"Trombas, uma cidade esquecida" - Raíssa Falcão

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TROMBAS, UMA CIDADE ESQUECIDA

Trabalho de conclusão de curso apresentado à Faculdade de Informação e Comunicação da Universidade Federal de Goiás (UFG) como prérequisito para obtenção do título de bacharel em Comunicação Social – Jornalismo, sob a orientação do Prof. Me. Edson Spenthof.

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A meus avós, que sobreviveram

à

fome e à pobreza e encontraram em meio aos galhos tortos do cerrado uma nova chance para florescer.

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AGRADECIMENTOS Agradeço ao meu orientador, Professor Edson Spenthof, por ter assumido comigo o desafio dessa pesquisa, pelo tempo e pela paciência dedicados a mim e a este trabalho. A todos os homens e mulheres, lutadores, que me receberam ao longo dos meses de estudo para falar sobre um passado que nem sempre querem lembrar. Aos familiares dos mortos e desaparecidos de Trombas, por confiarem em mim para relatar a história dos seus e tocar em assuntos que são, quase sempre, dolorosos. Aos meus pais e familiares, por terem contribuído para a minha formação e me apoiado em todos os momentos que precisei. Aos amigos que me ajudaram e foram compreensivos comigo nessa caminhada. A todos, minha sincera gratidão.

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“Sertão: estes seus vazios”.

(João Guimarães Rosa)

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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO................................................................ 11 1. A HISTÓRIA DE JOANINHA ........................................ 17 2. A HISTÓRIA DE DIRCE................................................. 33 3. A CAMINHO DE TROMBAS ......................................... 53 3.1 Trombas e Formoso: um pouco de história................. 59 3.2 O Conflito..................................................................... 64 3.2.1 A Batalha de Tataíra ............................................ 69 3.4 O Golpe Militar de 1964: nova incursão contra os posseiros ................................................................................ 73 3.5 Operação Mesopotâmia ............................................... 75 4. A CAMINHO DO ESQUECIMENTO ........................... 77 4.1 O Futuro da Nação dos Posseiros ............................... 87 4.2 Memória Local ............................................................. 93 4.3 Lugar na História ....................................................... 100 CONSIDERAÇÕES DA AUTORA .................................... 109

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APRESENTAÇÃO “ O repórter luta contra o esquecimento, transforma em palavra o que era silêncio. Faz Memória”. Eliane Brum O Brasil foi palco para muitas lutas camponesas. Alguns fatores que acompanham o país desde o período colonial, como a grande propriedade e a monocultura, foram, segundo Sandroni (1980), determinantes para a construção de um processo histórico que resultou na extrema violência com que a maioria dos conflitos agrários brasileiros foi tratada. A estrutura rural brasileira tem se apoiado, desde o princípio, na concentração de terra, na exclusão social, no desemprego, na fome e na desigualdade da distribuição de renda. Diante desse cenário, não causa estranheza o fato de que o Brasil foi palco para muitas lutas camponesas. Entretanto, pouquíssimas conseguiram atingir a dimensão do conflito de Trombas e Formoso. Durante entrevista concedida à autora deste

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trabalho, o historiador goiano Cláudio Maia elencou os dois fatores que, segundo ele, fizeram a Guerrilha de Trombas e Formoso se tornar uma das maiores histórias da luta por terra no país. O primeiro é um evento contemporâneo ao conflito: a transferência da capital do Brasil para um território dentro do estado de Goiás, relativamente próximo à região de Trombas e Formoso. A expectativa da construção de Brasília fez com que os olhos do país inteiro se voltassem para o que podia abalar de alguma forma essa transferência, mesmo que fossem alguns posseiros munidos com poucas armas mas uma grande sede por justiça. Além disso, toda a infraestrutura que chegou em Goiás junto com a capital fez com que a terra até então abandonada passasse a ser alvo da cobiça de grandes fazendeiros e grileiros, o que deu início ao conflito. O segundo ponto apresentado por Maia é a presença do Partido Comunista Brasileiro (PCB) na luta. É verdade que o PCB esteve presente em outros tipos de resistência armada, mas, em Trombas, houve uma identificação instantânea entre os quadros do partido que foram direcionados à região e os camponeses que lá já viviam. Os comunistas que foram para Trombas já tinham uma vida inteira ligada à terra e, assim, no norte de Goiás,

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tornaram-se posseiros também. Aquela se tornou a luta deles. O apoio pleno dos membros do PCB facilitou o ganho de notoriedade para o evento, uma vez que o partido tinha notoriedade nacional, mesmo nos anos de ilegalidade. Com eles, o acesso à imprensa, estudantes e simpatizantes da causa camponesa se tornou mais simples. Pretendemos, neste trabalho, analisar o estado atual da região que abrigou o conflito, o que aconteceu com o povo e com a terra que, 60 anos atrás, foram por alguns momentos o centro da atenção brasileira. O recorte é feito especialmente para a cidade de Trombas. O conflito por terra aconteceu numa região muito extensa. No entanto, os camponeses se concentravam em algumas regiões específicas, e dois grandes povoados surgiram no território que, hoje, corresponde às cidades de Formoso e Trombas, distantes 28 quilômetros uma da outra. O centro da resistência armada, bem como a Associação dos Lavradores de Formoso e Trombas (órgão criado para a organização política e estrutural dos posseiros) e as casas dos principais líderes do conflito, como José Porfírio, Nelson Marinho e Zé Ribeiro, ficavam em Trombas. Formoso era onde os policiais, militares, jagunços, fazendeiros e grileiros se organizavam antes dos momentos de confronto. Popularmente, Trombas é lembrada como “a capital dos [ 13 ]


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posseiros” e Formoso como “a capital dos jagunços”. Neste trabalho, falamos sobre os posseiros e a sua capital. Para isso, dividimos a obra em três grandes partes. A primeira abriga as histórias de duas mulheres que estiveram lá. As memórias de Joaninha e de Dirce representam a história de outras muitas pessoas. Nascidas em lugares muito diferentes, com origens diferentes, as duas se encontraram na luta armada.

Uma

representa o camponês, que saiu de sua casa na esperança de encontrar um lugar melhor para viver, e encontrou esse lugar em Trombas. A segunda representa o PCB, que foi para Trombas como partido mas lá se fundiu com a luta camponesa. O objetivo foi transcrever a história do conflito sob a ótica da história de pessoas, com nomes, cidades de nascimento, familiares, paixões, decepções e expectativas. Em um segundo momento, há uma breve contextualização histórica em relação ao conflito. A luta em Trombas teve três grandes momentos: o primeiro foi nos anos 1950, em que fazendeiros e camponeses disputavam a terra. Desse primeiro desentendimento, há o consenso de que os camponeses saíram vitoriosos. Depois de anos de luta eles ficaram com as terras. O sentimento geral era de dever cumprido.

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O segundo marco histórico para Trombas foi o Golpe Militar, deflagrado em 1964. Caminhões do Exército Brasileiro invadiram a cidade, procurando pelos “revoltosos comunistas”. E o terceiro, não menos importante e não menos violento, ocorreu no início da década de 1970, no curso da “Operação Mesopotâmia”, estratégia do governo militar para acabar com todo e qualquer tipo de resistência ao governo ou concentração de militância opositora que poderia acontecer no centro do país. Nesse momento, pela segunda vez, os “heróis” de Trombas foram perseguidos, torturados e mortos pelo governo brasileiro. É interessante observar que o camponês trombense, durante 3 décadas, teve vários inimigos: a fome, a seca, a pobreza, fazendeiros, grileiros, a polícia, o governo militar e o exército. Hoje, o principal inimigo de Trombas é o esquecimento. A terceira parte do trabalho se encarrega de mostrar o que aconteceu com a cidade que por mais de 30 anos esteve totalmente imersa em questões políticas e agrárias do Brasil. Hoje já não é mais tão raro encontrarmos obras e referências ao que Trombas foi um dia. Aqui, pretendemos falar sobre o que é hoje. E um pouco sobre o que poderia ser. Este é o foco principal deste livroreportagem.

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A obra Trombas, uma cidade esquecida foi desenvolvida como trabalho de conclusão de curso, apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás. É um produto jornalístico, em formato de livro-reportagem. O jornalista, como se sabe, tem que lidar com uma rotina de trabalho que, muitas vezes, exige agilidade em detrimento do conteúdo. Os deadlines curtos e inflexíveis e o pouco espaço destinado para cada um dos assuntos que compõem um jornal acabam impedindo que, na maioria do tempo, o jornalista se aprofunde no tema por ele tratado. Essa lógica não atingiu o livroreportagem porque esse produto especificamente não tem a emergência das redações de jornalismo diário, ou semanal. Essa possibilidade de ir além do superficial e tratar a questão de Trombas com mais aprofundamento foi o que motivou a escolha do livro-reportagem como formato para este trabalho.

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CAPÍTULO 1

A HISTÓRIA DE JOANINHA

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Somos muitos Severinos iguais em tudo e na sina: a de abrandar essas pedras suando-se muito em cima, a de tentar despertar terra sempre mais extinta, a de querer arrancar algum roçado da cinza. Mas, para que me conheçam melhor Vossas Senhorias e melhor possam seguir a história de minha vida, passo a ser o Severino que em vossa presença emigra.

(João Cabral de Melo Neto)

A primeira lembrança que Joana tem de Trombas é de 1951. A senhora de hoje, no auge dos seus oitenta e três anos de idade, nasceu na roça, na “beira do [Rio] Tocantins, acima de Carolina, vinte léguas”, como gosta de dizer. Dos tempos de menina, lembra-se que a família costumava frequentar um comércio situado em um povoado chamado Olho Grande. Com esse nome não existe mais. Dona Joaninha não sabe dizer se virou cidade ou não; não voltou mais lá. A realidade é que o povoado de Olho Grande se tornou o município de Palmeirante, no estado do

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Tocantins, e os atuais moradores se orgulham ao dizer que os que nascem lá tem sangue forte, não fogem ao trabalho. Mesmo sem saber do ditado, Joana não fugiu à regra. É a quarta de cinco irmãos, e passou parte da infância tomando banho no rio e correndo pelos pastos e florestas. “Também já levei muita ‘carreira’ de bicho bravo”, diz, dando gargalhadas. Dona Joaninha é senhora de riso fácil e conta que não pôde frequentar a escola normal quando criança, mas sempre prestou muita atenção em tudo que ouvia, e assim aprendeu lições sobre a vida. Aos dezoito anos, em busca de melhores condições para a sobrevivência, a família de Joana decidiu se mudar para a região de Pedro Afonso, município que atualmente também fica no estado de Tocantins. Lá já estava a família Marinho, vinda do Maranhão, também buscando terras férteis e uma chance de vida melhor. Não demorou muito pra que as duas famílias se encontrassem e, dois anos depois, Joana se casou com Raimundo Marinho. Raimundo trabalhava como vaqueiro em uma das fazendas da região de Pedro Afonso e, depois do casamento, ela foi viver com ele. “A vida continuou sofrida, mas eu era feliz”. Viveram na fazenda por aproximadamente três anos, até que o sogro, João Marinho, falou sobre novas terras em Goiás, férteis. Parte da família já estava lá, e

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esses diziam que tudo que plantava, dava. Era uma proposta para uma vida diferente. A jovem Joana ficou empolgada com a possibilidade de um futuro melhor, uma vida mais tranquila para os filhos. Os pais e irmãos dela também foram chamados para a mudança e, alguns meses depois, todos arranjaram cavalos, fizeram as malas, prepararam a comida para a viagem longa e foram. A viagem por si só já seria uma boa – e longa – história. Muita gente caminhou junto para a região do município de Uruaçu. O calor no que hoje é o norte goiano e sul de Tocantins é intenso, e o cansaço nos camponeses era facilmente perceptível. Foram semanas de viagem, com paradas nas beiradas dos córregos. Não conversavam muito, pois era preciso guardar energia. Algumas crianças não sobreviveram, muitas ficaram desidratadas, outras nasceram no caminho. A família de Joaninha é um retrato de milhares de outras famílias com história parecida, que saíram do norte em busca do sonho da terra em Goiás. Saíram principalmente de estados como o Maranhão, Piauí e Bahia. As famílias deixavam suas casas encorajadas por propagandas de rádio, que falavam sobre a existência de boas terras para cultivo em Goiás, e, como foi o caso da família de Joaninha, por cartas de familiares que já estavam aqui estabelecidos. Viajavam em tropas ou em carros de boi, com

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crianças, animais e comida. Cada migrante que chegava em Goiás trazia consigo a esperança de melhorar de vida. Queriam “guardar um pouquinho de dinheiro, deixar alguma coisa pros filhos, sair da miséria”. A propaganda no rádio atingiu tanta gente que as terras que os governos Federal e Estadual destinaram inicialmente para essas pessoas não foram suficientes e a ocupação passou a ser desordenada. Dos migrantes, alguns realmente realizaram seus sonhos. Muitos outros tiveram suas esperanças frustradas, trabalharam anos a fio em terras alheias e não conseguiram comprar o seu pedacinho de terra. Os migrantes que saíram de Pedro Afonso passaram por muitas dificuldades a caminho do seu novo lar e, quando chegaram, encontraram muita terra livre no norte goiano. Eram imensas faixas, com mata virgem, cercadas por córregos e serras. As famílias se organizavam, cada uma ia para o seu espaço, mas cuidavam para não ficar muito distantes umas das outras, já que todas, de certa forma, estavam conectadas por laços de sangue, mesmo que de longe. Com o tempo, mais gente foi chegando, e Joana estranhou ao se dar conta de que já não eram todos conhecidos. Mas isso não era um problema já que, no campo, as coisas são diferentes: “todo mundo se ajuda e vira cumpadi, não

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tem isso de falta de humildade não, tem muito serviço, não tem tempo pra isso”. Dona Joaninha se ajeitou na cadeira e franziu as sobrancelhas ao se lembrar da primeira vez em que fazendeiros da região bateram na porta da sua casa: “a gente tava vivendo bem, plantando e colheno, em paz. Aí um dia sem qualquer aviso chegou um home na minha porta me mandando sair de casa. Eu não sabia quem era não, mas ele disse que ele era dono daquela terra que a gente pegou. Eles queriam que nóis saísse, mas dissero que a gente podia ficar um pouco mais se pagasse um arrendo”. Mesmo com as visitas indesejadas que, com o tempo, passaram a ser mais frequentes, ela e a família continuaram plantando roça, trabalhando muito. Mas logo a notícia de que não eram bemvindos se espalhou pelos posseiros. Os homens saíam para o campo com medo de deixar as mulheres e crianças em casa, não dava para imaginar o que estaria por vir. Nenhum dos posseiros conhecia bem aquelas pessoas que se diziam os donos das terras. Alguns camponeses tiveram a coragem de expulsar os fazendeiros das propriedades e se negaram a pagar o arrendo; outros pagaram. Com o tempo, os fazendeiros começaram a se utilizar de violência, queimavam plantações, matavam gado, intimidavam os habitantes

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da região dizendo que tinham documentos de posse e a polícia do lado deles. Os camponeses na maioria das vezes não diziam nada como resposta; eles não sabiam o que era verdade ou inventado, não tinham acesso a essas informações. Sentiam medo, mas não queriam abandonar suas casas. Dessa vez eles não tinham pra onde ir. Joaninha conta que, assim que as investidas dos fazendeiros passaram a ser mais violentas, algumas pessoas novas chegaram na região habitada pelos posseiros. Ninguém os conhecia, e eles diziam para os posseiros ficarem nas terras. No início, foram recebidos com desconfiança, mas logo começaram a fazer parte daquela comunidade que se formou. “Era gente da cidade, tinha estudo. Eles diziam que era nosso direito ficar lá e que ninguém, nem fazendeiro nem poliça, podia tirar. No início, a gente achou estranho esse povo vir de longe dizê isso, mas depois a gente foi se empolgando, era o nosso direito, a gente foi acostumano com eles. Parece que eram isso de comunista, mas eu não sei disso, sei que vieram pra ajudar o povo. Falavam pra gente aguentá, e a gente aguentou muito tempo”. --

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Com o incentivo de membros do Partido Comunista Brasileiro, que foram para a região ajudar na resistência, os camponeses se organizaram para a defesa das terras. “No início os home, que andavam sempre com o Zé Porfíro, ainda tentaram conversá, resolvê as coisa com ajuda de advogado, mas não deu certo, os fazendeiro continuaram vindo em casa, e vinham agora com a políça lá de Porangatu. As vez parecia mesmo que a gente era os errado, porque tava o mundo inteiro atrás de nós. Mas a gente tinha que viver. Aí os home formaram os piquete na entrada de Trombas. Ninguém passava lá se eles não deixasse. Eles conseguiram umas arma e ficavam atrás de umas pedra. Ninguém passava”. Em pouco tempo a resistência armada deixou de ser uma opção e passou a ser a única saída para aquelas pessoas. -Era um dia muito quente quando jagunços, fazendeiros e a polícia foram para Trombas. Passaram nas terras do sogro de Dona Joaninha, o João Marinho, na beira do Córrego do Sapato, e disseram lá que era o dia daquela história acabar. Naquela região, perto de um córrego chamado de Tataíra, já estavam algumas trincheiras, os posseiros passavam o dia lá esperando o momento de se defender e, assim que avistaram aquele povo todo, trocaram

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tiros. Nesse momento, os policiais ainda não sabiam que os camponeses estavam organizados para a resistência e, surpresos com a recepção, não viram outra opção senão atravessar para Trombas e, em Trombas, estavam ilhados. Não havia outra estrada, outra maneira de voltar sem passar mais uma vez pelos camponeses, pobremente armados, é verdade, mas ávidos por defender sua gente, suas terras. Depois de saberem da notícia vinda da casa dos Marinho, os camponeses concordaram com a decisão de que aquele era realmente o dia daquela história acabar, mas ficaram um tanto quanto desorientados quando as tropas de jagunços, fazendeiros e policiais avançaram para Trombas em vez do esperado recuo. A mãe, a sogra e algumas cunhadas foram para a casa de Joaninha. Queriam ficar juntas, e a casa dela parecia ser a mais segura. Ao mesmo tempo, a polícia, acompanhada de jagunços e fazendeiros chegava na pequena concentração de casas que hoje é a cidade de Trombas e, “sabe lá nas Trombas o que eles fizeram? Ficaram dizendo assim que olha: cês vão embora que tal dia não sei quem vai soltar uma bomba aqui e vai acabar com tudo. E as pobre das mulher que não tinha experiência de nada ficaram desesperadas, subiram no caminhão com as criança com medo da bomba”. Os policiais utilizaram os reféns como escudo contra as balas dos posseiros, e assim a tropa iniciou a viagem de volta a

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Formoso. Cobriram as mulheres e as crianças com uma lona, se agacharam atrás delas e dessa forma puderam voltar sem baixas. De longe, os posseiros escutaram os gritos delas, e não atiraram mais. As mulheres foram largadas alguns quilômetros depois, na entrada de Formoso. Mulheres e meninos caminharam por toda a noite os vinte e oito quilômetros que separam Formoso de Trombas. Depois que a tropa que saiu de Formoso enterrou os mortos e cuidou dos feridos vindos da Batalha do córrego da Tataíra, a polícia ainda fez algumas outras investidas contra os posseiros, todas sem sucesso. Eles eram sempre surpreendidos por uma das trincheiras e voltavam para Formoso com novas baixas. Depois de algumas tentativas fracassadas, decidiram solicitar reforços em Goiânia. As notícias do conflito que chegavam à capital eram, na maioria das vezes, desencontradas e exageradas, mas tinham em comum uma certeza: os posseiros, armados e preparados para a resistência, estavam colecionando vitórias. Do córrego da Tataíra saiu a notícia de que o povo de Trombas estava preparado para a guerra. Joaninha acha graça ao dizer que “a gente ficou conhecido como os pobre lavrador que botou a polícia pra correr. E botamo, eles tiveram que se esconder atrás de mulhé, vê se isso é coisa de homem fazer?! Isso é coisa de covarde”.

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Enquanto a polícia do norte e os simpatizantes da “ordem” e dos grileiros exigiam providências radicais contra os posseiros, os estudantes, simpatizantes do PCB ou da causa camponesa, organizavam em Goiânia comícios-relâmpagos de solidariedade aos posseiros. A pressão popular foi arma fundamental para as decisões do governo estadual que estavam por vir. Joaninha já tinha filhos nessa época, e, apesar da relativa vitória, o medo era constante. O marido passava os dias nas trincheiras e ela, em casa com os filhos, se assustava com toda e qualquer figura estranha que aparecia no horizonte. Não por ela! Temia pelos filhos que não entendiam a gravidade do que acontecia e pela mãe, que já era de idade e estava cansada de viver ameaçada. Joaninha foi até uma das trincheiras e avisou aos homens do estado da mãe, que passava por essa crise nervosa e, de lá, saiu com a decisão de levá-la para a serra, longe da estrada, onde já viviam outros companheiros. Ela se juntou com uma senhora também chamada Joana, e partiu rumo a esse lugar mais tranquilo. Lá deixou a mãe. No dia seguinte, as duas Joanas voltavam para Trombas quando, ao entardecer, avistaram um avião. Joaninha, com muita curiosidade e muito receio, chamou a velhinha que a acompanhava para ficar de baixo da copa de uma árvore. Queriam se proteger, não sabiam as

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intenções de quem estava voando. Ela continuou observando as manobras, bem próximas ao solo, e notou que do avião, vez ou outra, caíam alguns papéis. Ela quis olhar o que era aquilo e “era uns panfletinho que o governador mandou pra gente. Ele mandava o povo voltar pra casa, que polícia nenhuma ia tirar a gente das nossas casa”. Dona Joaninha apertou o passo no resto do caminho, tinha pressa de contar a novidade para os homens das trincheiras. Lá, foi recebida com certa comoção. Depois do recado do governador, o povo todo foi para as suas terras, e Trombas ficou vazia. Era a vitória dos camponeses. Eles finalmente poderiam viver da terra, cuidar dos filhos, envelhecer em paz. Dona Joaninha voltou a plantar, fez hortinha, as crianças começaram a estudar. Foi um tempo bom. -Assim que escutaram sobre o golpe militar em 1964, os camponeses de Trombas souberam que o Exército viria atrás deles. Dona Joaninha viu o pavor voltar às expressões daquelas pessoas. A maioria dos líderes da região decidiu fugir, se esconder. O marido, Raimundo Marinho, foi para o Maranhão, para não mais voltar. Viveu por muito tempo se escondendo da polícia, sem

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poder ir para casa. Arrumou outra família por lá. Nunca mais houve resistência camponesa em Trombas. O exército tomou a cidade, chegou lá em caminhões e vários cavalos, o povo todo se atordoou. Os aviões voavam baixo procurando foragidos nas matas. O Exército andou por toda a região prendendo e torturando gente, perguntando pelos líderes. Joaninha foi para a sua terra com as filhas. Ainda hoje, Dona Joaninha abaixa o tom de voz todas as vezes que usa a palavra “jagunço”. As terras em que ela vive em Trombas ainda não foram regularizadas pelo estado. Para ela e muitos outros herdeiros e posseiros remanescentes, a luta continua. A encontrei em Porangatu, cidade dos antigos fazendeiros que oprimiram seu povo. Talvez por coincidência ela não se sinta confortável na cidade: “Faz muito calor, esses muros me sufocam”. Dona Joaninha precisou ir passar um tempo lá com uma das filhas, já que elas estavam preocupadas com a mãe, idosa, sozinha na terra em Trombas. Joana entende a preocupação mas quer mesmo é voltar pra casa, olhar as plantas e alimentar os animais. Ela não entende bem o motivo que faz alguns estudantes visitarem Trombas, procurarem por ela, quererem ouvir detalhes

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da “história seca. E sofrida”. Mas mesmo assim não pensa duas vezes antes de dizer sim às solicitações: “eu recebo todo mundo aqui, não tem problema. Queria mesmo era ir lá mostrar minha casa, o Rio Trombas, as mangueira que meu sogro plantou na beira da estrada (...). Mas qualquer um que vai lá nas Trombas pode vê. Dá pra vê que aquela terra foi e é habitada por gente decente. A gente não era bandido, nunca foi. A gente era é meio bobo, enganado, mas daí foi que saiu a força”. Pergunto a ela se a luta de tantos anos valeu a pena. “Valeu muito a pena, hoje eu vivo sem medo.”

Dona Joaninha (Foto: Raíssa Falcão)

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CAPÍTULO 2

A HISTÓRIA DE DIRCE

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“Faz sessenta anos que isso aconteceu, o PCB não se tornou o maior partido do ocidente, nem mesmo do Brasil. Mas quem contar a história de nosso povo e seus heróis tem que falar dele. Ou estará mentindo”. (Ferreira Gullar)

Com o fim da Segunda Guerra Mundial e com a queda do Governo Vargas, o Partido Comunista Brasileiro (PCB) se inseriu novamente no contexto político do Brasil. Luiz Carlos Prestes, secretário geral do partido, ressurgiu na política nacional com grande prestígio e popularidade, depois de ter liderado, nos anos 1920, a famosa Coluna Prestes. Esta atravessou boa parte do Brasil e se desfez em território boliviano, próximo da fronteira com o Brasil, após percorrer mais de 25 mil quilômetros criticando a República Velha e pregando reformas como o voto secreto e o ensino público. O Movimento Tenentista, do qual a Coluna se tornou expoente, teve forte impacto na Revolução de 1930, que derrotou a chamada República Velha, também conhecida como Café com Leite, devido à alternância no poder entre paulistas (produtores de café) e mineiros (produtores de leite). No entanto, [ 35 ]


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o próprio PCB, fundado em 1922, ao qual Prestes aderiu no início dos anos 1930, foi posto na ilegalidade por um dos líderes e herdeiros da Nova República, o gaúcho Getúlio Vargas, quando este implantou o regime autoritário do Estado Novo, em 1937, pondo o próprio Prestes na cadeia. Anos antes do fim do Estado Novo, em 1945, Dirce Machado, goiana nascida na cidade de Rio Verde, viu sua vida mudar ao conhecer a trajetória do mesmo Luiz Carlos Prestes. O patrão da família de Dirce, Seu Jerônimo, era fazendeiro da região de Rio Verde, e um dos seus familiares, Agenor Diamantino, era político da região. Assim que foi eleito, Agenor passou a presentear os familiares com livros, panfletos, bandeiras e revistas sobre o seu partido, o PCB.

Seu Jerônimo respondia com

educação aos presentes do primo distante, mas a verdade é que não lia muitos deles. Recebia os documentos e logo os arquivava na biblioteca da casa. Entre 1947 e 1948, o Partido Comunista foi posto novamente na ilegalidade e Agenor Diamantino teve a eleição cassada. Seu Jerônimo soube da cassação e imaginou que os documentos que recebeu do primo poderiam incriminá-lo de alguma forma e, querendo se isentar de envolvimento com os comunistas, deu uma ordem à Dirce: a menina teria que queimar os documentos, livros e panfletos do PCB.

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Dirce aprendeu a ler com a mãe, em casa. Só praticava quando recebia um ou outro livro de um dos “parentes abastados” que tinha. Coisa rara! Quando recebeu a ordem de Seu Jerônimo, olhou para aquela montanha de livros que seriam queimados e se sentiu como se estivesse prestes a cometer um crime. Ela queria salvar os documentos para poder ler e praticar em casa, mas se não cumprisse o pedido do patrão, levaria bronca dele e algumas palmadas dos pais. Enquanto decidia o que fazer, uma capa com o título “O Cavaleiro da Esperança” chamou-lhe a atenção. O livro foi escrito por Jorge Amado, numa tentativa de pressionar a libertação do líder revolucionário Luiz Carlos Prestes, que passou anos na prisão. Dirce não sabia dessa história, mas atraída pelo título, folheou algumas páginas da publicação e decidiu ficar com ela. Queimou os outros. Durante os dias, ela escondia o livro no paiol de milho da fazenda. Quando chegava a noite, ia até lá ler, caminhando com passos leves para não fazer barulho e acordar os pais. A menina lia com dificuldade, não entendia algumas palavras, mas mesmo assim se emocionava com a história daquele homem: “não entendia como um homem poderia suportar tanta coisa como ele. Na minha cabeça, só podia ser ficção”. Mas não era e um tempo depois ela descobriu. Em um dia aparentemente comum na

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fazenda, um homem até então desconhecido chegou distribuindo exemplares do jornal Terra Livre. Na capa da publicação havia um convite para o povo brasileiro: em alguns dias aconteceria a celebração do aniversário de Prestes. Dirce sentiu as pernas estremecerem e a vista escurecer assim que viu o anúncio. Acordou alguns minutos depois ainda sem entender bem o fato de que o Cavaleiro da Esperança realmente existia no mundo real. Ela não conseguiu esconder a emoção ao se deparar com a verdade e, diante da reação da menina, o homem que distribuía os jornais logo deduziu que ela vinha de uma família comunista que tinha admiração por Luiz Carlos Prestes. E isso foi o necessário para que as reuniões dos quadros do partido que estavam em Rio Verde passassem a acontecer na casa da família de Dirce. Nessa época o PCB ainda estava na ilegalidade. Dirce tinha apenas 13 anos quando esse episódio aconteceu e hoje, relembrando a história, não tem dúvidas ao dizer: “Foi aí que começou as misérias da vida”. Os pais de Dirce receberam em casa as 20 pessoas do PCB mesmo sem entender com clareza o que estava acontecendo. Logo a notícia de que comunistas estariam se reunindo correu pela região e vizinhos e parentes também foram ouvir as discussões sobre os rumos do partido em Goiás. A reunião repercutiu e não

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demorou muito para que a família de Dirce fosse chamada de comunista e acusada de querer roubar as terras do patrão. O pai da menina foi perseguido e expulso do trabalho, e, sem grandes perspectivas, levou a família para a cidade: “Era um rancho de taipa ali em Rio Verde, na rua 04”. Mesmo vivendo na cidade, Dirce não teve a chance de ir à escola. Com a fama de comunista que recebeu, aos 13 anos a menina foi classificada pelo senso comum como “elemento perigoso” e não foi aceita em nenhuma escola. Nem mesmo na igreja eles podiam ir. O Partido Comunista foi avisado sobre a situação da família que os havia recebido e ofereceu abrigo à menina. Na conversa com os pais, prometeram dar educação e orientação política. A mãe de Dirce não gostou muito da ideia, levou um tempo para aceitar. Ainda assim, alguns meses depois, a menina Dirce, então com 14 anos, foi para Goiânia viver sob os cuidados do PCB. Ela se lembra com carinho dos anos que viveu junto ao partido. Diz ter sido tratada com muito respeito e cuidado, conheceu algumas cidades do estado de Goiás e fez grandes amigos. Um deles foi João Soares, um dos membros do partido comunista que se tornou um “pai” para Dirce. Eles se conheceram ainda em Rio Verde, mas Soares tinha se firmado na colônia

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agrícola de Ceres. Dirce pediu transferência e foi para perto do amigo. Ela viveu em Ceres por quatro anos e só saiu de lá quando foi atender ao chamado para ir à Trombas. -Antes, em discurso no estádio do Pacaembu em julho de 1945, pouco depois de sua libertação, Luiz Carlos Prestes havia apontado para a necessidade de quebrar o monopólio da terra e superar os restos feudais prevalecentes no País. Mesmo com as divergências de posicionamento entre o PCB nacional e o estadual, o discurso de Prestes se encaixava perfeitamente à realidade goiana. Alguns poucos anos depois da fala de Prestes, a notícia que veio do norte e chegou aos ouvidos dos quadros do partido que estavam em Ceres era a de que camponeses estavam sendo expulsos das terras por grandes proprietários. “Era a história de um tal de Zé Firmino, um homem que começou a dizer não para esses grileiros. Mas esse povo não tinha organização nenhuma, nenhum tipo de política na cabeça, e os grileiros continuavam espancando mulheres, tomando safra, violência, uma tristeza... Os posseiros não podiam dormir dentro de casa porque os grileiros vinham à noite e ateavam fogo, com mulher e menino dentro”.

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Dirce conta com tristeza a história de um senhor chamado de “Zé Cabelim”, que era dono de um pedaço de terra e tinha alguns mantimentos estocados. “Eles chegaram a noite e carregaram tudo que era do Zé. O velho e a velha ficaram na porta olhando aquilo, com muita dor e tristeza, e os jagunços perguntaram se eles tavam incomodados. Os velhos não responderam nada, mas mesmo assim eles foram lá e arrancaram o bigode do Zé, no alicate, fio por fio. Desde esse dia a tristeza não largou mais aquela casa”. Em 1954, o PCB nomeou quatro pessoas para irem à região, instruir os camponeses na resistência. Dirce estava entre os selecionados, e se casou com Zé Ribeiro, que já namorava, para viajar: “o partido aconselhou, disse que não seria bom uma moça nova como eu viajar solteira”. Jovem, bonita e rebelde, a impressão é que, se estivesse solteira, teria ainda mais dificuldades que o “normal” para ser aceita pelos camponeses. O casamento então tornou-se uma recomendação oficial, mas não era uma ordem. Afinal, o companheiro que Dirce escolheu era também do Partido, compartilhava dos ideais da moça. Eram apaixonados pela mesma ideia e, então, se apaixonaram.

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Nove dias depois da cerimônia, a jovem casada foi para a região do conflito: “Foi minha lua de mel! Passei a lua de mel nas Trombas”, diz, achando graça da própria história. Dirce é marcada pela lembrança da pobreza, da precariedade e do calor que sentiu ao chegar à região do conflito. O posto de saúde mais próximo aos posseiros era na cidade de Porangatu, a 60 quilômetros de distância. Não tinha armazém, escola, nada. Os posseiros se aglomeravam em duas regiões: Formoso, que era uma ruazinha com quatro ou cinco casas, e Trombas, que também não passava disso. Dirce foi viver perto do córrego da Lage, na casa de um homem chamado Antônio Bugre, um dos simpatizantes do partido: “O Ribeiro saía quase todos os dias pra fazer os comunicado e eu ficava cuidando das coisa em casa. Eu gosto de falar que não fui pra lá como comunista; fui pra lá como uma família que precisava de terra pra viver. Por isso compramo tanto a briga deles: era a nossa briga também.” Os membros do partido fizeram um trabalho minucioso na região. Conversavam com os posseiros, explicavam sobre os direitos de posse, falavam sobre a Revolução de Cuba e da Rússia, almejavam a transformação do Brasil. Dona Dirce gosta de dizer que foi um “trabalho de formiguinha”. Vez ou outra, membros do PCB chegavam na região, levavam armas e também ensinavam os

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camponeses a atirar e se defender dos grileiros. Os camponeses construíram piquetes e passaram a impedir a entrada dos jagunços acompanhados dos fazendeiros. Nacionalmente, nesse momento o PCB já construía um ambiente de prevenção para o Golpe de Estado que aparecia lentamente no horizonte dos mais precavidos. Os líderes do partido já suspeitavam do que estava para acontecer e incentivavam a resistência armada, dando todo o suporte que era possível. Com o relativo sucesso das lutas em Trombas, a região se tornou uma válvula de escape, um depósito de esperança. As fichas foram depositadas lá. Para alguns membros do PCB, aquele era o princípio da Revolução no Brasil. No início, Dirce costumava ser a única mulher nas reuniões da Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas: “as mulheres ficavam escondida olhando pelos buracos, querendo ouvir as conversa... elas tinham medo de ficar sozinha em casa”. Dirce se tornou uma defensora da presença feminina; dizia que elas também precisavam aprender a se defender, que elas também faziam parte da luta. No início, como era de se imaginar no interior de Goiás dos anos 50, os homens não aprovavam a ideia. Mas com o tempo passaram a respeitar e até mesmo admirar Dirce, e pouco tempo depois

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algumas “companheiras” se juntaram a ela. Entre elas, estava Leonília. De todas as pessoas que conheceu na luta de Trombas e Formoso, Leonília é a que mais ganhou o respeito de Dirce. “A véia Leonília era matriarca, ninguém ia contra ela.” Leonília Marinho vivia com a família na beira do córrego do Sapato, bem na entrada de Trombas. As mangueiras que ela e o marido plantaram continuam lá ainda nos dias de hoje. A mulher alta e forte fez um dos discursos que Dirce nunca esqueceu: “Teve uma vez que apareceu um caboco chamado Duque, querendo fazer a cabeça dos homens, tirar eles dos piquete. Esse Duque tava infiltrado, era mandado dos jagunço. Mas os homem tavam há muito tempo nas trincheira e começaram a acreditar nesse homem, de que não precisava mais ficar esperando porque os grileiro tinha desistido de roubar nossas terra. É claro que era mentira, mas eles tavam há muito tempo tomando sol e chuva lá, cansados, e acreditaram nisso. Foram pro rancho depositar as arma. Mas a velha Leonília entrou lá, apontou o dedo na cara dos homi e disse que eles eram tudo frouxo. Pra maranhense, dizer que é frouxo é pior que xingar de qualquer outra coisa. A Leonília perguntou se eles não tinham coração, se depois de tantos anos de sofrimento iam acreditar no primeiro que chegasse. Disse que se eles não

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fosse, a gente ia. As mulheres. Era eu, a Leonilia, a Carmina, a Josefa e a Joaninha. E a gente ia mesmo, se precisasse a gente ia”. No fim das contas, elas não precisaram ir. Depois de alguns anos de luta, no fim da década de 1950 e início de 1960, um tempo de calmaria chegou à região, e cada um foi para sua posse. O governador Mauro Borges se mostrou sensível à causa camponesa em Trombas, e Dirce se orgulha ao lembrar que se alguém de lá quisesse falar com ele, era só ir para Goiânia e dizer que era posseiro de Trombas. “A reunião era simples, ele gostava da gente”. Um tempo depois, José Porfírio, um dos principais líderes da região, foi eleito deputado estadual, o primeiro deputado camponês do Brasil. Dirce foi viver em uma mata perto de Formoso, plantou e ajudou o marido com os animais, alfabetizou os filhos lá mesmo. -Ela e o marido, Zé Ribeiro, souberam do golpe militar pelo rádio. Dirce suspira e os olhos focam em um ponto qualquer da parede ao se lembrar de 1964. Costumavam ouvir a rádio de Havana e a de Moscou e por aí souberam sobre a gravidade do que estava acontecendo com o país. Imediatamente, Dirce

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mandou os filhos para a casa de um parente, inclusive a mais nova, uma menininha de seis meses de idade. O casal foi se esconder na mata. Dirce se lembra com angústia da ocasião em que ficou 15 dias sozinha, dentro da mata, dormindo em cima de pedras. Acordava à noite com o barulho dos aviões sobrevoando as árvores: procuravam pelos comunistas. Enquanto estava sozinha, Dirce foi picada por uma lacraia, e teve que ir para Brasília tentar curar o ferimento. Lá, encontrou um médico conhecido que concordou em ajudá-la clandestinamente. Antes de voltar para casa, decidiu tentar mudar a aparência. Afinou bastante a sobrancelha e pintou o cabelo de loiro. Ela sabia que estava sendo procurada pelo governo e imaginou que dessa forma estaria se protegendo. Dirce pegou o ônibus de volta para Formoso, escolheu uma das últimas poltronas, colocou um lenço no rosto para não ser reconhecida e ficou quieta, por toda a viagem. O ônibus fez uma parada, uma senhora desceu, comprou um copo de leite e um pedaço de bolo e os entregou a Dirce dizendo: “Toma minha filha, come.” Dona Dirce não sabe dizer se a senhora a reconheceu ou não e, independente disso, foi algo que ela nunca esqueceu. Quando chegou, alguns dos companheiros já tinham fugido para o Tocantins. Dirce e Zé Ribeiro foram se esconder na

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Serra da Mesa. Lá, a polícia não sabia chegar, mas não ficaram por muito tempo. Procurando uma alternativa à vida de fuga, o casal decidiu fazer uma chegada estratégica em Trombas. “A ideia era que eu chegasse lá e a polícia me prendesse, porque eu era mais fácil sair que o meu marido. Então eu fui pra lá, disse que tava sozinha e que eles podiam me prender, e o Zé Ribeiro ia trabalhar pra me tirar da prisão.” O plano não deu certo, e Dirce, o irmão e o marido foram capturados. Foram amarrados, levados para um descampado, onde os policiais estavam bebendo. Desceram em uma encruzilhada e lá mesmo começou o espancamento. “Perguntavam pelo Zé Porfírio, pelo Mauro Borges, pelos companheiro de luta. Me chamavam de puta safada, me deram socos, me queimaram com cigarro.” De longe, Dirce conseguia ver o marido preso de cabeça pra baixo, com o nariz quebrado. Mais à frente estava o irmão, César, que também apanhava. “Eles me disseram que o Zé ia morrer enforcado e eu quis morrer. Dei uma risada na cara dele, com toda a força que tinha; não ia dar o gostinho deles achando que acabavam comigo. Eles me bateram com mais força. Acordei um tempo depois toda molhada de pinga, vomitei muitas vezes”. Os prisioneiros foram levados para uma pensão em Formoso, e lá encontraram outros companheiros. Um deles, o

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mais machucado, era Nelson Marinho, filho da Leonília, amiga de dona Dirce. Nelson foi um dos líderes do conflito, mas decidiu não fugir para o Tocantins, pois não quis abandonar a família. Ela aperta os olhos e leva as mãos à boca quando se lembra do estado de Nelson: “Eles cortaram o couro cabeludo dele e fizeram ele engolir com urina. Acabaram com esse homem. Era um rapaz, e pagou um preço alto demais.” Nelson Marinho foi preso duas vezes pelo exército brasileiro, a primeira logo depois de 1964 e a segunda no início dos anos 1970. Em uma Escritura pública Declaratória Dirce afirma que “o Sr. Nelson Pereira Marinho teve muitos prejuízos materiais, sem falar dos prejuízos morais e da sua saúde física e psicológica, tendo ficado inválido e incapacitado para exercer todo e qualquer tipo de atividade produtiva, vez que ficou muito debilitado das barbaridades que sofreu durante as prisões, vindo a ficar completamente alienado e dependente do álcool, fruto das torturas dos espancamentos de toda a natureza, das pressões ostensivas e das frequentes simulações de fuzilamentos e, principalmente, dos choques elétricos que sofreu nos genitais, que o deixou impotente e incapacitado sexualmente, conforme confirma a sua própria família ”. Nelson faleceu alguns anos depois que foi solto. Na pensão em que Dirce e Nelson se

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encontraram em Formoso também estavam estudantes, jornalistas e simpatizantes do partido: “todos arrebentados”. Em Brasília, assim que as primeiras notícias sobre o golpe chegaram, surgiu a ideia de um plano de resistência fora da capital. O Partido Comunista na capital federal avaliou a possibilidade de resistência em algum outro ponto do Brasil, e dessa possibilidade, mesmo sabendo da adesão (meramente revanchista) de Mauro Borges ao golpe, a ideia daquele grupo era ir com armas para a região de Trombas e Formoso e, de lá, iniciar o contragolpe. A ideia foi considerada inviável assim que souberam que, no sul do país, João Goulart, que seria uma grande força à resistência, optou pelo exílio. Quanto a Mauro Borges, o apoio ao golpe não era ideológico e nem mesmo significava concordância com os métodos e com a própria ditadura militar. Era uma revanche contra o presidente Goulart por considerar que este não teria reconhecido e valorizado com ajuda ao seu governo em Goiás o apoio que ele (Mauro) e outros governadores deram para garantir a posse do então vice-presidente (Goulart), quando da renúncia do presidente Jânio Quadros, no episódio conhecido por Cadeia da Legalidade, liderada por Brizola desde o Rio Grande do Sul. Todo o governo e o secretariado de Mauro, com perfil então mais à

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esquerda do espectro político, inclusive o apoio aos posseiros de Trombas, foram motivo para que, mesmo com a adesão inicial ao golpe, os militares o derrubassem ainda em 1964. Dirce ficou dois meses e 20 dias na cadeia. Zé Ribeiro, seu marido, alguns dias a mais. Na prisão, os detentos não comiam todos os dias. Eram constantemente transferidos de cidade, numa tentativa do Exército de escondê-los dos próprios advogados. Ela não gosta de se lembrar dos dias que viveu dentro da prisão: “eu queria era poder esquecer”. Os anos de perseguição passaram e ela diz ter sido esquecida pelos militares. Quando liberta, voltou para Formoso, onde foi dar aulas, passou muito tempo trabalhando com a educação de jovens e adultos na cidade. Mais tarde, se candidatou à vereadora e venceu. No seu mandato, foi Dirce quem apresentou o projeto de emancipação de Trombas. Hoje, dona Dirce vive em Goiânia. Chegou o momento em que a mãe e o marido dela precisaram de tratamento médico e todos eles decidiram se mudar. Mas ela diz que queria mesmo era ter ficado por lá. Vez ou outra, vai para o norte, fica na casa de dona Joaninha, sua amiga e companheira de luta. Dona Dirce lamenta profundamente o fim que teve a Associação em Trombas. Ela acredita que se não fosse por isso, a

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cidade teria tido outro destino, mais próspero. Ainda assim, se orgulha ao dizer que “a cidade é livre, então ganhamos nossa luta, por um preço muito alto, foi sangue de muita gente. A luta de agora é dos jovens; eles têm que transformar aquilo lá”.

Dona Dirce (Foto: Raíssa Falcão)

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CAPÍTULO 3

A CAMINHO DE TROMBAS

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“O rádio é o divertimento do pobre (...), e a informação dos que não sabem ler”, disse uma vez Roquete Pinto, aquele que é chamado Pai da Radiodifusão no Brasil. Foi pelo rádio que lavradores das regiões Norte e Nordeste do País ouviram um chamado do Governo Federal no fim dos anos 1930. Os dias no campo começavam bem cedo. Às cinco da manhã os trabalhadores já estavam de pé, ouvindo programas sertanejos, preparando-se para o dia que viria. E em um dia, sem qualquer aviso prévio, foram surpreendidos com um novo tipo de propaganda durante a programação: era uma mensagem direcionada a eles. E o lavrador pobre, sem terra, recebeu um convite: “Lavrador sem terra, venha para Goiás, trabalhar na sua terra doada pelo governo”. E eles foram. De acordo com a historiadora Maria Esperança Fernandes Carneiro (1988), as propagandas de rádio faziam parte da política do Estado Novo do presidente Getúlio Vargas, que tinha como objetivo de gestão a ocupação do oeste do Brasil. Até então, apesar do extenso território, o Brasil havia prosperado quase que exclusivamente nas regiões litorâneas. Mais de 90% da população brasileira ocupava cerca de um terço do território nacional. A

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Marcha Para o Oeste foi a incorporação do Centro-Oeste ao processo produtivo brasileiro, como região fornecedora de matéria-prima e produtos agropecuários. Em sua tese de mestrado, a autora explica que Vargas queria ampliar o espaço econômico e garantir a segurança nacional. Para isso, direcionou os excedentes populacionais para os vazios demográficos. A estratégia foi apresentar a Marcha Para o Oeste como solução para esses dois problemas. De acordo com Carneiro, Getúlio afirmava que “O Brasil sempre foi alvo da cobiça internacional. No período de entreguerras, as pretensões de utilização

econômica

dos

vazios

demográficos

brasileiros

decorrem da ameaça de uma segunda guerra mundial e das necessidades de abastecer a curto prazo o mercado mundial de alimentos e matéria-prima”. Ainda segundo Vargas, citado por Carneiro, “... O sertão, o isolamento, a falta de contato são os únicos inimigos para a integridade do país... A expansão econômica trará o equilíbrio desejado entre as diversas regiões do país, evitando-se que existam irmãos ricos ao lado de irmãos pobres”. O Estado Novo de Vargas, na realidade, pretendia uma democratização da utilização da terra para o modelo capitalista: criou projetos de colonização para onde os excedentes populacionais deveriam ir, sem abalar, dessa forma, o sistema

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fundiário da grande propriedade existente no país (CARNEIRO, 1988, p.77/78 ). O estado de Goiás era um dos grandes alvos da Marcha Para o Oeste, e o Governo Estadual, tendo expectativa de crescimento e modernização, construiu um plano de implementação da ocupação proposta, que, segundo Carneiro, teve como principais estratégias: 1. A transferência da capital do estado da cidade histórica de Goiás para Goiânia; 2. Expansão da rede ferroviária até Anápolis; 3. Implantação da primeira colônia agrícola do estado em 1941, a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, na cidade de Ceres (CANG) 4. Criação, no inicio da década de 1950, das colônias agrícolas de Rubiataba, Rialma e Carmo do Rio Verde, como um prolongamento da CANG; 5. Com o início da construção de Brasília em 1956, houve a implantação de um sistema viário capaz de colocar a nova capital em permanente e fácil acesso com as demais regiões do país, o que certamente favoreceu o estado de Goiás. A construção da rodovia Belém-Brasília (ou Transbrasiliana) foi um dos resultados da ampliação do sistema viário nacional.

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Cartaz da década de 1930, incentivando a mudança para Goiás. (Foto: Reprodução)

Foi criada na cidade de Ceres, como parte do plano de implementação da ocupação do estado, a Colônia Agrícola Nacional de Goiás, a CANG, liderada pelo engenheiro agrônomo carioca Bernardo Sayão. Mas apenas uma colônia agrícola foi incapaz de absorver o fluxo migratório que o estado de Goiás passou a receber continuamente. A propaganda de rádio, transmitida junto com os programas

sertanejos,

tornou-se

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uma

notícia

reproduzida


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repetidamente de boca em boca e, mesmo com a queda do Estado Novo, em 1945, o fluxo migratório continuou intenso. O governo realmente estava doando terras, lotes de 6 a 10 alqueires goianos (um alqueire goiano equivale a 4,5 hectares), mas o que não ficou muito claro nas propagandas de rádio e menos ainda na propaganda boca a boca é que as terras doadas estariam obrigatoriamente nas áreas de colonização pré-determinadas pelo Estado. Muitos dos camponeses que chegaram em Ceres e não encontraram mais terras disponíveis receberam a informação, um boato, de que havia novas terras sendo doadas na região norte do Estado. Com o tempo e as proporções dessa notícia, eles nem passavam mais por Ceres; o destino final passou a ser, desde o início, o norte do estado. A recém-construída rodovia Transbrasiliana facilitou o acesso e, assim, esses camponeses chegaram à região de Trombas e Formoso.

3.1 Trombas e Formoso: um pouco de história Trombas e Formoso pertenceram ao municio de Uruaçu que, antigamente, tinha um vasto território, ocupando grande parte da região norte do estado. Uruaçu começou a ser povoada a partir

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da segunda metade do século XVIII, com a mineração. Mesmo assim, até 1950, essa região era considerada, pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), um vazio demográfico. O município de Uruaçu começou a sair do seu isolamento em relação ao estado e ao país somente em 1948, quando a cidade foi cortada pela Rodovia Transbrasiliana. Parte da migração que inicialmente se destinava à Ceres encontrou caminho aberto com a Transbrasiliana e foi para as regiões circunvizinhas à cidade. O município de Uruaçu possuía uma enorme quantidade de terras devolutas, nos arredores do povoado de Formoso, na margem esquerda do Rio Santa Tereza. Com a construção da rodovia,

os

fazendeiros

locais

enxergaram

uma

grande

possibilidade de valorização dessas terras, que passaram a ser objeto de desejo. Ao mesmo tempo, a rodovia se tornou via de acesso para essa corrente migratória que, impossibilitada de se estabelecer em Ceres, procurava no norte do estado meios para a sobrevivência da família.

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Mapa identificando as cidades de Uruaçu, Formoso e Trombas (Fonte: Google Maps)

A migração levou até a região cerca de mil famílias, que foram chegando aos poucos. Impulsionados pelas secas do sertão da Bahia e do Ceará, expulsos das fazendas do sul pelos latifundiários, ou fugindo da vida sem perspectivas do interior do

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Maranhão

e

Piauí,

eles

vieram

em

pequenos

grupos,

desordenadamente. De acordo com relatos dos camponeses, no início, muitos deles já se conheciam ou eram parentes, então não foi difícil fazer daquela região suas casas. As famílias chegavam, cercavam um pedaço de terra, desmatavam e preparavam o solo. Em grupos, também faziam trilhas e estradas. A experiência já havia ensinado aos posseiros que os melhores solos são os da mata. Por isso, as famílias foram se fixando nas beiras dos córregos, com suas roças de arroz, feijão, milho e mandioca. Da metade da década de 1940 até o início dos anos 1950, os posseiros conseguiram se estabelecer nas terras do norte, que foram generosas com eles e, em pouco tempo, a fome e a seca já não amedrontavam mais os camponeses. A região ocupada pelos migrantes era conhecida como Formoso das Trombas. O nome surgiu a partir da forma de uma das maiores montanhas da região que, olhada de longe, se assemelha à tromba de um elefante. “Formoso”, porque se tratava de uma região bonita, com muitas matas e rios. O desmatamento realizado pelos camponeses valorizou ainda mais a região e, por consequência, aumentava também o interesse dos fazendeiros que já viviam ali. A maioria deles possuíam grandes porções de terra, praticavam a pecuária

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extensiva e eram respeitados (e temidos) pela população mais humilde. Alguns autores, como o professor da Universidade Federal de Goiás Cláudio Maia, relacionam o interesse repentino dos fazendeiros pela terra à transferência da capital federal para dentro do território goiano, o que, segundo o professor, fez dar início ao boato de que as terras em Goiás valorizariam muito. Dessa maneira, as terras que até alguns anos antes disso eram esquecidas, sem dono, passaram a ser desejadas, tanto pelos grupos de migrantes, que, sem terras, procuravam um meio de sobrevivência em Goiás (a sua terra prometida pelo governo), quanto pelos fazendeiros que já viviam na região, que viram nessas terras a possibilidade de fazer renda. Nos primeiros anos da década de 1950 o estado de Goiás foi tomado por um fenômeno ligado à posse da terra: a grilagem. Segundo o historiador Sebastião de Abreu, as regiões das cidades de Posse, Itapaci, Crixás, Uruaçu e Gurupi (a última atualmente localizada no estado do Tocantins) eram os centros preferidos para a atuação dos grileiros. Percebendo o potencial que as terras ocupadas pelos posseiros poderiam ter, os fazendeiros da região de Trombas e Formoso recorreram a advogados conhecidos pela fama de criar documentos aceitos como verdadeiros, mas de conteúdo falso.

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As diferenças dessas pessoas, dos objetivos e das formas de apropriação é que fizeram dessa região o palco para a Revolta Camponesa de Trombas e Formoso.

3.2 O Conflito O conflito teve início quando um grupo de fazendeiros liderado por um comerciante da região de Uruaçu, João dos Santos Soares, passou a exigir dos posseiros, por escrito, o pagamento do arrendo da terra que ocupavam. Até então, os camponeses concordavam com o pagamento do arrendo, por dependerem do comerciante, mas se recusaram a assinar qualquer contrato. A maioria absoluta dos posseiros era analfabeta. Os fazendeiros utilizavam os migrantes por dois anos, geralmente.

Assim

que

chegavam,

os

camponeses

eram

incentivados a abrir a região, e a partir do primeiro ano era cobrado arrendo de 20%, sem usar violência. A partir do segundo ano, exigiam dos posseiros a assinatura de desistência da propriedade das terras e, em seu lugar, a assinatura de um contrato de arrendo (que passou a funcionar como um contrato de “aluguel”). Os jagunços contratados pressionavam os camponeses a entregar a terra, primeiro através de ameaças e, depois, com o

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uso da violência. Espancamentos, destruição das plantações, queimadas de casas, roubo de gado e até mesmo assassinatos dos resistentes passaram a ser práticas constantes. Nessa época, houve uma primeira tentativa de resistência por parte dos posseiros, liderada pelo camponês Zé Firmino. Mas, sem qualquer organização, logo foi dissipada pelas ameaças e práticas de violência. Os fazendeiros tinham o apoio do governo e da polícia de Porangatu que, na época, era distrito do município de Uruaçu. Pretendiam a legalização das terras devolutas para futuramente poderem

vendê-las a

grandes

proprietários.

Segundo

os

camponeses, o grupo pretendia usá-los como arrendatários ou assalariados nas novas propriedades que se formariam. Porangatu era o centro urbano mais próximo da região ocupada pelos posseiros e lugar de encontro dos fazendeiros, que também dominavam o distrito. As famílias que eram as donas da maior parte da terra também tinham seus descendentes ocupando cargos de importância na delegacia e no cartório, por exemplo. Em 1950, várias famílias provenientes do município de Pedro Afonso, no Tocantins, chegaram em Trombas. Entre elas, a família de José Porfírio, que, anos mais tarde, se tornaria um dos principais líderes camponeses do Brasil. As famílias de Pedro

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Afonso conseguiram sua posse ao sul da região, e até meados de 1951 trabalharam sossegadas. Entretanto, logo os fazendeiros perceberam que todos os dias apareciam muitas novas famílias e depositaram mais força na cobrança de uma porcentagem sobre o que era produzido pelos posseiros. Os camponeses, todos com muitos filhos pequenos, decidiram não pagar nada. Como não conseguiram obrigar os posseiros a pagar o arrendo, os fazendeiros passaram a expulsar algumas famílias, tentando aterrorizar as demais. Este trecho da Revista Manchete, escrito anos mais tarde, incluindo depoimento de José Porfírio, esclarece como aconteciam as ameaças aos posseiros: Em 1951, Porfírio estava em casa de seu amigo Pedro Coelho, posseiro como ele, quando bateram à porta. Era uma caravana do Juiz Adelino Américo, de Porangatu, e os fazendeiros Antenor Pereira, Chico Correia e Antonio Navarro. Tinham vindo avisar que era chegada a hora de os posseiros Pedro Coelho, João Marinho, João Batista e Custódio Falcão abandonarem a terra. “Vão embora!”, era a palavra de ordem que chegava. O velho Pedro indagou porquê. Adelino respondeu que os fazendeiros precisavam da terra para botar gado. Mas respondeu com maus modos, ao que Pedro Coelho advertiu: “Não é desta forma que se toca um homem para fora de suas terras. Só se ele é um invasor ou ladrão. Nós não somos nem uma coisa nem outra...” Zé Porfírio observava de longe a conversa. Quando viu que ninguém queria falar, se adiantou: “ Olhem, vocês não precisam sair da terra, vejam

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primeiro se são eles os donos. Se eles têm documento. Defendam o direito de vocês. Olhem, se quiserem, eu organizo a defesa de todos os posseiros.” (Revista Manchete. Rio de Janeiro (s.n.), 30 de Mar. 1957, p 88).

Assim começou o período chamado pelos posseiros de “Legalidade”. José Porfírio viajou várias vezes para Goiânia no intuito de legalizar a permanência dos camponeses, e chegou a conseguir títulos de propriedade provisórios, em 1953. No entanto, para terem validade, os títulos tinham que ser reconhecidos pelo cartório de Uruaçu, o que não aconteceu. Lá, o registro dos títulos provisórios foi sustado. O dono do cartório era um fazendeiro. Depois da negação da legalidade das terras, a violência contra as famílias de Trombas continuou por alguns anos, em fatos isolados, mas igualmente cruéis. Segundo Sebastião de Abreu, autor da obra “De Zé Porfírio ao MST”, afirma que foi no fim do mês de Julho de 1953, em uma reunião preparatória do Primeiro Congresso Camponês de Goiás, em Ceres, que o Partido Comunista Brasileiro ouviu a história dos posseiros de Trombas e Formoso pela primeira vez. Um dos participantes da reunião levou a notícia de que “bem pra lá de Uruaçu tem uma nação de baianos que está se organizando para resistir a uma ordem de despejo”. D

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Diante da situação, o PCB, um partido que tinha mais da metade dos seus filiados vinda do campo, se sensibilizou com a causa camponesa e notou a potencialidade revolucionária do movimento. O partido, então, designou alguns membros para irem até o norte organizar a resistência dos posseiros. Dessa forma, os conflitos que desde 1952 tinham forças policiais e grileiros de um lado, passaram a ter camponeses e PCB de outro. O PCB contribuiu bastante para a organização e motivação dos camponeses. Menos de um ano depois da chegada dos membros do partido, foi fundada a Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas e os Conselhos de Córregos. Os Conselhos, como o nome explica, reuniam as famílias que viviam nas margens de determinado córrego em reuniões. A Associação funcionava como um conselho geral, reunindo todos os outros, altamente organizado. O presidente da Associação era José Porfírio. Os homens receberam armas e treinamento e construíram os piquetes. Passavam dias e noites na espreita e, diante de qualquer movimentação suspeita, atiravam. Mulheres e crianças também fizeram parte da luta armada. As crianças caminhavam a pé por quilômetros, se embrenhando nas matas, atravessando córregos e rios na calada da noite, levando mensagens de um

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piquete para outro. Elas receberam essa tarefa porque passavam quase que despercebidas pelos jagunços dos fazendeiros. As mulheres, por iniciativa própria, criaram um sistema de segurança que envolvia toalhas estendidas na janela como sinal de perigo, e fogueira na frente do rancho para sinalizar que no interior da casa estavam jagunços de tocaia, por exemplo.

3.2.1 A Batalha de Tataíra Entre 1954 e 1957, vários enfrentamentos ocorreram na região. O mais significativo deles foi a Batalha de Tataíra, em 1954. Segundo Abrão de Souza, irmão do líder camponês José Porfírio, foi em Abril desse ano que as tropas saíram de Formoso com destino a Trombas. A estratégia dos posseiros era deixá-los passar pelos primeiros piquetes e atacá-los quando estivessem no último, que ficava às margens do Córrego da Tataíra. Dessa maneira, estariam sem saída. No entanto, a tropa composta por policiais, jagunços e fazendeiros se surpreendeu com a investida e a reação foi, ao contrário do que pensavam os posseiros, acelerar, em vez de dar meia volta. O avanço dos soldados, em vez do esperado recuo, deixou os posseiros transtornados. A polícia seguiu caminho para Trombas e lá fez mulheres e crianças reféns e os

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transformou num escudo humano. Os policiais voltaram para Formoso agachados, atrás das mulheres, e as deixaram na beira da estrada, alguns quilômetros depois do primeiro piquete da estrada. Nas semanas seguintes, os policiais, que nesse momento já se concentravam no povoado de Formoso na expectativa de invadir Trombas, tentaram ainda algumas investidas armadas contra os camponeses, todas sem sucesso. Apesar da Batalha de Tataíra ter sido surpreendente para os dois lados, o apanhado geral era de que os camponeses haviam saído vitoriosos, já que a polícia foi quem recuou. A vitória camponesa nesse embate foi fundamental para se espalhar a notícia de que os camponeses estavam bem armados e “preparados para a guerra”. Na realidade, os camponeses não dispunham de um grande arsenal de armas ou homens com preparação bélica nesse episódio. Segundo a literatura, tratava-se de seis homens e dois piquetes à frente com mais doze homens atrás, e foram suficientes para colocar a polícia no caminho de volta para casa. Além de ajudar na organização dos posseiros, o PCB também contribuiu fortemente com a dimensão que a luta dos camponeses de Trombas tomou. Os membros do partido utilizavam-se das suas redes de contatos, que incluía outros membros, políticos, estudantes e jornalistas, para tornar a batalha

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pela terra conhecida. Por isso, nesse momento, alguns jornais já noticiavam os enfrentamentos no norte do estado e a opinião pública, na segunda metade da década de 1950, já estava favorável aos posseiros. Esse fato levou o governo a não enviar reforços para a região.

Posseiros de Trombas. Porfírio é o terceiro, da esquerda para a direita (Foto: Reprodução).

A Batalha de Tataíra foi fundamental para os anos de relativa paz que estavam por vir. Esse confronto forçou o recuo das forças contrárias ao campesinato. Por ordem direta do governador do Estado de Goiás, José Ludovico de Almeida, as

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tropas que estavam em Formoso esperando pelo momento de invadir Trombas, foram aquarteladas em Porangatu, sessenta quilômetros ao norte. Depois da Batalha de Tataíra, de 1957 a 1964, a região viveu um período de Trégua. A pressão feita pela repercussão nacional da violência praticada em Trombas, a (fantasiosa) notícia de que os camponeses estavam muito bem preparados e armados e a preocupação com a transferência da capital do país para o estado que abrigava essa revolta fez com que jagunços, grileiros e policiais parassem de tentar invadir o povoado. A Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas cresceu, a luta dos camponeses ganhou o apoio dos goianos e o interesse de partidos políticos. Os camponeses ficaram nas terras e conseguiram sustentar bem a família. O posseiro José Porfírio foi eleito deputado estadual em 1962, no mandato de Mauro Borges, governador que era visto como “amigo dos posseiros”. Porfírio teve como principal bandeira de campanha a luta pela terra, a Reforma Agrária do Brasil.

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3.3 O Golpe Militar de 1964: nova incursão contra os posseiros Na madrugada do dia 31 de Março de 1964, um golpe militar foi deflagrado contra o governo do presidente João Goulart. Os militares diretamente envolvidos com o golpe justificavam suas ações afirmando que o objetivo era restaurar a disciplina e a hierarquia nas Forças Armadas e deter a “ameaça comunista” que pairava sobre o Brasil. Amparados pelos Atos Institucionais, os militares perseguiram, torturaram e mataram inúmeros membros de setores considerados ameaças, como o PCB, a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e a Ação Popular (AC). Em 1964, a situação entre grileiros e camponeses já estava “pacificada” na região de Trombas, diante da construção da representatividade da revolta, da figura do deputado José Porfírio e da força da associação dos camponeses. Ainda assim, os militares queriam afastar a possibilidade de Trombas e Formoso se tornar lugar de recrutamento de guerrilheiros. A região foi considerada foco de ideias comunistas e o Exército foi enviado para a cidade: os anos de paz haviam acabado para os posseiros. José Porfírio teve o seu mandato cassado e fugiu. Os heróis da resistência [ 73 ]


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armada fugiram para o Maranhão, numa tentativa de se esconder do Exército. Os que ficaram em Trombas foram presos e torturados. Os relatos sobre a violência praticada pelo Exército depois de 1964 ainda atormentam as famílias dos camponeses. Filhos que perderam os pais, netos que não chegaram a conhecer os avós, mulheres que viram os maridos perderem a vontade de viver depois de intensa flagelação: as lembranças são muitas, e muito dolorosas. Trombas é uma cidade que se orgulha por ter lutado (e vencido) com todas as forças a disputa pela terra, mas lamenta profundamente ter perdido para a ditadura. Pouco tempo depois do golpe militar, a Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas deixou de existir e um interventor foi nomeado para a prefeitura do município. Muitos posseiros começaram a vender suas terras em razão das dificuldades econômicas advindas da falta de política de apoio e crédito aos pequenos agricultores e às pequenas propriedades. A região foi abandonada e com o passar do tempo o quadro fundiário foi se alterando.

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3.4 Operação Mesopotâmia No início dos anos 1970, ocorreu de forma extremamente violenta a segunda invasão da região de Trombas e Formoso pelo Exército Brasileiro, que prendeu dezenas de pessoas e antigos quadros comunistas. Alguns deles foram presos e torturados pela segunda vez em menos de uma década. A Operação Mesopotâmia foi um projeto idealizado pelos militares e tinha como objetivo acabar com toda e qualquer possibilidade de revolta no interior do país. Para isso, o Exército mergulhou no interior recolhendo armas e prendendo pessoas que de alguma forma, de acordo com o julgamento deles, representavam perigo. De acordo com o escritor paulista Paulo Ribeiro da Cunha, autor do livro Aconteceu longe demais, no curso da Operação Mesopotâmia, a imprensa nacional anunciou com alarde a “Incrível história de um país russo no Brasil” e o fato de que “Goiás abrigou durante 11 anos um Estado Comunista” (CUNHA, 2007,p.280), bem como a prisão das principais lideranças e a descoberta das armas. A operação deslocou trinta e oito militares, no período de 2 a 12 de Agosto de 1971. Foram 32 prisões de pessoas consideradas suspeitas ou ameaças. Os presos, na sua maioria,

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foram levados para Brasília e passaram meses sob o poder do Exército, vivendo todo tipo de atrocidade. José Porfírio foi encontrado em 1972, depois de oito anos vivendo na clandestinidade, escondido. Foi preso sob a acusação de ser “elemento subversivo” e levado para o Pelotão de Investigações Criminais do Exército (PIC), em Brasília, junto com os seus companheiros de luta. Depois de seis meses de detenção, Porfírio foi liberado. Relatos dizem que no mesmo dia o camponês embarcou num ônibus que o levaria de volta para Trombas, para a sua terra e sua família. Ele nunca chegou.

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CAPÍTULO 4

A CAMINHO DO ESQUECIMENTO

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Depois de 1975, não houve nenhuma manifestação política organizada de esquerda em Trombas. O silêncio ainda domina a cidade. Muitos representantes do conflito foram embora numa tentativa de se esconder dos militares e não mais voltaram. Os que ficaram continuam vivendo em casas incrivelmente simples, algumas ainda na zona rural, outras em uma das tranquilas ruas da cidade. Os sobreviventes muitas vezes optam pelo silêncio, têm medo do que possa vir a acontecer. Costumam dizer que “a onça continua solta”. Outras vezes são enganados pela própria memória. Segundo a prefeitura de Trombas, a concentração fundiária da região sofreu profunda alteração nas últimas décadas. São poucas as pequenas propriedades e menor ainda o grupo de posseiros de 1950. O que corre de boca em boca na cidade é que quando alguém consegue se “erguer na vida”, logo faz as malas e vai para Goiânia, onde encontra mais serviços, principalmente hospitalares. Dessa regra fogem os mais velhos, que resistem às propostas de deixar suas chácaras e sítios, mesmo quando o caso é de saúde. Para chegar em Trombas, é preciso abandonar a BR 153 (antiga Transbrasiliana) na altura da cidade de Santa Tereza (370 quilômetros de Goiânia), e tomar a rodovia estadual 241, que liga

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Santa Tereza a Minaçu. Cerca de vinte quilômetros depois, logo após passar pela cidade de Formoso, há o acesso para a GO -142, que à época da visita da autora deste trabalho, estava coberta por piche, etapa anterior ao asfalto. São aproximadamente 30 quilômetros nessa rodovia até que se aviste o arco de boas-vindas da cidade.

Rodovia GO 142. (Foto: Raíssa Falcão)

Das margens da rodovia 142 ainda é possível avistar as pedras que os posseiros utilizaram como escudo nas trincheiras. Algumas são marcadas por furos de balas. Os moradores consideram essas pedras o maior indício da história que um dia [ 80 ]


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ocorreu ali. Apontam orgulhosos para as grandes rochas no horizonte; dizem ser a “comprovação de que o inacreditável aconteceu”.

As pedras usadas nas trincheiras continuam nas margens da estrada. (Foto: Raíssa Falcão)

Na cidade não há nenhum museu ou espaço para abrigar as memórias da luta camponesa. A casa que abrigava a sede da Associação dos Trabalhadores e Lavradores Agrícolas de Formoso e Trombas hoje é um estacionamento. De testemunha, somente a velha mangueira que continua na porta.

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Propriedade que já abrigou a Associação de Trombas hoje é uma garagem . (Foto: Raíssa Falcão)

Não é simples para um visitante se passar por despercebido em Trombas. Não há estação rodoviária na cidade e se a opção for se hospedar no único hotel, logo menos, grande parte dos moradores saberá que “forasteiros” estão por ali. Os que vêm de fora são sempre recebidos com imenso carinho e até um pouco de euforia pelos jovens e adultos. As crianças olham com curiosidade e atenção; gostam de conhecer gente de outras cidades.

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Os velhos, das cadeiras de fio colorido nas calçadas, observam com gratidão e um certo pudor, acenam e sorriem, mesmo sem saber de quem se trata. Com o tempo, dizem ter se acostumado com as perguntas muitas vezes parecidas, de um ou outro estudante ou historiador que chega à cidade, mas não deixam de se surpreender pelo interesse de quem vem de fora. Alguns ainda se emocionam ao se lembrar das lutas, de quem se foi pela terra, de quem herdou a paz alcançada. Outros evitam o assunto. A cidade possui dois hospitais municipais. As duas instituições oferecem atendimento ambulatorial em especialidades básicas, mas não possuem, por exemplo, aparelhos para exames considerados mais “complexos” como o eletrocardiograma , a ressonância magnética ou qualquer tipo de Raio-X. Nem mesmo a ultrassonografia as mulheres grávidas de Trombas conseguem fazer

dentro

dos

limites

da

cidade.

Para

qualquer

acompanhamento médico específico, os habitantes viajam para uma das cidades maiores da região, como Porangatu ou Minaçu, ou tem de percorrer os 412 quilômetros que separam Trombas de Goiânia. De acordo com dados do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), do Ministério da Saúde, em 2013, 3,5% das famílias de Trombas tinham acesso a rede de esgoto. As

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famílias que optaram pelo sistema de esgoto por fossa, correspondem a 95,1%. É importante ressaltar que a utilização das fossas comuns, adotadas pela maioria da população trombense, não é aconselhada pelo Ministério do Meio Ambiente, uma vez que pode ocorrer a contaminação de lençóis freáticos. Quatorze famílias da cidade, o que equivale a 1,4%, ainda tem esgoto a céu aberto, sem nenhum tratamento. Os índices atuais do sistema sanitário do município representam uma relativa melhoria no serviço. Em 2004, por exemplo, 87 famílias mantinham os despejos a céu aberto, mais que o sêxtuplo do número atual. Ainda assim, a cidade se mantém distante da média nacional, que é de 48,29% de famílias brasileiras atendidas pela rede de esgoto, em contraponto aos 3,5% do município. Ainda de acordo com dados do SIAB, 61,5% das famílias de Trombas são atendidas pela rede de abastecimento de água. As demais sobrevivem do uso de poços e/ou nascentes. 16,9% da população acima de 15 anos de idade é considerada analfabeta, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. A incidência da pobreza atinge 48,07% da população. Para o Instituto, a análise do padrão de vida dos habitantes vai além da questão dos rendimentos e

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envolve conceitos de qualidade de vida e exclusão social, como nível de escolaridade e acesso a serviços básicos de saúde. Os enfrentamentos entre grileiros e camponeses não existem mais em Trombas, mas a concorrência por um pedaço de terra sim. Atualmente, famílias ainda enxergam no norte de Goiás a chance mais real de conseguir um espaço para viver, uma vez que no sul do estado são praticamente inexistentes as terras não exploradas. Nas beiras das estradas que circunvizinham a região de Trombas, cerca de 300 famílias vivem acampadas em barracas de lona, conforme dados da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado de Goiás (Fetaeg). A situação é facilmente comparável ao que ocorreu a 60 anos atrás, no mesmo espaço. Como estratégia do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, o Incra, foram criados no norte de Goiás 92 assentamentos. De acordo com o Instituto “o projeto de assentamento é um conjunto de unidades agrícolas independentes entre si, instaladas pelo Incra onde originalmente existia um imóvel rural pertencente a um único proprietário. Cada unidade é entregue para uma família que não tem condições econômicas para adquirir e manter um imóvel rural por outras vias. Os trabalhadores rurais que recebem o lote comprometem-se a morar na parcela e a explorá-la para seu sustento, utilizando a mão de

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obra familiar e contando com créditos, assistência técnica, infraestrutura e outros benefícios de apoio ao desenvolvimento das famílias assentadas. Até que possuam a escritura do lote, os assentados estarão vinculados ao Incra e não poderão dispor da gleba sem anuência ou autorização do Incra. Os beneficiados com glebas em assentamentos pagam pela terra e pelos créditos que receberem”. No entanto, grande parte das 200 famílias que vivem no assentamento José Ribeiro da Silva, que fica dentro do município de Trombas, vivem, segundo a prefeitura, em situação de inadimplência. Como consequência, não conseguem se desvincular do Incra e finalmente possuir a escritura de um dos lotes de 18 hectares cada. Algumas propriedades da região, que ainda são habitadas pelas famílias dos posseiros da década de 1950, não estão regularizadas. Os atuais moradores, depois de gerações vivendo ali, não se sentem ameaçados pela falta de escrituras, e, somado a isso, desconhecem os caminhos legais que proporcionariam a legalização das terras. Nos fins de semana, os habitantes da cidade costumam ir para os sítios da família ou para uma das praias do rio Santa Tereza, que margeia o município. As crianças costumam passar dias inteiros brincando nos córregos e nos pastos. Trombas se

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emancipou de Formoso no dia 15 de Novembro de 1987. É um jovem município, que teve sua primeira eleição em 1988 e comemora o aniversário todos os anos, com jogos, apresentação, desfiles e gincanas no dia 22 de maio.

4.1 O Futuro da Nação dos Posseiros De acordo com os dados apresentados pelo IBGE, a cidade tem, atualmente, 3.452 habitantes. Desses, a maior parte está na faixa dos 10 aos 14 anos. Trata-se de uma cidade com predominância jovem.

Fonte: IBGE

É possível observar, analisando o infográfico, que há uma diferença básica na estrutura etária de Trombas quando comparada

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à de Goiás ou do Brasil. Em Trombas, a faixa etária que, segundo o IBGE, corresponde a população adulta, de 20 a 59 anos, não atende ao mesmo padrão dos outros dois modelos apresentados. Ou seja, proporcionalmente, há menos adultos em Trombas do que a média estadual e nacional. Segundo o professor Antônio Pereira da Costa, diretor do Colégio Estadual Professora Laudomira Martins de Sousa, que atende aos jovens que cursam o ensino médio na cidade, esse dado é facilmente explicado quando observamos os jovens que frequentam a escola. O plano da maioria dos jovens que cursam o terceiro ano, segundo o diretor, é terminar o colégio e ir procurar oportunidades de emprego e estudo em outro lugar. Na cidade há quatro instituições de ensino, todas elas públicas. O primeiro contato das crianças com a escola é feito através do Centro Municipal de Educação Infantil (Cmei) Pingo de Gente, que atende crianças de 0 a 5 anos. Como muitas ainda vivem na zona rural, a prefeitura disponibiliza um serviço de ônibus escolares, para que essas crianças consigam chegar até a sala de aula.

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Ao entrarem no 1º ano do ensino fundamental, as crianças trombenses são direcionadas à Escola Municipal Luiz Batista, onde estudam até cumprir os anos iniciais do ensino fundamental, do 1º ao 5º ano. Com 11 anos, quando estão indo para o 6º ano do ensino fundamental, os estudantes são, todos, transferidos para a Escola Estadual José Porfírio, que os abriga até o último ano do ensino fundamental. Após essa etapa, iniciam o ensino médio no Colégio Estadual Laudomira Martins de Moura, encerrando assim os anos de escola.

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Os jovens, assim que se formam no Ensino Médio, tem que tomar a decisão de ficar em Trombas ou sair da cidade. Os que ficam, geralmente se ocupam cuidando das terras dos pais ou trabalhando em pequenos comércios da cidade. Os que decidem deixar o município procuram oportunidades em Universidades (o campus mais próximo pertence a Universidade Estadual de Goiás e fica na cidade de Porangatu, a 77 quilômetros de distância) ou empregos em cidades maiores. Dentre as quatro opções mais comuns para o futuro do jovem de Trombas, a menos adotada é a de ir para a Universidade. O estudante Victor Leal, de 17 anos, afirma que escolheu não ir para uma Universidade por que quer descansar dos anos de estudo do ensino médio. Willian da Silva, também estudante do terceiro ano, decidiu não ir por que os pais não teriam como sustentá-lo em outra cidade. João Paulo Alves não vai tentar a Universidade porque afirma não poder deixar a mãe sozinha em Trombas. Um outro estudante, que preferiu não se identificar, não vai porque ainda não tem RG, portanto, não pode se inscrever para concorrer a uma vaga, nem no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) ou em qualquer vestibular. É fato que há a parcela que decidiu fazer a prova e dentro desse grupo está a estudante Juliana Silva. A menina se inscreveu

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no ENEM de 2014 e quer tentar uma vaga no curso de Enfermagem: “cuidaram de mim a vida toda. Sempre muito bem, minha mãe fez isso, minha vó também. Agora eu acho que é a minha vez, por isso quero fazer da enfermagem a minha profissão, é o meu sonho”. No entanto, Juliana não pretende voltar para Trombas depois que se formar. “O problema é que aqui não tem muito emprego. A gente fica sem ter opção, você entende? Pra crescer, pra dar orgulho de verdade pro povo lá de casa, eu tenho que ir pra uma cidade maior... eu vou ser a primeira a me formar em alguma coisa”. A menina representa a maior parte dos estudantes que decidiram tentar uma vaga na Universidade: eles não querem voltar. Vânia Dourado, pedagoga e moradora de Trombas, acredita que esse comportamento está ligado ao que ela chama de “afastamento do resto do país”. Segundo Vânia, “Trombas é uma cidade que não fica no caminho de lugar nenhum. Ninguém passa aqui por coincidência, e isso faz parecer que somos uma ilha. Dá pra você ver até por que não tem rodoviária aqui, é porque é difícil alguém aparecer. A energia elétrica chegou aqui não tem nem 30 anos, a internet ainda é novidade. Só tem uma empresa de celular que atende a gente e ainda é meio ruim. Querendo ou não, essa falta de conexão faz com que os alunos tenham uma visão de

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mundo um pouco limitada. E os que têm, quando descobrem que tem um mundo gigante lá fora, decidem não voltar”. Vânia ainda arrisca dizer que Trombas é uma cidade que “parece ter um fim já previsto. Sem os jovens, não tem como sobreviver, não tem futuro”.

Rua de Trombas (Foto: Raíssa Falcão)

O atual prefeito da cidade de Trombas é Catarino José da Silva, filiado ao Partido dos Trabalhadores e, nessa gestão, tem como objetivo a instauração de uma escola técnica, que possuiria cursos ligados às ciências agrárias. O prefeito acredita que essa

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seria a melhor maneira de trazer amadurecimento e conhecimento intelectual para a região. A escola técnica seria uma tentativa de fazer com que os estudantes tivessem um curso superior, mas mantivessem o interesse por ficar na cidade e, assim, ajudar a desenvolvê-la. A expectativa do prefeito é a de que uma vez que os jovens aprenderiam sobre o principal meio de sobrevivência do município, a agricultura, não sentiram a vontade de ir procurar oportunidades em outro lugar. Catarino argumenta que atualmente a produção agrícola de Trombas ainda não é pensada como forma de obtenção de lucro: “os agricultores são muito humildes, produzem só para a sobrevivência. Quando tem excedente, eles vendem na feira da cidade, mas o lucro não é algo que eles pensam antes. É agricultura de subsistência e, infelizmente, isso faz com que os jovens procurem outra coisa pra fazer, porque eles não querem mais viver como os pais”. Por enquanto, segundo o prefeito, o projeto da escola técnica continua no papel, esperando aprovação e investimento do governo estadual.

4.2 Memória local Em Trombas, não há nenhum museu, memorial ou menção formal aos anos de luta camponesa. Recentemente foi criada a

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Secretaria de Cultura e Turismo do Município, numa “tentativa de resgatar a história da cidade”, segundo o prefeito. Catarino ainda lembra que uma proposta de transformar Trombas em patrimônio histórico imaterial já está em andamento junto ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional Brasileiro, o IPHAN: “Não existe aqui nada físico que lembre os anos de luta, nem as casas, nem as armas... só existe a história falada. Sendo assim, protocolamos junto ao IPHAN, com muitos documentos, oitivas, e até mesmo teses de graduação e mestrado, o pedido do registro de Trombas como Patrimônio Histórico Imaterial do Brasil”. O prefeito não sabe dizer em que pé está o andamento dessa operação, mas é otimista ao afirmar que acredita que o pedido “está pra ser aprovado”. Além disso, a prefeitura quer lançar uma pedra fundamental para um memorial “ o quanto antes”. O IPHAN, em seu portal oficial (iphan.gov.br) define os bens de naturareza imaterial como “práticas e domínios da vida social que se manifestam em saberes, ofícios e modos de fazer; celebrações; formas de expressão cênicas, plásticas, musicais ou lúdicas; e nos lugares (como mercados, feiras e santuários que abrigam práticas culturais coletivas)”. Catarino acredita que com o título que Trombas pode receber, além da construção desse memorial, a cidade passaria a ser destino

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para muitos estudantes e intelectuais, alimentando o que ele chama de “turismo universitário”. O prefeito considera essas iniciativas como fundamentais para o resgate e valorização histórica da cidade: “O Brasil é um país que não valoriza seus heróis. Temos muitos na história que são deixados de lado, e isso se vê aqui também. Os jovens daqui que sabem sobre a história dos heróis de Trombas na realidade sabem bem pouco. Esses projetos, a gente faz pra reverter essa situação, pra trazer valor a quem fez a história acontecer por aqui”. Na escola municipal, as crianças do terceiro ano são ensinadas sobre a história do município durante dois meses. Com a média de apenas 8 anos de idade, os jovens trombenses não sabem dizer com certeza o que aconteceu, mas explicam que a terra em que vivem hoje foi conseguida pela luta de homens bravos contra o que elas chamam de “homens maus que queriam pegar nossa terra”, e completam afirmando que “por isso temos que agradecer todos os dias a Deus”. Usam o vocabulário típico de crianças de oito anos de idade, mas apesar do pouco tempo de vida conseguem falar sobre o tema, mesmo que superficialmente. No ensino médio o quadro é diferente. Apesar de serem mais velhos, os estudantes da Escola Estadual Laudomira pouco sabiam sobre a história de seus antepassados. Utilizam-se de uma

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explicação bastante rasa, que parece ser uníssona entre eles: “tivemos aqui uma luta camponesa”. Sabem que um conflito aconteceu ali, mas não sabem bem o que motivou ou quais foram os desdobramentos da história. Na escola estadual José Porfírio, que recebeu o nome de um dos heróis da cidade, a situação não é melhor. Quando perguntados sobre quem é o homem que deu nome à instituição, os alunos respondem de maneira vazia: “sei que ele fez muito por nós, mas não sei o que foi não. Sei que ele lutou e depois foi assassinado. Foi por Trombas, pra que a gente existisse”. Outro estudante afirma que “o Porfírio foi um homem que sozinho fez nascer essa cidade. Ninguém acreditava nele, ele teve que ir pra guerra só e hoje ninguém dá valor a isso, é injusto”. O conteúdo sobre a história da cidade é passado somente uma vez, quando os estudantes ainda são crianças, durante toda a vida escolar. Esse é o fator que segundo Batista de Sousa, diretor da Escola Estadual José Porfírio, faz com que o conhecimento deles seja tão básico a respeito da própria história: “(...) é que a história de Trombas hoje não está no currículo obrigatório estadual, então o que a gente passa pra eles é quando eles são muito novinhos, quando estão na escola municipal, por iniciativa dos professores daqui mesmo. Acho normal eles não lembrarem

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agora. É como se fosse uma história não importante pra vida deles. E saber de onde você veio é importante pra valorizar as coisas que se ganha.” Batista é sobrinho de José Porfírio e, ainda que os estudantes da cidade não saibam muito sobre o assunto, ele comemora o interesse de universitários: “é importante que a comunidade acadêmica se interesse por isso. É importante que essa memória não seja apagada pelo tempo, como vem sendo”. Apesar de não saberem detalhes sobre a história que proporcionou o nascimento da cidade, os estudantes estão, na maioria, ligados a ela por laços de sangue. Nos alunos do terceiro ano do Ensino Médio de Trombas, 113 de 140 estudantes afirmaram ter um parente diretamente ligado ao conflito por terras, o que corresponde a pouco mais de 80%. Quando perguntados se conhecem ou conheceram alguém que participou do conflito, 134 alunos disseram que sim, o que significa mais de 95%. Ainda que o índice seja alto, o tema “História de Trombas” ou “Luta Camponesa” não é comum nas casas desses estudantes. Segundo Batista, isso acontece porque os remanescentes ao conflito ainda não se sentem confortáveis com o tema: “(...).Por muito tempo, nem mesmo os sobreviventes, como o meu pai, quiseram falar sobre isso, porque tinham medo... agora está mudando um pouco, eles tem falado mais, estão sendo chamados

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pra palestras e reuniões... o medo contra retaliação passou um pouco. O que eles sentem agora é medo do preconceito, de serem chamados de bandidos. É a história do Brasil, a luta deles tem que ser lembrada. Eles são importantes, o que eles sofreram não pode ficar jogado no tempo, tem um motivo maior. Tem que ter havido um motivo maior ”. O pai de Batista é Arão de Souza Gil, um senhor na casa dos 80 anos de idade, que gosta de passar os dias sentado na calçada de sua casa em Trombas. O encontrei assim, no meio da tarde, ouvindo música caipira num rádio portátil. Seu Arão acredita que “os colégios deviam incentivar mais os alunos a estudar sobre a história deles. Porque é isso, não é a minha história, não é a história do Porfírio meu irmão, é a história deles, dos jovens. Hoje não tem mais nada que lembre aquele tempo... lá onde era a casa do Profiro é uma loja, onde era a associação é uma garage, cê olha lá e não vê mais nada, tudo acabou. É triste olhar”. Segundo Seu Arão, demora, mas de vez em quando aparece alguém na casa dele perguntando sobre a sua participação no conflito. Outras vezes o convidam para palestras e seminários em Universidades: “eu gosto de ir falar com os alunos, só não gosto de ficar respondendo sobre o que os companheiro passaro na cadeia, o que o Profiro aguentou ou se tinha mesmo espião do

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governo aqui em Trombas. Isso tudo tinha, tudo isso aconteceu. Mas o que os aluno esquece é que a gente tava lutando era pra viver, isso aí tudo que aconteceu depois foi porque a gente disse ‘não’ pra quem explorava nós. A gente não tava procurando essa confusão toda, foi consequência. A última vez que fui convidado, foi pra ir lá na Assembleia (a legislativa de Goiás), pra falar na Comissão da Verdade José Porfírio”. Seu Arão pronuncia com firmeza o nome da Comissão Estadual, que foi batizada em homenagem a seu irmão, há muitas décadas desaparecido. Ele se sente orgulhoso da homenagem, mas ainda pensa com tristeza sobre o irmão desaparecido: “eu queria mesmo era que essa comissão achasse o Profiro, eu sei que ele não tá vivo.... sei que mataro ele no dia que ele desapareceu. Mas acho que se achassem ele agora, o que sobrou dele, seria bom pro povo não esquecer que ele existiu. Que a gente aqui de Trombas existiu e tá existindo ainda. Não por muito tempo, mas ainda tamo aqui!” explica, dando risadas ao brincar com a idade avançada. A Comissão da Verdade e Justiça foi criada no Brasil e em Goiás para apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988. “Tem até uma sala lá na Assembléia que chama Zé Porfirio!”, diz seu Arão, quase eufórico.

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4.3 Lugar na História Maria Aparecida Ramos é uma moradora de Trombas. Dona de casa, a mulher de 43 anos vez ou outra viaja à Goiânia para o tratamento da pressão alta. Sempre acompanhada do marido, ela diz já ter ouvido comentários sobre a sua naturalidade. “Teve uma vez, lá na frente do Hospital das Clínicas, que um homem viu que a placa do nosso carro era de Trombas. Aí ele disse pro meu marido: ‘cê é de Trombas? Terra de homem brabo, né?’. Eu e meu esposo ficamo sem saber o que dizer... rimos assim meio sem graça, né? E aí fomo embora.” O desconhecimento sobre o que aconteceu na região de Trombas ainda é maior depois das fronteiras da cidade. O resto do estado sabe pouco, quando sabe. Os estudantes goianos não são ensinados sobre o assunto. A população mais velha por algumas vezes se recorda de notícias publicadas na época, mas dificilmente sabe explicar o que ocorreu, ou qual a importância disso perante a história de construção e ocupação do estado de Goiás. O professor de história Sancho Machado considera irônico o fato de que a história de Trombas e Formoso é quase sempre lembrada por historiadores, geógrafos e cientistas políticos do

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Brasil, e quase nunca é citada dentro das discussões do Estado de Goiás, nem mesmo quando era aluno do curso de História da Universidade

Católica

de

Goiás

(atualmente

Pontifícia

Universidade Católica - PUC): “vimos história de Goiás muito por cima. Pra esse conteúdo, só trabalhamos com um livro, um do Luiz Palacin (espanhol, considerado o maior historiador goiano). Eu me lembro de ouvir professores citando o caso de Trombas e Formoso, mas bem superficialmente. Quem estudou mais, foi por conta própria. É que os professores da Universidade se tornam ‘especialistas’ no assunto que escolheram para mestrado ou doutorado, então acabam só falando do tema deles. Enquanto não houver um mestre ou doutor da história de Trombas e Formoso dando aula pros estudantes do curso de História, acho difícil mudar. E se esses caras que hoje são alunos da graduação e que no futuro serão os professores do ensino básico e médio não sabem, os alunos deles também não saberão. É um sistema engessado, que deixa de fora assuntos importantíssimos como esse”. O professor acredita que assuntos ligados à resistência política, seja ela armada ou não, e até mesmo à ocupação da terra, Reforma Agrária e afins, ainda são considerados “tabu” em Goiás: “falar sobre esses assuntos aqui é falar sobre quem domina a política e a sociedade. Não é um assunto agradável para a elite fundiária que

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ainda resiste aqui. O nosso pensamento conservador é o que influencia”. Sancho leciona para alunos da rede pública e também da rede particular, e ainda relaciona a falta de entendimento dos jovens estudantes sobre história de Goiás ao vestibular e, mais recentemente, ao ENEM: “O currículo escolar obrigatório acaba sendo guiado pelo que cai nos vestibulares. Claro que tem história no vestibular, mas a parcela dedicada à história regional é bem menor. Com o ENEM, eu acho que as coisas tendem a ficar um pouco mais alarmantes, porque esse sistema acaba tirando essa questão da regionalidade, já que é aplicada pro Brasil todo, a mesma prova. Então o raciocínio é simples: não é ensinado porque não cai no vestibular”. Além de não ser uma história conhecida – e entendida – pela atualidade, a Guerrilha de Trombas e Formoso ainda tem arestas a serem aparadas. Dezenas de camponeses foram torturados na cidade e há poucos registros ou deliberações sobre esses fatos. José Porfírio, líder do movimento camponês, ainda não foi encontrado. Com o intuito de apurar graves violações de Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, foi criada em 2011 pela Lei 12528/2011 e instituída em

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16 de maio de 2012 a Comissão Nacional da Verdade (CNV). Logo após sua instituição, ainda em 2012, a CNV solicitou formalmente junto aos governadores estaduais a criação de comissões locais. A solicitação pedia por engajamento das autoridades na investigação e esclarecimento, na esfera estadual, das graves violações aos direitos humanos praticadas no período de pré e ditadura militar no Brasil, além de enviar um modelo a ser seguido para a criação do órgão estadual. Em Goiás, a Comissão Estadual da Memória, Verdade e Justiça (CEMVJ) Deputado José Porfírio de Sousa foi criada no dia 21 de fevereiro de 2014, dois anos depois da solicitação inicial enviada pela CNV. A CEMVJ foi constituída a partir do ato do governador Marconi Perillo, e as instituições componentes são: Tribunal de Justiça do Estado de Goiás; Secretaria de Estado da Segurança Pública; Assembleia Legislativa do Estado de Goiás; Ministério Público do Estado de Goiás; Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Goiás; Associação dos Anistiados pela Cidadania e Direitos Humanos do Estado de Goiás; Associação Goiana de Imprensa; Universidade Federal de Goiás; Pontifícia Universidade Católica de Goiás; Universidade Estadual de Goiás; Conselho Estadual de Direitos Humanos; Comitê de Prevenção e Combate à Tortura, Secretaria da Administração Penitenciária e Justiça e mais quatro

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representantes da sociedade civil. Cada uma das instituições citadas indicou um representante. A comissão ganhou o nome de José Porfírio, de Trombas. O deputado estadual Mauro Rubem é o representante da Assembleia Legislativa do Estado de Goiás dentro da CEMVJ. Mauro, que também é o atual presidente da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, afirma que o atraso de dois anos para a criação da Comissão Estadual da Verdade acabou prejudicando a investigação e procura por dados. Além disso, o deputado atribui à falta de olhar crítico para alguns temas, como a violação dos direitos humanos, parte da responsabilidade pela criação e difusão de discursos políticos ‘infundados’, vistos, segundo o deputado, na corrida eleitoral de 2014 para a Presidência: “é interessante observar como a ditadura voltou pro debate. Aqueles cartazes pedindo o retorno da ditadura para a construção de um país melhor me deixaram em choque. Esses cartazes, essas pessoas, eles só provam que existem brasileiros que absolutamente não sabem do que estão falando quando é esse o assunto. É um profundo desconhecimento”. Recentemente, Mauro Rubem levou o tema “A violência policial e o desaparecimento de 36 pessoas em Goiás entre 2000 e 2001” para uma audiência na Organização dos Estados

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Americanos (OEA), em Washington (EUA), na Comissão Interamericana de Direitos Humanos. O deputado faz uma conexão entre os episódios ocorridos em Trombas e o tema da reunião nos Estados Unidos: “o sistema que a gente vive, a grande mídia, acaba ‘cortando a língua’ dos que querem falar sobre Trombas. É muito importante que a gente consiga romper a ditadura que permanece dentro da institucionalidade. Eu acredito que a Comissão (Nacional da Verdade), por ser oficial, começa a fazer algo que é fundamental não só pra conhecer o passado, mas principalmente pra entender e transformar o presente. Na semana passada, levamos para a OEA a denúncia das pessoas desaparecidas depois de abordagens policiais. E isso tem a ver com o passado da ditadura em Goiás: enquanto as torturas, prisões, mortes e desaparecimentos de Trombas e de todo o estado de Goiás não forem julgados e condenados, autores de práticas semelhantes nos dias de hoje, como o abuso de poder exercido por policiais, por exemplo, se sentirão liberados para fazer igual. Essa é uma pauta emergente. Muitas coisas que são feitas no estado de Goiás hoje não saberíamos dizer se é dos anos 60 ou dos anos 2000”. Dentro da Comissão Estadual da Memória, Verdade e Justiça, cinco grupos de trabalho foram divididos por temas:

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Grupo 1 - Mortos e Desaparecidos Políticos da Ditadura Militar em Goiás; Grupo 2 - Contextualização do Golpe Civil Militar (1964) em Goiás e a Intervenção; Tema Grupo 3 - Comunidade de Informação; Tema Grupo 4 - O Papel das Instituições no Período da Ditadura Militar (a Igreja, a Imprensa e o Movimento Estudantil); Tema Grupo 5 – Conflitos e Violações de Direitos Humanos no Campo A cidade de Trombas é objeto de estudo de dois dos grupos da CEMVJ. A cidade interessa tanto à pesquisa de mortos e desaparecidos políticos no estado, como para a análise dos conflitos e violações de direitos humanos no campo. Na reunião do dia 7 de novembro de 2014, os membros da comissão falaram sobre a possibilidade da existência de um filho de José Porfírio no Maranhão que, por mais de 40 anos se escondeu, receoso de represálias por ser filho de quem é. O parentesco ainda não foi confirmado. Até então, a Comissão aguarda o resultado de um teste de DNA. Mesmo que lentamente, é possível observar que a (re) descoberta da cidade de Trombas tem acontecido, por intermédio da CEMVJ, dos trabalhos acadêmicos feitos sobre o conflito que

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deu início ao município ou do interesse histórico que Trombas guarda consigo. No entanto, essas poucas abordagens lidam quase exclusivamente com o passado da cidade (que é importante também, claro, e já representam um grande avanço). No entanto, é possível perceber que, na ocasião das entrevistas, os “guerreiros” de Trombas não querem falar apenas sobre os combates do passado. Eles têm questões atuais pra resolver, como a precariedade da cidade, o reconhecimento de quem lutou por igualdade e justiça, o esclarecimento de fatos que ocorreram nos conflitos e as terras que, sessenta anos depois, ainda não foram legalizadas. Ainda existem aqueles que vivem nas margens das rodovias sob barracos de lona, esperando a doação de terras. Trombas ainda espera um final feliz.

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CONSIDERAÇÕES DA AUTORA Compartilhar as histórias de vida de alguns dos habitantes de Trombas, do passado e do presente, que resistiram e continuam lutando por uma vida melhor, é uma tentativa não de manter o passado vivo, mas fazê-lo renascer, lembrar o que a maioria esqueceu. Cidades como Trombas tem uma grande história a cada esquina. Essas histórias são deixadas de lado porque os atores principais foram convencidos, em algum momento da vida, seja pela grande mídia, pelos ‘donos do poder’ ou pelo simples passar dos anos, que não se tratam de histórias importantes. Pois são. Em tempos em que a polícia é investigada por crimes de abuso de autoridade e formação de grupos de extermínio, nordestinos são alvos de mensagens públicas de ódio e parte da sociedade ainda se refere a movimentos como o MST como um “aglomerado de bandidos”, o esclarecimento e a exposição de histórias como as de Trombas são importantíssimos para proporcionar conhecimento. O conhecimento emerge como alimento para o olhar crítico, exercício que tem se tornado cada vez mais raro. “O povo que não conhece sua história está

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condenado a repeti-la”. A frase, atribuída a Ernesto Che Guevara, demonstra-se verdadeira de uma forma que beira o assustador. A cidade, seus habitantes, eles não procuram por reconhecimento. Vivem tranquila e humildemente, compartilham dos sonhos de grande parte dos brasileiros, que pedem pouco apesar da vida dura. Mas a aparente desambição que tomou conta da região não serve como justificativa para o seu esquecimento por todos nós: aquela é a nossa história também. Ela representa a vergonha da omissão coletiva, situação que, é verdade, tem demonstrado melhoras significativas nos últimos anos com o interesse acadêmico e a criação de órgãos como a CNV, por exemplo, mas ainda está longe de ser ideal, ou suficiente. O Estado de Goiás tem o direito e, há quem diga, o dever de conhecer a história de seu povo, a história de Trombas e Formoso, os posseiros de Itauçu, os nomes dos mortos e feridos na Guerrilha do Araguaia e tantos outros fatos que estão “submersos”, seja por descaso ou por opção. O povo de Trombas merece saber o que seus pais, avós e bisavós fizeram pelo povo do país. O que fizeram para que todo e qualquer camponês sem terra pudesse lutar pela sobrevivência de sua família, tendo-os como referencial. Merece saber o que os antepassados fizeram para engrossar a voz que clama, vinda de

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migrantes que sofrem discriminação, pobres que vivem nas ruas, negros que lidam diariamente com o racismo, analfabetos ignorados, pais, filhos e irmãos dos que foram torturados nos quartéis da ditadura militar. Trombas merece saber que, anos atrás, seus moradores sonharam grande, sofreram muito e entregaram uma cidade de presente para que essa geração pudesse sonhar também. Eles merecem não porque precisam ou porque muitas coisas mudariam em suas vidas com o reconhecimento. Não se trata disso. Eles merecem porque devemos isso a eles. O Brasil deve.

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