Revista Mosaicum

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FACULDADE DO SUL DA BAHIA - FASB NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO

Mosaicum

ISSN:1808-589X Ano 6, n. 11, Jan.-Jul. 2010

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REVISTA MOSAICUM, N. 11 - Jan./Jun. 2010 - ISSN 1808-589X

REVISTA


FUNDAÇÃO FRANCISO DE ASSIS Presidente: Lay Alves Ribeiro FACULDADE DO SUL DA BAHIA Diretor-acadêmico: Valci Vieira dos Santos Diretor-administrativo: Wilson Alves de Araújo. NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO - NUPPE Coordenação: Jessyluce Cardoso Reis Conselho científico: Abrahão Costa Andrade (UFRN) Bernardina Maria de Sousa Leal (UFF) Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES) Eva Aparecida da Silva (UFVJM) J. Agustín Torijano Pérez (Universidad de Salamanca) Jaceny Maria Reynaud (UFSC) Josina Nunes Drumond (PUC/SP) Nilson Robson Guedes (UNIARANGUERA) Paulo Roberto Duarte Lopes (UEFS) Querte Teresinha Conzi Mehlecke (UFRGS/FACCAT, RS) Ricardo Daher Oliveira (Centro Universitário São Camilo) Ricardo Jucá Chagas (UESB) Rodrigo Loureiro Medeiros (UFES) Sélcio de Souza Silva (UNEB/UCGO) Valci Vieira dos Santos (UNEB) Conselho Editorial: Carlos Felipe Moisés Valci Vieira dos Santos Wilbett Oliveira

© 2009 Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia (Fasb). Proibida a reprodução parcial ou total por qualqur meio de impressão, em forma idêntica, resumida, parcial ou modificada, em língua portuguesa ou outro idioma sem autorização dos editores.

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Diagramação/capa Wilbett Oliveira Correspondências: Rua Sagrada Família, 120 - Bela Vista Teixeira de Freitas, BA CEP 45997-014 (73) 3011.7000 - ramal 7005 Homepage: www.revistamosaicum.com.br E-mail: revistamosaicum@ffassis.edu.br

Os artigos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, o pensamento dos editores. Pede-se permuta / Exchange requested / Se solicita canje / On demande l’ échange

Revista Mosaicum Ano 6, n. 11 (Jan./Jul. 2010). Teixeira de Freitas, BA. ISSN: 1808-589X 1. Publicação Periódica - Faculdade do Sul da Bahia. CDD 050

Revista indexada em: EDUBASE - Unicamp - (http://www.bibli.fae.unicamp.br/) Latindex - (http://www.latindex.unam.mx)

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SUMÁRIO Editorial, 3 EDUCAÇÃO Educação como expressão do indefinível, 7 EDUCATION AS AN EXPRESSION OF INDEFINABLE

Alexsandro Araújo Oliveira O olhar do professor de matemática da rede pública do município de Teófilo Otoni sobre sua profissão, 15 THE GAZE OF MATH TEACHERS FROM PUBLIC SCHOOLS IN TEÓFILO OTONI UPON THEIR PROFESSION

Niusarte Virginia Pinheiro / Lais Couy / Allan Rodrigo Fonseca Teixeira / Sílvio Alves de Souza Contribuições do modelo de gestão e criação do conhecimento nas organizações sociais, 24 CONTRIBUTIONS OF THE MODEL OF MANAGEMENT AND CREATION OF THE KNOWLEDGE IN THE SOCIAL ORGANIZATIONS

Maria Mavanier Assis Siquara / Nelcida Maria Cearon Pequena discussão sobre o social e o ético na academia, 32 TINY DISCUSSION ABOUT SOCIAL AND ETHICS AT THE ACADEMIA

Raimundo Enedino dos Santos

LIT ERAT URA Agua viva: aspiração metafísica em Clarice Lispector, 53 ÁGUA VIVA: METAPHYSICAL AMBITION IN CLARICE LISPECTOR Carlos Felipe Moisés O antigo e o novo no teatro de Federico García Lorca, 62 THE OLD AND THE NEW IN FERICO GARCIA LORCA’S PLAY Ester Abreu Vieira de Oliveira Delicadezas da poética barriana, 83 Rodrigo Costa Araújo Hierofania dos dedos, de Jorge Vicente, 86 Beatriz Bajo

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LEIT URA Leitura hipermídia & literatura infantil: diálogos interartes, 41 HIPERMEDIA READING AND CHILDREN’S LITERATURE: INTERARTS DIALOGUES Rodrigo da Costa Araújo


ET NOGRAF IA Memórias de um pesquisador: uma aventura antropológica , 89 THE FIELD NOTES OF A RESEARCHER: AN ANTHROPOLOGICAL ADVENTURE Rita Cristina de Souza Santos FI LOSOFI A O belo, a filosofia e os horrores da história, 103 (um fragmento de um texto perdido) FRAGMENT OF A LOST TEXT: THE BEAUTY, THE PHILIOSOPHY AND THE HORRORS OF HISTORY

Abrahão Costa Andrade ICTIOLOGIA Registro de juvenil de ocyurus chrysurus (Bloch, 1791) (Actinopterygii: lutjanidae) na praia da Gameleira (Ilha de Itaparica), Baía de Todos os Santos (Bahia), 113 Record of juvenile of ocyurus chrysurus (bloch, 1791) (actinopterygii: lutjanidae) in gameleira beach (itaparica island), todos os santos bay (bahia) Paulo Roberto Duarte Lopes / Jailza Tavares de Oliveira-Silva / Milena Ferreira Costa / Vinícius Borges Cerqueira Sobre os autores, 117

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Normas para publicação, 119

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A divulgação dos resultados de pesquisa por meio de relatórios, papers ou artigos é tão importante quanto a pesquisa. Pode-se afirmar esta seja corolário daquela. Nesse sentido, por seu caráter multidisciplinar, a Revista Mosaicum tem sido um istrumento que abarca a disseminação do conhecimento científico em sua diversidade. Sobre o ato de pesquisar, o texto do professor Dr. Raimundo Enedino dos Santos, publicado neste número, traz importantes reflexões sobre os aspectos social e ético da produção acadêmica. Santos afirma que “o cientista deve estar amparado pelos preceitos morais, mas a natureza do conteúdo interno da ciência deve estar além das restrições, já que a ciência é moralmente neutra”. Ampliando o debate sobre Educação, a professora Niusarte Virginia Pinheiro et al. traçam o perfil socioeconômico, cultural e profissional do professor de matemática da rede pública estadual e municipal do Município de Teófilo Otoni. Os autores analisam parte dos dados da pesquisa referente ao perfil desses docentes, focando aspectos relacionados à sua satisfação profissional tais como a formação, salário e condições de trabalho. O estudo conclui que há grande insatisfação profissional dos docentes, especialmente com a questão salarial. As doutorandas em Educação Maria Mavanier Assis Siquara Nelcida Maria Cearon, da UNEB, discutem as Contribuições do modelo de gestão e criação do conhecimento nas organizações sociais. As autoras destacam o significado e a importância atribuída à Gestão e Criação do Conhecimento nas/pelas organizações sociais como um contraponto ao modelo capitalista vigente em que a competitividade é o mecanismo de sucesso principalmente para aquelas organizações com fins lucrativos. Analisam as contribuições desse campo do conhecimento no que se refere às questões conceituais, operativas e de modelo já construídos com essa abordagem para as instituições educativas, notadamente as Universidades. Já o mestrando em Educação, Alexsandro Araújo Oliveira, em seu texto Educação como expressão do indefinível,, reflete sobre ética e educação, fazendo convite a uma pedagogia da multiplicidade e da diferença; um posicionamento descentralizado contra a mesmidade em matéria de vida e de educação. Leitura hipermídia e literatura infantil: diálogos interartes, texto do doutorando Rodrigo da Costa Araújo, discute as transformações impostas pelos meios eletrônicos influenciam, significativamente, além do processo de comunicação, também o modo de composição, leitura e criatividade na criação literária e estética do livro infantil contemporâneo. A obra, que traduz vestígios estilísticos do artista, constroi significações sígnicas entrelaçadas com ajuda da máquina - suporte semiótico pelo qual ela se concretiza e instiga várias leituras. O leitor, nesse processo intricado, caminha nessa trama/teia, de um espaço a outro mapeando percursos, criando redes de associações que lhe permitem entender algum estado individual de fruição.

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EDIT ORIAL


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Em Água Viva: aspiração metafísica em Clarice Lispector, o professor Dr. Carlos Felipe Moisés faz uma incursão na trajetória literária de Clarice Lispector, mais extamente, no enredo, personagem e foco narrativo para mostrar como eles se diluem e são substituídos por uma ingente reflexão para-ensaística, em torno do ato de criação literária, em si. O texto da professora Dra. Ester Abreu Vieira de Oliveira apresenta um aspecto do universo dramático de Federico García Lorca com a obra Así Que Pasen Cinco Años para mostrar temas constantes deste dramaturgo e características estruturais que proporcionam a este escritor avançar a sua época na construção de um teatro de dimensão polivalente e experimental. Somam-se a estes, as resenhas Delicadezas da poética barriana, de Rodrigo Costa Araújo e Hierofania dos dedos, de Jorge Vicente, da poeta Beatriz Bajo. A Etnografia e a Filosofia também têm o seu merecido lugar neste número, por meio dos estudos dos professores Rita Cristina de Souza Santos, e Abrahão Costa Andrade, respectiva mente. Em Memórias de um pesquisador: uma aventura antropológica, a professora Rita Cristina de Souza Santos apresenta a narrativa dos aspectos metodológicos de um estudo etnográfico - A vulnerabilidade do jovem em um paraíso serrano: os jovens pobres de Nova Friburgo-, Tese (Doutorado), defendida no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2006 para propor ao leitor, um exercício de reflexão e discussão sobre o percurso de um pesquisador em campo: a entrada, os percalços ao longo do processo de construção da investigação, as descobertas, o contato com os atores, enfim, toda a aventura antropológica em um mundo inicialmente desconhecido. O texto do filósoto Abrahão Costa Andrade - O belo, a filosofia e os horrores da história (um fragmento de um texto perdido) - discute a perda da importância da categoria do “belo” na estética contemporânea e dos pressupostos histórico-filosóficos dessa perda. E, por fim, os estudos sobre Ictiologia realizados pelos professores da Universidade Estadual de Feira de Santana Paulo Roberto Duarte Lopes e Jailza Tavares de Oliveira-Silva têm sido uma constante neste periódico demonsrando sempre os resultados de seus estudos junto a Universidade Federal de Feira de Santana. Agradecemos ao co-autores e à Fundação Francisco de Assis, por possibilitarem mais um número desta Revista e aproveitamos para manifestar o nosso desejo de publicar mais estudos resultados de pesquisa de campo e/ ou estudo de casos. Carlos Felipe Moisés Valcei Vieira dos Santos Wilbett Oliveira - Editores -

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EDUCAÇÃO

EDUCAÇÃO COMO EXPRESSÃO DO INDEFINÍVEL EDUCATION AS AN EXPRESSION OF INDEFINABLE

Resumo: O presente texto é uma meditação às avessas sobre ética e educação; um convite a uma pedagogia da multiplicidade e da diferença; um posicionamento descentralizado contra a mesmidade em matéria de vida e de educação. Palavras-chave: Educação; Multiplicidade; Currículo; Ética; Resistência; Invenção. Abstract: This essay is a meditation in reverse on ethics and education; a call for a pedagogy of multiplicity and difference, a decentralized positioning against the sameness in the field of the life and education. Key words: Education; Multiplicity; Curriculum; Ethics; Resistance; Invention.

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Alexsandro Araújo Oliveira


De todo o escrito só me agrada aquilo que uma pessoa escreve com o seu sangue. Escreve com sangue e aprenderás que o sangue é espírito. É difícil compreender sangue alheio: eu detesto todos os ociosos que lêem... Eu só poderia crer num Deus que soubesse dançar...

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Eu aprendi a andar; por conseguinte corro. Eu aprendi a voar; portanto não quero que me empurrem para mudar de lugar. Agora sou leve, agora vôo; agora vejo por baixo de mim um Deus. Zaratustra

Quando penso a palavra ética e seus possíveis significados, uma definição me cala: ética como a critica às verdades estabelecidas. Partindo dessa forma de compreensão e tentando pensar uma ética para a produção de conhecimento diria que, seja este conhecimento qual for, ele só se realiza de forma ética quando abre espaços ou aponta direções que tragam como conotação final uma critica às verdades estabelecidas. Mais: quando penso uma instituição de ensino se realizando de forma ética, só consigo pensá-la como uma possibilidade a mais de um espaço que se abre para a produção de conhecimentos que sejam eles já uma critica às verdades estabelecidas. Desta forma, uma instituição de ensino só responde de modo ético a sua presença como tal na medida em que ela abre espaços de resistências aos conhecimentos e verdades estabelecidos. A resistência como uma dimensão ética. A resistência é a dimensão da ética e, acrescentaria, da política de qualquer produção de conhecimento. Ou ainda, um conhecimento só é um conhecimento de/com cunho ético quando ele aponta para uma possibilidade de resistência critica ao poder. E, nisto, também, sua altitude política. Criticar o poder onde quer que ele se faça presente – ele é corrompido e corrompe, sempre. Ir contra qualquer (im)posição homogeneizante, fazer explodir de forma maravilhosa a multiplicidade, fazer vibrar a possibilidade de ser outro, cada um ser outro, de viver de outra forma, pensar de maneira sempre nova, ir contra, sempre contra, qualquer corrente fascista, principalmente aquelas advindas de nós mesmos, eis uma posição ética (poética). -Que seja bem-vinda a alegria de poder pensar! -Aleluia! De poder pensar (dançar) livre!

É como possibilidade dessa dança (pensar) que compreendo os traços de Salvador Dali, o gozo das feras, o cantarolar dos insanos, as divagações que se tornam infinitas, a luta “furiosa contra o pronome eu, e até mesmo contra todos os pronomes, parasitas do pensamento”:

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o eu , eu!... o mais sórdido de todos os pronomes!... Os pronomes! São piolhos do pensamento. Quando o pensamento tem piolhos, ele se coça como todos que têm piolhos... e nas unhas, então... vai encontrar de novo os pronomes pessoais. (CALVINO, 1990, 123-124).

Quantas vezes nos perguntamos sobre o fracasso de tantas formas de viver; sobre o fracasso da experiência contemporânea da humanidade, na qual parece que quase tudo está contra a vida, contra a possibilidade de uma vida plena de possibilidades, que seja o contrário de tudo aquilo que nos transpassa e nos diminui; nos enfraquece; nos estupidifica; nos escraviza, deixando apenas a pergunta-grito: -O que pode o pensamento em momentos assim? -Não ser fascista, nem para si, nem para os outros! De nada vale a procura por um saber que simplesmente se realiza na aquisição do conhecimento, sem que ele assegure, o tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece. A possibilidade de pensar diferentemente do que se pensa é fundamental e imprescindível para continuar pensando. (FOUCAULT, 1992). Na dança dos conceitos gosto de valsar pensamento com acontecimento, o pensamento vibrando como acontecimento, o pensamento como acontecimento, como aquilo

O imprevisível. Temos que nos abrir a ele, deixa-lo dançar, dançar com ele. De outra forma corremos o risco da integração, da identificação, do compreendido, do previsto. O que salva uma aula chata é uma interrupção; o que nos livra do tédio é a novidade; o que modifica de forma grandiosa a face da Terra são as catástrofes; um presente se torna mais sublime com a surpresa; todo começo é a possibilidade de novas experiências; no nascimento a potência da vida; no milagre a dádiva inesperada, mas bem vinda; na revolução a possibilidade de ser outro; na criação a potência do agir; na liberdade a possibilidade de um pensamento não fascista. Há muito aprendemos: não existe nada que seja indiscutível; somos herdeiros de um tempo no qual “tudo que é sólido se desmancha no ar”, no qual nenhum fundamento, nenhum hábito, nenhuma atitude, nenhuma distinção, nenhum sintoma, nenhuma maneira são realmente seguros, certos ou garantidos para nos apoiarmos com firmeza. O mundo humano já não se reserva o direito de se apresentar como um lugar seguro, de certezas e garantias (BAUMAN, 2000, 26).

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que escapa a qualquer integração e a qualquer identidade: o que não pode ser integrado, nem identificado, nem compreendido, nem previsto. Outras palavras que podem nomear também, ainda que de outro modo, o acontecimento são, por exemplo, interrupção, novidade, catástrofe, surpresa, começo, nascimento, milagre, revolução, criação, liberdade. (LARROSA, 2001, 282)


O mundo humano é um lugar interpretado e, portanto, um mundo em perpétuo vir a ser, sem verdades fixas às quais...[se] possa ... agarrar, um universo sem pontos de apoio...Viver em um mundo interpretado supõe habitar na incerteza, em um mundo no qual as verdades definitivas desapareceram. (MÉLICH, 2001, 270). Assumir a interpretação como condição fundamental da vida humana é assumir uma postura ética frente a essa mesma vida. Assumir a interpretação como um elemento presente na educação é assumir uma postura ética frente a essa educação. Qualquer forma de totalidade não responde mais a multiplicidade de interpretação que pulularam no mundo. Nenhuma forma de totalitarismo segura mais o porvir agora aberto. Com quais palavras se pode nomear o mundo? Como traduzir por escrito a experiência? Quem fala? Parece que já não há alguém que sustente o discurso, o sujeito se dissolveu e não obstante... é preciso continuar falando, é preciso continuar... (MÉLICH, 2001, 270). Interpretando e traduzindo, com a consciência de que a cada momento uma linguagem nova emerge; reiniciando aí o trabalho de interpretação e tradução. Mas, alto lá! Eu não acabei de dar uma definição de ética? Ora, eu – quem? Se assim for, minha definição de ética cai nesse impasse: ela não pode ser fixa, ela não pode fazer me calar; tenho que continuar pensando, pois ela pode se tornar fascista. Reinicio, pois, o trabalho. O devir humano?

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Quando penso a palavra ética e seus possíveis significados... tenho que encontrar uma definição que não me cale, mas que me faça continuar pensando, falando, criando. Uma nova tormenta: aquilo que é relevante não se encontra na esfera do dizível; do pensável, ou mesmo criável do ponto de vista racional; lingüístico. Faz-se necessário aqui levarmos em consideração a “irreparável ruptura” entre o mundo e a linguagem. As questões verdadeiramente importantes já não encontram resposta, porque as respostas às perguntas fundamentais não podem ser ditas, talvez somente mostradas [Nesse sentido], fora dos limites do dizível se situa não o irrelevante, o indigno de ser considerado, mas o essencial, o sentido da vida...[e da ética] (MÉLICH, 2001, 270).

como algo que vai se constituindo no momento em que acontece, transcendendo o momento; a linguagem; o sentido, indo além, criando uma distância, abre uma ruptura com o que aí estar - assim como a vida que anuncia a distância entre o devir-humano e os pronomes. As palavras apontam para aquilo que é, dizendo as coisas; os fatos do mundo. A ética, como algo relevante para vida, não se encontra na esfera do dizível, pensável ou mesmo criável do ponto de vista racional ou lingüístico. Ela não aponta para o mundo, para o que acontece, ela transcende, e nesse transcender (místico?) não é

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exprimível nem pensável. Não há proposições de ética. A linguagem da ética não pode ser a linguagem proposional. As palavras fracassam ao tratar da ética. (MÉLICH, 2001, 270). A ética é indefinível. Uma educação que se abre a uma ética

indefinível deve, também ela, ser indefinível. A possibilidade de uma educação que não seja ela doutrinação passa pelo oferecimento da possibilidade de se pensar diferente do que pensamos hoje, pelo apagamento de qualquer desejo de totalização e uma abertura para uma produção de sentido que seja múltipla. A possibilidade de uma educação que não seja ela fascista passa pela possibilidade de uma educação que esteja sempre sendo inventada/reinventada; uma educação que liberte a palavra, que liberte a própria educação, que se abra como acontecimento para a diferença, a descontinuidade, o porvir, que tolere as contradições, que caminhe em direção ao desconhecido, que não funcione apenas como um dispositivo para a conservação da tradição ou para a (en)formação de indivíduos. Uma educação que nos possibilite ir para além de uma (en)formação; dê o que pensar; produza efeitos de sentidos; assegure que as escolhas possam se dar de maneira realmente livres.

A estrutura do conhecimento formada a partir do modelo cartesiano coloca em evidência princípios de uma natureza única, mas que necessita de uma fragmentação do conhecimento, de fronteiras, de áreas de domínio estabelecidos e legitimados. Por essa via grande parte do que foi produzido a partir de Descartes ficou marcado e legitimado por um conhecimento que buscava os seus fundamentos em setores especializados do saber. Como um desdobramento desse fato o ensino contemporâneo sofre as influências dessa fragmentação dos saberes, do estabelecimento dessas fronteiras de especialização. A estrutura curricular do ensino tem as disciplinas como realidades estanques; como territórios isolados. Sim, há tentativas de superação desse modelo numa busca de integração; relação; intervalorização das disciplinas; interdisciplinaridade; transdisciplinaridade. No entanto, a lógica contínua a ser o da disciplina. Ainda que aparecendo como saberes em relação, não deixam de ser saberes disciplinados. Não deixam de ser saberes disciplinados numa educação-máquina-de-controle; produtora de indivíduos seriados, fragmentados de saberes, tempos, espaços. Esta é, a meu ver, a educação que segue o modelo curricular dos esquadros, dos quadros, dos quadrados, o modelo oficial que compreende ou se confunde com a educação propriamente dita aquela instituída, legal, a educação produzida macroeconômica e politicamente nas instituições de ensino com o aval governamental. Como um contraponto a esse modelo, podemos pensar no conceito de “educação menor” sugerido por GALLO quando trabalha, deslocando, (re)inventando, o conceito de literatura menor de Deleuze. Numa defini-

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Uma educação atenta à multiplicidade?


ção podemos pensar a educação menor como “um ato de revolta e de resistência”:

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Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas; sala de aula como trincheira, como toca de rato, o buraco do cão. Sala de aula como espaço a partir do qual traçamos as nossas estratégias, estabelecemos a nossa militância, produzindo um presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional. Uma educação menor é um ato de singularização e de militância. (GALLO, 2003, 78)

Nessa perspectiva a ação educativa é um acontecimento sobre o qual não se pode ter controle. A educação menor acontecendo nas salas de aula (espaço micropolítico) possibilitaria ações diárias. Longe de tentar estabelecer modelos, de hierarquizar conhecimentos, traçar caminhos, determinar as alternativas, integrar, interdisciplinar saberes, tal educação, atuando na transversalidade, intensificaria a proliferação de pensamentos; abriria espaços para novas conexões, novos sentidos, novas resistências, novas singularizações; estaria atenta à multiplicidade. Pensar uma educação atenta à multiplicidade é, sobretudo, pensar uma educação que está disposta a (re)desenhar novas trilhas de possibilidades; atenta ao mundo e ao presente, revendo-se e refazendo-se em cada pequeno detalhe. Fazer educação atenta à multiplicidade é muito mais do que repetir; é, sobretudo, procurar a “diferença”. Uma educação atenta à multiplicidade propicia encontros; encontros de idéias, porque sabe que ninguém produz do nada, no vazio, que a produção depende de entrecruzamentos. Uma educação atenta à multiplicidade propicia o encontro de amigos (amigos do saber, por que não?) com os saberes, com a sabedoria, por que não? Mas essa nunca é dada de antemão, a priori, mas como algo a ser procurado ou mesmo produzido, inventado. Pensar assim é se colocar de forma ativa frente ao mundo, pensar a educação como uma ação criadora, uma intervenção no mundo, criação de mundo. Não mais uma educação contemplação, como reflexão, como comunicação. Pensar uma educação atenta à multiplicidade é, sobretudo, pensar uma educação que não seja simplesmente comunicação. A comunicação pode cair na armadilha do consenso, e um ato eticamente educativo deve abrir espaços para o dissenso. Pensar uma educação atenta à multiplicidade é, sobretudo, pensar uma educação que não seja simplesmente reflexão; é entender que a reflexão não é específica da atividade educativa. Parto do pressuposto segundo o qual considera fundamental que cada educador reflita sobre sua prática educativa, mas também que cada educando deva refletir sobre a educação que recebe e a que se submete. Que cada um e todos os indivíduos devam refletir sobre a educação produzida pela sociedade da qual fazem parte. Pensar uma educação atenta à multiplicidade é, sobretudo, pensar a educação como uma aventura que institui um acontecimento, acontecimentos; possibilite a construção de novas perspectivas sobre o mundo, resignificando-o. Um reaprendizado do mundo. Traçar, inventar, criar, tecer, abrir,

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possibilitar, produzir. Uma educação deve ser entendida pelo que ela traça, inventa, cria, tece, abre, possibilita, produz e pelos efeitos que causa. Um acontecimento educativo não é válido na medida em que lida com “a verdade”, mas na medida em que lida com o que é importante e interessante. Pensar uma educação atenta à multiplicidade é, sobretudo, aprender a viver com o caos, buscar nele acontecimentos que possibilitam a criação, a expansão, a experimentação. Não tentar impor um pensamento único. Aprender que as fugas são aparentes. Assim, pensar uma educação atenta à multiplicidade é pensar, quem sabe, como sugestão, uma educação que saiba lidar e apresentar as três ordens de saberes que lidam ou embrenham-se no caos para traçar, inventar, criar, tecer, abrir, possibilitar, produzir significações: a filosofia, a arte e a ciência. Perceber como estas três ordens, sem que uma se reduza a outra, contribuem para a possibilidade da efetivação da multiplicidade. Cada uma a seu modo, mas de forma complementar, contribuindo para que as singularidades possam ser traçadas, inventadas, criadas, tecidas, abertas, possibilitadas, produzidas e para que não sejamos sujeitados a viver sob o fascismo de uma educação que busca reduzir tudo a um “mesmo”, leva-nos a afirmar a educação como o lugar para a luta contra “o mesmo”, que se espalha, prolifera e nos domina com suas soluções prontas e rápidas, todas acabando sempre na eterna “identidade” que nos sufoco e, por isso mesmo, nos violenta. Contra isso a educação atenta à multiplicidade deve lutar contra qualquer forma de fascismo, criando, fazendo a educação explodir em acontecimentos plurais.

Aula. Educação. Didática. Pedagogia. São palavras que em determinados contextos sugerem o estabelecimento de coisas duras, rígidas, fixas, determinadas por um início, um meio e um fim – imagem povoada de dogmatismos, de representações ociosas. Mas no laço da multiplicidade buscaremos, quem sabe, uma educação na qual o aprender não se reduza ao saber. Uma aprendizagem dada pelo estranhamento e não pelo ‘entranhamento’; pelo desconhecimento e não pelo (re)conhecimento. Buscando novas formas de olhar. Olhando de outras formas para as coisas; transformando-as em outras casas, em outras avenidas, em outras ruas. Buscando novas formas de sentir. Sentindo outras formas de buscar. Transformando-as. Buscando novas formas de pensar. Pensando outras formas de inovar. Transformando-se. Pensar a educação = deseducar o pensamento. Fora com todas as bitolas. Criar uma outra educação: dizer nunca mais para as pistolas. Multiplicar a educação: intensifica-la. Complexificar a educação: descompactá-la. Educação-implosão: acontecimento. Educação-miríades: efeito. Aula como busca. Sala como um espaço desconhecido, familiarmente estranho: não se sabe o que se vai encontrar! As posições de sujeito, as posições do saber são ultrapassadas. Quer saber? São transvaloradas. Abaixo os métodos rígidos e pesados. Abaixo conteúdos programáticos e progra-

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Educação-acontecimento? Educação-efeito?


mados. Avaliações quantitativas - avaliações, enfim - resultados mensuráveis? Xô avestruzes do ensino-aprendizado! Tudo num movimento contrário: criar, inventar, caminhar entre os espaços que nos levam para além do pensável. Do impensado. Não ser reflexivo, não ter que comunicar algo, não determinar o verdadeiro ou o falso, em tabelas de verdade; mas encaminhar novas significações. Assumir uma imprevisibilidade no aprender. Não ter que pensar o mesmo, não ter que pensar como antes. Nada de corujas. Nada de elefantes. Não prolongar como que para sempre este pensado-mastigado. Não ter que ser sempre o mesmo. Não ter sempre que não ser. Outrar-se. O sadio antes; durante e depois do enfermo. Assumir a educação (a vida) como experimentação, criação. Assumir a vida (a educação) como multiplicidade. Assumir a educação (a vida) como inatual; intempestiva. Assumir a vida. Isto é, a educação, como diferença. Como diferança. Como dança. Assumir que as palavras não nos cabem; que os sentidos não nos dizem. Assumir que a vida é o que vem primeiro; e dela somos eternos aprendizes. Nesse ínterim, há que se esperar a irrupção de: uma educação que se relacione com a diferença e não com o sempre igual; uma educação de carne e osso, uma educação carnaval. Uma educação que não seja doutrinação, que não se relacione com um ensinamento de conteúdos eternizados ou entediados. Uma educação que não venha pronta. Sem poltronas. Uma educação a ser inventada. Sem patroas. Nem patrão. Uma educ(onstru)(a)ção.

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Referências BAUMAN, Zymunt. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. CALVINO, Ítalo. Seis propostas para o próximo milênio. 2. ed. São Paulo: Cia das Letras,1990. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. 10. ed. Rio de Janeiro: Graal, 1992. GALLO, Sílvio. Deleuze e a educação. Belo Horizonte: Autêntica, 2003. LARROSA, Jorge. Dar a palavra. Notas para uma dialógica da transmissão. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos (Orgs.). Habitantes de Babel. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. MÉLICH, Joan-Carles. A palavra múltipla: por uma educação (po)ética. In: LARROSA, Jorge; SKLIAR, Carlos. Habitantes de Babel: políticas e poéticas da diferença. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.

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O OLHAR DO PROFESSOR DE MATEMÁTICA DA REDE PÚBLICA DO MUNICÍPIO DE TEÓFILO OTONI SOBRE SUA PROFISSÃO THE GAZE OF MATH TEACHERS FROM PUBLIC SCHOOLS IN TEÓFILO OTONI UPON THEIR PROFESSION

Resumo: A finalidade deste trabalho é apresentar os resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi traçar o perfil socioeconômico, cultural e profissional do professor de matemática da rede pública estadual e municipal do Município de Teófilo Otoni. Neste texto, optou-se por analisar parte dos dados da pesquisa referente ao perfil desses docentes, focando aspectos relacionados à sua satisfação profissional, destacando, entre outras, as questões: formação, salário e condições de trabalho. Trata-se de uma pesquisa exploratório-descritiva na modalidade levantamento. Para a coleta de dados, utilizou-se um questionário com 118 questões que foi respondido durante o I Encontro de Educação Matemática do Nordeste Mineiro, realizado em parceria com a SME, a SRE de Teófilo Otoni, a FENORD e a UFVJM. A análise dos dados nos permitiu aferir que há grande insatisfação profissional dos docentes, especialmente com a questão salarial. Palavras-chave: professor; formação; satisfação profissional. Abstract: This work aims to present the results of a research whose objective was to outline the cultural, socioeconomic, and professional profile of teachers at public schools in Teófilo Otoni. This work analyzed only part of the research data related to the professional’s profile, considering aspects related to professional satisfaction, that is, issues such as: qualification, salary and working conditions. In order to collect data, the teachers answered a questionnaire with 118 questions during the I Encontro de Educação Matemática do Nordeste Mineiro, held in partnership with the SMS, SRE of Teófilo Otoni, the FENORD and the UFVJM. The analysis of data allowed us to point out that there is great dissatisfaction among teachers, especially concerning salary issues. Key-words: teacher, qualification, professional satisfaction.

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Niusarte Virginia Pinheiro Lais Couy Allan Rodrigo Fonseca Teixeira Sílvio Alves de Souza


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Introdução Este texto pretende apresentar e discutir os resultados de parte da pesquisa intitulada “Perfil socioeconômico, cultural e profissional do professor de Matemática da rede pública do Município de Teófilo Otoni”. A investigação foi realizada com parceria e financiamento da Prefeitura Municipal de Teófilo Otoni, Fundação Educacional Nordeste Mineiro – FENORD, Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri – UFVJM e Superintendência Regional de Ensino de Teófilo Otoni – SRE. Neste trabalho, optou-se por analisar parte dos dados da pesquisa referentes ao perfil profissional desses docentes, enfocando aspectos relacionados à satisfação com a profissão (do ponto de vista do professor): questões salariais, formação e condições de trabalho. O objetivo da pesquisa foi de traçar o perfil socioeconômico, cultural e profissional do professor de Matemática das séries finais do ensino fundamental (6º ao 9º ano) e do ensino médio da rede pública estadual e municipal do Município de Teófilo Otoni – MG, pois no entendimento dos pesquisadores, no processo de reflexão sobre a melhoria da educação, o envolvimento e participação do professor é de fundamental importância. Conforme afirma Lisita e Peixoto (2001), “não há como fazer educação escolar de qualidade sem investir no principal e direto artífice deste processo – o professor – em sua formação e seu estatuto profissional” (p. 102). O professor é um dos sujeitos do processo de ensino-aprendizagem. Conhecer os profissionais que estão em exercício é necessário para que se possa direcionar ações didático-pedagógicas e/ou de formação inicial e continuada. Isso porque sua formação atual, sua prática pedagógica, seus pontos de vista, sua maneira de agir, em suma, sua subjetividade influenciam significativamente no processo de formação do educando. Na investigação foram levantadas informações sobre: o nível de formação dos professores, o tempo médio de atuação no exercício do magistério, as principais dificuldades encontradas pelo professor em sua prática pedagógica, condições de trabalho, salário, satisfação profissional, perspectivas em relação à profissão, situação socioeconômica e cultural, entre outras. O Brasil vem enfrentando muitos obstáculos referentes à formação inicial dos profissionais da educação. O PCN de Matemática (1998) aponta a falta de uma formação profissional qualificada dos docentes e apresenta restrições ligadas às condições de trabalho, a ausência de políticas educacionais efetivas e interpretações equivocadas de concepções pedagógicas. Vasconcelos (1995, p. 20) salienta que há uma “receita infalível e aprovada em toda a América Latina para acabar com o professor, usando apenas dois ingredientes fundamentais: achatar violentamente os salários e dar formação bem precária” (grifo nosso). As causas para os problemas supracitados podem ser de diversas origens, tais como de ordem social, econômica, política que atingem todos os sujeitos envolvidos no processo educativo e especialmente os docentes, atra-

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vés de questões relacionadas à formação, condições de trabalho, salários adequados, segurança, estabilidade na carreira, entre outras. Baseados em sua prática, os pesquisadores percebem que os atuais cursos de formação de professores, em nível superior de licenciatura, em geral não têm conseguido propiciar uma formação profissional adequada aos seus alunos. Formam profissionais em diversas áreas, com conhecimentos e reflexões que não fornecem base sólida para exercer uma prática pedagógica eficaz e possibilitem, por exemplo, a elaboração, execução e avaliação do projeto político-pedagógico da escola onde atua, ao trabalho coletivo com outros professores, os pais e mães e, em especial, com os discentes. Para Lisita e Peixoto (2001, p.103),

No contexto neoliberal em que vive a sociedade atual, a luta pela liderança intelectual e moral coloca os profissionais da educação em xeque e em desafio. Nessa perspectiva, Costa e Poletti afirmam (2002, p. 33), As ameaças advêm das reformas educacionais que mostram pouca confiança na capacidade dos/as professores/as da escola pública de oferecerem uma liderança intelectual e moral para a juventude dos países, sendo os/ as professores/as reduzidos a objetos de reformas educacionais. Isso nos remete a refletir que as mudanças ocorridas na educação não acontecerão de cima para baixo, pois como pensar em mudanças sem a participação direta daqueles/las que estão ligados/as diretamente a esta realidade? Uma melhor compreensão da profissionalização do professor, isto é, seus conhecimentos, valores, atitudes, habilidades e competências “implica numa compreensão da profissão docente numa perspectiva epistemológica, como alguém que desempenha um ofício pleno de saberes, saberes estes produzidos no contexto do trabalho, articulando a formação desenvolvida, a história de vida e a experiência do professor” (LISITA; PEIXOTO, 2001, p. 104). Acima de tudo o professor é um ser humano e, como tal, é construtor de si mesmo e da história através da ação; é determinado pelas condições e circunstâncias que o envolvem [...]. Sofre as influências do meio em que vive e com elas se autoconstrói [...]. Deve ser suficientemente capacitado e habilitado e deve possuir algumas qualidades, tais como: compreensão da realidade com a qual trabalha, comprometimento político, competência no campo teórico de conhecimento em que atua e competência técnico-profissional (LUCKESI, 1994, p. 115).

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É nessa realidade de pouca autonomia, de formação precária e de baixo estatuto social que ganha corpo a defesa oficial da profissionalização do professor. Esta bandeira (a da profissionalização), defendida, até recentemente, por muitos educadores e por quase todas as instituições de profissionais da educação agora é desfraldada com vigor também por organismos internacionais, com reflexos nas reformas educacionais de países, estados e municípios.


A trajetória metodológica Trata-se de uma pesquisa exploratório-descritiva na modalidade levantamento. Para atender aos objetivos propostos, utilizou-se da pesquisa bibliográfica – na busca de subsídios teóricos que possibilitassem a caracterização do objeto de pesquisa, fundamentando o seu delineamento e a pesquisa de campo – para coletar dados, através de questionário. Quanto à forma de estudo, foram utilizadas as pesquisas exploratória e descritiva. A primeira, para buscar informações sobre as escolas nos órgãos responsáveis pela administração das unidades escolares e levantar informações sobre os docentes nas respectivas escolas. A segunda, para realizar o levantamento sobre a situação socioeconômica, cultural e profissional do professor de matemática da rede pública de ensino municipal e estadual. Para realizar a coleta de dados, utilizou-se do evento denominado I Encontro de Educação Matemática do Nordeste Mineiro, realizado em parceria com a Secretaria Municipal de Educação de Teófilo Otoni, a Superintendência Regional de Educação de Teófilo Otoni, a Fundação Educacional Nordeste Mineiro - FENORD e a Universidade Federal dos Vales dos Jequitinhonha e Mucuri - UFVJM. Além dessas instituições, a SBEM – MG (Sociedade Brasileira de Educação Matemática, Regional Minas Gerais) também colaborou, encaminhando um membro de sua diretoria para ministrar uma palestra. Todos os professores de matemática do Município foram convidados para o evento pelos respectivos órgãos aos quais estavam subordinados e, na oportunidade, responderam ao questionário para a coleta de dados. Os docentes que, por algum motivo não puderam comparecer ao evento, responderam ao questionário na escola de sua lotação.

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Discussão dos dados Ao todo, 98 (noventa e oito) docentes responderam ao questionário, o que representa em torno de 95% dos professores de matemática do município. Os dados foram submetidos a tratamento através do software SPSS. Esse software é destinado a tratamento de dados estatísticos. Foram utilizados também alguns testes estatísticos como Qui-quadrado, Fisher ou Monte-Carlo, para testar algumas associações. Para este artigo o Microsoft Excel foi escolhido, pois seria mais adequado para o tipo de gráfico a ser inserido no texto. Do total de professores pesquisados, 64,3% são do sexo feminino, 34,7% do sexo masculino e 1% não respondeu a questão sobre definição do sexo. Observa-se pelos resultados que há uma predominância do sexo feminino entre os professores de matemática no município. Quanto à formação, , quase totalidade dos docentes pesquisados possuem curso de graduação: 86,7% deles concluíram o curso de licenciatura plena em matemática e 10,2% outro tipo de graduação (não licenciatura)., como se observa no Gráfico 1:

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Gráfico 1: Nível máximo de escolaridade

Do total, Gráfico 2, 48% dos docentes fizeram curso de especialização Latu Sensu, 13,3% estão cursando e 36,7% ainda não fizeram.

De acordo com o Gráfico 3, uma parcela significativa dos professores não participou de nenhum curso de formação continuada nos últimos 02 anos, ou seja, 43,9% contra 52% que participaram. Do total de professores, 47% não responderam a questão, 22,4 % assinalaram que os cursos foram muitos úteis, 26,5% disseram que houve pouca contribuição e os 4% restantes afirmaram que a formação continuada não trouxe contribuições para a melhoria da sua prática em sala de aula. Gráfico 3: A formação continuada melhorou a prática em sala de aula?

Quanto à situação funcional, 59,2% dos pesquisados trabalham apenas na rede estadual, 5,1% no município e 22,4% nas duas redes. Além disso,

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Gráfico 2: Curso de pós-graduação


alguns também associam o cargo público ao trabalho na rede particular de ensino, gráfico 4. Também se apurou que 48 % são trabalhadores efetivos, 24,5% são efetivados¹ e 14% têm contratos temporários. Gráfico 4: Tipo de vínculo

Na questão sobre a satisfação com a profissão, 55,1% responderam que estão satisfeitos, enquanto 41,8% disseram que não estão satisfeitos e 3,1% não responderam conforme Gráfico 5.

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Gráfico 5: Satisfação com o salário

Questionados sobre a possibilidade de voltar atrás no tempo, se eles fariam opção pelo magistério novamente, a situação é invertida: 44,9% responderam sim e 54,1%, não., como se verifica no Gráfico 6. Gráfico 6: Faria opção pelo Magistério novamente?

Quando interrogados se ficariam satisfeitos caso o filho (a) optasse por seguir a carreira de magistério, fica mais evidente a visão negativa dos profissionais sobre a profissão, ou seja, 69,4% responderam não e apenas

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29,6% disseram sim, como se demonstra no Gráfico 7. Gráfico 7: ficaria satisfeito se seu filo optasse por seguir a carreira de magistério?

O ponto alto da insatisfação profissional continua sendo a questão salarial. Entretanto, faz-se necessário ressaltar que esse aspecto, embora seja o ponto nevrálgico, vem acompanhado de outros fatores. Entretanto, quando questionados sobre a satisfação em relação ao salário, 90,8% declararam-se insatisfeitos, 7,1% satisfeitos e 2,0% não responderam, gráfico 8. Os dados vêm confirmar a afirmação de Codo e Vasques-Menezes (2000, p.19): “ser professor hoje em dia deixou de ser compensador, pois, além dos salários nada atrativos, perdeu também o “status” social que acompanhava a função poucas décadas passadas”.

A faixa salarial dos professores pesquisados é de: 831,00 a R$ 1660,00 (20,4%); R$ 831,00 a R$ 1660,00 (38,8%) e R$ 1661,00 a R$ 2490,00 (24,5%). A Tabela 1 apresenta o salário médio, por vínculo. Tabela 1: Faixa salarial dos professores de Matemática da rede pública do Município de Teófilo Otoni - MG Vínculo Municipal Estadual Munciaipal e Estadual Muncipal e Particular Estadual e particular Estadual, Municipal e Particular Fonte: Projeto de Pesquisa - UFVJM

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Salário Médio R$ 1743,40 1327,78 1956,93 1245,50 2283,00 2628,83

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Gráfico 8: satisfação com o salário


Em relação à possibilidade de aquisição de bens materiais pelos docentes pesquisados, observa-se, pela descrição na tabela 2, que há um “relativo conforto econômico”. Porém, é importante ressaltar que tal situação somente é possível devido à dupla ou tripla jornada de trabalho: 7,1% trabalham em 3, 53,1% em 02 e 39,8% em apenas uma escola. Tabela 2: Bens materiais dos professores de Matemática da rede pública do Município de Teófilo Otoni - MG Bens materiais Automóvel/carro Empregada doméstica Computador Computador com Internet Tv a cabo Ar condicionado Microondas Máquina de lavar Aparelho DVD Freezer (independente ou parte de geladeira)

Possui 62,4 60,2 91,8 79,6 14,3 15,3 50 77,6 75,5 51

Não possui 35,7 38,8 8,2 19,4 82,7 84,7 49 21,4 6,1 48

Fonte: Projeto de pesquisa – UFVJM

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Considerações finais O desinteresse pelas licenciaturas é uma realidade no Brasil. Nesse sentido, é preciso desenvolver políticas de valorização dos profissionais da educação, visando à melhoria das condições de trabalho e de salário. Também é importante investir na formação continuada e na qualificação (Latu Sensu e Stricto Sensu), para dar aos docentes possibilidades de exercer a profissão com dignidade. Para tanto, é necessário criar mecanismos adequados às necessidades regionais de formação inicial e continuada para atender às demandas existentes. Nessa perspectiva, torna-se imprescindível conhecer a realidade da escola pública e mais especificamente a atuação dos professores e suas condições de trabalho. Dessa forma, é possível obter subsídios com vistas à formulação de políticas adequadas, bem como a preparação dos docentes e, consequentemente, a melhoria da qualidade da educação pública. Assim, para que se possa planejar e implementar ações e/ou políticas adequadas para o processo de formação inicial e continuada dos professores para a área de matemática na região, é de extrema importância saber em quem, quando e como interferir. A UFVJM possui um curso de Licenciatura em Matemática no campus Avançado do Mucuri, em Teófilo Otoni, e os dados levantados nesta pesquisa serão utilizados para nortear ações futuras, tais como: projetos de extensão e pesquisa, cursos de formação continuada, pós-graduação, entre outras.

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Nota: Servidores amparados pela lei Nº100/2007, aprovada pelo Governo do Estado de Minas Gerais, que tornou efetivos, até a promoção de novo concurso público, servidores da Secretaria de Educação. 1

Referências BRASIL. Ministério da Educação (MEC), Secretaria de Educação Fundamental (SEF). Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1998. CODO, Wanderley; VASQUES-MENESES, Iône. Burnout: sofrimento psíquico dos trabalhadores em educação. Cadernos de saúde do trabalhador. São Paulo: INST/ CUT, 2000. COSTA, F.J.S.; POLETTI, J.L. O/a professor/a como profissional orgânico-crítico. In: CARVALHO, J.M. (Org.). Diferentes perspectivas da profissão docente na atualidade. Vitória/ES: EDUFES, 2002. LISITA, Verbena Moreira S.S.; PEIXOTO, Adão José (Orgs). Formação de professores: políticas, concepções e perspectivas. Goiânia: Alternativa, 2001. LUCKESI, Cipriano Carlos. Filosofia da educação. São Paulo: Cortez, 1994. VASCONCELOS, Celso dos S. A realidade do professor. Mundo Jovem, Porto Alegre/RS, a. XXXIII, out. 1995, n. 274, p.20.

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Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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CONTRIBUIÇÕES DO MODELO DE GESTÃO E CRIAÇÃO DO CONHECIMENTO NAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS CONTRIBUTIONS OF THE MODEL OF MANAGEMENT AND CREATION OF THE KNOWLEDGE IN THE SOCIAL ORGANIZATIONS

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Maria Mavanier Assis Siquara Nelcida Maria Cearon

Resumo: Este texto traz reflexões sobre a Criação e Gestão do Conhecimento (GC) como uma forma possível de gerenciar as organizações sociais a partir do ponto de vista dos autores Silva (2004), Neto & Teixeira (2006) e Passoni (2006). Destaca o significado e a importância atribuída por estes estudiosos à Gestão e Criação do Conhecimento nas/pelas organizações sociais como um contraponto ao modelo capitalista vigente em que a competitividade é o mecanismo de sucesso principalmente para aquelas organizações com fins lucrativos. Analisa também as contribuições desse campo do conhecimento no que se refere às questões conceituais, operativas e de modelo já construídos com essa abordagem para as instituições educativas, notadamente as Universidades. Discute a questão do conhecimento como elemento propulsor na sociedade pós-industrial, tornando-se evidente que ele é o principal fator de distinção da capacidade de produção e determinante para o desenvolvimento. Discute ainda como a GC pode transformar uma organização educativa de apenas burocrática para a condição de instituição aprendente, dinâmica e criativa. Palavras-chave: criação e gestão do conhecimento, organizações sociais; desenvolvimento. Abstract: This text takes into consideration the Creation and Administration of Knowledge (AK) as a possible way of administrating the social organizations from the authors’ thoughts: Silva (2004), Neto & Teixeira (2006) and Passoni (2006). It emphasizes the meaning and importance given to the Administration and Creation of Knowledge by these scholars at/ by the social organizations in contrast to the valid capitalist model to which competition means a way of success mainly to those organizations with profitable objectives. It also analyses the contribution of this knowledge field as far as it is concerned to the conceptual, operative and shaped questions already ready with this approach to the educational institutions, in especial the Universities. It discusses knowledge as a propelling element in the post-industrial society, showing evidence that it is the main factor of distinction of ability to production and it means a lot to development. It is also a discussion about the way AK may change a simple bureaucratic educational organization into the condition of perceivable, dynamic and creative institution. Key words: creation and social management of the knowledge; organizations; development.

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Em toda a caminhada da humanidade o homem tem buscado o conhecimento, quer como fundamento da própria sobrevivência, no estado de natureza primitiva, quer nos tempos da modernidade como fundamento da riqueza, do poder, da criação, da dominação ou da emancipação a depender de qual ponto de vista o conhecimento, as ciências estão a serviço. O mesmo conhecimento que garante ao ser humano o poder de criar à serviço da vida, da libertação de povos e nações é o mesmo que também pode servir a outros interesses – a opressão, a escalada do aprofundamento da desigualdade no planeta, produzindo possibilidades visíveis de sua auto destruição. A mídia não descansa em divulgar ações humanas que poderão antecipar catástrofes, diferenciações climáticas onde não existiam ainda, mudanças na atmosfera criando conseqüências inimagináveis ao mesmo tempo em que surgem grandes descobertas científicas em prol da preservação da vida e da espécie humana. São as células tronco, a emergência da nova cultura científica com base em plantas que a alopatia, a indústria medicamentosa nenhum valor atribuia em face de seus próprios interesses, são também constatações corriqueiras com mensagens alternativas de vida para os humanos, criadas pela sua capacidade inteligível de conhecer, de poder criar, (re)criar e ao mesmo tempo utilizar o conhecimento sob determinados interesses, metas, fins e propostas. Esse trabalho vai se ater à reflexão trazida pelos pontos de vista dos autores Silva (2004), Shigunov Neto e Teixeira (2006) e Passoni (2006) no que diz respeito a Gestão do Conhecimento (GC), e outros autores que discutem a questão do conhecimento e do Projeto Político Pedagógico na instituição educativa. Objetiva compreender que contribuições esse campo especializado das ciências administrativas pode oferecer às instituições educativas. Nesse sentido, pretende-se destacar contribuições dos mencionados autores no que se referem às questões conceituais, operativas e de modelo já construído com essa abordagem. Na esteira do pensamento desses autores perguntamos: Qual o significado e a importância atribuída por esses estudiosos no que toca à gestão e criação do conhecimento nas/pelas organizações? Que elementos estão implicados na prática do modelo de GC na instituição educativa? Inicialmente é necessário pensar que no modelo capitalista vigente a competitividade é o mecanismo de sucesso e de sobrevivência das organizações principalmente para aquelas com fins lucrativos (SHIGUNOV NETO e TEIXEIRA, 2006; SILVA, 2004). Esses autores advertem que no contexto atual caracterizado como sociedade da informação e do conhecimento, este último torna-se elemento propulsor da competitividade pela importância que o mesmo tem adquirido para as organizações notadamente nas últimas décadas. Para Shigunov Neto e Teixeira (2006) a influência do conhecimento é determinante, na medida em que possui a ampla capacidade de intervenção na realidade, o conhecimento moderno torna-se um poderoso instrumento para inovar e transformar. O conhecimento produzido em nossa sociedade [...] é um diferenciador entre as nações na sociedade pós-industrial, tornando-

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Introdução


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se evidente para todos que ele é o principal fator de distinção da capacidade de produção dos países e determinante para o desenvolvimento (2006, p.221). Na compreensão desses autores há uma forte vinculação entre o conhecimento moderno, a inovação e o lucro, uma vez que o mesmo passa a ser considerado o bem mais importante dos homens e nesse sentido determinante para o sucesso profissional tanto dos empregados quanto das organizações. Por isso mesmo, a Gestão do Conhecimento é defendida como o modelo de gerenciamento das organizações para responder de forma vantajosa aos desafios oriundos das demandas da sociedade atual. Sob o ponto de vista de Silva (2004), a implantação coordenada da GC cria uma vantagem competitiva sustentável e de difícil imitação, pois está enraizada nas pessoas que trabalham na empresa, e não em recursos físicos que são facilmente imitáveis (2006, p. 143). Nesse sentido é muito importante que os conhecimentos que as pessoas detém de forma consciente ou inconsciente sejam a base da construção das novas estratégias de organização e de gestão. Na visão de Neto e Teixeira (2006) a gestão do conhecimento é justamente a melhor forma de aproveitar o conhecimento tácito e o conhecimento explícito de uma organização, embora nem todas elas entendam dessa forma. Em grande medida dão prioridade à admissão de “experts” nas diversas especialidades do conhecimento, deixando a estes a responsabilidade do avanço e do sucesso competitivo da empresa. Silva (2004, p.145) faz a distinção entre o conhecimento tácito e o explícito, aqui considerada importante o seu destaque. Para ele o formato tácito compreende: “as habilidades inerente a uma pessoa, sistema de idéias, percepção e experiência difícil de ser formalizado, transferido ou explicado a outra pessoa; é o conhecimento subjetivo”. Por outro lado, o formato explícito significa transferir, reutilizar e codificar diversidades de textos. Esses são facilmente organizados em base de dados, nas publicações em geral, quer em papel ou em formato eletrônico. Na criação do conhecimento, segundo o autor, as conversões entre esses dois formatos são de fundamental importância nas organizações sociais. Assim é que o investimento nos saberes tácitos dos indivíduos, dos grupos confere uma natureza de desenvolvimento singular à organização, visto que estratégias se copiam, mas os processos de criação são únicos, logo, é nula a possibilidade de imitação. Na ótica desses autores, produzir o conhecimento a partir da própria capacidade intelectual da organização como resposta ao ambiente em constantes mudanças se converte em estratégias organizacionais que desafiam os sujeitos a criarem conhecimento, a esboçarem a capacidade organizativa a partir do potencial criativo e original dos indivíduos e, como conseqüência oportuniza novas possibilidades de atendimento das demandas produzidas e requeridas pela sociedade. Percebe-se que esses são aspectos organizacionais que realmente tornam as empresas mais competitivas. Assim, o conhecimento organizacional como a capacidade de uma empresa em criar novos conhecimentos passa pela socialização, internalização e divulgação na organização e, por outro lado, precisa-se incorporá-los nos produtos, serviços e sistemas. (NONAKA; TAKEUCHI apud SHIGUNOV NETO; TEIXEIRA,1997). Com tal propósito a criação do conhecimento

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na/da organização requer um processo ininterrupto de socialização dos conhecimentos tácitos dos indivíduos, transformando-os em explícitos, numa cadeia de conversão do formato tácito/explícito. O que se percebe é que na medida em que as pessoas são valorizadas em suas experiências pessoais e estimuladas a aprender mais, conhecer mais sobre os papéis/funções que exercem dentro de uma dada organização, até a “exploração” de sua capacidade se faz com alegria, com satisfação e prazer. Silva (2004) ressalta que um outro importante facilitador entre conhecimentos tácitos é a capacidade criativa, de inovação que existe na organização, como talentos individuais, que motivados pelo ambiente organizacional podem gerar idéias e soluções originais. Pode ainda estimular nos indivíduos o compartilhamento de experiências no ambiente de trabalho. Nesse contexto de GC e criação do conhecimento além da emergência dos talentos individuais da resultante capacidade de criação e da motivação organizacional, os recursos da Tecnologia da Informação – TI, são decisivos facilitadores para a circulação do formato explícito do conhecimento. São fundamentais na comunicação, no agrupamento dos conhecimentos explícitos e mais significativos ainda na socialização desses conhecimentos, facilitando também a internalização dos conhecimentos externalizados.

É relevante refletir que mudanças estruturais da sociedade contemporânea, de alguma maneira, reciprocamente determinadas e determinantes dos desenvolvimentos científicos e tecnológicos que atingem as relações econômicas políticas e culturais impõem verdadeiras revoluções nas relações de trabalho, nas concepções de conhecimento e, em conseqüência, nas instituições educativas já que educação e conhecimento são eixos, tanto do desenvolvimento econômico, quanto do desafio da equidade (DEMO apud SANTIAGO, 2002, p.159/160). Nessa perspectiva, Demo (1994) já se referia às necessidades de mudanças no contexto educativo dizendo que: Decisivo torna-se o reconhecimento de que manejo e produção de conhecimento são os instrumentos primordiais da cidadania e da economia, levando a rever, radicalmente, a proposta educacional vigente, por ser esta absurdamente arcaica, inclusive na universidade (p. 13).

O modelo de Gestão do Conhecimento tem se vinculado às ciências administrativas, mas é possível perceber a relevância de sua aplicação em instituições educativas, notadamente, no ensino superior. Na compreensão de Passoni (2005, p. 59) a gestão universitária pode ser abordada a partir da gestão do conhecimento, uma vez que esta modalidade administrativa permite sair da pura acumulação de dados e extrair conhecimento que lhes garanta a reinvenção continuada dos saberes que lhes são próprios com efetiva possibilidade de realização da qualidade acadêmica no que diz respeito à geração de conhecimento na resolução dos problemas e conflitos que aparecem e, ao

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Contribuições do modelo de GC na instituição de ensino superior


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mesmo tempo criar novos modelos organizativos e de ensino, novos métodos, novas e originais linhas de pesquisa e ações extensionistas, transformando-se assim, em uma instituição dinâmica, criativa e sempre aberta para aprender com os desafios que se apresentam no contexto institucional. Assim, a GC permite a instituição educativa passar de uma organização apenas burocrática para a condição de instituição aprendente (PASSONI, 2005), na medida em que incorpora o processo de contínuas mudanças. É importante perceber que a universidade que aprende que traça seu percurso de mudanças é aquela que consegue manter uma visão ampla e crítica sobre a realidade político, social, econômico e cultural e ao mesmo tempo é capaz de potencializar suas competências individuais e coletivas. Prima pela criticidade no agir e no decidir, promovendo inovações em permanente estado de aprendizagem, sendo capaz de desenvolver ações cooperativas internamente e com os diferentes atores externos à mesma. Que sabe fomentar o diálogo, a comunicação e acima de tudo, é aquela que sabe transformar seu conhecimento, gestando ações transformadoras a partir de seu papel político-histórico na sociedade em que se insere. Consideramos que as universidades, por meio das suas funções básicas de ensino, pesquisa e extensão, não devam se reduzir à atender às demandas do mercado. Antes disso, elas têm a função de gerar conhecimento científico-tecnológico que ajude os seres humanos a se tornarem melhores na convivência planetária. Nessa discussão vale ressaltar ainda que vivemos em um tempo no qual as organizações buscam se adequar aos movimentos de uma sociedade em profundas mutações. Nesse contexto, as instituições de educação superior se deparam com necessidades e desafios que tempos atrás, seriam inimagináveis. A era da informação, do conhecimento, da globalização, do enfraquecimento do poder do Estado e o fortalecimento do discurso neoliberal são apenas algumas das transformações que afetam a vida administrativo-acadêmica das instituições. Percebe-se hoje um discurso que aponta para alguns desafios entendidos como fundamentais nas organizações que se orientam pelo modelo de GC: a inovação, a integração e a valorização da pessoa humana, como capital intelectual. No âmbito da gestão de pessoas no processo organizativo da instituição educativa, compreende-se a mesma deva ser vista como a gestão de uma história construída em comum, de um processo contínuo de criação de valores, de negociações de significados, de pontos de vistas diversos e de compartilhamento de responsabilidades. No Brasil, observa-se nos últimos vinte anos o esforço do sistema nacional de educação no sentido de criar dispositivos legais, no caso a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB, nº 9394/1996, que permite as instituições educativas de qualquer grau de ensino, criar seu modelo de gestão pela construção do próprio Projeto Político Pedagógico – PPP que sirva como um orientador das ações didático-administrativas de cada instituição escolar e, ao mesmo tempo, represente um instrumento regulador e de

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La gestión del conocimiento es um processo sistemático que se basa en la capacidad de seleccionar, organizar, presentar y usar la información por parte de los miembros de la organización, con el objeto de utilizar en forma cooperativa los recursos de conocimiento baseado en el capital intelectual proprio, con la finalidad de desarrollar las aptitudes organizacionales y la generación de valor.

Diante dessa compreensão é importante, na tomada de decisão de por em funcionamento um modelo de GC, considerar “as pessoas” como fatores chaves para o êxito da instituição educativa, pois somente os seres humanos são portadores da capacidade de criar, de inovar e ressignificar valores. A criação do conhecimento tem por base os dados e informações disponíveis na instituição, estes devem revelar a verdade dos fatos, isto é, serem verídicos como valor e fonte de pesquisa. Enfim, a universidade se renova e reinventa o conhecimento pela função própria da pesquisa. Ademais, a autora nos chama a atenção sobre as etapas a serem

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controle da qualidade educativa. O PPP imprime um caráter singular a cada instituição, uma vez que é construído e re-construído pelos atores institucionais – professores, corpo administrativo, representantes de alunos e da comunidade externa. Nesse sentido, mobiliza conhecimentos tácitos dos sujeitos, socializa os conhecimentos explícitos da instituição e cria um novo conhecimento em vista dos desafios que se apresentam à comunidade escolar. Por este processo a instituição se cria e se re-cria continuadamente. À nosso ver, esse esforço explícito no sistema brasileiro de educação, quando vivenciado pelas instituições, de alguma maneira, está circunscrito a um modelo de GC. No entanto, observa-se que em muitas instituições educativas ainda não se incorporou uma cultura organizacional de criação e gestão do conhecimento. São muitas as dificuldades de se mudar todo um conjunto de crenças e práticas historicamente construídas. Nesse caso os dados informativos oriundos das distintas áreas administrativas - aluno, docentes, funcionários encontram-se dispersos e sem classificação e/ou ordenação. Tal contexto exige a necessidade de se “pensar en la conversión de su modelo de gestión que utiliza información para el suporte de las decisiones a un modelo de gestión del conocimiento” ( PASSONI, 2005, p. 60). No nosso entender, particularmente na instituição universitária, cabe não só pensar um modelo de gestão como uma organização estratégica da práxis pedagógica, mas concretizar no cotidiano acadêmico-administrativo, nas várias instâncias da instituição, a sistematização do modelo de GC. É preciso reconhecer, contudo, que se na empresa há um fortalecedor da GC que é o investimento, na instituição educativa esbarra-se na falta de políticas públicas e na conseqüente falta de dotação orçamentária, impedindo ou, ao menos dificultando a concretização da qualidade pensada e planejada. Entende-se que o desenvolvimento do capital intelectual se ancora para sua efetivação, também no investimento financeiro. Com tais reflexões buscamos nos apoiar na compreensão de Gestão do Conhecimento explicitada por Passoni (2005, p.60) onde afirma que:


observadas quando se assume o modelo de GC em uma instituição educativa (p. 61 a 63): a) identificar, selecionar e organizar os dados de interesse; b) descobrir o conhecimento explorando a “memória” da instituição para transformar as informações existentes em conhecimento útil e valioso para a organização. Significa descobrir as fontes que guardam a memória dos integrantes do corpo acadêmico e administrativo. Esse processo de busca de análise permite obter o conhecimento gerado pela própria instituição a partir das informações tácitas organizadas e classificadas; c) compartilhar com os diversos atores institucionais o sistema de conhecimento. Essa socialização tem por base a avaliação, a crítica, o funcionamento e a utilidade do sistema; d) Aplicar o conhecimento necessário para resolver os problemas, para tomar novas decisões; enquanto se investiga, se aprende; e) reconhecer o papel da Tecnologia da Informação – TI, como um dos fatores preponderantes no processo de criação e gestão do conhecimento nas organizações. A gestão do conhecimento se inscreve no enfoque multidisciplinar, nele incluso especialistas de diversas áreas com trabalho em grupo apoiado pelas ciências da informação, por sistemas especializados e pela inteligência artificial e computacional. É relevante observar que no cotidiano da vida universitária alguns obstáculos a implementação de mudanças persistem, tais como: resistências no lidar com propostas de mudanças, dificuldades na comunicação, forte cultura burocrática, visível disputa de poder, visão fragmentária do conhecimentos, dificuldade de implementação de grupos de pesquisa e falta de políticas de investimentos na capacidade inventiva dos sujeitos da instituição. Estes elementos dificultam iniciativas de modelos gestionários do conhecimento.

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Reflexões conclusivas Retomando o início de nossa reflexão bem como o seu objetivo, pontuamos algumas contribuições relevantes a partir dos postulados explicitados pelos autores estudados: a) é evidente a importância de se implantar um modelo de gestão que permita às organizações tomarem decisões e elaborarem estratégias de ação a partir dos conhecimentos criados com base nos dados, nas informações e que envolva experiências, contextos, interpretação e reflexão; b) é importante que cada organização reconheça no armazenamento de dados e pelo processo de análise uma excelente técnica de suporte das decisões; c) a gestão universitária abordada a partir da Gestão do Conhecimento confere a ela alto nível de qualidade, caracterizada pela originalidade, pela (re)invenção de processos, métodos de ensino, pesquisa e extensão. d) a GC cria nas organizações a capacidade de acompanhar e responder às constantes mudanças da sociedade atual; e) a falta de uma base conceitual que abranja a organização como um todo, no que diz respeito à compreensão do que significa a GC, pode ocasionar o não reconhecimento de seu valor e com isso não a incorpora como cultura organizacional, diminuindo com isso a competitividade da organização no mercado; f) as organizações, incluindo a universitária, demonstram não creditarem valor ao conhecimento tácito, na mesma medida que o explícito, impossibilitando a

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criação e (re)invenção do conhecimento, sua capacidade de originalidade que são características próprias do formato tácito-explicíto; g) na prática é possível perceber que as organizações que valorizam seus servidores pelo que eles sabem, recompensando-os por compartilhar seus conhecimentos, criam um clima mais favorável à GC; h) na vigência da sociedade atual a interação entre GC e TI, permite com maior sucesso o posicionamento da empresa no mercado, com respostas adequadas às demandas, daí que a TI é um dos fatores-chave ao modelo de GC. i) no que toca a instituição universitária as TI devam se converter em fator chave no processo de criação e aplicação do modelo de GC; exige esforço ininterrupto do Departamento a partir do qual se acentua a transformação da informação disponível em conhecimento útil. Com tal propósito os recursos de TI devem estar adequados tanto no que se refere à computação quanto à comunicação. Percebemos sua real pertinência como modelo a ser incorporado pelas instituições educativas, até mesmo para se desvelar com mais criticidade e coerência as áreas de conflito, problemas, avaliações e obstáculos à gestão pública. A nosso ver, a aplicabilidade do modelo de GC nas instituições educativas permite que as decisões tomadas sejam mais objetivas, coerentes, contextuais e com mais probabilidades de sucesso, uma vez que tem por base o conhecimento organizacional e a (re)criação do mesmo. No percurso dessas reflexões, reconhecemos as limitações a esse debate, advindas da nossa própria formação (Pedagogia), que pouco interage com esse campo do conhecimento. Percebemos, contudo, que as especialidades das áreas das ciências administrativas, econômicas e sociais, dentre outras afins, conferem maior profundidade na discussão acerca da temática abordada. Salientamos a relevância desse estudo no sentido de possibilitar a abertura de debates a cerca da Gestão e Criação do conhecimento como uma modalidade de gestão organizacional, como saberes necessários à formação do pedagogo/pedagoga.

DEMO, Pedro. Pesquisa e construção do conhecimento: metodologia científica no caminho de Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,1994. SHIGUNOV NETO, Alexandre; TEIXEIRA, Alexandre Andrade. Sociedade do conhecimento e ciência administrativa: reflexões iniciais sobre a gestão do conhecimento e suas implicações organizacionais. Perspect.ciência.inf. Belo Horizonte, maio/agosto 2006, v.11, n.2, p. 220-232. SANTIAGO, Anna Rosa F. Projeto Político Pedagógico na escola: desafio a organização dos educadores. In: VEIGA, Ilma Passos A.(Org.).Projeto Político Pedagógico da Escola: uma construção possível.Campinas, S.P.: Papirus,2002. SILVA, Sérgio Luis da. Gestão do conhecimento: uma revisão crítica orientada pela abordagem da criação do conhecimento. Ciência da Informação, Brasília, DF. , maio/agosto. 2004. V.33, n. 2, p. 143-151. PASSONI, Lúcia I. Gestión del conocimiento: una aplicación en departaemntos acadêmicos.-Gestión y Políticas Públicas, 1º semestre, v.14, n.001 – Centro de Investigação y Docencia Econômaicas, p. 57-73. México, 2005. Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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Referências


PEQUENA DISCUSSÃO SOBRE O SOCIAL E O ÉTICO NA ACADEMIA TINY DISCUSSION ABOUT SOCIALAND ETHICS AT THE ACADEMIA

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Raimundo Enedino dos Santos

Resumo: Este trabalho discute a pesquisa realizada na academia, no aspecto dos fins da pesquisa em si. Tem a mais despretensiosa intenção de introduzir ao público universitário, principalmente, a problemática que envolve a pesquisa, para alertar-lhe dos perigos de desvios dos objetivos de uma universidade que observa os valores morais (indispensáveis ao pesquisador), para a direção de uma instituição que tenha profissionais voltados ao mercado de troca de bens, regido pelas leis econômicas. Palavras-chave: moral e ética acadêmica; pesquisa acadêmica; monografia; conclusão de curso Abstract: This paper discusses the academic research, concerning its goals, and it also aims to introduce to the students a set of problems around the research proposes, with the intent of shedding some light on their steps towards the so called academic research, with the view to keep moral principles, instead of replacing such rules of conduct with economic values within the university. Key words: Academic moral and ethics; academic research; long essay; course conclusion

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O objetivo estabelecido aqui é falar sobre o papel da pesquisa na universidade, levando em consideração o impacto social e o aspecto moral. O texto é fruto da necessidade de discussão dos rumos da pesquisa dentro da academia, no terceiro milênio. Em função da necessidade de exibir uma imagem de instituição respeitável, as universidades necessitam apresentar um substancioso volume de pesquisa, entretanto a produção científica demanda um amparo equivalente de recursos financeiros. Nesse ambiente a comunidade acadêmica deve decidir o limiar do que é eticamente aceito, tomando como base o seu papel em fazer o bem. Apesar de não se tratar sobre a ética, propriamente dita, por se tratar de uma ciência que estuda o conjunto de regras morais estabelecido pelos homens em seu desenvolvimento histórico-social, nem ser um estudo da moral, que, por sua vez, está a serviço de partes ou da totalidade da sociedade, de antemão, vale buscar a definição, ainda que superficial, desses termos. A moral forma um conjunto de regras que pode ser estudado pela ética. Para uma distinção do papel da moral, busca-se a definição de Vázquez (1986, p. 87), que diz o seguinte: “A moral satisfaz a necessidade social de regulamentar de certa maneira as ações dos indivíduos numa dada comunidade”. Os dois vocábulos trazem o sentido de “costume” em suas respectivas línguas de origem (ethos, em grego; mos, em latim). No decorrer dos tempos, o uso dos dois itens lexicais em português são utilizados indistintamente1. Há, no entanto, uma especialização do vocábulo ética para a denominação da ciência que estuda o conjunto dos preceitos morais, como já foi dito. Uma vez que não se pretende discutir a ciência, neste texto, esta abordagem, em outras palavras, circunscreve-se na discussão sobre o papel social da pesquisa e a observação dos valores morais na produção científica. Abrange a pesquisa, desde a sua origem na universidade, fala-se sobre a lisura dos procedimentos para a publicação dos trabalhos, as implicações dos resultados atrelados aos fomentadores, a produção criativa e a vulgaridade da cópia que já chegou à juventude mais tenra, podendo minar completamente a lógica da moral na academia. Os princípios morais na prática da pesquisa Os passos para a realização de uma pesquisa exigem que o pesquisador cumpra etapas que vão desde a elaboração do problema até a apresentação adequada dos resultados alcançados. Engana-se quem imagina que o resultado de uma pesquisa tem um fim único de apresentação de um trabalho monográfico com a finalidade de obtenção de grau, quer seja na conclusão de graduação, quer seja no encerramento de uma pós-graduação. O que se deve ter em mente, ao iniciar uma pesquisa, é o alcance do projeto, no que diz respeito aos seus efeitos benéficos.

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Apresentação


O homem de ciência deve preocupar-se com as consequências sociais de sua pesquisa. Portanto, não lhe cabe a indiferença moral dos resultados alcançados. Da sua responsabilidade depende até mesmo a continuidade da vida no planeta. Vázquez (1986, p. 88) chega a afirmar que: o cientista deve apresentar uma série de qualidades morais cuja posse garanta uma melhor realização do objetivo fundamental que norteia a sua atividade, a saber: a procura da verdade. Entre estas qualidades morais, características de qualquer verdadeiro homem de ciência, figuram sobretudo a honestidade intelectual, o desinteresse pessoal, a defesa da verdade e na crítica da falsidade.

Ao se propor iniciar uma pesquisa, o pesquisador encontra-se em uma encruzilhada, a partir da qual deverá decidir qual será o ganho para o desenvolvimento da ciência; como a pesquisa afetará a humanidade e o ambiente; e, mais imediatamente, qual setor da sociedade será beneficiado. Essas inquietações, que devem estar rondando a sua mente, aguardam decisões a serem tomadas que ultrapassam os limites da metodologia científica. Com elas surgem as questões implícitas de nível social e moral que o cientista deverá resolver. Em muitas instituições, essa atenção deve ser redobrada, em função dos parcos recursos destinados à academia. Para que se tenha uma ideia do quadro dramático da produção científica, faz-se necessário observar como o público acadêmico vem descaracterizando o papel da universidade. Sabe-se que a ciência responde pelo desenvolvimento do conhecimento humano, como também é sabido por todos que ela emana do seio da universidade. Não deveria haver nenhum tipo de hesitação quanto à função primordial da universidade nas sociedades humanas.

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A pesquisa no contexto da universidade Toma-se o exemplo do Brasil que a partir do final do século XX presenciou a expansão universitária, para ilustrar como a academia passou a exercer primordialmente o papel de agente educacional. Ora, não se deve evitar ou coibir a expansão do magistério superior. Muito pelo contrário, quanto mais pessoas acessarem o conhecimento universitário, maior será o progresso humano. Deve-se atentar, porém, para a falta de disposição para o desenvolvimento das pesquisas. Com certeza a produção científica não deve ser vista como processo ancilar ao ensino e à extensão. Pelo contrário, esses dois últimos papéis da universidade devem expressar na prática a obtenção dos resultados alcançados nas pesquisas. Ou seja, o ensino e a extensão pressupõem a existência primordial da pesquisa, e não o contrário, como vem sendo feito nos campi universitários. Para que esse quadro se inverta, é fundamental que a universidade destine recursos materiais e humanos para o revigoramento da pesquisa. Isso quer dizer, inclusive, que a academia tem obrigação de aperfeiçoar o seu qua-

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dro de pesquisadores, incentivando o seu ingresso nos cursos de pós-graduação em nível de mestrado e doutorado. Isso daria uma guinada na concepção de que o conhecimento acadêmico deve eternizar-se através da repetição insana de conteúdos preestabelecidos e consagrados. Pode-se dizer que alguns estabelecimentos têm acolhido a denominação de instituição de ensino superior – IES, por não se enquadrar no que ficou consagrado como universidade, nesse caso, sim, a sua função poderá ser apenas a aplicação do que a academia produz. Trata-se de uma nova entidade. Pois, vale lembrar que ao contrário disso, o esperado é que a ciência mantenha eternamente a sua vicissitude, característica que lhe é peculiar e fundamental. Com a elevação do nível dos pesquisadores, os estudantes passariam a compreender melhor qual é o papel da pesquisa em seus respectivos cursos. Consequentemente, o número de trabalhos acadêmicos forjados seria reduzido ao máximo. É forçoso reconhecer que as monografias encomendadas a terceiros são o indício de que o papel da pesquisa está, em parte, equivocado. É urgente a alteração desses parâmetros vigentes, em razão do conhecimento na academia correr o risco de ficar relegado à dependência total das pesquisas realizadas em poucas instituições que levam a sério a produção de novos conhecimentos. A falta de alta qualidade do profissional que exerce o magistério é refletida nos resultados dos estudantes dos níveis fundamental e médio. Com o advento da Rede Mundial de Computadores, os professores solicitam pesquisas sobre determinado tema, sem fornecer ao seu pupilo as referências necessárias, pois sabem que os buscadores cumprem esse papel, para o qual o instrutor não está preparado. Todavia, a qualidade dos documentos acessados pode ser questionada. Além disso, os procedimentos da pesquisa são negligenciados, pois os jovens apenas copiam e colam os dados, que depois de impressos são apresentados ao educador. Esse tipo de atividade ao invés de ajudar, apenas desvia o estudante para a inobservância do respeito à propriedade alheia, retira qualquer possibilidade de reflexão sobre o que se está pesquisando e torna-o um potencial receptador de estudos fraudulentos de que se fala neste texto. Assim começa o círculo vicioso de um processo que deveria ser incólume. Não se pode contar com os pais para que as atividades dos estudantes sejam supervisionadas, pois esse é o papel do professor. Isso sem considerar que muitos pais não têm condições técnicas de cumprir essa obrigação. Algo que se apresenta em níveis alarmantes no mundo, já que muitos deles não utilizaram a mesma tecnologia em sua formação, como é possível notar pelas reportagens diuturnas sobre o assunto. Portanto, é necessário que todo o corpo acadêmico se esforce um tanto para que se possa alterar essa inércia nas pesquisas. A academia deve unir forças com elementos presentes na sociedade que possam destinar-lhes recursos, sem que, para isso, tenha de atrelar os resultados à condição de acesso apenas ao elemento fomentador. Esse é um aspecto muito sério a ser tratado, já que a prática tem revelado que os pesquisadores estão, na maioria das vezes,


sós nos momentos de captação de recursos para as pesquisas. A instituição universitária não vem envidando esforços, para angariar e destinar os recursos necessários à pesquisa, por essa razão, o pesquisador lança-se à busca de patrocínios financeiros, que muitas vezes o tornam refém de um sistema regido pela lógica da usura.

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O financiamento das pesquisas A pesquisa na universidade não deve estar atrelada à lei da maisvalia. A lógica do capital não deve ser transplantada para a produção da pesquisa universitária. As relações do sistema econômico dominante afetam de uma forma ou de outra todos os setores da sociedade. A academia não se encontra isenta disso. Entretanto, o seu público deve lembrar, de forma absolutamente límpida, que as leis do lucro máximo geram uma moral própria, a qual não deve ser expandida para todos os setores da sociedade, principalmente para o cerne da academia, em que o princípio moral aponta para trazer benefícios à sociedade sem ter em vista o retorno financeiro que possa ser gerado. Quando o pesquisador se associa às empresas que têm como objetivo último o lucro, o alcance social de sua pesquisa pode ficar restrito aos ganhos que os patrocinadores possam ter. Do ponto de vista da qualidade moral, o pesquisador tem uma atitude reprovável, pois utiliza a academia para beneficiar muito poucos, quando não proporciona benefícios para si mesmo. Não é preciso lembrar que a moral egoísta estabelecida pelo sistema capitalista prevê que cada um deve cuidar do seu bem-estar, independentemente dos outros. Muitas vezes, para a satisfação desse bem-estar é necessário atropelar o bem-estar alheio. Há um movimento de pesquisadores, no momento, que exige mais transparência dos seus pares no julgamento dos artigos para publicação em periódicos científicos, pois há uma alegação de que alguns pesquisadores tendem a não aceitar determinados artigos ou demorar a publicá-los, apenas para ganhar tempo e publicar resultados que lhes deem prioridade sobre o assunto na área, dessa maneira podem manter uma reputação alta e garantir prestígio junto aos fomentadores para angariar mais fundos para o seu grupo de pesquisa. Na universidade, o conhecimento científico não deve ser submetido a esse tipo de moral, apesar da necessidade de levantamento de fundos para que a pesquisa se realize. Percebe-se a delicadeza da existência desse impasse, em que o pesquisador é obrigado a conceder os seus resultados apenas àquele que solicitou/fomentou o trabalho científico. O profissional deve empenhar seus esforços para que os resultados sejam válidos para as empresas que lhes dão ajuda financeira, sem que isso restrinja o acesso ao seu trabalho unicamente para esse público. Muito menos que os resultados sejam manipulados pelos patrocinadores com o objetivo de escamotear os malefícios que a sua atividade econômica proporciona ao meio ambiente, muitas vezes com impacto

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social arrasador. Grandes empresas já institucionalizaram a prática da pesquisa direcionada para os seus objetivos, montando o seu próprio parque de pesquisa. Vê-se que essa sistemática absorveu parte do papel da academia, para evitar constrangimentos éticos que sua necessidade de pesquisa poderia provocar, consequentemente há aí o encolhimento do papel da universidade. Outra saída para a satisfação dos problemas financeiros encontra-se na busca pelos órgãos fomentadores oficiais. Entretanto, tais órgãos cerceiam, de forma velada, a liberdade da universidade, ao estabelecer áreas prioritárias de aplicação de recursos. Sabe-se que, na medida do possível, continuam financiando pesquisas em todas as áreas científicas. Entretanto, um olhar mais atento denuncia as prioridades de políticas estabelecidas por esses órgãos. Isso implica que a academia deve adequar-se aos planos políticos traçados pelas agências fomentadoras oficiais, em detrimento da demanda social de sua pesquisa. A experiência acadêmica tem mostrado que a cada dia o fomento à pesquisa universitária tem voltado a sua atenção às áreas de conhecimento que despertam interesses imediatos ao amplo universo do desenvolvimento político e econômico. Obviamente, os agentes responsáveis por tal fenômeno alegam estarem sempre preocupados com o desenvolvimento econômico e social. Isso deve ser questionado pela academia, pois a liberdade de escolha das áreas e dos temas a serem pesquisados tem de emanar de suas trincheiras, e não ser ditadas a partir do exterior. Esse é o meio mais seguro para se evitar o mercenarismo acadêmico e devolver à academia a tranquilidade de que precisa para promover a ciência.

A lógica da moral capitalista também atinge aquele pesquisador que deseja chegar aos resultados de sua pretensa pesquisa através da compra de monografias. Se a academia se propõe a desenvolver o conhecimento humano, obviamente, o homem deve fazer parte desse progresso. Quando o estudante delega sua responsabilidade a terceiros, ele está, obviamente, terceirizando a sua tarefa, como acontece no mercado, com empresas de prestação de serviços; e, assim, não cumpre a etapa de desenvolvimento do conhecimento. Além de tudo, compra algo que deveria ser invendável. Mais uma vez, atua aí a lógica da moral capitalista. O pesquisador, que vende o seu trabalho, aliena o seu esforço com a mera pretensão de lucro. E a pessoa que o compra torna-se reprovável moralmente, em razão de apoderar-se de algo, que não é de sua autoria, como se fosse seu. A pessoa contratante da pesquisa segue, em uma escala menor, os mesmos passos das empresas que apresentam a ajuda financeira como meio de apoderar-se dos resultados de pesquisa, como se fossem uma propriedade alienável. Esses dois elementos são partes de um mesmo problema, diferem apenas na proporção de suas ações. O mais grave ainda é que, atrelado à compra de pesquisa, está o direito ao diploma universitário. Então, a compra da pesquisa pode ser interpretada como a compra do diploma, já que sem a monografia não há

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A produção (discutível) de monografias


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como concluir o curso, se assim for o projeto do curso. Além dos profissionais que vendem as monografias inseridos no seio da academia, existem aqueles que estão se organizando em verdadeiras indústrias. O comércio de monografias vem proporcionando um crescimento de empresas no ramo, formadas por pesquisadores das mais diversas áreas. Os quais são guiados pela lógica da alienação de mão-de-obra, por isso não sentem remorsos (BASTOS, 2005) por estarem em uma atividade espúria, apesar de saberem da ilegalidade da atividade. Importa recordar que a lógica da alienação do trabalho é estabelecida em função do trabalhador desconhecer completamente os beneficiários do seu esforço. Isso implica em saber que ele é desprovido das características de consciência e de criatividade. A alienação não só está estabelecida na produção dos bens, como também é verificada na necessidade de consumo produzida artificialmente com a finalidade de se promover maiores lucros. A consciência e o poder de decisão sobre o que deve ser consumido ficam alijados. Dessa forma, o cidadão passa a ser visto como um mero consumidor. A moral que neste momento histórico é aceita nesse tipo de produção é inadequada para a produção da pesquisa. A universidade ainda tem como pretensão a formação crítica e criativa do cidadão. O estudante precisa reconhecer que não é um consumidor de monografias. Os resultados de pesquisa não são produtos comercializáveis. Por isso, na universidade, deve-se prevenir o comércio de pesquisas tanto para empresas patrocinadoras, quanto para o público interno que deseja atingir qualquer nível acadêmico. É importante que a ideologia seja desmascarada. O público universitário deve saber que a ideologia está a serviço das classes dominantes, por isso se revela um instrumento de dominação que serve para alienar e evitar o atrito entre as classes. A moral é uma das formas através das quais a ideologia cumpre o seu papel. Portanto, tendo isso em consideração, mais uma vez, deve-se conceber que a lógica que impera no plano da economia não deve ser aceita como uma verdade absoluta para o modo de agir na universidade. E isso é possível, porque nem todos os fatos morais recobrem todos os setores sociais. Palavras finais Ainda tocando o ponto da autoria do trabalho acadêmico, é fundamental que todos respeitem o conhecimento produzido anteriormente. Pesquisar é pressupor a implementação de novos dados ao conhecimento de conteúdo prévio. Ninguém parte do nada absoluto para realizar um trabalho de pesquisa. Nesse sentido, faz-se necessário reconhecer o que já foi descoberto e citar a responsabilidade da autoria. Só assim, através da honestidade, pode-se reconhecer que o cientista busca trazer a verdade, exercendo o respeito em relação ao seu semelhante para o bem da humanidade. Durante toda esta exposição, vem-se dizendo que o cientista deve estar amparado pelos preceitos morais, mas a natureza do conteúdo interno

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da ciência deve estar além das restrições, já que a ciência é moralmente neutra. Para enfatizar: as regras morais devem dizer respeito apenas ao pesquisador. Vázquez (1986, p. 88-9) sustenta que “As considerações morais, neste terreno, perturbariam a objetividade e a validade das proposições científicas e a transformariam em mera ideologia”. Nota-se, portanto, que a restrição que pode ser impetrada pelos preceitos morais pode perturbar a ciência em sua jornada através do movimento ascensional. As academias devem promover acompanhamento mais rígido na construção de monografias. Um caminho para isso é utilizar o maior número possível de profissionais especializados na orientação de um menor número possível de estudantes. Esse tipo de providência garante uma maior intimidade com o desenvolvimento do estudante e um controle maior, no sentido de evitar as fraudes que vêm se proliferando. Além disso, já existe programa computacional que detecta trabalhos acadêmicos falsos. Não obstante, detecta apenas a forma mais superficial do trabalho, portanto, é apenas mais uma ferramenta para auxiliar na avaliação por parte dos professores. A mera cópia já deveria ter sido coibida com tal programa. Muitas instituições, porém, têm retirado as monografias de conclusão de graduação do projeto do curso, alegando que as fraudes impedem o objetivo esperado. Essas instituições têm razão; só que parcial. Uma vez retirada a monografia final, não há outro instrumento que a substitua e mantenha o mesmo nível de formação. Nesse sentido, o estudante continua sendo prejudicado na sua formação, que deveria ser crítica e criativa. Isso quer dizer que as universidades que seguem esse caminho só conseguem evitar o comércio, sem poder exercer o seu papel fundamental que é o de desenvolvimento através da pesquisa. Nota ÉTICA. O termo ‘ética’ […] significa ‘costume’, e, por isso, a ética foi frequentemente definida como a doutrina dos costumes, sobretudo nas tendências empiristas. A distinção aristotélica entre as virtudes éticas […] indica que o termo ‘ético’ é tomado primeiramente apenas em um sentido de “adjetivo” [...]. Na evolução posterior do sentido do vocábulo, o ético se identificou cada vez mais com o moral, e a ética chegou a significar propriamente a ciência que se ocupa dos objetos morais em todas as suas formas, a filosofia moral. (MORA, 2001, p. 931) 2 MORAL deriva de mos, “costume”, do mesmo modo como ética […]; sendo por essa razão que “ética” e “moral” são empregadas às vezes indistintamente. Como disse Cícero (De fato, I, 1), “posto que se refere aos costumes, […], costumamos chamar esta parte da filosofia filosofia dos costumes, mas convém enriquecer a língua latina e denominá-la moral”. Contudo, o termo “moral” costuma ter uma significação mais ampla que o vocábulo “ética” (MORA, 2001, p. 2011). Referências

BAKHTIN, Mikhail (Volochinov). Marxismo e filosofia da linguagem. 11. ed. São Paulo: Hucitec, 2004. 196p.

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BASTOS, Geraldo. Teses fraudulentas invadem faculdades. A Tarde. Salvador, 27 mar. 2005. Empregos e Mercados, p. 1. CHAUI, Marilena de Souza. O que é ideologia. 2. ed. rev. e amp. São Paulo: Brasiliense, 2001. 118p. (Primeiros passos) ÉTICA. In: MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. Tomo II (E-J). Trad. Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno, Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2001, p. 931. GIL, Antônio Carlos. Como elaborar projetos de pesquisa. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2002. 175p. KURZ, Robert. O colapso da modernização: da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial. Trad. Karen Elsabe Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1993. 244 p. LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia científica. 2. ed. rev. e amp. São Paulo: Atlas, 1991. 249p. LUNA, Sérgio Vasconcelos de. Planejamento de pesquisa: uma introdução. São Paulo: EDUC, 2000. 108 p. (Trilhas) LUSA. Internet: Alunos plagiam cada vez mais para trabalhos escolares. In O Público. Disponível em: <http://www.publico.pt/Tecnologia/internet-alunos-plagiam-cada-vezmais-para-trabalhos-escolares_1421717> [Acesso em: 09 fev. 2010] MORAL. In: MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. Tomo III (K-P). Trad. Maria Stela Gonçalves, Adail U. Sobral, Marcos Bagno, Nicolas Nyimi Campanário. São Paulo: Loyola, 2001. p. 2011. RUDIO, Franz Victor. Introdução ao projeto de pesquisa científica. 32. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2004. 144 p. SANTOS, Theotonio dos. Conceito de classes sociais. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1987. 80 p. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Ética. Trad. João Dell’Anna. 9. ed. São Paulo: Civilização Brasileira, 1986. 267 p.

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LEITURA

LEITURA HIPERMÍDIA E LITERATURA INFANTIL: DIÁLOGOS INTERARTES HIPERMEDIA READING AND CHILDREN'S LITERATURE: INTERARTS DIALOGUES

Resumo: As transformações impostas pelos meios eletrônicos influenciam, significativamente, além do processo de comunicação, também o modo de composição, leitura e criatividade na criação literária e estética do livro infantil contemporâneo. A obra, que traduz vestígios estilísticos do artista, constroi significações sígnicas entrelaçadas com ajuda da máquina - suporte semiótico pelo qual ela se concretiza e instiga várias leituras. O leitor, nesse processo intricado, caminha nessa trama/teia, de um espaço a outro mapeando percursos, criando redes de associações que lhe permitem entender algum estado individual de fruição. Palavras-chave: leitura hipermídia; literatura infantil; múltiplas linguagens. Abstract: The changes imposed by the electronic media influence, significantly, beyond the process of communication, also the way of composition, reading and creativity in creating literary and aesthetic of contemporary children’s book. The work, which reflects stylistic traces of the artist, builds meanings of signs intertwined with the help of the machine - semiotic medium through which it is implemented and instigates several readings. The player in this intricate process, walks in this network / web, from one space to another by mapping routes, creating networks of associations that allow you to understand any individual state of enjoyment. Key words: hypermedia reading; children’s literature; multiple languages.

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Rodrigo da Costa Araújo


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Literatura infanto-juvenil: um gênero menor? Pensar a literatura infantil é, primeiramente, pensar em algumas reflexões. O que é uma literatura voltada para o público “infantil”? O que distingue esse gênero da literatura destinada ao público adulto? Qual a ideologia por trás da obra dita infantojuvenil? Essas são, dentre várias, algumas perguntas plurais que podem circular num primeiro contato com textos literários ou livros voltados para o público “infanto-juvenil”. Refletindo sobre essas perguntas, a literatura infantil se configura enovelada nas questões que envolvem a educação, na intenção (e tensões) das relações adulto/ criança, no texto e no leitor, na dependência infantil em relação ao adulto, na emancipação do receptor, nas intricadas relações em que predominam o didatismo do texto e os valores estéticos. Ela - a literatura infanto-juvenil - não obstante as amplas conquistas na sociedade pós-moderna, ainda, tem sido vista, infelizmente, por muitos leitores e, também pseudoescritores, de forma pejorativa ou simplesmente como mero instrumento de intenção didático-pedagógico-educativa. Muitas vezes, isso leva a crer, ou mesmo induz a pensar que o significante “infantil” assume semanticamente para muitos, o valor de infantilidade, como se a menoridade do leitor fosse transferida (e transcrita) ao texto literário, tornandose, assim, erroneamente, uma espécie de pseudoliteratura ou uma literatura marginal. Com esse pensamento, o lugar ocupado pela literatura infanto-juvenil na arte literária reflete, de algum modo, o lugar ocupado pela criança na sociedade, já que ela, inserida na concepção de mundo regida pelo adulto, ocupa um lugar de “inferioridade social”. Esse mesmo viés de leitura é estudado, criticamente, em Ligia Cadermatori ao refletir sobre o conceito de literatura infantil e, por isso afirma: “a principal questão relativa à literatura infantil diz respeito ao adjetivo que determina o público a que se destina”. A literatura infantil, então, atrelada a um adjetivo pressupõe que sua linguagem, seus temas e o seu ponto de vista objetivam um tipo de destinatário em particular, diz a estudiosa no assunto. A literatura, puramente enquanto substantivo, ao contrário, não predetermina seu público, supondo-se que este seja formado por quem quer que esteja interessado nela. Por outro lado, como afirmam Marisa Lajolo e Regina Zilberman (1984), apesar da depreciação com que o gênero é reiteradamente considerado, ele tem se tornado um relevante segmento da indústria editorial, além de ter integrado os currículos universitários. O fato é que, mesmo sendo considerada “menor” ou “marginal”, a obra infantil parece ainda mais difícil que a voltada para os adultos, uma vez que precisa superar o ranço pedagógico e utilitário e o comprometimento com as “facilidades sentimentais”. Críticos como Khéde (1983) e Cadermatori (1994) observam, portanto, que essa adjetivação ao gênero denota uma limitação em razão da escolha de um público específico “infantil” e “juvenil” - como distinto e separado dos receptores da obra literária em geral. E isso, na opinião de Khéde tem como causa o próprio contexto cultural em que se verifica a bipartição entre o mundo do adulto, com seus valores a serem alcançados, e o mundo infantil, com seus “defeitos” a serem “corrigidos”. Nesse sentido, e contrariamente a todas essas limitações, pensar a literatura infantil, é antes de tudo, pensar a literatura. Não podemos, de forma alguma, desvincular a literatura de literatura infanto-juvenil. Elas não se opõem, muito pelo contrário. Dialogando e reforçando esse discurso, Ana Maria Machado, em Contracorrente (1999) e Texturas (2001), sublinha que o importante, ao pensar a literatura infantil é o substantivo literatura e não o adjetivo infantil. Dessa forma, não se trata simplesmente de livros para crianças, mas antes, trata-se de literatura, de textos que, rejeitando o estereótipo, apostam na invenção, na criatividade e no valor estético. Assim compreendido, o espaço textual da literatura infantil, como o da literatura, é formado por um conjunto de elementos semi-

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ambivalentes. O deciframento é sempre uma escolha. E se o texto ou obra infantil entendidos como jogo barthesiano da escritura-leitura, só passarão a existir a partir de sua recriação numa leitura subjetiva e individual, a cada fruidor -, seja infantil, juvenil ou adulto -, a obra se apresentará, diferentemente, entre si mesma e ao mesmo tempo completa e incompleta. Nesse plano, o texto literário é entendido como objeto de prazer que está constantemente estruturando-se, mantendo-se num estatuto da enunciação. Essa estruturação infinita do texto, que Barthes chama significância - espaço específico onde se redistribui a ordem da língua - faz-se sensorial: o sentido das coisas nasce de nossos sentidos; é o sentido produzido sensualmente, o corpo e sua vivência, a fragmentação e a cultura, disseminação de suas características segundo fórmulas desconhecidas. De qualquer forma, é preciso pensar que o que importa para a qualidade na literatura infantil é o valor literário do texto, a sua literariedade, sem perder de vista os aspectos sociais, históricos, religiosos e filosóficos que perpassam a obra. 2 Novos leitores, outros universos semióticos

Nesta epígrafe, extremamente significativa, Pierre Levy propõe novas formas de ler e atualizar o texto, como também, o processo de virtualização e a construção de novos sentidos. Para ele, ao mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura ou pela escuta, amarrotamos esse texto lido. Dobramo-lo sobre si mesmo. Tal trabalho da leitura, para ele, pressupõe esse ato de rasgar, amarrotar, torcer, recosturar o texto para abrir um meio vivo no qual possa se desdobrar o sentido. O espaço do sentido, nesse processo, não preexiste à leitura e, é ao percorrê-lo que o fabricamos ou o atualizamos. Afirma, ainda, que, enquanto dobramos esse texto sobre si mesmo, estabelecemos relações com outros textos, a outros discursos, a imagens, a afetos, a toda a imensa reserva flutuantes de desejos e de signos que nos constitui. Quando isso acontece, segundo suas leituras, não é mais do sentido do texto que nos ocupa, mas a direção e a elaboração de nosso pensamento, a precisão de nossa imagem no mundo, a culminação de nossos projetos. Pensando assim, o texto não é mais amarrotado, dobrado sobre si mesmo, mas recortado, pulverizado, distribuído, avaliado segundo critérios de uma subjetividade que produz a si mesma. Todos esses processos de atualização, segundo o filósofo, remontam e reforçam o conceito de hipertexto e novas formas de conceber o leitor e a leitura. Esse processo construtivo do hipertexto, de um modo geral, exige um leitor atento, possuidor de habilidades técnicas, capaz de ser co-autor de uma obra, consciente das transformações que ajuda a construir e do poder da técnica que utiliza. Aproximando dessas mesmas relações obra-autor-espectador, Lúcia Santaella, sabiamente, em Navegar no ciberespaço. Perfil do leitor imersivo [2004] se refere à abertura da obra e a três tipos de leituras2, como também, as interações a partir das habilidades sensoriais, perceptivas e cognitivas que estão envolvidas nesse processo.

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[...] escutar, olhar, ler equivale finalmente a constituir-se. Na abertura ao esforço de significações que vem do outro, trabalhando, esburacando, amarrotando, recortando o texto, incorporando-o em nós, destruindo-o, contribuímos para erigir a paisagem de sentido que nos habita. O texto serve aqui de vetor, de suporte ou de pretexto à atualização de nosso próprio espaço mental. Confiamos às vezes alguns fragmentos de texto aos povos de signos que nos nomadizam dentro de nós. Essas insígnias, essas relíquias, esses fetiches ou esses oráculos nada têm a ver com as intenções do autor nem com a unidade semântica viva do texto, mas contribuem para criar, recriar, reatualizar o mundo de significações que somos. Pierre Levy


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O primeiro tipo - o leitor contemplativo - o leitor mediativo da idade préindustrial; o leitor da era do livro impresso e da imagem expositiva, fixa, é aquele que se concentra em uma atividade interior, labiríntica e pessoal. “Esse leitor não sofre, não é acossado pelas urgências do tempo” (SANTAELLA, 2004, p.24), trata-se apenas de um leitor que contempla e medita. Inspirado nas obras de Walter Benjamin e Baudelaire, o segundo tipo, - o leitor movente, fragmentário - representa o leitor do mundo em movimento, de misturas sígnicas, e esse leitor, segundo a pesquisadora, é filho da Revolução Industrial e dos grandes centros urbanos. Um leitor de fragmentos e de sensações evanescentes e instáveis. As habilidades desse leitor são inquestionáveis, pois ele, além da capacidade de conviver com os diversos signos, também sabe administrar a velocidade e a intensidade que as imagens circulam nesse universo. A flexibilidade desse segundo leitor, segundo a autora, abriu caminho ao tipo de leitor mais recente - o imersivo -, isto é, ele prepara a sensibilidade perceptiva para o surgimento do leitor que navega “entre nós e conexões alineares pelas arquiteturas líquidas dos espaços virtuais” (SANTAELLA, 2004, p.11). E no terceiro tipo, - o leitor imersivo, virtual - Santaella apresenta o leitor que emerge nos espaços incorpóreos e fluídos da virtualidade, em um roteiro multilinear entre “nos”, multisequencial, hipersubjetivo, feito um grande caleidoscópio tridimensional, onde as transformações sensoriais, perceptivas e conjuntivas inauguram novas sensibilidades corporais, físicas e mentais. O leitor virtual ou imersivo, segundo Santaella, surge da multiplicidade de imagens sígnicas e de ambientes virtuais de comunicação imediata. Esse novo leitor nasce inserido dentro dos grandes centros urbanos e é acostumado desde cedo com a linguagem efêmera e provido de uma sensibilidade perceptiva-cognitiva quase que instantânea. Ele, segundo Santaella, e de acordo com essas características é inserido no ambiente hipermídia, coloca em ação mecanismos, ou mesmo, habilidades de leitura muito distintas das empregadas pelo leitor do texto impresso. Por outro lado, elas se distinguem, ainda, daquelas que são empregadas pelo leitor de imagens ou espectador de cinema ou televisão. Essas habilidades de leitura multimídia acentuam-se mais ainda, quando a hipermídia migra do suporte CR-Rom para circular nas potencialidades infinitas do ciberespaço. Com a proliferação crescente das redes de telecomunicação, especialmente da internet que liga vários pontos ou informações, surge, nesse contexto, outro conceito de leitor que possui novas formas de percepção e cognição nos atuais suportes e estruturas híbridas e alineares do texto escrito. Apesar dessas classificações, segundo a estudiosa no assunto, não é possível ver diferenças entre os três tipos de leitores citados, porém há habilidades que os diferem. Esse livro -, Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo -, nesse caso, consistiu exatamente em conhecer ou mapear o leitor imersivo, suas transformações sensórias, perceptivas, cognitivas e, consequentemente, sua maneira de sentir as transformações. 3 Uma leitura imersiva a partir do livro A Interminável Chapeuzinho, de Angela Lago A obra tecnológica interativa pressupõe a parceira, o fim das verdades acabadas, do imutável, do linear. Diana Domingues

De acordo com os três tipos de leitores apontados por Lúcia Santaella, leremos, a partir do viés do leitor imersivo, o livro/hipertexto A interminável Chapeuzinho, de Angela Lago, disponível no site [http://www.angela-lago.com.br]. As principais características desse leitor, segundo a estudiosa, são a hipertextualidade, a interatividade e o diálogo sígnico

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com as várias linguagens. A escolha do livro, para esse ensaio, se deu em virtude de um trabalho desenvolvido com professores alfabetizadores, no curso de Pós-Graduação Lato Sensu, realizado na FUNEMAC - Fundação Educacional de Macaé, com a disciplina Leitura e escrita na cultura digital (2010). Quanto ao trabalho com Angela Lago, foi porque, além de possuir uma obra extremamente significativa e conhecida pelo público de docentes, é uma das mais reconhecidas escritoras e ilustradoras da literatura infantil contemporânea. Suas narrativas evolvem livros de imagem, indagações do olhar, estranhamentos3 e muitas interrogações, além de um diálogo tramado com as outras linguagens artísticas. O site oficial da autora [http://www.angela-lago.com.br], além de falar de toda a sua trajetória artística e sua obra, apresenta livros concebidos no espaço virtual, tais como: Oh! Terror Game (Trata de uma história de terror], ABCD [Abecedário ilustrado brasileiro e lúdico] e A Interminável Chapeuzinho (paródia do clássico conto de fada). Essa última foi o nosso objeto de experimentações com alunos e professores alfabetizadores.

Se antes, o diálogo interartes4 era extremamente presente e lúdico na obra impressa de Angela Lago, agora, nesse hipertexto/livro, a escritora explora vários recursos ao mesmo tempo com A Interminável Chapeuzinho - exigindo ações e habilidades de leitura muito distintas daquelas exploradas pelo leitor do livro impresso ou daquelas empregadas, também, pelo receptor de imagens ou espectador de cinema e televisão. O título da obra, nesse caso, único código verbal escrito - paratexto condutor e instigante - aponta, antecipadamente, para um texto5 que acontece através da conexão do leitor com a tela, por meios de movimentos e comandos do mouse, descobrindo os nexos eletrônicos dessas etapas ou mecanismos por onde seguir. O signo “interminável” comprova, assim, que o leitor mirim ou qualquer leitor terá que estabelecer relações múltiplas, e de modo a-sequencial, unir fragmentos de informações de naturezas diversas (cores, movimentos, luzes, intertextos, música, gestos dos personagens etc.), criando e experimentando, na sua interação com o potencial dialógico da hipermídia, um tipo de comunicação multilinear e labiríntica. Esse paratexto6, - o título da obra -, ainda, informa o intertexto com obras clássicas conhecidas de muitos leitores, reforçando, assim, o tom parodístico do discurso. Com essas informações iniciais, antes mesmo de explorar a obra e a sua natureza diversa, o leitor, por meio de saltos receptivos, é livre para estabelecer sozinho a ordem textual ou para se perder na desordem dos fragmentos, pois no lugar de um volume encadernado em que as frases e/ou imagens se apresentam em uma ordenação sintático-textual, surge, agora, diante dos seus olhos, uma ordenação associativa que só pode ser estabelecida no e mediante o ato da leitura.

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Figura 1: Abertura do hipertexto: A Interminável Chapeuzinho, de Angela Lago


Figura 2: A Interminável Chapeuzinho, de Angela Lago

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Nesse primeiro momento, o leitor-mirim, diferentemente do livro impresso, poderá optar por múltiplos caminhos e desfechos, dependendo da sua escolha. Para esse tipo de leitura, no entanto, a própria obra nos convoca a uma navegação exploratória, uma forma de conhecer os seus mecanismos e estrutura. O leitor, lançando mão de toda multilinearidade do livro deve se comportar como um navegador, deslocando-se com o mouse da centralidade textual, a qual é encaminhada a outro nó de rede, num dinamismo lúdico, totalmente descontraído e sedutor. A figura de chapeuzinho, após o primeiro click, conhecida de todos nós, surge nessa trama ressignificada e recontada. Feita personagem-atriz - como sugere o intertexto musical - ela se apresenta para representar na floresta e fazer acontecer os fatos de sua própria narrativa. Movimentando-se, ora com sua mãe, ora como num palco, com sua avó, dirige-se aos bastidores para trazer de lá, acontecimentos ou a própria vovozinha. A partir daí, a trama poderá ser iniciada, ao toque do mouse e a partir das experimentações (tentativas).

Figura 3: A Interminável Chapeuzinho, de Ângela Lago Nessa obra, disponível no site, os recursos hipertextuais são explorados de forma lúdica e colorida, permitindo-nos observar muitas características apontadas por Lúcia Santaella a respeito da leitura hipermidiática. Uma delas é o caráter volátil do texto, o leitor ao embrenhar-se nas redes perceberá a importância e autonomia das partes que formam essas cadeias de percursos. Essa coreografia imagética dos personagens em figuras sintéticas com animação - duas mulheres adultas, uma menina, o lobo e os caçadores - é configurada com o texto não verbal, integrados em tecnologias que são capazes de produzir e disponibilizar som, ruído, movimentos ou gestos etc. Modeladas em informações figurativas em multimídias, eles constituem nós, ajudando a formar certas associações e, por isso, o discurso

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visual arma-se em um todo coeso graças aos elementos em conjunto. Essas ligações, geralmente ativadas por meio do mouse, permitem ao leitor hipermídia mover-se através da obra, produzindo na mistura de sentidos receptores, na sensoridade global, sinestesias reverberantes que ela é capaz de produzir (SANTAELLA, 2003, p. 95). A leitura hipermídia permite, ainda, mescla de texto (o intertexto com o conto de fadas), imagens fixas e animadas, sons (trilha sonora do livro), ruídos e luzes compondo um todo complexo, porém, não garante certa linearidade do começo ao fim, podendo ser interrompida, inclusive, durante as experimentações. Ela, acionada pelas várias colagens, direciona-se ao público infantil, monta-se ou se constitui com as intervenções do receptor acompanhando os comandos com o mouse. Com todos esses recursos e perturbado com tantas informações e detalhes, ele - o leitor imersivo - se percebe diante de possibilidades de narrativas, diante de um jogo em que escolhe, entre as várias versões, um final que prefere atualizar. A canção - que se tornou um clássico hino de amor - escolhida por Angela Lago para essa narrativa, reforça, além da mise en scène ou do espetáculo da protagonista, a citação original Chapeuzinho Vermelho, de Charles Perrault em que o lobo seduz a protagonista. Nesse caso, a trilha sonora que embala a narrativa e a construção dos sentidos estabelece o tom parodístico com as várias relações psicológicas e sexuais que sugerem o conto7. La vie en rose (A vida em cor-de-rosa) - feito um conto de fadas cantado -, de Edith Piaf, é uma canção francesa que tematiza, pelo eu-lírico, a vida de uma mulher que prometeu o amor eterno a um amante. La vie en rose, Edith Piaf Des yeux qui font baiser les miens, Un rire qui se perd sur sa bouche, Voilà le portrait sans retouche De l’homme auquel j’appartiens [Refrain]

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Figuras 4 e 5: A Interminável Chapeuzinho, de Angela Lago


Quand il me prend dans ses bras Il me parle tout bas, Je vois la vie en rose. Il me dit des mots d’amour, Des mots de tous les jours, Et ça m’fait quelque chose. Il est entré dans mon coeur Une part de bonheur Dont je connais la cause. C’est lui pour moi, Moi pour lui dans la vie, Il me l’a dit, l’a juré Pour la vie. Et dès que je l’apercois Alors je sens en moi Mon coeur qui bat Des nuits d’amour à plus finir Un grand bonheur qui prend sa place Des ennuis des chagrins s’effacent Heureux, heureux à en mourir.

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[Refrain] [In: DAHAN, Oliveir. La vie en rose. “La Môme”]8 Ela, ainda, ajuda a construir a animação dos personagens, confundindo-se em um todo dinâmico e interativo do enredo. Disso decorre não só desenvolver novos modos de escutar ou ver detalhes, mas aprender com mais rapidez, saltando de um ponto a outro da informação, formando combinatórias criativas. Com esse gesto, mesmo quando se está diante dos espaços representacionais da tela/livro, o internauta-leitor percebe-se envolvido na cena, é ele que confere dinamismo aos acontecimentos, identificando-se com elementos constitutivos de um ambiente cujas coordenadas só se limitam pela interface que ele atualiza no ato de navegação. Enfim, ler e desenvolver esses códigos, além de ser uma atividade lúdica e criativa, é uma atividade performativa e cognitiva que não está presa a um único tipo de equipamento. Junta-se a isso, ainda, nessa miríade de signos, o processo metalinguístico explorado na imagem e narrativa enquanto processo. Em todos os finais, que não se assemelham ao final clássico da história original, o lobo, com um livro na mão, acena com o dedo e com a cabeça (códigos visuais ou não verbais), sugerindo que não era o fim pretendido para tal situação. A grande marca identificatória do leitor imersivo está, sem dúvida nenhuma, na interatividade com a obra. O enredo e os processos comunicativos, além dos recursos de colagens, nesse texto, acontecem no espaço de comutação, nas trocas intersemióticas. Nesse ambiente, todos se tornam negociadores de um fluxo indefinido de signos que surgem e desaparecem em função do acesso e das comutações. Outro traço do leitor imersivo, segundo Lucia Santaella [2004, p.181], encontra-se nas transformações sensórias, perceptivas e cognitivas que emergem nesse tipo de leitura. Os sentidos e as reações motoras acompanham o ritmo da narrativa que é visível na agilidade dos movimentos multidirecionais, ziguezagueantes na horizontal, vertical e diagonal com que o olhar contempla a tela. Para a pesquisadora, “observar, absorver, entender, reconhecer, buscar, escolher, elaborar e agir ocorrem em simultaneidade” [2004, p.182] nesse processo de leitura. De todo modo, segundo suas pesquisas, o que parece certo e se confirma é, que “no

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contexto comunicacional da hipermídia, o infonauta lê, escuta e olha ao mesmo tempo”. Nessa vertigem de signos percebemos, nessa obra, um novo tipo de sensibilidade perceptiva, sinestésica e de uma dinâmica importantíssima no processo de alfabetização atual a partir de diálogo intercódigos. 4 Considerações finais O interstício da fruição, produz-se no volume das linguagens, na enunciação, não na sequência dos enunciados.

A literatura infantil contemporânea seja ela da criação impressa - com os recursos extremamente visuais e apelativos ou técnicas de designers - seja das tramas virtuais e labirínticas com os recursos hipermidiáticos - assume, evidentemente, novas formas de ler/ver e novas formas de conceber o objeto livro. Essa leitura e trabalho com o livro de Angela Lago, realizado com professores alfabetizadores, revelam a perspectiva dos estudos da linguagem e da literatura comparada em abordagem semiótica buscando, sempre num viés crítico, relacionar e confrontar linguagens verbais e não verbais. Essa perspectiva, direcionada ao público infantil de escolas municipais, reconhece os diálogos que a literatura estabelece com outras artes, com as demais formas de representação e com o contexto em que se situa em um dado momento. E, embora considerando algumas dificuldades com as tecnologias no contexto escolar, percebe-se que a literatura e a prática pedagógica, como um todo, criam interrelações comunicantes com as linguagens por meio das quais esse contexto se fala, tais como: da revista, do jornal, da fotografia, do cinema, da TV, dos jogos infantis, da hipermídia. Assim, estudar literatura ou estabelecer novas práticas com o processo de alfabetização é correlacionar, o tempo todo, diferentes sistemas de signos. Desse modo, sempre num ambiente descontraído, podemos perceber como a linguagem da alfabetização e do mundo artístico sofre os efeitos e pressões de diferentes códigos, e, por outro lado, como esses efeitos agem sobre eles, o que, de certa forma, provoca um processo ininterrupto de transformação com o trabalho da linguagem. Um trabalho que ganha força ainda mais com os vários recursos tecnológicos. Apesar das dificuldades, das realidades das escolas e dos poucos encontros - apenas quatro sábados- sob essa perspectiva e, nesse panorama com escolas de classe popular, inserem-se nossas preocupações com o aluno, a leitura, o processo de alfabetização e a literatura infanto-juvenil. Enfim, o trabalho significativo com a leitura e a literatura infantil de boa qualidade é o lugar, comprovadamente, de manifestações da linguagem, e, que faz confluir, além dos diversos códigos e manifestações culturais, um ambiente alfabetizador lúdico e atraente. Além do mais, pela literatura infantil, a alfabetização acontece em comum com as mutações do mundo das linguagens, linguagens pelas quais o concreto histórico fala e se relaciona semioticamente. Notas Esses três tipos de leitura, também, de algum modo representam o modo de “abertura da obra de arte” na contemporaneidade. Principalmente em poéticas interativas. 2 Neologismo proposto pelo formalista russo Viktor Chklovski. O estranhamento seria então esse efeito especial criado pela obra de arte literária para nos distanciar (ou estranhar) em relação ao modo comum como apreendemos o mundo, o que nos permitiria entrar 1

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Barthes


numa dimensão nova, só visível pelo olhar estético ou artístico. O estranhamento é, então, essa forma singular de ver e apreender o mundo e aquilo que o constitui, visão que a literatura de certa forma alarga - ao nível da linguagem, porque a torna difícil e hermética; ao nível do conteúdo, porque desafia e transforma as ideias pré-concebidas sobre o mundo; e ao nível das formas literárias, porque estranha as convenções literárias, introduzindo novas formas de expressão 3 CLÜVER, Claus. Estudos Interartes: Introdução crítica. In: Floresta Encantada. Novos Caminhos da Literatura Comparada. Lisboa. Publicações Dom Quixote. 2001. p.333-382. 4 No sentido mais amplo e semiótico do termo e considerando que as tecnologias audiovisuais passaram a trazer textos mediados (sonoros e visuais) de todo o mundo, para um público que antes só os recebia por meio do código escrito. A leitura desses textos em códigos múltiplos (feita pelo diálogo verbal-visual-sonoro) é denominada leitura intercódigos. 5 “Um trabalho literário consiste, inteiramente ou essencialmente, de um texto, definido (muito minimamente) como uma sequência mais ou menos longa de declarações verbais que são mais ou menos dotadas de significação. Mas tal texto é raramente apresentado sem estar adornado, reforçado e acompanhado de um certo número de outras produções, verbais ou não, tais como o nome do autor, um título, um prefácio, ilustrações. E apesar de que nós nem sempre saibamos se essas produções devem ou não ser vistas como pertencendo ao texto, em todo o caso elas rodeiam o texto e o estendem, precisamente para apresentá-lo, no sentido usual deste verbo, e num sentido mais forte: fazer presente, garantir a presença do texto no mundo, sua ‘recepção´ e consumo sob a forma (atualmente, pelo menos) de um livro. Esse tipo de produção, que varia em extensão e aparência, constitui o que eu chamei [...] de paratexto [...]. O paratexto é aquilo que permite que o texto se torne um livro e seja oferecido enquanto tal para seus leitores e para o público de um modo geral [...] (GENETTE, 1982, p. 1). 6 A respeito desse olhar no conto de fadas em questão, ler: BETTELHEIM, Bruno. A Psicanálise dos Contos de Fadas. Rio de Janeiro. Paz e Terra. 1980. A vida em cor-de-rosa Edith Piaf

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Olhos que fazem baixar os meus Um riso que se perde em sua boca Eis o retrato sem retoque Do homem a quem eu pertenço [Refrão] Quando ele me toma em seus braços ele me fala baixinho Vejo a vida cor-de-rosa Ele me diz palavras de amor Palavras de todos os dias E isso me provoca alguma coisa Ele entrou no meu coração Uma parte de felicidade Da qual eu conheço a causa É ele pra mim, eu pra ele Na vida, ele me disse Jurou para sempre E desde que eu percebo

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Então, quando eu o sinto em mim Meu coração bate Noites de amor infinitas Uma grande felicidade que toma seu lugar Os problemas, as chagas se apagam Feliz, feliz até morrer [Refrão] [Tradução nossa]

ARAUJO, Rodrigo da C. Para além das palavras: a ilustração e o livro infantil-contemporâneo. Revista Mosaicum. Teixeira de Freitas, a. 5. n. 10, p. 10-20, 2009. BARTHES, Roland. Le plaisir du texte. Paris. Seuil. 1973. CADERMATORI, Lígia. O que é Literatura Infantil. SP. Brasiliense. 1994. CUNHA, Maria Zilda da. Na Tessitura dos signos Contemporâneos. Novos olhares para a literatura Infanto-juvenil. São Paulo. Humanitas. Paulinas. 2009. CHKLÓVSKI, V. A Arte como Procedimento. In: Teoria da Literatura: Formalistas Russos. Trad. Ana Maria Ribeiro et al. Porto Alegre: Editora Globo, 1971. DOMINGUES, Diana. Introdução. A Humanização das Tecnologias pela Arte. In: DOMINGUES, Diana (org.). A Arte no século XXI. A Humanização das Tecnologias. São Paulo. Fundação Editora da UNESP. 1997. pp.15-30. GENETTE, Gérard. Palimpsestes. La littérature au second degré. Paris: Seuil. 1982. KHÉDE, Sônia Salomão. Literatura infanto-juvenil. Um Gênero Polêmico. Petrópolis. Vozes, 1983. LAJOLO, Marisa & ZILBERMAN, Regina. Literatura Infantil Brasileira. História & Histórias. São Paulo. Ática, 1984. LAGO, Angela. O Interminável Chapeuzinho. Disponível em: www.angela-lago.com.br. Acesso em 25/04/2010. LÉVY, Pierre. O que é o virtual? São Paulo. Editora 34.1996. MACHADO, Ana Maria. Texturas. Sobre ensaios e escritos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. ______. Contracorrente. Conversas sobre leitura e política. São Paulo. Ática, 1999. MACHADO, Arlindo. Hipermídia: O labirinto como metáfora. In: DOMINGUES, Diana (org.). A Arte no século XXI. A Humanização das Tecnologias. São Paulo. Editora UNESP. 1997. pp.144-154. NASCIMENTO, José Augusto de A. Literatura infantil e cultura hipermidiática. Relações sócio-históricas entre suportes textuais, leitura e literatura. São Paulo USP. Faculdade de Letras. Dissertação de Mestrado. 2009. OLIVEIRA, Maria Regina M. A criança leitora: entre o impresso e o eletrônico. Leitura e Literatura infanto-juvenil: memória de Gramado. In: CERCANTINI, João Luís. C.T. Leitura e literatura infanto-juvenil. Memória de Gramado. São Paulo. Cultura Acadêmica. Assis. SP. 2004. PIAFF, Edith; DAHAN, Olivier. La vie en rose. “La Môme”. CD do filme. 2008 SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço. O perfil do leitor imersivo. São Paulo. Paulus. 2004. ______. Culturas e artes do pós-humano. Da cultura das mídias à cibercultura. São Paulo. Paulus. 2003. ______. A leitura fora do livro. Disponível em: http://www.pucsp.br/pos/cos/epe/ mostra/santaell.htm Acesso em: 25/04/2010. Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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5 Referências


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LITERATURA

ÁGUA VIVA: ASPIRAÇÃO METAFÍSICA EM CLARICE LISPECTOR ÁGUA VIVA: METAPHYSICAL AMBITION IN CLARICE LISPECTOR

Resumo: Na trajetória literária de Clarice Lispector, a criação ficção cede lugar à não-ficção, a ponto de, em Água viva (1973), enredo, personagem e foco narrativo se diluírem, sendo substituídos por uma ingente reflexão para-ensaística, em torno do ato de criação literária, em si. Tal reflexão é vazada em linguagem predominantemente poética, que alia à vocação literária da autora um pendor especulativo nitidamente metafísico. Palavras-chave: ficção; não-ficção; linguagem poética; criação literária; metafísica. Abstract: In Clarice Lispector’s literary career, fictional creation steps aside non-fictional writings. In Água viva (1973), plot, character and narrative focus dilute, giving place to a dense para-essayist reflection on the act of literary creation, in itself. Such a reflection is delivered in a predominant poetic language which adds to the author’s literary call a clearly metaphysical speculative tendency. Key words: fiction; non-fiction; poetic language; literary creation; metaphysics.

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Carlos Felipe Moisés


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A trajetória de Clarice Lispector, iniciada em 1944 com Perto do coração selvagem, parece ter atingido seu ponto culminante com A maçã no escuro, romance de 1961, em que a escritora desenvolve o máximo de sua potencialidade como ficcionista. O que temos até aí é uma das obras mais originais e significativas da moderna literatura brasileira, marcada por uma singular vocação introspectiva, de acentuado pendor metafísico, servida por um estilo inconfundível, pleno de originalidade, vigor poético e poder de concisão. A partir de A paixão segundo G.H., de 1964, sua criação praticamente abandona o veio ficcional, para se encaminhar no rumo da não-ficção (Moisés: 1996, 103-114). Seu propósito passa a estar concentrado numa cerrada autorreflexão em torno do sem-sentido da existência e do mistério da própria criação literária, sem que a autora, no entanto, opte abertamente pelo ensaio especulativo, pela autobiografia ou pelo diário íntimo, preferindo mover-se nas fronteiras cambiáveis dessas duas ou três possibilidades. Pormenor notável é que, a partir de A paixão segundo G.H., Clarice adota o foco narrativo de primeira pessoa, fazendo com que autor, narrador e personagem se confundam, sendo que em toda a sua obra pregressa, incluídos os contos, o foco narrativo escolhido havia sido, inalteravelmente, o de terceira pessoa, de modo que autor-narrador, de um lado, e personagens, de outro, constituíam universos à parte, distintos um do outro. De A paixão segundo G.H. em diante, a distância desaparece e o mundo exterior, o não-Eu, é como que tragado pelo vórtice da visão subjetiva. Esse mergulho em si mesma, centrado na metalinguagem ou na reflexão sobre o próprio ato da escrita, atinge seu ponto culminante em Água viva, uma obra invulgar, a muitos títulos audaciosa, cujo tema nuclear é a própria criação literária. Mas a escritora não parece interessada em “literatura” em sentido técnico e estrito; o que lhe interessa é a analogia possível entre o processo de criação literária e a criação do Mundo, conforme o relato bíblico do Livro do Gênesis. Clarice pergunta, por exemplo: “O mundo se fez sozinho? Mas se fez onde? Em que lugar? E se foi através da energia de Deus – como começou? Será que é como agora que estou sendo e ao mesmo tempo fazendo?” (Lispector: 1973, 36). Mais adiante voltaremos a essa analogia, decisiva para a compreensão da obra. Por ora, fixemos a atenção no seu caráter protoensaístico. Se nos ativermos a seu tema central, diremos que Água viva se insere no âmbito geral da teoria literária. Se o tema tivesse sido tratado por Clarice de uma forma minimamente convencional, teríamos aí um ensaio, uma obra afim, por exemplo, de Carpintaria do romance, de Autran Dourado, Guerra sem testemunhas, de Osman Lins, A arte do romance, de Henry James, O que é a literatura?, de Sartre, ou ainda aquele antigo opúsculo assinado por José de Alencar, “Como e porque sou romancista”, e uma boa quantidade de obras similares, em que escritores adotam a perspectiva do crítico ou do teórico e especulam sobre o processo de criação – uma especulação, portanto, encetada de fora para dentro, embora com o aval do ensaísta que é também criador de ficção, e toma sua própria obra como referência. Já a perspectiva de Clarice é

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outra. O tratamento que ela dá ao tema faz com que sua reflexão sobre criação literária e o próprio ato de criação se confundam – uma especulação, portanto, empreendida de dentro para fora. O enfoque é nitidamente outro, mas o tema central continua a ser o mesmo, o que torna problemática sua inserção em algum “gênero literário” específico. Quando essa questão – a do gênero – chega a ser ventilada, a maioria dos críticos opta por definições pela negativa, como “Água viva é um não-romance”, fazendo crer que só seria possível afirmar com segurança o que a obra não é, e sugerindo que essa negatividade diz respeito apenas ao gênero romance. A própria escritora abre caminho para esse tipo de definição pela negativa, ao assegurar, numa crônica estampada no Correio da Manhã, de 5 de março de 1972 (apud Franceschini: 2009, 74), em que anuncia seu novo livro, ainda em preparo: “não é conto, nem romance, nem biografia, nem tampouco livro de viagens”; e seria legítimo acrescentar que também não é ensaio, epistolografia, crônica, diário íntimo, poesia etc. O leque de negativas é amplo – não-romance, não-ensaio, nãoautobiografia –, mas são possibilidades que apontam para formas literárias com as quais Água viva tem efetivo parentesco. A ninguém ocorreria afirmar que não se trata de livro de autoajuda, conto policial, livro de sociologia, obra paradidática e assim por diante. Por outro lado, na esteira do que os primeiros estudiosos já haviam afirmado, a propósito das obras anteriores da autora, esses mesmos leitores de Água viva são unânimes em reconhecer, aí, a qualidade poética do texto de Clarice, tornando já então possível saber o que a obra é, definição pela afirmativa: Água viva é prosa poética. Em suma, no que se refere à questão do gênero literário, Água viva se caracteriza pela mescla ou pela hibridez. Hibridez de gêneros, porém, não significa negação desses gêneros, mas, ao contrário, o reconhecimento de sua presença. Assinalar o que Água viva não é (mas um “não é” que está longe de ser arbitrário) equivale a afirmar o que a obra é: um pouco disso tudo. O que temos aí são fragmentos ou esboços de um possível romance, que logo transitam para esboços de um diário íntimo, que por sua vez se metamorfoseiam em retalhos de ensaio, e assim por diante. Mas, acima de tudo, esses fragmentos ou esboços do que poderia vir a ser ensaio, diário íntimo ou romance são amalgamados pelo jorro constante, embora intermitente, da linguagem poética. A voz que nos fala em Água viva (embora fale, mais propriamente, o tempo todo, consigo mesma) parece viver o tédio antecipado de ter criado mais um romance, vale dizer mais uma narrativa ficcional, em que seres humanos se destroem na busca desesperada e inútil de um sentido para a existência, e, mal iniciada a tarefa, desiste. Ato contínuo, ela ameaça enveredar pela reflexão ensaística, onde esse tema – o da falta de sentido – seria abordado em si, em nível de abstração generalizadora, e não como dimensão a ser extraída da trama de conflitos e do enredo do seu, já agora, não-romance. Mal encetado, esse propósito cede lugar a outra reflexão, paralela, a matriz de onde tudo brota e para onde tudo converge: a palavra, o dom de nomear, a


criação literária, em si. Mas este outro ensaio, extensão do anterior, também não é levado adiante: a escritora se satisfaz em ir largando pelo caminho uns fragmentos de sua visão epifânica, aqueles momentos de iluminação interior em que a essência de todas as coisas se revela como o indizível, o intraduzível, o inapreensível – esse não-lugar, metafísico, de que ela só pode oferecer umas metáforas, umas alusões sensoriais, uma visão.... poética. Visão poética, sem dúvida, mas isso ainda não é, nem almeja ser, poesia – como nesta passagem, só um exemplo entre muitos:

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Acho que nunca verei – mas admito o escuro onde fulgem os dois olhos escuros da pantera macia. A escuridão é o meu caldo de cultura. A escuridão feérica. Vou te falando e me arriscando à desconexão: sou subterraneamente inatingível pelo meu conhecimento (Lispector: 1973, 33).

Mais do que apontar para a questão do “gênero”, porém, a radical hibridez que alimenta o processo (poderíamos falar em ubiquidade ou bipolaridade) aponta para a substância essencial de que Água viva é formada: a ideia de caos, ideia que leva a escritora a buscar, incessantemente, da primeira à última página do livro, aquilo que se situa “atrás do pensamento”, ou seja, o caos original, a matéria de vida plena ou a “água viva” que a tudo engloba e de onde tudo provém. Isso permite retomar a analogia com o relato bíblico. Ao ser informada de que “no início era o Verbo”, Clarice Lispector, como todo criador autêntico, se rebela e contrapõe: esse é um falso início; o verdadeiro início se localiza no instante imediatamente anterior, esse “instante-já”, pleno e absoluto, em que tudo existe, em si, mas não ainda sob formas diferenciadas. Ao determinar que “no início era o Verbo”, o relato bíblico sugere que este é o único “início” com o qual ao ser humano é concedido lidar; o momento anterior é vedado ao homem, pois pertence a outra esfera, a esfera divina. A partir do Verbo, o que há já pode ser relatado, como história que é, confiada ao homem; antes, o que supostamente houvesse é mito, ao qual o homem não tem acesso, a não ser por vias sobrenaturais, ou mágicas. Ou através da poesia. O Livro do Gênesis afiança que o Criador nomeia, isto é, dá existência à Luz, às Trevas, ao Sol, às Águas etc., e em seguida, depois de criá-lo, concede ao Homem o mesmo poder de nomear, ou de dar existência, para que este se assenhoreie do Mundo, desse ponto em diante. Mas Clarice prefere lidar exatamente com aquele momento pleno, o caos anterior ao Verbo, anterior à criação, anterior aos sentidos diferencidos que as palavras atribuem aos seres, no instante da criação. Por isso ela desiste de criar mais um romance, como também desiste de se aventurar no ensaio, essa modalidade de criação racional, pouco afim de sua vocação mais genuína. Com a poesia, sim, a afinidade já é maior, mas mesmo assim ela prefere deter-se no âmago essencial de onde tudo isso pode emergir: a potencialidade ilimitada, o caos de origem, o ovo primordial. Mas como, enquanto escritora, ela só dispõe das palavras, isso condena in limine à hibridez irremediável, ou à ubiquidade indesejada, todas as suas tentativas de

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criar o incriável, de nomear o impronunciável. Clarice reconhece: “Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer”; e acrescenta, páginas adiante: “Eu, que quero a coisa mais primeira porque é fonte de geração; eu que ambiciono beber água da nascente da fonte; eu, que sou tudo isso, devo por sina e trágico destino só conhecer e experimentar os ecos de mim, porque não capto o mim propriamente dito” (Lispector: 1973, 12, 20). Cada página de Água viva participa simultaneamente do caos original de que proveio e da ordenação imposta pelas palavras; cada página participa daquela fonte inesgotável, que se situa “atrás do pensamento”, mas participa também do pensamento que a constitui em palavras. Escrever, para a autora, é a tentativa de apreender o caos de origem, na sua plenitude, o Ser ontologicamente fundado em si mesmo, mas o que daí resulta, isto é, a escrita (formas definidas, palavras criteriosamente ordenadas) só consegue fornecer uma imagem aproximada, uma parcial representação metafórica. Hibridez, ubiquidade ou bipolaridade – isto é, a coexistência entre o caótico da origem e a ordenação de superfície – é uma qualidade que avulta com nitidez, ao longo de todo o texto de Água viva. Por isso não é de surpreender que o difuso, o informe, o mutilado, o fragmentário; a sugestão de uma espécie de magma de sensações vazias de sentido (ou, o que dá no mesmo, prenhes de todos os sentidos possíveis), a imagem do caos original, em suma, possa coexistir, ali no texto, com seu contrário: uma linguagem sempre meridianamente clara, sempre construída, embora sob protesto, com impecável disciplina linguística. Nenhum neologismo, nada de elipses, nada de trucagens, mas respeito à morfologia e à morfo-semântica e estrita obediência às normas lógico-sintáticas: orações e períodos plenos, solidamente articulados. Quase seria desnecessário dizer (não fosse a insistência com que muitos leitores de Água viva imaginam ver aí o contrário): nem tudo, em Água viva, é caótico. Os atributos epifânicos, acima lembrados, de fato se aplicam àquela infusão de vida plena, que se esconde “atrás do pensamento” e que a escritora sabe que não tem como apreender, embora insista em fazê-lo (só o que lhe é concedido é registrar uns “ecos”, umas reverberações), mas não assim com o polo da superfície, o da expressão em palavras – primeiro porque a escritora não dispõe de outros recursos; segundo, porque se o caótico chegasse ao texto este seria ininteligível. A ideia de que tudo, aí, possa ser caótico resulta em mutilar a obra, eliminando dela a hibridez que a constitui, para colocar em seu lugar uma homogeneidade, uma coerência interna, uma congruência, uma autoidentidade plena que a obra efetivamente não tem nem espera ter. Se a narradora de Água viva realizasse o que pretende, isto é, se entrasse na posse do caos de origem, vale dizer o indevassável mito cosmogônico, não haveria por que nem o que criar. E disso – criar – Clarice não abre mão, ainda que a decisão a condene a mergulhar no impasse angustiante da hibridez. Sabemos que Água viva passou por três versões (primeiro chamouse Atrás do pensamento: monólogo com a vida; depois Objecto gritante), obcecadamente revistas e refeitas, ao longo de três anos, e que o “roteiro” da autora, anotado a lápis, no verso da capa da segunda versão, incluía explicitamente “ler


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cortando o que não serve”. Em seguida ao roteiro, ela registra: “escreverei tudo o que me vier à mente, com o menor policiamento possível” (apud Franceschini: 2009, 45), retomando, quase literalmente, a definição dada pelo próprio Breton a um dos seus mais caros ideais, o da “escrita automática” (Breton: 1963, 33-35), embora a escrita lispectoriana de “automática” não tenha nada. Mais de um leitor, porém, caiu no engodo de julgar que o desejado “automatismo” pudesse ser tomado ao pé da letra e fosse aplicável a Água viva. “O menor policiamento possível”, como diz Clarice, significa que algum policiamento sempre haverá; “tudo o que me vier à mente”, afirma a autora, claro que sim, mas depois ela cortará “o que não serve”; e a “mente”, no caso, a julgar pela performance estilística de Água viva, é uma mente lúcida e disciplinada, vale dizer autopoliciada. Chamar de “automática” a essa escrita, portanto, é uma distorção, que deve ser atribuída ao indisfarçável cartesianismo com que Breton formulou sua doutrina. É muito forte, no estágio final da obra de Clarice Lispector, sobretudo em Água viva, o desejo de transgressão, mas é só um desejo, não é uma realização textual plena. O fato é que “escrita automática” não chega a ser um conceito operacional; é apenas a indicação de um “método”, expresso por meio de uma hipérbole, a traduzir a intenção de conceder o máximo possível de liberdade à imaginação. Tal método só se converteria em “automatismo” se essa liberdade fosse absoluta, mas não é: a liberdade do escritor tem por limite, intransponível, a própria língua. Se esse limite fosse rompido, não teríamos mais “escrita”, mas umas letras soltas, talvez, um amontoado de garranchos indecifráveis. E Clarice não chega sequer perto disso. Ela poderia ter optado, quem sabe, pelo fluxo de consciência, pelo processo de enumeração caótica, pelo expediente da “palavra em liberdade”, pelo estilo “telegráfico” ou pelo simultaneísmo, que poetas e prosadores vinham pondo em prática, desde as primeiras décadas do século xx. Mas sua “escrita” não vai por esse rumo, revelando, ao contrário, um forte senso de ordem e disciplina, aspiração à clareza e respeito à língua como sistema. Mesmo que fosse por aí, isso não traria como resultado o “caos”, esse caos que é símbolo de vida plena, mas apenas uma caricatura, formada não daquilo que é, em sentido ontológico, mas da sucata daquilo que deixou de (ou se recusou a) ser. É justamente o respeito aos limites da língua que permite preservar a hibridez estruturante da obra. A falsa escrita “automática” é só um truque retórico, brilhantemente utilizado por Clarice para seduzir (e calar) o leitor, a quem ela pede que pare de raciocinar: “Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é terrivelmente difícil – que me acompanhe” (Lispector: 1973, 37). Pois é. O leitor que pare de raciocinar, para que ela, livre dos obstáculos... racionais, continue a fazê-lo, embora contra a vontade. E isto remete ao papel do leitor em Água viva. Embora não se reduza, evidentemente, a isso, Água viva é ou começa por ser uma carta endereçada a um destinatário, um destinatário caracterizado de modo negativo, pejorativo: é alguém que “tem o hábito de querer saber por que”. Na página seguinte, a escritora diz: “tenho que te escrever

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porque tua seara é a das palavras discursivas” (Lispector: 1973, 11, 12). Ora, isso coloca tal destinatário em franca oposição à remetente, que afirma estar mergulhada não nas “palavras discursivas”, mas na fonte da “água viva”, muito além, portanto, ou muito aquém dessa coisa menor que é a preocupação com os porquês e com a discursividade. A voz que narra se dirige, assim, a alguém que lhe opõe resistência, alguém que desconfia e duvida, alguém que não sabe das coisas e (pressupõe a remetente) nunca chegará a saber, por mais que esta se esforce. Se esse “tu” fosse de fato um “outro”, a remetente não perderia tempo interpelando-o com tanta insistência; esse “tu”, na verdade, é só um alter-ego, é uma dimensão (indesejada, mas inarredável) do eu que narra: “Escrevo-te porque não me entendo” (Lispector: 1973, 33). Antes de admitir que alguém de fora possa lhe questionar as verdades, essa voz se incumbe, ela própria, de fazê-lo. Temos aí a mesma tensão, o mesmo impasse da hibridez, força-motriz da obra. Mas isso ainda não dá por encerrado o capítulo do caráter dialogal de Água viva. Além do destinatário da carta, a obra conta ainda com um segundo interlocutor, esse quase-intruso que se intromete entre a remetente e seu destinatário, ora latente, ora diretamente interpelado: o leitor em geral. Quaseintruso pois trata-se, na verdade, do “leitor como criação do escritor” (Lins: 1969, 185-187), a quem a missivista implora que pare de raciocinar, dádiva esta – parar de raciocinar – que ela não espera do destinatário, vale dizer não espera de si mesma. É o que ela almeja, mas sabe, com muita dor, que é uma impossibilidade. De seu primeiro interlocutor, ela não espera senão oposição, resistência, distanciamento, questionamento, dúvida metódica – racionalismo, em suma. Mas exatamente por isso, e exatamente porque esses atributos fazem parte inalienável dela mesma, ela insiste em convencê-lo, em fazer-lhe a cabeça. Do segundo, ela espera cumplicidade irrestrita, um pacto de adesão plena: “Preciso depressa de tua empatia. Sinta comigo” (Lispector: 1973, 105). Ela espera que o leitor endosse, experimente e viva intensamente a plenitude do “instante-já”, que ela pretende aprisionar em palavras. São duas atitudes, portanto, duas reações distintas, em face da “água viva” ou do “caos” metaforizado no texto – duas reações que, independentemente das escolhas do leitor, estão ali, objetivamente formuladas, no bojo de Água viva. É raro o leitor minimamente sensível que resista ao apelo – esse ardil lançado pela escritora –, seduzido talvez pela possibilidade de, empatizando com a obra, tomar para si a perspectiva da “verdadeira vida”, aí figurada. A “verdadeira vida”... Isto nos remete a Rimbaud, o poeta maldito, com quem a autora de Água viva tem tanta afinidade. Rimbaud é o primeiro a falar em “desregramento de todos os sentidos”, único caminho capaz de levar à “verdadeira vida” (Rimbaud: 1984, 202), quando então, como quer Lautréamont, “a poesia será feita por todos” (Lautréamont: 1963, 125) – e “feita por todos” significa poesia a ser vivida e não mais escrita, como sonha a utopia endossada pelos surrealistas. É que todos acreditam, com os grandes visionários do início do século xix, como Hölderlin, Blake, Novalis, pioneiros dessa vertente da literatu-


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ra moderna, que “a poesia é o autêntico real absoluto, quanto mais poético mais verdadeiro, só poeticamente é possível viver” (Novalis: 1998, 77). Sonho antigo, portanto, que remonta à morte dos deuses, visionada por Hölderlin, e à consequente imagem de um mundo esvaziado de sentido; passa pelo irracionalismo e pela rebeldia do pensamento nietzscheano; e vem desembocar, no início do século xx, no pessimismo de um Oswald Spengler (A decadência do ocidente) e na revisão de toda a metafísica ocidental, como a empreendida por Heidegger, que vai buscar em poetas como Hölderlin a idéia-chave de que “a palavra é a morada do Ser” – a palavra que é, ao mesmo tempo, “a mais inocente e a mais perigosa das dádivas”, no dizer do poeta (Heidegger: 1958, 39). Esse circuito, sumariamente esquematizado, parece representar a linhagem espiritual em que Água viva se inscreve – um pouco à margem, como se vê, da tradição dominante em nossa literatura. Mais um motivo para encarecer a originalidade da obra de Clarice Lispector. Mas, voltando àquelas duas atitudes ou reações (a da adesão plena às intenções da escritora, que leva a enxergar o caos em tudo, e a do distanciamento crítico, que leva a reconhecer e preservar a hibridez da obra), nada garante que a primeira seja mais fiel ou mais verdadeira que a segunda, já que ambas são, igualmente, partes integrantes da visão de mundo consubstanciada em Água viva. A segunda atitude, essa que consiste em questionar, duvidar, buscar respostas, e sobretudo em acatar, embora sob protesto, um mínimo de ordem e inteligibilidade, não provém de nenhum estranho olhar de fora, é uma atitude que brota de dentro da voz que narra, embora esta faça o possível para (aparentar) repudiá-la. Água viva é, claramente, o resultado de uma evolução que parte de Perto do coração selvagem, e segue inexoravelmente o caminho que vai da ficção para a não-ficção. O título do livro de estréia é premonitório: Clarice sabe, desde o início, que estará sempre “perto do coração selvagem”, e sabe também que “perto” ainda não é lá. Ao longo da trajetória, essa distância vai aos poucos diminuindo, na mesma medida em que, a partir de certa altura, a autora elimina a distância entre a narração em terceira pessoa e os protagonistas da ação por ela engendrada. Em Água viva, como em A paixão segundo G.H., o foco narrativo migra para o interior da personagem e Clarice, de fato, chega pertíssimo do “coração selvagem”, mas não se deixa iludir: ela continua a saber que muito perto ainda é longe. Referências Breton, André. Manifestes du surréalisme. Paris, Gallimard, 1963. Franceschini, Marcele Aires. O Kháos como instrumento literário em Água viva. Tese de doutoramento, policopiada. Universidade de São Paulo, 2009. Heidegger, Martin. Hölderlin y la esencia de la poesía. In Arte y poesía. Trad. mex. de José Gaos. México, Fondo de Cultura Económica, 1958. Lautréamont. Oeuvres completes d’Isidore Ducasse. Paris, Le Livre de Poche, 1963. Lins, Osman. Guerra sem testemunhas. São Paulo, Martins, 1969.

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Lispector, Clarice. Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro, A Noite, 1944. ______. A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, Editora do Autor, 1964. ______. Água viva. Rio de Janeiro, Artenova, 1973. Moisés, Carlos Felipe. Clarice Lispector: ficção em crise. In Literatura, para quê? Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996. Novalis, Friedrich. Os hinos à noite. Trad. port. de Fiama Hasse Pais Brandão. Lisboa, Assirio & Alvim, 1998. Rimbaud, Jean-Arthur. Poésies. Paris, Librairie Générale Française, 1984.

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Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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O ANTIGO E O NOVO NO TEATRO DE FEDERICO GARCÍA LORCA THE OLD AND THE NEW IN FERICO GARCIA LORCA'S PLAY

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Ester Abreu Vieira de Oliveira

Resumo: Visamos apresentar um aspecto do universo dramático de Federico García Lorca com a obra Así Que Pasen Cinco Años com a finalidade de mostrar, por meio dela, temas constantes deste dramaturgo e características estruturais que proporcionam a este escritor avançar a sua época na construção de um teatro de dimensão polivalente e experimental. Palavras chave: Teatro. Federico García Lorca. As Soon as Five Years Come to an End. Abstract: We intend to present an aspect of the dramatic universe of Frederico Garcia Lorca, with his work, Asi Que Pasen Cinco Anos, (As Soon as Five Years Come to an End). Our purpose is to show, through it, the constant themes of this drama writer, and the structural characteristics that will provide this writer to advance hir epoch in the construction of a play with the prevalent and experimental dimensions. Key words: Federico García Lorca. As Soon as Five Years Come to an End.

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O teatro é a projeção, para o palco, do mundo interior Ionesco

Federico García Lorca nasceu em Fuentevaqueros (Granada) no dia 05 de junho de 1898 e morreu assassinado em 19 de agosto de 1936, em Granada. Segundo seus biógrafos e amigos, era alegre, inquieto, cheio de vida. Foi músico, conferencista, recitador, diretor de teatro, desenhista, poeta e dramaturgo de qualidades excepcionais. Sua obra literária, profundamente ligada à cultura espanhola, possui tão excepcionais qualidades que, depois de sua morte, teve uma grande difusão universal. A situação básica que estrutura a obra poética e dramática lorquiana é o conflito entre o princípio de autoridade e o princípio da liberdade. De um lado, um princípio representa a autoridade, a repressão, a realidade, a ordem, a tradição, a coletividade e o interdito, e do outro, a liberdade, a transgressão, o instinto, o desejo, a imaginação, símbolos de Apolo e Dioniso. Para representá-los, García Lorca se apropriará de símbolos: sapatos de vernis, bodas, lua, faca, ovelha, cavalo, touro, sangue etc., de mitos gregos, de motivos judaicos e árabes (da Bíblia e do Alcorão), de elementos folclóricos, de marginalizados sociais, e de outros mais variados motivos. O teatro de Lorca, de temática reduzida e de rica qualidade, com temas constantes como o do amor impossível, o do amor frustrado, o do desejo impossível, o da oposição do desejo e o da realidade, enriquecidos em cada obra, tem a função primordial de mostrar a natureza humana desnuda das máscaras que a vida adota. O tema central, pode-se dizer, é o da frustração, operado com diversos matizes. O erotismo está presente em todas as obras lorquianas. Por isso os dois pólos fundamentais de sua estrutura dramática são Eros (impulso de vida) e Thanatos (o impulso de morte). Seus personagens enfrentam constantes conflitos com a presença dos motivos do amor e da morte, segundo ele, numa entrevista em 1934, com José R. Luna (1980, p. 1060) “a morte é a dominadora, a imóvel, a inútil e com sapatos novos, para estrear”. O tema da morte é resultado de um grande amor à vida. Para Lorca a morte é injusta, é um castigo, pois corta a vida exuberante. Ela gela o coração do indivíduo. É uma força destruidora, pois violenta uma vida que deveria continuar. Ela une os mitos de Crono e Thanatos, porque um é agente do outro. Procuraremos apresentar a obra Así Que Pasen Cinco Años (1931) com a finalidade de mostrar, por meio dela, temas constantes deste dramaturgo e características estruturais que o proporcionam sintetizar as tendências tradicionais da literatura espanhola e estrangeira com as mais avançadas tendências vanguardistas e avançar a sua época na construção de um teatro de

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No puede haber teatro sin ambiente poético, sin invención García Lorca


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dimensão polivalente e experimental. Así Que Pasen Cinco Años foi terminada em 1931. Em 1936, houve uma tentativa de representá-la no Club Anfistora, mas os acontecimentos políticos frustraram a encenação. Em 1938, foi publicada nas Obras Completas de Federico García Lorca, pela Editorial Losada de Buenos Aires. Em 1945, foi representada em inglês em Pnarirestown Flayhouse de Nova York, em 1954, na Universidade de Porto Rico e em 1956, na televisão do México. Em 1978, foi estreada em Madrid, no teatro Eslaba. O título, Así Que Pasen Cinco Años, e o subtítulo, “Leyenda del tiempo en tres actos y cinco cuadros”, são reveladores dos temas básicos da peça: o tempo e o seu contínuo fluir, que leva à morte. Em Así Que Pasen Cinco Años, em torno do tema núcleo, o do tempo, que se faz mais nítido nas relações entre os personagens o Jovem e o Velho, em volta do qual os diálogos giram, apresentam-se subtemas planetários como o da sabedoria e compreensão dos mais velhos, o do devaneio e ilusão, o da vulnerabilidade da ilusão, o da noiva mais jovem, o da lembrança o da longa viagem, o da espera, o dos sonhos e desejos da mulher em casarse, o da infidelidade, o do amor não correspondido, o da amizade, o da chuva, o da alegria de viver, o do desamparo e insignificância dos homens, o da infância, o da paixão, o do medo da morte, o da mão de Deus, o do vestido de noiva não usado, o do sapato de vernis, o do jogo, o da impotência, o do desejo de fecundação e o do assassinato. Os personagens de Así Que Pasen Cinco Años são: Joven, Viejo, Mecanógrafa, Amigo, Juan (o Criado), Niño, Gato, Criado, Amigo 2º., Novia, Jugador de Rugby, Criada, Padre, Manequí, Arlequín, Muchacha, Payaso, Máscara, Jugador 1º., Jugador 2º., Jugador 3º. e Eco. Em volta deles podemos fazer a articulação de uma poética de texto e de uma poética de representação. Eles garantem a polissemia textual e a verticalidade de seu funcionamento. São seres imprecisos, faltam-lhes características psicológicas, porque eles são realidades dramáticas de uma idéia. São sonhos do Jovem. São elementos poéticos e reais. Segundo Lorca, no teatro, os personagens devem aparecer em cena com un traje de poesía y al mismo tiempo que les vean los huesos, la sangre, han de ser humanos, tan horrorosamente trágicos y ligados a la vida y al día con una fuerza tal, que muestren sus traiciones, que se aprecien sus olores y que salga a los labios toda la valentía de sus palabras llenas de amor o de ascos. (1980, p. 1087)

Para definir a idéia ou símbolo que cada personagem indica, Lorca usa nomes comuns para nominalizá-los. Esta forma de apresentar a verdade, falada sob forma de parábola, para indicar um ser real, foi usada no teatro medieval, nos Mistérios e Moralidades, e no teatro barroco, nos Autos Sacramentais, cujo representante maior, nessa modalidade de teatro, foi Calderón de La Barca.

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No puede haber teatro sin ambiente poético, sin invención… Fantasía hay en el sainete más pequeño de don Carlos Arniches… La obra de éxito perdurable ha sido la de un poeta, y hay mil obras escritas en versos muy bien escritos que están amortajadas en sus fosas. (1980, p. 1087)

O Niño de roupa branca, cara de cera e lábios e olhos de “lirio seco”, símbolo de pureza e de funeral, traz em si os temas da solidão, do horror à morte e do pavor de ser enterrado. Uma mão, que aparece e empurra a Gata, é símbolo da poderosa mão de Deus que na Bíblia significa castigo e libertação. A significação de quem possui a mão nos dá o Niño, quando a Gata é arrastada:

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Os personagens lorquianos são arquétipos de pessoa. Em Así Que Pasen Cinco Años, eles são modelos de um jovem, de um velho, de um amigo, etc. e como tal se comportarão. A definição do personagem central é claramente mostrada: um jovem inexperiente, com todos os atributos da juventude, se enfrentará com um ancião, o Viejo, representante do tempo que escoa, no seu físico (barba branca e enormes óculos de ouro) e no que diz: “¿No le angustia la hora de la partida, los acontecimientos, lo que ha de llegar ahora mismo...?” (1980, p. 366) [...] “Todavía cambian más las cosas que tenemos delante de los ojos que las que viven sin distancia debajo de la frente. El agua que viene por el río es completamente distinta de la que se va. […]” (1980, p. 369). O Joven levou cinco anos para casar-se, fez-se surdo ao amor que lhe professava La Mecanógrafa (a datilógrafa), preencheu o período de espera com ilusões, mas foi abandonado pela Novia que preferiu o Jogador de Rugby a ele. Como desejava um filho, voltou-se para a Mecanógrafa que lhe pediu um prazo de cinco anos. No final, a obra mostra que a frustração, no desejo de ter um filho, na relação amorosa e na vida em si do jovem, não é mais que um Eco. O Joven é, propriamente, o único personagem. Nele coexistem o erotismo e a repressão, a fecundidade e a impotência, a ilusão e a frustração. Os demais personagens são partes do Joven, são seu duplo, representantes do homem com a sua carga de realidade e sonhos, repressão e expansão do erotismo, filosofia e saber, infantilidade e ignorância. O 1º Amigo representa o lado material, o “real”. O 2º Amigo representa o devaneio, o Viejo, a frustração e a decrepitude. A Novia e a Mecanógrafa são as fantasias do Jovem. Os personagens Mecanógrafa, Niño e Gato servem para acentuar a dor e a agonia inevitáveis da vida sobre as coisas que passam e chegam a seu fim. Quando, no primeiro ato, o Niño e o Gato aparecem, mudam a forma, para uma linguagem poética, e a cor do cenário, para uma luminosidade azulada, enquanto o Amigo, o Viejo e o Joven se ocultam atrás de um biombo negro bordado de estrelas. Lorca supervalorizava o teatro poético, mas não o em verso, que nem sempre quer dizer poético e nem aproxima o público, porque


Se hundió. Le ha cogido una mano. Debe ser la de Dios. No me entierres. Espera unos minutos... Muy poco, con un rayo me contento. Mientras deshojo esta flor. Yo iré solo, muy despacio, después Sí, no, sí, no, sí. (1980, p. 386)

O Niño traz o Gato azul puxado pelos pés. O animal reclama da dor das feridas que as crianças lhe fizeram com dez pedradas: “me duelen las heridas/ que los niños hicieron en la espalda”. Ele diz ser uma gata com voz de prata, que caminhava à noite pelo bosque, sozinha. O Niño a descreve com “[...] manchas de cera, rosa blanca, / ojo de luna rota, me pareces/ gacela entre los vidrios desmayada”. O Gato(a) é símbolo de liberdade, de prazer: ¡Jugar! Iba por el tejado, gata chata, varicillas de hojadelata, en la mañana iba a recoger los peces por el agua y al mediodía bajo el rosal del muro me dormía (1980, p. 381)

E o Niño, com a cara pintada de cera, realçando os olhos e os lábios, vestido com roupa branca de primeira comunhão e com uma coroa de rosas brancas na cabeça, representa, em seu diálogo com a Gata, a angústia da morte e os jogos e as recordações felizes da infância:

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NIÑO Pues yo sentía surtidores y abejas por la sal. Me ataron las dos manos. ¡Muy mal hecho! Los niños por los vidrios me miraban. y un hombre con martillo iba clavando estrellas de papel sobre mi caja. […] NIÑO Yo también iba, [ jugar] ¡ay!, gata chata, barata, varicillas de hojadelata, a comer zarzamoras y manzanas y después a la iglesia con los niños a jugar a la cabra GATA ¿Qué es la cabra?

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NIÑO Era mamar los clavos de la puerta. GATA ¿Y eran buenos? NIÑO ¡No, gata! Como chupar monedas. ¡Ay! ¡Espera! ¿No vienen? Tengo miedo, ¿sabes? Me escapé de casa. Yo no quiero que me entierren. Agremanes y vidrios adornan mi caja; pero es mejor que me duerma entre juncos del agua. Yo no quiero que me entierren ¡Vamos pronto! GATA ¿Y nos van a enterrar? ¿Cuándo? NIÑO Mañana, en unos hoyos oscuros. Todos lloran. Todos callan pero se van. Yo lo vi. y luego ¿sabes? GATA ¿Qué pasa? NIÑO Vienen a comernos. GATA NIÑO El lagarto y la lagarta, con sus hijitos pequeños, que son muchos. GATA ¿Y qué nos comen? NIÑO la cara con los dedos y la cucas. […] (1980, p. 382-383)

No segundo ato, no quarto da Novia, aparece, soluçando, o personagem Manequí, com a cara cinzenta e as sobrancelhas e os lábios e dourados, numa cena teatralizante. O Manequí é uma figura andrógina. Ele entra vestido de noiva, num cenário com a luz azul e com os raios do luar penetrando pelas janelas da sacada, o que marca uma atmosfera mágica. Sua presença aponta para um

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¿Quién?


momento importante da obra, quando se estabelecerá um diálogo lírico entre ele e o Joven. Num lamento pelo filho que não chegou ele canta a sua dor: “[...] muerte que no tuve nunca/ dolor de velo sin uso/ con llanto de seda y pluma [...]” (1980, p. 416). Este personagem é símbolo da frustração de paternidade do Joven e de todos os desejos e frustrações da Novia. Ele começa a sua fala fazendo quatro perguntas para expressar uma busca infrutífera: “¿Quién usará la plata buena/ de la novia chiquita y morena? [...]¿Quién se pondrá mi traje? ¿Quién se lo pondrá? [...]¿ Quién usará la ropa buena/ de la novia chiquita y morena?” O diálogo entre ele e o Joven tem a função de coro, serve também como distanciamento, recurso muito utilizado no Teatro do Absurdo. Ele fará o primeiro lamento dramático lorquiano por um filho que não nasceu, pois o segundo é Yerma: MANEQUÍ Un trajecito que robé de la costura. las fuentes de leche blanca mojan mis sedas de angustia y un dolor blanco de abeja cubre de rayos mi nuca. Mi hijo. Quiero a mi hijo. Por mi falda lo dibujan estas cintas que me estallan de alegría en la cintura. Y es tu hijo. JOVEN

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Sí mi hijo donde llegan y se juntan pájaros de sueño loco y jazmines de cordura.(1980, p 419 )

e, como Yerma, de Bodas de sangre, que culpa seu marido Juan pela falta de maternidade, o Manequín culpa a falta de força erótica do Novio, a sua falta de aproximação e a longa espera: MANEQUÍ […]Tú tienes la culpa. Pudiste ser para mí potro de plomo y espuma, el aire roto en el freno y el mar atado en la grupa. Pudiste ser un relincho y eres dormida laguna, con hojas secas y musgo donde este traje se pudra. Mi anillo, señor, mi anillo de oro viejo. [...]

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MANEQUÍ Te espera siempre, ¿recuerdas? Estaba en tu casa oculta. Ella te amaba y se fue. Tu niño canta en su cuna y como es niño de nieve espera la sangre tuya. Corre a buscarla de prisa y entrégamela desnuda para que mis sedas puedan, hilo a hilo y una a una, abrir la rosa que cubre su vientre de carne rubia. O Manequí se irrita com a possibilidade de continuar virgem, sugerida pelo noivo: MANEQUÍ Mi cola se pierde por el mar. JOVEN Y la luna llevará en vilo tu corona de azahar.

O vestido de noiva é símbolo da total frustração de fertilidade. Ele é o que não pôde levar no seu interior a semente do filho. Ele é a denúncia de quem poderia ter feito um filho e não o fez. O Manequí é também o símbolo da alma e da mentalidade primitiva. Sua atividade é mágica. Sua mensagem é de frustração erótica (“potro de plomo y espuma”, “Pudiste ser un relincho/ y eres dormida laguna”), a imagem de fertilidade (“espuma”, “anillo de oro viejo”. “la rosa que cubre/su vientre de carne rubia”) e de morte: “Yo canto/ muerte que no tuve nunca/dolor de velo sin uso/con llanto de seda y pluma/ ropa interior que se queda/ helada de nieve oscura/ sin que los encajes puedan/competir con las espumas”. O primeiro ato se inicia com o Joven e o Viejo sentados. Este está vestido de fraque cinzento e tem barba branca e enormes óculos de ouro. O Viejo é símbolo de sabedoria como uma resultante da experiência de vida, adquirida ao longo da existência. Ele procurará fazer com que o seu interlocutor escute a voz de sua própria experiência, para que o erro não se repita. Ele é o conselheiro, faz admoestações. Sua imagem representa o arquétipo do “velho sábio” e que nada mais é do que uma personificação do

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MANEQUÍ No quiero. Mis sedas tienen, hilo a hilo y una a una, ansia de calor de boca. Y mi camisa pregunta dónde están las manos tibias que oprimen en la cintura. (1980, p. 417, 420)


eixo ego-Si-mesmo. Ele é símbolo do princípio oculto do saber ancestral da humanidade, o inconsciente coletivo. Não parece estar colocado na peça com muita simpatia o seu conhecimento de todos os segredos, pois a sua presença lembra o fim de uma vida exuberante. Em uma entrevista, em 1934, com José R. Luna (1980, p. 1059-1060), Lorca fala de sua intolerância e inquietação para com os velhos:

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[...[ No sé qué decirlos.[...] me aterrorizan esos ojillos grises, lacrimosos, esos labios en continuo rictus, esas sonrisas paternales, ese afecto indeseado como puede serlo una cuerda que tira de nosotros hacia un abismo... Porque eso son los viejos. La cuerda, la ligazón que hay entre la vida joven y el abismo de la muerte.

O Viejo é a metáfora do tempo que passou. Ele é a aproximação à morte, logo a metonímia da morte e a união de Eros e Thanatos. Como representante do tempo, ele é o Cromo, o devorador de seus filhos, e, ainda, representa a fatalidade da vida. Assim ele diz ao Amigo 2º.: “Los trajes se rompen, las anclas se oxidan y vamos adelante. [...] Se hunden las casas [...] Se apagan los ojos y una hoz muy afilada siega los juncos de las orillas”. (1980, p. 392) No teatro lorquiano é recorrente a utilização de metonímia, sinédoque ou metáfora da realidade para a caracterização dos personagens. Dessa maneira o Jogador de Rugby é a fantasia idealizada da noiva, a paixão expressa por ela, uma jovem de 15 anos. Representa um homem cheio de vitalidade, viril e enérgico. É símbolo de masculinidade e erotismo. Aparece, no segundo ato, no quarto da Noiva pela varanda. Sempre sem falar. Usa uniforme de jogador e fuma, jogando a fumaça na cara da Noiva. Ele é o adversário do Jovem e serve à Noiva de elemento comparativo da falta de erotismo do Noivo. A Noiva o associa a cavalo ou a dragão, por causa de sua força vital. A técnica de metamorfose de personagens é usada, também, nessa obra, em outras situações. AMIGO 2º Hoy me has besado de una manera distinta. Siempre cambias, amor mío. Ayer no te vi, ¿sabes? Pero estuve viendo al caballo. Era hermoso. Blanco y con los cascos dorados entre el heno de los pesebres. (SE SIENTA EN UN SOFÁ QUE HAY AL PIE DE LA CAMA.) Pero tú eres más hermoso. Porque eres como un dragón. (LE ABRAZA.) Creo que me vas a quebrar entre tus brazos, porque soy débil, porque soy pequeña, porque soy como la escarcha, porque soy como una diminuta guitarra quemada por el sol, y no me quiebras.

A imagem mítica do dragão é de força e sua ação é de expelir fogo pela boca. Constitui uma prova de coragem combatê-lo, pois é símbolo do monstruoso e demoníaco, do inimigo primordial. Ele é símbolo fálico e se assemelha ao raio, à chuva e à fecundidade. A fumaça do cigarro, que joga o Jogador de Rugby, se parece com o fogo que lança esse monstruoso ser

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imaginário e é um dos pontos que os identificam, tornando o Jogador de Rugby, a tentação, a metáfora da fecundidade, e o oponente do infértil Jovem, que prolonga o tempo de bodas por mais cinco anos. A Novia o compara com o Joven: “[...] ¡Qué ascua blanca, qué fuego de marfil derraman tus dientes! Mi novio tenía los dientes helados; me besaba, y sus labios se le cubrían de pequeñas hojas marchitas, eran como labios secos […]”. (1980, p. 397) A Criada é um personagem presente nas obras dramáticas clássica da literatura espanhola. Ela participa de quase todos os diálogos com a Novia. Ela é um esboço da criada de Bodas de Sangre e da Poncia de La Casa de Bernarda Alba. Sua função é anunciar: “[...] Su novio ha llegado”, ou informar: [está] “con su padre”; “y un señor con lentes de oro. Discuten mucho.”, ou comentar: “Es muy guapo su novio”, “Viene muy contento.”; “Traía este ramo de flores”, ou, ainda, conselheira: “¡Piense bien en lo que va a hacer! Recapacite. el mundo es grande. pero las personas somos pequeñas”. (1980, p. 398) O Padre chega para buscar a Novia: “¿Estás ya preparada?”. É um velho distraído, usa terno preto, óculos pendurados no pescoço e tem cabelos brancos. Representa os padrões tradicionais da família, o rigor da palavra prometida (“¡Tienes que cumplir tu compromiso!”) e reduzida visão do mundo, mostrada pelos óculos sem utilização, pendurados no pescoço, e pelo desejo de ver o eclipse, símbolo de passividade e de morte. Representa também o passar do tempo, as mudanças que ele traz, a desilusão pelo rompimento do noivado e a angústia de ver interrompida a esperança de ver a filha casada: “Viene a casarse contigo. Tu le has escrito durante cinco años que ha durado nuestro viaje. Tú no has bailado con nadie en los transatlánticos..., no te has interesado por nadie. ¿Qué cambio es este?” (1980, p. 406) . Os Amigos diferem no comportamento. O primeiro, extrovertido, entra alegre em cena, cantando, expressando o desejo de gozar a vida: “¡Cuánto silencio en esta casa! ¿Y para qué? Dame agua con anís y con hielo. O un cocktail”. Exuberante de vida, ele se abana com um leque vermelho, símbolo da sensualidade, um convite ao erotismo que está dormido no Joven, por isso lhe faz cócegas para que ele ria. Segura no Joven e lhe faz dar voltas, cantando “Tin, tin, tin/ la llamita de San Juan”. É um Don Juan e, como este, se vangloria de suas conquistas, descrevendo-as: “¡Ay! ¡Huy! Yo, en cambio… Ayer hice tres conquistas y como anteayer hice dos y hoy una, pues… resulta… que me quedo sin ninguna porque no tengo tiempo. Estuve con una muchacha… Ernestina. ¿La quieres conocer? [...]” (1980, p. 374). Ele sugere o amor sensual e se defende da fatalidade inexorável da finitude da vida, por isso bebe coquetéis como se eles fossem filtros mágicos que lhe dessem imortalidade, como um rito sagrado e social. Representa o instinto da aproximação à realidade, por isso ouve os ruídos dos trovões, enquanto o Joven, introvertido e sonhador, não quer escutar nada que lhe lembre o exterior: “No me importa lo que pase fuera. Esta casa es mía y aquí no entra nadie.” Os trovões trazem em si um caráter sagrado de magia e a chuva de realidade benfazeja. O segundo amigo aparece quando está terminando o segundo ato. Representa o devaneio e a realidade: “Bendita sea, cuando hay pan tostado,


aceite y sueño después. Mucho sueño. Que no se acabe nunca. [...]”. (1980, p. 90) Enquanto o Amigo 1º. vê a chuva e escuta os trovões como um fato real meteorológico, o Amigo 2º. vê na chuva alguma coisa de magia que lhe provoca rememorações. Ele a vê com o caráter purificante e fertilizante. Em suas gotas há mulheres muito pequenas estraçalhadas. AMIGO 2º. […] la lluvia es hermosa. En el colegio entraba por los patios y estrellaba por las paredes a unas mujeres desnudas, muy pequeñas, que lleva dentro, ¿No las habéis visto? Cuando yo tenía cinco años…, no, cuando yo tenía dos… miento, uno, un año tan solo. Es hermoso, ¿verdad?; un año cogí una de estas mujercillas de la lluvia y la tuve dos días en una pecera. (1980, p. 391) O Amigo 2º. entra em cena de sapatos brancos, palitó com botões azuis enormes e gravata de renda em cacho. Este personagem, como o Joven, teme o envelhecimento, a passagem do tempo. E diz ao Viejo: “¿Loco? porque no quiero estar lleno de arrugas y dolores como usted. Porque quiero vivir lo mío y me lo quitan. Yo no lo conozco a usted. Yo no quiero ver gente como usted”. (1980, p. 381)

Ele se lembra de quando criança, vestido com uma roupa de marinheiro. Sua característica de fugir da realidade é demonstrada pela quinésia das mãos na cara e pelo olhar insistente no espelho:

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[...] Yo era tierno y cantaba, y ahora hay un hombre, un señor […] que anda dentro de mí con dos o tres caretas preparadas […] pero todavía no, todavía me veo subido en los cerezos…con aquel traje gris… Un traje gris que tenía unas anclas de plata… ¡Dios mío! […] (1980, p. 392)

A Mecanógrafa e a Novia são personificação da paixão. A Mecanógrafa aparece no primeiro ato e em todo o primeiro quadro do terceiro ato. No Primeiro ato, passa chorando quando o relógio bate as seis horas e, depois, manifesta seu desejo de ir embora da casa do Joven a quem ama, pois não quer esperar mais por ele já que o sonho dele é a Novia. No terceiro, dialoga com a Máscara o Viejo e o Joven. Surge com roupas esportivas de tênis e usa boina. Lembra de sua partida da casa do Joven e menciona a morte do filho da porteira e o dia com tormenta. Ela e a Muchacha buscam o amor e encontram a impossibilidade de realizar os seus sonhos. Quando a Mecanógrafa dialoga com a Máscara, fala dos cinco anos de espera pelo amado: “[...] Hace cinco años que me está esperando, pero... ¡ Qué hermoso es esperar con seguridad el momento de ser amada!” (1980, p. 433). Depois que deixam de atuar o Payaso, o Arlequín e a Máscara, a Mecanógrafa canta e mantém um diálogo lírico com o Joven. Este dueto tem a função de um coro. Falam de amor e há ecos de Romeu e Julieta de Shakespeare e dos Cantares de Salomão. No canto, o estribillo reforça a idéia da impotência de amar do Joven: “¿Dónde vas, amor mío,/ amor mío,/ con el aire en un vaso/y el mar en un vidrio?” Neste diálogo lírico, enquanto o Joven busca, não mais o

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sonhos, mas a realidade do amor JOVEN Te he de llevar desnuda, flor ajada y cuerpo limpio, al sitio donde las sedas están temblando de frío. Sábanas blancas te aguardan. Vámonos pronto. Ahora mismo antes que las ramas giman ruiseñores amarillos. (1980, p. 437)

A Mecanógrafa deixa de atuar no presente como aconteceu no primeiro ato e, como o Joven, naquele ato, passa a sonhar com um amor no futuro: MECANÓGRAFA [...]¿Cómo si me abrazas, di, no nacen juncos y lirios, y no destiñen tus brazos el color de mi vestido? Amor, déjame en el monte harta de nube y rocío, para verte grande y triste cubrir un cielo dormido)

JOVEN Me parece que agonizo em ti. ¿Dónde voy si tú me dejas? No recuerdo nada. la otra no existe, pero tú sí, porque me quieres. MECANÓGRAFA ¡Te he querido, amor! Te querré siempre. (1980, p. 437-438, 441)

Os três jogadores do final do terceiro ato, segundo quadro, representam as Parcas que vão jogar o jogo da morte, por isso exigem o ás de copas. Porém o Jovem tenta prolongar a hora oferecendo bebidas, como um antídoto para evitar a morte. Mas o Jugador 1º. dispara, sem ruído, como uma flecha, no ás de copa (um coração), iluminado, que está na prateleira da biblioteca, dando fim à vida do Jovem. Os Jogadores cortam o fio da vida com grandes tesouras. O espaço de Así Que Pase Cinco Años é circular. O tema central da obra é o tempo que passa e a frustração amorosa de um jovem. O tempo e o seu fluir incessante aparecem nos “cinco anos” de espera, os quais podem

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[...] MECANÓGRAFA ¡Te he querido tanto! JOVEN ¡Te quiero tanto! MECANÓGRAFA ¡Te querré tanto!


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ter uma referência de duração no presente para o Jovem (“en estos cinco años”, dirá ele), uma referência de passado para o Padre (“durante los cinco años que ha durado nuestro viaje”, - esclarece ele) e uma referência de futuro para La Mecanógrafa (“Así que pasen cinco años”, ela determina). Há um tempo cronológico de cinco anos, indicado no título e na fala de personagens. Outro de seis horas marcadas pelo relógio que, no primeiro ato, bate as seis horas e, no último, toca as doze horas. A representação começa e termina na biblioteca, intermediando esse espaço estão o quarto da noiva e um bosque. A biblioteca aparece em quase todo o primeiro ato e no final do terceiro. Ela é símbolo do poder que afasta os espíritos malignos, tem um sentido esotérico. Ela é o lugar propício para o devaneio do Jovem, como foi o lugar ideal para o fidalgo Alonso Quijano, no QUIXOTE, sonhar com realizações de ações extraordinárias. Ela representa o acúmulo de conhecimentos herdados pelo indivíduo e por toda a coletividade. Se o livro é símbolo do universo, tema desenvolvido por Borges em prosa e verso, se o Livro da Vida, do Apocalipse, que se encontra no centro do Paraíso se identifica com a Árvore da Vida, onde está a totalidade dos decretos divinos, e se na biblioteca estão todos os livros possíveis, nela estão os conhecimentos infinitos do universo. Na biblioteca, o Jovem permanecerá das seis às doze horas, isto é durante todo o tempo da ação. O quarto da Noiva surge no segundo ato. Nele atuarão a Noiva, o Jovem, o Pai da Noiva, a criada e o Jogador de Rubby. Ele é o local onde a Noiva trai o Jovem e sugere requinte (no estilo rococó, espelhado nos móveis, adornos e cortinas cheias de pregas), fantasia (pintura nas paredes de nuvens e anjos), frivolidade e feminilidade (penteadeira com objetos da toalete feminina e penas sobre a cama) e erotismo (as portas das sacadas abertas por onde entra a luz da lua –símbolo de energia cósmica, guardiã do semem, alude à impressionabilidade imaginativa da Noiva). Esta alcova se assemelha à das bodas de Don Perlimpín pelo exagero dos enfeites e pelas portas abertas, insinuando infidelidade. No quarto, a Noiva sonha com um jovem viril, o Jogador de Rubby, ardente e atlético. Seu sonha sugere a pouca virilidade do Jovem, seu noivo. O quarto possibilita entender o real exterior e longínquo, representado pela busina do automóvel. O bosque aparece no início do terceiro (último) ato. Ele se assemelha (como uma semente) ao bosque de Bodas de Sangre. Um bosque tem a simbologia de um útero, de fertilidade, de princípio de vida e de fantasia. Representa o elemento materno feminino e se relaciona com o inconsciente e representa perigo, contrastando com as zonas seguras da cidade. A indicação de alerta proporciona interromper a ação principal da peça e encaixar-se outra, com personagens da Commedia Del Arte: Arlequim, Palhaço, Máscara, dando oportunidade a que outra técnica dramática se realize, a do mise en abyme, ou a do teatro no teatro, para sugerir o desamparo e a desilusão de cada indivíduo e as forças malignas que dirigem a vida. A pecinha desenvolve a mesma temática que vem sendo apresentada: a fugacidade do tempo e a

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irrealidade do devaneio, mas muda a forma como vem sendo desenvolvida e proporciona a oportunidade de surgir um teatro mais lírico, em verso, mas sem interromper o tema maior de frustração. Assim, ao passar de prosa para verso, provoca o efeito de distanciamento do espectador e ator, técnica usada pelo Teatro do Absurdo. O verso e a música criam uma barreira entre o público e a ação trágica, formando uma impressão de afastamento. O teatro, introduzido na peça principal, inicia-se com a fala do Arlequín, desenvolvendo os temas do tempo (frustração e morte), do sonho e da fertilidade (o do vagido da criança recém nascida), numa linguagem poética que se assemelha a um canto para crianças. Quando a cortina do teatrinho se abre, duas figuras, vestidas de negro com as caras brancas, passam por trás dos troncos das árvores e ouve-se o som de um violino, tocado pelo Arlequín. Ele entra em cena, bailando, vestido de negro e verde e leva nas mãos duas máscaras, ocultando-as em suas costas e diz: El sueño va sobre el tiempo flotando como un velero. Nadie puede abrir semillas en el corazón el sueño. ¡Ay, cómo canta el alba, cómo canta! Qué témpranos de hielo azul levanta! El tiempo va sobre el sueño hundido hasta los cabellos. Ayer y mañana comen oscuras flores de duelo.

Sobre la misma columna, abrazados sueño y tiempo, cruza el gemido del niño, la lengua rota del viejo. ¡Ay, cómo canta el alba, cómo canta! ¡Qué espesura de anémonas levanta! Y si el sueño finge muros

en la llanura del tiempo, el tiempo le hace creer que nace en aquel momento, ¡Ay cómo canta la noche, cómo canta! ¡Qué témpanos de hielo azul levanta!

A música que se ouve e a dança do Arlequín, prelúdio da morte do Jovem, é uma forma de Lorca retomar o teatro do final da Idade Média e princípio do Renascimento (séculos XIV e XV) o gênero das “Danzas de la

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¡Ay cómo canta la noche, cómo canta! ¡Qué espesura de anêmonas levanta!


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Muerte” (Danza macabra, Danza de la Muerte y Danza de los muertos) que, apesar de utilizado no teatro, participou em variados tipos de arte como a pintura, a escultura, a dança e a música e de atividades parateatrais como a mímica, a procissão, etc. Nessas danças se encontram temas pertencentes ao folclore europeu. Nelas a Morte é o personagem central e, geralmente, é representada pelo esqueleto humano, para simbolizar o acabar da vida, o último arrependimento e a perdida ilusão. Nelas, no diálogo entre a morte e pessoas representantes de várias classes sociais, há uma mensagem moral, há ironia e denuncia social. Elas são textos literários poéticos com um número indeterminado de versos e rimas. O teatro no teatro com características de teatro de marionetes, técnica semelhante à usada por Cervantes, em El retablo de las maravilhas e Shakespeare, em Hamelet, entre outros dramaturgos, funciona como o coro das tragédias gregas e desempenha papel relevante no desempenho da temática. Mas não quanto ao meio de fuga da realidade, mas quanto ao meio de valorizar o ideal e a realidade dramática. Na tragédia clássica, o coro era uma conseqüência de uma realidade poética, enquanto na tragédia moderna, ajuda a liberar a poesia. Ele é muito importante para o dramaturgo moderno, porque ajuda a obter formas e realidades simples, primitivas e ingênuas e proporciona liberar o homem dos artifícios da vida real. Ele dualiza realidade e ficção, pois, por meio dele, o dramaturgo cria a grandeza trágica. Ele pode fornecer simplicidade, graça e naturalidade à representação, além de acalmar a ação, afastar o espectador e criar um ambiente de reflexão. Quando o coro termina e a ação se acalma, a tensão do Jovem ameniza para dar lugar ao segundo quadro, que se mostra na rubrica em um outro espaço, o da biblioteca, para que o círculo se feche e aconteça o desfecho final que ocorre com a morte do Jovem, depois de uma longa viagem “varias malas abiertas” e dá oportunidade a que se desenvolva mais o tema da frustração amorosa, indicada na rubrica com “el traje de novia puesto en un maniquí sin cabeza y sin manos”. Esse sentimento se completa, no final da obra, na fala do Jovem, agonizando: “Lo he perdido todo”, “mi amor”, e se completará mostrando a inutilidade de sua vida com o repetir do Eco: “No “Aqui...” O palhaço é uma figura folclórica e mítica. É a inversão do rei, do possuidor de poderes supremos, mas da figura do rei assassinado. Sua função é dizer a verdade no riso, na zombaria. Simboliza a inversão da demonstração régia na sua indumentária, palavras e atitudes. É a ausência de toda autoridade. Representa o medo, o riso, a derrota, o ridículo, todo o oposto da realeza, a paródia encarnada do poder real. Sua metamorfose é a máscara, que tem o poder mágico de ocultação, facilitando a transposição do que é para o que quer ser. Quando o Payaso aparece, rindo à gargalhadas, cheio de lentejoulas e com cabeça branca em forma de caveira, estabelecerá um diálogo entre ele, a Muchacha e Arlequín, que estavam falando sobre o suposto amante da

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Muchacha. Entra o Payaso, já zombando do pedido de Arlequin (“Usted le dará/ a esta muchachita/ su novio del mar”), pedindo uma escada. La Muchacha é uma releitura lorquiana da deusa virgem Diana. Entra em cena no cenário do bosque, com intermitentes sons de trombetas, vestida com túnica grega, negra, depois da fala do Arlequin sobre o sonho, manifestando o desejo de encontrar o seu amado e sonhando com o amor impossível: MUCHACHA ¿Quién lo dice, quién lo dirá? Mi amante me aguarda en el fondo del mar. ARLEQUÍN Mentira. MUCHACHA Verdad. perdí mi deseo, perdí mi dedal, y en los troncos grandes los volví a encontrar. […]

Ela será ridicularizada pelo Arlequín e o Payaso por seus sonhos, por isso entra cheia de esperança e sai chorando de cena. A Máscara vem falando com sotaque italiano, o que a aproxima aos personagens da Commedia dell Arte. Ela faz parte dos sonhos da Mecanógrafa e da frustração de não ter um filho com o casamento adiado para mais cindo anos. Na Máscara, a cor amarela predomina. Ela aparece vestida com um traje de 1900, com cauda amarelo vivo, cabelo de seda amarelo, caindo como um manto, máscara branca de gesso, luvas brancas até o cotovelo, chapéu amarelo e todo o peito semeado de lantejoulas de ouro. Sua aparição rindo é chocante. Em seu teatro, Lorca faz investigações em diversas linhas e orientações. E uma de suas tendências experimentais é a exploração dos recursos que a farsa oferece. Nas cartas de Lorca, tomamos conhecimento de seu interesse para resgatar as populares farsas do teatro de marionetes. Ele vê, nessas peças, a oportunidade de originais criações. Em 1921, Federico, junto com Manuel de Falla, elabora o projeto de um Teatro Andaluz de Títeres, e começa a escrever uma peça de marionetes, até hoje desconhecida, Cristobícal. Em 1922. data e escreve o manuscrito Tragicomedia de don Cristóbal y la señá Rosita. Lorca tinha a intenção de unir a tradição do teatro de marionetes com os movimentos europeus de vanguarda, recolhendo antigas raízes no

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[...] No se llega nunca al fondo del mar…(1980, p. 425, 426)


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desejo de romper com a dramaturgia dominante em sua época. Sobre essa intenção, fica claro quando foi representada a peça, em Buenos Aires, de Don Cristobical e, num diálogo entre este personagem e o poeta, disse o último que: “Usted es un puntal del teatro, don Cristóbal. Todo el teatro nace de usted. [...] Yo creo que el teatro tiene que volver a usted”. Lorca vê o teatro de títeres como um caminho a seguir para uma experimentação artística que volta às raízes do teatro para sensibilizar aos espectadores. Como uma forma de manifestar-se contra as formas sofisticadas do teatro “oficial” de seu tempo: “o teatro [...] de los condes y de los marqueses, un teatro de oro y cristales, donde los hombres van a dormirse y las señoras... a dormirse también [...]” (1980, p. 61-2) As suas quatro farsas — duas para marionetes (la Tragicomedia de don Cristóbal y el Retablillo) y duas para pessoas (La zapatera prodigiosa e Amor de don Perlimplín con Belisa en su jardín) — têm manifestações culta e popular. Ainda que as obras La zapatera... e Perlimplín... contenham elementos psicológicos que as afastem do teatro de marionetes tradicionais, o aspecto formal se assemelha a essas farsas. Contudo, enquanto as palavras dos tradicionais teatros de títeres subvertem a linguagem por meio dos insultos, grosserias e juramentos, essa transgressão se converte em norma. A modernidade do teatro de marionetes se encontra no emprego da palavra sem referentes, na repetição das rimas que rompem a lógica da linguagem do teatro e do público, mediante a reiteração do absurdo. O verso abandona a manifestação do lírico ou do épico e se torna uma significação vazia. Segundo Ana Gómez Torres Universidad de Málaga (2010), La carnavalización y la risa invierten decididamente la relación entre el público y la escena, que deja de ser inaccesible y sagrada para convertirse en un territorio de desorden creativo donde se anulan las preceptivas, un universo poéticamente desrealizado y cómico en el que los términos normativos del teatro son desconstruidos desde el relativismo. La fiesta de títeres se convierte en un espacio de transgresión, pues escapa al orden de la representación teatral y a su control. La escena pasa a ser, como observa J. Derrida, el «lugar donde el espectáculo, dándose a sí mismo como espectáculo, no será ya vidente ni voyeur, borrará en él la diferencia entre el comediante y el espectador, lo representado y el representante, el objeto mirado y el sujeto que mira». Se invierten las jerarquías de la lógica, se profanan los términos de la ceremonia, construyéndose una visión del mundo alternativa que atenta contra la autoridad del discurso oficial mediante el mecanismo de las palabras en libertad y de la risa

Assim, para Lorca, a força do teatro estava no popular. Por isso ele deveria voltar ao povo, “con la aristocracia de la sangre del espíritu y del estilo, pero adobado y siempre nutrido de savia popular”. (1980, p. 1003). Dentro deste conceito, como clasificar Así Que Pasen Cinco Años: drama, farsa ou tragédia? Francisco García Lorca (http://granadadigital.com) disse que “la obra está concebida y ejecutada con la libertad de un poema, y que sólo una determinada unidad poética mantenida por una serie de correspondencias temáticas, asegura su carácter de drama”.

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Lorca nasce como escritor no período vanguardista, e leva para a sua obra característica deste período, mas sem abandonar as tendências tradicionais da literatura espanhola e estrangeira. Assim, lado a lado, várias tendências estarão juntas: as do teatro nacional - medieval clássico e contemporâneo seu -, apoiadas nas técnicas dramáticas dos escritores: Calderón de la Barca, Juan de Encina, Gil Vicente, Lope de Vega, Miguel de Cervantes, Tirso de Molina, Zorrilla, Jacinto Benavente, Carlos Arniches, Valle Inclán, entre outros; e as do teatro estrangeiro, que são ecos de, por exemplo, Sakespeare, Tristan Tzara, Maeterlink, Ibsen, Chejov, entre outros; unidas às características do teatro grego e da Commedia del Arte; acrescentadas de motivos bíblicos, de elementos folclóricos, impregnados de formas populares, como o romance, e do valor mítico de certos elementos, como o sangue, a lua, a navalha, o canto andaluz etc. A síntese que Lorca faz entre o velho e o novo vanguardista é singular e torna possível não classificá-lo como um escritor cubista, gongorista, surrealista, mas como um escritor singular que, segundo o seu desejo de expressão, se apropria desta ou daquela tendência, porque a sua grande preocupação é construir um “teatro nuevo, avanzado de formas e teoría” (1980, p. 975). Seu desejo de criar um teatro original lhe proporciona, durante toda a sua vida, meditar sobre o fenômeno da arte, produzindo reflexões surpreendentes em cartas, em conferência e na obra dramática, na construção de um metateatro, com o objetivo de mostrar um teatro cada vez mais desnudo e humano. Um teatro não “al aire libre” que mostra o gosto do público, pois o público não deve “atravesar las sedas y los cartones que el poeta levanta en su dormitorio”, mas um teatro “bajo la arena”, que busca a verdade das raízes, que não seja convencional nem superficial. Em Comedia sin título Lorca se propõe mudar os princípios tradicionais da técnica teatral e enfrentar o público com uma realidade sofrida, para mostrar-lhes o verdadeiro rosto. Assim, coloca em cena o problema de como deve ser apresentada a realidade e abandonar a ilusão. Em sua época ValleInclán havia feito tentativas de uma renovação teatral que diferisse das limitações do teatro realista do século XIX, no qual o espectador ia para divertir-se e esquecer as suas angústias. Porém Lorca foi além dele e com variadas técnicas, que provocaram julgamentos críticos diversos dos estudiosos de suas obras dramáticas. Assim, sobre Así Que Pasen Cinco Años são taxativas as afirmações, quanto às tendências da arte dramática desta obra. Guerrera Zamora (1961, p. 65) aponta características surrealistas: “[...] quizá la más acabada muestra de inspiración superrealista derivada escénicamente que se haya producido en el mundo y, desde luego, drama fundamental en el estilo superrealista del autor […].” O Surrealismo é uma herança do Dadá, fortemente influenciado pelas teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa, definido pelo seu fundador, André Breton, como um simples automatismo psíquico, que se serve o artista para expressar o pensamento. Segundo Breton, a arte deveria partir do irracional e apelar para o sonho, pois


neles haveria sinceridade, ao desvincular-se da memória. Assim, se dirigimos o nosso olhar para as cenas de regressão à infância, como as lembranças do 2º. Amigo, no primeiro ato, ou, ainda, sobre o aparecimento de seres (Nino e Gato) já mortos, encontramos o diálogo de Lorca com o surrealismo, na valorização “fantasiosa da realidade” e, se tomamos os personagens como alterego do Jovem, ou sonho dele, veremos o diálogo com a característica surrealista de “explorar o inconsciente, o sonho, a loucura e aproximar-se de tudo que fosse antagônico à lógica e estivesse fora do controle da consciência”. Guinne Edwards (1982, p. 128) observou que a técnica de Así Que Pasen Cinco Años se aproxima à do cinema, aos filmes de Buñuel, e à pintura de Picasso e Dalí, logo ao Expressionismo.

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[...] Su fuerza visual y muchas de sus sorprendentes situaciones nos recuerdan a Buñuel, Picasso, Dalí. la escena del Acto II en la que cobra vida el personaje inerte del Maniquí resulta ideal para el cine. En el acto III, las figuras vestidas de negro con caras de color de yeso, como ha subrayado D. E. Morris, semejantes a esas figuras enormemente maquilladas de The Cabinet of dr. Caligari; y la imagen final de este acto, del as de corazones proyectado sobre los anaqueles de la biblioteca es claramente cinematográfica. También en el Acto III, el detalle de la ropa del joven, extendida sobre la cama, puede recordarnos una escena similar de Un Chien Andalou, de Buñel, y en general la idealización de los personajes – no muy distinta de la llevada a cabo por Fellini en sus películas – es, al menos en parte, un reflejo del cine.

Por lo que se refiere a la influencia de la pintura en esta obra, el mismo Lorca, en la exposición de sus dibujos en Barcelona, en 1927, había mostrado su tendencia hacia la plasmación del absurdo de lo irracional y lo inquietante, y su dibujo “Manos cortada” probablemente anticipe ya el episodio de la mano cortada de la obra Un Chien Andalou. La atmósfera de pesadilla y la naturaleza de ensoñación de muchas de las escenas de Así Que Pasen Cinco Años nos hacen pensar en los cuadros de Dalí, y la figura del Arlequín, que aparece en el último acto, había sido en los años veinte tema predilecto de pintores como Dalí y Picasso. Pelas observações de Gwinne Edgard e de Guerrera Zamora, inferimos que Así Que Pasen Cinco Años tem particularidades que se amoldam às obras dos gêneros expressionistas e surrealistas, ambos movimentos da Vanguarda, período histórico, descentralizador, combativo y polêmico, do final da primeira guerra européia, logo na época da modernidade. Obras expressionistas dramáticas são as de Brecht (1898-1956) ou as de Artraud (1896-1948), nelas se pode observar a idéia peculiar do afastamento que se deve estabelecer entre o espectador e o personagem dramático. Para Brecht os personagens dramáticos adquirem importância quando o espectador não se identifica com eles, mas os “estranhe” e “se distancie deles numa atitude crítica e consciente”. Artraud e Brecht seguem o modelo do teatro chinês, no qual devem ocorrer elementos trágicos e cômicos, misturados com o canto, a dança, as narrações poéticas e as acrobacias. A influência

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da forma oriental está clara na expressão corporal, no uso de máscara y semimáscara, na técnica da maquilagem, no tipo do vestuário, que deve ser bonito, inclusive na pobreza, na faculdade de o autor dirigir-se ao público, no emprego da música, como fator excitante. Na obra “Teatro e seu Duplo” (Le Théâtre et son Double - 1935), um dos livros mais influentes do teatro de Artraud, ele expõe o grito, a respiração e o corpo do homem como lugar primordial do ato teatral, denuncia o teatro digestivo e rejeita a supremacia da palavra. Esse era o Teatro da Crueldade, onde não haveria nenhuma distância entre ator e platéia, todos seriam atores e todos fariam parte do processo, ao mesmo tempo. Brecht aprofundou o método de interpretação do teatro épico. Uma das grandes influências no desenvolvimento desta forma de interpretação foi a arte do ator chinês Mei Lan-Fang, que representava papéis femininos, mas que não como imitador de mulheres, porém como uma determinada mulher. Para Brecht, cada palavra deve encontrar um significado visual e por meio do gesto o espectador pode ser levado a uma crítica do comportamento humano. Segundo ele a interpretação gestual deve muito ao cinema mudo, principalmente a Chaplin. O teatro expressionista, da primeira década do século XX, procurava carregar nas cores, resplandecentes ou vibrantes, e fornecer um dinamismo inesperado, para apresentar uma técnica violenta, e dava preferência pelo patético, pelo trágico e sombrio. Os textos de Brecht são muito semelhantes aos de um texto do Teatro do Absurdo pelo fato de oferecer personagens concretos e pela inexistência de conflito e pela falta de mensagem ideológica. O Teatro do Absurdo, nome dado pelo austríaco Martin Esslen, representa as tendências dramáticas a partir da segunda década do século XX, principalmente às obras dramáticas de certos dramaturgos que surgiram nos anos 50 e procuravam manifestar um compromisso do homem frente ao universo. O sentir desses dramaturgos, de apresentar uma angústia metafísica, na certeza de que falta sentido à vida e é daí que nasce a angustia, se assemelhava à atitude absurda do mito de Sísifo de empurrar eternamente uma pedra para o alto da montanha. Nesse teatro não se fala de absurdo, mas este é mostrado pelo ator ao espectador pelas palavras, gestos, silêncios. Em fim, a ênfase desse teatro ocorre na quinésia, paralinguistica e possemica. Merecem ser destacados os dramaturgos do Teatro do Absurdo: Samuel Beckett, Eugène Ionesco, Arthur Adamov, e Juan Genet. Nesse teatro se encontram elementos característicos do cinema mudo e do expressionismo alemão e do teatro simbolista. O Teatro do Absurdo reprova a mecânica, daí difere de uma peça tradicional, em que o enredo, a característica psicológica dos personagens, a progressão da ação visam alcançar o clímax e a catarse, pois, nas peças desse teatro, não há historia, nem personagens reconhecidos, eles são como bonecos que parecem ser reflexo de pesadelos ou sonhos, e diálogos quase incoerentes. As transformações estéticas marcantes de Lorca devem ter ocorrido durante a sua permanência na Residencia de Estudiantes, pois ali conviveu com artistas de estéticas revolucionárias, Dalí e Buñuel, recebeu influên-


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cia de Freud e do Surrealismo e teve conhecimento, devido às constantes conferências ali pronunciadas, das mais novas teorias sobre a arte. E, com base nas características do vanguardismo literário, nas características do Teatro do Absurdo e no desejo sempre mostrado de inovação de Lorca e sua grande criatividade, aproximamos a técnica de Así Que Pasen Cinco Años moldada ao Teatro do Absurdo pela maneira de oferecer um argumento de algo inefável, pela presença de personagens como idéias - as do Jovem -, pela técnica do distanciamento na mudança de verso para prosa, de realidade para ficção e pela construção de um coro com uma linguagem poética que oferece simplicidade, graça e naturalidade à representação, acalma a ação, distancia o espectador cria um ambiente de reflexão, enfim uma técnica de distanciamento própria do teatro contemporâneo que o coloca avançado à sua época, ainda que pelo ambiente onírico e pela aproximação à época do autor ter sido classificada como surrealista e ou expressionista. Contudo, não a estou classificando taxativamente como pertencente ao Teatro do Absurdo porque lhe falta a característica essencial para isso que é a de mostrar um mundo egoísta e sórdido e a perda constante de valores humanos por uma sociedade que se automatiza cada vez mais. O que pretendemos mostrar é que García Lorca utilizou em Así Que Pasen Cinco Años técnicas inovadoras que aproximam esta obra a de outras do Teatro do Absurdo, como a do afastamento. Também se tomarmos como ponto de apoio as reflexões de Lorca sobre o teatro, podemos observar que ele se preocupava com os trajes de uma representação teatral, com a música, com o cenário, com a maquiagem, com o gestual, com uso de máscara e com técnicas nas quais o espectador não devesse fazer parte do drama, misturando técnicas antigas e atuais, próprias de seu país ou não. Pelo já apontado acima, criou um teatro singular, adiantando-se a seu tempo nas técnicas dramáticas e no seu modo de conceber o teatro. Portanto, concluímos que Así Que Pasen Cinco Años, pela técnica, aproxima-se de obras de um teatro posterior ao seu, mais precisamente, o dos anos 50, o Teatro do Absurdo. Referências CIRLOT, Juan-Eduardo. Diccionario de símbolos. 4. ed. Barcelona: Labor, 1981. EDWARDS, Guynne. El teatro de Federico García Lorca. 2. ed. Versión de Carlos Martín Baró. Madrid: Gredos, 1981. ESSLEN, Martin. O teatro do absurdo. Tradução de Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. GARCÍA LORCA, F.obra completa. Madrid: Aguilar, 1980, 2 v. RICO, Francisco (Org.) Historia y crítica de la literatura española. CONCHA, Victor de la. Época Contemporánea- 1914-1939. Editorial Crítica. 1984. v 7. RUIZ RAMÓN, Francisco. Historia del teatro español. Siglo XX. 3. ed. Madrid: Cátedra, 1981. TORRE, Guillerme de. Historia de las literaturas de vanguardia. Madrid: Guadarrama, 1965. Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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DELICADEZAS DA POÉTICA BARRIANA (SOBRE MANOEL DE BARROS) DELICACY OF POETIC BARRIANA (ON MANOEL DE BARROS) Rodrigo da Costa Araújo

Eu queria pegar na semente da palavra. Poesia é um desenho verbal da inocência!

O título desta resenha, fragmento de um contexto maior, - “Eu queria que minhas palavras de joelhos/ no chão pudessem ouvir as origens da terra”, p.65 -, ecoa uma poética que procura o silêncio das palavras, - por mais que os rios murmurem -, a impossibilidade de tudo dizer -, por mais que tudo seja dito -, com o pré-verbal e com uma gramática própria, sublime e delicada. Lê-la, sem dúvida alguma, é ler, também, a linguagem dos brejos, dos grilos, do trânsito implacável por entre os lírios vegetados em caracol, gorjeios de pássaros, absurdos divinos, borboletas, linguagem das rãs, encolhedores de rios, entre outros personagens sutis, avulsos e coletivos da poesia transgressora e epifânica de Manoel de Barros. A sensibilidade poética do autor de Gramática Expositiva do Chão [1990] instiga, agrega, emociona e toca delicadamente, o leitor sensível por paradoxos, constroi a riqueza da simplicidade em frases e significantes, que juntos, formam um universo-rio onde flutuam pedras preciosas, e que de tão corriqueiras e claras, só brilham arroladas após o olhar do leitor e do trata-

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Manoel de Barros


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mento especial do poeta. Por isso, e, por vários motivos, sua poesia é carregada de despropósitos. Esses despropósitos, muitas vezes, são associados à linguagem infantil - “A infância da palavra já vem como primitivismo das origens” [p.33], - mas a infância, nas linhas e entrelinhas do discurso leve e descontraído, significa para o poeta significar não um ideal de simplicidade ou inocência, pelo contrário, reponta um olhar sem vícios, uma linguagem “sem excessos” ou “poluída” pelos adultos, e, por isso mesmo, plural às associações mais inesperadas. Molhada pelo líquido viscoso e ambíguo da prosa poética e escorregadia de Guimarães Rosa [1908-1967], a poesia de Manoel de Barros mergulha o leitor - nada inocente - no chão infantil das palavras, na metalinguagem que reforça, insistentemente, - como também fez Clarice Lispector [19201977] -, a paixão pelas palavras. E, por isso mesmo, diz em tom encantador: “Penso nos rios infantis que ainda procuram declives/ para correr” [p.29] ou, ainda, “Escrever o que não acontece é tarefa de poesia” [p.31]. Tudo de alguma forma, nesse livro, reforça o “absurdo divino das imagens”, sobretudo as imagens que vêm do chão da infância, do idioma e do “menino do mato” - “Eu queria mesmo que as minhas palavras/ fizessem parte do chão como os lagartos/ fazem” [p.65]. Na escritura leve e vislumbrante, as imagens da infância assumem o delírio da palavra e a carga semântica de passagens significativas, apesar de não representarem isso tudo em significantes. O livro Menino do mato [2010], dividido em duas partes - a primeira “Menino do mato” - e a segunda parte “Cadernos de aprendiz” - é uma longa narrativa. Uma narração lírica que divaga para o particular e o minúsculo, sem desprezar o desejo de universalidade. Feito poema-rio que deságua metáfora significativa para se pensar o livro como um todo - segue por noventa e seis páginas enlaçando o estilo memorialístico ao desenho da infância que, reforçado pela epígrafe inicial e as paisagens que cita, privilegia o traço delicado, informe e provisório da figura, marca de um texto rasurado e em processo. Manoel de Barros, com isso, capta a poética fragmentária com sensação de inacabada, vislumbrada na Modernidade por Baudelaire e, que, sem dúvida nenhuma ressoa com as Artes Plásticas, o gênero da improvisação, os croquis, a aquarela e a água-forte. Poesia e pintura, desde a capa, - paratexto de abertura da obra -, passam a ser referenciais entre a alusão e o experimentalismo, o inacabado e o sensível. O “eu-narrativo”,- condutor que enuncia o discurso -, é um adulto que lembra do menino que foi, e, esse “menino do mato” , apresenta-se como aquele que busca o novo, o ainda não-dito, extrapolando para a liberdade. Nesse livro, o difícil caminho do menino é, também, o mesmo do poeta diante da criação, por isso infância e poesia se alimentam de devaneios. “A gente gostava das palavras quando elas perturbam o sentido normal das ideias”, diz o narrador astuto, na sua metalinguagem.

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Esse menino, como muitos outros citados na poética barriana, presente em cada cena ou palavras do livro, ecoa do título que nomeia a obra e se contextualiza no universo distante dos centros urbanos e, portanto, as referências e os interesses dele dizem respeito a elementos da natureza, o que instiga os sentidos e amplia a percepção: “Nosso conhecimento não era de estudar em livros”./ “A gente queria o arpejo. O canto. O gorjeio das palavras” [p.11]. Como se estivesse voltando a um filme em pequenos flashes, e vendo-se menino, esse narrador confessa em tom metalinguístico: “A gente gostava bem das vadiações com as palavras do que das prisões gramaticais” [p.12]. A segunda parte do livro – escorre e fragmenta cada vez mais o discurso – assume desníveis em relação à primeira. O narrador adulto, valendose de falar de si pela mediação da infância e pela forma estética, recompõe certo autorretrato. Essa postura, extremamente fragmentária, feito anotações em um caderno escolar, capta o efêmero e o fugidio do instante ou o detalhe significativo do close da cena. Pincela-se, assim, o contorno do quadro pelo toque distorcido de expressividade e subjetividade, estilhaços de uma poética da fragmentação e do desvario. Uma profusão de imagens partidas da memória infantil que irá permitir a Manoel de Barros contemplar-se duplamente nos desenhos da capa – expressões delicadas de sua figurativa ambiguidade. Desenho e palavra, poesia e pintura rupestre, de certa forma, confirmam que: “Ele sabia que as coisas inúteis e os homens inúteis se guardam no abandono. Os homens no seu próprio abandono. E as coisas inúteis ficam para a poesia” [p. 91]. Referência: BARROS, Manoel de. Menino do mato. São Paulo: Leya. 2010. ISBN: 97885-62936-15-9

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Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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HIEROFANIA DOS DEDOS, DE JORGE VICENTE

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Beatriz Bajo

Jorge Vicente (1974), poeta de 35 anos do Algueirão, sempre se interessou por poesia, escrevendo desde os 10 anos. Tem participado em antologias e ativamente na Lista de Discussão Encontro de Escritas desde 2002. Publicou poemas na antologia www.3poetasemleiria.pt (Escola do Espectador, 2002) que teve como autores José Gil, Constantino Alves e Don Lackewood, pseudônimo de Jorge Vicente; Antologia de Escritas (Encontro de Escritas) com organização de José Félix, onde participa nos seis números editados desde 2004; A Bic(a) (Folheto Edições & Design, 2005) pela Coleção 25 poemas – N.º XVII (autores José Gil, Constantino Alves e Jorge Vicente); Antologia Amante das Leituras (Edium Editores, 2007); 10 Rostos da Poesia Lusófona (H. P. Comunicação Editora, 2007); 10 Rostos da Poesia Lusófona 2 (All Print, 2008); Antologia Amante das Leituras 2 (Edium Editores, 2008); Antologia Amante das Leituras 3 (Editora Amante das Leituras, 2009); Antologia Entre o Sono e o Sonho, Vol. 2 (Chiado Editora, 2009). Site: http://jorgevicente.blogspot.com. Obras a solo: Ascensão do Fogo (Edium Editores, 2008). A sacralidade advinda da pele exata que desenha as palavras, que toca nos versos, que aponta à língua bendita e esquadrinha as imagens para dentro da brancura que ilumina a vida...assim é a Hierofania dos dedos, de Jorge Vicente. 2. procuro corpo nevoeiro na imensidão da pele, como se fosses simulacro de carne e de fogo o verso dobrado no espanto da língua. são as palavras, e não o toque, quem vibra na destruição do prazer.

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O poeta português, que está no seu segundo livro, inaugura o ano com uma obra delicadíssima e contundente na mesma medida, porque trabalha com esta imensidão citada, costurando simulacros refletidos na vida-tez dos encontros tingidos: 12. I. diz o mestre ao discípulo: reúne a cor na sua expressão máxima e juntai-a de luz branca só assim as aves serão mais do que pontos negros na copa dos dedos [...] E assim vai ateando fogo nos versos antitéticos, que requebram de visceralidade nos verbos, como em “fácil é a palavra que se/ incendeia quando dita;/ difícil o poema que dança/ no colo de um vulcão”. Tudo é toque que arde, arrancar-te/ arrancar-me/ arrancarne das palavras para a transmutação poética. 35.

aquele que diz é apenas quem diz. e quem pronuncia as três verdades do som: o om, a sílaba, a palavra. verso algum poderá existir que não aspire ao ventre das mulheres. E é por desejar intensamente o âmago feminino que reúne a humanidade, que fabrica-a (partindo também do pressuposto masculino do eu-lírico que se atrai pela mulher e que o maior símbolo do sagrado é a conexão de dois corpos que se fundem ao êxtase – morte/vida), que o poeta utiliza-se da chave que abre todas as portas do sublime, com a mão fina e a suavidade dos dedos que roçam os conhecimentos grandiosos e estes revelam-se, poetizam-se. Referência: VICENTE, Jorge. Hierofania dos dedos. Coimbra, Portugal: Temas Originais, 2009. Texto aprovado para publicação em abril de 2010.

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aquele que escreve no limiar do fogo vive apenas na certeza das mãos. são elas que dizem da hierofania maior: a que parte do rosto e descende à altura dos dedos, como se o homem-outro fosse uma extensão do rosto e das pétalas salientes da pele.


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ETNOGRAFIA

MEMÓRIAS DE UM PESQUISADOR: UMA AVENTURA ANTROPOLÓGICA THE FIELD NOTES OF A RESEARCHER: AN ANTHROPOLOGICAL ADVENTURE

Resumo: O presente artigo propõe ao leitor, um exercício de reflexão e discussão sobre o percurso de um pesquisador em campo: a entrada, os percalços ao longo do processo de construção da investigação, as descobertas, o contato com os atores, enfim, toda a aventura antropológica em um mundo inicialmente desconhecido. Para tanto, apresenta a narrativa dos aspectos metodológicos de um estudo etnográfico - A vulnerabilidade do jovem em um paraíso serrano: os jovens pobres de Nova Friburgo -, Tese (Doutorado), defendida no Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2006. Palavras-chave: etnografia, investigação, aspectos metodológicos, aventura antropológica. Abstract: This article offers the reader a reflecion and discussion on the course and practice of field research: the setting off, the hurdles encountered along the inquiry, the findings, the contact with the actors - in short, the true adventure that anthropology entails when facing a previously unknown world. Hence, this paper is a narrative of the methodological aspects of an ethnographic case study - The vulnerability of the youth in a mountain paradise: the young people of Nova Friburgo – a Ph.D Thesis, IMS/UERJ (The Institute of Social Medicine at The State University of Rio de Janeiro), 2006. Keywords: ethnography; research; methodological issues; anthropological adventure.

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Rita Cristina de Souza Santos


Introdução

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Imagine-se estacionando seu carro particular na rua de um bairro de pobres cujo nome permanecia nas manchetes dos jornais como um dos focos de violência urbana, um centro de marginais e de bandidos. Você não conhece ninguém que lhe possa indicar os caminhos e prestar-lhe as informações de que necessita para mover-se sem riscos desnecessários. Você nem sabe muito bem onde procurar o que tem em mente. Conhece apenas um jovem que lhe foi apresentado por um amigo comum, o qual lhe recomendou cautela. E nada mais. Zaluar (2000).

Inspirada nessas palavras e na cena por elas evocada –, analogia com a entrada de um pesquisador em campo, para desenvolver seus “próprios métodos de descoberta e de sobrevivência num mundo inicialmente desconhecido” (ZALUAR, 2000) – comecei o trabalho no universo do município de Nova Friburgo, região serrana do Estado do Rio de Janeiro, em 2004. Iniciar o estudo e o aprendizado sobre o perfil dos jovens pobres (12 / 18 anos) do município de Nova Friburgo, através de indicadores sociais, condições de vida e estratégias de sobrevivência, bem como buscar a compreensão dos circuitos e mecanismos que permitem caracterizar esses jovens como grupo de vulnerabilidade social (CASTEL, 2001), pareciam tarefas relativamente fáceis. Isso porque já havia trabalhado, por um período de quatro anos, como docente em uma universidade local da rede privada, o que me permitiu ingressar nos diversos meandros da sociedade friburguense, quer nos campos de estágio em Psicologia Escolar (escolas, creches, comunidades pobres nas zonas rural e urbana), na supervisão de alunos, quer na condição de convidada em festividades promovidas pela “elite” local. Desde então, causava-me estranheza a convivência harmônica entre o mito de prosperidade, homogeneidade e cordialidade, tão decantado em verso, prosa e propagandas turísticas de Nova Friburgo - a Suíça Brasileira, cidade paradisíaca - e os visíveis reflexos da mundialização, discutidos na atualidade pela Sociologia do Trabalho (CASTEL, 2001). Os efeitos da globalização estão presentes no município; apesar de se tratar de uma cidade média, que não faz parte de nenhuma região metropolitana e apresenta problemas tais como: o crescimento do desemprego e a conseqüente precarização e flexibilização do trabalho; a presença de imigrantes, oriundos não mais da Suíça ou da Alemanha, mas de municípios vizinhos e quiçá de outras regiões do país, principalmente do Estado do Rio de Janeiro - Baixada Fluminense -, na disputa por postos de trabalho em um mercado cada vez mais restrito e seletivo. Em conseqüência desse cenário de disputa, dia após dia uma multiplicidade de categorias toma forma e lugar no movimento social friburguense: desempregados há longo tempo; mulheres sem emprego e com obrigatoriedade de manter o sustento das famílias; jovens sem trabalho e sem perspectiva futura de alcance, por falta de qualificação profissional; jovens traba-

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lhadores temporários, não mais apenas na zona rural, como também na área urbana, ou seja, os supranumerários. Castel (2001) define o quadro acima descrito - o qual não constitui privilégio de Nova Friburgo, mas sim está relacionado principalmente às regiões metropolitanas ou megacidades - como determinada situação marcada por comoções que afetaram, recentemente, a condição salarial: o desemprego em massa e a instabilidade das situações de trabalho; a inadequação dos sistemas de proteção; e a multiplicidade de indivíduos cujo futuro é marcado pelo selo do aleatório os “inempregáveis” ou empregados de regime precário supranumerários. A inquietação causada pela construção do conhecimento sobre tal realidade levou-me à reflexão sobre os termos utilizados pelos ingleses - establishment, established e outsiders - para designar grupos e indivíduos que ocupam ou não posições de prestígio e poder, ainda que indicadores sociológicos como renda, educação ou tipo de ocupação sejam relativamente homogêneos. (NEIBURG, 2000). A minoria dos melhores e os excluídos da boa sociedade, grupos analisados por Neiburg (2000), facilmente seriam identificados na segregação social existente no município, até mesmo após a morte, como apresenta Araújo (1992) ao descrever a existência, desde a segunda década do século XX, de um cemitério público municipal com divisões internas para o enterramento daqueles pertencentes à Irmandade de S.S. Sacramento - representantes da elite da cidade - e um espaço reservado para o público em geral. Além do cemitério público, outro cemitério, criado pelos primeiros alemães estabelecidos na antiga colônia, foi reconhecido pelo poder municipal, no início do século XX, como exclusivo dos alemães e seus descendentes, independentemente de situação econômica.

Ingenuamente, acreditei que a mesma receptividade encontrada como “docente da universidade” nos diversos grupos friburguenses seria encontrada nos meandros da política local, ao penetrar em suas instâncias como pesquisadora. Somente depois de muitas frustradas tentativas de aproximação e de agendamento de entrevistas, percebi que seria necessário estabelecer novas relações pessoais, e minha aceitação como pesquisadora dependeria mais do tipo de pessoa que eu me revelasse ser aos olhos dos meus contatos nas instâncias políticas, do que daquilo que a pesquisa pudesse representar para o município e, mais especificamente, para a construção de políticas públicas de atendimento integral aos adolescentes friburguenses, em especial os jovens pobres. Cicourel (1990) ilustra a questão com uma citação de Dean: Os contatos no campo querem se assegurar de que o pesquisador é um bom sujeito, de que se pode ter certeza que não fará nenhuma sujeira, com o que

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As primeiras frustrações e tentativas


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descobrir. Eles não estão interessados em entender a base lógica de um estudo.(p.90).

As primeiras tentativas no campo da política municipal (secretarias municipais, gabinete da prefeita, câmara de vereadores) e da justiça (vara de família e da infância e juventude) não foram, no entanto, muito animadoras. Digamos até, desestimuladoras. “Vale a pena insistir?”, perguntava-me, cada vez que não era atendida nessas instâncias. Deparei-me, neste início de trabalho, com um cenário de grande caos político no município, caracterizado por um mandato de oposição na prefeitura – Partido Social Democrata - apoiado na época de eleição por um ex-governador do Rio de janeiro, após longos mandatos de alternância dos dois grupos que brigam pela hegemonia no município (COSTA, 1997): o grupo liberal, de origem udenista, e o grupo nilista (Nilo Peçanha), de origem no PSD. O primeiro grupo caracteriza-se, segundo Costa (1997), pela defesa dos interesses da indústria e do comércio e foi responsável pela criação da visão da cidade como um paraíso capitalista, espelho do progresso alcançado graças à presença do capital privado nas principais atividades econômicas. De outro lado, o segundo grupo caracteriza-se inicialmente pela responsabilidade da defesa dos interesses ruralistas e, posteriormente, pela adoção de práticas populistas, deslanchadas por meio de atendimento a algumas das necessidades básicas da população carente, com forte presença do líder político que concede benesses às classes trabalhadoras. A sensação de que precisaria desenvolver o trabalho com muita cautela e tato, tanto por conta das formações sociais locais - marcadas pela persistência da característica de fechamento do seu subsistema político, no qual o acesso aos recursos de poder sempre esteve centrado nas mãos de alguns poucos -, como pelo fato de a credibilidade do governo local estar abalada pelas freqüentes gestões descompromissadas com o bem-estar social, causou-me certa apreensão inicial. Como explicar meus objetivos e fazer-me compreendida? Como justificar a necessidade da utilização das técnicas de entrevista, da observação participante, do grupo focal e da busca nos jornais e das atas da câmara de vereadores, para reconhecer a amplitude e a diversidade de fatores que contribuem para a vulnerabilidade dos jovens pobres friburguenses? Como fazer com que minha atividade fosse vista não como ataque político, mas como um trabalho, cujo objetivo consistia em propiciar a discussão da ampliação de modos mais justos, democráticos e cuidadosos de fazer Saúde no município, independentemente de partido político. Fazer política, e não politicagem, portanto. Será que estava sendo clara o suficiente? Pergunta constante durante minha inserção no campo. A análise da implicação de minha presença no campo constituiu tarefa fundamental para o exercício da pesquisa. Em vista dos ingredientes ideológicos locais e externos que foram

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constituindo a sociedade friburguense, bem como da rede de organizações sociais, inquietava-me para compreender que tipo de democracia, baseada em que cidadania, teria pela frente. Seria uma cidadania regulada (SANTOS, 1994), cujas raízes se encontrassem não em determinado código de valores políticos, mas em um sistema de estratificação definido por uma norma legal? Quem seriam os cidadãos? Apenas os membros da comunidade que se encontrassem localizados em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei? Estariam os seus direitos restringidos ao lugar que ocupassem no processo produtivo? Através da leitura dos escritos de Castel (2001), foi também possível compreender que a precariedade do trabalho e a fragilidade dos suportes de proximidade (redes de proteção próximas, propiciadas pela vizinhança) constituem em conjunto uma zona intermediária e instável: a vulnerabilidade social, conceito que o autor prefere ao de exclusão social. Diante de uma forasteira, mulher, negra e com nível de escolaridade superior (fato incomum no município, cuja maioria da população é descendente de europeus), despertava-se o sentimento de estranheza e a curiosidade entre os mais favorecidos e os desfavorecidos economicamente no município, por razões diferentes, é óbvio. Para determinadas pessoas, o espanto transformou-se em admiração, e para alguns jovens pobres, também negros, além da admiração, a identificação. “Eu gostaria que a minha mãe fosse como a senhora”, palavras de uma jovem da turma de cerâmica do projeto Oficina-Escola de Arte para jovens pobres do município. A única certeza presente no início do meu trabalho de campo é de que precisava trabalhar com afinco e persistência, procurando explorar a rica experiência de campo e as bases metodológicas lançadas por Malinowski (ZALUAR, 1990): a convivência diária com o outro – os nativos ou estrangeiros, os silenciosos ou silenciados - a fim de conhecê-los. Digamos até a fim de compreender as razões do silêncio e dos receios da população em situação de vulnerabilidade no município, bem como a organização do cotidiano político local e seus efeitos na saúde integral da população jovem pobre friburguense. Percebi então que só ao conviver diariamente com o “nativo” (cidadão friburguense) - freqüentando as reuniões dos conselhos municipais e os fóruns de defesa da criança e do adolescente; os “points’ dos jovens friburguenses (shoppings, clubes, praças); os grupos de estudos da elite intelectual local (grupos de filosofia e/ou psicanálise); as festividades locais (festa de aniversário da cidade, parada de Sete de Setembro, carnaval local, festival de inverno) e as aulas da Oficina-Escola de Artes, projeto municipal para jovens de baixa renda -, eu poderia observar os casos reais e os comportamentos dos alunos. Zaluar (1990) ilustra a questão:


Foi sobre a necessidade de conviver com os nativos, morar entre eles, participar de suas atividades cotidianas, que Malinowski sempre insistiu.Várias são as razões apresentadas por ele: a falta de documentos históricos, de registros feitos concretamente entre os povos primitivos [...]. O etnógrafo, diz ele, não vai encontrar os seus fatos formulados num código de leis escrito ou explicitamente expresso, pois toda a sua tradição tribal, toda a estrutura de sua sociedade encontram-se incorporados no evasivo de todos os materiais: o ser humano. (ZALUAR, 1990, p. 11).

Era preciso, portanto, ouvi-los enquanto discutiam a política local, com argumentos favoráveis ou contrários à atual prefeita ou aos seus antecessores; enquanto debatiam os problemas básicos do dia-a dia friburguense, para me fazer conhecida como pesquisadora, e não como uma possível “espiã da oposição”. Malinowski (1990) ilustra a situação:

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[...], há uma série de fenômenos de grande importância que não podem ser registrados através de perguntas, ou documentos quantitativos, mas devem ser observados em sua plena realidade. Denominemo-los os imponderáveis da vida real.Entre eles se incluem coisas como a rotina de um dia de trabalho, os detalhes com o corpo, da maneira de comer e preparar as refeições; o tom das conversas e da vida social ao redor das casas da aldeia; a existência de grandes amizades e hostilidades e de simpatias e antipatias passageiras entre as pessoas; a maneira sutil, mas inquestionável, em que as vaidades e ambições pessoais se refletem no comportamento do indivíduo e nas reações emocionais dos que os rodeiam. Todos esses fatos podem e devem ser cientificamente formulados e registrados, mas é necessário que o sejam, não através de um registro superficial de detalhes, como é habitualmente feito por observadores em treinamento, mas por um esforço de penetração da atitude mental que neles se expressa. (p. 55).

Foi necessário, para tanto, deixar de ser a professora carioca que circulava pela cidade apenas nos dias de trabalho na universidade, para assumir o papel da pesquisadora que circulava diariamente pela cidade, nos mais diversos contextos. O contato diário com a população facilitou a indicação e apresentação de pessoas ditas “importantes” para a pesquisa – políticos e profissionais envolvidos com a causa do adolescente friburguense – em instituições de caráter privado e/ou público de proteção e garantia dos direitos da criança e do adolescente no município. “Pessoas ditas importantes”, indicadas a principio pelos meus alunos friburguenses na universidade, as quais por sua vez fizeram posteriormente suas próprias indicações. Assisti assim à formação de uma verdadeira rede de indicações e apresentações. Alem disso, os e-mails de representantes das instituições acima citadas, que me foram enviados no período de férias, solicitavam notícias sobre o meu retorno ao campo e repassavam informações sobre acontecimentos na cidade. Confirmação da minha “inserção” na vida cotidiana do grupo? – perguntava-me. Constantemente, recebia “dicas” de material importante para

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o meu trabalho, bem como indagações sobre o porquê de não mais participar das reuniões ou dos eventos da cidade.

Através dessas “dicas” de suma importância para o presente estudo, tive a oportunidade de conhecer o Arquivo Documental Histórico da Prefeitura de Nova Friburgo - Pró-Memória -, instituição ímpar, localizada no centro da cidade, em um pequeno espaço físico, sem nenhuma placa de identificação visível , a qual congrega os arquivos da memória friburguense: documentos, fotografias, velhos e novos jornais e trabalhos científicos de uma nova geração de historiadores friburguenses. Enfim, verdadeiro mergulho documentário desde os tempos do Império. Tão logo descobri o Pró-Memória, novos questionamentos vieram à tona. A descoberta da história - não aquela que faz desfilar as pessoas ditas ilustres, mas aquela que se preocupa com um processo social mais abrangente, com as particularidades e potencialidades da região -, não deveria ser conhecida por todos? Por que até mesmo os meus alunos na universidade local desconheciam a instituição? O conhecimento, o saber, a possibilidade de questionar não diminuiriam a zona de vulnerabilidade na qual os jovens pobres se encontram? Não estaria o município na busca do atendimento às disposições preliminares do Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA - com alguns direitos fundamentais: vida, saúde, educação, cultura, dignidade, respeito e liberdade, se estimulasse a aquisição do conhecimento da própria história? Vislumbrei a instituição com uma agenda lotada de marcações de visitas de jovens, por intermédio de suas escolas ou, até mesmo, por intermédio de associações de moradores. Mas o espaço é tão pequeno, freqüentado por tão poucos friburguenses -, embora visitado freqüentemente por estudantes de universidades do Estado do Rio de Janeiro e de outros estados, como pude verificar ao longo do processo de coleta de dados. Pensei, então, como Castel (2001): Mas os supranumerários nem sequer são explorados, pois, para isso, é preciso possuir competências conversíveis em valores sociais, são supérfluos. Também é difícil ver como poderiam representar uma força de pressão, um potencial de luta, se não atuam diretamente sobre nenhum setor nevrálgico da vida social. Assim, inauguram sem dúvida uma problemática teórica e prática nova. Se, no sentido próprio do termo, não são mais atores porque não fazem nada de socialmente útil, como poderiam existir socialmente? No sentido, é claro, de que existir socialmente equivaleria a ter efetivamente um lugar na sociedade. Porque, ao mesmo tempo, eles estão bem presentes - e isso é o problema, pois são numerosos demais (p. 33).

E como alcançar um lugar na sociedade, sem cultura, sem conhecimento dos fatos que marcaram a sua própria história (MAYER, 2003) - as

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Conhecendo a história do município através dos documentos


presenças marcantes indígenas e negras na gênese de Nova Friburgo; a falência administrativa portuguesa e imperial nos primórdios; a heterogeneidade dos imigrantes; a inexistência de um ideal comum que pode ter reforçado o individualismo familiar, prejudicando a socialização -, se desde as origens os colonos foram marginalizados, o que veio a enfraquecer a agregação comunitária? Paralelamente ao processo de levantamento dos aspectos da vida diária dos friburguenses e do comportamento ordenado da comunidade juvenil, bem como do levantamento, através das entrevistas semi-estruturadas, do cotidiano da gestão do município e dos pontos de vista e opiniões de quem participa do planejamento e execução das políticas de atenção integral ao adolescente no município, iniciei o processo de aprofundamento da conjuntura e da constituição de tais políticas, através do jornal A Voz da Serra e das Atas da Câmara Municipal. O material coletado nessas fontes – jornais e atas –, já serviu de apoio para esta descrição do processo de investigação:

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A história se faz e se refaz sem cessar. Muitos aspectos que não mereceram uma grande atenção no passado, hoje se colocam como elemento fundamental para o bem-estar da humanidade. É o caso de campos temáticos envolvendo as relações sociais de produção e moradia,de questões concernentes à saúde física e espiritual e o ambiente (ARAÚJO, 2003, p. 15).

Não enfrentei dificuldades maiores, a não ser gerenciar o tempo para leitura, análise e registro de cada um dos jornais editados no período. A presença constante de interlocutores, funcionários do Pró-Memória, em especial um dos representantes do grupo de jovens historiadores da cidade, citado anteriormente, facilitou a compreensão do processo histórico e a confirmação da veracidade dos fatos publicados nos jornais locais, que em alguns períodos, ocuparam o loccus de oposição ao governo local por pertencerem as famílias de correntes políticas opostas. De outro lado, o trabalho de pesquisa realizado na Câmara Municipal constituiu-se de fases distintas. Caracterizo a primeira como de fácil acesso, em virtude da presença de um dos componentes do grupo dos jovens historiadores da cidade, responsável pelas atas. A segunda fase, iniciada no período de afastamento do referido funcionário por motivos de candidatura nas eleições municipais, caracterizo como reconquista do espaço. Como a Câmara Municipal não dispõe de nenhum espaço físico específico à pesquisa, e as atas não podem ser retiradas do recinto, durante a primeira fase o processo de consulta, análise e registro de fatos relacionados às políticas de atendimento integral ao adolescente e à conjuntura política, ocorreu na sala de som, ao lado do plenário. Tornei-me figura conhecida dos vereadores que chegavam todas as terças-feiras para a plenária semanal. Alguns esboçavam curiosidade, outros pareciam não se importar com minha presença, embora procurassem obter maiores informações com o funcionário responsável pelo setor; outros ainda

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se aproximavam e procuravam obter informações diretas sobre um possível apoio no pleito eleitoral vindouro. “Você não vota aqui, mas pode me indicar para os seus alunos”. (palavras de um dos vereadores, mais comunicativo). Foote-White (1990) cita Goffman, para discutir a posição do observador em relação aos sujeitos em estudo, ou melhor, à interação social estabelecida entre eles:

Na segunda fase, iniciada no período de afastamento do funcionário responsável pelas atas, alojei-me na secretaria da Câmara Municipal. Passei, nesse período, por uma minisabatina sobre o meu percurso profissional, sobre o tema e objetivo da pesquisa, e foi-me recomendada a entrega de um requerimento ao presidente da Câmara, com a solicitação de nova permissão para consultar as atas. Embora as atas apresentem material público, constituem documentos oficiais que, em alguns momentos, desvelam segredos. “Sem dúvida, uma das situações que mais provocam ansiedade num indivíduo é tornar público o que ele considera como comportamento privado, da região anterior”. (BERREMAN, 1990, p. 163). Inegavelmente, os maiores obstáculos (alguns intransponíveis) no decorrer do trabalho de campo surgiram na coleta de dados quantitativos oficiais em instituições governamentais e não-governamentais, fontes de suma importância para levantamento e análise das políticas de atenção integral ao adolescente no município: Conselho Tutelar, Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente, Secretaria Municipal de Saúde, Secretaria Municipal de Educação, Secretaria Estadual de Educação, Fundação para a Infância e Adolescência e as ONGs parceiras, Maternidade Municipal e 151º DP de Nova Friburgo. Inexistência de registros; folhas incompletas de registros estatísticos; falta de notificação dentro das normas técnicas e das rotinas de procedimento de orientação dos profissionais da saúde e da educação responsáveis por tal tarefa – têm gerado subestimação dos dados referentes às condições do adolescente friburguense. De antemão sabia da impossibilidade de encontrar dados inteiramente objetivos, uma vez que estes são decorrentes de operações mentais de quem os registra, ou seja, são construídos e, portanto, sofrem as interferências das variáveis: forma de registro, categorias preestabelecidas para o registro; categorias de análise; interpretação de quem presencia e registra; e posição institucional de quem registra o dado, valendo-se de construtos científicos ou quiçá de senso comum (ZALUAR, 2004).

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Quando um indivíduo entra na presença de outros, estes, em geral, procuram obter informações sobre ele ou trazer à tona informações sobre ele já obtidas. Eles estarão interessados no seu status sócio-econômico geral, sua concepção de ego, sua atitude para com eles, sua competência, sua lealdade, etc. (p.108).


Só não esperava não encontrá-los! Trabalhei, portanto, com as seguintes fontes de informação: estatísticas oficiais da ASPLAN - Assessoria de Planejamento da Secretaria de Estado de Segurança Pública – Assistência de Estatística Administrativa e Criminal da Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro (ainda que incompletas) -; estatísticas de saúde no município (Ministério da Saúde e IBGE); indicadores sociais (IBGE, Atlas de Desenvolvimento Humano no Brasil); estatísticas informais (FIA); dados dos livros de registro do Hospital Maternidade de Nova Friburgo (a estatística foi construída a partir da coleta nos livros). Essa é a base – segundo Zaluar (2004) – referente à violência e à criminalidade, sobre a qual se monta todo o aparato de dados estatísticos oficiais que envolvem interdições, graves penalidades, segredos, perigos e até risco de vida para quem se dispõe a falar sobre o ocorrido. Fome, pobreza, falta de emprego, falta de perspectiva de vida, précidadania, todos esses itens são aqui considerados também como violência. E violência é um problema de saúde. Mas como cuidar de um problema desconhecido, ou melhor, não notificado? Como oferecer proteção a alguém que sequer sabe que corre riscos? Castel (2001, p. 51) afirma que Há risco de desfiliação quando o conjunto das relações de proximidade que um indivíduo mantém a partir de sua inscrição territorial, que é também sua inscrição familiar e social, é insuficiente para reproduzir sua existência e para assegurar sua proteção.

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A importância das falas Assim como Malinowski (1990), procurei no processo de estudo da cultura e da organização da sociedade friburguense levar em consideração os comportamentos, o tom das conversas, as atitudes do corpo e a expressão facial, os pontos de vista e opiniões expressas sobre o município, as condições sociopolítico-econômicas e, principalmente, o jovem pobre friburguense. Chegar mais perto da população friburguense nos mais diversos estratos sociais permitiu-me, ainda, clarificar a percepção da poderosa e invisível hierarquia da sociedade, como na pequena comunidade batizada com o nome fictício de Winston Parva, pesquisada por Norbert Elias e John Scotson, no final dos anos 50 (ELIAS, SCOTSON, 2000). Segundo os autores, Vez por outra, podemos observar que os membros dos grupos mais poderosos que outros grupos interdependentes se pensam a si mesmo (se auto-representam) como humanamente superiores (ELIAS; SCOTSON, 2000, p. 19).

Essa superioridade, em Nova Friburgo, é expressa pelos sobrenomes de origens suíça e alemã, que nomeiam até mesmo as principais ruas e

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praças da cidade. Embora, no que concerne ao fator econômico, as diferenças entre os descendentes de colonizadores (suíços e alemães) e os não-descendentes, que chegaram posteriormente, não sejam mais tão evidentes nos últimos anos. As falas de cada entrevistado – representantes de entidades de proteção e garantia de direitos de crianças e adolescentes friburguenses, políticos locais e os próprios jovens friburguenses –, como num jogo de quebra-cabeça, receberam igual atenção, visto que, segundo Gluckman (1990), o objetivo do pesquisador não é descobrir a interpretação correta, mas procurar explicar as interpretações particulares e transformar os ditos sujeitos da pesquisa em atores, e não em informantes. Logo, todos os sujeitos descritos acima, independentemente de suas posições no município, do político ao cidadão comum, considerados respectivamente como established ou outsider, no sentido atribuído pelos ingleses (NEIBURG, 2000), auxiliaram na construção do conhecimento sobre a história de Nova Friburgo: suas lendas, seus personagens, fatos pitorescos, cultura política, e principalmente, o perfil dos seus jovens pobres. Os problemas práticos relacionados à questão de identificação social do pesquisador, apontados por Foote-White (1990), foram claramente percebidos ao longo do processo de coleta de dados. Apesar da aceitação de minha figura como pesquisadora na cidade, continuei sendo “carioca”. Em alguns momentos das entrevistas, os interlocutores questionavam se a situação do adolescente no Rio de Janeiro era muito diferente de Friburgo. Para os atores adolescentes, eu fazia parte de outra cultura, de uma cidade que desperta curiosidade, porém receio. Muitos nunca vieram ao Rio de Janeiro, apesar do curto tempo de viagem: 2h30m. Muitos não conhecem outros municípios na própria região serrana. Ainda segundo Foote-White (1990), torna-se imprescindível descartar qualquer juízo de valor no convívio com os atores. E muito menos agir como estes, em busca de integração. Dessa forma, abdica-se da visão etnocêntrica que permite considerar os termos e valores de uma cultura (cidade grande) como melhores ou mais avançados em detrimento de outra cultura (interior). A incursão em outro mundo permite ao pesquisador conhecer melhor a cultura do “nativo” (friburguenses) e ampliar o conhecimento sobre a sua própria cultura. Embora Nova Friburgo tenha alcançado no último Censo Demográfico (IBGE 2000) o total de 173.418 habitantes - 84.281 homens e 89.137 mulheres, com o maior número de habitantes concentrados na faixa etária de 10/19 anos (30.202) -, e compreenda no seu espaço geográfico três universidades (duas privadas, uma pública), duas faculdades (uma municipalizada, uma privada), seus habitantes ainda se autodenominam moradores de uma pequena cidade do interior do Rio de Janeiro e, por isso, orgulham-se de conhecer quase todos os moradores. Como eu já atuava em uma universidade local desde 2000, o momento do choque cultural foi vivenciado bem antes do início do processo da


pesquisa, o que me permitiu vencer os obstáculos mais facilmente ao entrar em campo, e não passar por um período de marginalidade tão longo, como cita Foote-White (1990), pelo fato de estar entre duas culturas, sem fazer parte integrante de nenhuma delas. Descobri que as pessoas não esperavam que eu fosse igual a elas; na verdade, sentiam-se atraídas e satisfeitas pelo fato de me acharem diferente, contanto que eu tivesse amizade por elas.(FOOTE-WHITE, 1990, p. 82).

E, parafraseando Schwartz e Schwartz (Citados por CICOUREL, 1990), no decorrer do processo de investigação científica estamos em uma relação face a face com os observados (atores), participando de sua vida, no seu cenário natural. E por estarmos presentes no contexto , ao mesmo tempo somos modificados pelos atores e os modificamos. Assim como nas palavras de Evans-Pritchard (1990):

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A viagem de estudo etnográfico pode ser uma experiência reveladora e de enorme valor, uma vez que coloca o etnógrafo numa posição controladora que permite observar simultaneamente duas culturas- a sua própria (incluindo o seu treinamento de antropólogo) e a do grupo que está estudando. É exatamente neste momento que ele desenvolve a visão social estereoscópica (p. 249).

À medida que eu era aceita nas instâncias do município em estudo, alguns convites foram feitos. Declinei dos que envolviam cargos, mas aceitei com prazer a participação em eventos promovidos pela Secretaria de Estado de Educação, como palestrante em mesas de discussão sobre o tema Construindo a Cidadania da Criança e do Adolescente, no município de Nova Friburgo. “Ainda que me esquivasse de influenciar indivíduos ou grupos, tentei ser útil no sentido em que se espera auxílio de um amigo em Cornerville”.(CICOUREL, 1990, p.83). Cicourel (1990) apresenta ainda a argumentação de que a conseqüência imediata da participação do pesquisador na vida do grupo em estudo é a solicitação de ajuda feita por esse grupo para decidir a política que vai alterar suas atividades. Percurso final Ao longo de todo o processo de coleta de dados para a pesquisa, vivenciei, dia a dia, todas as questões apresentadas pelos autores e discutidas neste artigo. O aprendizado foi imenso, porém, o mais importante, prazeroso. Lidar com todo o material coletado constitui o grande desafio do pesquisador. É necessário, como propõe Zaluar (2000), que a tomada das entrevistas resulte em um texto que facilite o distanciamento para o pesquisador; bem como facilite o captar da troca de idéias presentes no diário de campo, com o intuito de arrancar sentidos variados na polifonia existente, sem reduções ou empobrecimento, a fim de conhecer melhor os instrumentos, valores, recursos e regras de convivência que presidem as práticas sociais dos pesquisa-

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dores. Porém os pesquisadores devem também manter-se dentro das discussões teóricas e políticas.

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Referências


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FILOSOFIA

O BELO, A FILOSOFIA E OS HORRORES DA HISTÓRIA: (um fragmento de um texto perdido) FRAGMENT OF A LOST TEXT: THE BEAUTY, THE PHILIOSOPHY AND THE HORRORS OF HISTORY

Resumo: Trata-se de uma meditação sobre a perda da importância da categoria do “belo” na estética contemporânea e dos pressupostos histórico-filosóficos dessa perda. Palavras-chave: Modernidade; belo; história; filosofia. Abstract: It is a meditation on the loss of importance the category of "beauty" in contemporary aesthetics and historical and philosophical assumptions of this loss. Key words: Modernity; beauty; history; philosophy.

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Abrahão Costa Andrade


Entanto lutamos, Mal rompe a manhã. Drummond

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1 Antecipações Em certa altura da história da arte moderna, o belo, ou a questão estética do belo, tornou-se sem importância. Como, do ponto de vista filosófico, explicar essa perda da importância do belo? Para responder bem a esta pergunta, é preciso pôr outra questão: qual foi mesmo, na modernidade, a importância do belo? Ora, falar filosoficamente do belo na modernidade é, sem dúvida, fazer referência direta a Kant. Como se sabe, embora a modernidade não comece com Kant, foi ele o filósofo que, antes de Hegel, melhor sentiu, pensou e expressou por escrito o drama histórico da modernidade. Mas, dito assim, mais outra questão, ainda mais prévia, logo se esboça: o que foi (ou o que é) a modernidade e que drama foi o seu? A modernidade, do ponto de vista filosófico, é certa mudança de rumos na discussão teórica e prática sobre o mundo, em direção a uma filosofia que deixa de ser uma filosofia da substância e passa a ser uma filosofia do sujeito. Mas como “substância” e “sujeito” não são meras palavras difíceis, porém a tradução livre que a filosofia faz de momentos históricos muito concretos, é preciso entender melhor, de um ponto de vista social-histórico, o que fora o tempo da substância e que tempo novo é esse que rompe com a substância em favor da “subjetividade”. A noção filosófica de substância, nesse sentido, está intimamente relacionada com a noção histórico-cultural de coesão social ou laços de relações humanas com as quais se estrutura a experiência de vida comunitária; bem como o advento da noção de subjetividade traduz filosoficamente o tempo em que o homem como indivíduo começa pouco a pouco, mas de um modo irreversível, a entrar numa configuração social em que os laços comunitários são cortados (voluntariamente ou não) em vista da deflagração da dispersiva experiência de vida em grandes cidades. Sem dúvida, essa tensão entre indivíduo e sociedade já fora vivida no próprio início grego da filosofia. O nascimento da filosofia é incompreensível fora do nascimento da vida citadina. A expansão do comércio, ali, estreitou os laços entre Ocidente e Oriente, fazendo com que a cultura grega fosse confrontada com novas formas de vida e com novos questionamentos, que, cedo ou tarde, iriam estiolar a unidade de suas crenças e, assim, propiciar o surgimento de um debate público que possibilitou o exercício dessa forma de pensar, contraposta ao mito, que veio depois a ser reconhecida como “filosofia”: no fundo, um discurso sobre o que seria o Ser, para se ter a certeza do que seriam a virtude, a justiça, o conhecimento, a verdade, o bem... para se ter a resposta sobre qual seria a melhor organização da cidade (pólis); um discurso sobre de que modo o cidadão deveria, baseado nas respostas encontradas, agir e se relacionar com os outros dentro da vida social e políti-

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ca. A diferença entre o mito e a filosofia surge aí como primeira configuração daquilo que, mais tarde, será a diferença entre comunidade e sociedade. O mito é um pensamento de coesão, no sentido de que sua crença compartilhada dá forma a uma vida comunitária na qual cada um se reconhece como parte integrante e dentro da qual sua vida faz todo o sentido. A filosofia, surgida na confusão de um tempo emergente, consolidou-se como um pensamento que desmantela as explicações vigentes; ela atrai, por isso mesmo, discussões e disputas acirradas, e gera tensões que, ao fim e ao cabo, dão testemunho da própria natureza conflitiva da vida política e social, de cujas necessidades ela apareceu. Aliás, não foi por acaso que a Grécia clássica ficou conhecida – graças a esse momento de liberalidade e atropelos que suscitou a possibilidade do surgimento da filosofia – como o grande berço do individualismo ocidental. O que acima foi chamado de atropelo A. MacIntyre, em seu livro Justiça de quem? Qual racionalidade?, designou como o conflito de duas tradições advindas da herenaça homérica: aquela que acreditava na excelência e aquela outra que se satisfazia com a eficácia. A ideia de excelência conta com a noção de uma natureza humana; a de eficácia, não; sua meta são os bons resultados. A busca platônica por um Bem substancial e a pesquisa aristotélica à caça da própria substância mantém-se na tradição da excelência. Mas essa busca não diz claramente que os gregos viviam em harmonia, como parece ter sido a experiência cristã relatada nos Atos dos apóstolos, segundo os quais eles “tinham tudo em comum”, mas, antes, que essa harmonia, por estar em falta, era, sobretudo, uma necessidade a ser suprida. A filosofia é a primeira figura desse suprimento. Não menos que o primeiro sintoma daquela necessidade. O cristianismo, imiscuindo-se nessa história, consolidou ao longo de vastos séculos um estilo de vida dentro do qual a obediência a certas normas moldou uma experiência fortemente comunitária, respaldada pela própria estrutura econômica feudal, dentro da qual a noção de substância, graças a Deus, fazia plenamente sentido para os filósofos da época, o que dava razão à supremacia da teologia sobre a filosofia. A idade média, com efeito, pautou-se, com o poder da Igreja, em uma vida ordenada por regras vindas de fora: da autoridade para dentro dos membros de cada comunidade, e isso oferecia a esses membros aquele sentido de coesão e pertença, cujo conteúdo normativo era a própria essência da liberdade dos medievais, conforme assegurariam as pesquisas de um J. Le Goff. Mas esse sentido logo seria perdido quando novo surto de expansão comercial coloca a Europa em uma nova era econômica, que logo também seria uma nova forma de comportar-se face ao mundo. Isto não quer dizer, porém, que no confronto entre idade média e modernidade se repita o confronto antigo entre mito e razão, mas explicita um confronto de racionalidades incompatíveis. A razão medieval, aquilo que fornecia sentido aos membros da comunidade, era a própria autoridade da tradição compartilhada. Falar de uma razão substancial, em contraposição à razão formal dos modernos, é enfatizar esse sentido exterior de coesão social


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que a tradição preestabelecia. Neste sentido, é o próprio esfacelamento dessa experiência comunitária de vida que irá, por sua vez, explicar o processo de formalização da razão moderna. O que seria, de fato, uma razão formal? Se aquela outra razão era o sentido de ordem que a tradição, de fora para dentro, oferecia; a razão formal seria aquela que, diante da perda das normas ou do afastamento do convívio com aqueles que tornavam aquelas normas necessárias, percebe o campo do real não mais entregue a uma coerência exterior e, então, busca, a partir da própria interioridade de quem se viu desligado da comunidade e metido, como um indivíduo, na multidão e na solidão das cidades emergentes, busca dentro de si os elementos que, se possível, voltarão a dar sentido à totalidade do real. Desde já, na medida em que o surgimento dessa razão interiorizada é contemporâneo do surgimento das cidades e do encontro com formas de vida sobremaneira exóticas (descobertas graças às grandes navegações), é possível notar que o desvencilhar das amarras da autoridade tradicional não deixa de ser uma experiência irrecusável de liberdade; ou, pelo menos, aí estão as primícias do que mais tarde nós iríamos entender por tal. De fato, é nessa direção que se pode explicar como foi possível a Martinho Lutero reagir aos abusos da Igreja católica e perpetrar sua reconhecida Reforma Protestante. Ao traduzir a Bíblia para o alemão, Lutero, contando com a então recente revolução tecnológica que fora a invenção da impressa gutenberguiana, possibilitou que cada novo crente pudesse encontrar-se diretamente com as verdades reveladas, sem o auxílio deformador da teologia católica. Era a noção de liberdade interior que respaldava essa ousadia, tão zelosamente protegida pelos interesses econômicos e políticos da classe emergente, a burguesia, nos primórdios do capitalismo que M. Weber chamaria mais tarde de “moderno”. Assim, se de um ponto de vista histórico são as grandes navegações; a reforma protestante e o surgimento das grandes cidades (e, com elas, a burguesia) os fatos primaciais da modernidade; do ponto de vista filosófico o fato primeiro da modernidade foi o homem, em conformidade com esses eventos, ter-se tornado sujeito. O que significa isso? Já se disse, com efeito, que em nenhum momento da história da filosofia, senão por essa época, a noção de sujeito esteve ligada à noção de homem. Na Grécia, como então, a experiência da individualidade do indivíduo foi perfeitamente possível, mas somente agora, nos tempos modernos, essa individualidade se traduziu filosoficamente como subjetividade. Sujeito, sim, traduz a palavra latina subjectum – aquilo que se lança e se estende por baixo do que assim é suportado. Essa palavra latina, por sua vez, traduz o termo grego hipokeimenon, que na física aristotélica, como lembra Roberto Markenson, alhures, lendo Heidegger, era o nome do espaço sobre o qual a natureza conhece suas mudanças, permanecendo, entrementes, a mesma: o homem se tornar sujeito implica, portanto, que doravante é ele o lugar a partir do qual as coisas do mundo fazem sentido. O homem como sujeito implica, mesmo, que todo o mundo não passa, para o homem, de um objeto: aquilo que se põe diante dele, mas também

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aquilo que se pode mensurar, classificar, manipular, dominar, apropriar, pôr à mão e, na sua disponibilidade, consumir. Doravante a natureza, no homem e fora dele, está submetida à liberdade absoluta de sua subjetividade. Todavia, a experiência de liberdade tornada possível em meio a essa nova configuração histórico-social, e cultural, antes de dar resposta final aos problemas do mundo tornou-se, em si mesma, a presença de um enorme problema. Por um lado, esse quinhão de liberdade era tão necessário, que renunciar a ele se tornou impossível, já que a liberdade cedo se mostrou como um elemento essencial à realização completa da humanidade dos seres humanos (isto é, ser humano passa a significar ser livre, nesse sentido esboçado); por outro lado, a experiência histórico-social que o tornou possível antes obstrui que facilita aquela completa realização, pois essencial também à humanidade dos seres humanos é o viver com os outros, não só os outros homens e mulheres, mas também os outros elementos que compõe o mundo exterior, aí contando o próprio planeta, ou a natureza como um todo. Daí aquilo que acima foi chamado o drama da modernidade: como conciliar a liberdade e a natureza? Se são tão incompatíveis, ou heterogêneas, como então, e em primeiro lugar, a liberdade do sujeito pode conhecer a natureza do mundo? Para compreender esse drama e, ao mesmo tempo, oferecer uma saída possível, foi que Kant escreveu a Crítica da razão pura e suas obras posteriores. Mas, ao fazê-lo, Kant já se encontra inteiramente dentro do espírito de sua época, e elabora o problema já em termos de dominação da natureza pelo conhecimento: como são possíveis juízos sintéticos a priori? A questão, de fato, é, inicialmente, de ordem epistemológica; tem a ver com uma teoria do conhecimento. Mas isso não a exime de implicar toda uma série de outras questões que diz respeito ao problema mais vasto, e que salvo engano é o cerne da própria filosofia, sobre as providências necessárias para se responder à pergunta acerca de como viver bem no mundo que se espraia em nós e à nossa volta, além de nós. A estratégia kantiana, para resolver o impasse entre natureza e liberdade, ou o fora e o dentro, foi supor que o fora é um traço estrutural do dentro; isto é, foi sustentar que as estruturas internas do sujeito livre são homólogas às estruturas externas da natureza exterior determinada e determinável, e por isso pode, ao receber os dados dessa natureza, processá-los com sucesso, por encontrar dentro de si infraestrutura suficientemente montada para transformar esses dados soltos em conhecimentos seguros. Essa infra-estrutura é o que justamente Kant chama de “sujeito transcendental”, um conjunto de faculdades heteróclitas e interdependentes, atores móveis no palco do sujeito: sensibilidade; imaginação; entendimento; razão; e o funcionário mais laborioso, esse gerente incansável, ou diretor de cena, que seria o “eu penso”, e que deve poder acompanhar cada uma das representações colhidas naquele estranho palco transcendental. Com isso, o conhecimento do mundo fica dependente do conhecimento mais fundamental da subjetividade do sujeito, pois a natureza, agora, fica reduzida às relações entre as formas da sensibilidade (espaço e tempo e os poderes destes de capturar os dados sensíveis do mundo exterior) e as


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categorias do entendimento (de quantidade; qualidade; relação e modalidade, e os poderes destas em ordenar e tornar cognoscíveis aqueles dados), formas e categorias mediadas pela diligente imaginação reprodutiva, que traduz a exuberância dos dados sensíveis em esquemas mais ou menos simples para o insensível entendimento, excessivamente limitado para “entender” o que antes não fora tracejado em forma de esquemas. O entendimento, sim, é limitado, como a própria natureza de que ele é a forma universal. Mas se o entendimento, limitado, é a forma universal da natureza, há uma forma universal da liberdade, essa, sim, ilimitada, a razão. E, dizendo assim, o problema de como resolver, no mundo, os impasses entre a liberdade ilimitada do homem e convivência limitada com a natureza do mundo exterior, torna-se, em Kant, o problema de como conciliar a liberdade da razão com a limitação do entendimento. Kant traduz na linguagem de seu idealismo crítico – no qual o fora é parte integrante do dentro – aquele problema designado “o drama da modernidade”: o da necessidade de ser livre, mas dentro de um mundo determinado; e é aqui que a noção de belo ganha toda sua importância. Pois o belo será definido como uma experiência subjetiva, um jogo de harmonia entre faculdades díspares e em tensão; uma experiência subjetiva que, entretanto, pressupõe e exige uma intersubjetividade. A essa altura, é preciso que esteja compreendida essa maneira toda especial de a filosofia funcionar: essa conversa de que o fora está dentro; pois do contrário corremos o risco de achar que nos perdemos no assunto prometido de ser tratado. Quando Kant fala das faculdades transcendentais, ele as tem em vista como a forma universal de propriedades particulares bem precisas. Se há uma razão é porque a liberdade é possível; se há o entendimento é porque a natureza possui leis universais; se a questão premente da modernidade é a de como ser livre no interior de um mundo natural e social no qual a condição de haver liberdade é simultânea à impossibilidade de uma vida comum em harmonia (com a natureza e com os outros), então será preciso ver se é possível uma convivência sadia entre a faculdade da razão e a faculdades do entendimento, porque essa possibilidade encontrada será a segurança filosófica de que a convivência entre liberdade e natureza, na história, também será, em princípio, possível. A natureza, em Kant, não pode ser bem compreendida, se reduzida ao objeto da física mecânica; Kant foi um leitor de Rousseau e, enquanto tal, também pensou a natureza como o espaço de construção de uma vida aprazível, em cujas paisagens, modificadas pelos homens e mulheres, possibilitava a vida social. O elogio do belo natural em Kant é o elogio desse espaço natural como espaço de sociabilidade; espaço não só onde a liberdade seria possível como, ainda mais, encontraria sua plena realização; pois se é certo que a liberdade é o que faz a história, menos verdadeiro não seria que é sobre a natureza que uma história é realizada. A incompatibilidade entre natureza e liberdade, ou melhor, entre entendimento e razão não é o resultado da filosofia kantiana, mas seu ponto de partida. Como, portanto, ir além e salvar um pensamento da possibilidade de uma convivência entre razão e entendimento?

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Essa questão, que coloca o bom convívio como horizonte desejável, sem frustrar a realização da liberdade, no sentido moderno, parece indicar uma saída para um outro problema, paralelo a este e tão crucial quanto o de pensar a subjetividade do sujeito não mais restrito às suas injunções subjetivas, mas em vista de alcançar uma forma de conceber o sujeito com os outros sujeitos. Isto é, se a modernidade é contemporânea do advento do sujeito centrado em si mesmo, e o advento desse sujeito, embora seja índice de liberdade, seja índice também de conflito perturbador da possibilidade de viver em paz com os outros, então o advento da modernidade é, em sua origem, causa de um bem (a liberdade) e de um mal (a dissipação das formas de vida em comum). Pensar na modernidade, já para Kant, seria também uma forma de pensar a modernidade e, nesse sentido, pensar uma forma de sair dela, de superá-la, num sentido em que a conquista daquele bem não resultasse na aquisição daquele mal. O belo, para Kant, juntamente com o sublime, definidos como livre jogo entre as faculdades, seria a experiência como uma estufa, com a qual aquela convivência se tornaria possível no interior da experiência de liberdade. No entanto, é preciso reconhecer que Kant não foi completamente feliz em sua proposta, pois ao reivindicar para o juízo de gosto – “Isto é belo” – a universalidade que comportaria a chance de pensar a sociabilidade como congruência de natureza e liberdade, insistiu demasiado, e com razão, todavia, em que esse juízo universal era, contudo, somente subjetivo. Quer dizer: quando alguém expressa um juízo estético, o faz na pressuposição de que aquilo que ele enuncia pode, em última instância, ser partilhado com toda uma comunidade de convivas; mas este juízo é e permanece sendo um juízo de gosto, isto é, somente subjetivo. O que se quer aqui enfatizar é o seguinte: a proposta kantiana de uma crítica da faculdade do juízo estético é a oferta de uma solução contra a solidão do sujeito moderno sem, entretanto, dar adeus a esse sujeito: sem desmantelá-lo. O juízo sobre o belo é o enunciado que transcreve a experiência de uma harmonia interna entre as faculdades transcendentais, mas, na medida em que é um juízo – “Isto é belo” –, pressupõe a comunicabilidade e, com esta, a eventualidade de uma concordância universal. O sujeito sabe, ainda que tacitamente, que não está sozinho; e gozar da beleza é, necessariamente, compartilhá-la. Para ser justo com Kant, portanto, é preciso dizer que sua proposta guarda essas duas dimensões: o belo é, ao mesmo tempo, uma experiência subjetiva e uma reivindicação de intersubjetividade; ou seja, a convivência com outros sujeitos, isto é, com outras liberdades, num mundo simultaneamente natural e social, dependeria de uma experiência estética, mesmo se o belo não condicione a validade dos princípios morais. O sucesso do Romantismo entre os fins do século XVIII e os inícios do século XIX está intimamente ligado a essa crença no poder de reunificação da experiência com o belo. Schiller, inicialmente, foi quem levou essa intuição o mais longe que se podia levar, designando o belo por seu nome próprio, a saber, “impulso para o jogo”, ou


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impulso lúdico, espécie de charneira onde afinal se encontrariam em dança amigável os incompatíveis impulsos sensíveis e impulsos formais. Os impulsos sensíveis, diria Schilller, são pura vida; os impulsos formais, pura forma. A beleza, como jogo entre ambos, seria uma forma viva. O desencontro kantiano entre natureza e liberdade; razão e entendimento; ou entendimento e sensibilidade, Schiller o traduz como um descompasso, uma hipertrofia, aqui ou ali, seja de sensibilidade em um canto; seja de formalidade, em outro; e chega a acreditar que a humanidade se perde de seu destino quando emperra em unilateralidades, porque o seu destino é ser um todo, e esse todo seria impossível fora da experiência de jogo que é o contacto com o belo. Mas Schiller vai mais longe que Kant, ainda, quando tenta sair da filosofia em vista de pôr em prática, por uma pedagogia, isso que a filosofia ensinou: ele perspectiva uma educação estética do homem como saída do impasse da modernidade. Para que o homem seja um todo, isto é, para que a experiência histórica da humanidade seja um todo de liberdade individual e convívio social, é preciso jogar; é preciso brincar. Todavia, quando as experiências teóricas e históricas, entre o final do século XIX e o começo do século XX, tornaram problemática uma filosofia do sujeito, por um lado, e exigiram da arte uma resposta muito mais drástica às novas situações do homem no mundo, por outro, a recusa de um sujeito centrado sobre si mesmo levou consigo a recusa da noção de belo, e com ela a esperança de que a experiência estética que é o gozo do belo pudesse, mesmo, resolver as tensões do mundo contemporâneo. O mundo, depois de Kant e Schiller, tornou-se, não um campo de brincadeiras, mas, de um hemisfério a outro, um verdadeiro canteiro de obras, um mundo do trabalho. Certo que, por isso, alguém lembrou que, se não o jogo, o trabalho dignificaria o homem. Mas, também aqui, não se viu dignidade, senão, antes, danos. No mundo capitalista, o trabalho danifica o homem e, com ele, o projeto de uma humanidade reconciliada, entre convívio e liberdade. A crise completa da noção de sujeito como centro das preocupações filosóficas é contemporânea do fracasso das revoluções de 1848. Ou, dito de outro modo, o tremendo massacre dos trabalhadores pelas forças policiais da burguesia e o subseqüente tempo bom para o capitalismo, que usufruiu por essa época, segundo E. Hobsbawm, o melhor momento de sua história, mataram, embora não de vez, a expectativa, não só de que o belo pudesse reconciliar a humanidade consigo mesma, como até mesmo de se uma experiência estética como harmonia dos contrários pudesse ser realmente possível; já que ela se daria, em princípio, num sujeito, e este sujeito, na realidade, há muito que se encontrava sobremodo dilacerado, pelo menos desde a obra de K. Marx e F. Engels. Se Karl Marx é, na filosofia, e com efeito, a figura emblemática dessa época; na história da arte Paul Cézanne seria o primeiro a sentir e exprimir o mais profundamente o significado dessa crise. Não seria à toa sua predileção por pintar naturezas mortas. As naturezas mortas de Cézanne têm isso, de paradoxal: trazem, do humano, somente seus utensílios; e da natureza, o

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Texto aprovação para publicação em abril de 2010.

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que há muito se tornou, como maças e laranjas, meras mercadorias. A ausência do humano em pessoa corresponde à ausência da natureza em ser vivo. Ambas dão testemunho, portanto, não só de que a natureza está morta, mas também de que o humano saiu de cena para ficarem, apenas, as coisas. Mas a grandeza de Cézanne não está só nisso, pois – “alavanca desviada de seu fulcro” – não fora o único a pintar naturezas mortas, mas sem dúvida foi o primeiro a pintálas da forma como pintou; fez pouco da perspectiva em favor de uma concepção geométrica do mundo, antecipando, com isso, o Cubismo, sim, e principalmente, no quesito da deformação contra o aprazível de uma beleza já então gratuita, como será a regra depois, abriu as comportas da arte contemporânea. A arte como o lugar da deformação (e não da beleza) é a resposta dada ao mundo que, pela exploração do trabalho, põe o homem não como um ser a se realizar, mas a se deteriorar na medida mesma em que, com seu trabalho, se esforça por encontrar-se a si mesmo nas coisas que deseja possuir, mas que, ao fim e ao cabo, não se encontra senão a si mesmo, porém não mais como humano nas coisas, senão que como coisa inumana. Esse, com efeito, será um dos temas centrais do pensamento de Marx. A máquina, diria Marx, lançou fora seu maquinista, e agora funciona sozinha, sobranceira, independente. O desenvolvimento das forças produtivas alcançou um nível de otimização que tornaria inútil a ideologia basbaque de que o trabalho dignifica o homem. O que Marx chamou tardiamente de “fetichismo da mercadoria”, esse fenômeno pelo qual o que sai das mãos dos trabalhadores se torna em algo maior e inacessível à compreensão de quem o fez, não descreve apenas o processo interno da produção do capital via expropriação do trabalho, mas denuncia, ainda, o fim completo de toda ingenuidade possível: fora de qualquer brincadeira, está provado, o trabalho desumaniza o homem. Ora, falar de belo; preocupar-se com o belo num mundo pós 1848; pós 1914; pós 1945, ou seria ingenuidade, ou cinismo. Como falar do belo, com efeito, sem ingenuidade ou cinismo, depois dos mortos de 1948; depois dos amputados e enlouquecidos e emudecidos soldados de 1914; depois dos campos de concentração nazistas de Auschwitz; depois de Hiroshima e Nagazaki; ou, aqui entre nós, depois de Canudos? E, no entanto, se fala. Mas o leitor saberá, espera-se, decidir com quanta ingenuidade, ou com quanto cinismo, isso ainda acontece.


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ICTIOLOGIA

REGISTRO DE JUVENIL DE Ocyurus chrysurus (BLOCH, 1791) (ACTINOPTERYGII: LUTJANIDAE) NA PRAIA DA GAMELEIRA (ILHA DE ITAPARICA), BAÍA DE TODOS OS SANTOS (BAHIA) RECORD OF JUVENILE OF Ocyurus chrysurus (BLOCH, 1791) (ACTINOPTERYGII: LUTJANIDAE) IN GAMELEIRA BEACH (ITAPARICA ISLAND), TODOS OS SANTOS BAY (BAHIA)

Resumo: A presença de Ocyurus chrysurus (Bloch, 1791) (Actinopterygii, Lutjanidae), espécie de valor comercial, é registrada na Praia da Gameleira (lado oriental da Ilha de Itaparica, Baía de Todos os Santos, estado da Bahia, litoral nordeste do Brasil) com base em 1 exemplar, juvenil, medindo 92,0 mm de comprimento total (66,5 mm de comprimento padrão). Palavras-chave: Registro, peixe ósseo, Ocyurus chrysurus, Baía de Todos os Santos, Bahia. Abstract: The presence of Ocyurus chrysurus (Bloch, 1791) (Actinopterygii, Lutjanidae), species of commercial value, is recorded in the Gameleira Beach (eastern side of Itaparica Island, Todos os Santos Bay, Bahia state, northeastern littoral of Brazil) with basis in 1 specimen, juvenile, measuring 92,0 mm of total length (66,5 mm of standard length). Keywords: Record, bony fish, Ocyurus chrysurus, Todos os Santos Bay, Bahia.

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Paulo Roberto Duarte Lopes Jailza Tavares de Oliveira-Silva Milena Ferreira Costa Vinícius Borges Cerqueira


Introdução Ocyurus chrysurus (Bloch, 1791) ocorre no Oceano Atlântico tropical ocidental, sendo conhecido do Canadá ao sudeste do Brasil, em águas costeiras até 70,0 m de profundidade, e atinge pelo menos 86,3 cm de comprimento total (MENEZES, FIGUEIREDO, 1980; ALLEN, 1985; CERVIGÓN, 1993; ANDERSON Jr. in CARPENTER, 2002; MOURA, MENEZES in MENEZES et al., 2003).

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Material e métodos Itaparica, com 256 km , é a maior dentre as ilhas da Baía de Todos os Santos (BTS) e além de sua população residente, recebe grande número de visitantes, principalmente nos meses mais quentes do ano, que buscam lazer em suas praias de variadas características (substrato arenoso, lamoso, duro). A Praia da Gameleira está situada no lado oriental da Ilha de Itaparica (cerca de 12°56’S - 38°36,5’W) sendo a mais próxima do terminal de Bom Despacho (distando cerca de 1,0 km de onde parte o ferry-boat, o principal meio de acesso à ilha a partir da cidade de Salvador, a terceira maior cidade do Brasil em população). A praia da Gameleira tem forma de concha, é de mar calmo, apresenta substrato constituído de uma mistura de lama e areia, com alguma vegetação associada e poucas pedras. Dispõe de um pier de atracação e é bastante freqüentada por banhistas, especialmente no período de calor (BAHIA, SECRETARIA DA CULTURA E TURISMO. 2000). O material citado neste estudo foi coletado em 14 de março de 2009, em um trecho da Praia da Gameleira, com auxílio de uma pequena rede de arrasto manual, no período compreendido entre a baixa-mar e o início da preamar, entre o final da manhã e o início da tarde, em profundidade de no máximo 1,7 m. Após a captura, o exemplar foi inicialmente mantido em gelo sendo em seguida fixado em formol 10% e posteriormente transferido para álcool 70%, onde se encontra conservado e depositado na coleção do Laboratório de Ictiologia (Departamento de Ciências Biológicas) da Universidade Estadual de Feira de Santana. Caracteres morfométricos baseiam-se nas definições propostas por ALLEN (1985) e foram determinados no lado esquerdo do exemplar, com auxílio de paquímetro com precisão de 0,05 mm, exceto o comprimento total que foi obtido com auxílio de ictiômetro e régua com precisão de 1,0 mm. Resultados LIUEFS 13026 (1: 92,0 mm de comprimento total; 66,5 mm de comprimento padrão, CP) Caracteres merísticos: rastros branquiais: 7 (ramo superior), 20 (ramo inferior) (direito e esquerdo); nadadeiras peitorais: 16 (direita e esquerda); nadadeiras pélvicas: 1 espinho e 5

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raios (direita e esquerda); nadadeira dorsal: 10 espinhos e 13 raios; nadadeira anal: 3 espinhos e 9 raios. Caracteres morfométricos e proporções corporais: comprimento do focinho: 10,3 mm, 15,5% do CP; diâmetro orbital: 7,0 mm, 10,5% do CP; comprimento da cabeça: 26,1 mm, 39,2% do CP; altura do corpo: 24,0 mm, 36,1% do CP. Colorido (em álcool 70%): Região superior e lateral do corpo de cor amarronzada. Região inferior do corpo e ventre de cor clara. Na cabeça, a cor marrom se estende até a margem inferior da órbita com o restante da mesma cor clara do corpo. Nadadeiras hialinas.

No sudeste do Brasil e na Bahia, O. chrysurus é conhecido como guaiuba (MENEZES, FIGUEIREDO, 1980; LOPES, comunicação pessoal). Segundo ANDERSON Jr. in CARPENTER (2002), O. chrysurus é considerado um dos peixes recifais de águas rasas mais comuns na área do Caribe. A guaiuba é de interesse para a pesca esportiva e comercial sendo sua carne considerada de boa qualidade e altamente apreciada. No Brasil é consumida principalmente na região nordeste, onde aparece com relativa freqüência no mercado (MENEZES, FIGUEIREDO, 1980; ALLEN, 1985). No Atlântico central ocidental, O. chrysurus é comercializado principalmente fresco, às vezes congelado (ALLEN, 1985; ANDERSON Jr. in CARPENTER, 2002). Segundo MENEZES, FIGUEIREDO (1980), os jovens de O. chrysurus vivem agrupados em águas litorâneas, geralmente associados a recifes, enquanto ALLEN (1985) e ANDERSON Jr. in CARPENTER (2002) afirmam que os juvenis são geralmente encontrados sobre “weed beds”. CERVIGÓN (1993) cita que exemplares entre 50,0 e 300,0 mm de comprimento total (35,0 e 200,0 mm de comprimento padrão) são comuns na Venezuela e às vezes abundantes em pradarias de Thalassia, entre 0 e 10,0 m de profundidade. Os dados merísticos e morfométricos do exemplar aqui citado coincidem, em sua maior parte, com o que é citado por ALLEN (1985) e CERVIGÓN (1993). Em praias no interior da BTS, com o mesmo apetrecho de coleta aqui utilizado, a espécie de Lutjanidae mais capturada é Lutjanus synagris (Linnaeus, 1758), representado também por juvenis cuja alimentação na Praia de São Tomé de Paripe (Salvador, lado oriental da BTS) foi analisada por LOPES et al. (2004). A coleta deste juvenil de O. chrysurus no interior da BTS confirma a importância desta área para proteção, crescimento e alimentação de espécies, algumas das quais são comercialmente importantes, justificando a necessidade da conservação e manejo adequado dos ecossistemas que a compõem e que se encontram seriamente ameaçados pela ocupação humana desordenada e pela poluição.

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Discussão


Agradecimentos À Universidade Estadual de Feira de Santana, pelo auxílio proporcionado para a realização deste estudo. Referências ALLEN, G.R. FAO species catalogue. Vol. 6. Snappers of the world. An annotated and illustrated catalogue of lutjanid species known to date. FAO Fish. Synop. 6 (125): 1-208, 1985. ANDERSON Jr., W.D. Lutjanidae. In: CARPENTER, K.E. (ed.). The living marine resources of the Western Central Atlantic. Volume 3: bony fishes part 2 (Opistognathidae to Molidae), sea turtles and marine mammals. Rome: FAO Species Identification Guide for Fishery Purposes and American Society of Ichthyologists and Herpetologists Special Publication no. 5, 2002. BAHIA - SECRETARIA DA CULTURA E TURISMO. Roteiro Ecoturístico da Bahia - Baía de Todos os Santos. Salvador: Secretaria da Cultura e Turismo, 2000. CARVALHO FILHO, A. Peixes da costa brasileira. 3ª. ed. São Paulo: Editora Melro, 1999. CERVIGON, F. Los peces marinos de Venezuela. Volumen II. Caracas: Fundación Científica Los Roques, 1993. LOPES, P.R.D. et al. Alimentação de Lutjanus synagris (Actinopterygii) na Praia de São Tomé de Paripe (Bahia). Revista do UNIPÊ, v. 8, n. 3, p. 60-64, 2004. MENEZES, N.A., FIGUEIREDO, J.L. Manual de peixes marinhos do sudeste do Brasil. IV. Teleostei (3). São Paulo: Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, 1980. MOURA, R.L., MENEZES, N.A. Lutjanidae. In: MENEZES, N.A. et al. Catálogo das espécies de peixes marinhos do Brasil. São Paulo: Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, pp. 82-83, 2003.

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Anexo 1: Figura 1: Ocyurus chrysurus (LIUEFS 13026: 66,5 mm CP)

Fonte: J.T. Oliveira-Silva, 2010.

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SOBRE OS AUTORES Allan Rodrigo Fonseca Teixeira. Mestre em Matemática/UFMG e professor da Universidade Federal de Itajubá UNIFEI - Campus Itabira - MG Email: allanmath@yahoo.com.br. Abrahão Costa Andrade Mestre e Doutor em Filosofia (USP), professor adjunto IV do Departamento de Filosofia da UFPB e do Programa de Doutorado Integrado em Filosofia da UFRN-UFPBUFPE. Tem publicados 4 livros e alguns artigos em revistas especializadas. Email: abrandrade@hotmail.com Alexsandro Araújo Oliveira Mestre em Sociologia pela UFPB e professor da UDC - (Foz de Iguaçu) Email: raioxs@yahoo.com.br Beatriz Bajo Poeta, escritora, bacharel em Letras e especialista em Literatura Brasileira. Participou de algumas antologias e publica freqüentemente em revistas literárias e espaços virtuais. Email: beahbajo@hotmail.com Carlos Felipe Moisés Doutor em Letras (Literatura Portuguesa) pela Universidade de São Paulo (1972), escritor, poeta e ensaísta. É membro do Conselho Editorial da Revista Mosaicum. Email: carlos_moises@uol.com.br

Jailza Tavares de Oliveira-Silva Bióloga (Universidade Estadual de Feira de Santana - Dep. de Ciências Biológicas - Lab. de Ictiologia, Feira de Santana - Bahia) E-mail: jtosilva@yahoo.com.br Lais Couy Mestre em Ensino de matemática/PUC Minas e professor da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. UFVJM/Campus do Mucuri – Teófilo Otoni/MG. Email: laiscouy@yahoo.com.br. Maria Mavanier Assis Siquara Doutoranda em Educação pela UDE e professora da Universidade do Estado da Bahia UNEB- Bahia – Brasil. Email: mavanis@uol.com.br

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Ester Abreu Vieira de Oliveira Mestrado em Lingua Portuguesa pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná - Curitiba (1983), Doutorado em Letras Neolatinas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994) e Pós-doutorado em Filologia Espanhola - UNED - Madri (2003). Atualmente é aposentado e Professor -Voluntário da Universidade Federal do Espírito Santo. Email: esteroli@terra.com.br


Milena Ferreira Costa Bióloga (Universidade Estadual de Feira de Santana - Dep. de Ciências Biológicas - Lab. de Ictiologia, Feira de Santana - Bahia). E-mail: jtosilva@yahoo.com.br Nelcida Maria Cearon Doutoranda em Educação pela UDE e professora da Universidade do Estado da Bahia UNEB- Bahia – Brasil. Email: cearonster@gmail.com Niusarte Virginia Pinheiro Mestre em Ciências da Educação (Instituto Pedagógico Latinoamericano y CaribeñoIPLAC/Cuba), Profª da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. UFVJM. Campus do Mucuri - Teófilo Otoni -MG Email: niusarte@yahoo.com.br. Paulo Roberto Duarte Lopes Professor assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana - Departamento de Ciências Biológicas - Laboratório de Ictiologia E-mail: Email: andarilho40@yahoo.com.br Raimundo Enedino dos Santos Doutor em Linguística Histórica pela Universidade Federal da Bahia, mestre nas mesmas área e instituição, bacharel e licenciado em línguas e literaturas alemãs e portuguesas pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor auxiliar (sistema macaense) na Universidade de Macau. E-mail: ennedino@gmail.com

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Rita Cristina de Souza Santos Doutora em Saúde Coletiva IMS/UERJ), Mestre em Educação (PUC-RIO), Especialista em Psicologia Jurídica (UERJ), Psicóloga (UFRJ). Profa. Adjunta e Pesquisadora do Programa de Mestrado em GIT / UNIVALE. Email: ritacris.prof@yahoo.com.br Rodrigo da Costa Araújo Doutorando em Literatura Comparada (Universidade Federal Fluminense, UFF, Brasil), Mestre em Ciência da Arte pela UFF(2008) (Universidade Federal Fluminense).Atualmente é professor titular de Teoria da Literatura da FAFIMA (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Macaé). Email: rodricoara@uol.com.br Sílvio Alves de Souza Mestre em Estatística (UFMG) e professor do Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais - CEFET MG. Email: silvio@decom.cefetmg.br Vinícius Borges Cerqueira Acadêmico do curso de graduação de Sistemas para Internet. Faculdade Anísio Teixeira. E-mail: vbce@ibest.com.br

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NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS TEXTOS A Revista Mosaicum tem como objetivo ampliar as discussões para o conhecimento científico por meio de trabalhos originais de pesquisa em forma de artigos, ensaios e resenhas bibliográficas. Os textos enviados para apreciação crítica devem contribuir analiticamente para o saber, considerando o contexto sociocultural e devem ser inéditos, não estando sob consideração para publicação em nenhum outro veículo de divulgação. Trabalhos publicados em anais de congressos podem ser considerados pelo Conselho Editorial, desde que estejam em forma final de artigo. Os textos podem ser redigidos em língua portuguesa, inglesa, francesa ou espanhola. As resenhas devem ser redigidas em língua portuguesa Prioridade será dada aos textos resultantes de pesquisa de campo.

2 Quantidade páginas: Os artigos e ensaios não devem exceder 15 laudas, incluindo tabelas, gráficos e ilustrações. Privilegiam-se trabalhos que contenham contribuições analíticas para o campo do saber. Na primeira página devem constar: a) título, b) nome(s) do(s) autor(es); c) endereço; d) telefone; e) e-mail; f) instituição a que pertence(m) e, g) credenciais (da maior titulação para a menor). Na segunda folha, devem constar apenas o título, no início do texto, sem identificação da autoria. Os autores de artigo e ensaio deverão enviar resumo em português (para texto escritos em Língua Portuguesa e inglês (abstract, para os outros idiomas), em até 10 linhas, seguido de três a cinco palavras-chave, em ambas as línguas. O abstract deve ser devidamente revisado por profissional da área para não comprometer a indexação da revista. As resenhas devem ter 3 laudas, no mínimo e 5, no máximo. Prioridade será dada à atualidade das resenhas. Nas resenhas críticas devem constar: a) a apresentação sumária da natureza da obra; b) contribuição da obra para o campo do saber; c) apresentação sintética das partes em que a obra se organiza; d) indicação do resenhista; e) conclusão do resenhista, e; f) crítica do resenhista (se for o caso). Seguir os critérios de apresentação de artigos e ensaios. 3 Ilustrações: As figuras, gráficos, tabelas ou fotografias, quando apresentados em folhas separadas, devem ter indicação dos locais onde devem ser incluídos, ser titulados e apresentar referências de sua autoria/fonte. Para tanto, devem seguir a Norma de Apresentação Tabular, estabelecida pelo Conselho Nacional de Estatística e publicada pelo IBGE, em 1979. É imprescindível o envio das figuras, gráficos, fotografias ou tabelas em JPEG, com boa resolução. Textos que apresentem ilustrações inseridas em word não serão publicados. 4 Notas: As notas não devem ser colocadas no rodapé, mas ao final do texto. Use-as o

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1 Formatação: a) papel A4 (210 x 297mm); b) espaçamento 1,5; c) fonte: Times New Roman, tamanho 12; d) margens: 3 cm superior e esquerda e 2 cm inferior e direita e) parágrafo: justificado e sem recuo da margem esquerda (primeira linha de cada parágrafo). O título e os subtítulos devem ser alinhados à esquerda, apenas com a inicial maiúsculas, sem negrito, itálico ou qualquer destaque. Exemplo: Introdução, Considerações finais ou Conclusões e Referências. A numeração desses tópicos é facultativa.


menos possível, numere-as seqüencialmente no corpo do texto e as apresente no final do texto, antes das referências. Não use nota de referência para informar as credenciais/ titulação do autor. Essas informações devem vir na folha de rosto. 5 Sistema de chamada: Use o sistema autor-data (AUTORIA, ANO, PÁGINA). As referências a autor(es) devem ser citadas no corpo do texto com indicações do último sobrenome, ano de publicação, e página (se for o caso) conformeNBR 10520:2000. Não use ibid, op cit. e assemelhados no corpus do texto. 6 Referências: As referências devem conter todos os elementos essenciais do(s) autor(es) citado(s) e deverão ser apresentadas em ordem alfabética no final do texto, de acordo com a NBR 6023:2002, da ABNT. 7 Citações: As citações textuais devem obedecer a NBR 10520:2002, da ABNT, Pede-se atenção às citações diretas, mais de 3 linhas. Usar recuo de 4 cm e não se esquecer de informar o número de página da obra consultada. 8 Envio: O material deve ser enviado para o email: revistamosaicum@ffassis.edu.br. 9 Direitos autorais: Os artigos e documentos assinados são de responsabilidade exclusiva do(s) autor(es), que por eles respondem judicialmente. Os direitos, inclusive de tradução, são reservados. Será permitido citar parte do artigo ou do documento sem autorização dos autores, desde que citada a fonte. Para publicar em outra revista os autores deverão solicitar autorização aos editores da Revista. 10 Avaliação: As colaborações encaminhadas à revista serão submetidas à análise do Conselho Editorial e do Conselho Científico, atendendo critérios de seleção de conteúdo e normas formais de editoração, sem identificação da autoria, para preservar isenção e neutralidade. Adota-se o sistema de avaliação anônima (blind review) para análise dos textos encaminhados para publicação, com pelo menos dois avaliadores (avaliação por pares).

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11 Recebimento de exemplares: Serão fornecidos gratuitamente ao autor principal (primeira autoria) dois (2) exemplares do número da Revista em que seu texto foi publicado. 12 Textos não aprovados: O prazo para resposta ao primeiro ou único autor do artigo/ ensaio ou resenha é de 90 dias contados da data do recebimento na Revista Mosaicum. A Revista não se obriga a informar os motivos da não aprovação do texto pelo Conselho Cienítico, nem a devolvêl-los. Os textos não aprovados poderão ser submetidos outra vez para análise, desde que seja adaptado às normas de publicação e/ou revisados. 13 Destaques de termos: Os termos e/ou expressões em inglês, francês, latim ou outro idioma devem ser destacados em itálico. Aspas devem ser usadas somente para citações diretas e para expressões deslocadas do seu sentido literal. Não usar negrito para destacar trechos nas citações diretas, nem nas referências. 14 Revisão: para a publicação na Revista Mosaicum, os textos devem apresentar linguagem objetiva, concisa, além de clareza e coesão. A Revista não se obriga a revisar textos que apresentem desvio da norma padrão, defeitos de argumentação e idéias confusas. Conselho Editorial

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