início do aprendizado heróico, pois muitas vezes o protetor não é apenas aquele que acolhe (e conseqüentemente o salva), mas é também aquele que revela ao herói sua natureza ou que se apresenta como o primeiro mestre. Quando isso ocorre e a narrativa ganha corpo podem surgir os mitologemas do Chamado ou da Formação iniciática. A aceitação do chamado “significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida”.12 A partir desse momento, ele adentra a jornada heróica propriamente dita. No texto sobre Cacilda, Prado conta como a atriz encontrou acolhida de amigos, como o escritor Miroel Silveira, que a viu como um talento para o teatro indicando-a para um espetáculo: “Impressionado o galã a convidou para integrar o elenco da companhia que estava montando”.13 Mas acrescenta que Cacilda preferiu ter a proteção do ator hollywodiano Raul Roulien: Miroel era um artista jovem e radical. Queria ver Cacilda vinculada à renovação do teatro brasileiro e situava o trabalho de Roulien do outro lado. Ocorre que para Cacilda, que mal entendia o que era o teatro, tudo isso naquele momento não tinha nenhuma importância (...) Cacilda assinou contrato com Roulien, seduzida pelas promessas do ator-empresário de transformá-la rapidamente em uma estrela.14 Campbell,15 por sua vez, considera que a partida do herói rumo a sua jornada é conseqüência de uma convocação do destino. Esse chamado pode parecer com um arauto (despertar do eu), que costuma se mostrar sombrio, algo considerado maléfico pelo mundo, ou com um chamado, feito por alguém cuja aparência costuma ser repugnante. 16 Essa convocação representa a vinda à tona de profundas camadas do inconsciente em que estão guardados os fatores, leis e elementos rejeitados, não admitidos, desconhecidos ou subdesenvolvidos do ser. O caráter misterioso que o herói percebe (conscientemente) é envolvido por uma atmosfera de irresistível fascínio — pois, ao inconsciente, esse “cenário” já é familiar. Mas o chamado nem sempre é aceito. Nesse caso, a aventura é convertida em sua contraparte negativa — o personagem é aprisionado pelo tédio, pelo trabalho pesado ou pela 156

11 Prado, 1998, p. 74 e 77. 12 Campbell, 1993, p. 66. 13 Prado, 1998, p. 77 14 Idem. 15 Campbell, 1993 16 O chamado é feito geralmente por um animal ou alguma figura misteriosa; psicologicamente falando, aqueles que representam os instintos reprimidos. concinnitas


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‘cultura’; perde o poder de transformação e se transforma em uma figura a ser salva por outro herói. A recusa leva o homem a um encarceramento como o da Bela Adormecida, que permaneceu dormindo, assim como todo o seu povo, por muitos e muitos anos. Campbell recorda que, para a psicanálise, essa negação representa uma impotência do homem em abandonar o ego infantil (ao pai e à mãe), para alcançar o nascimento no mundo exterior. Mas uma vez aceito o chamado e iniciado o aprendizado, o destino heróico se põe em movimento em um processo cujo controle o herói não possui mais. E sua formação não será definitiva até o início dos mitemas das Viagens que ao mesmo tempo se apresentarão como Agonística, isto é, Provas e Conquistas, mas também como aprendizado. Os mitemas da Formação são de fundamental importância para compreendermos a presença, nos currículos, nas declarações de artistas e nos textos críticos, de referências a seu aprendizado (ou sua estada) fora de seu país de origem. A presença das referências às viagens, enquanto mitologia, não se revela facilmente nos currículos ou textos feitos sobre artistas consagrados, pois, uma vez consagrados, as referências só reafirmam sua consagração. Nós os percebemos em seu sentido mitológico muito mais porque estão presentes, também, nos currículos e textos de jovens estudantes de artes ou de amadores, que, sem reconhecimento maior, por esforço pessoal ou condições familiares, viajam, residem ou estudam fora de seu país. Sua existência também nos auxilia a compreender por que motivos, durante muitos anos no Brasil e na América Latina principalmente — e até há bem poucos anos —, os primeiros prêmios dos grandes salões de arte eram “viagens e estadas no exterior”. Também nos auxilia a compreender o ímpeto ou o desejo desenfreado (para alguns) dos artistas em partir em busca de novas experiências, bem como a existência, ainda hoje, de bolsas de estudo (como as da Unesco, para citar apenas um, de muitos exemplos) para que artistas de diferentes nacionalidades deixam seus países de origem para residir e estudar “fora”. Naturalmente, toda viagem implica risco e novas experiências. Não se questiona esse fato nem, muito menos, que essas novas experiências possam contribuir para o amadurecimento individual e profissional. O que se precisa entender é que, uma vez que as viagens constam nas narrativas míticas como um importante simbolizador das vivências heróicas, sua presença nos currículos e biografias remete a essa associação. Mauro Trindade, em artigo sobre a atriz Juliana Carneiro da Cunha, informa: ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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(...) em 1970, mudou-se para Paris, e o coreógrafo Maurice Béjart passou a ser seu novo mestre no centro de Formação do Intérprete Total (...) Juliana trocou o sucesso profissional e financeiro cada vez mais certo no Brasil pelo desemprego e anonimato em Paris.17 Como se vê, o mito ensina que as viagens representam um período de grande aprendizagem na vida dos artistas. Período no qual adquirem grande domínio do exercício de suas funções. A bem da verdade, devese dizer que dentro do mitologema da Formação e Aprendizado, os mitemas relacionados com a destreza do herói no domínio das armas são os mais versáteis e estão entre os que maior impacto podem causar no ouvinte da fala mítica. Isso ocorre por uma característica da natureza da prática heróica. No texto de Prado, várias passagens indicam o incomum domínio teatral de Cacilda Becker: Sua atuação de novo impressiona, particularmente como a Brizida Vaz do Auto da Barca do Inferno, apesar de ainda não ter plena consciência do trabalho que fazia (...) uma passagem, porém, é bastante reveladora no domínio de palco que Cacilda já havia adquirido. Bibi cai doente, e Cacilda se vê obrigada a substituí-la às pressas: representava-se É proibido suicidar-se na Primavera, as entradas estavam vendidas, e Bibi não poderia de forma alguma representar (...) é muito difícil tentar sugerir o que era a experiência de ver Cacilda no palco, mas pelo menos duas definições me ocorrem: a primeira é a que afirmava que, se no início de uma peça houvesse 40 ou 50 pessoas no palco, e ela estivesse na décima fila, mesmo quem jamais a tivesse visto saberia imediatamente quem era a pessoa mais importante em cena.18 Em outro momento o autor destaca uma ação que entre habilidade e astúcia demarca a singularidade da atriz. (...) à noite, depois de passar rapidamente a peça, com o auxilio dos colegas, para conhecer a marcação, e de ler sozinha várias vezes suas cenas, Cacilda estreou pela terceira vez no Rio. Estava nervosa, e o papel não era sopa. Ela porém é de circo e com o auxilio de vários cigarros, que acendia num momento oportuno para ouvir o ponto, sem que a platéia percebesse, com um jogo de cena extremamente natural, Cacilda agradou integralmente a platéia.19 Assim como Desvaux,20 Durand 21 ou Kuspit22 indicaram, de fato, dois modelos de heroísmo predominam culturalmente. Um regido pelo domínio das armas externas, logo, “materiais”, e que permite a conquista de “territórios”, cuja melhor imagem é a do guerreiro. E outro, regido pelo domínio das armas interiores, logo “espirituais”, e que permite a conquista de modificações internas, e cuja melhor imagem é a do 158

17 Trindade, 2003, p. 108. 18 Prado, 1998, p. 76. 19 Idem, ibidem, p. 79. 20 Desvaux, 1989. 21 Durand, 1989. 22 Kuspit, 1992. concinnitas


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“asceta”. O domínio das armas também se expressa pela astúcia (inteligência) e o senso de humor. Este último é apontado por Kris e Kurz23 como um indicativo da inteligência superior do artista. Também o esforço é sempre um requisito admirado. Trindade a respeito de Juliana Carneiro da Cunha lembra que a atriz: (...) mergulhou por três anos na ioga, danças clássicas, moderna, indiana e espanhola, aulas de circo, canto e teatro (...) Ao lado de Fernanda Montenegro no papel-título, ela representou Marlene, a submissa empregada de Petra. Não abriu a boca para falar sequer uma vez em cena – e ainda assim sua presença se fez assombrosa no palco.24 Adriana Pavlova ao comentar o espetáculo do Grupo Momix destaca o domínio técnico: Como já é marca do Momix, em Opus Cactus não há grandes invencionices técnicas. Pendleton brinca mesmo é de criar sobre a simplicidade dos corpos. Por isso usa e abusa das silhuetas, da acrobacia, do som e da luz (...) é um trabalho de ilusões, porque não vemos os detalhes dos corpos (...) o incrível é que você tem um sistema de som de alta qualidade e grandes bailarinos, é possível fazer coisas incríveis em cena, sem precisar da ajuda de máquinas. No Momix, parte da ilusão é perceber que não há ilusão. O que há de virtuoso está nos corpos dos bailarinos, e nada mais do que isso.25 Em termos semelhantes, Fernando Eichemberg se refere à direção de Claude Régy e à atuação de Isabelle Huppert na obra 4.48, de autoria de Sarah Kane: Sua encenação de 4,48 Psychose é um demonstrativo exemplo de seus métodos, no qual Isabelle Huppert cumpre sua função com extrema habilidade, talento e justeza.26 Brandão27 também chama a atenção para o papel singular que a relação entre mestre e “aluno” desempenha dentro do mito heróico. O mestre não apenas ensina, mas introduz o aprendiz nos ritos iniciáticos de passagem; provas cuja superação demonstram a preparação do herói para assumir sua tarefa. E aponta alguns exemplos de ritos como corte de cabelo, mudança de nome, mergulho ritual no mar, passagem pela água e pelo fogo, a penetração do labirinto, a catábase ao Hades, o androginismo, o travestismo e a hierogamia. Lendo-se a respeito desses ritos, como não pensar em músicos ídolos pop como Prince, Madonna ou 23 24 25 26 27

Kris e Kurz, 1982. Trindade, 2003, p.108. Pavlova, 2002, p.74. Eichemberg, 2003, p.105. Brandão, 1990, p. 26-27.

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Michel Jackson? Mas obviamente a criação sempre implica ruptura de uma ordem estabelecida e é compreensível, portanto, que os artistas adotem pautas de comportamento que não se enquadrem exatamente naquelas em geral estabelecidas. Em alguns momentos históricos, porém, 159


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essas diferenças se fazem mais gritantes. Após o surgimento do romantismo, a adoção por parte dos artistas do comportamento boêmio como uma contraposição ao comportamento burguês criou as condições para que estas diferenças se manifestassem de forma mais evidente. Basta pensarmos no quanto o comportamento e a forma de vestir-se de um Rubens ou de um Velásquez em nada se diferenciavam daqueles característicos da nobreza a qual serviam para entendermos o quanto de mudanças o romantismo operou na imagem do artista. Ao mesmo tempo, a passagem por esses rituais abre espaço para o surgimentos dos mitemas de superação do mestre. No texto de Prado, observa-se a presença de alguns desses mitemas. “Será que alguém lembra que ela ainda teve de lutar contra a exigência de as atrizes terem de fazer os exames de saúde das prostitutas?”28 Recorda que Cacilda disputou “um concurso de beleza” e se fez “capa de revistas locais”29. E citando a atriz, recorda também que enfrentou severa critica de Ziembinski: Ele me olhou profundamente e disse: você nunca vai ser uma atriz. Isso cala fundo e eu fiquei atemorizada. Mas foi justamente esse homem que me ajudou a me tornar uma atriz. E talvez tenha sido justamente este um dos botões que ele tenha apertado, para me estimular.30 Já no relato da própria atriz na citação que segue, apresentado pelo autor, a superação do mestre é evidenciada. Um dia, casualmente, fazendo uma peça (...) me cai o texto inteiro na mão, e eu, escondido do diretor de cena, levei-o para casa; porque esse texto pertencia ao diretor do espetáculo; os atores recebiam apenas as deixas com suas falas. Li a peça e compreendi, então, o que era representar. Estudei meu papel, fui para o ensaio e me lembro do Raul Roulien me olhar, com uma cara de grande admiração, dizendo: Deu um estalo? Até hoje ele não sabe por que deu o estalo; por que a luz tinha acendido... É que eu tinha lido, pela primeira vez, um texto integral e, a partir daquele dia, passei a exigir os textos para poder estudar.31 Dessa forma, segundo o autor, Cacilda, a sua maneira, encontrava as tendências modernas do teatro, superando seu mestre Roulien e deixando a companhia. Também Eichenberg mostra Peter Brook reescrevendo, alterando e superando o mestre Shakespeare: Quem está aí? indaga o sentinela Bernardo, na primeira fala do texto consensual, entre os especialistas, de A Tragédia de Hamlet, de Shakespeare. Na mais recente versão de Peter Brook, a pergunta é suprimida. Nem Bernardo ou seu colega Francisco 160

28 29 30 31

Prado, 1998, p. 76. Idem, ibidem, p.77. Idem, ibidem, p.80. Idem, ibidem, p.78.

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debutam o espetáculo. Brook vai direto ao ponto. É o próprio Hamlet que entra em cena, recitando de frente para o público um monólogo no qual revela parte de sua tragédia e de suas angústias. Nem pressa, preguiça ou desprezo ao mistério. Peter Brook, cortou, colou e reescreveu versos até encontrar a justa medida que procurava: o Hamlet essencial. Mesmo o célebre monólogo ‘ser ou não ser’ foi deslocado. Na metamorfose, ele opera a reconstrução.32 Nessa citação chega a ser divertido observar como o autor afirma a superação do mestre: Brook ao alterar o texto original encontra o fundamental de um personagem que foi criado pelo próprio autor do original. Assim, o que acaba por dar a entender é que Shakespeare não compreendeu a verdadeira essência de seu personagem! A citação de com quem o artista estudou, isoladamente, pode não ser considerada uma mitologia. As pessoas aprendem uma com as outras os mais diferentes ofícios, e isso não é nem mais nem menos do que a cultura sendo transmitida de uma geração a outra. E é normal que, se um indivíduo adquire fama por fazer algo bem feito, se transforme em uma referência coletiva que indica que X, que com ele aprendeu, possivelmente saiba mais do que esse Y, que aprendeu com outro. Embora essa conclusão não seja sempre correta, é tão normal e comum pensarmos assim, que dessa forma também raciocinamos quando julgamos instituições, como as universidades, por exemplo. Esse raciocínio demarca uma diferença. Mostra uma singularidade de X em relação a Y. E é nesse marco que o mitema do aprendizado, vinculado aos demais no conjunto de um texto, soma para simbolizar o heróico e a excepcionalidade artística. Reproduzir em linguagem mundana o ensinamento do reino sagrado constitui a verdadeira façanha heróica. Mas, como coloca Campbell,33 como falar do mundo multidimensionado das mensagens do vazio gerador, em termos de ‘sim’ e ‘não’, em evidências que excluem o próprio sentido da mensagem? O herói retorna munido para esta última batalha — contém a sabedoria, o virtuosismo, etc. —, e superar esse obstáculo é sinônimo de sucesso no retorno. Essas limitações, mais do que tudo, demonstram a grandeza da sabedoria adquirida por ele em sua jornada. O retorno do herói acontece porque ele provou estar pronto para entregar o ‘troféu transmutador da vida’ para a renovação da comunidade. Na mitologia, a conquista desse ‘troféu’ aparece com diversas roupagens, uma delas é o “Fogo” — roubado e trazido por Prometeu para a humanidade mundana. Esse poder, por ocasião de seu retorno, é usado 32 Eichenberg, 2002, p. 116. 33 Campbell, 1993, p. 205. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

para transmutar uma certa realidade que se encontra acomodada (adormecida) na temporalidade terrena. 161


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No texto de Prado sobre Cacilda Becker, os mitemas que expressam esta ação de entrega e defesa e do coletivo são bastante evidentes. Rapidamente Zampari (...) importou um diretor, o italiano Adolfo Celi, a trabalho na Argentina. Em seguida fixou elenco permanente do qual Cacilda foi a primeira contratada. Assim (...) entrou definitivamente no teatro moderno (...) até a saída de Cacilda a companhia viveu um período de ouro; como se o atraso da cena brasileira tivesse de ser compensado em um tempo recorde — 50 anos em cinco, para usar um slogan da época (...) Neste contexto Cacilda realizou o sonho de ser primeira atriz (...) Em meio a uma ditadura intolerante e terrorista, Cacilda surgiu como uma voz respeitada, corajosa denunciando a censura e defendendo a classe teatral. Assumiu, então, o papel de grande mãe e declarou que “todos os teatros são meus teatros”.34 E Trindade observa: Para compreender a interpretação de Juliana Carneiro da Cunha é preciso entender o teatro além das palavras. Como um televisor com o som subitamente cortado e no qual as imagens adquirem uma movimentação e uma lógica anterior ao discurso falado (...) Toda essa intensidade amorosa e firmeza de caráter são reveladas aos espectadores em poucos diálogos, de conteúdo quase sempre trivial, o que requer da atriz um calado fora do comum em experiência, expressão e segurança em cena. Atributos conquistados nos quase 50 anos de trabalho e estudos de Juliana Carneiro da Cunha.35 Essas ações, uma vez interpretadas corretamente pela sociedade, geram-lhe o reconhecimento e a glória. O artista passa a ser respeitado e admirado por haver, através do aprendizado árduo, da constante luta e superação de obstáculo, da abdicação e superação de seu egoísmo humano, obter o direito de conhecer os segredos dos deuses, de aprender as grandes verdades. E, generosa e desinteressadamente, as comparte com os comuns mortais. Não importa que ele já tenha nascido como um escolhido e que a própria natureza lhe tenha dotado dos recursos necessários para a tarefa. Havia a necessidade de que ele superasse essa própria condição, pois ela mesma, paradoxalmente, poderia impedi-lo de atingir sua meta se o herói, ao acreditar-se superior, ignorasse a infeliz e precária condição humana. Isso diz o mito heróico. E, porque lhe é agradecida, a sociedade retribui, oferecendo conforto e glórias ao herói. E, assim, chegamos ao final da jornada heróico-artística na qual surgem os mitemas da Submissão do herói à morte. A morte mítica do herói é sempre trágica. E assim é porque, segundo o mito, os deuses sentem inveja da admiração, do amor e do respeito 162

34 Prado, 1998, p. 80. 35 Trindade, 2003, p. 107-108.

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que a sociedade sente pelo herói e que este sente pelos humanos. O que o mito ensina, por meio desse mitologema é algo que escapa à maioria dos teóricos acadêmicos que acusam o mito de não contribuir para o convívio harmônico da espécie humana e, erroneamente, jogam sobre os ombros da dialética política toda a responsabilidade pela realização dessa utopia. O mito ensina que os homens devem unir-se por sua essência humana; respeitar-se e se admirar por sua condição humana, porque a morte os separa inexoravelmente. A morte do herói mostra que, se o próprio escolhido não está livre dessa tragédia, aos homens nada mais resta senão se unirem para suportar e aceitar a mesma sorte. Porém, quanto mais trágica a morte do herói, quanto maior seu sofrimento, maior a redenção a seu coletivo. E é assim porque a jornada heróica representa o caminho de abandono por parte do herói, dos caprichos do ego; o herói morre para o mundo (se retira, se autoaniquila) para penetrar o espaço sagrado, de onde sairá revivificado. Prado ao falar de forma trágica da morte de Cacilda em cena, diz que ainda vestia o terno roto do personagem quando, numa tarde de maio de 1969, foi levada às pressas para o Hospital São Luiz, em São Paulo, sob os olhos assustados da platéia estudantil. Foi sua última cena.36 E Eichemberg, a respeito de Sarah Kane, destaca: Mas Sarah Kane acabou não suportando a incompatibilidade entre sua intransigência e o estado do mundo, e a overdose se transferiu do palco para a vida. No dia 20 de fevereiro de 1999, por volta das 3h, ela se enforcou com os cadarços de seus sapatos num banheiro do King’s College Hospital, no qual havia sido internada depois de uma malograda tentativa de suicídio por ingestão de comprimidos.37 E é a morte do herói que estimula seu renascimento, pois o reconhecimento da importância de sua vida e de suas ações, naturalmente maximizadas nos rituais fúnebres, funcionam como um rico adubo que fertiliza o solo cultural sobre o qual brotarão as novas gerações, oferecendo assim as imagens primordiais, e por isso mesmo fantásticas, mas necessárias para o surgir e o desenvolver das potencialidades artísticas.

36 Prado, 1998, p. 81. 37 Eichemberg, 2003, p. 104.

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A intervenção como meio – considerações sobre certas práticas artísticas contemporâneas

A intervenção como meio – considerações sobre certas práticas artísticas contemporâneas1 Fabíola Silva Tasca* Este texto é uma exploração do termo “intervenção”, que considero uma ferramenta para a descrição e análise de algumas práticas artísticas contemporâneas. Procuro mostrar a utilidade dessa noção e tento defini-la como parte da paisagem conceitual na qual tais práticas têm lugar. O argumento principal é a proposta de uma noção de intervenção que possa funcionar como uma resposta à questão da refuncionalização da arte, colocada por Walter Benjamin em 1936. Tal argumento é elaborado e exemplificado através da análise dos trabalhos Vazadores, de Rubens Mano, e Endless stacks e Candy spills, de Felix Gonzalez-Torres. Arte site specific, arte contemporânea, fotografia

* Fabíola Silva Tasca é artista plástica e mestre em artes visuais pela Escola de Belas Artes da UFMG. 1 Este texto é uma adaptação do capítulo “A intervenção como meio”, parte integrante da dissertação de mestrado “Sem título (Puzzle: por uma leitura de enigmas artísticos contemporâneos)”, apresentada na Escola de Belas Artes da UFMG, em agosto de 2004. 2 Benjamin, 1986a, p.187. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Qual a relação entre o cinegrafista e o pintor? A resposta pode ser facilitada por uma construção auxiliar, baseada na figura do cirurgião. O cirurgião está no pólo oposto ao do mágico. O comportamento do mágico, que deposita as mãos sobre um doente para curá-lo, é distinto do comportamento do cirurgião, que realiza uma intervenção em seu corpo. O mágico preserva a distância natural entre ele e o paciente, ou antes, ele a diminui um pouco, graças à sua mão estendida, e a aumenta muito, graças à sua autoridade. O contrário ocorre com o cirurgião. Ele diminui muito sua distância com relação ao paciente, ao penetrar em seu organismo, e a aumenta pouco, devido à cautela com que sua mão se move entre os órgãos (...) o cirurgião renuncia, no momento decisivo, a relacionar-se com seu paciente de homem a homem e em vez disso intervém nele pela operação. O mágico e o cirurgião estão entre si como o pintor e o cinegrafista. O pintor observa em seu trabalho uma distância natural entre a realidade dada e ele próprio, ao passo que o cinegrafista penetra profundamente as vísceras dessa realidade. As imagens que cada um produz são, por isso, essencialmente diferentes. A imagem do pintor é total, a do operador é composta por inúmeros fragmentos, que se recompõem segundo novas leis.2 É de 1936 o texto de Walter Benjamin, não por acaso, recorrentemente citado, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. É de agora esta remissão ao texto. A insistência em convocálo parece justificar-se pela instrumentalização que pode nos oferecer 165


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na construção de um discurso que estime viabilizar rotas possíveis em direção à produção artística contemporânea, alojada no terreno do impreciso. Incerteza, indecidibilidade, instabilidade são termos possivelmente destiláveis da questão suscitada pelos adventos técnicos que possibilitam a reprodução: a perturbação do lugar estável da obra e, conseqüentemente, do lugar do artista, do lugar do espectador. Benjamin desenvolve sua argumentação no sentido de expor uma refuncionalização da arte, decorrente da emancipação dos seus fundamentos no culto, o que se dá em função de a reprodutibilidade técnica afastar o caráter único da obra, responsável pelo critério de autenticidade. Desatrelada de seu valor de culto, ou seja, de seu valor como objeto inserido no contexto de uma tradição – presente mesmo nas formas mais profanas do culto do “Belo” – a arte tornar-se-ia subordinada e significada por seu valor de exposição, o que a deslocaria de uma prática ritualística para uma práxis política, transformando, conseqüentemente, os modos de produção e recepção da arte. Na leitura que faz deste texto, Laymert Garcia dos Santos privilegia menos a questão da destruição da aura, expressa pelo conflito entre a reprodutibilidade técnica e o caráter único das obras de arte. Santos sublinha um viés bastante pertinente para articularmos uma noção de intervenção: através da oposição entre os valores de culto e de exposição, Benjamin marca a diferença moderna no plano da percepção. A questão central desses textos [‘A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica’ e ‘Pequena história da fotografia’] é que neles se avalia a perda da realidade transcendente e o ganho da realidade imanente; isto é: perde-se o acesso ao outro mundo para se aceder a um outro mundo, até então desconhecido, que paradoxalmente é o nosso próprio mundo.3 A fotografia é então pensada como uma nova possibilidade de leitura do mundo e de investigação da realidade, e não como um apelo à contemplação. A partir da relação proposta por Benjamin entre o mágico e o cirurgião, Santos sugere uma aproximação entre o fotógrafo e o psicanalista, no sentido em que a ação de ambos se inscreveria na ordem da técnica e da ciência, caracterizadas, portanto, pela mediação de um dispositivo (fotográfico/ psicanalítico). Conforme Benjamin pontua, a idéia de intervenção reclama a dissolução de uma relação homemhomem, em proveito da assinalação de uma distância forjada por um dispositivo. Com essas considerações começo um texto orientado pelo desejo de se constituir, também, como uma espécie de dispositivo que nos permita 166

3 Santos, 2003, p. 155. concinnitas


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transitar nos domínios de uma produção como a dos artistas sobre os quais vou discorrer, e cuja característica mais saliente é ser refratária às classificações de contorno definido; trabalhos que tantas vezes aparecem destituídos dos elementos que antes nos permitiam reconhecêlos como pertencentes à esfera do artístico e que reclamam, portanto, a redescrição de alguns termos para se fazer legíveis. Em tais trabalhos pode-se perceber o porvir anunciado no texto de Benjamin, quando aponta para funções outras que não aquelas estritamente reconhecíveis como artísticas. A preponderância absoluta do valor de culto conferido à obra levou-a a ser concebida em primeiro lugar como instrumento mágico, e só mais tarde como obra de arte, do mesmo modo a preponderância absoluta conferida hoje a seu valor de exposição atribui-lhe funções inteiramente novas, entre as quais a “artística”, a única de que temos consciência, talvez se revele mais tarde como secundária.4 Gostaria então de sugerir a idéia de intervenção como uma resposta para tais “funções inteiramente novas”, e delinear tal idéia é o que intento aqui, pressupondo que uma maior clareza quanto a estas novas funções torna-se imprescindível para a elaboração de “um discurso que não se limite a duplicar o existente, mas estime, além disso, poder criticá-lo”.5 A imagem do cirurgião proposta por Benjamin pode ser mais bem constituída se nos remetermos ao gesto de incisão que promove a inserção do objeto industrial no cenário artístico. Para os nossos interesses, aqui, A Fonte duchampiana parece inexaurível, e gostaria de salientar menos o procedimento que inaugura do que as questões que o próprio procedimento põe a descoberto. A saber: é o objeto de arte algum tipo especial de objeto dotado de qualidades específicas? Ou é antes a arte aquilo que dota todo e qualquer objeto dessas qualidades específicas? Mas, como pode a arte dotar um objeto, se esta se faz presente através dos produtos da atividade artística? É então o artista aquele que dota os objetos de qualidades específicas? Essa circularidade, efeito da operação readymade, nos convida a deslocamentos possíveis em função da exposição de seu próprio funcionamento: se um objeto ascende à categoria de arte por um ato eletivo, onde deveríamos buscar a especificidade disso que nomeamos arte? Seria o artista a chave da questão? Ou a chave seria o sistema da arte delineando e modulando a nossa recepção? Jonathan Culler propõe um questionamento semelhante endereçado 4 Benjamin, 1986a, p. 173. 5 Vattimo, 2002, p. XIX. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

ao termo “literatura”: 167


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“A literatura é um tipo especial de linguagem ou é um uso especial da linguagem? É linguagem organizada de maneiras distintas ou é linguagem a que se concedem privilégios especiais?” A resposta que Culler nos oferece poderia ser estendida para o termo “arte”: “não adiantará escolher uma opção ou outra, devemos nos movimentar para lá e para cá, uma vez que a literatura envolve tanto as propriedades da linguagem quanto um tipo especial de atenção à linguagem”.6 A problemática que o readymade descortina situa-se nesta estrutura complicada em que perspectivas diferentes parecem não produzir uma síntese. Armadilha (1917), Roda de Bicicleta (1913), Dobrável de Viagem (1916), Em Antecipação ao Braço Partido (1915), entre outros, integram o elenco de objetos rebatizados e deslocados de sua condição objetual (constituída pelo uso) para uma situação expositiva que lhes confere o status de arte. Algumas vezes modificados por interferências, esses objetos assinalam uma intervenção cuja complexidade inaugura um espaço onde as questões proliferam. Percebe-se como o trabalho é uma operação, como o procedimento é uma interpelação aos temos “arte”, “artista” e “espectador”. Tal intervenção incide sobre a estrutura do sistema artístico na medida em que desvela a condição situada do objeto de arte, destituindoo de um núcleo essencial, de uma suposta autonomia, para assinalar sua contingencialidade. Ao enfatizar a implicação referencial como constituinte do olhar, a operação readymade sublinha que o significado de uma obra não estava necessariamente contido nela, e que era indissociável do contexto no qual existia. Colocam-se em questão não tanto os atributos formais do objeto, mas, antes, uma ação deliberativa em que arte passa a ser isso que designo como arte. Basta saber que uma pá de neve ou um portagarrafas, ou... é arte, para que essa sentença se cumpra. Eu nem sequer preciso mirar tais objetos, daí, não há o que contemplar. Não há o que contemplar? A que/quem se dirige esse veto? Uma concepção da arte que se fundamenta em conceitos como “Belo” e “Sublime”, e que, conseqüentemente, orienta uma certa concepção de artista e espectador, parece sabotada. Um esboço histórico dessa distinção é apresentado por Shusterman: Platão condenou a arte como irreal e ilusória em parte porque temia seu poder de penetrar e contaminar a alma humana, poder capaz de corromper, deste modo, a ação. A criação artística e sua apreciação eram por ele concebidas como uma forma de irracionalidade, em que o artista e o público eram ligados numa 168

6 Culler, 1999, p. 34-59. concinnitas


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corrente de possessão divina, cuja fonte era a Musa. A reação de Aristóteles foi separar a arte da ação, apresentando-a como uma atividade racional de fabricação externa, como poiésis. A atividade poética, enquanto produção de um objeto distinto através de uma habilidade técnica, diferencia-se da atividade superior que é ação prática (ou práxis), que deriva do caráter interior do agente e ajuda, reciprocamente, a formá-lo.7 Podemos, então, retomar o termo Práxis (ação), utilizado por Benjamin, como operador de uma interlocução entre os termos “arte” e “vida”, situando-o em relação à mímesis e à poiésis. Nessa perspectiva, o termo sinaliza a abertura de um outro espaço, constituído pela deriva da ação artística em relação às concepções platônica e aristotélica, já que a primeira fundamenta uma visão da arte como algo completamente distante da realidade ou da vida (teoria da mímesis de Platão), enquanto a segunda alicerça uma definição da produção artística como prática de criação externa, cujos fins são concebidos como objetos independentes, dissociados dos efeitos que possam ter nos seus criadores (classificação aristotélica da arte como poiésis – fazer, fabricar). Pode-se dizer então que o espaço aberto pelo gesto duchampiano interroga artista e espectador em seus respectivos papéis, modificando os modos de produção e recepção da arte tal como sinalizado no texto de Benjamin e executando uma complexa e intrincada operação que problematiza ambos os lugares, na medida em que os faz coincidirem. “Diante de um readymade, não existe mais qualquer diferença técnica entre fazer e apreciar arte.” 8 Nesse sentido, ao promover tal coincidência, Duchamp problematiza a suposta naturalidade que separaria esses registros, nos oferecendo a oportunidade para convocarmos a noção de dispositivo e, com isso, a idéia de posicionamento como um modo de redescrever as relações entre produção e recepção. É no sentido de uma confluência entre produção e recepção que tal operação é aqui considerada como “grau zero”, já que promove o deslocamento da pergunta essencialista “o que é arte?” para a possibilidade de questionamentos orientados pela noção de contingencialidade: “quando/onde e em quais circunstâncias podemos dizer que há arte?” Considerando que com o readymade a distância entre produtores e fruidores não se funda em competências técnicas, ou melhor, que tais competências não se fazem perceptíveis pela manufatura do objeto, o 7 Shusterman, 1998, p. 46. 8 De Duve, 1998, p. 128. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

que parece estar em “jogo” é um outro tipo de engenho. Portanto, 169


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como situar “artista” e “espectador”? Pensar essa relação também a partir da noção de implicação referencial sugere pensá-los como lugares, como pólos de um dispositivo artístico, o que pode nos oferecer a possibilidade de propor rearranjos posicionais que redescrevam essa relação. Nessa perspectiva, podemos situar os trabalhos do artista cubano Felix Gonzalez-Torres (1957-1996), que executam uma ação precisa no que tange a um reposicionamento das relações entre artista, instituição e público, explorando o espaço inaugurado por Duchamp em regiões intocadas pelo antecessor ilustre. Se admitirmos que a operação duchampiana apresenta o sistema da arte como um “teatro”, a obra de Gonzalez-Torres reorganiza os papéis tradicionais. “Tenho tendência para me considerar um encenador de teatro que tenta veicular certas idéias reinterpretando a noção de distribuição de papéis: autor, público e encenador.”9 Os trabalhos de Gonzalez-Torres, que aqui menciono, são Endless stacks (Pilhas sem fim) e Candy spills (Montes de doces), já que se oferecem como “resposta” à questão da reprodutibilidade técnica da obra e ao lugar que o artista assume diante dessa realidade, uma vez que, não mais detentor do monopólio da produção de imagens, pode relançar a arte no exercício de reinvenção dos lugares artista, obra e espectador, intervindo no modo de funcionamento de um circuito. Endless stacks são montes de folhas de papel – algumas contendo imagens, textos, outras destituídas de ambos – que podem ser levadas pelos visitantes; Candy spills são disposições de balas, bombons, chicletes, no canto de uma sala, ou estendidos no chão como tapetes, que também estão disponíveis para ser retirados. As folhas e os doces faltantes devem ser repostos continuamente, de modo a se alcançar um determinado limite, que é definido em função da altura, no caso das Pilhas sem fim, e do peso de uma pessoa específica, no caso dos Montes de doces. Endless stacks e Candy spills convidam o espectador a reinventar o seu papel na relação que estabelece com a obra, confiando-lhe a tarefa de leitura, convidando-o a decifrar o enigma de um deslocamento que se faz possível por um convite tácito a uma ação in(ter)ventora. Tal enigma é da ordem do insuspeito: propõe que a propriedade se defina em função do desejo, uma vez que a possibilidade de apropriação das balas, bombons, chicletes e papéis não está explicitada a priori; é trabalho do leitor descobrila, e tal entendimento pode se dar, aliás, muito tempo após a própria experiência de encontro com os trabalhos, num só depois, a posteriori. A lógica do a posteriori diz respeito à temporalidade e à causalidade psíquica, e subverte a noção da história do sujeito como sendo 170

9 Gonzalez-Torres apud Dziewior, 1999, p. 186. concinnitas


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determinada unicamente do passado para o presente. “Não é o vivido em geral que é remodelado a posteriori, mas antes o que, no momento em que foi vivido, não pôde integrar-se plenamente num contexto significativo”.10 Assim, tal noção nos remete ao termo enigma, referindose a alguma mensagem que, por sua ambigüidade, demanda um trabalho de decifração. O enigma proposto por Gonzalez-Torres sugere que a obra é de quem a quiser, e que “querer” implica um movimento em direção a, ou seja, o autor se posiciona como um propositor, a obra como um convite, e o espaço expositivo como local desse encontro. O fato de ser possível ao leitor levar um fragmento da obra consigo ressignifica o espaço expositivo, bem como o trabalho do artista e, conseqüentemente, o do espectador. Assim, a instituição que adquire Endless stacks, ou Candy spills assume a responsabilidade de, para manter o trabalho disponível ao público, repor constantemente as folhas e os doces faltantes. Isso evidencia o caráter de mediação do próprio espaço institucional, configurando a qualidade de espaço público como algo afim à idéia de responsabilidade. A obra político/poética de Felix Gonzalez-Torres age subversivamente, questionando o conceito capitalista de propriedade. Ao possuir uma obra de Felix Gonzalez-Torres, o colecionador de arte tem que mudar o conceito de propriedade pelo de responsabilidade. Quem possui uma ‘Pilha sem fim’ ou um ‘Monte de doces’ deve se comprometer a manter o seu tamanho ideal, sob pena de ver a obra desaparecer.11 Tal procedimento atualiza a relação do museu com a produção contemporânea orientada pela idéia de impermanência. O museu deixa de ser o “templo” que abriga a obra, descontextualizando-a e, muitas vezes, esvaziando-a em seus aspectos fundantes, e passa a “compartilhar da espessura dos propósitos simbólicos e conceituais do trabalho”.12 Também nessa perspectiva a função do autor é atualizada. Tal função deixa de se exibir como sendo a daquele que expressa sua visão de mundo, ou que se posiciona como o mestre detentor de um saber especializado, sendo redescrita como um propositor. Assim, o autor convida o leitor à experiência de uma relação diferenciada com as coisas que o cercam e o faz a partir da sua localização no pólo de produção do dispositivo. Referirmo-nos ao trabalho artístico como dispositivo tem por objetivo balizar o espaço no qual pretendemos nos mover, ou seja, um terreno 10 Laplanche E Pontalis apud Belo, 2004, p.7. 11 Mellendi, 1998, p. 125. 12 Freire, 1999, p. 41. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

distanciado de discussões de ordem metafísica e conformado pela noção de intervenção. Essa noção é compreendida como um modo de operar no terreno do impreciso, de onde intentamos derivar a partir da estrada 171


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pavimentada pela operação duchampiana, que coloca a questão da especificidade da obra de arte pela explicitação dos elementos que a configuram: artista/instituição/público. Com os readymades, Duchamp pedia que o observador pensasse sobre o que definia a singularidade da obra de arte em meio à multiplicidade de todos os outros objetos. Seria alguma coisa a ser achada na própria obra de arte ou nas atividades do artista ao redor do objeto? Tais perguntas reverberaram por toda a arte dos anos 60 e além deles.13 São notáveis as conseqüências dessa reverberação em determinadas produções artísticas, principalmente a partir da segunda metade do século XX, na qual a ação do artista parece deslocar-se do movimento de construção do objeto, para um movimento em torno desse objeto, envolvendo as estratégias de circulação e gerenciamento do trabalho em relação ao circuito artístico, o que as obras de Gonzalez-Torres executam com soberana delicadeza.

A fotografia como intervenção Tanto o texto de Benjamin quanto a operação duchampiana remetem à fotografia como baliza incontornável na configuração do espaço de manobras que se constituiu. Benjamin escrevia que “a criação dos problemas estava menos na estética da fotografia enquanto arte que a estética da arte enquanto fotografia”.14 Duchamp sistematiza sua produção a partir da perspicácia desse entendimento. A arte de Duchamp e a fotografia têm em comum funcionarem, em seu princípio constitutivo, não tanto como uma imagem mimética, analógica, mas, em primeiro lugar como simples impressão de uma presença, como marca, sinal, sintoma, como traço físico de um estar-aí (ou de um ter-estado-aí): uma impressão que não extrai seu sentido de si mesma, mas antes da relação existencial – e muitas vezes opaca – que a une ao que a provocou.15 Benjamin elege a fotografia como marco para a emancipação da arte de seu fundamento no culto. Duchamp rege sua produção a partir da mesma lógica que a fotografia faz emergir, a lógica do índice. Ambos apontam, então, para um espaço de onde a produção artística viria tecer programas que compartilhariam do pressuposto de implicação referencial. Com a fotografia, não nos é mais possível pensar a imagem fora do ato que a faz ser. A foto não é apenas uma imagem (o produto de uma técnica e de uma ação, o resultado de um fazer e de um saber-fazer, uma representação de papel que se olha simplesmente em sua clausura de objeto finito), é também, em primeiro lugar, um verdadeiro ato icônico, uma imagem, se quisermos, mas em 172

13 Archer, 2001, p. 3. 14 Clair apud Didi-Huberman, 1997, p 10. 15 Dubois, 2001, p. 254-257. concinnitas


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trabalho, algo que não se pode conceber fora de suas circunstâncias, fora do jogo que a anima sem comprová-la literalmente: algo que é, portanto, ao mesmo tempo e consubstancialmente, uma imagemato, estando compreendido que esse “ato” não se limita trivialmente apenas ao gesto da produção propriamente dita da imagem (o gesto da “tomada”), mas inclui também o ato de sua recepção e de sua contemplação. A fotografia, em suma, como inseparável de toda a sua enunciação, como experiência de imagem, como objeto totalmente pragmático. Vê-se com isso o quanto esse meio (...) implica (...) a questão do sujeito, e mais especialmente do sujeito em processo.16 Sob a égide do paradigma fotográfico, uma série de propostas artísticas emerge entre as décadas de 1960 e 1970. Focalizam o ato, o processo em detrimento do produto que, então, passa a constituir-se como um traço desse processo. Como salienta Philippe Dubois: “O ato (fotográfico ou pictural) tornou-se absolutamente essencial; a obra é apenas um traço seu”.17 Na medida em que a obra se configura como um vestígio do ato de constituição da própria obra, interessa-nos perguntar: o que tais vestígios pretendem alcançar? Cristina Freire aloja sob o termo “conceitualismo” produções que compartilhavam de determinadas estratégias, tais como: preponderância da idéia na elaboração das obras, precariedade e transitoriedade dos meios, atitude crítica frente às instituições artísticas, assim como as particularidades nas formas de circulação e recepção.18 Como mínimo denominador comum reunindo essas produções podemos perceber uma postura crítica que intentava insurgir-se contra o estatuto da arte como valor de troca e, portanto, como mercadoria. Nesse sentido, gostaria de sugerir, como vetor comum a orientar essa produção, tão rica em matizes, um apontamento em direção à ênfase na experiência, de modo a assinalar que a arte enquanto valor não se restringe ao objeto, insinuando um alhures. Os vestígios do processo parecem sublinhar a preponderância do ato de produção em relação ao produto. A relação entre obra e documento, tematizada por estes trabalhos, evocava constantemente a pergunta: onde está a arte? A fotografia de ações configura objetos de arte em si mesmos, ou se refere a outro

16 Dubois, 2001, p. 15, grifos do autor. 17 Dubois, 2001, p. 257. 18 Freire, 1999, p. 15-16. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

lugar em que a arte poderia ser encontrada? Este enigma é insolúvel em termos de uma lógica que se fie na primazia do objeto de arte colecionável, mas o resultado disto não deveria ser a frustração devida à incapacidade de determinar que aqui, e não ali, repousa a arte. As opções não são mutuamente excludentes, e, se existe uma lição nisto, é a de que esta questão 173


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tinha se tornado irrelevante. A ausência de um objeto da galeria claramente identificável como “obra de arte” incentiva a noção de que o que nós, observadores, deveríamos fazer é decidir olhar os fenômenos do mundo de um modo “artístico”. Assim, estaríamos fazendo a nós mesmos a pergunta: “Suponhamos que eu olhe para isto como se fosse arte. O que, então, isto poderia significar para mim?”19 Suponhamos que eu olhe para aquele objeto ordinário como se fosse arte é a pergunta que o readymade sugere, ao operar evidenciando o intervalo entre as palavras e as coisas. Tal questão nos convida a “nos movimentarmos para lá e para cá”. Olhar para uma pá de neve, um porta-garrafas ou mesmo para este texto, como se fosse arte, implica desalojá-los do lugar confortável no qual os reconhecemos e nos convida a reordená-los. Mas, de onde falamos, então?

Rubens Mano. Vazadores (apresentado na 25a Bienal de São Paulo), 2002

O que gostaria de sugerir é que tal operação pode ser apreendida como uma estratégia que focaliza o ato de nomeação, também entendido como a prática de produção de sentidos que desloca os objetos de seus horizontes de valores ordinários e os redescreve. Nesse sentido, a suposta aridez da experiência estética promovida pelo readymade é revertida em função do que insinua como horizonte do possível.

Por outros espaços Revisitar a pergunta suscitada pelo readymade: “isto é arte?” pode nos conduzir a redescrever a resposta conseqüente: “arte é isto”. Pensar a arte como um ato de designação aponta para o intervalo entre as palavras e as coisas, e assim assinala o artifício dessa suposta relação natural, fertilizando um solo de possibilidades para apostas estéticas contemporâneas. Nesse terreno intersticial onde a dúvida é protagonista, o trabalho do artista brasileiro Rubens Mano, apresentado na 25a Bienal de São Paulo, é bastante eloqüente. Em Vazadores, a caixilharia do prédio da Bienal projetava-se para fora, conformando uma outra via de entrada/saída que consistia numa passagem “secreta”, dada a inexistência de sinalização que desvendasse a presença do trabalho, que se propunha, portanto, como da ordem de um enigma. Esta passagem permitia um acesso não oficial à Bienal e se assemelhava a um corredor em cujas extremidades havia duas portas de vidro, sem fechadura ou maçanetas, franqueando a entrada ou saída do prédio. O projeto se colocava então na fronteira entre o espaço interior e exterior, permitindo uma vazão, um fluxo contínuo entre vários movimentos, vários acontecimentos. O fato é que não havia qualquer indicação desta passagem, ou qualquer placa de identificação, e isto permitia discutir a permanência de uma 174

19 Archer, 2001, p. 94-95. concinnitas


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“visualidade condicionada” nas reflexões relativas à produção artística contemporânea, ou a existência de outros repertórios pautados nas experiências vividas nas grandes cidades (...) Ao mesmo tempo que creditava à percepção do visitante uma experiência cuja realização dependia do movimento e da projeção do seu próprio corpo, a pessoa que se aproximasse curiosamente da estrutura, mesmo sem ter a menor idéia do que se tratava, poderia ocasionalmente acionar uma das portas de vidro e ter acesso ao interior deste “corredor” e, num segundo movimento, ao cruzar a outra porta, alcançar o lado de dentro ou de fora do edifício (...) O trabalho acabou trazendo também uma discussão sobre a acessibilidade e às várias restrições embutidas nos processos de difusão da arte mas, principalmente, o que estava sendo oferecido era a experiência da passagem, do atravessamento, da transposição e da proposição de outro fluxo.20 Alojado no limite preciso entre o interior e o exterior do prédio, circunscrito pelo espaço da dúvida (será isso um trabalho de arte? Arquitetura?), Vazadores sugere uma complexificação do conceito de site, tal como vem sendo proposto por trabalhos que lidam com a noção de site specificity, desde meados dos anos 60. Tais trabalhos se interessavam em equacionar uma relação específica entre o próprio trabalho e o espaço de sua apresentação ou inserção. Podese dizer que a noção de site specificity, inicialmente descrita como relativa a uma localização factual, orientava os trabalhos no sentido de uma intervenção em relação aos elementos físicos constituintes do espaço. Na medida em que a concepção de site amplia-se para um entendimento da arte como um lugar, ou seja, como um enquadramento cultural definido por suas instituições, também os trabalhos reorganizamse de modo a decodificar ou recodificar determinadas convenções, intervindo de modo a expor as operações ideologicamente motivadas que seriam eclipsadas pelo discurso de autonomia da arte. Mas o que Vazadores parece anunciar é uma concepção de site ainda mais capilarizada do que aquela estreitamente vinculada aos elementos físicos do espaço, ou aquela referida estritamente às instituições da arte. Uma concepção de site que encompassa tanto o espaço físico quanto o aparato institucional, quanto a dinâmica do envolvimento/ engajamento dos fruidores, analogamente ao trabalho de Gonzalez-Torres,

20 Mano, 2003, p. 71-72. Entrevista realizada em junho de 2002, por Helmut Batista, e originalmente publicada no quarto número do jornal Capacete. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

de modo a sinalizar, com isso, um alhures. Mas, se não o podemos situar de modo apriorístico, o que parece ser insinuado pelo trabalho, dada a inexistência de seu enquadramento enquanto tal, de que outro lugar nos fala Vazadores? 175


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No texto “Outros Espaços”, Foucault nos fala das heterotopias como lugares que se definiriam em função de certas relações de posicionamento: Há, inicialmente, as utopias. As utopias são os posicionamentos sem lugar real. São posicionamentos que mantêm com o espaço real da sociedade uma relação geral de analogia direta ou inversa. É a própria sociedade aperfeiçoada ou é o inverso da sociedade, mas, de qualquer forma, essas utopias são espaços que fundamentalmente são essencialmente irreais. Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na própria instituição da sociedade e que são espécies de contraposicionamentos, espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos, espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis. Esses lugares por serem absolutamente diferentes de todos os posicionamentos que eles refletem e dos quais eles falam, eu os chamarei, em oposição às utopias, de heterotopias.21 O conceito de heterotopia propõe a coexistência e interpenetração de territórios aparentemente irreconciliáveis e parece, portanto, acolher a operação de “justaposicão” proposta por Vazadores: uma passagem que se confunde com a arquitetura do edifício. Rubens Mano nomeia suas ações com a expressão “intervalo transitivo”, na qual o termo “intervalo” refere-se às qualidades silenciosas e fluidas dessas intervenções que se orientam no sentido de pensar a noção de lugar menos afim a uma primazia do espaço em proveito da assinalação de uma experiência espacial que se dá principalmente no tempo. Nesse sentido, a noção de transitividade parece se oferecer tanto à discussão da relação entre o artista e o espaço construído por sua ação quanto à intenção do trabalho em interpelar o leitor, convidando-o a deslocar-se da condição de usuário dos espaços urbanos para engajar-se como “perceptor”(termo empregado por Rubens Mano). Mano descreve a expressão “intervalo intransitivo”: Uma ação que procura se instalar nas fissuras dos fluxos e sistemas responsáveis pela constituição de determinado espaço, e ao mesmo tempo é capaz de suspender momentaneamente nossos já condicionados códigos perceptivos.22 Vazadores nos instrumentaliza para um entendimento mais expansivo da noção de site-specificity ao reiterar uma interdependência entre o 176

21 Foucault, 2001, p. 425. 22 Mano, 2003, p. 82. concinnitas


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modo como nos posicionamos diante do espaço construído e a construção do espaço que se opera por nossas ações. Assim, o trabalho contrapõese à utopia modernista de integração da arquitetura com seu contexto, sistematizando uma comunicação interior/exterior, a ser desvendada e acionada por um “perceptor”. Dado que “intervenção” define-se como mediação, intercessão, fronteira, podemos ler a transitividade à qual o trabalho alude, como se referindo tanto à disposição da ação do artista, que opera como um manipulador de signos, quanto à atenção que a noção de transitividade solicita do leitor para que este se deixe modificar pelo trabalho. Assim, Vazadores aproxima-se do conceito de heterotopia, na medida em que nos fala de lugares dos/nos quais é possível intervir, propondoos como “espaços reais nos quais nossas definições estão à disposição para serem apreendidas, nos quais um tipo de experimentação torna-se possível, invertendo papéis, criando novos”.23 Nessa perspectiva, ganha saliência a caracterização do trabalho artístico como um dispositivo no qual o artista, situado num pólo de produção, conforma mensagens enigmáticas endereçadas a esse lugar denominado público, espectador, leitor, etc., e que, aqui, gostaria de propor chamarmos de sujeito. Vazadores executa uma intervenção que possibilita ao leitor poderosas conexões de sentido, sugere e sistematiza a existência de outras passagens, outras entradas e saídas possíveis, sublinhando que a nossa percepção da realidade é construída também pela disposição de nossa atenção. Sugere, na medida em que insinua a existência de inauditas passagens que demandam ser descobertas/produzidas, e sistematiza, na medida em que envida esforços para a consecução de uma passagem efetiva, de ordem pragmática. Desse modo, a coincidência entre a imagem do prédio e o funcionamento de uma passagem convida o leitor para o estabelecimento de uma relação diferenciada com as coisas que o cercam, incitando-o a posicionar-se em relação ao espaço no qual se insere. A obra, nessa perspectiva, consiste em sua própria descoberta e, desse ponto de vista, é o leitor o seu autor. Desse modo, o silêncio quanto à presença do trabalho parece ser peça fundamental no jogo proposto, estratégia que salienta os vínculos entre os componentes do circuito: instituição, curadoria, imprensa, monitoria, produção, artistas e público, de modo a convocar tais lugares em suas respectivas responsabilidades, configurando a qualidade de público do trabalho, pela interceptação de inúmeros lugares discursivos. 23 Rajchman, 2000, p. 76. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

Pode-se notar uma angulação sutilmente distinta das questões que motivavam um determinado fluxo de ações artísticas nos anos 70, alojados 177


Fabíola Silva Tasca

comumente sob a rubrica de “crítica institucional”. A atitude crítica, empreendida por Vazadores, não se restringe simplesmente a expor o aparato no qual o artista funciona, ao qual está enredado, pois, opera mobilizando todo o aparato na constituição desse “outro lugar”, sublinhando com esse deslocamento uma consciência da condição situada do artista como partícipe do jogo. Tal alojamento permite uma construção tática rumo à estruturação do trabalho, conduzindo nossa atenção para questões de ordem procedimental. Rubens Mano intenta que a descoberta e realização da experiência estejam condicionadas ao movimento e disponibilidade do leitor e, para tanto, opera recorrendo ao artifício de confundir a passagem com a arquitetura do prédio, sendo, dessa forma, muito hábil em provocar uma interpelação para o sujeito, sugerindo regiões insuspeitas da realidade. Evidencia-se com isso, a afirmação de Agnaldo Farias: A produção de novos sentidos, o interesse estético, não são coisas que se esgotam no objeto instituído como artístico (...) a arte é uma prerrogativa de quem olha, não necessariamente de quem faz.24 Essa afirmação corrobora a intenção aqui esboçada de sublinhar como algumas apostas estéticas contemporâneas se conduzem no sentido de interpelar o sujeito. Nessa via privilegiei a idéia de intervenção, quer entendida como o modus operandi de determinadas ações artísticas, quer entendida como o efeito dessas ações enquanto conformação de “outros espaços”. Tal idéia pode assim nos orientar a deslocamentos nesse terreno do impreciso onde “arte” e “vida” articulam-se magneticamente. Quanto às possibilidades para interlocuções dessa ordem, pode ser valioso nos determos num exercício de leitura para o qual as palavras de John Rajchman nos convidam: Poderia ser possível o tipo de pragmatismo voltado para coisas sendo feitas – no qual elas não são conhecidas, no qual quem somos ainda não está disponível para ser apreendido para a experimentação, na qual ainda não conhecemos quem ou o que somos no processo de nos tornarmos: é ainda possível ou útil pensar ou agir naquelas zonas nas quais as forças ainda não estão determinadas do pondo de vista do arquivo? Minha resposta à qual acrescento uma condição pragmática é – eu certamente gostaria que fosse assim – isto só será assim se nós o fizermos.25 Pensar em termos de coisas em seu fazer é o que a idéia de intervenção desenvolvida aqui deseja alcançar. 24 Farias, 1999, p. 44. 25 Rajchman, 2000, p. 86-87. 178

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A intervenção como meio – considerações sobre certas práticas artísticas contemporâneas

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Ernst Bloch

Hans Poelzig. Grosses Schauspielhaus, Berlim, 1919

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Educação formativa, manejo da forma, ornamento

Educação formativa, manejo da forma, ornamento Ernst Bloch* BLOCH, Ernst. “Formative Education, Engineering Form, Ornament” (tradução de Jane Newman e John Smith). In: LEACH, Neil (editor) Rethinking Architecture. A Reader in Cultural Theory. London; New York: Routledge, 1997, p. 43-50.

Parte um Levamos em conta, também, a forma de nossa circunvizinhança. Não só o homem faz o mundo, o mundo faz o homem. O homo faber e o homo fabricatus1 são igualmente verdadeiros; eles são dialeticamente relacionados. A maneira mesma pela qual uma cadeira nos compele a sentar — pelo menos ocasionalmente — tem efeito em nossa postura geral. Então, no que diz respeito à organização do mobiliário de um cômodo, por mais que diga algo a respeito do organizador, essa organização ao mesmo tempo contém, em sua forma, claramente tanto o organizador quanto seus convidados. Como se pode ver, por exemplo, na personalidade mais acessível e gregária que é expressa na abundância de acentos oferecida em seus cômodos. Por outro lado, ainda mais revelador é aquele cômodo que carece de cadeiras amplas, mas cujas paredes são ricamente decoradas com objects d’art. Conseqüentemente, o modo pelo qual os objetos preenchem um espaço em geral reflete os modos daqueles que os utilizam.

Parte dois Claro que esses modos nunca dependem só do gosto do índivíduo, do gosto de Fulano ou Sicrano. Nunca são tão individuais quanto o nome na Tradução Jason Campelo Revisão técnica Sheila Cabo Geraldo *Ernst Bloch (1885-1977) filósofo alemão cujo trabalho centrava-se no conceito de utopia. Publicou muitos livros, entre eles, O Espírito da Utopia e O Princípio Esperança. 1 O sabor da língua alemã é levemente perdido aqui, já que Bloch utiliza uma expressão proverbial da qual não encontramos equivalente em inglês. Infelizmente, a característica mescla existente no discurso de Bloch, com sua retórica de intrincadas dialéticas e coloquialismo, não pode ser realmente conduzida ao inglês levemente latino. 2 O texto foi escrito na segunda metade do século XX. Assim, o último século ao qual o autor se refere é o XIX. (NE) ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

porta, não obstante a presença de toques pessoais. A postura mais apropriada na cadeira, assim como a própria cadeira, é determinada pelo habitus social de toda uma era, isto é, pela classe desta era que determina os padrões e, não menos, pela imitação pequeno-burguesa de gostos da classe dominante. Essa relação é mais visível no que é perceptível na arquitetura interior e exterior, ambas dominadas pela imposição de formas daqueles que dominam. Essa relação, então, é aquilo a que se chama estilo. Até a primeira metade do último século,2 houve um estilo arquitetônico relativamente genuíno, ou seja, sem as decepções de uma classe que estabeleceu os padrões e suas criações falsas. De qualquer maneira, especialmente no domínio da decoração e construção de lares, o aparecimento da burguesia noveau riche trouxe com ela o declínio da 181


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artesania, tolerando a mediocridade e o engodo da reprodução mecânica. Essa tendência serviu a todo um empreendimento da contrafação, o qual pode ser chamado de Grüderzeit3 da história da arte. Somos um resultado direto desse período, apesar de ele mal ter decorrido em termos de era social. Ficou claro, por meio de seus produtos, como nosso chamado gosto artístico passou a ser tido como mau gosto. Nada deveria ser como era até então, quando o parvenu usava uma máscara falsa, quando havia coberturas em toda parte, abarrotadas com mobília renascentista, tetos excessivamente emplastrados e bustos modelados de Goethe e Schiller pelas redondezas. Isso tudo já é o suficiente; a não ser que tal kitsch abominável — a tapeçaria pequeno-burguesa da década de 1880, a alabarda com um minúsculo termômetro em seu cabo de pelúcia — seja assumido de maneira surreal, como uma caricatura inofensiva. É claro que tais coisas, à moda Werkbund-Bauhaus, não são e não estiveram em consideração; esses movimentos empenharam-se em se libertar de tal kitsch inclemente, estética e moralmente. Então, por volta da virada do século, e pelas décadas seguintes, ascendeu um ascetismo, parcialmente creditado ao socialismo, que vinha contra a fraude e a extravagância, um antiornamento absoluto. Sua intenção era a de educar acerca da forma puramente propositivo-funcional,4 fazendo assim, por exemplo, a mesa pura, severa, contra o ornamento arriscado e canceroso — conforme dito por Adolf Loos. De fato, todo ornamento tornou-se suspeito, condenado por ser arriscado e canceroso. Isso reforçou uma aversão geral à natureza epigonal e ao charme decadente do Grüdenzeit, uma aversão ao acessório naquela época já há muito desaparecido, estilos indiscriminadamente copiados que então perderam sua validade. “Mas nunca enfrentou as seguintes questões: a de o habitus social que inserira um encanto decadente do Grüdenzeit ter por si mesmo se tornado um tanto mais honesto; ou ainda a questão da honestidade livre de ornamento, de puro funcionalismo,5 ter sido ela mesma transformada em ninharia, que dissimulava a não tão grande honestidade das condições por trás dela. De qualquer maneira, desse tempo em diante castelos de fidalgos não funcionaram mais como modelos para refeitórios, e entradas para estações de trem no estilo Palladio não eram mais construídas para encobrir guichês de passagens e trilhos de trem.

Parte três De fato, desde que repentinamente houve maior demanda de realidade do que de aparência, fomos forçados a desistir de nossos souvenires mais queridos. A razão, de acordo com o puro propósito, foi a de que após todo este tempo uma colher suave ou algum outro implemento seria muito mais manuseável do que uma insensatamente decorada. Os 182

3 Literalmente “tempo fundador”; é esse o termo usado para se referir ao império germânico do final do século XIX, segundo o livro de Gordon A. Craig Germany: 1866-1945 (Oxford University Press, 1978, p. 79); “Assim chamado por causa de grandes manipuladores que “fundaram” gigantescos empreendimentos com um pouco mais que um plano num papel e levaram milhões de alemães a uma frenética dança em volta da estátua do deus da cobiça que terminou em exaustão e, para muitos, em ruína financeira”. O termo é similar ao “Wilhelmismus” do vitoriano. 4 “Educação”, aqui, traduz-se como Erziehung, palavra comumente utilizada para o sentido de educação escolar. “forma propositivo-funcional” traduz-se como “Zweckform” (literalmente “propósito-forma”), que por toda parte é traduzida como “funcionalismo”. 5 Funcionalismo aqui se escreve Zweckform. concinnitas


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pequenos aparelhos estão lá precisamente para ser úteis, possibilitar o menor esforço, eles mesmos e sua própria forma simples romperam com a ornamentação. Naturalmente, a clareza ‘honesta’ foi louvada acima de tudo nessas deserções, e o foi desde as cadeiras de aço inoxidável puras até interiores sem detalhes de acabamento. Ainda assim é notável que decorações completamente ornamentais, como os tapetes orientais, sejam colocados em primeiro plano, com especial deleite, contra segundo plano com tal limpidez. O ‘honesto’ era o trunfo desde o começo do Werkbund, mesmo que sua nudez chamasse atenção para si e exigisse que Kilims, Kirmans e Kazaks o disfarçassem. Ainda assim, mesmo garantindo que esse ascetismo, essa pureza deliberada sem falsas aparências seja autoconsistente, persiste a questão: o que esse tipo de honestidade — ou mesmo ‘nova objetividade’6 — significa em termos reais? Ou seja, o que significa em termos de uma vida social menos clara e talvez conscientemente opaca? A obscuridade foi mantida, mesmo enquanto uma nova clarté era criada fora do domínio das artes técnicas, com suas ninharias e luz obscurescente. Claudel uma vez cantou a nova clarté, “Por entre ondas de luz divina/o mestre planejadamente dispõe/uma armação de pedra qual filtro/concedendo ao construto inteiro a água da pérola”. Ainda aí — aliás, precisamente aí — os habitantes, apesar de belamente iluminados nessa transparência, não podiam ainda descobrir sua nova humanidade de fato, nem mesmo a antiga. Pois em especial no espaço exterior construído da arquitetura as formas de vida preexistentes nublavam a água da pérola não só em um sentido social mais estreito, mas também tecnologicamente. O ritmo acelerado, o desejo de quebrar todos os recordes e a incansável aniquilação da interação humana, tudo isso introduziu uma problematização sem precedentes na clarté enfática do próprio Lichtstadt (cidade radiante). Foram projetados muito verde, espaço livre, higiene, panorama, serenidade e dignidade visível. Porém, o tempo e, novamente, as condições dentro de seus limites — e dos que estavam fora deles — não se conformaram aos mesmos ideais. A arquitetura não poderia estabelecer sozinha um pequeno enclave de inabitabilidade concretizada. O ritmo do trabalho e de seu trânsito, a objetificação dos meios — precisamente ao dissociá-los de qualquer propósito, fim, sentido e uso 6 O movimento Neue Sachlichkeit, uma das principais tendências da arte alemã do começo do século XX, é comumente traduzido como “Nova Objetividade”. A palavra sachlich, de qualquer maneira, carrega uma série de conotações. Além de sua ênfase na “coisa” (Sache), ela também encerra um conjunto de conotações, como sendo “fato objetivo”, ou “realista”. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

humano — transformaram prodigamente nossas cidades em perigosos pesadelos. Em nossas paisagens urbanas transformadas, o homem permaneceu — ou mais precisamente, se tornou — no máximo periférico à medida das coisas. As contradições estão profundamente escondidas. Nenhum planejamento humanitário, ou mera regulação de trabalho, conseguiu ainda administrar o caos do tráfego; sem mencionar a 183


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existência de cupim nas pequenas casas pré-fabricadas. Doxiadis, urbanista moderno que não é um reacionário romântico, dá testemunho em seu livro Architecture in Transition: arranha-céus monstruosos e esquematicamente rígidos se lançam para fora do mar enfurecido de estanho envernizado. Essa vida e seu espaço construído são clara e dolorosamente distantes da clarté humanitária uma vez pretendida por Le Corbusier para sua ‘nova Attica’, construída com aço, vidro e luz. E mais uma vez, no domínio da alienação geral, onde limpidez é apenas uma ideologia de vacuidade monótona, justamente a forma 7 de implementos e construções, por proposta, perseguida negligencia cada vez mais toda diferenciação incluída em distinguir formações de propósito.8 As formas não são mais diferenciadas humanamente, justas ao propósito: bangalô, aeroporto (menos rodovia), teatro, universidade, açougue — uniformidade conferida à forma dominante da caixa de vidro. Um preço inquestionavelmente alto tem sido pago a este tipo de limpidez em prol de sua dissociação da miscelânea kitsch decorativa à Gründerzeit: monotonia geométrica. Alienada da intenção, aliada à subnutrição da imaginação e à extrema auto-alienação, tudo representado por essa frieza, uma não-aura vazia.

Parte quatro Desse panorama eleva-se outra posição, outra postura. Outras idéias começam a vir à mente. Há pouco inferiu-se que o Gründerzeit ainda não havia sido substituído já que ele ainda serve como realce necessário, ainda lhe é permitido ditar a indigência de qualquer opulência para forçar a reação hipócrita da nudez total. Porém, essa já não é mais tarefa da arquitetura tal como era para Loos, quando se fazia necessária uma medicina mentis urgente contra os violentos cânceres e cicatrizes. Então ele de fato era, e provavelmente continua sendo, um remédio necessário em outros lugares contra o Grüderzeit vermelho e seu correspondente estilo stalinista. E ainda algo mais é válido, como a sentença publicada há 40 anos em The Spirit of Utopia, “o fórceps deve ser suave, mas nunca como pegadores de açúcar”.9 Isso realmente é válido para todos os fórceps: o implemento estritamente funcional10 nos serve e emancipa melhor só quando é livre de decorações. Além disso, a arte em geral não está ali para decorar: ela é, em princípio, boa demais para isso. Tão correta é essa afirmação, que a arte foi sendo liberada dessa aplicação decorativa meramente faustosa. Contudo, essa asserção nada tem em comum com a aplicação da pureza do fórceps à arquitetura de interiores e exteriores, a qual só serve para elevar a 184

7 “Forma”, aqui, é escrita como Gestalt, uma palavra um pouco mais neutra que Bildung. “Propostamente” é zweckmässig, “de acordo com a proposta ou fim da coisa”. 8 “Formações de propósito”, escreve-se Zweckgestaltung. 9 Perde-se aqui o trocadilho. “Fórceps” em alemão é Geburtszangen, e “pegador de açúcar” é Zuckerzangen. 10 “Funcional”, aqui, aparece como nützlich, ou seja, “prático, útil”. concinnitas


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depravação da imaginação ornamental, assim como para justificar os papelões de ovos ou caixas de vidros. E precisamos ser lembrados e avisados objetivamente várias vezes: circunstâncias não permitem a extensão e manutenção geral da pureza sanitária do mero funcionalismo.11 Tal pureza é, socialmente, um tipo de limpidez, e segue sendo uma cortina de fumaça que distrai e engana. Não sem razão ela ocasionalmente juntou forças com outras artes fora da arquitetura que também se empenhavam em prol da suavidade [simplicidade] do neoclassicismo, como se sua regularidade externa justificasse, de uma vez por todas, a falta de imaginação. É claro que é verdade que o classicismo genuíno, desde os tempos mais nobres da simplicidade e da serena grandeza,12 não era provido de fecundidade específica no que diz respeito a ornamentos. Agora, percebe-se uma mudança de papéis, acompanhando a geometrização supostamente pura, aparecendo em uma lacuna junto com a morte dos ornamentos artificialmente avançada. “Conde, a morte de Mortimer foi para vós de verdadeira conveniência”. Essa é uma frase da peça Maria Stuart; o mesmo também é verdade, mutatis mutandis, no que diz respeito à exultação em favor da morte do ornamento e à falta de imaginação sinteticamente fabricada. Eis que já se disse o suficiente a respeito dos refugos ornamentais. Elementos singulares a despeito de tudo mais, em especial quando comparados à floresta de encantada precisão dos primitivos, à Ásia oriental, aos islâmicos, góticos ou à arte barroca. Porém, os membros desse corpo seriamente paralisado poderão ser algum dia revividos? Será que uma apreensão coxa não pode ser ainda mais terrível e extraordinária, uma vez que o problema já atingiu a outrora florescente e abrangente área da arte da arquitetura? O problema é tão sério quanto urgente: talvez possa ser tomado como um leve sinal de melhora que o supersticioso tabu do ornamento já não empunha poder tão absoluto. Pelo menos não da maneira que ocorria nos dias de Loos, quando desfrutava de força total e era empregado, embora exageradamente, como uma medicina mentis. Um número maior de arquitetos pode não mais conceber-se alegremente escusado de cumprir com as demandas da imaginação ornamental arquitetônica. As formações de suas individualidades poderão finalmente se entregar à onda suspeita 11 “Funcionalismo” novamente como Zweckform. 12 A frase é extraída da obra de Johann Joachim Winkelmann, “Thoughts on the Imitation of Greek Painting and Sculpture” (1755). Ela caracteriza a natureza fundamental da arte grega e foi um dos guias do classicismo alemão do final do século XVIII e começo do XIX. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

e aos contornos de girassol da art noveau, na qual van de Velde teve suas origens. Os membros, paralisados artificialmente por tanto tempo, estão revivendo devagar nas ondulantes escadarias interiores da Sala Filarmônica de Berlim de Scharoun; o movimento começara ainda antes, de maneira completamente diferente, nos contornos externos dos prédios de Frank Lloyd Wright. Nesses exemplos, as coações do trabalho sem finalidade e 185


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da alienação existentes no capitalismo tardio são confrontadas com alguma coisa significantemente nova e diferente, a transição para além do caráter transitório de nossa existência. Com certeza, esses são simples começos, constantemente ameaçados, muito freqüentemente transformados em formas calcificadas; um retorno temporário de identidade toma posse, e a arquitetura, pela primeira vez, torna-se uma mera tela sem rosto, uma antiflor. Entretanto — e isto é de fato impressionante —, como é possível ao mesmo tempo, na formação do mesmo espaço, que cinco degraus de uma pálida caixa de vidro, a pintura contemporânea e escultura tenham se prestado a caminhos completamente diferentes, não mais partilhando as mesmas vias? Não se trata aqui de seus calibres especiais — que, em alguns casos, foi extremamente alto —, mas do contraste surpreendente vis à vis entre a imaginação arquitetônica subnutrida e a ousadia, a extravagância daqueles outros gêneros como um todo. Mesmo uma busca rápida dos altos e baixos13 de cada movimento nos leva inevitavelmente a uma viagem aberta, não assinalada e, portanto, ainda não crítica e não criticada, para a imaginação. Uma jornada a partir dos dias do ‘Blauer Reiter’ (1912), tanto antes quanto depois, de Kandinsky, Franz Marc, de Chirico, Picasso, Chagall, Klee, Max Ernst, de Archipenko, Boccioni e, nos dias de hoje, de Henry Moore, Giacometti — para nomearmos apenas alguns contrastes. Eles recuperaram uma flora exótica de sua jornada, uma imaginação ornamental. Esses artistas evitaram, acima de tudo, o perigo do talento detestavelmente sagaz — o qual só produzira a monotonia da forma. De qualquer jeito, a sincronia é singular: uma arquitetura que precisava de asas, a partir daquelas estruturas sempiternas — os plúmbeos prédios comerciais (que mesmo no expressionismo mostraram sinais, feições surrealistas, de seu vôo para rumo aos mundos altos, alternativos e subterrâneos) —, e paralelamente, artes plásticas e pictóricas que poderiam ter simplesmente continuado com algum lastro — dada a enfática força repulsiva que sempre as impulsionou para o alto e avante. Então, os esqueletos revelados de nossa arquitetura dividem espaço com a extravagância literal de outras belas artes, ainda formativas,14 porém.

Parte cinco Mas, agora, essa coincidência temporal entre gelo e fogo é simplesmente casual? Afinal de contas, em geral existe realmente uma conexão entre a purificação sóbria e o lugar liberado por razões um tanto diferentes. Algo não muito distinto da relação entre a libertação do não essencial, tornada possível pela automatização tecnológica, e pelo ócio alcançado mediante o essencial. Ainda assim, se olharmos com mais atenção para o caso que temos em vista, parece que a cisão 186

13 A tradução para “altos e baixos” perde o trocadilho e a criatividade do alemão Hoch und Tiefstaplerisches, de modo que Hochstapler é um alto-artista, enquanto Tiefstaplerisch, uma invenção de Bloch, seria, digamos, artistas altos e baixos. 14 “Belas artes, porém formativas” são as noch bildende Künste chamadas, um pouco mais acima, pelos seus nomes individuais de “pictóricas e plásticas”. concinnitas


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entre simples cubículos habitáveis15 e aquilo que em outrora permitiu que essas construções participassem do contexto das belas artes (aquelas que formam o essencial)16 é uma cisão fora de contexto, sem conexão. Mas essa cisão, ou melhor, será que essa cisão permanece sem mediação — se levarmos em conta aqueles sinais que podem ser agrupados sob o lema do ‘marchar separadamente mas em prol de uma forma unida’ (mesmo que estes sinais tenham sido freqüentemente indesejados e com certeza não tenham sido utilizados, acima de tudo de maneira arquitetônica)?17 Isso poderia formar uma possível — e certamente ainda não consciente — conspiração que torna a coincidência temporal entre a máquina habitacional e as artes plásticas e pictóricas, no fim, mais do que mero acaso. A feição “Terminal de Trem” já desapareceu como slogan; mas a transição mais interna, para unidade das belas artes, como um todo, ainda está inumada e obscura — outro fator contribuinte para a nudez ornamental da arquitetura. Mas de todas as pessoas — realmente, nem de todas — Klee estava em Bauhaus; Lenbach certamente nunca pôde estar lá. Ou, como outro sinal de rapprochement, uma pintura de Chagall posta-se de maneira inapropriada — apesar de não ser um corpo de todo estranho — no salão de vidro do novo Frankfurt Theatre. E esse é possivelmente um lar mais autêntico para essa obra do que a rigidez epigonal de uma velha igreja memorial Kaiser Wilhelm. Acima de tudo, uma impressionante simultaneidade: no meio dos primeiros prédios funcionalistas18 inaugura-se o Folkwang Museum em Essen, completamente abarrotado de mostras de expressionismos — claro que só em companhia de arte primitiva e atávica, à parte, de qualquer forma, de novas formas e funções metalúrgicas. Não obstante, para compensar, formas puramente tecnológicas, em especial metais, estão se estendendo cada vez mais rumo à escultura contemporânea; só precisamos pensar nas estátuas ocas perfuradas de bronze de Henry Moore, ou na refinada mecânica de um escultor, ainda que “literário”, como Zadkin. Em não menor grau, conforme corretamente enfatizou Hans Curjel, a rebelião na forma, promovida por Picasso, Kandinsky, Boccioni, Kirchner, etc., exerceu influência logo nas origens, em Werkbund 15 “Cubículos habitáveis” torna-se ainda mais drástico em alemão: Wohnmaschinen, literalmente, “máquinas habitáveis”. 16 “Belas artes (aquelas que formam o essencial)” perde de alguma maneira o trocadilho, nomeadamente, bildende Künste dês Wesentlichen, ou seja, “formando (=belas) artes do essencial” 17 Novamente um slogan ou expressão proverbial, que literalmente pode ser traduzido como “marche separado, ataque junto”. 18 “Funcionalistas” novamente como Zweckform. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

e Bauhaus, na arquitetura que só atentava para o técnico. Todavia, o efeito tem-se limitado à construção estrutural e dificilmente pode-se dizer que estimulou uma renascença do ornamento, exceto em alguns casos aqui e ali, em que a simples reforma evolutiva produziu reversos revolucionários. Isso aconteceu até mesmo na via literária; como, por exemplo, na influência de Scheerbart em Bruno Taut. Pelo menos essa nova pintura estrutural realmente engendrou uma inclinação ao que podemos chamar de construção qualitativa (na qualidade de oposto a 187


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quantitativa) — a tal ponto que, apesar de o esforço nunca ter sido continuado, e de fato não foi nem sequer erradicado, criaturas verdadeiramente vivas intervinham e saíam das linhas da prancha de desenho, de uma geometria que não queria permanecer inorgânica. Houve uns poucos sinais esperançosos, porém, por mais que possam ser vistos claramente — como nas figuras convencionais do high-rise, e no mais novo da nova Brasília, eles ainda não recuperaram o que foi perdido: as carícias de uma Musa. A justaposição da pura tecnologia na arquitetura e do chagalliano restante nas belas artes isoladas19 nunca sobrepujou, por um lado, a mera contigüidade da habilidade destas últimas para facilitar e, por outro, seu poder de essência.20

Parte seis Isso tudo deve permanecer dessa maneira? A formação21 desassociada nunca mais será uma aliada? A arquitetura não precisa, por si só, deixar de ser arte, deixar de florescer, de fato, deixar de ser o que foi outrora? Não há dúvida de que a arquitetura alcançou feitos maravilhosos em termos de tecnologia de engenharia; mas imaginação formativa é uma outra coisa. Essa forma de imaginação é mutável; seus aspectos sempre novos são um experimento conosco, não apenas com o esqueleto de um prédio ou mesmo com o prédio como tal. A presente dicotomia, tendo, de um lado, a emancipação mecânica e sua extensão para a arquitetura, e, por outro, a abundância expressiva liberada nos domínios da pintura e escultura, não deve ser feita como algo absoluto, sem função, insuperável. “Marchando separadamente, mas rumo a um fronte conjunto”: na era da transição, em nossas produções verdadeiramente formativas,22 ou seja, progressivas, tal não se deve degenerar em um mero endurecimento das diferenças. A própria aparência simultânea da engenharia e formas expressivas indica um tertium, uma unidade mais fundamental, subjacente, a essa época inacabada. Suas feições de “estação de trem” provam ser ao mesmo tempo tentadoras e abertas, em termos de uma possibilidade produtiva; ambas ao mesmo tempo convergindo e experimentando com as duas facções das belas artes23 — do que a arquitetura não quer nunca se esquecer: de que é uma arte. Essa feição de êxodo,24 como tal capaz de unir apenas via um processo de denominador comum utópico, oferece pelo menos o conjunto — de jeito nenhum tranqüilo — que vai de todas as formas classicistas à ornamentação germinante. Mas mesmo na esfera das formações 25 pictóricas, plásticas e arquitetônicas, todas as figuras e figurinismos, todas as formas ornamentais — tanto como detalhes quanto como conjuntos — ainda são, com alguns excertos, partidas, vôos para fora 188

19 Belas artes novamente como bildende Künste. 20 Isso parece ser um avesso da posição na Parte Cinco e, abaixo, no início da Parte Seis. Em ambos ele infere que a tecnologia (princípios funcionalistas, conforme aplicados à arquitetura) facilitou a vida, diminuiu o fardo do não essencial e daí deu espaço ao essencial (belas artes e ornamentação). Aqui ele associou a emancipação com as belas artes (Chagallianas), e a preocupação com o essencial da arquitetura. 21 “Formação” é, aqui, novamente o substantivo Bilden. 22 “Formativas” é o adjetivo bildend, a partir do verbo (literalmente “formante”). 23 “Belas artes”, aqui e na próxima linha, bildende Kunst. 24 “Esta feição de êxodo” é, em alemão, dieses Exodushaffe, literalmente: esta “Exodonescência” 25 “Formações”, novamente o substantivo Bilden. concinnitas


Educação formativa, manejo da forma, ornamento

delas mesmas. 26 Espaços interiores facilmente transportáveis, anticasernas urbanas (uma idéia inspirada dos navios); pontes rotativas — adequadamente apelidadas “corajosas” —; cifras pictóricas e esculturais colocadas como linhas traçadas sobre coisas inacabadas: tudo isso tocou o ponto comum da orientação, inabitabilidade do fronte em que nos encontramos. E apenas isso poderia, novamente, instituirse como uma verdadeira honestidade de formação, uma verdadeira justiça feita à função (mas com horizontes). Ambas deram origem, em primeiro lugar, ao treinamento nas artes técnicas modernas, e ambas, apesar dos avisos insistentes da parte da pintura e escultura (desde os dias do Blauer Reiter), têm sido deixadas de lado, graças ao sacrificio della fantasia.

Parte sete A esta altura, é especialmente apropriado atirarmos muito no alvo de modo a acertá-lo. Beleza e forma são mais do que nobre simplicidade e esplendor sereno: sem dúvida, esse é um ponto em jogo nesta discussão. Mas ao se tentar educar por meio do agradável (portanto, em última análise, mediante formas fixas classicistas), devese esquecer que foram justamente os nazistas que construíram e pintaram de tal maneira. Também deve-se considerar o jovem Goethe, em frente à catedral de Strasburg, em pleno classicismo (certamente o genuíno), que com certeza não tinha conhecimento da pureza dos arranha-céus de vidro de Nova York. E, de fato, a beleza expressa à moda Greque como algo único não existia para ele. Com certeza Goethe não considerava o belo via de acesso para (ou mesmo fronteiriça a) um único princípio qualquer de arte. Ao contrário, o jovem Goethe descobriu um surpreendente princípio que se arqueou sobre a lacuna existente entre a ainda mal conhecida arte primitiva e o gótico. Ele formulou destemidamente esta vasta proposta: “há muito a arte é produzida27 antes de ser bela, ainda que isso seja verdade, a grande arte é com freqüência mais verdadeira e bela do que o belo em si”. Essa declaração, feita por um homem então ainda jovem, apareceu 26 “Exceções, vôos para fora delas mesmas”, é Auszugsgestalten ihrer selbst. Auszug significa excerto ou extrato, mas também é a germanização da palavra Êxodo (a fuga do Egito é chamada Auszug). 27 “É produzida” é novamente a forma progressiva de bilder (bildend). É claro que para Goethe, um dos fundadores da tradição Bildungsroman com seu Wilhelm Meister, bilden era um conceito-chave (estético). ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

em um período que foi revolucionário, ou seja, de transição transcendente, quando a estética guarnecia o humanum. Hoje em dia, a sobrearqueada categoria do gótico primitivo tornou-se auto-evidente: expandiu-se e se tornou grande por meio de sua recepção solidária na pintura e escultura modernas, que a estenderam para circundar formas suspensas e espaço elasticamente dinâmico. Passou a ser um estilo inteiramente ornamental tanto em pintura quanto em escultura: um êxodo, à medida que aparece. Daí a conclusão: ele, Goethe, exercendo 189


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uma influência rebelde radicalmente mais diferente que a experimentada pelos primeiros períodos de arte tecnológica moderna, reconcilia a arquitetura não com a morte da imaginação, unsque ad finem, e sim com as outras belas artes,28 aquelas que são realmente qualificadas. Finalmente, em seguida, a arquitetura poderia mais uma vez cingir o pictórico e o plástico, tornar-se figura principal nas “decorações” ainda “mascaradas de nossa forma mais recôndita”, da mesma maneira já experimentada com a pintura e escultura de Kandinsky e Archipenko. Repetidas vezes, tudo isso volta ao problema do novo ornamento, do excesso escultural in nuce, quando floresce nos detalhes de um prédio, in entelechia, quando caracteriza o princípio que ronda toda a figura do prédio. A magnitude da perda escultural da arquitetura pode ser precisamente medida pela vacuidade e pela falta de sua força ornamental. Ainda há (e perdura) uma abrupta quebra de contrato que historicamente nunca foi efetuada ou acabada, uma lacuna na entelechia (de maneira alguma consumada) segundo a qual a arquitetura foi concebida. Ainda assim, essa quebra pode ou não permanecer sem mediação; Vitrúvio, ao contrário, ao postular a unidade entre a utilitas e a venustas (agora de inteireza transparente)29 convoca a arquitetura ao fronte de maneira mais exigente que nunca — para reassumir sua posição ainda recuperável como a “coroa urbana” (para usarmos uma versão conceitualmente modificada da expressão de Bruno Taut) de todas as belas e formativas artes óticas.30

28 A oposição aqui se dá entre Werkkunst (“arte de trabalho”, “arte técnica”) e bildende Kunst. 29 Essa declaração entre parênteses mantém-se com uma relação não muito clara com a “unidade postulada”, apesar de ser provavelmente, em aposição, uma reformulação contemporânea (utilitas – transparência, claridade; venustas – completude, riqueza). 30 Novamente, artes formativas como bildende Künste. 190

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Olho d´água: gestualidade e autoficções na arte de Efrain Almeida

Olho d´água: gestualidade e autoficções na arte de Efrain Almeida Marcelo Campos* A exposição Olho d´água, individual de Efrain Almeida, aconteceu entre os dias 13 de setembro e 28 de outubro de 2006, na Galeria Graça Brandão, em Lisboa, Portugal. O espaço foi dividido em três núcleos que se integravam num único ambiente. Havia esculturas em madeira, desenhos feitos com carimbos e pintura de giz sobre as paredes. O título da exposição faz referência ao pequeno lugarejo onde o artista nasceu – Olho d’água dos Facundos (Facundos, nome de família da qual Efrain descende) – no município de Boa Viagem, interior do Ceará. Com isso, temos o mote inicial para entender as imagens apresentadas. Efrain, ao longo de sua carreira, ativa os vínculos com a memória e a autobiografia. Ao mesmo tempo, a noção de “escultura” é reelaborada, já que o artista cria um sistema Efrain Almeida. Instalação, 2006 Foto: André Carvalho

bastante particular de elaboração das peças. Muitas vezes, a madeira é utilizada num processo de montagem, com vários elementos recortados e agregados, como pinos e colas, para a obtenção da unidade final. Os elementos materiais ganham valor construtivo, abandonando pouco a pouco a escultura tradicional, o entalhe direto. Faz-se a recodificação de significados e conceitos que acionam, para além da manufatura, a “sobreidade” (aboutness) da arte. 1 A artesania recebe uma visão espacializada, arquitetural, transformando-se em elemento instalativo, em adição de unidades. Aquilo que poderia ser considerado linguagem banal ganha o valor conceitual próprio da arte contemporânea. A visão espacial aparece, em Olho d´água, no ambiente, cujas paredes foram pintadas de vermelho e desenhadas com giz branco. Efrain ativa o gesto, riscando, minuciosamente, um desenho que nos remete a uma vegetação com espinhos, como a coroa do martírio cristão. O vermelho da parede agrega a dramaticidade necessária

*Marcelo Campos é professor adjunto do Instituto de Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Doutor em Artes Visuais pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Curador independente. 1 “Propriedade que têm todas as obras de arte de ser sobre algo, de concernir a, tratar de, referir-se a algo”. Danto, Arthur. Arte y significado. In _______ La Madonna del futuro: ensayos em un mundo del arte plural, Buenos Aires: Paidós, 2003, p. 25. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

para que tais elementos não se percam numa gestualidade abstrata. Da mesma forma que ativamos o caráter religioso da imagem, também o perdemos, pois Efrain espalha sobre as mesmas paredes vermelhas um conjunto de desenhos feito com carimbos, apresentando imagens de pássaros. Os carimbos e o desenho a giz deflagram a importância da imediaticidade e da efemeridade nos trabalhos da exposição. Nas transcrições dos desenhos em carimbos, dota-se cada gesto, cada unidade, de uma condição original, embora oriundos de uma mesma 191


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matriz. É o gesto que gera a origininalidade e não a imagem. Efrain retoma na reprodução aquilo que Benjamin havia decretado como ausente na reprodutibilidade: “o aqui e agora da arte”. Cada

Efrain Almeida. Cisne, 2006 Foto: André Carvalho

gestualidade tem sua “existência única”,2 tanto nos carimbos quanto nos riscos do giz sobre as paredes. A mistificação da imagem vai-se esvaindo em outras possibilidades interpretativas. Numa espécie de umbral entre os dois ambientes, Efrain coloca, de maneira deslocada, a escultura de um gato (Raimundão) sobre um banco de madeira. Tal qual numa imagem de fábula, o gato parece observar os pássaros na parede, preparando o momento de abocanhá-los. A força dessa escultura predomina no espaço e pode ser comparada ao lugar do espectador. Raimundão espreita a exposição – da mesma forma que representa os visitantes, como espectadores do cubo branco – indagativo, perplexo, prudente.3 Somos, todos, deslocados diante da rede de significados da arte que nos torna intrusos, visitantes inesperados.4 Numa relação antropofágica, tal qual Raimundão, nos posicionamos à espreita, à espera, ávidos pela deglutição. 192

2 Benjamin, Walter, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In _______. Obras escolhidas, V. 1. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura, São Paulo: Brasiliense, 1996, p. 166s. 3 O´Doherty, Brian. No interior do cubo branco: a ideologia do espaço da arte. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 37. 4 Idem, ibidem, p. 69. concinnitas


Olho d´água: gestualidade e autoficções na arte de Efrain Almeida

No outro núcleo, um conjunto de 31 pintinhos esculpidos em madeira está espalhado, formando um ambiente brejeiro, uma cena de quintal. A esfera privada da instalação se expõe para deleite público, coletivo. Aquilo que parece memória encarna-se como ficção, fábula, já que por mais memorialista, algo escapa nessa tradução temporal. O passado jamais será resgatado. Rememora-se um ambiente familiar que se perdeu (será que um dia existiu?). Essa mediatização transforma recordações em linguagem, linguagem em construção ficcional, pois na expressão do sujeito, a presença do real “será por procuração (as marcas expressivas do artista, os traços indiciais da mão)”.5 Não se crê, aqui, num eu originário, cuja tradução se materializa nos objetos, mas, antes, em construções autobiográficas, mais bem definidas pelo termo autoficções. A arte, então, serve de âncora para sustentar desejos cambiantes, saudades, solidão, no olhar de um menino que se projeta para ser devorado, aceitando a perversidade do espectador – oferecendo-nos, com isso, imagens pastoris que estão, a partir dali, destruídas, destituídas do lugar idílico da memória para serem consumidas como discurso, como retórica.

5 Foster, Hal. A falácia expressiva. In _______. Recodificação: arte, espetáculo, política cultural. São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996, p. 92. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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Leila Danziger

Philippe de Champaigne (atribuição). Vanité ou Allegorie de La Vie Humaine, Óleo s/tela, 28 x 37cm, primeira metade do século XVII

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Séculos de melancolia

Séculos de melancolia Leila Danziger* Mélancolie, génie et folie en Occident. Organização de Jean Clair; Paris: Réunion des Musées Nationaux; Galimmard, 2005, 504 páginas. Há 25 séculos o Ocidente procura entender essa afecção da alma e do corpo; sua cura, contudo, implicaria certamente a perda de uma dimensão tão dolorosa quanto vital do ser humano. É certo que suas primeiras definições surgem a partir da atenção voltada para a fisiologia do corpo humano. A melaina cholé – a bile negra – faz parte da teoria dos humores de Galeno, físico que vive em Roma no primeiro século da era cristã e sintetiza conhecimentos que foram surgindo ao longo dos cinco séculos anteriores. Mas se a melancolia surge como um desequilíbrio físico, provocado pelo excesso de bile, a doença parece insubordinar-se à separação de matéria e espírito. Ao longo do tempo, ela faz surgir uma infinidade de obras filosóficas, poéticas e históricas, tratados de psiquiatria e psicanálise, e, claro, pinturas, gravuras, esculturas, objetos e mesmo amuletos diversos. Um vasto conjunto dessas obras foi reunido na exposição Mélancolie, génie et folie en Occident, realizada sob a direção de Jean Clair e apresentada em Paris e Berlim.1 Dedicado a Raymond Klimbansky – um dos autores, juntamente com Saxl e Panofsky, do célebre estudo Saturn and Melancholy, publicado em Londres em 1964 –, o catálogo da mostra apresenta os percursos da arte e do pensamento buscando os contornos desse sentimento indefinível e, mais do que nunca, atual. Nas últimas décadas do século XX, a depressão, um dos nomes da melancolia, tornou-se tão comum quanto a histeria, doença do final do século XIX. Mas se a histeria foi uma revolta do corpo feminino contra tantas opressões, “a depressão, ao contrário, 100 anos depois, parece ser a marca de um fracasso do paradigma da revolta, num mundo desprovido de ideais e dominado por uma poderosa tecnologia farmacológica (...)”.2 Nos oito capítulos que se sucedem no catálogo da exposição são feitas relações entre as obras selecionadas e a história das artes e das idéias que *Leila Danziger é artista plástica, doutora em História Social da Cultura, pela PUC-Rio. Professora do Instituto de Artes da UERJ e do Instituto de Artes e Design da UFJF. 1 Em Paris, a exposição foi apresentada nas Galeries nationales du Grand Palais, de 10 de outubro de 2005 a 16 de janeiro de 2006, e em Berlim na Neue Nationalgalerie, de 17 de fevereiro a 7 de maio de 2006. 2 Roudinesco, Elisabeth e Plon, Michel. Dicionário de Psicanálise, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p. 507. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

envolvem esse mal-estar, considerado por Aristóteles próprio dos homens de gênio e que, mais tarde, para Marsílio Ficcino, será a própria condição da vida espiritual. Apenas aparentemente a ordenação do livro submete a história da arte à cronologia. Se na primeira parte, dedicada à Antigüidade, a melancolia parece estar de fato perfeitamente contida em algumas obras desse período histórico, logo em seguida, obras surgidas em épocas diversas, reúnem-se em módulos, atestando a permanência de certas questões para além da mera sucessão temporal. 195


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O capítulo dedicado à Idade Média nos surpreende com um ensaio de Werner Spies sobre diferentes versões de L´Ange du foyer, de Max Ernst. Por entre as representações dos monges que sofriam de acedia – sentimento de angústia não apaziguado sob o atarefamento da vida monástica e das orações – encontramos os demônios das gravuras de Cranach e Schongauer, mas também, mais próximos de nós, os monstros das pinturas de Otto Dix e Max Ernst. A tela de Ernst é claramente marcada pela experiência dos regimes totalitários que se erguem naquele momento na Europa e, entre outras fontes iconográficas, atualiza o vigoroso dinamismo presente na asa direita do retábulo de Issenhein, de Grünewald. O bestiário presente nas obras de Ernst anuncia um tempo que parece distanciar-se do mundo histórico e retornar ao mito. No longo capítulo Os filhos de Saturno, dedicado ao Renascimento, um ensaio de Peter-Klaus Schuster merece destaque. Diretor-geral dos museus de Berlim e estudioso da obra de Dürer, o autor examina a imensa fortuna crítica da gravura Melencolia I, e assim percorremos parte considerável da história das representações desse sentimento. Para Aby Warburg, lembra Schuster, a gravura de Dürer mostra a personificação da melancolia vencendo as sombras que a habitam: loucura, aflição, perseguição, luto. Essa vitória é alcançada pelo aproveitamento das disposições do temperamento melancólico para as ciências e as artes, como queria Ficcino. Melencolia I é obra reconfortante, acredita Warburg em estudo de 1920, porque mostra o triunfo do espírito melancólico sobre a perturbação que o ameaça em permanência. Discordando de Warburg, Panofsky e Saxl vêem na gravura uma advertência e não um reconforto. Para esses historiadores, a gravura de 1514 mostra a resignação do gênio melancólico ao perceber os limites do espírito humano em relação ao Divino, recaindo assim no abatimento e na inércia. Ao longo de uma argumentação conduzida minuciosamente, Schuster concilia as interpretações de Warburg e de seus célebres discípulos, pois Dürer retoma o tema da dicotomia entre a Virtude e a Fortuna, recorrente no repertório alegórico do Humanismo. “Na exortação à virtude endereçada ao melancólico para que seu espírito superior, apesar de todas as resistências, se conforme e se eleve em direção à perfeição divina, a gravura apresenta, de modo simultâneo, reconforto e advertência.” A imagem exorta a excelência da virtude.3 Em suas longas considerações sobre a recepção de Melencolia I, Schuster destaca, no século XX, aquela feita pelos surrealistas, sobretudo Giacometti, na década de 1930, e a de Anselm Kiefer, na década de 1980. O poliedro de 12 faces, símbolo da geometria descritiva, aparece em diversos desenhos e esculturas de Giacometti, que viu a gravura em 1933, numa mostra em 196

3 Schuster, catálogo de exposição Melancolie, p. 93. concinnitas


Séculos de melancolia

Paris. Cinco anos depois, Sartre escolherá a gravura de Dürer como capa de seu livro La Nausée, identificando na imagem o sentimento de desgosto existencial. Embora este seja o momento em que Giacometti se afasta dos jogos surrealistas e dos objetos de caráter explicitamente simbólicos, dedicando-se a outro tipo de embate com o real, o poliedro reaparece em diversos momentos na obra do artista suíço, em explícita homenagem a Dürer. Também Kiefer, no final da década de 1980, realizou uma série de pinturas e livros de chumbo que fazem clara alusão à obra do artista de Nuremberg. Vale lembrar que na Alemanha, Melencolia I tornou-se – principalmente durante o Romantismo – o retrato por excelência da sensibilidade alemã. Na obra de Kiefer, a melancolia ressurge de forma decididamente crítica, informando sua dolorosa investigação sobre a história recente, a memória e a identidade alemãs. Na escultura Melancholia, de 1989 – nada mais que um imenso avião de chumbo sobre o qual pousa um poliedro de vidro –, Kiefer confere nova forma ao paradoxo contido na gravura de 1516. Nem Fortuna nem tampouco Virtude. A alegoria que encarnava os embates do Humanismo, num momento inaugural da história da cultura do Ocidente, adquire um contorno especialmente sombrio. A imobilidade do personagem de Dürer – que tem asas, mas não voa – transforma-se em um avião fossilizado: a modernidade, com toda a sua potência de construção e destruição, é vista aqui como ruína. O nome de um melancólico célebre paira sobre a alegoria de Kiefer, o de Walter Benjamin, potente “tradutor” da obra de Dürer: “O único prazer que o melancólico se permite, um prazer intenso, é a alegoria”.4 Cabe ressaltar que a polissemia, a marca fundamental da gravura de Dürer, é vista como um traço do próprio temperamento melancólico. Jackie Pigeaud observa que, para Aristóteles, o melancólico é essencialmente polimorfo. “A bile negra oferece à natureza melancólica todos os estados da embriaguez com todos os seus perigos (....). O melancólico tem em si, como possíveis, todos os caráteres de todos os homens. O que esclarece prodigiosamente (...) a idéia mesma da criatividade melancólica.”5 Presente no texto da mostra com um estudo sobre Etienne Esquirol, Pigeaud descreve o esforço do médico psiquiatra, nas primeiras décadas do século XIX, em 4 Benjamin citado por Susan Sontag. Sob o signo de Saturno, Porto Alegre: LPM Ed, 1986, p. 96. 5 Essa passagem não se encontra no ensaio de Jackie Pigeuad, mas sim em Aristóteles, “O homem de gênio e a melancolia: o problema XXX, 1”, Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1998, p. 13. O texto é traduzido do grego para o francês pela autora, que o comenta em longo ensaio. 6 Pigeaud, catálogo de exposição Melancolie pág.395. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

criar um novo termo para a melancolia. Ao denominá-la lipemania e procurando retirar a doença de seu extenso – e tão rico – campo de implicações culturais e filosóficas, o médico quer confinar o distúrbio nos limites da medicina. No entanto, como o historiador das idéias não deve esquecer os textos médicos, o médico não pode deixar de considerar as condições de nascimento da doença e seus desdobramentos na filosofia e na arte. A melancolia é doença da cultura e doença ‘culturalizante’, afirma a autora.6 Sua experiência pode levar à poesia ou à loucura. 197


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Um módulo do catálogo (Novas nosografias) reúne justamente fotos de internos de asilos psiquiátricos do século XIX – como de uma paciente de Charcot, no hospital Salpêtrière, em Paris – e mostram o aspecto extremo da melancolia. O valor de documento dessas imagens convive com a contundência poética dos desenhos de Antonin Artaud, realizados no asilo de Rodez, na década de 1940. Mas esse cotejo é problemático. Enquanto as fotografias exibem o doente como mero objeto – sem nome, destituído de sua identidade –, as obras de Artaud mostram, apesar da desintegração psíquica que testemunham, o violento embate entre a potência poética e a doença – génie et folie – que dá título à exposição. Em seu ensaio A imortalidade melancólica, Jean Clair identifica o “delírio das negações” ou “delírio de Cotard” nos desenhos de Artaud e, sobretudo, nos auto-retratos fotográficos de David Nebreda, que mostram seu corpo esquelético e ferido, auto mutilado e queimado. O distúrbio de Cotard não implica apenas o esvaziamento do ego, como tão bem dirá Freud em texto célebre de 1917, mas um devoramento de si mesmo. Quem sofre desse mal se canibaliza, mutila-se; extrai de maneira não apenas simbólica seu sangue e seus órgãos; ao vazio do espírito corresponde um corpo igualmente esvaziado. Estranha semelhança com a descrição de Belerofonte, por Homero: “Mas quando foi tomado pelo ódio de todos os deuses, então, através da planície Aleiena ele errava só, comendo seu coração, evitando o passo dos humanos”.7 Tratando ainda das relações entre a psiquiatria, a melancolia e a arte, uma análise de Jean Starobinski sobre Retrato do Dr. Gachet, tela pintada por Van Gogh em 1890, merece destaque. O doutor Gachet, médico do artista na época de seu suicídio, assim como toda a psiquiatria, foi considerado por Artaud responsável pelo gesto extremo do pintor. Com visível empatia em relação tanto a Artaud quando a Gachet, Starobisnki defende o médico das acusações. Ora, na pintura de Van Gogh, a figura do médico inscreve-se inequivocamente na representação da melancolia: o tronco oblíquo, a cabeça apoiada firmemente sobre o punho fechado, o cenho franzido, o olhar distante. Como lembra Starobisnki, Van Gogh procurou Gachet “ao ouvir falar da melancolia”, pois ele era um estudioso do assunto. Mas a representação do médico pelo artista identifica-o justamente como alguém que sofre desse mal. Que futuro pode haver, pergunta o historiador suíço, quando aquele que nos deveria socorrer, necessita, ele mesmo, de socorro? De modo sutil, Starobinski aproxima ainda Retrato do Dr. Gachet da tradição da Vanitas, gênero pictórico eminentemente melancólico, muito praticado no século XVII, cuja função moralizante é lembrar a vaidade de todas as coisas 198

7 Aristóteles, op. cit, p. 83. concinnitas


Séculos de melancolia

deste mundo. O historiador ressalta, contudo, que a possibilidade de leitura evocada depende de um espectador avisado. “A obra tão moderna, destinada a ser compreendida em 100 anos e que exerce sobre nós, como desejava Van Gogh, o efeito de uma aparição, permanece profundamente ligada à imagem que o passado faz da melancolia.” Na forma da natureza-morta ou da alegoria – como A Melancolia, de Domenico Fetti ou Madeleine à la veilleuse, de Georges de la Tour – , as Vanitas reúnem objetos carregados de valor simbólico: instrumentos científicos, figuras geométricas, livros, flores, espelhos, velas, crânios. Sua função é estabelecer contrastes entre o mundo do espírito, incorruptível, e o mundo da matéria, submetido ao tempo e à degradação. A Vanitas é sempre uma advertência contra a precariedade da vida humana e os perigos de deixar-se seduzir pelas riquezas terrestres. As pinturas do gênero presentes no catálogo da mostra, aquela atribuída a Philippe de Champaigne, Vanité ou Alegoria da vida humana, figura certamente entre as mais célebres: “A morte está no centro da representação, imóvel, impassível e imperiosa (...): à sua esquerda, a tulipa em seu vaso lembra que a degradação do ser vivo é inevitável, enquanto à direita, a ampulheta evoca o fluxo incessante que ninguém pode deter. Esses dois elementos são situados pelo pintor como duas metáforas do Tempo, que, transcorrendo, corrompe todas as coisas”.8 Outro importante gênero pictórico, em que a melancolia se inscreve de forma decisiva e indelével, é a paisagem, sobretudo quando a natureza e as ruínas arquitetônicas se encontram e se confundem. Em livro de 1923, extensamente comentado no ensaio de Roland Recht,9 George Simmel afirmou que o interesse da ruína consiste em fazer com que uma obra humana seja percebida como obra da natureza. “O valor estético da ruína une a falta de equilíbrio, o eterno devir da alma em luta consigo mesma, à satisfação formal, à firme delimitação da obra de arte.” Fartamente representada no livro, embora não significando avanço na fortuna crítica da obra, a pintura de Caspar David Friedrich afirma-se como uma inédita experiência da paisagem nas primeiras décadas do século XIX, experiência de uma natureza sustentada unicamente pela subjetividade do artista, em acordo com a filosofia de Schelling para quem “a natureza é o espírito visível e o espírito a natureza invisível”. 8 Starobinski, p.256. 9 Roland Recht. “La beauté du mort”: Ruskin, Viollet-le-Duc et le sentiment de la perte, p. 342-349. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

A partir de então, os ensaios e as obras reunidos no catálogo da exposição apresentam-se como referência incontornável nos estudos sobre a melancolia. Cabe lamentar apenas que essa história ignore o percurso dessa fundamental disposição da alma humana para além do 199


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continente europeu, pois são poucas as obras oriundas de experiências artísticas de outros continentes. É inegável que a aquarela de Debret, Negra tatuada vendendo caju, de 1827, faz parte das influências de Dürer. A figura da escrava sentada, tendo à cintura um conjunto de amuletos, e a cabeça apoiada sobre o braço direito, é devedora da mulher alada de Melencolia I. Isolada das duas outras mulheres que conversam em segundo plano, seu olhar perdido e seu contorno, situado à direita da composição, destacam-se contra um horizonte longínquo: do outro lado do oceano está a terra abandonada. Transportada para o Brasil, a melancolia transforma-se em saudade ou banzo, título de um poema de Raimundo Correa, que lamenta as “visões que na alma o céu do exílio incuba”. Por fim, não me parece descabido imaginar o Abaporu, de Tarsila, figurando no módulo da exposição intitulado A história como projeto melancólico. Na pintura, a inclinação do corpo volumoso e a cabeça minúscula apoiada sobre o braço esquerdo não deixam dúvidas de que a figura representada inscreve-se na tradição iconográfica da melancolia. O sol frio – fruta cítrica ou imenso olho solitário - não aquece o céu azul arroxeado. Seu peso, sua inércia, sua monumentalidade ambígua, o lugar indefinível que habita – entre o sonho e o mito, entre o moderno e o arcaico –, eis claramente uma das obras de nossa melancolia à brasileira. Afinal, como escreveu Paulo Prado em Retrato do Brasil, publicado em 1928, ano em que Tarsila pintou sua tela: “Numa terra radiosa vive um povo triste”.

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A cidade do samba

A cidade do samba Felipe Ferreira* Inaugurada antes do carnaval de 2006, a Cidade do Samba promete grandes modificações na expressão visual do desfile das principais escolas de samba cariocas. Entretanto, a ousadia que se cobra dos carnavalescos em suas criações parece não ter contaminado o conjunto de grandes galpões que passaram a abrigar os barracões das escolas. Na verdade, desde as últimas décadas do século XIX, os principais agrupamentos carnavalescos cariocas já se utilizavam de galpões conhecidos como barracões para a construção de suas alegorias e adereços. Localizados, muitas vezes, próximo às sedes das agremiações, essas oficinas costumavam ocupar qualquer grande construção que pudesse abrigar o complexo conjunto de atividades ligadas à produção dos carros alegóricos das chamadas grandes sociedades. Após seu surgimento, em 1928, as escolas de samba mantiveramse, durante algumas décadas, como os grupos mais singelos do carnaval, apresentando, quando muito, uma alegoria muito simples decorada com flores, chamada de caramanchão. Foi durante a década de 1950 que as escolas de samba deixaram de ser vistas como manifestações produzidas exclusivamente pela criatividade popular para se tornar a grande atração do carnaval carioca, incorporando elementos das outras brincadeiras Foto: Marcelo O’Reilly de Miranda, 2006

carnavalescas, como as grandes alegorias características das sociedades. Desfilando no palco nobre do carnaval a partir de 1957 (na época, a avenida Presidente Vargas), as escolas de samba passariam a investir cada vez mais em seus elementos visuais. A produção das alegorias e fantasias começava a se organizar em diferentes fases. Essa especialização demandaria uma nova estrutura para o barracão que começava a se refletir em sua espacialização. O crescimento em número e tamanho dos carros alegóricos fez com que a área do Porto do Rio de Janeiro fosse considerada a ideal para o estabelecimento dos barracões, tanto por sua relativa proximidade do novo espaço de desfile (o Sambódromo) quanto pela oferta de grandes galpões (os armazéns desativados após a decadência da região portuária). Entretanto, apesar de bastante espaçosos e de sua boa localização,

*Felipe Ferreira é doutor em Geografia Cultural pela UFRJ e professor adjunto do Instituto de Artes da UERJ. Líder do Laboratório da Arte Carnavalesca, publicou diversos livros sobre carnaval e organizou eventos sobre o assunto no exterior e no Brasil. ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

esses armazéns não eram o local ideal para a produção das alegorias e fantasias por não possuir a infra-estrutura necessária para sua nova função. A altura insuficiente do pé-direito, a largura acanhada dos portões de saída, a ausência de fiação elétrica e o próprio espaço em 201


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torno dificultavam a construção e o deslocamento das alegorias cada vez mais volumosas. Apontada como solução para todos esses problemas, a chamada Cidade do Samba, inaugurada em 17 de setembro de 2005 após dois anos de obras, ocuparia uma imensa área ociosa de 130.000m2 na região da Gamboa, próxima ao Porto do Rio. A idéia que norteou o projeto, bancado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, foi a de construir 14 barracões para as escolas do Grupo Especial que cumpririam a função de espaço de trabalho e de área de lazer turístico. A forma irregular do terreno e a necessidade de que cada barracão tivesse duas entradas (uma, “social”, para a rua externa, e outra, “de serviço”, para uma grande praça central) fizeram com que muitos desses galpões tivessem disposições espaciais diferenciadas, causando alguns problemas quando da determinação de qual escola ocuparia qual barracão. O projeto, dos arquitetos João Uchoa e Victor Vanderley, procurou minimizar essa impressão através da uniformização das fachadas e da tentativa de harmonizá-las visualmente com os armazéns do antigo Porto. As facilidades internas, entretanto, seriam o ponto mais positivo de todo a projeto. Acostumadas à precariedade das antigas instalações, as escolas passaram a dispor de área total de 6.600m2, divididos em quatro andares, com áreas para administração, almoxarifado, recepção, banheiros e refeitórios. As características mais marcantes, porém, seriam o andar superior (uma grande área 2.700m2) e o imenso vão para a construção das alegorias ocupando 2.100m2 com pé-direito de 12m. Essa grande área tornaria possível que, pela primeira vez, os carnavalescos pudessem ter uma visão a cavaleiro da alegoria durante sua elaboração, o que causou notável crescimento visual das alegorias. Por outro lado, a função turística do conjunto se manifestaria através da criação de uma grande praça central, ocupada por duas áreas para eventos cobertas por lonas tensionadas, por alguns quiosques de alimentação e, principalmente, por uma longa passarela percorrendo a parte externa de todos os barracões permitindo que visitantes possam observar o trabalho em processo através de grandes janelas e do acesso a uma varanda localizada na parte interna das construções. A tensão entre a utilização do espaço da Cidade do Samba como área de atração turística e a necessidade das escolas manterem em segredo suas criações fez com que as visitações aos barracões se tornassem focos de grandes discussões. É nessa tensão que se pode resumir o projeto da Cidade do Samba, criado para atender a interesses conflitantes. De um lado estão as escolas de samba, “donas” do espetáculo, que entendem esse novo 202

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espaço como área de trabalho. Nesse sentido as novas construções parecem ter cumprido bem sua função de facilitar a montagem de grandes alegorias e abrir caminho para novas possibilidades criativas. Existem, por outro lado, os interessas da Liesa (empresa que reúne as grandes escolas de samba e gerencia o espetáculo dos desfiles), que vê o novo espaço – principalmente a área central e os barracões liberados pela diminuição do número de escolas no Grupo Especial – como oportunidades de gerenciar novos negócios e parcerias, tais como abrigar congressos, espetáculos ou mesmo um museu dirigidos ao turismo receptivo. Os interesses da prefeitura, por sua vez, ligam-se à revitalização da área do Porto, uma das metas políticas da atual administração municipal, encarando o conjunto de galpões como pólo de recuperação de uma região degradada. Por outro lado, em que pese seu valor e sua importância política e cultural, a Cidade do Samba poderia ter-se tornado um marco não apenas nessas áreas, mas também na produção arquitetônica brasileira contemporânea. Ao optarem pela funcionalidade, os arquitetos deixaram de lado características de espetacularidade bastante marcantes na arquitetura contemporânea, cujo grande exemplo é o Museu Gugguenheim de Bilbao. Um projeto visualmente mais criativo poderia agregar valor ao conjunto, situado numa área de grande visibilidade. Perde-se, desse modo, uma grande oportunidade de se criar uma nova marca visual para o carnaval brasileiro. Nesse sentido é curioso notar a discrepância entre a simplicidade da Cidade do Samba e os projetos da Cidade da Música (em execução) e do abortado Museu Guggenheim, duas obras de grande impacto projetadas por Christian de Portzamparc e Jean Nouvel, respectivamente. O mundo do carnaval recebeu com grande regozijo o novo espaço, o espírito carnavalesco, entretanto, merecia projeto mais ousado.

ano 7, volume 1, número 9, julho 2006

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