EDIÇÃO No 03
TAKE ME TO THE BALL
ARETHA SADICK
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edição no 03 | take me to the ball a fearless mag é uma publicação trimestral, online e impressa, totalmente independente e colaborativa feita por e para pessoas LGBTQ+. um manifesto sobre a população criativa e artística e um mapa experimental do conteúdo criativo dentro da sigla.
editor-in-chef e direção criativa
fotórafos
EDITOR EXECUTIVO
ilustrações
luca weingärtner
EDIÇÃO No03
guilherme lourenço edição de conteúdo
letícia daniel
produção executiva
thais maestrello
produção de conteúdo
luca weingärtner e daniela lourenço
direção de arte e design
guilherme lourenço, luca weingärtner e marcos boscolo revisão
raquel cutin e tamiris verissimo
bernardo enoch, larissa dare lucas silvestre e otávio guarino giovana macedo e guilherme lourenço colagens
raquel cutin e marcos boscolo moda
bruno sales, caique tavares, lucas jeff pacheco, lucas cancian, matheus capnema, paulo cachoeiro e tiemi tamura beleza
pedro calderara, vitor gaspar, rafael holland, juliana rodrigues, diego almeida e nayara zolli textos
arthur avila, bruna daroz, caio coletti, gabriel augusto, giovana macedo, luiz marques e ricardo miguel audiovisual
barbara lamonato, bernardo enoch, gabriel augusto, vitor luz, catarina alexandre e daniela lourenço social media
guilherme lourenço, marcos boscolo, victor loureiro, lucas truta e paulo campos nesta edição
brenda suzuki, geo, luna georgia, sophia donadelli, thaiane veloso, bianca dellafancy, ilunga malanda, kiara fellipe, anddy williams, aretha sadick, slim soledad, lucy lazuli e zayla barbosa
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Kiara Felippe e Anddy Williams por Otรกvio Guarino
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carta do editor Aquele que não teme: corajoso, intrépido, valente. Ser LGBT+ é um ato de coragem. Existir é um ato de resistência. Criar é um ato de sobrevivência. Dar voz as histórias de uma população marginalizada é um desafio. O nosso desafio. Somos um grupo de criativos LGBT+ que busca, com paixão, e dor, dar cara, nome, cor e forma a nossa própria realidade. Feitos por e para, somos um manifesto vivo, um organismo multi-existente e resistente que se desdobra e se alimenta do próprio núcleo. E acreditamos na força gerada pelo coletivo. Juntos somos mais. Somos mais plurais, somos mais verdadeiros, somos mais criativos. Juntos somos uma força. Um estrondoso eco, que reverbera e se espalha. Somos o eco dos que vieram antes de nós, que jogaram pedras, iniciaram revoluções, apanharam e morreram por nós. Juntos permanecemos sem medo. We Stand Fearless.
LUCA WEINGÄRTNER EDITOR-IN-CHIEF & DIRETOR CRIATIVO
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08 Lésbica e Artista 22 Me Chame Pelo Seu Nome 28 e as Relações Abusivas Sacreé
editorial
por Giovanna Macedo
na Comunidade LGBTQ+ por Caio Coletti e Gabriel Augusto
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Subnotificação de crimes contra LGBTQ+s por Bruna Daroz
38 somos 60 Encontros Invisíveis 66 a revolução drag 69 será televisionada Colors of Freedom
ensaio
conteúdo
por Luiz Marques
por Ricardo Miguel
74 Disforia e Feminilidade 94 Da Noção de Amor 102 ao Paradoxo de Bauman Take Me To The Ball
ensaio
por Giovanna Macedo
por Victor A. Godoy
112 endereços 115
Armário 2.0
por Anônimo
e agradecimentos
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por Guilherme Lourenço
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Headpiece e brincos Can-Can
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LÉSBICA E ARTISTA: Intersecções e diálogos silenciados pela história da arte
texto e ilustrações Giovana Macedo
O mundo curatorial, porém, ainda é predominantemente heterossexual e masculinista. Assim como o mercado da arte, o estudo da história da arte e tudo que envolve cultura é principalmente tomado por brancos, homens e pessoas heterossexuais que estão hoje incumbidas de selecionar essas narrativas, tecer diálogos dentro da arte e expor esse estudo para o público, de maneira que ainda existem milhões de histórias femininas, lésbicas, negras e latinas que são silenciadas, mas que correm por entre suas obras como um sussurro de resistência por baixo dos museus, e transcende o tempo, a geografia e a sabotagem masculina. O quão curioso é, por exemplo, que encontremos uma mesma narrativa no trabalho de mulheres lésbicas que foram produzidos ao mesmo tempo, mas em continentes completamente diferentes e distantes? Ou que essa mesma narrativa seja identificada por detrás do trabalho de lésbicas que vieram antes e depois delas? Que o trabalho de mulheres lésbicas se preocupe com a representação do corpo de mulheres gordas e que o trabalho de mulheres negras abrace a identidade da mulher latina? 023
Dentro dessa narrativa maior, do registro e representação da lesbianidade, é possível ainda traçar pequenos paralelos entre os trabalhos de mulheres inseridas nos subgrupos de discriminação e opressão social. Os trabalhos de Zanele Muholi e Cheryl Dunye são intertextuais, complementares, e ainda que tomem forma em mídias diferentes – a fotografia, a escultura e a pintura da primeira e o vídeo e filme da segunda – e que tenham sido realizados em extremos opostos do continente africano, com mais de uma década de distância, tem impregnados em si a vivência
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É extremamente recorrente na história da arte que homens de diferentes regiões do planeta produzam coisas que dialoguem em temática, em estética e em pesquisa. Movidos majoritariamente pelo momento histórico em que estão inseridos, mas também influenciados por questões filosóficas e sociais que movem a raça humana, tais homens produziram arte que dialogava apesar das barreiras geográficas ou cronológicas. A museologia contemporânea e a crescente presença da pesquisa curatorial para além do pensamento de exposições “cubo branco” vem colocando em pauta esses diálogos, expondo na mesma sala peças de arte de diferentes períodos e civilizações para evidenciar narrativas antes pouco exploradas pelo pensamento de que cada movimento artístico existiu isolado, cronometrado e geolocalizado.
Isso pode parecer óbvio ao analisar os trabalhos de artistas lésbicas durante as décadas, mas esse tipo de relação passa absolutamente despercebido pelos olhos daqueles que nunca precisaram vivenciar tal violência: existe uma urgência na arte lésbica de representar as nossas, de registrar as nossas vivências para que a violência misógina não nos apague completamente da história. Não falo aqui de “arte lésbica” como um tema, um movimento ou um nicho, mas sim como tudo aquilo produzido pelas mãos de mulheres lesboafetivas, militantes ou não, como Laura Aguilar, Zanele Muholi, Cheryl Dunye e Zoe Leonard, além de tantas outras apagadas pela história e que tiveram sua sexualidade invisibilizada. É possível identificar nos trabalhos de todas as artistas supracitadas a característica do registro: o registrar como forma de se fazer visível, não apenas pelo viés artístico mas o material, de tornar-se humana e um indivíduo válido, e também o registrar científico, o ato de catalogar para conferir inteligibilidade, para tornar imortal algo tão ínfimo e ameaçado como a existência lésbica.
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da mulher lésbica e negra, que não precisa ser a temática dessas artistas para que seja entendida, para que conte uma história triste, de violência, e seja palpável num trabalho que carrega a identidade daquela que o produz, uma condição social que marca a artista lésbica de maneira a tornar-se tão presente em seu trabalho como a própria identidade. Laura Aguilar, mulher lésbica, gorda e latino americana que faleceu esse ano, dedicou a maior parte da sua vida a registrar fotograficamente as mulheres lésbicas que conheceu. Seja por meio de retratos de casais lésbicos, retratos individuais acompanhados de pequenas histórias dessas mulheres, capturas de suas rotinas, fotos de mulheres latinas e lésbicas expressando sua sexualidade e identidade dentro de solo norte americano, Laura se preocupava, assim como Zanele Muholi, em registrar aquelas pessoas invisíveis e esquecidas. Até mesmo depois da sua morte, a artista é comparada e têm suas narrativas construídas pelos caminhos heterossexuais e seu trabalho é sempre associado ao de mulheres magras, heterossexuais, que foram sua inspiração, mas que não dialogam com o produto de sua pesquisa. Paralelos aos seus registros artísticos documentais, Laura mantinha o corpo gordo como motor de sua produção, como força ativa de sua produção e interseccionava questões de feminilidade, de gordura e de sexualidade. Laurie Toby Edison, uma mulher magra e lésbica, fez a mesma coisa com seu projeto Women en Large. É interessante observar como o trabalho dessas mulheres, que não era especificamente sobre lesbianidade, se cruza, e, dentre tantos motivos, acredito que seja seguro assumir que é no isolamento da masculinidade tóxica e da heteronormatividade que floresçam questões intrinsecamente femininas, e essas condições só são possíveis com produções necessariamente lésbicas. É por isso também que vemos essas mulheres, como Zoe Leonard, explorando em seu trabalho o tema da maternidade e tratando de problemas da comunidade LGBTQ+, assim como Laurie Toby fotografou homens para falar do imaginário irreal de virilidade, e assim como artistas lésbicas seguem até hoje tratando sempre de questões que conversam entre si, que remetem a trabalhos muito anteriores a sua própria época e que com certeza serão referenciados muito além dela. Se a contemporaneidade é, como dizem os filósofos da arte, tudo aquilo que se distancia de seu tempo e fala sobre ele, a arte de mulheres lésbicas marginalizadas é o que existe de mais contemporâneo em toda a história da arte. Podemos observar esse fenômeno com mais clareza e acessibilidade no cinema, por exemplo, que frequentemente é ignorado enquanto mídia artística, mas que participa dessa mesma intertextualidade de produção lésbica. A filmografia da cineasta e roteirista Dee Rees, mais especificamente o premiado filme Mudbound, é um exemplo que nos remete diretamente aos trabalhos de Zanele Muholi, pois é centrada na vivência negra, faz uma pesada crítica à cultura escravagista, aborda a identidade negra e tem a ótica e tratamento da artista lésbica, sendo diferente, por exemplo, de trabalhos que tratam da mesma temática e são executados por homens. Não por um suposto cérebro feminino, ou uma “sensibilidade e delicadeza femininas”, mas sim pelas marcas da vivência lésbica e como ela transparece de maneira tão própria na produção artística e tão preocupada em ser acessível, em
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falar com outras mulheres nas mesmas condições, como o filme de Dee Rees, Pariah, e como ele assim como Watermelon Woman, de Cheryl Dune, é feito quase como que apenas para ser assistido por mulheres lésbicas negras, como se houvesse neles um código secreto, colocado lá por elas e que só pode ser acessado e verdadeiramente compreendido por outras mulheres nas mesmas condições – como um código secreto de resistência, uma língua que não pode ser compreendida pelos algozes da arte, que passa despercebida pelos olhos masculinos e chega apenas em quem ela precisa chegar, em quem precisa dessa comunicação, dessa identificação.
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A nossa arte, a arte lésbica, está repleta dessas pequenas mensagens e é apenas indo atrás de consumi-la, popularizá-la, falar dela, promover exposições e incentivar meninas a entrar em contato com ela que podemos manter viva essa resistência e garantir que essa mensagem – ainda que muitas de nós, as brancas, as de classe alta, não sejamos capazes e nem precisemos compreender todas – chegue no maior número de mulheres possível e não seja apagada como por muito tempo conseguiram fazer.
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I’M SICK, AREN’T I? ME CHAME PELO SEU NOME E AS RELAÇÕES ABUSIVAS NA COMUNIDADE LGBTQ+ EDIÇÃO No03
texto Caio Coletii e Gabriel Augusto colagem Raquel Cutin
Nossa cultura é obcecada com primeiros. “Como foi a sua primeira vez?”, perguntamos aos outros sobre suas experiências sexuais. O “primeiro amor”, então, há uma aura que não chega nem a ser mística, porque é na verdade totalmente mitológica – tal qual a grega, a romana ou a católica, aliás, a mitologia do primeiro amor tenta explicar uma experiência plural e natural com histórias elaboradas e absolutos falsos. O livro e o filme Me Chame Pelo Seu Nome, em turnos, reforça e desconstrói essa mitologia. Com sua fotografia difusa, seu cenário tanto luxuoso quanto decadente e sua sexualidade à flor da pele, celebra um romanticismo enganador, por baixo do qual se escondem as rachaduras e distorções do abuso, e do que levou a ele. Me Chame Pelo Seu Nome não é uma história de amor, embora tente maliciosamente nos fazer crer que é. Os avisos estão em todos os lugares: a forma como o mais velho Oliver provoca o mais jovem Elio com asserções e dúvidas (“Você realmente se importa tanto com o que eu penso?”); o encurrala para se fazer de único ponto de escape para um adolescente em plena construção de identidade (sexual, religiosa, cultural); usa o sexo como arma para mantê-lo firmemente preso, em eterna expectativa, a uma paixão que não pode levar a lugar nenhum. Me Chame Pelo Seu Nome, o filme, sabe muito bem disso – esconde os sinais de abuso na interpretação magistral e magnética de Armie Hammer, nas entrelinhas dos diálogos mais inócuos (Oliver e o pai de Elio discutindo as estátuas que são seus objetos de estudo, por exemplo) e nos momentos mais provocativos (a célebre cena do pêssego, e o desmoronamento emocional de Elio no momento seguinte).
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ELIO, ELIO, ELIO... Mais do que tudo isso, no entanto, Me Chame Pelo Seu Nome expressa a verdade do que aconteceu com muita gente na comunidade LGBTQ+. “A primeira exploração da minha sexualidade foi inacreditavelmente libertadora, eu me apaixonei por um menino mais velho e senti uma enchente de sentimentos que estavam presos em uma barragem por 17 anos. Muita coisa começou a fazer mais sentido, mas isso foi aos poucos se corrompendo, começando pelo sexo em si – o ato foi doloroso, confuso e eu estava completamente dominado de corpo e mente por ele”, conta G., 20 anos.
em um ponto no qual a situação já não estava mais minimamente confortável pra continuar, e ali acabou. Demoraram alguns anos para eu ter maturidade de entender a situação toda e perceber que aquilo nunca deveria ter acontecido”.
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Quando a conversa se volta para as mulheres lésbicas, ela se torna ainda mais complexa. “Eu nunca tinha parado para pensar sobre ser lésbica ou não. Eu tinha várias amigas lésbicas e vários amigos gays, eu era a amiga hétero super legal, que não tinha preconceito e tal. Minha primeira vez com uma mulher aconteceu como coisa de momento, tipo, “Tudo o que eu sabia sobre sexo era o ‘você quer?’, ‘quero’, e aconteceu. A princípio que ele me mostrava e ele dizia que passivo não eu não tinha visto como um sexo lésbico, mas no sente prazer mesmo, que é só dor e uma de- dia seguinte, numa conversa, percebi que aquimonstração de que gosta do outro, e assim foi”, lo não era coisa de amigas”, comenta K., 24 continua. “Ele inclusive foi passivo uma vez, anos. e foi muito desconfortável. Além dos problemas da indústria pornográfica influenciando as “A primeira mulher com quem transei pessoas que iniciam a vida sexual, se elas estão era três anos mais velha – ela foi muito cuicomeçando com alguém mais velho e mais ex- dadosa, carinhosa e super preocupada com me periente, estão ainda mais vulneráveis ao que é deixar 100% a vontade. A experiência foi ótiexterno e menos à exploração da própria sexu- ma. Mas ela não foi a única mulher mais velha alidade e do próprio corpo”. que me relacionei sexualmente, aconteceu com uma outra mulher e foi horrível”, continua. Embora nem sempre aconteça no “Ela me forçou fazer coisas que eu não estamesmo nível, no mesmo tempo ou do mes- va com vontade. Acredito que algumas lésbicas mo jeito, são paralelos fáceis de se fazer acabam reproduzindo comportamentos mascudentro da comunidade LGBTQ+. M., 24 linos como forma de validação e isso é péssimo anos, relata: “Meu quarto parceiro foi um caso para as relações”. mais grave. Ele era bem mais experiente e sabia que eu estava ainda começando minha vida seH., 19 anos, conta uma história dixual. Ele não foi nada gentil, por algum moti- versa. “Até hoje não sinto que me aceito comvo deve ter achado que eu gostaria de algo mais pletamente, tenho questionamentos sobre quem ‘hardcore’ e me machucou no meio disso. Para sou e o que quero várias vezes ao longo dos ele eu reclamei de dor, muitas vezes, ele fazia dias. Algumas poucas pessoas ao meu redor parecer que era normal que já, já acostumaria”. sabem como me sinto e até devem me entender melhor do que eu mesma”, comenta. “Nunca “Eu já tinha até defecado de dor, fato estive com mulheres mais velhas, mas mais expelo qual acabei me culpando. Achei que tinha perientes sim. Não acho que isso tenha feito a feito minha higienização de forma errada, po- experiência melhor, eu era muito nova quando rém não parei para notar que o lençol não tinha tive minha primeira experiência e isso não me só fezes, mas muito sangue também, e isso com proporcionou muito diálogo sobre o que era a certeza não foi culpa minha”, conta a seguir. sexualidade e como me sinto em relação a isso”. “O sexo durou até onde ele conseguiu, chegou
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Não é surpresa, ao falar de sexualidade, que exista esse leque de experiências completamente diversas. “Cada ser humano vivencia seus primeiros contatos com as experiências sexuais de uma forma singular, baseado em suas concepções pessoais e sociais. As questões fisiológicas e psicológicas envolvem ambos, LGBTQ+ e heterossexuais cisgêneros, mas o que pode ser percebido de diferente entre eles é que o público LGBTQ+, muitas vezes precisa, primeiro, lidar com a própria aceitação”, reflete Wendrel Natan, formado em psicologia pela USF (Universidade São Francisco).
EM ALGUM LUGAR NO NORTE DA ITÁLIA...
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O filme ter sido encarado por muitos como um romance normal, igual a qualquer outro filme do gênero, é um sinal de uma sociedade doente. Mais do que isso, Me Chame Pelo Seu Nome para muitos tem uma atração especial, erótica, sensual e muito “bonita”: o abuso.
As consequências desse tabu agridem a saúde mental e física – consequências essas que tanto levam a sociedade a acusar a comunidade LGBTQ+ de depravada, quanto tiram a seriedade do assunto que envolve todos os gêneros e sexualidades. Precisamos de educação sexual – uma solução que até hoje continua sendo ridiculamente desA cultura LGBTQ+ não nasceu no prezada, como comenta o psicólogo Wenmeio dos ricos e famosos, muito menos em drel Natan: “Se para os adolescentes heterosE O Vento Levou ou em qualquer outro ro- sexuais, socialmente considerados ‘adequados’ mance mundialmente conhecido. Ela veio dentro do padrão heteronormativo, já há um da resistência, da revolução dos conceitos imenso descaso em relação às orientações foraté então estabelecidos. Mesmo assim, ain- mais sobre a sexualidade, para o público LGBda vemos os relacionamentos homoafetivos TQ+ essa realidade fica mais longe ainda do muito influenciados pelo machismo e pelas que seria ideal. Dificilmente, ou quase nunca, relações de poder existentes nos casais hé- você verá uma escola dando uma orientação soteros, o que podemos chamar de uma certa bre sexualidade que englobe as relações de pesheteronormatividade. Esse conceito ainda soas com o sexo biológico semelhante e, quando não foi devidamente lacrado por diversos surge algo com essa temática, automaticamente motivos, a citar sua grande influência pela já se torna motivo de chacota.” mídia e a problemática do preconceito, interno do indivíduo e coletivo da sociedade, Nesse contexto, o preconceito se que vulnerabiliza as discussões sobre o as- prolifera. “Acho importante nesse tópico tamsunto. bém dizer o quanto eu me senti envergonhado ao contar para alguns amigos da minha ex“Uma particularidade em relações ho- periência, coisa que deve ter muita raiz nesse mossexuais eu acho que é a repressão sexual, preconceito, principalmente quando contei para isso nos deixa mais vulneráveis a esse tipo de amigas héteros... No momento eu estava muito abuso já que muitas vezes não podemos falar entusiasmado e acabei contando, dias depois me sobre ele com mais ninguém e acabamos prisio- arrependi amargamente, como se eu estivesse neiros desse sistema, seja em relações constantes me sentindo sujo por ter sido passivo. Foi como ou em casos isolados”, comenta G. decepcionar os outros, dizendo de forma bem crua”, relata M.
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Em uma sociedade machista, se comparar com o papel de gênero feminino é se inferiorizar. Mas, afinal, em uma relação que tem dois indivíduos do mesmo gênero, o privilégio do papel de gênero masculino de um depende da vulnerabilidade do outro em receber tais imposições. “Por essa cultura ter uma raiz extremamente profunda, assim como as relações de dominação do homem sobre a mulher, muitxs passivxs internalizam a ideia de que elxs, de fato, estão ali apenas para satisfazer o outro, podendo submeter-se a desconfortos físicos e psicológicos”, cita Wendrel. Logo, o abuso é caracterizado por algo que vai muito além do sexo, inclui também todo o jogo psicológico de Oliver com Elio, por exemplo. É aí que a história deles fica mais interessante, quando podemos discutir o seu significado, as suas causas e as suas consequências – não foi uma decisão homogênea de naturalizar essa relação e a cultura LGBTQ+ continua resistindo. Mas ainda há muito para desconstruir ao nosso redor e também dentro de cada letra.
A ALEGRIA QUE VOCÊ SENTIU... Prova disso são as sequelas que uma experiência abusiva pode trazer, as marcas permanentes e passageiras que ela deixa no corpo e na mente. “Tive muita dificuldade em me relacionar com pessoas depois, não conseguia ter relações sexuais sem sentir nojo da pessoa, não era algo que eu controlava. Por ter sido com outro homem, passei boa parte da minha vida acreditando que eu era lésbica por sentir nojo de homens”, comenta H. “Eu fiquei tensa por um tempo, evitando qualquer relacionamento que pudesse durar um pouco mais, mas hoje isso já não me afeta mais”, reforça K. “Eu, basicamente, lido com traumas sexuais diariamente. Até possuo libido, tenho vontade, excitação, mas tenho medo de estar com alguém numa cama novamente. Desenvolvi problemas de ereção psicológicos, a ponto de não conseguir ter uma ereção me masturbando se alguém estiver junto comigo”, completa M. É de grande importância tomarmos ciência de que existem esses problemas nas relações homo afetivas, uma vez que lutamos tanto pelo direito de amar, e não podemos acabar corrompendo esse sentimento, que foi a base dessa luta, com a reprodução de um sistema abusivo e heteronormativo.
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Portanto, existem conceitos a serem desconstruídos e muito machismo para ser combatido dentro do meio LGBTQ+, mas isso não acontecerá da noite para o dia, e o sucesso de 100% pode ser uma utopia. Dessa forma, em paralelo a essa conscientização, existe a recuperação e o trabalho psicológico de quem fez ou faz parte desse tipo de relacionamento. As marcas de um relacionamento abusivo podem ser tratadas para que a pessoa volte a ter uma vida sexual com um psicológico saudável. Para isso, Wendrel traz indicações do seu ponto de vista profissonal. “É muito importante que as pessoas que fazem parte do círculo social de sujeitos que já tiveram um relacionamento abusivo nunca reproduzam a ideia de que a vítima escolheu estar naquela posição”, começa. “É crucial entender que a pessoa abusiva cria uma relação de extrema dependência, por parte da vítima, fazendo-a acreditar fielmente que ela precisa dessa relação para viver e que não irá conseguir continuar sem o outro. Dessa forma, aumentar o sentimento de culpa não ajuda a vítima a se desenvolver, apenas piorando os efeitos [do abuso]. Portanto, primeiramente se faz necessário compreender que a vítima precisa de seu espaço, visto que perdeu o mesmo durante o relacionamento e precisa reconquistá-lo, sem ignorá-la ou deixar de dar apoio”.
“Quanto ao sujeito abusivo, é imprescindível que o mesmo reconheça seus erros e reconheça que precisa compreender os motivos que o levam a ter determinados comportamentos de abuso. Assim como o trabalho da psicologia tem muito a favorecer para com a vítima, essa área de conhecimento também tem muito a contribuir com o sujeito abusivo, desde que este tenha o desejo de mudar e que o/a psicólogx, como profissional, se abstenha de seus preconceitos e julgamentos”, completa. O caminho para um mundo em que a primeira relação abusiva de Me Chame Pelo Seu Nome seja exceção, não regra, passa por todos os remédios: conscientização dentro da comunidade LGBTQ+; combate do preconceito e heteronormatividade para que os jovens LGBQ+ tenham informações saudáveis e completas antes de darem início a sua vida sexual, e não precisem escondê-la do mundo; e o tratamento de traumas que leve a alguma medida de recuperação. Falar de abuso nos relacionamentos LGBQ+ pode ser considerado perigoso por muitos dentro da comunidade, que temem se tornar alvos de críticas já armadas, miradas para a marginalização das formas de amar fora da norma hétero. No entanto, entender os específicos do abuso nesses relacionamentos é essencial para combatê-lo, e entender o papel da sociedade preconceituosa nesses específicos, também. Não se trata de culpar nosso amor por esses desamores, mas de buscar a melhor forma de transformá-los.
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“Posteriormente, dependendo de seus traumas e de como esses afetam sua vida, é importante que a vítima busque promover o autoconhecimento, com o qual a psicologia tem muito a contribuir. Além do autoconhecimento, a vítima pode trabalhar seus conceitos distorcidos, suas inseguranças, sua autoestima, suas fobias e os possíveis traumas, contribuindo para que ela consiga reestabelecer a própria percepção da sua integralidade e poder continuar sua vida com uma maior autoconfiança”, continua.
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A subnotificação dos crimes contra a comunidade LGBTQ+ é incontestável. O Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2015, fez um levantamento de dados em notícias de sites e jornais, contando 318 assassinatos no ano com algum indício de “LGBTfobia”, ou em razão da orientação sexual ou identidade de gênero.
leta de dados não devidamente conduzida, e os 958 crimes em três anos contabilizados pelo GGB, é um dos poucos números noticiados.
De acordo com o levantamento, as duas principais massas LGBTQs assassinadas no Brasil são homens gays – contabilizando 52% dos assassinatos No entanto, os registros representam apenas – e transexuais – que somam 37%. Em seguida, vêm uma pequena parcela dos crimes que ocorrem contra as lésbicas, que representam 5% das mortes. O núessa comunidade no Brasil, aponta o Grupo. Indican- mero de homicídios subiu 30% entre 2016 e 2017, e do apenas a ponta de um iceberg de violência. A co- todos os dados, são do Grupo Gay da Bahia.
Os números da LGBTQFobia Em 2017, foram registradas
445 mortes
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Em 2000, foram registradas
130 mortes das 445 vítimas registradas em 2017:
5 bissexuais 12 heterossexuais 43 lésbicas 191 trans 194 gays A cada 19 horas um LGBTQ+ é assassinado ou se suicida vítima da homotransfobia. A falta de dados oficiais sobre crimes contra lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros deixa o país impossibilitado de ter um diagnóstico do problema, não dando margens para buscar uma solução por meio de políticas públicas.
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De acordo com o psiquiatra Rodolfo Gimenez, a homofobia é, em grande parte, resultado do machismo instalado desde os primórdios da humanidade, e qualquer indivíduo que foge dos padrões, é rejeitado. O crime de ódio ainda precisa ser muito estudado para de fato surgir uma resposta concreta para o assunto, e casos como o de Theusa (Matheus Passareli Simões Vieira), acabam por ser arquivados e esquecidos, sem resolução. Além dos casos de assassinatos, há os inúmeros relatos “não-oficiais” de assédios não noticiados, tanto com lésbicas, como com gays e transexuais. Joana Costa, 23 anos, conta que basta estar de mãos dadas com sua namorada no transporte público que já é alvo de olhares, e muitas vezes, comentários ofensivos.
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“Lembro-me de certa vez no metrô em que trombaram em minha namorada propositalmente e praticamente cuspiram a palavra ‘sapa tão’. Às vezes dá medo e tristeza em sair de casa.” Casos assim acontecem todos os dias, e nunca visto pelos veículos de notícias. Ainda que direitos estejam sendo cada vez mais colocados em pauta em esferas políticas e sociais, ainda há um longo caminho a ser percorrido, a fim de que todos os correspondentes da sigla possam viver com dignidade. Classificar as coisas pelo que são, como nesse caso, atribuir a crimes contra LGBTQs a classificação correspondente é criar dados sobre o assunto, é trazer luz para esses índices que a comunidade LGBTQ+ conhece na pele. A homofobia mata todos os dias, o que não se tem ainda é a devida documentação e categorização desses crimes para que possamos caminhar para uma realidade de preservação e prevenção. Logo, o que se enxerga é que o descaso endereçado as mortes de pessoas LGBTQs reflete o tratamento recebido pelas mesmas em vida. Enquanto o que imperar for a cultura de silenciamento, ignorância e ódio, enquanto o que houver for o abafamento e não-visibilidade dessa parcela da população e seus direitos estas pessoas continuarão a viver anuladas e com receio, tanto em vida quanto em morte.
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fotos larissa dare direção criativa e produção guilherme lourenço & luca weingärtner moda bruno sales, guilherme lourenço, lucas cancian, jeff pacheco, victor loureiro beleza nayara zolli & pedro calderaro modelos brenda suzuki, geo mantovani, guilherme lourenço, luna georgia, perséfone o’connor, victor reis agradecimentos raquel de paula & família
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Peséfone veste: casaco TIG, cinto (usado como top) AMARO, calça MORENA ROSA
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victor veste: top (usado como obi) e macacão MORENA ROSA; BLAZER ACERVO.
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luna veste: óculos colorado, tricot tig, meia calça lupo, tênis balenciaga, blazer e lenços (usados como saia) acervo.
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guilherme veste: top alaphia, blusa e calça morena rosa, tênis acervo.
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geo veste: brinco garibada, camisa morfema zero, jaqueta e mule morena rosa, calça alexandre herchcovitch.
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brenda vestE: cropped e calรงa benesh, boina e bota acervo.
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De acordo com dados do Grupo Gay da Bahia (GGB), foram registradas 445 mortes de LGBTQs no ano de 2017 –um aumento de 30% com relação à 2016. Além dos brutais assassinatos, 58 vidas foram tiradas através do suicídio. Em 2018, esses números continuam crescendo e até 15 de maio, 153 pessoas foram vítimas fatais da LGBTQfobia no país. Essa alta taxa de assassinatos, causados pelo preconceito, faz do Brasil o país que mais mata a comunidade LGBTQ+ no mundo. Em meio a caótica situação que o país enfrenta e ao aumento de casos de agressão contra LGBTQs, rostos dão vida aos discursos de igualdade. Na coluna “Somos”, trazemos membros da nossa comunidade que estão nessa luta diária e muito difícil, porém extremamente necessária.
texto Guilherme Lourenço fotos Victor Reis
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ana clara xavier, 23 anos | bissexual @claritaxvier Como foi o processo de autoaceitação? Sempre foi natural para mim me atrair pelo sexo feminino, não tive problemas com isso, porém tive dificuldade para me aceitar bissexual. Na adolescência eu não me sentia atraída por garotos e os primeiros beijos que tive com meninos, não me causaram uma sensação de desconforto. Quando beijei a primeira garota, senti algo muito intenso, o que nunca tinha sentido por garotos. Fiquei uns 5 anos sem beijar homens porque realmente não sentia nenhuma atração. Me rotulei lésbica, porém, aos 20 anos, conheci um cara, por quem criei um carinho enorme e disso foi nascendo a atração sexual, depois por outros caras. Para mim, foi confuso começar a sentir atração por homens e eu não aceitava isso, por consciência do machismo que nós mulheres enfrentamos, mas a aceitação foi começando a se tornar natural, acredito que desenvolvi mais autoconfiança e amor próprio, o que me ajudou a aceitar minha bissexualidade. Para você, é importante se posicionar politicamente? De que forma você faz isso? Sim, acho importante, mas acredito que uma ótima forma de se posicionar é no dia a dia com o próximo, nos momentos mais cotidianos da vida, como por exemplo não passar pano para pessoas próximas quando ouve ou vê uma situação de opressão como o racismo ou machismo e outras situações do tipo, acho muito fácil militar na internet ou num protesto mas no dia a dia não praticar a empatia e não se posicionar nessas situações de opressão que acontecem do nada em qualquer lugar. Qual conselho você dá para quem está sofrendo com a dificuldade de se aceitar e/ou de se amar? Meu conselho é: acorda! Você é importante, acredite em você, as pessoas não podem ditar o que você é, você não é limitado, você é um ser incrível! Se sinta incrível. E também aconselho saraus de poesia e leitura, que me ajudaram muito. 061
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david, 20 anos | gay, não binário @dfreirre_ Conte um pouco sobre você e o ambiente em que você cresceu… Eu me considero uma pessoa transparente, humilde, esforçada e com muita garra! Nasci e cresci na zona norte de São Paulo, na infância morei com os meus avós e na adolescência fui morar com minha mãe e dois irmãos. Demorou muito para vc entender e amar quem você é? Não! Desde pequeno sempre fui bem transparente comigo mesmo, sempre fui pé firme no que quis e quero para a vida, sempre penso antes de falar e tomar qualquer atitude. Como você faz para se expressar diariamente? Antes de qualquer coisa, imponho minha opinião sempre! Mantenho ela até o fim, seja a situação que for. Costumo levar ela para o meu dia a dia, inclusive nas nossas lutas diárias que só a gente sabe o que é. Qual conselho você dá para quem está sofrendo com a dificuldade de se aceitar e/ ou de se amar? Antes de mais nada, devemos nos autoconhecer! Saber o que queremos para as nossas vidas, lembrando que se a gente não se amar quem irá nos amar? Então devemos nos colocar sempre em primeiro lugar. Pensarmos em progredir sempre, sem ligar para o que os outros irão dizer e aí sim as coisas mudarão! Tudo anda e a autoaceitação chega. 062
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Diego Valle, 23 anos | Gay @manoduceu
Moro em uma periferia de Osasco e fui criado por uma família com costumes extremamente machistas. Crescer em um meio opressor é difícil e entender o que estava acontecendo comigo foi ainda mais complicado. Me aceitar gay foi muito complexo, minha criação não permitia esse tipo de coisa, eu carregava uma culpa que não era minha, uma dor que eu não podia compartilhar com ninguém. O silêncio me sufocava e ter me assumido foi libertador, eu nunca me senti tão em paz, porém o dia-a-dia na rua passou a ser mais complicado. Vivo em um lugar de pessoas bem ignorantes, onde parece que as informações demoram mais para chegar. Sempre saí de casa com medo. Eu, a coragem e a dúvida se voltaria, apenas por conta do meu short curto. Ninguém nunca me falou que seria fácil e que eu teria que tirar forças de mim mesmo pra enfrentar o preconceito, eu precisei entender que não sou a minoria, não estou sozinho e que ninguém poderia dizer o que sou. Ainda vamos encontrar muitas dificuldades, vão tentar nos derrubar mas cabe a nós lutar e resistir, dar as mãos e nos ajudar. Hoje sou dono de um salão de beleza na vila e foi minha maior conquista. Não permiti que nada me impedisse de realizar meus sonhos, coloquei na minha cabeça que eu sou a maioria, que o LGBTQ vai dominar e não existe nada nem ninguém que vai me calar. Eu dito as regras da minha vida e vou andar como eu quero!” 063
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marinho souza, 22 anos | transgênero
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@transazulbb “Eu sempre fui diferente desde criança. Só tinha amigo homem e na primeira série já me chamavam de “maria macho” mesmo sem nada, aparentemente, diferente em mim naquela época. Fui crescendo e fui cada vez menos me encaixando nos padrões em geral. Descobri que era gay bem cedo, com 14 anos. Antes mesmo de saber o que era “transexual” eu era gay. Quando vi um documentário e descobri o que era ser transexual, também com 14 anos, fui deitar pensando como seria meu futuro. Não passei por um processo de não aceitação. Era como se eu não tivesse escolha. Sou assim e pronto! Homem transexual. Sexualidade é algo difícil de explicar num termo só. Digamos que passei boa parte da minha vida me identificando como gay, agora me relaciono na maioria das vezes com pessoas trans (homens trans, mulheres trans e não binarie). A ideia de sexualidade, assim como género, é fluída. Sobre se aceitar, não se enganem, a pior parte de ser LGBTQ+ é quando você deixa o medo dominar a sua vida. Seja você de coração, não tenha medo de cruzar a linha, se permita! Eu amo quem eu sou e sou grato por conhecer pessoas como eu todos os dias. Preconceito e agressão são riscos reais, o mundo está doente. Mas mais doente é passar a vida sem protagonismo. Para o futuro, eu espero uma militância mais unida e empática da nossa parte. Conquistas reais, cidadania, oportunidade de estudo e de trabalho, respeito e admiração é o que nos devem. Parem de nos matar!” 064
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yorhan, 21 anos | bixa preta @oproprioyo “Meu ambiente familiar foi um privilégio que pouquíssimas pessoas LGBTQs podem ter. Mesmo não me assumindo, eles (familiares) sempre souberam e durante a infância não se importaram em me dar uma boneca Barbie de aniversário, por exemplo. Porém, durante toda infância e adolescência no meio acadêmico foram anos de luta contra a minha orientação sexual e impondo atitudes que magoram muitos e me trazem consequências até hoje -o ensino médio foi babaaado. Após terminar o ensino médio, eu me aceitei de e procurei cada vez mais enraizar toda a força LGBTQ+. Ser negro no Brasil é carregar um fardo estereotipado e hipersexualizado, que limitam o restante da massa a aceitar que a comunidade negra LGBTQ+ é tão grande quanto a massa de pessoas brancas e miscigenadas. Eu abomino a ideia de ter que me esconder novamente e cultivar ao extremo a autoconservação, meu amor por moda expressa toda a verdade em mim, eu não me calo e sigo lutando pelo o que é nosso!” 065
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ENCONTROS INVISÍVEIS EDIÇÃO No03
crônica Luiz Marques ilustração Guilherme Lourenço
Primeiro Encontro Já passava das quinze horas de uma tarde ensolarada na cidade dos atrasados. Havia muita gente na catraca da estação Consolação, como era de se esperar para um domingo. A avenida Paulista fechada era a melhor opção para o primeiro encontro. Ela estava chegando, avisou por mensagem e mandou uma foto mostrando que estava no metrô. Sorria ansiosa. Ele estava em sua terceira bala de menta e também mandou uma foto “de boa”. Embora parecesse sério e completamente tranquilo, não conseguia passar mais de um minuto com a mesma música tocando nos fones de ouvido. Não sabia se deixava as mãos no bolso ou se cruzava os braços. O encontro aconteceu. Passearam pela avenida, riram, conversaram, beberam e até pararam pra uma foto ou várias. Eles se beijaram algumas vezes e as pessoas continuaram passando como se aquele ato fosse a coisa mais comum de todas as coisas no mundo. E realmente era: um beijo. Um casal. Um encontro em um dos cartões postais de São Paulo. Algo comum. Já estava escuro quando os carros voltaram a transitar pela avenida. Na calçada em frente ao MASP, ela parou para dizer que precisava ir. Ambos moravam longe dali, longe um do outro. O rapaz a abraçou e foram juntos até a esta066
ção Trianon. Entraram e encostaram-se em uma parede onde novos beijos foram trocados, enquanto isso, o metrô chegava e partia da estação. Jamais saberão ao certo quanto tempo ficaram ali. Aproveitaram da melhor forma. As fotos foram publicadas. Alguns likes, comentários e insinuações de um novo relacionamento. O casal, já separado, trocava um carinho ou outro por mensagem, com um toque de saudade, e passavam os relatos do encontro para os amigos. Haveria um replay. Iriam marcar. Nascia ali um relacionamento normal.
Segundo Encontro Já passava das dezenove horas na cidade do trânsito, quando o rapaz subiu as escadas rolantes da estação Consolação. Ele parou próximo das catracas e olhou o celular. Outro rapaz estava chegando. Os dois se cumprimentaram com um abraço, um beijo no rosto e saíram andando em direção ao cinema do shopping mais próximo.
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O mais velho disse que assistiria qualquer um dos filmes em cartaz e que o importante era o encontro. O mais novo queria ver um filme de terror. Com os ingressos comprados, foram para a fila da pipoca. Um abraço aqui, um carinho ali e sempre aquele olhar esperançoso. Sentaram-se na penúltima fila, a sessão ia começar.
si. A orientação sexual dele era todo o problema. Ela não pode ir ao próximo encontro e não respondia mais as mensagens enviadas. Ele encontra o Twitter da melhor amiga dela e envia uma mensagem para saber se tudo estava bem, porém a amiga dela postava mensagens como: “Só a doida pra sair e se apaixonar por viado”. Talvez fosse melhor deixá-la lá e seguir a vida.
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O filme não era bom, não dava medo algum, apenas um ou outro susto. O mais velho sempre gargalhava quando o mais novo tremia aflito. Passaram parte do filme de mãos dadas. Um beijo aqui e outro ali fizera com que perdessem parte da história, mas àquela altura não importava. Não faziam a menor ideia do que se passava no filme até que acabou. Beijaram-se, levantaram, jogaram o saco de pipoca fora e deram as mãos para sair da sessão. Um gesto comum, certo?
O homem mais velho era decidido, maduro e simpático. Estava de mente aberta e aceitou o convite para sair. Talvez não fosse tão maduro assim e menos ainda simpático, entretanto, era mesmo decidido. Não sairia com um cara que não sabe se é gay ou se é hétero, que não tem coragem de assumir uma ou outra coisa e ser feliz. Optou por encerrar ali a conversa e disse, de forma nada dócil, “Você ainda tem muito o que aprender, vai amadurecer e sair do armário”.
Pararam para um café. Agora, mais confiantes e relaxados um com o outro, se abriram e conversaram. Trocaram mais risos, mais beijos e não soltaram a mão um do outro. Na saída, um abraço apertado e uma troca de olhares intensa, antes de um beijo mais demorado. Atraíram alguns olhares, mas eles não saberiam disso. Soltaram as mãos apenas quando um seguiu sentido Vila Madalena e outro Vila Prudente.
Era difícil explicar que nunca estivera no armário, até porque seu espírito sempre demonstrou que o certo era amar, independente de sexo. Queria alguém ao seu lado, não um sexo. Uma pessoa. Alguém capaz de corresponder e aceitar todo o sentimento que dos encontros brotassem. Não era tão simples. Não era gay. Não era hétero. Era apenas um bi tendo que optar entre A e B, esquerda e direita, cá e lá e nunca podendo dividir-se e mostrar que, no fundo, queria apenas ser e explorar seu maior valor: o respeito em se jogar com tudo para amar. A luta diária contra o silenciamento estava muito longe de acabar.
Já em seus lares, mandaram mensagens para informar que haviam chego sãos e salvos. Trocaram outras mensagens alegres e carinhosas também, antes de contarem aos amigos sobre o rolê. Marcaram um próximo encontro na mesma avenida, para criar novas lembranças. Nascia ali um relacionamento normal, não é?
Quando não “estava” gay, “estava” hétero. Em certos encontros era seguro e normal beijar na rua, em outros era mais sensato ser cauteloso e expor-se apenas se valesse a pena. De qualquer forma, era invisível em todos os encontros. Para a sociedade, um encontro sempre seria entre um homem e uma mulher, ou dois homens, duas mulheres, mas jamais entre um hétero e um bi. O que era um bissexual? Um cara em cima do muro? Para sua própria infelicidade, ele ainda sustentaria a esperança de que os encontros acabassem, um dia. Mesmo que apenas no próximo date, ou no outro...
O Fim dos Encontros Esses encontros aconteceram próximos um do outro, mas em períodos bem diferentes. Ocasiões ruins fizeram com que novos encontros surgissem sempre com o mesmo ar de insegurança. Quando contou para que era bissexual, a garota não gostou. Disse que tinha reparado que ele era menos “homem” que a maioria dos que ela já havia saído, mas que isso não era um problema em
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texto Ricardo Miguel colagens Raquel Cutin e Giovana Macedo
Desde os primórdios da televisão no Brasil, o apresentador Silvio Santos mostra homens fazendo drag no seu programa de auditório no SBT. Nomeada Concurso de Transformistas, a atração é uma competição de dublagem e beleza que concede prêmios para as candidatas mais aplaudidas pelo auditório.
jetivas sobre temas”, afirmou a cartunista Laerte Coutinho em entrevista ao site Notícias da TV em julho de 2018. Do circo de Silvio Santos até os dias de hoje, drag queens têm ganho cada vez mais notoriedade na televisão, abandonando a exposição banal para chegar ao protagonismo e mostrar os problemas e anseios da comunidade LGBTQ+.
Na época de estreia do quadro, em meados dos anos 80, drag queens estavam Tudo começou em fevereiro de 2009, longe do mainstream, aparecendo na televisão apenas para serem exibidas ao público. quando RuPaul Andre Charles deu largada na maior revolução drag da televisão. Rupaul’s “O Silvio Santos foi pioneiro em Drag Race foi lançado como um reality show colocar drag queens na TV. Eram atrações, que mistura Project Runway com America’s como bizarrices, meio que num ambiente Next Top Model, mais o carisma, singularide circo. Você não pode esperar que Silvio dade, coragem e talento de drag queens. Santos promova discussões profundas e ob-
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a revolução drag SERÁ TELEVISIONADA
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Depois de dez anos, doze edições e mais de cem candidatas, uma leva de drags queens surgiram por influência do Drag Race.
“Quando eu assisti Rupaul’s Drag Race, eu descobri o fazer artístico da drag, que reúne em si o fazer artístico do ator, do figurinista, do peruqueiro, do maquiador, do coreografo, do diretor, tudo em um só. Foi aí que eu me desafiei a começar minha drag”, conta Rita von Hunty
“Foi algo que me tocou muito. Principalmente pela função social que uma drag queen tinha naquela época. Elas faziam correio elegante, não deixavam pessoas sozinhas, eram a alma, alegria e o coração do ambiente. Eu sabia que meu destino de alguma maneira estava ligado ao que eu via. De que eu havia sido criado para aquele fim”, conta Ikaro.
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em entrevista para Fearless Magazine.
Sabendo que também estava predestinada a vida como drag, a bancária Miriã Bueno viu no Drag Rita, junto de Ikaro Kadoshi e Penelopy Me As a Queen a chance de realizar seu sonho. Jean, estão iniciando sua própria revolução drag “Quando eu soube do programa, eu vi que aqueno Brasil. Lançado em novembro de 2017 pelo la seria minha chance. Eu tinha o sonho de ser canal E!, o programa Drag Me As a Queen – Uma Diva Dentro de Mim! reúne as três na transfor- maquiada pela Penelopy, eu adorava o estilo mação de mulheres em drag queens. da Rita e sempre fiquei muito emocionada pelas
“A premissa do programa é que a arte salva vidas. Enquanto drag queens somos parte de uma minoria, e somos uma minoria minorizada. As mulheres são a maioria do planeta, mas são uma maioria minorizada. Temos muito em comum no sentido de como o mundo nos vê. Para mim, o formato do programa é único, inovador, quebra barreiras no que diz respeito ao humano e nos faz refletir o que fazemos com as mulheres do século 21”, afirma Ikaro Kadoshi para Fearless Magazine. Ikaro começou sua carreira como drag queen em novembro de 2000. Quando conheceu uma drag queen pela primeira vez aos 16 anos de idade, ele soube que estava predestinado a vida como drag.
performances do Ikaro”,
disse Miriã Bueno, que também conheceu a arte de fazer drag por meio do Rupaul’s Drag Race.
”Quando eu assisti Rupaul’s Drag Race meus olhos abriram, eu comecei a ver drag como arte, criei uma empatia, achava o máximo toda transformação e história de vida que eram mostradas no programa. Isso foi me ajudando a abrir novas possibilidades. Na época que eu conheci a Priscilla, que é uma festa que traz as drags do Drag Race para o Brasil... Eu fiquei louca, achei o máximo, e quando eu vi uma menina montada na festa, eu falei: se ela pode eu também posso”, narra Miriã.
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Após participar do último episódio da primeira temporada do Drag Me As a Queen, Miriã Bueno recebeu o nome drag de Morana Evermore, além da chance de seguir com seu sonho. Depois de fazer um curso de DJ, Miriã toca em festas por todo o estado de São Paulo vestida como Morana.
“Eu não esperava levar para o lado profissional, mas as coisas simplesmente foram acontecendo. No começo, eu tinha muito medo de não ser aceita, mas hoje eu toco em uma das festas drag mais respeitadas e conhecidas de São Paulo, a Priscilla”, conta Miriã.
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Outra vida que mudou por conta do Drag Me As a Queen é a de Letícia Daniel, que participou do segundo episódio da primeira temporada e recebeu o nome de Clara Poirot.
“O programa foi um divisor de águas, existe um antes e um depois da gravação. As meninas são verdadeiras fadas madrinhas, elas me ajudaram a encontrar a Clara e através dela eu tenho vivido e me tornado uma pessoa mais destemida, mais bem resolvida e mais feliz. Elas me ajudaram a encontrar uma parte de mim que, de tão soterrada em medos, complexos e inseguranças, nem eu sabia que existiam. Essa parte tem nome – Clara Poirot, forma e vem complementando minha vida e me ajudando a tomar decisões, a crescer e a me (re)descobrir e eu não trocaria isso por nada no mundo”, declara Letícia para Fearless. A segunda temporada de Drag Me As a Queen – Uma Diva Dentro de Mim! começou a ser gravada em julho, porém ainda não possui data de estreia. O que esperar para próxima temporada? Mais mudanças de vida e outras revoluções. “Vocês podem esperar novas histórias que farão vocês reverem seus comportamentos e suas vidas”, afirma Ikaro Kadoshi.
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Zaila veste Vestido de franjas Filipe Freire
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Aretha Sadick veste vestido Arara Criativa
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va na pista. Quem dançar melhor, ganha a briga. E assim começaram as disputas entre “famílias” nos ballrooms.
Voguing – ou Vogue Dance – surgiu nos Estados Unidos e popularizou-se na década de 80. Possui este nome por causa da Vogue Magazine, já que a dança, além de receber influências das artes marciais, da ginástica artística e do teatro de sombras, ela baseia seus movimentos nas poses que as modelos fazem nas capas de revistas de moda. Tem como expoente o dançarino e coreografo, Willi Ninja (1961-2006), considerado o “padrinho” do voguing.
Os balls ou kiki balls aconteciam em salões de baile nas grandes cidades estadunidenses, os ballrooms. Os frequentadores eram, em maioria massiva, LGBTQs negros e latinos. Os grupos competidores eram conhecidos como “Houses” e eram como uma família de dança para xs participantes. As mais tradicionais são: House of Ninja (do próprio Willi Ninja), House of LaBeija e House of Xtravaganza. Cada casa possuía um pai/mãe – título independente de gênero – que era responsável por cuidar das “crianças”, os outros integrantes.
A dança pode ser dividia em cinco categorias: Hand Performance (movimento de mãos), Catwalk (versão estilizada do desfilar das modelos nas passarelas), Duckwalk (andar e dançar agachado), Floor Performance (levar sua dança ao solo, dançar deitado) e Spins, Dips and Drops (giros, mergulhos e quedas – parte da dança que demanda muita destreza e flexibilidade). “Throw shade” (ou “gongar”, na tradução Herbert Richers) é uma das principais motivações da dança. Tem um problema com alguém? Resol-
Slim Soledad veste Vestido Ary Rodrigues
Logo, as famílias, que eram só um grupo de dança, começaram a suprir o papel da família de laço sanguíneo dos integrantes, já que muitos não tinham ou foram expulsos das que tinham. Os ballrooms tornaram-se lares, sinônimo de acolhimento, empoderamento e ativismo. Toda forma de sofrimento, angústia, negatividade que você carrega consigo, é para ser deixada na pista de dança.
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Com o início da propagação do vírus HIV e da AIDS nos Estados Unidos, muitos jovens começaram a morrer de um jeito que nunca tinha sido visto no país. As pessoas tinham medo de contrair o vírus em banheiros, no ar, através do contato físico, o que trouxe ainda mais preconceito para quem já era rejeitado e foi aprisionando cada vez mais xs LGBTQ’s em seus refúgios, tornando os ballrooms e clubes cada vez mais importantes para o convívio social da comunidade. E isso ainda acontece na atualidade: os balls ainda existem, mas agora em diversos países e não só nos EUA. Para mais conhecimento sobre o assunto, o documentário Paris is Burning, da diretora Jennie Livingston, lançado em 1991, manifesta a cena LGBTQ+ em Nova York e exibe cenas que foram gravadas em diferentes momentos da década de 80.
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Na competição, os jurados, além de avaliarem a dança, também consideravam o visual e a atitude do dançarino dentro de algumas categorias, como butch queen (para integrantes masculinizadas), femme queen (para as “beeeem menininhas” – beijos, Fernanda Gentil), sex siren (sensuais), entre outras.
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Kiara Filipe veste Vestido Arara Criativa. Brinco, Anel e Acessório de Cabeça Acervo.
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Anddy Williams veste Vestido e Blusa Arara Criativa
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Ilunga Malanda veste Top e Casaco Arara Criativa. e Brinco Garibada
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Ilunga Malanda veste Top Arara Criativa
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Tiemi Tamura veste Vestido de Correntes Filipe Freire
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texto Giovana Macedo fotos Lucas Silvestre
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PRÓLOGO O corpo tem um peso inigualável na vida em sociedade. A forma física que habitamos é nosso principal tema de estudo científico, o maior bem para o contexto antropocêntrico, a casa da alma do ponto de vista religioso, a única coisa que garante nossa existência do ponto de vista biológico. A forma como esse corpo existe, se porta e é percebido pelo outro é um dos maiores indicativos de como funciona a sociedade em que está inserido. Classificamos épocas pelas mudanças que acontecem com esses corpos, com a cor da pele deles, sua forma, seu sexo, a moda, a manifestação cultural. Diferenciamos etnias e povos com base naquilo que elas fazem com seus corpos, se o cobrem, o mostram, o marcam, o escondem – o corpo é invariavelmente um simulacro da sociedade que o molda. Com os corpos LGBTQ+ não é diferente. Ter o seu corpo percebido como desviante, adorná-lo como manifestação de orgulho para a sua identidade sempre foi um ato político. “Parecer gay” sempre foi aproximar-se de comportamentos femininos. Fugir do padrão de gênero e consequentemente ser visto como sexualmente indecente vem com uma carga física e emocional brutal, que desde o início do movimento “GLS” fez com que a luta desses corpos se aproximasse do movimento negro, do movimento feminista. O que tem em comum, afinal, os LGBTQs, os negros, os amarelos, os indígenas, os latinos, as pessoas com deficiência, os gordos e as mulheres? Todos nós temos nossa experiência social e de vida moldada pelo nosso corpo, por como ele se parece, por como ele é diferente de como um corpo humano padrão, de classe dominante, deveria parecer-se. Nós somos vítimas de violência, desumanizados, execrados apenas por sermos, por existirmos e não nos escondermos. 094
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Disforia pode ser, por definição, várias coisas. Pode ser “uma mudança repentina e transitória do estado de ânimo”, ou “um mal-estar psíquico acompanhado por sentimentos depressivos”, mas, mais importante, pode ser “uma manifesta insatisfação e inconformidade com a anatomia sexual de nascimento e o papel social que dela se espera”. É dessa última que ambos os textos trataremos, e, mais importante, das razões pelas quais ela se manifesta e das formas que podemos lidar com ela enquanto corpos LGBTQ+ socialmente presentes.
Para Butler, o conceito de gênero é performático, de forma que o gênero de uma pessoa é definido não por um fator biológico – pois é diferente do conceito de sexo –, ou por um fator cultural, mas sim por um fator identitário, em conformidade com um conjunto de ações que define a percepção social do indivíduo que o performa. Em resumo, gênero não é uma característica inata, sexual ou física, mas sim uma espécie de teatro social, que pode assumir diversas faces, ser mutável, inexistente ou múltiplo. Porém, é justo chamar de performance aquilo que não é uma escolha? A imposição social da feminilidade sobre meninas e mulheres é mais violenta do que isso, envolve mutilação física, coerção moral, monetária, entre outras coisas. A violência não é exatamente performática, mas bastante material e totalmente imposta, visto que mulheres são submetidas a ela logo ao nascer, seja por terem suas orelhas furadas até terem suas vulvas cortadas, serem jogadas fora, vendidas, comercializadas, ou terem seus membros amarrados para se adequarem a um padrão de beleza – tudo isso antes mesmo de aprenderem a se comunicar ou poder escolher performar qualquer coisa.
FEMINILIDADE, MULHER E LESBIANIDADE
É bastante compreensível que o pensamento de culpabilização seja o mais disseminado dentro da sociedade contemporânea individualista, pois torna-se confortável responsabilizar o indivíduo pelas violências que sofre, vender a ele artifícios para se conformar com o sofrimento ou remediá-lo e transformar questões de violência e saúde pública em gosto e opinião pessoal. É lucrativo e interessante convencer mulheres de que é possível se identificar com exploração sexual, mutilação dos nossos corpos e padrões de beleza pedófilos, porque eles vêm em uma embalagem cor de rosa – e chamar isso de conformidade de gênero, ou ainda, de empoderamento feminino, de “meu corpo, minhas regras” – e dizer que, com certeza, o feminismo existe para que você possa afirmar que raspar as pernas é um direito e não uma imposição. É estatístico que mulheres são economicamente mais vulneráveis que homens, que são sexualizadas, objetificadas, e isso é um consenso dentro do debate feminista, certo? Porém, por que não olhamos para a socialização feminina com um olhar crítico e colocamos de fato a culpa nesses ritos sociais de generificação do corpo feminino? Mulheres são economicamente vulneráveis porque, além de ganhar menos que homens, são obrigadas a arcar com gastos adicionais com maquiagem, cosméticos, depilação, cabelo, unhas, roupas. Mulheres são sexualmente vulneráveis, mas são ensinadas a gostar de roupas de fácil acesso para homens como saias e vestidos, a usar sapatos que restringem sua movimentação e a impedem de fugir, manter unhas longas para que suas habilidades motoras sejam prejudicadas, longos cabelos fáceis de serem agarrados. Tudo que é associado ao ser feminino foi milimetricamente construído por homens para fragilizar mulheres, para nos distrair, nos sexualizar, nos vulnerabilizar. Não há nada no 097
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Feminilidade soa como algo oriundo de fêmea – o sufixo “idade” indica qualidade ou condição, e é comum que pensemos que o que é feminino é tudo aquilo inerente à fêmea, quando, na verdade, a feminilidade é uma condição imposta. Não é necessário citar Simone de Beauvoir para sabermos que ser mulher é ser marcada pelas insígnias sociais de gênero, do gênero mais fraco, mas é necessário citar Judith Butler e sua teoria de gênero como performance para entendermos o que é se sentir disfórica enquanto mulher – e lésbica – na sociedade contemporânea.
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que conhecemos como “performance de feminilidade” que exista com um propósito abstrato de gosto, para atender a um conceito puro de beleza, um conceito transcendental de gosto ou de expressão. Todas essas coisas existem, primeiro, como arma para violentar mulheres e explicitar sua situação sexual, existem como lembretes visuais de como essa pessoa que os carrega deve ser tratada: explorada, estuprada, violentada, subjugada. E é por isso que mulheres que se recusam a carregar essas insígnias (sapatonas, em sua grande maioria) incomodam tanto as normas vigentes de gênero. Não cabe na lógica do gênero performático, do gênero enquanto escolha, que uma pessoa não se identifique com nenhuma dessas violências e, ainda assim, seja uma mulher. Não faz sentido para a ideologia vigente de funcionamento de gênero que uma mulher não goste de nenhuma dessas coisas que permeiam o campo fabricado de “feminilidade” e, ainda assim, seja uma mulher. Desde as coisas mais básicas e visuais e, sim, realmente, até certo ponto, performáticas, como vestimenta, cabelo, passando por aquelas sociais mais engenhosas que nos amarram de formas mais sutis, como comportamento, tom de voz, posição hierárquica, poder econômico, autoestima e até aquelas mais estratificadas e intocadas como a heteronormatividade, a mulher que não serve ao homem de maneira alguma é absolutamente incompreensível para a sociedade. É percebida como não-humana aquela pessoa, mulher, que não se parece com uma mulher, que não se comporta como uma mulher deveria se comportar, não pensa como uma mulher deveria pensar e não está sexualmente disponível para homens ou para seus fetiches, como uma mulher deveria estar, uma vez que só se relaciona com outras mulheres. Logo, tentam colocá-la em um patamar de “masculinidade”, tentam aproximá-la do macho e dos comportamentos sexuais predatórios masculinos, violentos, mas a mulher sapatona, essa mulher que nega veementemente a feminilidade, diferente do homem, não é predatória. Não tem interesse na feminilidade, e, sim, em mulheres. Outra coisa absolutamente incompreendida pelo homem: amar mulheres para além de sua utilidade sexual, de serventia ou de sua função decorativa. A mulher radicalmente sapatona é a maior afronta ao patriarcado. Como uma mulher que ama outras mulheres – ou qualquer mulher – deve se identificar com violência e heteronormatividade apenas por um motivo estético? A mulher sapatona já se encontra disfórica no ato de existir – e é obrigada a escolher entre dois caminhos: o de tentar se encaixar ou se rebelar. Ambos são extremamente violentos e hostis. A mulher lésbica que se parece mais com aquilo que a sociedade heteronormativa patriarcal imaginou de uma mulher com certeza vai ser mais aceita, mesmo que jamais por completo, sendo muitas vezes forçada a mimicar relações heterossexuais dentro da sua realidade. A disforia se manifesta, porém, com mais evidência, talvez, naquela que é “menos adaptável” à violência e consegue perceber 098
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com clareza o estrago feito pelas imposições da demarcação de gênero – e está fadada a ser percebida como “masculina”. Masculinidade, diferente da feminilidade, não é performática. Tudo que é inato do ser humano foi atribuído à masculinidade, de maneira que tudo o que não é artificial, infantilizado, fabricado é masculino. Pelos pubianos são sinal de “virilidade” apenas para que o característico da testosterona seja visto como superior, para que o “feminino” tenha que se afastar disso ao máximo. Suor, pelos, “mau cheiro”, roupas confortáveis, cabelos práticos – tudo que chamamos de masculino é, simplesmente, aquilo que é humano. Existem, claro, sintomas da masculinidade tóxica e comportamentos que foram instituídos pelo patriarcado e classificados como masculinos, como a violência sexual, a agressão e o poder, mas todas essas são ações não-performáticas e materiais, que fazem parte do sistema de dominação direta do homem sobre a mulher, da mesma forma que ser uma vítima é considerado feminino e não é performático, é material e oriundo do contato com o homem e não como existência individual em si – logo, irrelevante para o ideário da identificação e da individualização da experiência de gênero. Mulheres lésbicas que não se identificam com a feminilidade, tidas como “masculinas”, não deixam de ser mulheres e, portanto, vítimas da violência. Não cabem, tampouco, na caixinha da masculinidade e sentem-se, novamente, disfóricas. Mulheres que não estão em conformidade com as normas heterossexistas e de gênero estão fadadas a sofrerem com a disforia no sentido de que estarão, enquanto indivíduos, desprovidas de referenciais com os quais possam se identificar. Essas lésbicas estão em um limbo (aquele que o homem hétero é incapaz de conceber, logo, é incapaz de permitir) e vêem a própria existência como um grande confronto, um grande erro, uma coisa que não é nem isso e nem aquilo – quando, na verdade, são apenas mulheres, mulheres que amam outras mulheres e merecem existir e serem reconhecidas, talvez mulheres que têm sua individualidade politizada contra sua vontade, mas que são extremamente necessárias para a desconstrução do ideário de mulher como feminilidade. São mulheres diariamente feridas por essa feminilidade, mulheres que, ao não se conformarem com ela, colocam em risco suas famílias, suas relações, seus empregos, e ainda tem que ouvir que querem tornar-se homens, pois tornar-se homem é, subliminarmente, tornar-se humano, tornar-se visível e reconhecível. Tornar-se homem é poder amar mulheres sem julgamentos, também. É natural que muitas simplesmente não consigam conceber que sua humanidade seja retirada apenas por serem mulheres e que, por causa disso, tenham que se submeter a processos humilhantes. É natural que essas mulheres neguem isso. O que não é natural é forçá-las a se encaixar em padrões de masculinidade, de heterossexualidade, e tentar curar sua sensação de não pertencimento fazendo-as passar por estupros corretivos, mutilação, terapias psicológicas, doutrinação, obrigando-as que usem sapa-
tos de salto alto em seus empregos para que não morram de fome ou as coagindo com violência a se comportarem de maneira submissa para que possam ser reconhecidas como mulheres. A disforia de mulheres lésbicas não-femininas é cruel, visto que é irreparável. Nenhuma mulher que percebe a quem serve a feminilidade se identifica com aquilo, muito menos com a masculinidade tóxica. A disforia de mulheres lésbicas não-femininas só pode ser acalentada no convívio com outras mulheres lésbicas não-femininas e na validação da expressão da mulher desassociada da feminilidade, da normalização da existência do gênero feminino completamente desassociado do homem (e, abarcando um pouco a ideologia da individualização, se aceitando sem a obrigação de se encaixar e se percebendo como válida, como mulher). A existência de sapatonas é política, é de resistência contra o patriarcado, contra a misoginia, mas é, principalmente, humana.
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Da noção romântica do amor ao paradoxo de Bauman em Black Mirror um debate em torno das relações homoafetivas nos tempos das conexões e dos amores líquidos texto Victor A. Godoy colagens Marcos Boscolo
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Bauman dedicou Amor Líquido “aos riscos e às ansiedades de se viver junto, e separado, em nosso líquido mundo moderno”, o qual é dominado pelas interações das redes e das conexões, dotado de uma “furiosa individualização”, e informado por uma cultura do consumo que zela pelo “prazer passageiro, a satisfação instantânea, resultados que não exijam esforços prolongados, receitas testadas, garantias de seguro total e devolução do dinheiro”. Tendo estes (e outros) fenômenos em vista, Bauman quis escla-
recer com Amor Líquido, como ele mesmo disse, “a misteriosa fragilidade dos vínculos humanos, o sentimento de insegurança que ela inspira e os desejos conflitantes (estimulados por tal sentimento) de apertar os laços e, ao mesmo tempo, mantê-los frouxos”. Por isto, se fôssemos indicá-lo para algum conhecido em um desses papos de boteco, não poderíamos deixar de alertar que Amor Líquido não é um guia que ensine a amar melhor, ou uma lista contendo quais armadilhas evitar para não se tornar refém das famosas “ciladas” ou vítima dos temidos “embustes”, nem um louvor a juras de amor eterno que, em pleno 2018, podem soar um tanto démodé. Bauman não é (e nem quer ser) um conselheiro ou guru do amor, e nem soa como um saudosista dos tempos em que a jura “até que a morte nos separe” reinou invicta. Ao percorrermos suas páginas, na verdade, temos contato com pensamentos dispersos, que não podemos encadear, mas que, lidos todos juntos, formam um olhar que identificou três tipos de relações, com naturezas e implicações distintas, em voga nos dias de hoje: dois destes, o parentesco e a afinidade, vivenciados no mundo real, e o último, as conexões, mediado pelo meio virtual. Tipos que apesar de confundíveis e confundidos devem ser devidamente discutidos, já que, desde a invenção da internet e a posterior popularização das redes sociais, as conexões não somente vieram a coexistir com as relações de parentesco e afinidade, mas também a interferir nestas, ou a ditar a norma que orienta todos os tipos de relacionamentos. “Somente o parentesco”, aos olhos de Bauman, “é, pura e simplesmente, quer se deseje quer não, uma coisa dada”, um laço “indiscutivelmente sólido, confiável, duradouro e indissolúvel”. Nossos pais são nossos pais, gostemos ou não deles, aceitemos ou não quem eles são. Já a afinidade, de modo oposto à relação parental, é um laço eletivo ou escolhido, pondo em marcha um processo que pode culminar na sua firmação ou no seu rompimento. Bauman pontuou também que a afinidade tem a intenção de ser como o parentesco, isto é, ser tão incondicional e irrevogável como este é exatamente por não ser antecedido pelo direito de escolhermos firmá-lo ou rompê-lo. Contudo, nem mesmo o casamento, um tipo de relação por afinidade que se tornou parental, mantém a aura de ser indissolúvel que mantinha antes do direito ao divórcio e, acima de tudo, nos tempos em que este-
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Homo, hetero ou biafetivas. Monogâmicas ou abertas. Presenciais ou à distância. Saudáveis ou abusivas. Implicando apenas em uma boa companhia, ou também em algum tipo de compromisso, o qual, por sua vez, pode (vir a) ser de curto ou longo prazo. Vindo ou não a gerar laços maritais ou parentais. Sendo ou não reconhecidas perante uma instância divina em uma cerimônia. Em todas as suas tantas formas e dinâmicas possíveis, relações vêm sendo um tema cada vez mais recorrente em debates ou reflexões das mais diversas naturezas. Podem rolar de um jeito mais despojado, entre xs migxs em uma mesa de boteco, mas também de um modo mais formal entre especialistas e pacientes nos divãs, como atesta o boom do aconselhamento visto nas últimas décadas. Youtubers e influencers também as debatem com suas fanbases há um tempo. Um exemplo que “viralizou” foi o vídeo “Não Tira o Batom Vermelho”, da Jout-Jout. Os jornalistas também vêm se dedicando a discuti-las, como indicam incontáveis matérias acessíveis por meio de uma rápida busca no site Google. No meio acadêmico, os sociólogos também publicam suas teses, e o exemplo mais conhecido até hoje talvez permaneça sendo Zygmunt Bauman, que, em 2003, divulgou o polêmico Amor Líquido, seu texto mais vendido no país. Devido a tantos olhares, e amparados por estes também, acima de tudo por Bauman, também decidimos prosear um pouco sobre esse tema, cada vez mais comum de ser discutido por aí. E dizemos “prosear”, com toda a conotação informal atrelada ao termo, por nossa meta não ser nem propor máximas morais nem compartilhar insights subjetivos. Nosso objetivo é mais modesto, e se resume a poder “trocar uma ideia” com quem nos lê – a partir de um texto tão polêmico e um autor tão conhecido – sobre o ato de se relacionar, de um modo geral e no meio gay, em um mundo moderno visto por Bauman como “líquido”.
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Para jogar luzes nos motivos que levam tantos de nós a não manter os laços de afinidade que formamos, quem dirá a firmar compromissos longos ou eternos, e nas razões que levam parceirxs, uns recém-formados outros de longa data, a ver a tarefa de se relacionar de forma tão desanimadora, escolhendo romper os laços que tinham, Bauman discutiu, antes de tudo, quem somos nós, seus coetâneos, reconhecendo entre nós indivíduos desesperados por terem sido abandonados aos seus sentidos e sentimentos facilmente descartáveis, ansiando pela segurança de estar junto e por uma mão amiga com a qual contar em um momento de aflição, desesperados por relacionar-se; e, no entanto, desconfiados da condição
de “estar junto” e em particular de estar junto “para valer” – para não dizer eternamente, pois temem que tal condição possa trazer encargos e tensões que eles nem se sentem aptos nem dispostos a suportar, e que podem limitar severamente a liberdade de que necessitam – sim, seu palpite está certo – para relacionar-se... Tendo notado este dilema envolvendo a segurança de estar em uma relação e a liberdade de formar novas relações, Bauman contestou se o tema que debatemos com tanto fervor, das mesas dos bares aos divãs, seria mesmo “a arte de constituir relacionamentos”, e não “a arte de romper um relacionamento e deste sair incólume”: “afinal, que tipo de conselho eles buscam de verdade: como estabelecer um relacionamento, ou – só por precaução – como rompê-lo sem dor?”. Para Bauman, a liquidez do mundo moderno também se atesta por esperarmos e desejarmos que nossas investidas românticas (e não apenas as românticas) surjam e sumam de um modo cada vez mais veloz e em montes nunca menores, anulando-se mutuamente e jurando serem mais satisfatórias que os laços anteriores. E Bauman dedicou-se a expor o enorme papel que as redes tiveram na formação e na facilitação do fenômeno de optarmos pelo rompimento das nossas relações hodiernas, valorizando novas relações que podem (vir a) ser mais plenas, e que possamos firmar e voltar a romper sem gerar nenhum dano colateral irreversível ou feridas que demoremos para curar sozinhos. Afinal, notou Bauman, a chance de estar em um relacionamento indesejável, mas impossível – ou desgastante – de romper é o que torna “relacionar-se” uma tarefa tão desleal. Nas redes, porém, podemos nos conectar e nos desconectar. Não podemos imaginar uma rede se estas duas atividades não forem simultaneamente possíveis, sem ambas estas possibilidades, que gozam do mesmo e legítimo status. Nas redes, podemos atar e cortar conexões nos momentos em que bem entendemos. Logo, comparado a relacionamentos off-line densos, lentos e confusos como as afinidades ou as parcerias é mais fácil entrar e sair de interações virtuais ou conexões, que são leves, desimpedidos e limpos (ou assim se espera que sejam). Por isto, para Bauman, referimo-nos mais a “contatos” ou a “conexões” e menos a “parceiros” ou a “relações” e “parcerias”. Contudo, Bauman não deixou de notar que nossas conexões raramente são apenas conexões, e que as redes também servem como ferramentas formadoras
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ve em vigor a noção romântica de amor, pois laços “que foram unidos por seres humanos, estes podem, têm o direito de – e, dada a chance, irão – desunir”. E mesmo os laços parentais, nós completamos, vieram a se sentir mais inseguros, uma vez que as estruturas patriarcais em que foram historicamente formados, bem como as opressões (simbólicas ou discursivas) e as violências que reproduziam e reproduzem, vêm sendo intenso objeto de debate e resistência desde a metade do séc XX. De todo modo, Bauman entendeu que o cordão umbilical que une afinidade e escolha nunca se desfaz por completo, e a intenção de manter afinidades vivas e saudáveis prevê uma luta diária e não dá sossego à vigilância, forçando-nos a termos de reafirmar nossa escolha, dia a dia, e a nos esforçarmos com novos gestos para que mantenhamos viva a afinidade – e se assim não fizermos, alerta Bauman, esta vai definhando e se dissolvendo até sumir. Bauman identificou também que “estabelecer um vínculo de afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco – mas também a presteza em pagar o preço na enfadonha moeda da labuta diária. Se não há disposição, fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir a partir desta intenção”. Tendo isto em mente, Bauman afirmou que toda afinidade detém uma ambivalência endêmica, uma marca de nascença indelével, ao mesmo tempo sua bendição e sua maldição ou sua sedução e sua perdição: o direito de escolher, a escolha em si, “que, diferentemente do destino do parentesco, é uma via de mão dupla. Sempre se pode dar meia-volta, e a consciência de tal possibilidade torna ainda mais desanimadora a tarefa de manter a direção”. E Bauman concluiu que tal tarefa pode soar árdua em demasia para que encaremos voluntariamente.
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(ou mantedoras) de afinidades que vivenciaremos (ou já vivenciamos) no mundo real. Isto é, apesar de interagirmos on-line com indivíduos que só conhecemos por meio dos perfis que acessamos e das breves mensagens que trocamos, em suma desconhecidos, é comum também adicionarmos nas redes boa parte dos indivíduos – se não todos – que de fato conhecemos ou com quem nos relacionamos no mundo real, e, enfim, não é raro também que mantenhamos forte interesse de virmos a nos relacionar off-line, por uma noite ou por tempo indefinido, com alguns destes desconhecidos que interagem conosco on-line. Devido a estes dois motivos que, para Bauman, as conexões vieram a ditar a norma que orienta a dinâmica das afinidades ou das parcerias. Focando, inicialmente, nas interações on-line entre indivíduos que já mantêm relações no mundo real há um tempo, Bauman notou que, atualmente, um bom parceiro também é um parceiro que interage on-line todos os dias e em diversas redes, uma vez que as introspecções diligentes coexistem, na era das redes, com “interações delirantes”, e o sentido das trocas de mensagens pode não estar mais apenas nas mais as mensagens em si, ou nos temas que contêm, mas também na sua ida e vinda, em suma na sua circulação ou fluxo. Já acerca do nosso interesse de termos relações off-line com indivíduos com quem interagimos on-line, Bauman evidenciou que certas redes foram concebidas justamente a fim de que este interesse seja consumado, e do modo mais veloz possível. Isto nós observamos, por exemplo, nos apps voltados aos dates (como o Tinder, o Happn e o Insta na era pós stories), mas acima de tudo nos apps voltados ao sexo (como o Grindr ou o Hornet no meio gay), por onde os bons e velhos “contatinhos” também são formados – acima de tudo pelos mais tímidos ou introvertidos para fazer o mesmo no mundo real. Uma simples troca de nudes pode bastar para uma noite de sexo rolar, bem como uma boa “cantada” vinda de um “boy gato” pode levar a um date. Além disto, os boys que “não têm local” para noites de sexo ou que não têm as noites disponíveis para dates não tardam a ganhar o rótulo de “enrolados”, e os perfis dos “contatinhos” que não despertam mais interesse e “insistem” em mandar mensagens também podem logo receber um unmatch (unfollow, unfriend, block, etc.). “Contatinho”, aliás, parece ser o termo mais comum hoje em dia para designar este tipo de laço que pode nascer on-line ou off-line, mas que se mantém, acima de tudo, por meio das redes e, por isto, pode ser rompido a todo o momento e muitas vezes sem quaisquer justificativas. Fora estas questões envolvendo as redes como formadoras, mantedoras e rompedoras não apenas de conexões, mas também de afinidades, há também o fato apontado por Bauman de que o óbito da noção romântica de amor, devido às radicais alterações nas relações de parentesco às quais costumava servir e das quais vinham seu vigor e sua valoração, significou também a facilitação dos testes aos quais uma experiencia deve passar para ser chamada de amor. Por isto, Bauman também não se chocou com o fato de que podemos nos apaixonar mais de uma vez na vida, e nem duvida de quem diz (ou se gaba de) ser mais “vulnerável” ao amor e às suas investidas por se apaixonar e se desapaixonar muitas vezes. Para Bauman, há bases bastante firmes para vermos o amor – e as condições de apaixonado e desapaixonado – como um sentimento recorrendo ao longo da nossa vida, possível de repetições, convidando-nos a novas tentativas. Foi por meio desta “súbita abundância” das experiências que podem ganhar o epíteto de “amorosas”, e desta inegável inclinação a vivenciar investidas românticas ou sexuais, que Bauman explicou também o fenômeno de termos inventado nas últimas décadas novas formas de nos relacionarmos que visam manter “todas as portas abertas”: os casamentos com comunhão total de bens deram lugar ao “viver/morar junto”, e os namoros às “relações abertas”, para dar dois exemplos. Isto é, no lugar de almejarem um compromisso (longo ou curto, com ou sem solenidades), estes novos formatos de relações são “até segunda ordem”, e, por isto, prever e amarrar o futuro, ali, é algo irrealizável e indesejado, uma vez que ambas as partes têm combinado “esperar para ver como isso funciona e onde vai levar”. Porém, Bauman também notou que o evitamento dos compromissos e a facilitação dos rompimentos que podem decorrer daí são uma “faca de dois gumes”, uma carta que pode vir das mãos das duas partes, e um risco de que ambos os lados estão cientes, e que, por isto mesmo, não livra estes novos formatos de relações da chance de serem não apenas refúgios dos sentimentos de solidão e insegurança, mas também suas estufas. No caso das conexões, apesar do charme dos “contatinhos” ser justamente tenderem a não durar, não é incomum nos vermos ansiando para que alguns destes se tornem parcerias, com ou sem compromisso. E este sentimento, além de poder ser não correspondido, também pode ser não verbalizado e não levar a um rompimento total, colaborando para perpetuar certos fenômenos como o conhecido ghosting, 0106
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o relativamente novo orbiting e – se for você o contato dispensado e, por um azar do destino, já tiver se “envolvido” – o bom e velho stalking. Já no caso das relações abertas e do “viver junto”, não há motivo para supor que nossxs parceirxs não desejem, se for o caso, escolher partir antes de nós, e que não estejam desimpedidos para fazer isto assim que desejarem. Por isto, Bauman concluiu que estes novos formatos que concebemos para nossos laços, a fim de nos libertar de certos anseios relativos a não podermos sair de relações hodiernas (ou entrar em novas) devido a compromissos que assumimos antes, não nos emanciparam de velhas ansiedades envolvendo rejeição, distanciamento e términos.
Porém, este vão e desafortunado paradoxo foi tema do episódio “Hang the Dj” da última temporada de Black Mirror lançada pela Netflix, e é com ele que decidimos encerrar nosso texto, pois nos permite expor uma última reflexão em torno do mito grego de Eros, que, talvez, seja também uma sutil ode de Bauman ao amor. No começo deste episódio, vemos Amy (Georgina Campbell) e Frank (Joe Cole) se conhecendo em um restaurante sob ordens diretas de seus respectivos Conselheiros, uma inteligência artificial instalada em seus tablets pelo Sistema, um app que decide as relações românticas em que seus clientes se manterão e o tempo que deverão ficar nestas, sua “data de validade”, que não pode ser nem adiado e nem adiantado. Após revelarem que nenhum dos dois usou os serviços do “Sistema” antes, eles checam seus tablets e veem que têm 12 horas juntos, e as passam sozinhos em uma casa conversando até dormirem. De manhã, após o contador em seus tablets indicar que seu tempo juntos terminou, eles se despedem e vão um para cada lado. Em conversas distintas, os Conselheiros de Amy e Frank dizem que o Sistema insere cada cliente em diversas relações, coletando dados a partir das suas reações aos seus parceiros temporários, para voltar a combiná-lo com novos clientes até localizar seu “parceiro definitivo”, cuja identidade é revelada no “dia do emparelhamento” do casal, algo que os Conselheiros afirmam que o Sistema é capaz de fazer 99,8% das vezes. Após isto, Amy é colocada em uma relação de nove meses com Lenny, um velho cliente do Sistema, e Frank tem de ficar um ano com Nicola, por quem sente zero afinidade, e ambas as relações eventualmente se tornam um tormento para todas as partes, que não têm a opção de rompê-las ou sair destas antes do tempo calculado e decidido pelo Sistema, mesmo tendo começado a mutuamente se detestar. Tempos mais tarde, no dia do emparelhamento de um casal, Amy e Frank se veem de novo e passam um tempo juntos, e os dois dão a entender que gostam mais de estar um com o outro que com seus respectivos parceiros. Mais uns meses, chega a data de validade da relação de Amy com Lenny, e ela é posta pelo Sistema em uma série de relações curtas, boa parte se resumindo a noites de sexo e manhãs de solidão. Decorridos mais três meses, a relação 0107
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Contudo, temos de manter em mente – e isto é o mais importante – que Bauman não trata destas questões apenas para voltar a naturalizá-las, apontar que somos impotentes perante elas ou que delas até podemos correr, mas nunca escapar. Isto é, Bauman não está nos dizendo que a vida agora é assim, ou que amar é impossível na era das redes – como dissemos, Bauman não deu conselhos nem ensinou a amar melhor nas linhas de Amor Líquido, por isto, não há verdades absolutas ou juízos de valor depositados ali à espera de nós para que os conheçamos e os adotemos a fim de nos tornarmos indivíduos e parceiros melhores. Também não soa como se estivesse slut-shamming nenhum de nós, ou afirmando que as parcerias de hoje são menores ou menos sinceras, válidas e maduras que as parcerias de antes. Nem mesmo nos incentivando a em ir dates com todos os matchs que dermos no Tinder, ou a apurar, conhecendo um a um e dando tudo de nós todas as vezes, se o amor de nossas vidas não está entre elxs. Bauman, aliás, foi enfático ao afirmar que uma busca delirante ou totalizante pelo amor e pelo ente amado em um mar de conexões seria não apenas fútil, mas também um infortúnio. Fútil, pois se furtaria de nossas investidas a domá-la, uma vez que “chegado o momento, o amor e a morte atacarão, mas não se tem a mínima ideia de quando isso acontecerá, e, quando acontecer, vai pegar você desprevenido”. E um infortúnio por “uma conexão indesejável ser um paradoxo. As conexões podem ser rompidas, e o são, bem antes que comecemos a detestá-las”.
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de Frank com Nicola também expira, e, após isto, o Sistema de novo o une a Amy. Desta vez, os dois decidem, juntos, não olhar a data de validade da sua nova relação. Porém, dando-se conta de que a ama, Frank se sente inseguro e perturbado com o eminente, mas desconhecido, dia do término da relação com Amy, e, violando a jura que tinha feito a ela, ele checa seu tablet para saber se o tempo restante que terá com ela será longo ou curto. Por um momento, o tablet parece indicar longos cinco anos, apenas para recalibrar, de novo e de novo, para um tempo cada vez menor até, enfim, parar em 20 míseras horas. Frank é informado por seu Conselheiro que sua “observação unilateral” da data de validade encurtou o tempo da sua relação com Amy, e, de manhã, é abordado por ela, admitindo que verificou a data de validade e contando que, por ter feito isto, eles só têm cerca de uma hora juntos, não mais cinco anos. Os dois discutem, e Amy escolhe romper com Frank, irada com ele por não ter honrado o que tinham combinado juntos.
saber o tempo que viveria este amor com Amy para tentar domar e estar em paz com o destino, o tempo terminou, e Amy o deixou. Bauman também disse que todo amor luta para enterrar as fontes de sua debilidade e incerteza, mas, se obtém êxito, logo passa a murchar e some. Eros é possuído pelo fantasma de Tânatos, encarnação mitológica grega da morte, e não há encantamento mágico que possa exorcizá-lo. Como o desejo de durar pode vir a se tornar o delírio impotente do amor e do amante, o desafio, a atração e a sedução do Outro tornam toda distancia, mesmo reduzida e minúscula, insuportavelmente enorme. A abertura aparenta ser um precipício. Fusão e subjugação parecem ser as únicas curas para o tormento. E não há se não uma tênue margem, à qual facilmente se fecham os olhos, entre a carícia suave e gentil e a garra que aperta, implacável. Eros não pode ser fiel a si mesmo sem praticar a primeira, mas não pode pratica-la sem correr o risco da segunda. Eros move a mão que se estende na direção do outro – mas mãos que acariciam também podem Para discutir este episódio de Black Mirror a prender e esmagar. partir das reflexões de Bauman em torno do conceito de amor, poderíamos dizer, logo de começo, que Contudo, Bauman também notou que se o Frank foi movido neste momento por uma maldição amado for reconhecido pelo amante como um que, mais cedo ou mais tarde. toma posse de todos ser plenamente independente, soberano – e não os amantes: a maldita recusa em suportar com leveza como uma simples extensão, eco, ferramenta ou o fato de que o amor é vulnerável perante o destino, servo –, a incerteza perante o destino é recoisto é, estar em paz com o fato de o amor poder durar nhecida e aceita. A partir daí, “amar significa ou não. Para Bauman, é sina do amor, no tempo que abrir-se ao destino, a mais sublime de todas as venha a durar, que permaneça à mercê do infortúnio, condições humanas”, em que o medo se funde sem nunca ter confiança suficiente em si mesmo para ao regozijo de um modo tão visceral que não dispersar as dúvidas e abafar a ansiedade, sem nunca permite mais que se separem. E abrir-se ao dessaber o que está pela frente e o que o futuro pode tra- tino significa admitir a liberdade no e do ente zer. Um futuro que não nos permite tornar previsível amado, o outro, o companheiro no amor. Por o que é incognoscível, e, por isto mesmo, é incerto e isto, para Bauman, onde há dois não há certeza. inescrutável, temível e misterioso, impossível de ser Ser duplo significa consentir em indetermidito de antemão, de ser antevisto ou evitado, anteci- nar o futuro. E para Bauman é isto mesmo que pado ou interrompido. o amor faz por meio do amante: destaca “um Eros, encarnação mitológica grega do amor, outro qualquer” de “todo mundo” e, por meio é uma “relação com a alteridade, com o mistério, ou deste ato, remodela-o, tornando-o “o ente amaseja, com o futuro”. Por isto, os territórios a que Eros do”, um ser bem definido, dotado de uma boca inexoravelmente conduz ao se instalar entre dois ou que se pode ouvir e com quem se pode convermais seres é uma terra inexplorada e não mapeada, sar para que algo possa rolar. E o que seria esse pois consiste “na intransponível dualidade dos seres”, “algo”? Amar, concluiu Bauman, significa mando amante e do amado. E Eros não sobrevive às ten- ter a resposta em suspenso ou se abster de fazer tativas de se superar tal dualidade, de domar o que a pergunta, uma vez que, ao responder, podeé desobediente, ou domesticar o que é desordenado. mos estar apenas tentando prever ou amarrar o Em Black Mirror, vemos Frank se rebelar contra a na- futuro. Transformar um outro qualquer em um tureza mais básica do amor, ser refém do destino, e o ser definido significa tornar indefinido o futuamor não tarda a se vingar dele por ter tido a insolên- ro, concordar com sua indefinibilidade. cia de desafiá-la. No momento em que Frank ousou 0108
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É por isto que a história de amor entre Amy e Frank pôde continuar apenas após a aceitação total por parte do casal do amor como um sentimento que pode durar ou não, sem nunca se saber de antemão o tempo que virá a durar. Voltemos ao episódio. Depois de mais uma série de relações curtas e indistinguíveis, o Conselheiro avisa Amy que seu parceiro definitivo enfim foi localizado, e que, de manhã, ela saberá quem ele é. Respondendo-lhe, o Conselheiro diz a Amy que seu par definitivo é um homem que ela nunca viu antes, e lhe dá a chance de dizer adeus a qualquer parceiro anterior que ela escolher. Amy rapidamente decide se despedir de Frank, e os dois se veem no mesmo restaurante que vimos ao longo do episódio.
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Percebendo que têm apenas alguns momentos para se despedirem, Amy checa com Frank se ele também não tem memórias de como eram suas vidas antes de irem morar na vila do Sistema, e diz que o motivo disto é que eles devem estar em um teste, e que devem se rebelar para passar por ele. Frank concorda, e os dois decidem fugir dali pelo topo da enorme muralha que circunda a vila. À medida que a sobem, as luzes sob seus pés se apagam e uma escuridão “pixelizada” engole tudo ao redor, revelando que eles, de fato, eram parte de uma simulação. Os dois reaparecem em uma área virtual com o número 998 acima de suas cabeças, e cercados por centenas de versões de si mesmos, numeradas de forma semelhante. Após isto, um contador digital anuncia que, de mil simulações, eles se rebelaram em 998 das vezes. Enfim, a câmera muda para o mundo real, onde deduzimos que o Sistema, os Conselheiros e todas as suas versões digitais fazem parte do algoritmo de matchmaking de um app de dates. Em um bar, o app indica que as versões reais de Amy e Frank são um match de 99,8%. De longe, os dois sorriem um para o outro, com a estrofe “Hang the DJ” da música “Panic” da banda The Smiths tocando ao fundo, e Amy anda até Frank. Mesmo ciente de que havia uma data de validade para sua relação com Frank, ao propor a ele que não a vissem, Amy já tinha aceitado o fato de que o amor pode não durar, contentando-se apenas em não saber sua duração. De modo oposto a Frank, que se rebelou contra a natureza do amor, Amy a aceitou por completo ao se rebelar contra o Sistema, que estipulou uma data fixa para o término de sua relação – e, por isto mesmo, de seu amor – com Frank, impedindo-a de voltar a reatá-la ao tornar imperecível a relação que ela viria a firmar com um desconhecido, impedindo-a de voltar a reatá-la. Não é à toa que o final da história de amor entre Amy e Frank coincide justamente com seu começo. Não temos como saber se a relação dos dois será longa ou curta, saudável ou abusiva, monogâmica ou aberta, etc., nem mesmo será virá a ser uma relação, ou apenas mais um date. Do mesmo modo que não podemos saber o que virá a ser das nossas relações com nossxs parceirxs e contatos. E, apesar disto poder ser um risco a levarmos em conta para evitar relações indesejáveis e impossíveis ou desgastantes de rompermos, acima de tudo se forem impedimentos para formarmos novas relações, isto também pode ser, simplesmente, uma natureza a ser reconhecida à medida que nós, os habitantes deste líquido mundo moderno, percorrermos nossas vidas sob o peso esmagador da mais ambivalente tarefa das muitas com que damos de frente no dia a dia: amar.
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TAKE ME TO THE BALL
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ARMÁRIO
2.0
texto anônimo ilustração giovana macedo
O tempo parou. No silêncio que seguiu, o futuro próximo diante dos olhos: remédios e mais remédios. Atordoado, tentava calcular como fazer dali em diante, de maneira prática, para desviar a atenção dos pequenos desesperos que surgiram no âmago do meu ser. Assim seguiram os primeiros dois meses. Mecanicamente, tomando os remédios todos os dias. Maquinalmente, melhorando minha alimentação. As dietas e recomendações médicas foram seguidas e lentamente o vírus foi controlado, a melhora na alimentação fez-me mais saudável e, por fim, na situação “desfavorável”, houve uma melhora de qualidade de vida. O mesmo não é aplicável ao lado social da coisa. Escolher cuidadosamente com quem compartilhar o segredo, pois mudará para sempre a maneira como te enxergam. Não é exatamente como a homofobia. As pessoas podem, de fato, temer serem “infectadas” e o processo de educação sobre o assunto é lento ao ponto em que a aceitação se torna custosa e cansativa. 0112
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E a questão é exatamente essa, toda a instrução recebida sobre o assunto foi ofensiva, baseada em medo e ignorância. Aprendi que deveria temer o vírus perigoso e mortal. Ah, claro, “doença de gay”. Essa é a informação que segue repetida nas propagandas institucionais atuais. Esse é o tom da conversa que se tem com jovens LGBTQs: promiscuidade e DSTs. Enquanto jovens heterosexuais são orientados sobre métodos contraceptivos. Por este motivo, o segredo segue sendo mantido. A mesma situação já havia sido experimentada, o armário da sexualidade foi vivido tanto entre segredos e automutilação, quanto em ameaças dentro do ambiente doméstico. Atualmente um novo armário se faz presente.
O vírus da imunodeficiência humana é sério e deve de fato ser evitado. Porém, arrisco dizer que vivo melhor desde que o carrego “adormecido”. A verdadeira questão não resolvida em relação a soropositividade é o estigma social, o tabu que cria barreiras e faz com que eu não assine esse texto, por receio. Receio pelos desdobramentos e consequências que virei a experimentar na minha vida e essa é minha maneira de lidar. De gota a gota experimento as mudanças nos olhares a medida que revelo a seletos, pois não estou pronto para me inundar se todos souberem… sei que não tenho obrigação de contar, mas sinto que não devo. Você entende?
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Volto a me ocultar. A justificativa diária para o remédio, a informação pessoal que, da família, só a prima mais íntima sabe. Porque, obviamente, se descobrirem, dirão que confirmo estatísticas – é doença de gay, e mentes mais conservadoras não mudarão de opinião.
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