NÚCLEO DE PESQUISA, EXTENSÃO E PÓS-GRADUAÇÃO DA FACULDADE DO SUL DA BAHIA (FASB)
ISSN: 1808-589X
Número 16 - Jul./Dez. 2012
FUNDAÇÃO FRANCISO DE ASSIS Presidente: Lay Alves Ribeiro FACULDADE DO SUL DA BAHIA Diretor-acadêmico: Valci Vieira dos Santos Diretor-administrativo: Curtius Marques Moura NÚCLEO DE PÓS-GRADUAÇÃO, PESQUISA E EXTENSÃO - NUPPE Coordenação: Jessyluce Cardoso Reis Revista Mosaicum Publicação semestral do Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia Conselho Científico: Abrahão Costa Andrade (UFRN) Bernardina Maria de Sousa Leal (UFF) Ester Abreu Vieira de Oliveira (UFES) Eva Aparecida da Silva (UFVJM) J. Agustín Torijano Pérez (Universidad de Salamanca) Jaceny Maria Reynaud (UFRGS) Josina Nunes Drumond (PUC/SP) Luiz Roberto Calado (Faculdades Alves Farias) Miguel Zugasti (Universidad de Navarra, Espanha) Nilson Robson Guedes da Silva (Faculdade Anhanguera de Limeira) Paulo Roberto Duarte Lopes (UEFS) Raphael Padula (COPPE/RJ) Ricardo Daher Oliveira ((Faculdades Alves Farias) Ricardo Jucá Chagas (UESB) Rodrigo Loureiro Medeiros (UFES) Rogério Greco (Instituto de Ciências Penais (ICP) Sebastião Costa Andrade (Universidade Estadual da Paraíba) Sélcio de Souza Silva (UNEB/UCGO) Silvia Tedesco ( Universidade Federal Fluminense) Valci Vieira dos Santos (UNEB) Vincenzo Durante (Universidade de Padova, Itália) Wisley Falco Sales (PUC/Minas) Conselho Editorial: Carlos Felipe Moisés - Rodrigo da Costa Araújo Celso Kallarrari - Valci Vieira dos Santos - Wilbett Oliveira Revista Mosaicum Ano 9, n. 16 (Jul./Dez., 2012). Teixeira de Freitas, BA. ISSN: 1808-589X 1. Publicação Periódica - Faculdade do Sul da Bahia. CDD 050 Capa: Wilbett Oliveira - Ilustração: Fênix: a alma humana com pássaro. Pintura egípcia, óleo sobre papiro. © 2012 Núcleo de Pós-graduação, Pesquisa e Extensão da Faculdade do Sul da Bahia (Fasb). Permitida a reprodução parcial ou total por qualquer meio de impressão, em forma idêntica, resumida, parcial ou modificada, em língua portuguesa ou outro idioma, desde que citada a fonte. Os artigos publicados nesta Revista são de inteira responsabilidade de seus autores e não refletem, necessariamente, o pensamentos dos editores.
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Sumário
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EDITORIAL
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LIBERDADE, IGUALDADE E ECOLOGIA: OS DIREITOS HUMANOS E OS IMPASSES DECORRENTES DO PROBLEMA ECOLÓGICO liberty, equality and ecology: human rights and the impasse resulting ecological problem
Marcos Antônio Pimentel Pequeno
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O anti-humanismo EM Blaise Pascal The antihumanis in the Blaise Pascal
Joelson Pereira de Souza
37
A LINGUÍSTICA ESTRUTURAL E O INCONSCIENTE FREUDIANO Structural linguistics a nd the freudian uncounscious
Silvia Tedesco
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Roland Barthes, ESCRITOR Roland Barthes, writer
Rodrigo da Costa Araújo
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Sobre desejos, sabores e resistência, em Isabel Allende e Laura Esquivel About desires, tastes and strength, Isabel Allende and Laura Esquivel
Maria Mirtis Caser
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A Consciência e as Pessoas na Organização ou A Consciência na Organização ou Gestão com Consciência The consciousness evolution inside organizations
Fernanda De Nadai - Luiz Roberto Calado
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DOENÇAS NO AMBIENTE DE TRABALHO: A LER/DORT EM GARIS DE TEIXEIRA DE FREITAS, BA Diseases in the workplace: ler/dot in workers cleaning public in the city Teixeira de Freitas, Ba Margarete Inês Portela de Paula
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A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA WATSU® NO QUADRO DE DOR EM MULHERES COM LOMBALGIA THE INFLUENCE OF TECHNICAL WATSU® UNDER PAIN IN WOMEN WITHLOW BACK PAIN
Rhollander B. Aride - Natália Grancieri - Mateus C. Gianizelli
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Nota prévia sobre a alimentação de Bagre bagre (Linnaeus, 1766) (Actinopterygii: Ariidae) na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia)
Previous note about feeding of Bagre bagre (Linnaeus, 1766) (Actinopterygii: Ariidae) in Malhado beach, Ilhéus (Bahia)
Jailza Tavares de Oliveira-Silva - Paulo Roberto Duarte Lopes Ideval Pires Fernandes
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Notas sobre a biologia de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia)
Notes about biology of Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) in Malhado beach, Ilhéus (Bahia)
Paulo Roberto Duarte Lopes - Jailza Tavares de Oliveira-Silva Ideval Pires Fernandes - Aline Rocha França - Milena Costa Ferreira
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IMPRESSÕES DE BARTHES SOBRE A CHINA DOS ANOS 70 Rodrigo da Costa Araújo
117 NORMAS PARA PUBLICAÇÃO
Revista Mosaicum, n. 16 - Jul./Dez. 2012 - ISSN 1808-589X
EDITORIAL Esta décima sexta edição da Revista Mosaicum vem juntar-se a uma bibliografia hoje bastante extensa sobre aquilo que se convencionou chamar de estudos interdisciplinares. Se a questão enunciada pode ainda suscitar polêmica - o fato de existir uma revista de caráter amplo sobre as discussões de pesquisa - não há mais como negar o interesse dentro de diversas áreas acadêmicas pelas proximidades de saberes, seja do ponto de vista da produção cultural, seja do ponto de vista crítico de algumas áreas do conhecimento. Tampouco, restam dúvidas de que essas aproximações afloram à consciência crítica a partir de aproximações de áreas diversas e distintas do conhecimento e de suas riquezas para o leitor/pesquisador e para produção de pesquisa. Assim, retomando a proposta desta Revista, o primeiro artigo, do professor Marcos Antônio Pimentel Pequeno, de concepção filosófica, interroga duas categorias que constituem os Direitos Humanos: a liberdade e a igualdade. O objetivo consiste em mostrar que uma abordagem filosófica sobre o problema ecológico revela obstáculos e impasses à universalização efetiva dessas categorias recortadas. Ainda assumindo um viés filosófico, o artigo O anti-humanismo em Blaise Pascal, do professor Joelson Pereira de Sousa, versa sobre a condição humana na obra Pensamentos, de Blaise Pascal (1623-1662), temática amplamente abordada nos escritos desse filósofo e, por isso, essencial para o entendimento de sua filosofia. Já a professora Silvia Tedesco, em A linguística estrutural e o inconsciente freudiano, apoia-se na concepção de linguagem, tal como aparece na linguística estruturalista de F. Saussure, com fins a confrontá-la com algumas colocações de Freud a cerca de proximidade entre os funcionamentos da linguagem e o do inconsciente. Rodrigo da Costa Araújo, tanto no ensaio quanto na resenha, relembra a poética e atualidade do crítico-esteta Roland Barthes(1915-1980) para os estudos literários. Enquanto o primeiro defende, a partir do livro-corpus O império dos signos, que escritura-leitura de Roland Barthes concilia as margens do ensaio e do romance e realiza, transgressoramente, a inscrição do romanesco no texto crítico, o segundo adensa-se por uma resenha do livro Cadernos de viagem à China (2012), do mesmo crítico, lançado recentemente. Em Sobre desejos, sabores e resistência, em Isabel Allende e Laura Esquivel, da professora Maria Mirtis Caser, acompanhamos a análise dos romances La casa de los espíritus, de Isabel Allende, e Como agua para chocolate, de Laura Esquivel, investigando-se o tratamento dado pelas autoras às personagens femininas. Fernanda Castro de Nadai e Luiz Roberto Calado reforçam, em suas discussões, a necessidade de uma visão integral do ser humano: matéria, 5
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corpo, mente, alma e espírito. A partir dessa visão, surgem reflexões sobre organizações de uma gestão consciente da importância dos valores humanos e do desenvolvimento integral do homem, segundo os princípios da união dos campos da ciência, da filosofia e da espiritualidade. Em, Doenças no ambiente de trabalho: a ler/dort em garis de Teixeira de Freitas, BA, a professora Margarete Inês Portela de Paula discute a realidade de garis que convivem com situações de trabalho obrigados, diariamente, a lidar com uma realidade dura podendo desenvolver doenças nas funções exercidas. O artigo A influência da técnica Watsu® no quadro de dor em mulheres com lombalgia, escrito a três mãos - Rhollander B. Aride, Natalia Grancieri e Mateus Candeia Gianizelli - é um estudo de campo de caráter qualiquantitativo, realizada com paciente que possuíam lombalgia. Outro artigo, escrito a três mãos, é o dos professores Jailza Tavares de Oliveira-Silva, Paulo Roberto Duarte Lopes e Ideval Pires Fernandes. Ele - o artigo - apresenta aspectos da alimentação de Bagre (Actinopterygii: Ariidae) com base em vinte e sete exemplares capturados entre outubro de 2004 e agosto de 2006, na Praia do Malhado, Município de Ilhéus, litoral sul do estado da Bahia (Nordeste do Brasil). Em Notas sobre a biologia de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii : Engraulidae ) na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia), desses mesmos autores, e com o acréscimo das autoras Aline Rocha França e Milena Costa Ferreira confirmam-se aspectos da biologia (alimentação e reprodução) de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) com base em 315 indivíduos medindo entre 38,0 mm e 209,0 mm de comprimento total capturados entre, novembro de 2003 e dezembro de 2006, na Praia do Malhado/ Ilhéus. Enfim, esta edição da Revista Mosaicum, - em seus dez artigos e uma resenha -, coloca em cena diferentes ângulos de visão sobre a pesquisa, a leitura, a Literatura, a Filosofia, como, também, a Psicologia, a Linguística, a Biologia, a História e outros campos do saber no âmbito da crítica universitária. Caleidoscópicas, assim como mosaico, são as imagens de que necessitamos para fechar este editorial. Pois é disto que se trata quando falamos de uma revista com perfil trans/interdisciplinar. Temas que, diversos em seus princípios, podem contribuir para olhares plurais, sem esperarem por sínteses. Conselho Editorial
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Direitos Humanos LIBERDADE, IGUALDADE E ECOLOGIA: OS DIREITOS HUMANOS E OS IMPASSES DECORRENTES DO PROBLEMA ECOLÓGICO LIBERTY, EQUALITY AND ECOLOGY: HUMAN RIGHTS AND THE IMPASSE RESULTING ECOLOGICAL PROBLEM
Marcos Antônio Pimentel Pequeno
Doutorando em Filosofia (UFPB/UFPE/UFRN). Professor de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, E-mail: marcosppequeno@yahoo.com.br
Resumo: Este artigo resulta de uma reflexão acerca das duas principais categorias que constituem os Direitos Humanos: liberdade e igualdade. O nosso objetivo consiste em mostrar que uma abordagem filosófica sobre o problema ecológico revela obstáculos e impasses à universalização efetiva das duas referidas categorias. Palavras-chave: Direitos Humanos. Liberdade. Igualdade. Ecologia. Abstract: This article results from a reflection on the two main categories that constitute human rights: liberty and equality. Our goal is to show that a philosophical approach to the ecological problem reveals the impasses and obstacles of effective universality to these two categories. Keywords: Human Rights. Liberty. Equality. Ecology.
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O uso abusivo e desenfreado dos recursos naturais da Terra, decorrente de práticas econômicas, científicas e culturais que acentuam em vários níveis as agressões ao meio ambiente, impõe um alerta de dimensão global, cujas consequências imprevisíveis podem comprometer o futuro da humanidade. Não é sem razão que um dos principais lemas ecológicos sugere: “pense globalmente e aja localmente”. Assim, fica evidenciada a necessidade de reflexão sobre a adoção de limites a algumas atividades humanas nocivas ao equilíbrio ecológico. Ao mesmo tempo, parece-nos claro que o problema ecológico já impõe limites à própria efetivação dos Direitos Humanos, como veremos a seguir. A tese central que iremos desenvolver neste artigo é que a referida universalidade e os limites ambientais expressos pelo problema ecológico impõem impasses à difusão, positivação e concretização dos Direitos Humanos sintetizados em duas de suas principais categorias: liberdade e igualdade. O objetivo deste artigo é discutir os referidos impasses. A consciência da necessidade de enfrentamento teórico e a necessidade de buscar soluções para o problema ecológico alimentam o nosso afã de tratar, neste artigo, dos limites que devem ser impostos a determinadas práticas oriundas de liberdades econômicas e científicas, bem como analisar as limitações que o próprio problema ecológico impõe aos Direitos Humanos na dimensão de suas categorias de liberdade e de igualdade. Assim, o nosso tema central, que aponta para um possível conflito entre Direitos Humanos e interesses ecológicos, será desenvolvido em quatro etapas. Inicialmente, mostraremos como a categoria de liberdade assumiu o status de um dos pilares da Modernidade. Em seguida, trataremos da categoria de igualdade e de sua inserção no contexto contemporâneo ocidental. A terceira parte trata dos desafios teóricos que o problema ecológico traz ao nosso modelo de civilização. Por fim, abordaremos os limites que este problema impõe à efetivação dos Direitos Humanos. Eis, em breves linhas, o itinerário que adotaremos neste artigo. Assim como o problema ecológico atual, os Direitos Humanos fazem parte da história do mundo ocidental, a qual é marcada por filosofias, tradições religiosas, sistemas políticos e lutas sociais. O surgimento da doutrina dos Direitos Humanos está intimamente unido à guinada antropocêntrica característica da Modernidade que, segundo Karl Löwith (1977), pode ser vista como um processo de secularização do cristianismo, cujos principais valores e conceitos básicos foram reinterpretados e integrados tendo como paradigma fundador não mais Deus, nem a natureza, mas o próprio homem. É nessa perspectiva que liberdade e igualdade assumirão, historicamente, os postos de conceitos motores da doutrina dos Direitos Humanos.
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1 A liberdade e a sua maioridade na História Podemos também entender a Modernidade como a afirmação crescente do conceito de liberdade no âmbito do Direito, da Política e da Economia, entre outros. Enquanto na Antiguidade e na Idade Média o Direito Natural era compreendido como algo transcendente à autonomia humana, uma vez que seus fundamentos remetiam a uma ordem natural ou divina a que os indivíduos deveriam ajustar-se e obedecer, a partir dos séculos XVI e XVII, o Direito Natural passa a ser fundado na vontade individual, ampliando-se, também, os conceitos de cidadania e de direitos subjetivos. Foi a partir da concepção subjetiva dos direitos naturais que a liberdade começou a adquirir o status de um dos motores da Modernidade, afastando o homem da sujeição a uma ordem transcendente de cunho natural ou divino. O jusnaturalismo, por exemplo, representa uma teoria da Modernidade que enfatizou os Direitos Humanos na perspectiva do indivíduo e de sua liberdade. O ponto de partida foi a hipótese elaborada pelo filósofo Thomas Hobbes (1588-1679), com a qual se imaginou a humanidade vivendo em um estágio anterior à existência do Estado, naquilo que é denominado Estado de Natureza, em que todos os homens usufruíam dos Direitos Naturais à propriedade, à vida e à liberdade. A ausência de leis que garantissem os Direitos Naturais, bem como o clima de animosidade, conflito, lutas, existente no estado de natureza, no qual os indivíduos manifestavam os seus impulsos egoístas, colocando em risco a vida social, impulsionariam os homens a celebrar (livre e consensualmente, sem a interferência de uma ordem natural ou divina) o pacto social e a criar a instituição do Estado, cuja função maior seria a própria garantia dos referidos Direitos Naturais, conforme podemos atestar em o Leviatã, de Thomas Hobbes: As criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais explicativo quanto mais satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria e para controlar as ações dos que governam o Estado. Por último, o acordo vigente entre essas criaturas é natural, Ao passo que o dos homens surge apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto, não é de admirar que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum (grifo nosso, para acentuar que este poder comum é o Estado) que os mantenha em respeito, e que dirija suas ações no sentido do benefício comum. [...] Feito isto, à multidão assim unida numa só pessoa se chama Estado, em latim civitas. É esta a geração daquele grande Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele Deus mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus imortal, nossa paz e defesa. [....] É nele que consiste a essência do Estado, a qual pode ser assim definida: uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída por cada como autora, de modo a ela poder usar força e os recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum (HOBBES, 1974, p. 109-110).
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Independentemente da veracidade histórica da hipótese imaginada por Hobbes, e dos desdobramentos de sua concepção de Estado, importa destacar a postura política e filosófica assumida por ele e que influenciou a Modernidade, fonte e matriz da autonomia antropocêntrica de compreensão da história humana, a qual se cristalizou na categoria de liberdade. Na Modernidade, a defesa dos Direitos Humanos, na perspectiva da liberdade, encontrou em John Locke (1632-1704), Jean Jacques Rousseau (1712-1778) e Immanuel Kant (1724-1804) os seus maiores expoentes. A ruptura moderna com os modelos metafísicos do passado impôs novos desafios à razão que, rejeitando se deixar guiar por uma ordem natural ou divina, assumiu a tarefa de formular leis que não apenas pudessem dar conta dos enigmas do universo, mas também servissem para constituir as bases das diversas formas de organização social, moral e política dos seres humanos. Tal mudança de rumo epistemológico e ontológico acarretou consequências no plano das diversas atividades humanas, as quais passaram a ser baseadas numa dimensão antropocêntrica remetendo à questão fundamental da própria definição da essência do ser humano. Ademais, convém indagar: se o homem passa a ser parâmetro e fundamento, o que há de característico em sua essência que nos permite capacitá-lo a tornarse fundamento do pensamento e da ação? Rousseau apresentou, em Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1755), uma concepção de homem que influenciou todo o pensamento ocidental posterior. Indo além das visões clássicas que definiam o homem em termos de racionalidade, sensibilidade, sociabilidade, afetividade, Rousseau introduziu uma nova categoria que diferenciou essencialmente o homem dos demais seres: a liberdade, ou seja, a capacidade exclusivamente humana de se autodeterminar, de se aperfeiçoar ao longo da vida. O homem seria o único ser capaz de transcender os limites impostos pelo meio, construindo a sua própria história. Um breve trecho ilustra a importância da liberdade como elemento integrante da construção da essencialidade humana: Em cada animal vejo somente uma máquina engenhosa a que a natureza conferiu sentidos para recompor-se por si mesma e para defender-se, até certo ponto, de tudo quanto tende a destruí-la ou estragá-la. Percebo as mesmas coisas na máquina humana, com a diferença de tudo fazer sozinha a natureza nas operações do animal. Enquanto o homem executa as suas como agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, e o outro, por um ato de liberdade, razão por que o animal não pode desviar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fora vantajoso fazê-lo, e o homem, em seu prejuízo, frequentemente se afasta dela [...] a natureza manda em todos os animais, e a besta obedece. O homem sofre a mesma influência, mas considera-se livre para concordar ou resistir, e é sobretudo na consciência dessa liberdade que se mostra a espiritualidade de sua alma (ROUSSEAU, 1978, p. 242-3).
A passagem acima expressa o aspecto antinatural da liberdade humana, uma vez que a capacidade de se autodeterminar possibilita ao 10
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homem não sucumbir aos ditames impostos pela natureza e, ao mesmo tempo, elaborar as leis, as regras que nortearão a sua existência. Uma consequência dessa autonomia, que será levada ao extremo pela filosofia contemporânea, a partir de Marx, e que terá amplitude radical em Sartre, ao ponto de este dispensar a ideia de natureza humana que é fundamental em Rousseau e em Kant, é que a definição de homem na perspectiva da liberdade dificulta a utilização de termos metafísicos, como por exemplo, natureza humana, essência humana, pois aquilo a que humanidade poderá vir a ser depende da atividade histórica movida pela liberdade, o que reforça a tese sartreana de a existência preceder a essência, ou seja, não existe uma essência pré-determinada, mas construída no exercício da autodeterminação humana. Daí decorre outra consequência dessa virada antropocêntrica (que possibilitou inclusive o desenvolvimento da Doutrina dos Direitos Humanos): o desafio de fundamentar a moral em bases que levassem em conta, antes de tudo, a liberdade. Immanuel Kant (1724-1804) enfrentou tal desafio. Em Fundamentação da metafísica dos costumes (KANT, 1978), o filósofo fundamentou a moral nos princípios da autonomia da vontade, ação desinteressada e universalização dos valores. Tendo por base o conceito de vontade, Kant elabora, numa perspectiva apriorística, uma metafísica dos costumes que tem como alicerce a ideia de um sujeito racional como ser autogovernado, vinculada à concepção que defende a igual dignidade de todos os seres racionais como fins em si mesmos e de uma comunidade ideal na qual todo indivíduo se autodetermina como sujeito legislador. Kant concebeu a vontade como uma espécie de causalidade da razão que independe de causas exteriores para se determinar. A liberdade é vista como propriedade dessa causalidade, possibilitando-lhe autonomia. Kant tentou elaborar um conceito de dever válido para todos os seres racionais, buscando as leis de determinação da vontade no âmbito a priori da razão pura. Procurou ainda retirar da natureza humana e de sua tessitura racional o princípio formal de toda a moralidade, o qual foi denominado Imperativo Categórico, uma forma válida para todo ato moral, que foi expressa em uma de suas três formulações da seguinte maneira: “age em conformidade apenas com a máxima que possas querer que se torne universal”. Desse modo, o acordo entre a vontade e a lei universal constitui o fundamento do ato moral. Além de afirmar a autonomia da vontade como princípio supremo da moralidade, Kant conciliou liberdade e vontade, tornando a primeira uma propriedade da segunda. Ao declarar que todo ser age sob a ideia de liberdade, ele torna os dois conceitos inseparáveis, haja vista que o móvel de toda ação é a vontade. A liberdade passa a ser uma capacidade de o sujeito não se deixar determinar por interesses naturais e particulares. A associação da vontade com a liberdade possibilita que o indivíduo aceite se restringir a si mesmo. Sem o estabelecimento de tais limites, ficaria impossibilitada a própria liberdade, uma vez que esta termina quando co11
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meça a do outro. O exercício da liberdade exige o respeito à lei, o dever pelo dever. A liberdade impulsionada por uma Boa Vontade deve visar à construção do “reino dos fins”, em que os homens são considerados fins dotados de dignidade absoluta, cuja consequência é a concepção de virtude como uma luta da liberdade contra os determinismos naturais que existem em nós. Assim, no âmbito de uma filosofia moral, a liberdade compreendida como autonomia do sujeito, ganhou de Rousseau e de Kant o status de único e verdadeiro Direito Natural que incluí todos os outros, tornando-se o fundamento marcante da Modernidade, a qual seria caracterizada também pelo Humanismo Antropocêntrico e pelo Racionalismo que iriam nortear o modo de ser da civilização ocidental. Na dimensão política, a Revolução Francesa brindou os ideais liberais burgueses na famosa Declaração Universal dos Direitos do homem e do Cidadão, de 1789, cujo primeiro artigo, além de exaltar a liberdade natural de todos os homens, estabeleceu a igualdade de direitos de toda a humanidade, o que não deixou de ser o reconhecimento laico de um dos fundamentos do cristianismo: a igual dignidade de todos os seres humanos. Desse modo, liberdade e igualdade (reconhecida inicialmente em seu aspecto formal, jurídico) tornam-se os fundamentos da moral e dos Direitos Humanos. A Revolução Francesa de 1789 selou a vitória política e ideológica de uma classe revolucionária: a burguesia, marcando a consolidação do liberalismo, ou seja, o triunfo das ideias de direito natural e de sociedade civil composta por indivíduos naturalmente livres e iguais. Vida, liberdade e propriedade privada são patrimônios a que os indivíduos, enquanto cidadãos, têm direito. Nesse contexto, surgiram duas esferas básicas da vida republicana: de um lado, a sociedade civil na qual os indivíduos se organizam com autonomia política e civil e de outro, o Estado, enquanto poder público que deve garantir a ordem pública e a referida autonomia da sociedade civil. Assim, o Jusnaturalismo e o Iluminismo constituíram a sua base teórica expressa no lema revolucionário de liberdade, igualdade e fraternidade. O problema é que tais ideais não se concretizaram, historicamente, de modo material e universal. Já no início do século XIX, desconfiou-se da redução da liberdade em favor dos interesses burgueses assegurados pela propriedade privada e pelo individualismo da então nascente sociedade capitalista, enquanto o poder político ficava restrito ao cidadão burguês, o proprietário. Ao mesmo tempo, a exclusão da maioria da população e o aumento das desigualdades sociais na Europa, bem como a possibilidade de enfraquecimento da noção de Estado decorrente dos objetivos liberais, também ensejaram críticas aos fundamentos que conduziram à Revolução Francesa. Os primeiros grandes expoentes dessa crítica foram Hegel (1770-1831) e Karl Marx (1818-1883) que influenciaram, também de modo marcante, o pensamento contemporâneo ocidental, como atesta Giuseppe Tosi, em seu artigo “Da doutrina hegeliana do estado como totalidade ética ao estado ético e ao estado totalitário”: 12
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Com a Filosofia do Direito de Hegel, o jusnaturalismo entra definitivamente em crise, pelo menos como doutrina jurídica e política, e inicia-se uma nova corrente, o historicismo, que influenciará, entre outros, o pensamento de K. Marx, o qual compartilha com Hegel muitas das críticas dirigidas à tradição jusnaturalista e aos direitos da tradição burguesa liberal (TOSI, 2010, p.1).
Em Hegel, o tema da liberdade está diretamente relacionado à sua concepção de Estado, exposta na obra Princípios da Filosofia do Direito (1820). O seu objetivo foi sintetizar o pensamento político antigo e moderno. O ponto de partida, de inspiração aristotélica, consiste em pensar o indivíduo inserido no todo, sendo a pólis grega o seu referencial. Dos modernos, Hegel acata as noções de subjetividade e de vontade. A preocupação com o tema da liberdade foi o nutriente de seu pensamento político, culminando com a noção de Estado que realiza o momento máximo de concretização da liberdade. Através do desenvolvimento progressivo da vontade, que migra do particular ao universal, a liberdade realiza-se plenamente nas instituições políticas, servindo ao bem comum, o que ocorre, progressivamente, nas três partes que compõem a supracitada obra hegeliana: o Direito Abstrato, a Moralidade Subjetiva e a Moralidade Objetiva (Eticidade).1 O primeiro momento de realização da liberdade dá-se no nível do Direito Abstrato através da posse da propriedade, o que exige a existência de um contrato que possa regular tal posse. Todavia, esta noção difere do sentido que lhe foi conferido pelo jusnaturalismo moderno, pois, para Hegel, o Estado é condição essencial à realização dos indivíduos que devem ser pensados, antes de tudo, na dimensão do todo. O Estado jamais poderia ser entendido como decorrência de um acordo entre partes singulares. No plano da moralidade, a vontade, considerada sujeito autodeterminante, amplia a sua dimensão ao conduzir a liberdade à realização da sua amplitude ética. Hegel reformula o âmbito subjetivo da moralidade, de inspiração kantiana, afirmando a necessidade de sua transição subjetiva para o plano concreto, da Eticidade, em que vontade e a liberdade atingem a esfera universal nas instituições sociais do Estado e lá se realizam. O processo de concretização da Eticidade, no qual a vontade atinge a sua dimensão plena, deve ser construído através da educação para o universal, iniciando-se na família, passando pela sociedade civil e culminando no Estado que se concretiza no espírito objetivo o qual se manifesta na cultura, tradições, língua, instituições, religião de um determinado povo. A história é o desenvolvimento do homem enquanto ser social e cultural realizando-se plenamente sob a égide do Estado. O surgimento do Estado marca o início da história humana. Nesse sentido, os direitos de liberdade e de igualdade não são naturais, mas históricos, ou seja, foram inventados, construídos e devem ser perseguidos, desenvolvidos e assegurados. Com isso, os Direitos Humanos A divisão da obra Princípios da Filosofia do Direito, de Hegel, em três partes, é fundamentada em sua introdução (páginas 1 a 34) e sintetizada e explicitada no item Plano da Obra (páginas 35 a 37) do referido livro (HEGEL, 1997).
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devem adquirir existência efetiva no âmbito da sociedade. O pensamento político de Hegel, centralizado nas críticas ao individualismo liberal, na defesa da concepção de Estado como referencial absoluto da sociedade civil e na visão da História como processo de desenvolvimento da sociedade foi o prenúncio de ideias e movimentos que influenciaram de modo marcante o mundo atual: marxismos e totalitarismos são os mais expressivos exemplos. 2 A Igualdade e a sua História A redução dos ideais da Revolução Francesa aos interesses do cidadão burguês, proprietário, gerou na Europa lutas por cidadania (liberdade e igualdade) que se intensificaram em todo o século XIX, o que culminou no surgimento de inúmeras teorias socialistas. Estas tiveram em comum a postura antiestatal, por considerarem o Estado uma instituição controladora da sociedade civil, a serviço dos interesses da classe dominante, a burguesia, e, com isto, teriam acentuado as desigualdades sociais e exclusões, principalmente da classe trabalhadora que passaria a ser considerada como o sujeito político e histórico. Foi nesse contexto que as categorias do trabalho e ser social passaram ao patamar de alicerce da noção de igualdade enquanto justiça social que deveria ser garantida pelo próprio Estado, agora não mais concebido como instrumento dos interesses burgueses, mas como representante da maioria da população, devendo efetuar a diminuição das desigualdades sociais e econômicas de todos. Essta nova atribuição social do Estado reforça a ideia de que a luta por igualdade foi e é o maior lema do socialismo, conforme assevera Giuseppe Tosi, em seu artigo “O socialismo: entre reforma e revolução” (2010, p. 1). A defesa de inspiração socialista do tema da igualdade envolve vários significados. Partindo do princípio de que os homens são naturalmente diferentes, e não desiguais, e da evidência de que a diversidade é um fato, é possível considerar a igualdade como um valor de dimensão moral que pode vir a ser formulado numa norma jurídica. Podemos também conceber que, no âmbito da diversidade, o oposto da igualdade é a desigualdade, a qual tem origem histórica, ou seja, não natural. Historicamente, a igualdade foi concebida, de início, de modo formal ou jurídico, pois na tradição liberal a igualdade existe, sobretudo, subsumida na lei. A partir de Karl Marx, a igualdade passou a ser concebida na dimensão dos direitos econômicos e sociais que deveriam ser obrigatoriamente efetivados, pelo Estado, por intermédio de políticas de alimentação, saúde, educação, moradia, trabalho etc., para toda a população. Uma maneira moderada de defesa do lema da igualdade foi apresentada pela social-democracia que, além da difusão dos direitos políticos e civis, atribuiu ao Estado a tarefa de garantir, no nível social e econômico, as condições materiais mínimas de existência a toda a população para que tenha oportunidade de competição, conforme está expresso no artigo, mencionado acima, de Giuseppe Tosi: 14
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Diferentemente do liberalismo clássico, a social-democracia entende a igualdade de oportunidade não somente como garantia dos direitos fundamentais à vida, à propriedade, à liberdade, e à igualdade perante a lei, mas como distribuição de privilégios jurídicos a benefícios materiais para os não privilegiados, para colocá-los no mesmo nível de partida. Diferentemente do comunismo, a socialdemocracia renuncia à ideia da abolição do mercado capitalista, mas atribui ao Estado um forte poder de intervenção nos mecanismos econômicos para garantir ao maior número de cidadãos possível algumas condições mínimas que lhes permitam competir em condições de igualdade, ou seja, de ter as mesmas oportunidades nas relações mercantis (TOSI, 2010, p.7-8).
Um fenômeno contemporâneo que trouxe consequências negativas à efetivação dos Direitos Humanos foi o surgimento do Totalitarismo, expresso, principalmente, através do Nazismo, do Fascismo e do Comunismo Soviético (em sua fase stalinista) que tinham em comum a aversão ao Estado de direito liberal. Giuseppe Tosi afirma que, no contexto do totalitarismo, “cabia ao estado e às suas instituições defender um conjunto de valores coletivos em nome dos quais se legitimava o total desrespeito aos direitos civis e políticos do cidadão” (2010, p. 11). Outras características acentuadas por Tosi, em relação ao totalitarismo, são as seguintes: absorção progressiva de toda a sociedade civil no Estado, o que acarretaria numa estatização das relações sociais e econômicas; submissão dos indivíduos a um controle total e integral das suas vidas pelo Estado, submissão e sacrifício do indivíduo à ideologia oficial do Estado etc. (2010, p. 11-3). Com a queda do muro de Berlim e do comunismo soviético, e com o fortalecimento da globalização, que amplia as desigualdades mundiais e o enfraquecimento dos Estados Nacionais não é leviano afirmar que o ideal socialista de igualdade pode encontrar refúgio e alívio na luta pela consolidação da Doutrina dos Direitos Humanos por meio da efetivação da inclusão e justiça sociais. Hoje, o lema da igualdade encontra defesa naqueles que exigem equidade por meio de medidas políticas que garantam a todos um igualitarismo das oportunidades. Um aspecto peculiar, característico do século XXI, que o defensor do ideal de igualdade enquanto justiça social não deve ignorar, é que a instituição do Estado é o principal instrumento capaz de concretizar tal objetivo através de políticas sociais, principalmente nos países pobres. Com isso, não estamos menosprezando a importância da luta política do cidadão consciente e dos movimentos sociais pela causa da igualdade, mas é no Estado que tais lutas se concretizam na forma da lei e de sua execução através da consolidação de políticas públicas de âmbito igualitário. Nessa perspectiva, a luta por trabalho, alimentação, saúde, habitação, educação, saneamento básico, para todos, passa a ser meta concreta da defesa da igualdade, o que exige, além da competência do Estado, a existência efetiva de recursos naturais necessários e disponíveis para atender a tais demandas sociais. O tema da igualdade nos remete ao problema ecoló15
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gico, juntamente às questões que envolvem a liberdade e seus excessos, principalmente econômicos e científicos. Paralelamente, a reflexão sobre a possibilidade de efetivação dos Direitos Humanos deve levar em conta os obstáculos e os problemas que o nosso modelo de civilização impõe à concretização dos referidos Direitos. Assim, iremos expor, a seguir, os conflitos teóricos que envolvem a questão ecológica, os quais dizem respeito ao próprio futuro da humanidade. 3 O problema ecológico alertando a História O problema ecológico é um dos resultados mais recentes e complexos do projeto da Modernidade. Surgiu na segunda metade do século XX e, por isso, não poderia integrar, por exemplo, o conteúdo da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, cujos mentores estavam preocupados com os problemas imediatos do Pós-guerra. A partir dos anos setenta, do século XX, as reivindicações ecológicas de preservação ambiental buscam o seu espaço concreto naquilo que hoje denominamos de Direitos Universais de terceira geração. Será que merece crédito e questionamento a imagem sugerida, por Michel Serres, de nosso modelo de civilização, comparado a um navio, indo em direção inalterável a um rochedo com sérios riscos de consequências ambientais imprevisíveis? Alarmista ou não, a preocupação de Serres está inserida entre os grandes debates que envolvem a humanidade a partir da segunda metade do século XX. Em 1962, a bióloga americana Rachel Carson publicou o livro, cujo título (de dimensão também poética) Primavera Silenciosa, por si só, independentemente da cientificidade de seu teor, emergiu como um alerta ecológico: por que os pássaros, que sempre brindavam com seus cantos a Primavera e a sua terra natal, desapareceram e não cantavam mais? A resposta estava na existência da monocultura e na utilização de agrotóxicos (CARSON, 1964). A partir dos anos 60, do século XX, tornaram-se crescentes as preocupações ambientais que assumiram a dimensão de problema ecológico em duplo sentido. No primeiro nível, a questão ambiental é física e diz respeito ao próprio significado etimológico da palavra ecologia (oikos mais logos, que significa estudo ou reflexão sobre nossa morada maior), pois a totalidade de nosso planeta, o seu equilíbrio sistêmico está ameaçado pelo efeito agressivo e devastador de algumas práticas humanas, gerando tensão, conflitos, incertezas, dúvidas, controvérsias no próprio seio daqueles que refletem sobre o meio ambiente. Num segundo momento, a questão ambiental envolve a complexa totalidade de nosso modelo de civilização, gerando também as mesmas supracitadas características de crise que nos remetem à palavra ecologia e que abarca, hoje, significados múltiplos no campo do conhecimento, da militância ecológica, das políticas de preservação ambiental, da crítica ao mundo contemporâneo etc., o que é bem assinalado por Enrique Leff: 16
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A crise ambiental é a crise de nosso tempo. O risco ecológico questiona o conhecimento do mundo. Esta crise apresenta-se a nós como um limite no real, que ressignifica e reorienta o curso da história: limite do crescimento econômico e populacional; limite dos desequilíbrios ecológicos e das capacidades de sustentação da vida; limite da pobreza e da desigualdade social. Mas também crise do pensamento ocidental: da “determinação metafísica” que, ao pensar o ser como ente, abriu o caminho para a racionalidade científica e instrumental que produziu a modernidade como uma ordem coisificada e fragmentada, como forma de domínio e controle sobre o mundo. Por isso, a crise ambiental é acima de tudo um problema de conhecimento, o que nos leva a repensar o ser do mundo complexo, a entender suas vias de complexificação (a diferença e o enlaçamento entre a complexificação do ser e o pensamento) para, a partir daí, abrir novas pistas para o saber no sentido da reconstrução e da reapropriação do mundo (2006, p. 191).
O problema ecológico coloca em discussão o nosso atual modelo de civilização, caracterizado, entre outras coisas, por uma razão instrumental devastadora, baseada em práticas científico-tecnológicas que agridem o meio ambiente, colocando em risco a vida no (do) planeta. A razão instrumental encontra-se na base da economia mundial constituindo aquilo que denominamos de “aliança de dominação da natureza”, pois, em grande parte, as atividades econômicas contemporâneas são guiadas por uma lógica instrumental de manipulação dos recursos naturais, obtida, na maioria das vezes, pela utilização de tecnologias nefastas aos ecossistemas e à biosfera. O problema ecológico tem também uma dimensão filosófica ao constatarmos, entre outras urgências, a necessidade de uma ética de responsabilidade ambiental2 que possa nortear as atividades humanas, principalmente no campo da economia e da tecnociência. Se existem indivíduos conscientes (com algum grau de racionalidade) e livres (capazes de agir por conta própria), então estes também podem assumir a responsabilidade pela sustentabilidade do meio ambiente. Dos problemas passíveis de reflexão filosófica, o ecológico tem se constituído como um dos mais complexos, pois nele se entrelaçam simultaneamente questões de alcance ontológico, epistemológico, estético, ético, moral, jurídico, econômico, cultural, social, histórico etc., ou seja, envolve, em seu conjunto, a complexidade do homem, do mundo e da relação entre ambos. Por isso, o problema ecológico, além de exigir soluções para as questões referentes à devastação ambiental, defronta-se com 2 Ideia defendida por Hans Jonas, em seu livro O princípio responsabilidade, em que propõe, entre outras ideias, uma ampliação do Imperativo Categórico kantiano numa dimensão de responsabilidade ecológica, a qual se apresenta nos seguintes termos: “um imperativo adequado ao novo tipo de agir humano e voltado para o novo tipo de sujeito atuante deveria ser mais ou menos assim: “Aja de modo que a que os efeitos da tua ação sejam compatíveis com a permanência de uma autêntica vida sobre a terra”; ou, expresso negativamente: “Aja de modo a que os efeitos da tua ação não sejam destrutivos para a possibilidade futura de uma tal vida”; ou simplesmente: “Não ponha em perigo as condições necessárias para a conservação indefinida da humanidade sobre a Terra”; ou, em um uso novamente positivo: “Inclua na tua escolha presente a futura integridade do homem como um dos objetos do teu querer” ( JONAS, 2006, p. 47-8).
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o desafio de refletir sobre a complexidade que caracteriza o homem e o mundo natural de que depende, criando-se, assim, uma espécie de “paradigma ecológico” que pretende oferecer um referencial teórico de leitura e efetuar uma releitura crítica da complexidade que envolve as múltiplas atividades e fenômenos humanos As reflexões filosóficas acerca da questão ambiental são recentes (surgiram nos anos 70 do século XX), escassas e apresentam também a dimensão de complexidade que caracteriza o problema ecológico. Entre os maiores expoentes da referida reflexão estão os filósofos Michel Serres e Luc Ferry, que defendem posições polêmicas, conflitantes e antagônicas no que concerne às suas propostas teóricas de enfrentamento da questão ambiental, bem como às suas posturas críticas face ao atual modelo de civilização, o que repercute sobremaneira na dificuldade de efetivação dos ideais de liberdade e igualdade contidos na Doutrina dos Direitos Humanos que exporemos mais adiante. Michel Serres é considerado um dos integrantes da corrente ecológica denominada Ecologia Profunda e defende, em sua obra O contrato natural, a necessidade de celebração de um contrato natural, com o objetivo de estabelecer o equilíbrio entre a espécie humana e a natureza através do princípio de reciprocidade, ou seja, trata-se de acrescentar ao contrato exclusivamente social a celebração de um contato natural de simbiose e de reciprocidade em que a nossa relação com as coisas permitiria o domínio e a possessão pela escuta admirativa, a reciprocidade, a contemplação e o respeito, em que o conhecimento não suporia já a propriedade, nem a ação o domínio, nem estes os seus resultados ou condições estercorárias. Um contrato de armistício na guerra objetiva, um contrato de simbiose: o simbiota admite o direito do hospedeiro, enquanto o parasita – o nosso atual estatuto – condena à morte aquele que pilha e o habita sem ter consciência de que, a prazo, se condena a si mesmo ao desaparecimento (SERRES, 1991, p. 65-6).
A sua proposta de contrato natural supõe, de imediato, uma crítica aos conteúdos da concepção de contrato social enquanto fundamento da Modernidade e de nosso modelo de civilização, pois Os filósofos do direito natural moderno fazem, por vezes, remontar as nossas origens a um contrato social que teríamos, pelo menos virtualmente, estabelecido entre nós para entrar no coletivo que nos transformou nos homens que somos. Estranhamente lacônico acerca do mundo, esse contrato dizem eles, fez-nos abandonar o estado natural para formar a sociedade. A partir do pacto, tudo se passa como se o grupo que o assinara, ao construir o mundo, apenas passasse a enraizar-se na sua história. [...] Exclusivamente social, o nosso contrato torna mortífero, para a perpetuação da espécie, a sua imortalidade objetiva e global. [...] Portanto, é preciso proceder a uma revisão dilacerante do direito natural moderno que supõe uma proposição não formulada, em virtude da qual o homem, individualmente ou em grupo, se pode tornar por si sujeito do direito. [...] A modernidade negligencia, absolutamente falando. Não sabe, nem pode nem quer pensar ou agir no sentido do global, temporal ou espacial. Pelos contratos exclusivamente sociais, abandonamos o elo que nos prende ao mundo (SERRES, 1991, p. 60-79).
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Crítico severo dos fundamentos da Modernidade, principalmente da categoria de liberdade expressa nas atividades econômicas e tecnocientíficas, Serres preconiza a ideia de natureza como valor intrínseco, reconhecida como sujeito de valor jurídico, o que acarretaria uma drástica mudança nos fundamentos do direito democrático ocidental (uma vez que o único sujeito de valor jurídico é o homem) com repercussões metafísicas e políticas, uma vez que os conteúdos que alicerçam a sua proposta de contrato natural sugerem alterações de dimensão radical, pois Tudo acaba de mudar. De futuro, consideraremos inexata a palavra política, porque apenas se refere à cidade, aos espaços publicitários, à organização administrativa dos grupos. Ora, não conhece nada do mundo aquele que permanece na cidade, outrora designado burguês. A partir de agora, o governante deve sair das ciências humanas, das ruas e dos muros da cidade, tornar-se físico, emergir do contrato social, inventar um novo contrato natural. [...] Passarei a entender por contrato natural em primeiro lugar, o reconhecimento, exatamente metafísico, por parte de cada coletividade de que vive e trabalha no mesmo mundo global de todas as outras; não só cada coletividade política associada por contrato social, mas também qualquer um dos coletivos, militar, comercial, religioso, industrial..., associado por um contrato de direito e ainda o coletivo técnico associado pelo contrato científico. Chamo metafísico e natural a este contrato, porque vai além das limitações vulgares das diversas especialidades locais e, em particular, da física. Revela-se tão global como o contrato social, introduzindo-o, de alguma forma, no mundo e é tão mundial como o contrato científico que, de certo modo, faz entrar este na história (SERRES, 1991, p. 73, p. 76).
O desdobramento metafísico da proposta de Serres implicaria numa rejeição e, quiçá, uma superação dos alicerces da Modernidade (que se caracteriza, entre outras coisas, pelo Antropocentrismo), culminando ontologicamente no respeito à natureza como parâmetro e limite das atividades humanas, ou seja, a preservação incondicional do mundo natural seria o fim último a que toda ação humana, considerada meio, estaria subordinada. Assim, fica evidenciado que o maior alvo atingido pela proposta de Serres é a própria liberdade humana com vistas à sua maior eficácia, pois, diz ele, “estamos embarcados numa aventura de economia, ciência e técnica, que é irreversível; podemos lamentá-lo, mesmo com talento e profundidade, mas é mesmo assim e depende menos de nós do que de nossa herança histórica” (1991, p. 17). Por isso, a nossa herança histórica geradora de economia, ciência e técnica seria uma das causas que precisam ser enfrentadas de modo extremo e urgente. No nível político, por causa das posturas de rejeição à modernidade, à democracia e às éticas humanistas, a proposta de Serres sugere um enfrentamento radical e uma mobilização geral, visando uma celebração futura de um contrato natural, o que implica numa crítica radical do atual modelo de civilização. Assim, diz ele: é preciso decidir acerca do grande objeto das ciências e das práticas: o PlanetaTerra, a nova natureza [...]. [...]Podemos, decerto, atrasar os processos já lançados,
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legislar para se consumirem menos combustíveis fósseis, replantar em massa as florestas devastadas – tudo excelentes iniciativas, mas que, no fundo, remetem para a imagem do navio que avança a vinte e cinco nós na direção de uma rocha na qual sem dúvida embaterá, enquanto na ponte de comando o oficial d dia recomenda ao maquinista que reduza a velocidade em um décimo, sem mudar de direção [...]. [...] Como prosseguir uma tarefa de longo prazo com meios de curto prazo? Precisamos pagar tal projeto através de uma revisão dilacerante da cultura hoje induzida pelos três poderes que dominam as nossas brevidades (SERRES, 1991, p.54-5).
A primeira dificuldade política suscitada pela proposta de um contrato natural, consiste na necessidade concreta de agentes individuais, coletivos, institucionais com consciência, capacidade e poderes suficientes para uma mobilização geral e a conseqüente celebração do contato natural, o que talvez fosse viável, somente a longo prazo, como preconiza o próprio Serres, através da educação: a criação de uma criança baseia-se em dois princípios: um, positivo, diz respeito à sua instrução e o outro, negativo, relaciona-se com a educação. O segundo forma o juízo prudente e o primeiro a razão enérgica. Devemos aprender a nossa finitude: tocar nos limites de um ser não infinito. Teremos necessidade de sofrer, quer sejam doenças, acidentes imprevisíveis ou carências. Devemos fixar um limite para os nossos desejos, ambições, vontades e liberdades. Devemos preparar a nossa solidão perante as grandes decisões, as responsabilidades, os outros que crescem em número, o mundo, a fragilidade das coisas e dos próximos a proteger, a felicidade, a desgraça e a morte. Esconder essa finitude desde a infância alimenta os infelizes, sustenta o seu ressentimento perante a inevitável adversidade. Devemos aprender, ao mesmo tempo, a nossa verdadeira infinidade. Nada ou quase nada resiste à sua preparação. O corpo pode fazer mais do que julga, a inteligência adapta-se a tudo. Despertar a sede inesgotável da aprendizagem, para viver o mais possível da experiência humana integral e das belezas do mundo, e prosseguir por vezes através da invenção, eis o sentido da aprendizagem. Estes dois princípios riem-se dos caminhos que orientam a criação inversa de hoje: finitude estreita de uma instrução que produz especialistas obedientes ou ignorantes cheios de arrogância; infinidade do desejo, drogando até à morte pequenas larvas moles. A educação forma e reforça um ser prudente que se julga finito: a instrução de verdadeira razão lança-o num infinito devir. A terra fundamental é limitada; a aprendizagem que dela emana não conhece fim (SERRES, 1991, p. 148-9).
Nesse sentido, as noções de instrução e de educação, defendidas por Serres, seriam o caminho, na direção inversa da especialização tecnocientífica atual e dos valores individualistas e hostis ao meio ambiente difundidos pelo nosso atual modelo de civilização, de uma possível aproximação e reconciliação do homem com o planeta Terra. Apesar de tentadora e provocativa, a proposta ecológica de Serres apresenta um caráter utópico, haja vista o antropocentrismo instrumental belicista dominante e a complexidade que caracteriza o mundo atual, nutrido principalmente por liberdades econômicas e científicas. Quanto aos Direitos Humanos, a visão de Serres apresenta um questionamento dos fundamentos antropocêntricos que norteiam a concepção de Direito e a sua omissão ecológica, acentuada a partir da Moder20
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nidade. Serres alega que o primeiro direito surgido foi o de propriedade, e que a primeira figura jurídica de decisão esteve personificada no legislador ou em alguém que impôs o direito e o fez aplicar. O Direito teria nascido da noção de limite, tendo como pressuposto a existência de um contrato social ou de alguma forma de sociabilidade. Defensor de uma concepção de Direito que não seja apenas uma forma reguladora dos interesses humanos, mas ampliada ao conjunto da natureza, Serres tece severas críticas à cultura hebraico-cristã que, por intermédio de sua ideia de um Deus, todo-poderoso, enquanto aquele que revela e impõe a Lei, teria acarretado uma visão desqualificada do mundo natural e a própria morte do Direito (SERRES, 1991, p. 86-96). Serres defende uma concepção de Direito que deveria ser norteada por aquilo que ele denomina de o juízo prudente que impulsionaria uma postura de respeito incondicional ao mundo natural. Assim, o Direito jamais poderia ser movido por interesses individualistas e antropocêntricos, ou seja, ele propõe uma visão que implica em uma radical revisão da noção de Direito, com repercussões diretas também sobre a doutrina dos Direitos Humanos, uma vez que esta se nutre da herança da Modernidade e dos pilares antropocêntricos e científicos que sustentam o nosso modelo de civilização, na medida em que Todas as batalhas localmente perdidas pela tática científica tornam-se um triunfo global na guerra travada pela sua estratégia. Sim, a ciência domina o direito e isso quer dizer que as leis do mundo das coisas se impõem às leis do mundo dos homens. [...] A ciência possui, só por si, todos os direitos. Na origem, o direito precedeu-a; durante a história, estas duas instâncias opõem-se, uma arrogando as prerrogativas da outra; no fim, a ciência, a única competente, dispõe do terreno ou da terra. [...] Pelo seu retumbante triunfo, a ciência ocupa o espaço do direito natural. [...] A natureza permanece fora do coletivo e é por isso que o estado de natureza permanece incompreensível na linguagem inventada na e pela sociedade ou que inventou o homem social. A ciência promulga certas leis sem sujeito neste mundo sem homens: as suas leis diferem das leis do direito. [...] O direito natural extingue-se porque a ciência conquistou o seu espaço. [...] Este direito natural, inspirado pelas ciências naturais e cujas grandes linhas são hoje retomadas pelas tecnologias globais, não difere dos direitos humanos, mas permanece paralela a eles (SERRES, 1991, pp. 128-138).
Em direção contrária a Michel Serres, Luc Ferry defende a ideia de uma ecologia democrática e denuncia um primeiro obstáculo para a sua realização: a ecologia profunda (corrente ecológica que acata, entre outras coisas, a proposta de um contrato natural, e na qual Michel Serres se insere), pelos motivos expostos anteriormente, ou seja, pelas severas críticas que atingem os fundamentos da Modernidade, pois, diz ele: convém destacar o que nela poderia ser comprovadamente pertinente, então se impõe a questão: para assegurar a proteção do nosso meio ambiente, será necessário que lhe concedamos direitos iguais e até superiores aos dos seres humanos? Até que ponto e em que sentido se pode falar de “direitos da natureza”? O fato de se lhe reconhecer uma certa dignidade implica a desconstrução radical do
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humanismo sob todas as suas formas? Uma crítica interna dessa tradição antropocêntrica não permitiria fazer justiça à preocupação ecologista, sem renunciar aos princípios democráticos? E, reciprocamente: em que sentido e de que modo concreto o liberalismo político, o dos direitos do homem, poderia integrar as preocupações de uma ética do meio ambiente? (FERRY, 1994, p. 169-170).
Luc Ferry critica a ideia de um contrato natural por causa da impossibilidade lógica de se considerar a natureza sujeito de direito e da constatação de que toda valorização do mundo natural continua sendo uma atitude humanista e antropocêntrica. A proposta de um contrato natural com a intenção de constituir a natureza como uma pessoa jurídica entraria em confronto com aspectos significativos da Modernidade, isso porque ao fazer do universo material, da biosfera ou do cosmo, um modelo ético a ser imitado pelos homens. Como se a ordem do mundo fosse boa em si mesma, emanando toda a corrupção do mundo, portanto, da vaidosa e poluente espécie humana. Já sugeri que um tal romantismo levava à negação do melhor da cultura moderna, quer se trata-se do direito, conquistado contra o reino natural da força, ou da herança do Iluminismo e da Revolução Francesa, ganha contra o império das tradições e das evidências “naturais” (FERRY, 1994, p.173).
Luc Ferry propõe que devemos ter compromissos com a natureza, modificando-a e protegendo-a, o que resultaria em deveres indiretos para com ela. Defende, também, uma redefinição do papel dos políticos e dos intelectuais que devem contribuir para organizar o debate e oferecer soluções aos grandes problemas da atualidade. Em suma, sua proposta admite imposições à ciência e à tecnologia, porém sem abdicar das liberdades democráticas. Trata-se, pois, de postular uma ecologia fundada no individualismo autenticitário em que a sensibilidade democrática seja impulsionada pela imanência ética do indivíduo consciente e livre, que deverá assumir para si a responsabilidade pela preservação ambiental. As propostas filosóficas de Michel Serres e Luc Ferry, para o enfrentamento do problema ecológico, sintetizam política e, eticamente, as posturas críticas face aos fundamentos do atual modelo de civilização e têm repercussões sobre a Doutrina dos Direitos Humanos, pois gravitam também em torno da questão da aceitação ou não das heranças da Modernidade e da própria democracia. Tipicamente antidemocrática, como bem assevera Luc Ferry, as ideias ecológicas de Michel Serres (considerando-se a urgência e necessidade de celebração de um contrato natural e uma possível e remota eficácia, a longo prazo, de suas concepções de educação e instrução) apenas alcançariam a sua concretização, a curto prazo, através da consolidação de poderes políticos centralizadores que impusessem rígidos limites às atividades econômicas e científicas, o que atingiria um dos fundamentos maiores da Doutrina dos Direitos Humanos: a liberdade. A sua crítica ao contrato social, como foi vista em passagem anterior, tem implicações que recaem sobre as diretrizes básicas que norteiam os Direitos Humanos, os 22
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quais têm sustentação histórica na própria concepção de contrato social enquanto alicerce do liberalismo e da Modernidade e que levaram a categoria de liberdade (principalmente no âmbito de sua autonomia econômica e científica) ao patamar de um dos pilares do atual modelo de civilização Ocidental. Apesar do extremismo da proposta de Michel Serres, a urgência de frear os impactos ambientais decorrentes dos efeitos oriundos das atividades econômicas e científicas deve ser considerada, pois é uma imposição de caráter ecológico, haja vista as limitações de utilização dos recursos naturais do planeta. É nesta perspectiva que se situa Luc Ferry ao defender a necessidade de uma consciência democrática de preservação ambiental que leve os indivíduos a exercerem as suas liberdades com responsabilidade ecológica. 4 O problema ecológico impondo limites à liberdade e à igualdade Defensor fervoroso da herança da Modernidade materializada pela Revolução Francesa e expressa na Doutrina dos Direitos Humanos, Luc Ferry encara o problema ecológico numa dimensão democrática exaltando a importância do indivíduo ético cuja maior garantia é a sua liberdade. Convém, pois, indagar: ante a necessidade de soluções concretas para o enfrentamento efetivo das questões ambientais (que podem inviabilizar o futuro das próximas gerações) não seria conveniente repensarmos, sem abdicar do referencial democrático, o papel político que poderia caber ao Estado (caso Karl Marx tenha sido exagerado e o Estado não se limite exclusivamente a instrumento de interesses e de dominação a serviço da classe dominante) como um dos agentes responsáveis pela preservação ambiental, criando leis, executando e fiscalizando o seu cumprimento, além de coibir os excessos das atividades econômicas e tecnológicas danosas ao meio ambiente? Não é chegado o momento de o Estado, enquanto instituição política e pública, limitar alguns aspectos da liberdade, que sejam nocivos ao meio ambiente? Noberto Bobbio (1997) denomina liberdade negativa “a situação na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir sem ser obrigado por outros sujeitos. [...] Liberdade com ausência de impedimento ou de constrangimento” (1997, p.48-9). O Liberalismo defende que o Estado não pode intervir na esfera dos direitos individuais à vida, à propriedade, à segurança e à liberdade, ou seja, é dever do Estado a não intervenção na esfera dos referidos direitos individuais. Ora, não deveria também ser dever de Estado garantir os direitos do indivíduo na dimensão do social e do meio ambiente (sem os quais não sobrevivem indivíduos, nem sociedade)? Por que não limitar algumas liberdades expressas em práticas econômicas que geram desigualdades sociais e desequilíbrios ambientais? A democracia é tão frágil que depende in extremis de desenfreada liberdade econômica? 23
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A luta por liberdade caracterizou a Modernidade e é um dos pilares de nosso atual modelo de civilização. O problema que destacamos é que as práticas econômicas e científicas (nutridas pela liberdade) provocam uma situação ambiental que gera incertezas sobre o futuro da humanidade e traduzem as dificuldades relativas à universalização da Doutrina dos Direitos Humanos no que concerne a sua segunda fundamental categoria: a igualdade. Os meios de comunicação, cotidianamente, nos bombardeiam com a divulgação de dados científicos que mostram a dimensão concreta e empírica da disponibilidade e limitação dos recursos naturais. A reflexão sobre tais dados revela a inviabilidade da expansão da categoria de igualdade para toda a humanidade, nos termos mínimos de dignidade assegurada por alimentação, saúde, educação, habitação, trabalho, saneamento básico etc. (demandas que exigem a disponibilidade de mais recursos naturais). Apenas a questão da alimentação ilustra tal inviabilidade. Estima-se que o planeta Terra, ao atingir a marca de nove bilhões de habitantes (levando-se em consideração os possíveis e os mais elevados aparatos tecnológicos destinados a aumentar a oferta de alimentos), só poderá alimentar, num nível igualitário, a referida quantidade de pessoas se fosse instituído o reduzido padrão de consumo africano. A supracitada informação permite as seguintes indagações: a) os países ricos, que consomem a maior parte dos recursos naturais, estariam dispostos ao “sacrifício” de alimentar suas populações segundo os padrões africanos? b) considerando-se que não há recursos naturais suficientes para se universalizar materialmente o nível de consumo dos países ricos para todos os povos, estariam os referidos países ricos dispostos a abdicar de seus privilégios de consumo em nome da paz e da universalização material da igualdade? Essas duas indagações remetem a outra questão: quem estaria disposto a fazer sacrifícios, abrir mão de privilégios e diminuir o seu nível de consumo, em nome de uma causa ecológica que não ameaça a sua sobrevivência imediata? Defensor da democracia e do ideal kantiano de paz perpétua entre as nações, Habermas sugere, em O ocidente dividido, que os Estados Unidos são, enquanto potência política e econômica nutrida de liberalismo e de democracia, o país mais bem capacitado para ampliar o direito internacional e difundir mundialmente os ideais de democracia e de paz. Ora, considerando-se que os Estados Unidos consomem trinta por cento dos recursos naturais do planeta (dados científicos revelam que, se a humanidade possuísse o mesmo nível de consumo dos americanos, seriam necessários três planetas Terra para suprir tal demanda de recursos naturais), que se recusam a defender os direitos humanos de segunda e de terceira geração (aqueles que tratam de igualdade econômica e social, e da preservação ambiental), que tentam impor ao mundo a sua política imperialista 24
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e hegemônica (principalmente, a partir da invasão do Iraque), nos resta o temor de que tal país, com a política de expansão de seus interesses ideológicos e culturais e de suas posturas e atividades econômicas, acentue a devastação ambiental e a desigualdade social mundial, o que compromete diretamente a efetiva materialização universal do ideal de igualdade enquanto justiça social. Outro fator preocupante de repercussões ambientais que poderá comprometer também uma crescente efetivação da igualdade é a onda desenvolvimentista, de caráter capitalista, que os países continuam a adotar, uma vez que a competição econômica mundial, nos moldes da globalização, como bem mostra Ulrich Beck (1999), apesar da produção crescente de riquezas, tem gerado concentração de capital e aumento das desigualdades sociais em âmbito mundial. Também é fator preocupante que as principais potências econômicas mundiais (Estados Unidos, China, Inglaterra, França, Rússia) possuem arsenal nuclear com capacidade suficiente de destruir a Terra várias vezes e, em defesa de suas políticas econômicas, não estão dispostas, espontaneamente, a abdicar de seus objetivos e assumir uma mudança radical de postura que acate a causa da preservação ambiental e defenda a utilização racional dos recursos naturais do planeta como parâmetro maior para as suas atividades tecnocientíficas e econômicas. 5 Conclusão À guisa de conclusão é possível considerar que, se somos seres históricos influenciados pelos fundamentos da Modernidade que nos imprimiram uma aura de características individualistas, pragmáticas e antropocêntricas, e se também ainda somos pessoas que não perderam o instinto natural de preservação da espécie, então talvez devamos começar a ter a consciência e assumir a responsabilidade (movidos por uma postura de sobrevivência antropocêntrica e pragmática, e não romanticamente “por amor à natureza”) de preservação ecológica (sem a qual é incerto o futuro do homem), a partir da qual os conceitos de liberdade e de igualdade terão de se reajustar, agora numa perspectiva não mais particular, mas universal, visando toda a humanidade. A luta por igualdade também revela a fraqueza humana de não conseguir resolver, no nível histórico, algo que é evidente na dimensão ontológica: a igualdade da condição humana que depende, antes de tudo, dos recursos do mundo natural para sobreviver e sem os quais não há cultura nem história. Consideramos que o aspecto mais paradoxal que caracteriza o mundo atual reside no antagonismo de suas faces positivas e negativas. De um lado, o extraordinário aumento de expectativa de vida da população humana decorrente do acúmulo de riquezas, de conhecimentos tecnológicos e científicos que descobriram e difundiram antibióticos, antiinflamatórios, anestésicos, vacinas, descoberta dos microrganismos que permitiram a consciência de que uma simples lavagem de mãos pode salvar vidas, uti25
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lização urbana de água tratada e saneamento básico etc. Por outro lado, por questões políticas e econômicas, não foi possível estender ainda tais conquistas da civilização para toda a humanidade, nem materializar universalmente as condições mínimas e dignas de sobrevivência em termos de alimentação, saúde, educação, habitação, trabalho, saneamento etc. O fato concreto é que todo o progresso acumulado da civilização contemporânea teve um preço e o problema que se evidencia é que não há recursos naturais suficientes para suprir, a médio prazo, as necessidades, sejam elas vitais ou artificiais, geradas pelo nosso atual modelo de civilização (constituído de ricos e pobres, opulência, consumo exacerbado e miséria), muito menos ampliar em níveis dignos tais conquistas para todos os excluídos, o que implicaria em mais demanda de uso dos já comprometidos recursos naturais. Por fim, enfatizamos que a luta pelos Direitos Humanos foi um dos motores da Modernidade que se materializou na Revolução Francesa e ajudou a traçar o perfil do nosso atual modelo de civilização, o qual, paradoxalmente, através do problema ecológico, impõe limites à universalização dos próprios Direitos Humanos em suas duas principais categorias: liberdade e igualdade. Referências ALVES, José Eustáquio Diniz. A terra no limite. São Paulo: Revista Veja. Especial Sustentabilidade – 12/2010. ARISTÓTELES. A política. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. BECK, Ulrich. O que é globalização? São Paulo: Paz e Terra, 1999. BOBBIO, Noberto. Liberdade e igualdade. 3. ed. RJ: Ediouro, 1997. CARSON, Rachel. Primavera silenciosa. SP: Edições Melhoramentos, 1964. FERRY, L. A nova ordem ecológica: a árvore, o animal e o homem. SP: Ensaio, 1994. HABERMAS, Jurgen. O ocidente dividido. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2006. HEGEL, G.W.F. Princípios da filosofia do direito. SP: Martins Fontes, 1997. HOBBES, Thomas. Leviatã. Coleção os Pensadores. SP: Abril Cultural, 1974. JONAS, Hans. O princípio responsabilidade. RJ: Contraponto, 2006. LEFF, Enrique. Epistemologia ambiental. 4. ed. São Paulo: Cortez, 2006. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Coleção os Pensadores, v. II. São Paulo: Abril Cultural, 1980. LOWITH, Karl. O sentido da história. Lisboa: Edições 70, 1977. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 2. ed. SP: Abril Cultural, 1978. Coleção os Pensadores. SERRES, Michel. O contrato natural. Lisboa: Instituto Piaget, 1991. TOSI, Giuseppe. O socialismo: entre revolução e reforma (texto ainda não publicado pelo referido autor, 2010). ______. Da doutrina hegeliana do estado como totalidade ética ao estado ético e ao estado totalitário (texto ainda não publicado) 2010. 26
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Filosofia O anti-humanismo em Blaise Pascal The antihumanism in the Blaise Pascal
Joelson Pereira de Sousa
Mestre em Filosofia pela Universidade São Judas Tadeu (USJT) e Professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB ). Email: joelson.filo@hotmail.com
Resumo: O objetivo deste artigo é investigar a condição humana na obra Pensamentos, de Blaise Pascal (1623-1662), temática amplamente abordada em seus escritos e, por isso, essencial para o entendimento de sua filosofia. As notas que compõem tal obra são de caráter eminentemente provisório, fragmentado, resultante de embates intelectuais, radicalismos e paradoxos veementes, típicos das reflexões que inauguraram a Modernidade. Este trabalho retoma a concepção anti-humanista forjada por Pascal ao refletir sobre as polêmicas relacionadas ao lugar da religião e da ciência, da fé e da razão no pensamento do indivíduo que principia com a modernidade. Além de Pascal, o referencial teórico utilizado nesta pesquisa baseia-se em estudiosos da filosofia pascaliana, como Gérard Lebrun (1983) e Luiz Felipe Pondé (2001). Palavras-chave: Pascal. Anti-humanismo. Insuficiência. Abstract: The aim of this paper is to investigate the human condition in the work Thoughts of Blaise Pascal (1623-1662), widely discussed theme in his writings and therefore essential to understanding his philosophy. The notes that make this work are eminently provisional, fragmented, resulting in clashes intellectual radicalism and paradoxes vehement, who inaugurated reflections typical of modernity. The paper revisits the concept forged by anti-humanist Pascal to reflect on the controversies related to the place of religion and science, faith and reason in the thought that the individual begins with modernity. Besides Pascal, the theoretical framework used in this research theme is based on the philosophy scholars Pascal, as Gérard Lebrun (1983) and Luiz Felipe Pondé (2001). Keywords: Pascal. Anti-humanism. Insufficiency.
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Introdução A natureza do homem não consiste em ir sempre em frente; comporta idas e vindas. (Frag. 72)
Refletir o significado da existência humana é uma tarefa filosófica recorrente em vários momentos da história do pensamento, sendo inegável a vocação da filosofia para tematizar as condições por meio das quais se realiza a vida humana em todas as suas potencialidades. Ao filósofo impõe-se o desafio de pensar a natureza intrínseca e comum a todos os homens, conhecer a essência de suas realizações, buscar o sentido para suas ocupações cotidianas, desbravando corajosamente seu ser ainda em construção. O século XVII europeu consolida uma nova forma de conceber as ideias sobre o homem, privilegiando a reflexão centrada no próprio indivíduo e nas condições da sua existência. Essa posição tem na elaboração de uma espécie de racionalismo militante sua melhor definição no Racionalismo que influenciou a Modernidade de forma impactante e revolucionária tornando a época moderna um momento singular para o debate de uma questão continuamente presente na marcha histórica da humanidade: o que é o homem? Tal questão destacou-se com notoriedade nos círculos de conhecimento, despertando interesses em autores como Descartes, Montaigne e Pascal, na França, Bacon, Hobbes e Locke, na Inglaterra. A Modernidade era ainda carente de uma formulação mais apropriada do caráter excepcional que este ser humano assumiria, agora como protagonista de si mesmo e de todo um universo que se abre ao conhecimento e se mostra infinito em possibilidades. Esse novo entendimento sobre os limites do homem representa na verdade o anúncio de um novo homem, que na abordagem feita por Pascal, se mostra dilacerado, transpassado por uma racionalidade científica e ateia de um lado, e por uma racionalidade cristã e religiosa, do outro. O objetivo deste artigo é investigar a condição humana na obra Pensamentos, de Blaise Pascal, temática amplamente abordada em seus escritos e por isso essencial para o entendimento da sua filosofia. Seus Pensamentos formam uma obra de caráter essencialmente fragmentário, resultante de embates intelectuais, radicalismos transitórios, contradições ocasionais e paradoxos veementes, típicos das reflexões que inauguraram a modernidade. Em suas anotações, ao abordar a temática da existência humana, Pascal não chega a sistematizar conceitos ou elaborar com profundidade um esquema acerca da concepção anti-humanista. No entanto, assume uma postura que expressa radicalmente a precariedade do espírito humano frente ao projeto humanista de um homem seguro de si mesmo e frente ao projeto racionalista, com o pressuposto da autonomia do sujeito. Este trabalho retoma a concepção anti-humanista encontrada em Pascal ao refletir sobre as polêmicas relacionadas ao lugar da religião e da ciência, da fé e da razão no pensamento do indivíduo que principia com a modernidade. 28
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1 A questão da religião Não é possível afirmar que Pascal tenha sido um teólogo ou um filósofo da religião (também não é possível afirmar que não tenha sido); entre as duas possibilidades ele estará sempre à margem, tanto nos manuais de história da teologia quanto nos manuais de história da filosofia. O fato é que a religião cristã é um acontecimento tardio na vida deste pensador, contudo, suas produções reflexivas representaram já naquela época importantes inovações na forma de entender a fé e a religião. Seu pensamento situa-se numa tênue linha imaginária entre a teologia e a filosofia; suas reflexões serviram tanto para inspirar meditações como para fundamentar outras filosofias mais críticas. Os escritos de Pascal sobre a religião cristã são estrategicamente direcionados e objetivamente apologéticos, porém, em alguns momentos percebe-se um autor angustiado que rompe seus próprios propósitos em linhas que registram pensamentos em conexão com um sentimento trágico e paradoxal da existência humana. Segundo Küng ( 2001, p. 79), ele se situa em uma frente apologética contra libertinos, livre pensadores e ateus. [...] enfim, também capta com fino olfato os problemas de homem e acaba por chocar – talvez mais que nenhum outro – com o fundamento último da existência humana.
Em Port-Royal, ao lado dos jansenistas, Pascal polemiza sobre temas ligados à religião cristã contra os teólogos da Companhia de Jesus que defendiam a manutenção, no pensamento cristão, da perspectiva escolástica baseada essencialmente nos pressupostos lógicos e racionais do tomismo aristotélico . Pascal é crítico da religião cristã apresentada nos termos dos racionalismos típicos da abordagem escolástica e da concepção tomista. Essas perspectivas procuravam demonstrar perante uma razão cada vez mais exigente a veracidade das verdades metafísicas, especialmente acerca da existência de Deus. Desde o século XVII, surgem esforços apologéticos para justificar a religião no mundo moderno porque esta (o cristianismo) se distanciou da evolução histórica do mundo técnico-científico (ZILLES. 1991, p.15). Essas posturas radicalmente apologéticas soavam cada vez mais inglórias, deslocadas e vazias de sentido, basicamente por não encontrarem lugar entre as elaborações propriamente teológicas e filosóficas, ou ainda, entre as perspectivas da fé e da razão. Pascal considera que, nesse campo (religião), a primeira e fundamental exigência é a compreensão do homem como tal e que a razão é incapaz de alcançar essa compreensão (REALE; ANTISERI. 1990, p. 599). Em Pascal, esse entendimento da condição humana ganha status decisivo, tanto para o pensamento filosófico como para a religião. O desta29
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que aqui recai sobre o fato de este entendimento ser inacessível à perspectiva racional, sendo que a verdadeira “compreensão do homem como tal” deriva unicamente da fé, um enigma a ser enfrentado por cada indivíduo em sua trajetória pela vida. A fé em Pascal assume a condição de fundo na qual de desenrola as situações limites da tragédia humana, ela não a separada da razão, ao contrário, constitui sobre ela seu próprio fundamento. A razão não explica a si mesma, para isso, é preciso dar lugar à fé. A partir dessa posição contrária à euforia que acompanha os progressos de uma razão suficiente na modernidade, Pascal, no interior do seu pensamento, manifesta aversão à tradição na teologia escolástica dos argumentos racionais e das provas da existência de Deus. Em outras palavras, Pascal contraria também a posição que aceita submeter a fé às exigências da racionalidade e do raciocínio lógico. Assim, pensadores como Tomás de Aquino e suas Cinco Vias para provar a existência de Deus, Anselmo de Aosta e o Argumento Ontológico, e por fim, o próprio Descartes, que também invoca toda essa tradição de provas racionais da existência de Deus, são alvos das críticas de Pascal. Que não perdoa o contrassenso de buscar uma religião que se deixa guiar cegamente pela razão, sendo corrompida ao mostrar-se como certeza absoluta apenas quando legitimada pela lógica racional. Diz Pascal em alguns fragmentos: Caso se devesse apenas fazer coisas com certeza, nada deveria ser feito pela religião, uma vez que ela não oferece certeza (Frag. 577). As provas metafísicas de Deus encontram-se tão apartadas do raciocínio dos homens e tão embrulhadas que pensam pouco, e, mesmo que isso valesse para alguns, somente valeria no instante em que vissem tal demonstração, uma hora depois, entretanto, receariam ter-se enganado (Frag. 190). Teria muito mais medo de me iludir e vir acreditar que a religião cristã é verdadeira do que de me enganar por julgá-la verdadeira (Frag. 387). Como se vê, Pascal não admite que uma abordagem racional sobre Deus e a religião cristã, seja levada em conta como elemento constituinte do modo como se manifesta a fé em Deus ou a crença na verdade da religião. 2 Contra o Deus dos filósofos Permanecendo na temática que discute Deus e a religião cristã, Pascal aponta, a partir de sua própria experiência místico-religiosa, uma distinção que seria vastamente difundida entre outros pensadores, a saber, a controvérsia entre o Deus dos filósofos e o Deus da tradição. No texto que intitulado Memorial, de 1654, Pascal escreve sua confissão de fé e assinala sua verdadeira conversão ao cristianismo, dizendo: “Deus de Abraão, Deus de Isaac, Deus de Jacó. Não dos filósofos e dos cientistas” (ATTALI. 2000, p. 156).
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Pascal não se contenta com um Deus metafísico. O memorial recorda o Êxodo. Procura a certeza não na própria consciência, nem no conceito, numa ideia de Deus, nem no Deus dos filósofos, mas no Deus vivo da Bíblia. Busca o fundamento da certeza na fé (ZILLES. 1991, p. 40). Nessa confissão de fé, Pascal afirma a distância existente entre o Deus apresentado nos postulados filosóficos e o Deus testemunhado pela tradição bíblica dos patriarcas, dos profetas e discípulos. Aposta na crença fundamentada pela tradição viva do Cristianismo, não na crença que se fundamenta nos argumentos e provas sobre a existência de Deus. Em razão disso, Pascal é radical na crítica contra Descartes: Não consigo perdoar Descartes, bem quisera ele, em toda sua filosofia, passar sem Deus, mas não pôde evitar fazer com que Ele desse um piparote para pôr o mundo em movimento, depois do quê, não precisa mais de Deus (Frag. 1001).
Após essas considerações, pode-se dizer que em Pascal, “A religião é um dado que está aí e não se funda na filosofia. Não é filosofia. Desde Blaise Pascal, costuma-se opor o Deus dos filósofos ao Deus de Abraão, Isaac, Jacó, ou seja, ao Deus de Jesus Cristo” (ZILLES, 1991 p. 10). Mais que isso, o pensamento pascaliano eleva a aposta da fé a um nível fundamental para o conhecimento da verdade sobre Deus e sobre o próprio homem. Embora não deixe de se referir às controvérsias que eventualmente poderiam afligir aqueles que buscam tal conhecimento, por isso, sentencia: “pode-se perfeitamente conhecer que há um Deus sem saber o que ele é” (Frag. 418). 3 A dimensão metafísica do homem O assim denominado projeto de uma Apologia do Cristianismo que é empreendido por Pascal, mesmo interrompido por sua morte prematura, resulta nas notas que compõem a obra Pensamentos que, por sinal, visivelmente extrapola o caráter apologético de defesa da fé cristã e transborda para um Tratado da Condição Humana. Em suas anotações, Pascal desenvolve aspetos cruciais do drama que evolve os próprios indivíduos de seu tempo, a saber, o conflito fé e razão que perdura por toda época moderna. Há uma antropologia independente do projeto apologético de Pascal. E isso se evidencia em passagens como o Frag. 47 que traz à tona o problema do tempo e suas implicações para as decisões que governam a conduta cotidiana dos homens ao longo dos tempos. Não ficamos nunca no tempo presente. Antecipamos o futuro, por chegar demasiado lentamente, como para apressar-lhe o curso; recordamos o passado, para detê-lo, por demasiado rápido: tão imprudentes que erramos nos tempos que não são nossos e só não pensamos no único que nos pertence; e tão vãos que sonhamos com os que já não existem e evitamos sem reflexão o único que sub-
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siste. É que o presente de ordinário nos fere. Ocultamo-lo à vista, porque nos aflige; e, se nos é agradável, lamentamos vê-lo escapar. Tratamos de sustentá-lo pelo futuro e pensamos em dispor das coisas que não estão ao nosso alcance para um tempo que não temos nenhuma certeza de alcançar. Que cada qual examine os seus Pensamentos, e os achará sempre ocupados com o passado e com o futuro. Quase não pensamos no presente; e, quando pensamos, é apenas para tomar-lhe a luz a fim de iluminar o futuro. O presente não é nunca o nosso fim; o passado e o presente são os nossos meios; só o futuro é nosso fim. Assim, nunca viveremos, mas esperamos viver, e, dispondo-nos sempre a ser felizes, é inevitável que nunca o sejamo (Frag. 47).
Pascal pensou a dimensão metafísica da existência humana. Para ele, o drama existencial humano é um drama metafísico que pode ser resumido na questão dos extremos relacionados ao tempo: o tempo finito dos homens e o tempo infinito do cosmos. Ou seja, ele aprofunda o sentimento trágico da finitude da vida frente à infinitude da eternidade. Quando contemplo a pequena duração da minha vida absorvida na eternidade precedente e seguinte – a memória de um hóspede que é recebido por um dia, que passa adiante -, o pequeno espaço que preencho e mesmo que vejo abismado na infinita imensidão dos espaços que ignoro e que me ignoram, apavoro-me e admiro-me por me ver aqui e não lá, pois não existe razão por que aqui e não lá, por que agora e não então. Quem me colocou aqui? Pela ordem e pela intervenção de quem este lugar e este tempo foi destinado a mim? (Frag. 68).
Pascal é, antes de tudo, um filósofo ocupado com o destino do homem. Seu ser temporal e espacial simultaneamente sente que os espaços infinitos o apavoram e o admira, enquanto indaga sobre o seu lugar de destino neste mundo. Escrevendo em um ambiente intelectual que não determina patentes para as linguagens, ele utiliza a linguagem teológica como possibilidade de melhor conhecer a verdade sobre a condição humana. Posto isso, em relação à posição metafísica assumida no pensamento de Pascal, deve-se considerar a importância do mito hebreu que relata a queda do homem de sua posição de perfeição, narrado no livro de Gêneses (Cap. 3), em que a expulsão de Adão e de Eva do Jardim do Éden, além de traduzir com clareza o drama humano, é peça central no desenvolvimento e na compreensão da antropologia pascaliana Pois, enfim, se o homem nunca tivesse sido corrompido, gozaria com segurança, em sua inocência, tanto da verdade quanto da felicidade. E se o homem só tivesse sido corrompido, não teria qualquer ideia da verdade, ou da beatitude. Mas, infelizes que somos, e mais do que se não houvesse grandeza em nossa condição, temos uma ideia da felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade e só possuímos a mentira: somos incapazes de ignorar em absoluto e de saber com certeza, de tal maneira é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente caímos! (Frag. 131).
Pascal discute, neste fragmento, a questão da natureza humana, conceito chave para o humanismo, pois expressaria um novo sentido para 32
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o homem na Modernidade. Enquanto os humanistas afirmam a natureza do homem como uma identidade racional que implica na superioridade do homem sobre o cosmos, Pascal apresenta sua decomposição do humano, que consiste em demonstrar as misérias e a insuficiência do homem: “[...] temos uma ideia da felicidade, e não podemos alcançá-la; sentimos uma imagem da verdade e só possuímos a mentira.” A ideia de insuficiência parece demonstrar uma definição pascaliana para o entendimento da natureza humana, apontando para a inconsistência de uma ideia de natureza soberana inerente ao homem, uma vez que, como nas palavras do próprio Pascal: “[...] é manifesto que estivemos num grau de perfeição de que infelizmente caímos!” E, ainda, complementa sobre esse caráter duplo na natureza humana, antes da queda (perfeição) e depois da queda (insuficiência), “Pois quem não vê que sem o conhecimento dessa dupla condição da natureza estava o homem numa ignorância invencível da verdade de sua própria natureza?” (Frag. 131). Para Pascal, o esquema com duas naturezas revelado pelo mito da queda é a mais completa representação do drama humano na modernidade. Mesmo entendendo que o pensamento teológico é o que melhor esclarece a condição humana, “Concebamos pois que o homem ultrapassa infinitamente o próprio homem e que era inconcebível para si mesmo sem o auxílio da fé” (Frag. 131). No entanto, esse transbordamento do humano em Pascal resulta na possibilidade da fé, “De maneira que o homem é mais inconcebível sem esse mistério do que esse mistério é inconcebível para o homem” (Frag. 131), pois somente o mistério profundo da fé é capaz de sondar a essência da condição humana. 4 O erro da ideia de natureza humana A ideia de natureza humana é a gênese do Humanismo, uma concepção positiva acerca das potencialidades humanas e da sua própria constituição final, especialmente em relação à autonomia do indivíduo como ser pensante e capaz de realizações que o credencia como senhor de seu destino. Ao defender a insuficiência dessa natureza para explicar a condição humana, Pascal apresenta a primeira crítica moderna ao Humanismo, manifestando-se contrário à ideia de uma natureza perfeita, absoluta e inerente ao homem. Como pode ser visto na obra clássica do humanismo renascentista De Dignitate Hominis, de Pico de La Mirandola (1463-1494), o conceito de “homem indefinido” é utilizado para romper com a imagem medieval do homem dominado pelo destino teológico pós-queda e marcado pelo drama do pecado original que o separa da primeira natureza tida como perfeita e incorruptível. Tal concepção negativa, típica do mundo medieval, que destaca a miséria humana é agora negada na modernidade em favor de uma compreensão do homem como dotado de múltiplas potencialidades; ou seja, um ser humano agora ilimitado. A ideia de homem indefinido representa um estado onde o indivíduo se liberta, diríamos em linguagem 33
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contemporânea, do complexo da queda (PONDÉ. 2001, p. 258). É essa ideia de natureza humana indefinida que sustenta uma antropologia capaz de oferecer suporte ao racionalismo da modernidade, é uma versão do antropocentrismo que apresenta o homem como um ser aberto a tudo, sem nada lhe faltar para governar seu próprio destino. Tudo lhe pertence enquanto atributos e potencialidades a serem desenvolvidas. São esses os aspectos que fazem do humanista um educador. Esse otimismo antropológico típico da mentalidade moderna é rejeitado por Pascal, pois submete o homem a um sistema de alienação que impede a visão do seu próprio drama. “Não tendo os homens podido curar a morte, a miséria, a ignorância, resolveram, para ficar felizes, não pensar nisso” (Frag.133). Em Pascal, o destaque da racionalidade, da autonomia e da liberdade como itens positivos da natureza humana, serve apenas para encobrir sua real condição de inconstância e insuficiência. Em outras palavras, o projeto da modernidade resulta de uma alienação do homem em relação a ele próprio, Seja qual for a condição que se imagine, se se juntarem todos os bens que nos podem pertencer, a realeza é a mais bela posição do mundo e, no entanto, imagine-se o rei, acompanhado de todas as satisfações que lhe podem caber, se estiver sem divertimento e se o deixarmos considerar e refletir sobre aquilo que ele é – essa felicidade lânguida não o sustentará –, cederá necessariamente às circunstâncias que o ameaçam, revoltas que podem acontecer e finalmente a morte e as doenças que são inevitáveis, de modo que fica, sem aquilo a que se chama divertimento, infeliz, e mais infeliz do que o menor de seus súditos que joga e se diverte (Frag. 136).
Como se vê, nem mesmo a mais nobre posição ocupada por um homem, a saber, a realeza, escapa à verdade inevitável da natureza insuficiente. Pensando neste ponto decisivo do confronto com o humanismo e com o intuito de mostrar o alcance da alienação proposta no projeto da modernidade, Pascal desenvolve a noção de divertimento para apontar esta estratégia que despreocupa o ser humano de pensar em si mesmo. O divertimento como alienação se estende a todas as ocupações e preocupações que nos lançam para fora de nós mesmos, fazendo com que pensemos no futuro como nossa finalidade e assim nunca pensemos em nossa condição ao aprofundar no presente, pois sobrecarregam os homens desde a infância com o cuidado de sua honra, dos bens, dos amigos, e ainda dos bens e da honra dos amigos; cumulam-nos de afazeres, do aprendizado das línguas e de exercícios e se lhes dá a entender que não conseguiriam ser felizes sem que a sua saúde, honra e fortuna, e as de seus amigos estivessem em bom estado, e que a falta de uma única coisa dessas os tornará infelizes. Assim, são-lhes dados encargos e afazeres que os fazem quebrar a cabeça desde o raiar do dia. Aí está, direis, uma estranha maneira de torná-los felizes; que se poderia fazer de melhor para torná-los infelizes? Como, o que se poderia fazer? Bastaria retirar-lhes todas essas preocupações, porque então eles se veriam, pensariam naquilo que são, de onde vêm, para onde vão, e assim nunca é demais ocupá-los e desviá-los disso. E eis por que, depois de preparar-lhes tantos afazeres, se ainda tiverem algum tempo livre, aconselha-se que o empreguem em se divertir, e jogar, e ocupar-se sempre por inteiro (Frag. 139).
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É justamente nessa medida descrita por Pascal que o divertimento passa ao nível de alienação, já que elimina todas as ocasiões nas quais nos sentimos existir. O divertimento é o desvio de si mesmo para evitar a consciência da miséria e da insuficiência de nossa condição. Para Pascal , a natureza humana empiricamente observável deve ser recusada em sua totalidade, pois resulta de ocupações cotidianas que objetiva nos desviar da real condição de insuficiência da qual participa todos os homens. Todavia, vale lembrar neste instante, que está em jogo no embate entre humanismo e anti-humanismo, a construção de uma autoimagem que deverá guiar o homem a partir da era moderna. Assim, é no seio de um processo de construção de identidade que se dá a discussão. O anti-humanismo em Pascal está no resistir a si mesmo, representado pela recusa do divertimento – alienação sofisticada – e pela proposta de encarar a miséria, vivenciar o desespero, apostar em uma outra solução que não seja o amor a si, no cultivo do Narciso que nos tornamos. Pascal propõe o esforço para não fugir da consciência de nossa fraqueza e miséria; enfim, é preciso viver esse desconforto existencial no qual existimos. Ao invés de tentar dissipar os paradoxos, aprofundá-lo-emos e examinálo-emos em todos os sentidos, pois o importante não é resolver um problema, mas remontar até o ponto em que o problema pode se formar, ou seja, tornar pensável o paradoxo (LEBRUN. 1983, p. 73). Essa questão nos aproxima definitivamente do caráter dialético da filosofia pascaliano, ao sugerir a problematização dos paradoxos que abarcam nossa existência e o entendimento de um tipo verdade que pode ser relativa e também absoluta ao mesmo tempo. A contradição entre finito e infinito, autonomia e insuficiência, miséria e grandeza que marcam o pensamento pascaliano se resolve no movimento próprio do conhecimento, que partindo de conhecimentos finitos busca a ascensão a uma verdade absoluta. Em Pascal não há conceito que não seja momento de uma transformação, especialmente quando esses conceitos estão na órbita da natureza humana. Considerações finais O pensamento de Pascal sobre o homem é um dobrar-se sobre a dimensão metafísica da existência humana. Parece-nos uma busca constante em compreender o destino trágico no qual existe o ser humano. Engana-se quem vê em Pascal um pensador de método, ou um sistemático que prioriza a resposta ante a pergunta, a solução ante o problema. Pascal detém-se no conhecimento do drama existencial, desse homem antropologicamente insuficiente que vaga entre espaços infinitos e silenciosos. Pascal quer tornar pensável o paradoxo desta existência confusa e dividida entre os fundamentos metafísicos e racionais. Seu anti-humanismo não é outra coisa que não a negação da suficiência do homem, enquanto indivíduo autônomo e seguro de si mesmo, que aparece no projeto humanista da modernidade e que em sua época culmina com o sujeito cartesiano. 35
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No âmbito deste estudo, buscou-se aproximar as questões mais gerais do pensamento pascaliano com a temática do anti-humanismo, que a princípio não se deixa revelar explicitamente, mas que antes percorre toda obra Pensamentos servindo de ponto de partida para a crítica da religião, da epistemologia e da própria antropologia. O primeiro momento de caráter introdutório restringiu-se ao aprofundamento da época em que viveu Blaise Pascal. Indicando possíveis aproximações entre a sua obra e alguns acontecimentos do século XVII e também explorando os diversos aspectos da tradição interpretativa acerca dos Pensamentos. Pascal é um pensador contra a corrente estritamente racionalista que predominava nos círculos de conhecimento no século XVII. Em seguida, buscou-se a reflexão sobre as ideias que estavam em debate no século XVII. Trata-se de uma tentativa de pensar o ser humano em relação ao conhecimento de Deus, do mundo e de si mesmo. Sendo que, em alguns momentos essa discussão é intensificada a fim de refletir também a questão do humanismo, do teocentrismo e do antropocentrismo. O ponto decisivo deste trabalho aborda a problemática do anti-humanismo nos Pensamentos. Por mais que essa temática seja diluída ao longo de todo o texto, procurou-se concentrar as atenções em alguns fragmentos que especificavam a postura antropológica pascaliana, sobretudo, os textos que se relacionavam à religião, à dimensão metafísica do homem e à ideia de natureza humana. Sendo assim, ao abordar as questões mais globais do pensamento de Pascal, mantivemos sempre a preocupação de levar a discussão para o âmbito filosófico; posicionando a questão do anti-humanismo pascaliano como tema central e recorrente ao longo do texto. Referências ABBAGNANO, N. Dicionário de filosofia. SP: Martins Fontes, 2000. ATTALI, Jacques. Blaise Pascal ou o gênio francês. Bauru/SP, EDUSC, 2003. GOLDMANN, Lucien. Le dieu caché. Paris, Editions Gallimard, 1955. KUHN, Tomas. A estrutura das revoluções científicas. SP: Perspectiva, 2001. LEBRUN, Gérard. Pascal. São Paulo: Brasiliense, 1983. PASCAL, Blaise. Pensamentos. Coleção Os Pensadores. SP: Nova Cultural, 1999. PONDÉ, Luiz Felipe. O homem insuficiente: comentários de antropologia pascaliana. São Paulo, EDUSP, 2001. REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da filosofia: do humanismo a Kant. São Paulo: Paulus, 1990. ZILLES, Urbano. O problema do conhecimento de Deus. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1989. ______. Filosofia da religião. São Paulo: Paulus, 1991.
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´ Linguistica / Literatura
A LINGUÍSTICA ESTRUTURAL E O INCONSCIENTE FREUDIANO Structural linguistics and the Freudian unco unscious
Silvia Tedesco
Professora associada do Programa de Pósgraduação em Psicologia do Departamento de Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: shtedesco@gmail.com
Resumo: o presente artigo apoia-se na concepção de linguagem, tal como aparece na linguística estruturalista de F. Saussure, com fins a confronta-la com algumas colocações de Freud a cerca de proximidade entre os funcionamentos da linguagem e o do inconsciente. As principais idéias estruturalistas - de signo, de estrutura e, principalmente, sobre o processo estrutural de construção de sentido - são apresentadas e servem à constatação de que entre esses dois autores existem bem mais diferenças do que afinidades, desencorajando, assim, qualquer iniciativa de se encontrar argumentos nas pesquisas saussurianas para o desenvolvimento das teses psicanalíticas de Freud sobre o processo da linguagem. Palavras-chave: Linguagem. Estruturalismo. Saussure; Inconsciente. Abstract: This article is based upon the conception of language, as it appears in F. Saussure’s structural linguistics, in order to be confronted with some of Freud’s statements on the proximity between the language functions and the uncounscious. The principal structuralist ideas of sign, structure and, mainly, of structural process of constructing the meaning are presented moreover used to demonstrate that, between these two authors there are far more differences than similarities,therefore, discoraging any initiative to find arguments in Saussure’s researches on the development of Freud’s psychoanalytic theories of the language process. Key words : Language. Structuralism. Saussure. Unconscious.
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Em 1910, onze anos após a publicação do texto “sobre as afasias”, Freud, mais uma vez, retoma o tema da linguagem, estabelecendo uma aproximação significativa entre o modo de operar deste processo e aquele responsável pelo trabalho dos sonhos e pelos lapsos de linguagem (GARCIA-ROSA,1991). No artigo “Sobre o sentido antitético das palavras primitivas” (1970/1975)1, mais uma vez os princípios de funcionamento da linguagem são evocados por Freud para explicar a lógica singular do pensamento inconsciente.2 1 O sentido antitético das palavras e o trabalho do inconsciente A partir da leitura de um trabalho de Karl Abel, publicado em 1884, Freud diz ter começado a entender o mecanismo do inconsciente que lhe parecia, até então, incompreensível. “O modo pelo qual os sonhos tratam a categorias de contrários e contradições é bastante singular. Eles simplesmente a ignoram”. O artigo do filólogo o teria auxiliado a explicar a “ especial inclinação do trabalho do sonho de prescindir da denegação ( Verneinung) e expressar as coisas com sentido oposto através de uma mesma representação”.3 4 O processo de pensamento inconsciente, pelo qual as representações são articuladas é, então, aproximado por Freud ao da organização da linguagem, mais especificamente, à operação de construção das significações linguísticas. A forte interelação entre linguagem e o inconsciente o leva a supor que as pesquisas nas duas áreas podem auxiliar-se mutuamente. É o que parece apostar quando termina este artigo dizendo “compreeenderíamos melhor a linguagem do sonho e o traduziríamos com maior facilidade si soubéssemos mais a cerca do desenvolvimetno da linguagem”.5 Na mesma época em que Freud escreve estas palavras, um célebre teórico da linguagem desenvolve ideias que mudarão completamente o curso das pesquisas nesta área. Este estudioso é F. Saussure cujo curso, oferecido em Genebra no período de 1907 a 1911 e publicado pela primeira vez em 1916 por seus discípulos, propõe um novo modelo de compreensão para o fenômenos linguísticos, o modelo estruturalista, no qual a linguagem é estabelecida como forma de organização do pensamento em geral. Diz ele: “sem recurso aos signos, seríamos incapazes de distinguir duas ideias de modo claro e constante” (Saussure, 1972, p. 155; 1994, p. 130)6. Ou seja, a matéria extralingüística do pensamento, inicialmente, corresponderia a um contínuo indistinto cuja clareza advém da delimitação precisa, de recortes demarcadores de ideias. Tal operação que faz emergir ideias distintas, seria empreendida pela língua. Vemos então que para o modelo estruturalista, tal como para psicanálise freudiana, linguagem e pensamento estão indissociados e regidos por princípios comuns. O que justificaria a afirmação de alguns teóricos da psicanálise de que o inconsciente é organizado, ou melhor, estruturado como uma linguagem De início, seguindo a proposta freudiana neste texto, seríamos levados a pensar numa sintonia entre dados encontrados na clínica psicanalítica e as pesquisas da linguística, em especial os estudos de Saussure, tão significativas para o setor de 38
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estudos da linguagem em geral. Como vimos, é o que veio acontecer um pouco mais tarde, na década de cincoenta, quando J. Lacan, auxiliado pelos conhecimentos de sua época, aproxima as teses dos dois teóricos (LACAN, 1966,1975). Porém, a leitura deste texto de Freud comparada com os achados de Saussure nos sugere outro encaminhamento. As pesquisas de K. Abel, bastante utilizadas por Freud neste texto, parecem não encontrar forte subsídio nos estudos saussurianos. Freud deixa claro que o seu interesse pelo trabalho de Abel reside na descoberta de que as línguas primitivas, “proporcionam aos pensamentos mais díspares um mesmo veículo sonoro e conseguem conectar em um tipo de união insolúvel o que se opõe com máxima intensidade”( FREUD, 1970, p.148 ;1975, p.142).7 Tal passagem apoia-se nas teses de Abel. Segundo o próprio texto de Freud, o lingüista afirmaria a hipótese de que as palavras teriam originalmente significados antitéticos. Por exemplo, um mesmo fonema “Ken”, em egípcio primitivo, significaria tanto forte quanto fraco e teria sua complementação de sentido realizada por sinais determinativos: um desenho na linguagem escrita ou um gesto na linguagem verbal (Freud, 1970/1975). Seguindo a argumentação de Abel, Freud atribuiu à tendência à dupla significação antitética, registrada no trabalho do sonho, à característica antitética inerente às primeiras etapas evolutivas da linguagem. Ele acreditou que o processo de formação de conceitos ou ideias a serem evocadas pelas palavras, iniciava-se obrigatoriamente pela atividade de comparação de opostos. De modo que na raiz das palavras ter-se-ia uma relação de contradição. Sobre isso, o texto nos esclarece que: Todo conceito é gêmeo de seu oposto. [...] Posto que não se poderia conceber o conceito de “forte” senão em oposição ao de “fraco”, a palavra que significaria “forte” conteria, simultaneamente, uma lembrança de “fraco” enquanto aquilo, através do qual, passou a existir (Freud, 1970, p.149; 1975, p. 143).
Só o desenvolvimento evolutivo das línguas teria viabilizado a separação dos aspectos antagônicos das palavras e permitido trabalhar os conceitos sem o confronto com seu oposto. No entanto, a evolução da linguagem não teria tido sucesso em eliminar completamente as marcas de indistinção deixadas pelos estágios mais primitivos do desenvolvimento da língua. Em função de dois conceitos, por exemplo, luz e escuridão, terem sua origem no confronto entre duas situações ou experiências antagônicas, seriam designados inicialmente por uma mesma palavra e, posteriormente, essas duas ideias, já distintas num estágio mais evoluído, comportariam ainda, cada uma delas, um traço da outra, facilitando em certas situações o emprego de uma das palavras no lugar de seu oposto (Freud, 1910/1975). Tanto Abel como Freud parecem colocar na base do processo de formação de conceitos pelo pensamento a relação de oposição entre o sentido das palavras. Uma vez que nos primórdios do desenvolvimento 39
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da linguagem, o sentido emergia das relações entre contrários, estaria justificada, para Freud, a peculiaridade da lógica arcaica do pensamento inconsciente de, num processo de regressão, produzir no sonho a inversão de sentido, não apenas de palavras mas principalmente de imagens. Tais assertivas nos parecem inconciliáveis com a proposta estruturalista e, para referendar nosso ponto de vista, vale destacar alguns aspectos da concepção saussuriana sobre o processo de construção do sentido. 2 O caráter opositivo dos signos e o processo de produção de sentido em saussure Antes de começarmos nossa análise queremos deixar claro que apenas trabalharemos com a teoria saussuriana. Esta restrição não significa desconhecer que esta tenha passado por reformulações, realizadas por outros representantes do estruturalismo cuja influência sobre a psicanálise foi também significativa, como R. Jakobson e Cl. Levi-strauss. Porém, é preciso reconhecer que a base do pensamento estruturalista encontra-se em Saussure e que as modificações implementadas por estes autores não incidem sobre os pontos que interessam à nossa argumentação. Neste sentido, nada mais justo e produtivo do que discuti-las na obra de seu fundador. Segundo o linguista, sem recurso aos signos, seríamos incapazes de distinguir duas ideias de modo claro e constante (Saussure, 1986)). Isto se deve à afirmação de que a dimensão do pensamento assim como a do som percebido consistem em matéria extralingüística informe pois se apresentam como dois contínuos dispersos e indistintos. Sua organização clara e a conseqüente distinção entre conceitos ou sons percebidos depende da ação da linguagem. Ou seja, a linguagem estabelece as distinções pelas quais cada conceito ou som percebido ganha destaque, permitindo a diferenciação uns dos outros. A operação de demarcação de frações precisas desses dois contínuos, empreendida pelo processo da linguagem, impõe recortes nestes dois domínios plenos de indeterminação que correspondem ao pensamento e à percepção sonora. O signo lingüístico constitui-se nesse duplo recorte, nessa dupla pinça que ao mesmo tempo recorta e articula as duas frações, respectivamente, extraídas desses dois processos mentais. O pensamento, que não passa de uma massa amorfa, é recortado em conceitos. Já a extensão informe do som é delimitada em diferentes imagens acústicas, a saber, os fonemas. No momento inaugural da constituição do signo, uma fração de pensamento articula-se a fração de som, simultaneamente, e, assim, geram os componentes expressão e conteúdo, ou seja, as duas faces – significante ( imagem sonora) e significado (conceito ou ideia) - da unidade formal linguística, o signo. É desta maneira que a língua pode ser concebida como o processo intermediário e organizador do pensamento e dos sons percebidos, em condições tais que é a articulação desses dois processos mentais na unidade do signo que responde pela sua delimitação e organização 40
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(SAUSSURE, 1972). A articulação produtora dos dois componentes no signo que acabamos de expor, serve para introduzi-los no conjunto geral da cadeia de signos, porém não lhes confere significação ( JAKOBSON, 1975). Observa-se, no entanto, que nesta etapa do processo, segundo Saussure, ainda não se fala em sentido, os signos ainda não atingiram o final de seu processo de construção, ou seja, isso que poderíamos chamar de “proto signos” distinguem-se uns dos outros, não por seus sentidos, mas porque ostentam-se como diferenças puras. Este é o modo com Saussure entende o caráter opositivo dos signos como a distinção anterior a presença do sentido que se define pela ligação o entre os dois componentes do par e responde pela garantia da evocação de um conceito ou ideia a partir de um determinado som percebido (MARTINET, 1985). Segundo o lingüística estamos face exclusivamente a presença de oposições. Delimitações foram estabelecidas e o campo formal aparece povoado por diferenças. Porém, a função organizadora vai ainda envolver um outro modo de determinação ou organização. A linguagem precisa ser complementada por uma outra modalidade de articulação - resultante das relações de vizinhança estabelecidas no sistema lingüístico - ou seja, efeito do caráter estrutural do sistema, composto de trilhamentos sintagmáticos (associação por contigüidade) e nos paradigmáticos (relações de substituição). De acordo com a teoria saussuriana do valor, o processo de construção dos signos só atingirá sua realização plena através da aferição de sentido que se realiza na subordinação destes pares articulados aos princípios gerais do funcionamento da estrutura. Através das relações de vizinhança (relações de contigüidade ou de substituição), sentidos vão emergindo, revelando que os signos possuem valor relativo ao seu posicionamento na estrutura. Quanto mais próximos em suas vizinhanças mais similares seriam os sentidos atribuídos. De modo que o texto de Saussure, sobre as relações de vizinhança no sistema, afirma que sentidos opostos implicariam em localizações distanciadas na estrutura. Em suma, estamos falando de duas etapas complementares: a repartição da matéria amorfa em unidades sem sentido, puramente distintivas, seguida pela etapa da organização estrutural que responde pelo sentido, essência de todo signo. A ênfase recai sobre o poder unificador da estrutura. Percebe-se, no entanto, que a relação com o referente no mundo externo é ignorado por Saussure. Como sublinha Benvenistes (1988), o mundo exterior nada interessa ao aporte da linguística estruturalista de modo que a determinação do sentido dos signos fica restrito ao seu gerenciamento no interior da sintaxe, nas relações entre os componentes da estrutura. Ele provém do conjunto geral dos elos existentes no sistema. Temos que, se o sentido resulta do conjunto das relações invariantes da estrutura, na ausência de intervenções exteriores, então, cada sentido remete a todos os outros sentidos componentes da cadeia, desloca-se continuamente nesse interior fechado, caindo num movimento inesgotável sobre si mesmo. A linguagem é hegemônica no processo de produção do sentido. 41
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3 O processo de construção do sentido nos dois autores Comparemos a formulação de Saussure sobre processo de produção do sentido com a tese desenvolvida por Freud/Abel no artigo de 1910. O ponto comum pode ser reconhecido na afirmação de que em ambas concepções, a linguagem organiza a natureza nebulosa que caracteriza o pensamento e a percepção e que este processo produz, em determinada etapa, relações opositivas. Porém diferenças significativas entre as duas, a nosso ver, parecem frustrar a esperança de ligar ao a psicanálise freudiana ao estruturalismo. Assinalaremos três divergências entre os dois autores, relevantes à nossa hipótese: O lugar da indistinção no processo de produção do signos; o entendimento do termo oposição; o caráter evolutivo da linguagem. Em primeiro lugar, como assinalamos acima, não existem argumentos, no sistema saussuriano, que apoiem a existência de qualquer instante de indistinção em nenhuma das duas fases do processo de construção do sentido. Segundo Saussure, o processo da construção do sentido inaugura-se exatamente no momento do duplo corte, no ato das demarcações operadas para instalação do signo na cadeia. Ou seja, o procedimento de delimitação de intervalos específicos no contínuo do pensamento e da percepção do som excluiria já, desde seu início, qualquer traço da matéria indeterminada presente no domínio da linguagem. Consequentemente inexistiria qualquer possibilidade de se imaginar, como Freud, um momento em que a linguagem pudesse expor indistinção ou suportasse a continuidade entre sentidos opostos. Se não se fala de continuidade, muito menos podemos falar de continuidade entre sentidos contrários. A continuidade mantém-se exterior a linguagem. A indeterminação permanece exclusivamente como sendo da ordem do pensamento e da ordem da percepção do som. A entrada dois componentes na ordem lingüística tem como condição necessária a operação de recorte da matéria indistinta que os compõem em unidades discretas, respectivamente, o significado e o significante. Sem o movimento de delimitação cumprido seria impossível a realização do procedimento referente à significação propriamente dita, inviabilizando a existência das ideias ou conceitos. Mesmo considerando-se que as duas etapas são simultâneas, é evidente que o recorte em elementos díspares é essencial. Na ausência das distinções iniciais, empreendidas pelos recortes, o contínuo se manteria, anulando a possibilidade da insurgência das relações estruturais que atuam exclusivamente pondo diferenças em relação no sistema. A ordem estrutural age sobre relações distintivas. Não há lugar para indistinções ou para os recortes-fonemas com dupla significação, como propõe Abel, e que apoiariam Freud na justificativa para a continuidade primitiva, existente entre sentidos opostos, e que explicariam as composições híbridas do trabalho do sonho. Como segunda característica da abordagem estruturalista, divergente da teoria de Abel e de Freud, apontamos a natureza das relações opositivas. 42
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A princípio, o fato de o estruturalismo afirmar a existência de relações diferenciais, opositivas, na base da organização da estrutura linguística poderia induzir ao equívoco de se identificar aí a existência de relações entre contrários, suposta por Abel e Freud. Aqui percebemos a diferença irredutível entre as duas teses no que diz respeito ao modo como empregam o termo oposição, base de todo processo de construção do sentido. Devemos frisar que as relações opositivas, descritas por Saussure não implicam, como se dá para Abel e Freud, em unificações entre sentidos opostos, propriamente. Bem longe disto, elas descrevem confronto entre diferenças puras que permitiriam apenas distinguir os signos sem ainda atribuir-lhes sentido preciso, uma vez que o sentido só surgirá no jogo de relações estruturais operadas pelo sistema linguístico. Ou seja, se o sentido ainda não foi estabelecido, não se pode sequer considerar o caráter opositivo destes. Estamos na presença exclusiva de diferenças puras e não de sentidos antônimos. O termo oposição em Saussure diz respeito a efeitos puramente distintivos. Já em Freud/ Abel, a relação opositiva põe em cena a contradição. De um lado diferenças puras, de outro antagonismo. Nos parece que Saussure diverge de Abel, consequentemente de Freud, por fundar o mecanismo de produção do sentido em relações diferenciais relativas e não em relações entre contrários. Retomemos o exemplo citado anteriormente, juntamente com o vimos no sub-item anterior deste artigo sobre as relações de vizinhaça enre os signos na estrutura. Acreditamos que para o estruturalista, o recorte que, posteriormente, faz surgir o conceito de luz, não se confunde e nem mesmo mantém necessariamente uma relação de contiguidade com o recorte relativo à escuridão. Esses dois sentidos, na verdade, comporiam pólos extremos do eixo paradigmático da estrutura. Neste sentido, não há justificativa na concepção estruturalista de linguagem para que ideias opostas mantenham relação de continuidade, esclarecendo a composição de sentidos contrários produzida pelo inconsciente. O terceiro ponto diz respeito ao caráter sincrônico ou ahistórico da estrutura. Argumento definitivo pois que descarta o processo evolutivo da linguagem pelo qual Freud parece apoiar sua analogia entre linguagem e pensamento inconsciente. O movimento regressivo no sonho implicaria num retorno aos primórdios da evolução da língua, onde os significados antitéticos das palavras apareceriam com maior intensidade. Para Saussure ao contrário, não fala de evolução, seja no indivíduo seja na comunidade falante. As leis que regem a estrutura são invariantes e decidem sobre o todo da cadeia. As novidades consideradas na linguagem apenas incluem aquisição de novos elementos-signos, a serem articulados no sistema pelos princípios universais de organização da estrutura. Queremos sublinhar que as diferenciações sofridas são regidas pelas mesmas leis da “langue”, antecipadas desde sempre no sistema. É esta a única compreensão possível para o aparecimento do novo, para as alterações diacrônicas da linguagem: variam os componentes, jamais a estrutura. Ora, o empenho do estruturalismo na desqualificação e eliminação do aspecto histórico da linguagem foi essencial 43
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para Saussure, pois a preservaria dos efeitos das contingências empíricas. Uma vez transcente ao mundo e a historicidade, a linguagem seguiria sem as máculas da contingência, sem as irregularidades inerentes às variações. O objeto estrutural é ahistórico por excelência, uma vez que garante sua explicitação em leis invariantes universais, cumprindo o ideal das ciências humanas (DOSSE, 1993). Eliminada a historicidade da linguagem ficam abolidas quaisquer possibilidade da analogia entre o aspecto regressivo, arcaico do trabalho do inconsciente no sonho e o funcionamento da linguagem. 4 Considerações finais Apoiados na leitura deste texto de 1910, afirmamos pouco satisfatório a utilização do estruturalismo como chave de leitura dos mecanismos inconscientes. Como tentamos fazer ver, as descobertas freudianas de 1910 apontam na direção de um processo do inconsciente fundado na continuidade indistinta entre sentidos contrários. As substituições e aglutinações de ideias ou imagens, ocorridas nos sonhos e nos lapsos de linguagem, descrevem operações de deslizamento sobre um material indeterminado, que escapa à ordenação lógica presente à vida consciente. Já a lingüística, preocupada em definir linguagem como pura forma, a estabelece de imediato como ordem demarcadora e, portanto, afirma como sua característica principal a competência em delimitar o material a ser trabalhado. Não há como pensar linguagem senão pelos recortes empreendidos sobre o pensamento e sobre a percepção. Mesmo quando sentidos precisos ainda faltam, restam as relações diferenciais. Linguagem e indistinção são incompatíveis para o estruturalismo, enquanto, para Freud, o pensamento inconsciente trabalha num regime onde, muitas vezes, as demarcações parecem não existir. Cabe exclarecer que não estamos rejeitando possíveis conexões entre o projeto freudiano e as pesquisas da área da linguagem em sua globalidade, discordamos específicamente da articulação feita com o estruturalismo já que esta nos parece produzir bem mais imprecisões, significando perdas para ambos os autores. As alianças entre autores é sempre benvinda. Nelas encontramos oportunidades não só para esclarecimentos de conceitos ainda muito potentes, mas ainda obscuros, como também para abertura de novas perspectivas ou novos encaminhamentos para as teorias, sempre em movimento de reconstrução. Neste sentido, através deste breve confronto, esperamos ter conseguido chamar a atenção para o fato de que talvez as afirmações de Freud prescindam das pesquisas de Saussure e que ganharemos muito mais na compreensão de sua teoria caso esta seja mantida distante do aporte estruturalista.
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Notas As referências e citações deste texto de Freud são extraídas da sua edição espanhola (cuja tradução do alemão é reputada como sendo bastante confiável). As traduções destas referências foram cotejadas com a tradução brasilera. As referencias da versão em português virão sempre posteriormente a do espanhol traduzida cf. FREUD 1975 e 1970. 1
Vale esclarecer que não está presente nos objetivos deste trabalho analisar a obra freudiana em seu todo. Nosso objetivo ficará restrito à avaliação do artigo de Freud, publicado em 1910, para assim fornecer material adicional à discussão sobre a leitura da psicanálise freudiana à luz do modelo estruturalista.
2
Freud, no final do mesmo texto, em nota de rodapé, estende este mecanismo também à formação dos lapsos de linguagem. Freud, s. 1975, p.147. Para a tradução no português cf FREUD, 1970, p.141. 4 Na edição espanhola “Rara inclinación del trabajo del sueño de prescindir de la( Ver3
neinung) denegación y expresar las cosas com sentido opuesto a través de lo mismo figurativo.” FREUD, 1970p.147; 1975, p. 141.
Na edição espanhola “comprederíamos mejor el lenguaje del sueño, y lo traduciríamos con mayor facilidad, si supiéramos más acerca del desarrollo del lenguaje.”Ibde, 1970, p. 153 e 1975, p.146. 6 As citações retiradas de obras originais sobre o curso de Saussure tiveram sua tradução cotejada na sua publicação no português, sendo feitas as correções que considerarmos pertinentes. Nestes casos, a referência à publicação no português virá sempre após a referência do original. 7 Na versão espanhola “ proporcionaram a los más dispares pensamientos un mismo vehículo sonoro y solieran conectar en una suerte de unión indisoluble lo que recíprocamente se opone con la máxima intensidade” (FREUD, 1970,p 148. ;1975, p.142). 5
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Roland Barthes, ESCRITOR ROLAND BARTHES, WRITER
Rodrigo da Costa Araújo
Doutorando em Literatura Comparada [UFF]. Mestre em Ciência da Arte [ UFF]. Professor de Literatura Infantojuvenil e Teoria da Literatura (FAFIMA). Organizou as coletâneas Literatura Infantoinfantojuvenil: diabruras, imaginação e deleite, Literatura e Interfaces. É membro do Conselho Editorial da Revista Mosaicum e da revista Ao Peda-Letra. E-mail: rodricoara@uol.com.br
Resumo: A escritura-leitura de Roland Barthes (1915-1980) concilia as margens do ensaio e do romance e realiza, transgressoramente, a inscrição do romanesco no texto crítico. Nesse sentido, este artigo foca o livro-corpus O Império dos Signos e a noção de romanesco que, de elementos de uma teoria, tornar-se, progressivamente, uma estratégia de escritor. Esta estratégia deve ser associada a uma busca do detalhe, que se verifica tanto na análise do romanesco como numa busca da abordagem da vida, do real cotidiano. Palavras-chave: Roland Barthes. Romanesco. O Império dos Signos. Escritor. Abstract: The scripture-reading of Roland Barthes (1915-1980) reconciles the banks of the essay and the novel and realizes transgressoramente, enrollment in the critical text of the novel. Thus, this article focuses on the book corpus Empire of Signs and the notion of romance that of elements of a theory, become progressively a strategy writer. This strategy should be linked to a search of the detail, which occurs both in the analysis of the novel as a search approach to life, the everyday reality. Keywords: Roland Barthes. Novel. The Empire of Sign. Writer.
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I Simulações romanescas da escritura Escrever exige clandestinidade. [BARTHES, 2005. p. 23] Há em mim uma espécie de Eros da linguagem. [BARTHES, 1995, p. 226]
Vários livros da poética barthesiana são escritos por fragmentos, de articulações de instantes que vêm picar, ferir (como o punctum) o leitor Roland Barthes, no momento de escrever, desmontando-se do oral em proveito do imaginário da escritura. Diante deles, e a partir da escritura, apresentase, para nós, um Roland Barthes-escritor, investigado pelo romanesco. O descontínuo da forma desliza para o descontínuo do ensaio ou da ficção, abrindo espaço para a estetização da vida, aproximações de gêneros e, a partir dessas relações, reflexões sobre o romanesco. Por isso mesmo, podemos ler a obra de Barthes como “um longo amadurecimento d’un dérir de roman1 ou mesmo como l’escriture du roman (COSTE, 2010, p. 143). O esteta, nesse sentido, reflete, em suas múltiplas máscaras e rubricas, e na polifonia de suas referências artísticas e culturais, uma marca singular em relação ao discurso. É a singularidade desse discurso, o registro do cotidiano e as miríades de conexões por ele viabilizadas que pluralizam a leitura das descobertas. Nesses fragmentos e nessas abordagens inscreve-se um écrivain-dandy que rompe com as noções de gêneros (literário e ensaístico), para o surgimento de um texto em que as simulações2 romanescas darão o tom, certa nuance3 de leitura-escritura. O reivindicador do “prazer do texto” e crítico romanesco de si mesmo faz desse processo um trabalho de explicitação de um texto plural e que se adensa, se opaciza, se ambiguiza por um trabalho de escritura. A medida e valor dos fragmentos e do texto, assim, são dados pelo próprio valor do texto, que ele mesmo consegue suscitar: ficções em fragmentos, jogos de metacríoica. Fez, como ele mesmo estabeleceu: Como um bricoleur, o escritor (poeta, romancista ou cronista) só vê o sentido das unidades inertes que tem diante de si relacionando-as: a obra tem, pois, aquele caráter ao mesmo tempo lúdico e sério que marca toda grande questão: é um quebra-cabeça magistral, o quebra-cabeça do melhor possível (BARTHES, 1964, p. 186).
A prática crítica de um bricoleux, como é vista nesse fragmento que se refere a Butor, é, pois, uma prática secreta do indireto e, que, também, 1
Queremos dizer, o romance sem a ficção.
Quanto ao conceito de simulação em R. Barthes, as discussões neste ensaio aproximam-se, do que o crítico escritor chamou de Amador. Para ele, “O Amador = aquele que simula o Artista ) e Artista deveria, de tempo em tempo, simular o Amador) [...] Simulação: eu simulo ser aquele que quer escrever uma obra” (BARTHES, 2005, p. 87). 2
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Nuance para o semiólogo é “uma aprendizagem da sutileza” (BARTHES, 2005, p. 94).
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pode ser aplicada a sua própria escritura quando fala do romanesco. O pretexto crítico talvez seja ideal para que se pratique não o romance, mas o romanesco a que aspirava Roland Barthes. A “crise do nome próprio” que, segundo ele, o impede de ser romancista, encontra saída quando esse nome próprio não tem um referente “real”, mas já é ele próprio um nome literário. A reivindicação do prazer por Barthes, em seu ensino e, por sua vez, em O Império dos Signos e na escritura, é um dos aspectos mais instigantes de sua proposta. Inquietante, sua escritura, nesses registros, é a atividade com a qual o escritor se envolve, se enovela, finge que vai dizer, mas apenas aponta, sugere, indicia, de forma a fisgar o leitor com o seu “canto órfico”4, que só pode olhar para frente, proibido que esta de retornar ao objeto amado. Nessas rubricas ficam apenas os possíveis narrativos e a obstinação de escritor em dispor, manipular, compor, manejar, reordenar a vida, enquanto a morte não lhe rouba a cena. Nesse discurso, ora em crítica-escritura,5 ora sério e denso, os registros acontecem entre as digressões da memória e o jogo escritural. No espaço esperado e continuamente suspenso da criação em O Império dos Signos, tece-se nos registros do cotidiano como ausência-presença: a criação que emerge, pelos fragmentos, da criação submergida e impossibilitada do dizer. O romanesco se realiza e pulsa nos e dos flagrantes da ausência, das clivagens, suspensão, rupturas daquilo que o romance poderia ser dito, mas não foi. Em meio à essa confusão e fragmentação diegética, percebe-se a construção de um sujeito que se mantém como perturbável personagem, ou em contrapartida, um “eu” que retorna dilacerando as estruturas da linguagem, ressignificando o sentido do Japão como objeto romanesco. Essa mesma sequência fragmentária do Império dos Signos é utilizada inclusive em Roland Barthes por Roland Barthes (1975), texto que subverte o conceito de autobiografia, no qual o autor fala se si por biografemas, fragmentos de vida que quebram a cronologia dos fatos e que, ainda que apresentem um Roland Barthes histórico, cronologicamente situado, não impede que outros Barthes sejam (re)elaborados, à medida que o leitor, ao “levantar a cabeça” aqui e ali cadencie, com os movimentos de seu próprio Roland Barthes ao falar do escritor e do crítico no prefácio de Essais critiques (1964) acentua a “linguagem indireta” do escritor. E sendo ela indireta, é também, simultaneamente obstinada e “desviante”. Seria esse olhar, segundo o crítico francês, uma situação órfica, “não porque Orfeu “cante”, mas porque o escritor e Orfeu estão ambos tomados pela mesma interdição, que faz o seu canto: a interdição de se voltarem para aquilo que amam” (BARTHES, 1964, p. 16). 5 Nesse espaço romanesco, onde o escritor escreve sem nunca escrever, ocorre a circulação incessante de seus desejos e a inscrição de seu prazer que, como a escritura, é insustentável, impossível, circulando infinitamente nessa maquinaria de linguagem desejante chamada escritura. A respeito do texto que se escreve, Barthes afirma: “O escriptível é o romanesco sem o romance, a poesia sem o poema, o ensaio sem a dissertação, a escritura sem o estilo, a produção sem o produto, a estruturação sem a estrutura.” (BARTHES, 1970, p. 11). 4
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corpo, os movimentos do corpo que se encena no texto. Tudo recupera, de alguma forma, os valores do “texto de gozo”, num encontro de pluralidades, conforme o que se lê em S/Z: “Este “eu” que se aproxima do texto é já uma pluralidade de outros textos, de códigos infinitos, ou mais exatamente: perdidos (cuja origem se perde)” (BARTHES, 1970, p. 16). Algumas dessas leituras de Barthes como escritor se concretizaram em Pourquoi j’aime Barthes?, quando Alain Robbe-Grillet (1978) explica por que o considera tão romancista quanto Flaubert, aliás, como o críticoescritor seria “o romancista” moderno: A necessidade de estar sempre no impasse é o que caracteriza o gênero romanesco. Houve o impasse de Joyce, houve o Nouveau Roman dos anos 50, que conheceu o seu próprio impasse, depois houve o Nouveau nouveau Roman, e que passa igualmente por um novo momento de impasse. Algo de novo deve ser feito no romance, e esse algo de novo está sendo feito precisamente por alguém que não vai querer aplicar todas e qualquer regra do romance passado. E, talvez, gerações futuras julguem que o obstáculo já tenha sido transposto. Você não está transpondo o obstáculo do lado em que se espera, isto é, pelo processo de realinhamento por uma forma bem conhecida e bem tranquilizadora, a do romance romanesco. Ao escrever Fragmentos de um discurso amoroso (Fragments d’un discours amoreux), você transpôs não o obstáculo colocado pela sociedade, mas o que você próprio colocou, indo em direção ao que talvez apareça daqui a vinte anos como o Nouveau nouveau nouveau Roman dos anos 80. Quem sabe? (ROBBE-GRILLET, 1995, p. 27- 8).
Entre o l’obvie et l’obtus, entre o crítico e o escritor6 parece não haver divisões, apenas o afrontamento que os desvela ou a fronteira difusa que se coloca para o leitor como desafio que instiga a descobrir os limites que os envolvem. A leitura d’O Império dos signos e de suas próprias teorias apontam, em Barthes, o caminho que o transforma de autor-crítico, em leitor de si mesmo, de artista, em semiólogo das linguagens. Nessa leitura de si, o crítico e escritor se desafiam para proporcionar, ao leitor de ambos, uma revisão da literatura a partir da leitura responsável pela descoberta do autor nos textos que lê o crítico na maneira como descobre esse autor/leitor. Entre o ficcionista e crítico7 há apenas um disfarce de autores, ambos são leitores sagazes. Ao fragmento, junta-se o romanesco, certo “modo de notação, de enquadramento do real cotidiano, um modo de fragmentação; e captado, de preferência quando se produz” (MARIELLE, 2010). Mesmo falando do cotidiano, as rubricas sobre o Japão, por meio do romanesco, reforçam a passagem entre a vida e a literatura, entre o romanesco e a travessia que se faz por meio da fragmentação, da descontinuidade. O romanesco é modo de notação, de enquadramento ou mesmo de picturalização do Quanto ao mesmo viés, de Roland Barthes, escritor - ler o ensaio: NAVA, Luís Miguel. Roland Barthes, Romancista. In: SEIXO, Maria Alzira (Org.). Leituras de Roland Barthes. Dom Quixote. Lisboa. 1982.p.189-203. 6
Outra leitura importantíssima que fala de Barthes como escritor é o livro Poiética de Barthes (1980), de José Augusto Seabra. 7
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cotidiano, e, por isso, torna-se a matéria de uma escritura curta, certa errância da vida cotidiana. Tal como o romance de Proust, o narrador, nessas nuances, estabelece uma busca poética da realidade perdida do passado, e uma retomada dos meios artísticos para recriá-la, registrando no papel suas memórias ou reminiscências. O romanesco está ligado, dessa forma, não a temas específicos ou a contar uma história, ou a tecer um relato, mas para Roland Barthes, tratase de um modo, propriamente dito de recortar o real e de uma forma de fragmentação8 e, talvez, por isso, muito mais próximo de captar do que produzir. O romanesco, nesse sentido, simula o romance em cada texto, já que sua articulação narrativa é a do desejo. Ao aproximar o romanesco da escritura, Stephen Heath, em Vertige du déplacement: lecture de Barthes (1974) afirma que “a escritura não respeita a separação dos gêneros, as partes estabelecidas do discurso”. Nenhuma surpresa, então, em Barthes considera-se como um romancista scripteur (escritor), não do romance, mas do “romanesco”: Mitologias, O Império dos Signos, são romances sem história, Sur Racine e S/Z são romances sobre histórias. A escritura de Barthes, nessas leituras, assume nuances de romanesco; este que transmite o desejo de escritura e que não é o romance; mas o romance sem enredo, sem personagens, ficção sem fazer ficção. Pela escritura, Roland Barthes produz o delírio sistemático da permutação infinita, contra o sistema, a estruturação fechada, centralizada (Fourier é um exemplo privilegiado do que poderia ser um trabalho ronanesco). Uma vez que o romance é recuado por um discurso - um socioleto, uma ficção - aí se produz um romance, o romanesco é outra coisa: “um simples corte instruturado, uma disseminação de formas: a maya” (BARTHES, 1973, p. 46). Nesse sentido, o trabalho semiológico do texto em S/Z traz, precisamente, o traço romanesco. O romanesco, para Stephen Heath, estabelece uma oposição a todos os romances de viagem. Para ele, o romance clássico foi capaz de apelar para confiáveis pontos de chegada e de partida - com ou entre esses dois polos, apostando em etapas sucessivas na promessa de um sentido. Aqui, no entanto, é um movimento sem fim (ou finalidade), assim como perversão contínua que é necessária numa cidade sem um centro (como Tóquio, com o seu centro vazio) movimento que encontramos em todos os momentos da escritura, o tecido da vida - “a escritura viva da rua”. Quanto a este olhar, o que chama a atenção do estudioso (e ele entende que esta ideia surge de uma série de inflexões que se revelam em todos os textos de Barthes): são os registros de curiosidades da linguagem, a arrumação de um dossiê sem horizonte de tudo o que, de longe, de aparência absurda, bizarra, vai eclodir o conforto mesmo da língua, como certo projeto de espanto, um choque distorcido e esperado. Segundo ele, Esse mesmo viés de leitura pode ser aplicado aos livros: Roland Barthes par Roland Barthes, La Chambre Claire, Incidents, Fragments d’un discours amoreux e O Diário de Luto, do mesmo autorcrítico-escritor. 8
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esses gestos em Barthes revelariam algo não somente de Joyce, ceifeiro de linguagens, mas, também, de Freud com sua coleção de palavras apaixonadas para dois significados contraditórios que mudam a lógica da razão. Para o crítico de Vertige du déplacemente, o trabalho semiótico de Barthes faz acontecer o romance da linguagem, e a linguagem de um romance. Por mais paradoxal que possa parecer, segundo sua leitura, essa foi uma possível definição do romanesco. O trabalho do romanesco em Barthes é este saber do romance da linguagem (sua inteligência, segundo Nietzsche); deslocamento maior que desliza ao significante (“O romanesco, quer dizer, o significante”), ao escrevível, a todo o texto da vida. No jogo romanesco pulsa certa dimensão evocativa da escritura, o que supõe corporeidade e desejo. Em sua materialidade significante, o livro/texto Império dos signos se faz carne e corpo erótico. A escritura é prova que o texto deseja o leitor. Numa perspectiva barthesiana, o próprio livro enquanto escritura e resultado de uma projeção romanesca, é o “kamasutra da linguagem”. O escritor barthes, segundo Leyla Perrone Moisés, “é aquele que desloca, que se desloca, que a cada vez imposta diferentemente a mesma voz. Assim, R.B. não é um impostor, mas um impostador” (1993, p. 111). A escritura-romanesca, segundo Barthes tem a função de “colocar a máscara e, ao mesmo tempo apontá-la” (BARTHES, 1972, p, 28), apresentando diversas vozes expressas em tempos verbais diferenciados, cuja intenção é apagar a imagem do autor empírico. Desse modo, a escritura romanesca, ao apontar a máscara, volta-se para si mesma, instaurando uma atividade crítica e de autocrítica. Além disso, é possível afirmar que a escritura barthesiana, com suas marcas, nuances e viscosidades próprias, torna-se inconfundível quanto à sintaxe e pontuação. O uso dos parênteses, o travessão, a barra, os dois pontos assumem papéis significativos no modo como conduz o texto; também quanto à enunciação (a primeira pessoa, irônica e lúdica, quando intervem), quanto à duração (Barthes cultua o fragmento, o aforismo, o haikai) e, sobretudo, quanto à retórica. É exatamente esse olhar que Philippe Sollers, em R.B., reforça quando afirma: “Ai-je dit que R.B., [...] avait inventé l’écriture-séquence, le montage flexible, le bloc de prose à l’état fluide, la classification musicale, l’utopie vibrante du détail [...]” (SOLLERS, Philippe. 1971, p. 26)9. II Roland Barthes, le métier d’écrire No texto (na obra), é preciso ocupar-se do ator. [BARTHES, 1982, p. 69]
Em texto sobre Walter Benjamim, Susan Sontag (1986, p. 87) afirma que “não se pode interpretar a obra a partir da vida. Mas pode-se, a 9 “Eu disse que RB, [...] tinha inventado a escrita-sequência, a montagem flexível, o bloco de prosa no estado fluído, a classificação música, a utopia vibrante do detalhe [...] - Tradução nossa.
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partir da obra, interpretar a vida”. Foi justamente este o percurso que Éric Marty fez ao ler a vida de Roland Barthes (1915-1980) no elegante livro Roland Barthes, o ofício de escrever (2009). Esta biografia/memória recupera o dinamismo da obra de Roland Barthes e, o que ela mesma, institui no seu fazer e refazer interpretativo em busca de um redimensionamento de sua prática e criatividade. A trajetória crítica e literária de Roland Barthes, constituída por uma produção complexa e variada, rica e densa, é fonte inesgotável de leituras críticas. O crítico-escritor faleceu em pleno auge de sua criatividade. No entanto, com suas ideias e leituras, inovou e fundou a semiologia, redimensionando o espaço da crítica literária. Deixou-nos textos que, até hoje, passados vinte e nove anos de sua morte, dinamizam e fundamentam o universo literário e outros discursos, onde reiteram suas obsessões numa linguagem irônica e persuasiva, transgressora e rica em vieses, visionária e erótica, com um potencial significativo nunca exaurido. Espécie de fragmentos de memória e fragmentos de uma amizade, celebração e conturbações, deslocamentos - duas vidas (biógrafo e biografado) que se cruzaram, - Roland Barthes, le métier d’écrire [título original em francês] é um depoimento literário que pretende restituir a inquietude e estranhezas dos gestos e das ideias de Barthes, sobretudo seu perfil requintado e seu olhar dionisíaco. A partir dessas premissas, como espelho do livro Roland Barthes par Roland Barthes (1975) a vida do semiólogo é lida em fragmentos, à deriva, porque segundo ele “o texto é só texto, nada mais que texto”, e a vida, nesse jogo consciente de linguagem, é construída nas relações intersemióticas. A vida de Barthes, como jogo entre l’obvie et l’obtus, é interpretada em três leituras: “A memória de uma amizade” - uma narrativa autobiográfica desenhada com percursos dos últimos anos do célebre semiólogo e autor Le plaisir du texte (1973). A segunda parte do livro revive “A Obra” e certa cronologia dos textos que marcaram a vida do crítico francês. E por último, e não por acaso, um capítulo exclusivamente dedicado ao seu livro mais conhecido - Fragments d’un discours amoureux (1977) - leitura marcada e marcante por qualquer leitor que se aproxima de Barthes -, pelo êxtase amoroso, pelo discurso fragmentário, intertextual e sedutor. Com olhar de esteta e pelo viés dos fragmentos - estilos marcadamente que perpassam várias obras do escritor dândi - Éric Marty fala da sua experiência como aluno, do sabor dos encontros e da paixão de ler e aprender - marcas desse crítico-professor - rememorando sua juventude e reflexões acerca das motivações que unem o escritor-professor e o jovem aluno inexperiente. Curioso e perspicaz, o biógrafo percebe-se fascinado pelos abismos e hedonismo do dandy decadentista que revolucionou a crítica literária abrindo-lhe novos rumos dentro de uma linha afetuosa e marcadamente intensa, subjetiva e desviante, sempre tentando respostas para o mundo dos signos.
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Nesse capítulo, ainda, E. Marty retoma, semiologicamente, cinco prefácios que escreveu em 2002 para a reedição de suas OEuvres Complètes em cinco volumes luxuosos, lançados pela Éditions du Seuil. A proposta é explicitamente didática, pois interrogam-se a unidade de uma obra e a série de unidades que compõem cada um dos volumes correspondentes a um período específico. As respostas a todas as indagações lançadas - também múltiplas e variadas - sempre fragmentadas em lexias, ampliam, diversificam, repetem, reverberam pelo campo social e intelectual, reaparecendo sempre idêntica em espiral: Em que condições há obra? Quando ela aparece? Essas perguntas, também, como fez o crítico-romancista e autor de Mythologies, assumem, na voz de biógrafo, sempre como uma aposta ou indagações semiológicas de cada um de seus livros. Plurais e despreocupadas com respostas, essas perguntas - e como, também, os textos barthesianos - multiplicam-se quando relacionadas ao subtítulo do livro - “o ofício de escrever” - paratexto que permite pensar o “ofício”, palavra de origem latina officium (opus + facio = obra, fabricação) e que se desdobra na pergunta que retoma: “quando há obra?”. As respostas para essa pergunta surgem, no entanto, em questões silenciosas, irônicas e polêmicas, porém fascinantes; em indagações líricas ou metódicas, em questões latentes que, ao desconstruir toda resposta, se projeta em cada etapa, cada instante ou página, como fórmula caleidoscópica em que se concentra, se apega e apaga ou se esconde na dialética do próprio jogo “do ofício de escrever”. Com esse intuito, o conjunto de prefácios pode ser lido como uma representação sintética dos grandes temas, os motivos centrais ou significativos do trabalho de Barthes, ou, por outro lado, como uma reflexão sobre a significação do “ofício de escrever”. Isso permite pensar, pois, o centro do pensamento de Roland Barthes: o problema da significação. Homo significans: o homem fabricador de signos, “liberdade que os homens têm de tornar as coisas significantes”, “o processo propriamente humano pelo qual os homens dão sentido às coisas”, eis o objeto essencial de suas pesquisas. Fazer significar o mundo através das significações que somos, da Semiologia por ele preconizada. Esse capítulo, de certa forma, reforça que os sistemas que interessam a Barthes são sempre, como ele classifica a crítica literária, “as semiologias que não ousam dizer seu nome”, códigos envergonhados ou inconscientes e, muitas vezes, marcados por certa má-fé. Coreografando movimentos e repousos, a terceira parte do livro, completamente diferente das duas anteriores, centra-se no livro Fragments d’un discours amoreux, especificamente na transcrição do Seminário ocorrido entre fevereiro e junho de 2005 na Universidade de Paris. Tendo o célebre livro como fundamentação teórica, procurou-se entender que modo a experiência fragmentária do tumulto psíquico - o estado amoroso - é um procedimento ou um processo de constituição subjetiva, e de que modo ela pode, como toda experiência fragmentária vivida pelo sujeito, eliminar a questão do sujeito em geral, não se restringindo somente à questão do amor 53
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ou a valores ditos, experimentados e constituídos por uma língua particular, que é a língua do amor. De qualquer forma, contra todas as expectativas, Fragments d’un discours amoreux, para além do objeto que se ocupa - o discurso amoroso - instiga novamente, a metalinguagem crítica numa linguagem ela mesma, ficcional. Assim adverte o prefácio, paratexto indicador e condutor de leitura: “Substituiu-se, portanto, a descrição do discurso de amor pela sua simulação e devolveu-se a este discurso a sua pessoa fundamental, que é o eu, de modo a levar à cena uma enunciação e não uma análise” (1977, p. 7). Mais uma vez, a escritura, como gesto e “ofício de escrever” toma consciência do seu registro e instabiliza a noção de literatura, configurando, nesse contexto, uma múltipla e diluição dos gêneros. Por outro lado, e não será certamente o último olhar da questão, a enunciação do eu em Fragments d’un discours amoreux, prova como o sujeito recorre do texto e do lugar de onde fala, de onde toma a palavra. Este é um sujeito amoroso reflexivo e ficcionalizado, contribuindo para adensar uma teoria do sujeito na escrita que tem em Barthes, momentaneamente, um dos seus mais exímios artesãos. Por isso, e por muitos outros olhares, junto ao seu caráter didático, um Seminário é também um momento de investigação semiológica. A incidência - de Fragments d’un discours amoreux - livro escolhido para o último capítulo dessa biografia - é marcadamente híbrida deste texto da incorporação, no afeto, de uma tessitura textual que acabou por fabricar o sentimento e que resume a trajetória de Barthes. O recurso à intertextualidade, que o semiólogo assume em sua fabricação, sugere, de uma forma implícita, a quanto intertextual é também o domínio do sentimento ou qualquer leitura que se faz da vida. Isso porque, semiologicamente, como esse livro, a vida, também se fabrica de pedaços indistintos, de inscrições literárias, discursivas, imagéticas e culturais. E são nesses atravessamentos que, paradoxalmente, se vai marcar e tornar forma a singularidade do sujeito, o seu discurso amoroso e o mundo da escritura, inscritos, também, nos biografemas. Enfim, a irradiação plural de Fragments d’un discours amoreux - posta ao final dessa biografia - cuida para que reine nela não apenas o susto da ambiguidade, mas o de uma invenção dionisíaca insistentemente tributária da travessia das escrituras de Barthes. III O Império dos Significantes O texto não “comenta” as imagens. As imagens não “ilustram” o texto: cada uma foi, para mim, somente a origem de uma espécie de vacilação visual, análoga, talvez, àquela perda de sentido que o Zen chama de satori; texto e imagem, em seus entrelaçamentos, querem garantir a circulação, a troca destes significantes: o corpo, o rosto, a escrita, e neles ler o recuo dos signos. [Roland Barthes]
Com esta epígrafe, Roland Barthes (1915-1980) inicia o livro O Império dos signos. Neste livro, imaginado a partir de uma viagem de quin54
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ze dias ao Japão em 1970, Barthes cria um sistema de signos ao qual, a partir de um olhar semiológico, chama “Japão” e o descreve (por meio de lexias)10 considerando algumas manifestações típicas daquele país.
Figura 1 - MU, o vazio. Fonte: Barthes. (2007, p. 9)
Audacioso e assumindo o viés transgressor, o livro caminha entre a ficção, crônica, realidade ficcionalizada ou mesmo um ensaio que debate e aventura-se, semiologicamente, para atualizar não somente a escritura, mas toda a cultura japonesa em vinte e seis textos independentes, que lidos na ordem dada no livro assumem uma visão totalizadora. Assim, Barthes “transformando o texto em fragmentos, ou “lexias”, como os chama, ele identifica os códigos em que se baseiam” (CULLER, 1988, p. 78). Nesse mundo embaralhado entre texto, imagens e lexias é possível compreender o Japão como um texto de reticências e de ambiguidades. Este texto/objeto silencioso fabricado por Barthes (e também pelo leitor) reveste-se sempre de palavras, independentemente do constante trabalho de anulação do sentido, processo tipicamente semiológico. “O signo é uma fratura que jamais se abre senão sobre o rosto de outro signo” (BARTHES, 2007, p. 72). Nessa leitura, entendida muitas vezes como retórica do silêncio “sua arte consiste em fazer da linguagem, veículo de saber e de opinião geralmente rápido, um lugar de incerteza e de interrogação. Ela sugere que o mundo significa, mas sem dizer o quê” [GENETTE, 1972, p. 195]. O livro descreve gestos, paisagens, situações ou acontecimentos e em vez de impor-lhes significações certas e fixas sugere ou restitui, por meio de uma técnica muito sutil de evasão semântica, o sentido trêmulo, ambíguo e indefinido que constitui a sua verdade. E é assim que Barthes 10 Para Barthes, a lexia é uma unidade de leitura, uma unidade resultante da decupagem - não convém esquecer os compromissos que esse termo tem com o fazer e o interpretar um texto cinematográfico - do significante-tutor. As lexias são, consequentemente, fragmentos contínuos de um texto e, em relação a um texto literário, correspondem, mais ou menos, a frases que apresentam uma certa coesão de sentido.
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desconstrói a leitura única, fixa e carregada de preconceitos e assume paradigmas que propõem a liberdade da pressão do sentido social (que é um sentido nomeado, portanto um sentido morto), a incerteza dos signos, o recuo transgressor. Nesse sentido, questiona-se o tempo inteiro do que se costumou chamar ensaio. Ler O império dos signos é ler, também, um certo desejo (sempre incompleto enquanto realização) de transgredir os lugares demarcados para cada tipo específico de saber. O que permite dizer que “o ensaio, muitas vezes, sequer, também, ficção. A ficção, muitas vezes, se quer, também, ensaio. A escritura barthesiana, segundo Roberto Correa dos Santos, “talvez tenha se constituído em nosso tempo por um dos exercícios mais constantes de realização dessa prática, para a qual todo e qualquer limite definidor se vê perdido” (1989, p. 33). O Japão é, pois, lido como texte de plaisir: o que o autor mesmo, aliás, parece autorizar, como uma espécie de Mitologias, certo espaço social e lúdico - um sistema simbólico. Das vinte e seis lexias, a ideia do vazio (o que se pode considerar o sema mestre do livro todo) surge, semiologicamente, em primeiro lugar num contexto linguístico, atribuída tanto ao idioma japonês em si, como aos ideogramas em que, no sentido mais rigoroso, se concretiza. É exatamente a “diluição do sujeito” na retórica japonesa, a maneira como avança “uma leve vertigem”. O que constitui a escritura é, segundo Leila Perrone-Moisés, poesia, no sentido moderno do termo: aquele discurso que acha sua justificação na própria formulação, e não na representação de algo prévio e exterior; aquela forma na qual, de repente, o que se diz passa a ser verdade; aquela visão do mundo que não vem do mundo, como reflexo, mas que se projeta sobre o mundo, transformando sua percepção; aquele discurso que não exprime um sujeito, mas o coloca em processo [1985, p. 56].
Figura 2: O Império dos Signos Fonte: Roland Barthes. (2007, p. 74)
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Texto e imagem (Figuras 1 e 2) formam uma tessitura, onde o prazer da leitura circula entre prazeres visuais. Nesse registro da pintura e escritura japonesas, as imagens parecem necessitar da proximidade do texto que é em si uma outra forma de “desenhar” o real. A escrita, nesse jogo, sugere visualmente um caminho de interpretação. Os olhos atentos do leitor são convidados para um percurso de “visitas” ao livro, ao gesto, à rua e, de volta do livro, ao imaginário da escrita. A sugestão sutil é para que penetremos nesses fluxos do sujeito daquela maneira indiferente, despreocupada, desinteressada, com que nos colocamos diante de uma cultura e língua inteiramente desconhecidas: perdemo-nos nas diferenças, nas tonalidades, no grão da voz, nas estranhezas. Estamos diante do gesto, do “mu- no vazio” - o sujeito, de certa forma, produz para si esse vazio. Ele é espécie de andarilho que escreve e caminha, porque se sabe acompanhado pela solidão. Como em Le plaisir du texte, o Japão parece, em estado de escritura: essa situação é exatamente aquela em que se opera certo abalo da pessoa, uma revirada das antigas leituras, uma sacudida do sentido, dilacerado, extenuado até o seu vazio insubstituível, sem que o objeto cesse jamais de ser significante, desejável. A escritura é, em suma a sua maneira, um sartori (o acontecimento do Zen) é um abalo sísmico mais ou menos forte, o sujeito: ele opera um vazio de fala” [BARTHES, 2007, p. 10].
Para Barthes, “O prazer do texto é semelhante a esse instante insustentável, impossível, puramente romanesco, que o libertino degusta ao termo de uma maquinação ousada, mandando cortar a corda que o suspende, no momento em que goza” [BARTHES, 1996, p. 12]. A partir desses “deslocamentos”, “recuos” e através de uma série de detalhes dos costumes japoneses, Barthes constrói, em lexias, o sistema que constitui o seu “Japão”. Realiza uma leitura semiológica da disposição da comida e de como ela é descentralizada na sua arrumação à mesa, sem desconsiderar o ato de comer como referência ao próprio alimento. O uso do “hashi”, nesse contexto, sugere esse mesmo respeito, pois ao contrário do Ocidente, em que utiliza garfos e facas para destruir e fatiar o alimento, os orientais utilizam, delicadamente, um par de palitos para tal gesto. Assim, também observa o cuidado e elegância dos pratos japoneses que primam pela beleza: Inteiramente visual (pesada, arrumada, manejada pela visão e até mesmo por uma visão de pintor, de grafista), a comida diz, assim, que ela não é profunda: a substância comestível é desprovida de âmago precioso, de força oculta, de segredo vital: nenhum prato japonês é provido de um centro [...]; tudo ali é ornamento de outro ornamento [BATHES, 2007, p. 32].
Na rubrica “centro da cidade, centro vazio” (p. 43) Barthes compara as cidades centralizadas do Ocidente com os centros vazios do Oriente. Ou seja, a centro-orientação das nossas cidades que, normalmente crescem do centro para os subúrbios em contraste com as cidades japonesas 57
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que não foram constituídas dessa forma e, por isso não possuem este lugar de concentração tão bem demarcado nos grandes centros urbanos. Esse olhar atento sobre os signos é antes de mais e não pretende ser senão, segundo Calvet (p. 139) uma “excitação do olhar crítico”. Este mundo dos signos que Barthes nos propõe, portanto olhar “como produção cultural (toda a sua abordagem decorre desta proposta) aparece talvez mais claramente como tal quando a abordamos com um outro sistema, um outro mundo de signos”. Para Culler (1988), o livro L’empire des signes não está ligado a um objeto crítico, analítico e sim a uma vida cotidiana que através de objetos e práticas que provocariam uma “escrita eufórica”. O Japão, para Barthes, oferece o exemplo de uma civilização onde a articulação dos signos é extremamente delicada, desenvolvida, onde nada é deixado ao não-signo; mas este nível semântico, que se traduz por uma extraordinária delicadeza de tratamento do significante, não quer dizer nada: de algum modo não diz nada, não remete a qualquer significado, e, sobretudo para nenhum significado último, exprimindo, assim, ao meu ver, a atopia de um mundo estritamente semântico e estritamente ateu ao mesmo tempo [1995. p. 96-7].
A atividade semiológica não é, pois, exclusiva nem mesmo essencialmente de ordem do saber. Os signos nunca são para Barthes objetos neutros de um conhecimento desinteressado, eles contrariamente, misturam-se com outros discursos para compor a leitura da cultura como um texto, cujas entrelinhas podem ser compreendidas por meio das marcas cotidianas para possibilitarem a semiose do contexto como um todo. O volume contém, ainda, fotografias e anotações originais do semiólogo estruturalista que percebe o mundo como linguagem e ensina ao leitor a ver como os signos que nos rodeiam (porque ler para Barthes é entrar em conotação), dissociando-os de seu significado, fazendo-nos descobrir novos horizontes de sentido e observando com novos olhos a cultura do Japão, em cujas inquietações ocorrem, a cada instante, a aventura infinitesimal do signo. Nessa leitura de trocas e “quebras de paradigmas”, em constantes significações aos signos, Barthes nos faz acreditar que a semiocracia ocidental baseia-se no imperialismo do sentido. Dessa maneira (e sedutoramente), o anônimo que se constrói sobre o vazio reveste-se nesse ensaio de uma “estratégica da forma”, permitindo talvez uma abordagem menos redutora da alteridade. Enfim, o livro caminha transgressoramente no sentido contrário de tudo que apazigua os signos, já que sua leitura inquieta qualquer leitor. Para Barthes, o Japão faz uso dos signos não para designar um sentido, mas para causar uma certa “decepção”, isto é, ao mesmo tempo propôlo e suspendê-lo. Nessa leitura, entre o sentido posto e o sentido suspenso, o movimento transitivo da mensagem verbal se detém e se reabsorve num “puro espetáculo”. Essa dialética entre o óbvio e o obtuso seria a estratégia semiológica cadenciada pelo inesperado, para uma adesão, uma aproximação mais profunda à realidade das coisas. O paradoxo e a fuga incessante 58
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de tal desvio não escapariam ao autor de Mitologias, que lhes consagra a última página do livro: o mitólogo quer “proteger o real” contra a “evaporação” de que é ameaçado pela palavra alienadora do mito, mas ele receia ter contribuído para fazê-lo evaporar-se. O Japão, assim, entendido como mundo trapaceado, torna-se ao mesmo tempo vertiginoso e manipulável, pois o homem (e também e leitor) encontra até mesmo em seu desvario um princípio de coerência. Cada um, ao seu bel prazer, nesse jogo semiológico, deve construir um recurso para entender essa trama. Ao ler este livro, segundo Mallac (1977), o leitor terá a sensação de manusear um álbum de viagem, e “ao terminar, entretanto este passeio exótico, não será ele coagido a avaliar e mesmo a enfrentar [...] a experiência do”satori” (a perda de sentido preconizada pelo Zen?)”. De qualquer forma, o livro, segundo o estudioso, desencadeia no leitor um momento de “satori”, sugere a própria metáfora do vazio (da anulação do centro) suscita um choque inesperado. Ao fim de suas indagações Barthes declara: “Império dos signos? Sim, desde que se queira dizer que esses signos são vazios, e que o ritual é sem deus” [BARTHES, 2007, p.146]. O êxtase, amoroso ou místico, na captura dos significantes que compõem retratos à deriva do Japão seria a dialética mesma entre lembranças e esquecimentos. A existência desse Japão só seria possível na fuga, no vazio da linguagem. O leitor que conhece, e entende esse jogo, é o leitor que se procura e não se encontra e que se realiza, justamente, nessa incessante busca. Essa é a lição semiológica do livro L’empire des signes (ou “gozo” dos significantes?; Ou prazer dos significantes?; Ou mesmo O Prazer do texto?). Essa atitude simboliza bem o que poderíamos chamar de vertigem, ou melhor, o império dos significantes. Essa leitura é, pois, para o semiólogo (o crítico) uma tentação permanente, uma vocação incessante adiada e que se realiza num tempo dilatado. Ela projeta um Japão “escrito”, isto é, um processo “do constante” ato semiótico, que transforma o sentido dos signos e devolve a linguagem a sua parte de silêncio. Em todas essas experiências de Barthes com o Japão, Noel Burch afirma que “não se trata de esmagar a linguagem sob o silêncio místico e inefável, mas de o medir, de fazer parar esse pião verbal, que arrasta consigo, enquanto gira, o jogo obsessional das substituições simbólicas”(1979, p. 62). Enfim, a espiral de Barthes A escrita do gozo, a partir das considerações desse ensaio, constitui, em O Império dos signos, uma escritura que aproxima-se da ficção, da destruição das certezas do sujeito, da ruína de seus alicerces: “Avec l’écrivain de jouissance (et son lecteur) commence Le texte intenable, le texte impossible”11 [BARTHES, 1977, p. 37). Assim, pondo-se, com efeito, na “Como o escritor de gozo (e seu leitor) começa o texto insustentável, o texto impossível”. Tradução nossa.
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posição daquele que faz e não mais na daquele que fala sobre um discurso, Barthes-escritor endossará sua produção, fundamentalmente, a partir das proposições do fragmento e do romanesco nesse livro ou em muitos outros ensaios críticos. Diante desse jogo discursivo, o romanesco se realiza e pulsa nos e dos flagrantes da ausência, das clivagens, suspensão, rupturas daquilo que o romance poderia ser dito, mas não foi. Em meio à confusão e fragmentação diegética, percebe-se a construção de sujeitos que se mantém como perturbáveis, ou em contrapartida, em sujeitos que retornam dilacerados das estruturas da linguagem, ressignificando o sentido discursivo do flâneur e, por outro lado, reforçando o jogo da metacrítica. De certa forma, a clássica frase: “Tudo isso deve ser considerado como se fosse dito por uma personagem de romance” ecoa em O Império dos Signos. Retomando-a, é possível entender que o romanesco em Barthes é construído a partir de pactos, de diálogos entre autor, crítico e leitor, de uma leitura que se volta para a descoberta de associações imprevistas (obtusas) e divulgadora de um escritor/crítico que se revela como se novo fosse a cada associação inesperada. O desejo do romanesco em Barthes, é segundo Philippe Roger, sustentado pelo mito do escritor, o mito da entrada na escritura (Proust) e o mito do grande romance. Será Barthes, segundo suas leituras, em Roland Barthes, Roman (1986) um “exagere em Litterature”? (1986, p. 341). De qualquer forma, Barthes, para falar do romanesco, pauta-se em táticas de deslocamento ou vertigem, como estudou Stephen Heath. Nesse sentido, qualquer pergunta a ele, será respondida por esse recurso tático e discursivo, feito certa prática desenvolvida na “errância”, também ela, entregue em perguntas que alimentam a frustração, o deslocamento, a vertigem ou a decepção. A partir dessas considerações, toda e qualquer leitura do livro Impérios dos signos, sugere retomar outra resposta, do próprio Barthes, com a seguinte declaração: “será que farei realmente um Romance? Respondo isto: agirei como se eu fosse fazer um - vou me instalar nesse como se” (BARTHES, 2005, p. 41). Trata-se, em síntese, de um Barthes que opera deslocamentos no lugar da enunciação, da crítica para a escritura, da escritura para a ficção, da crítica para a metacrítica e, nesse movimento caleidoscópico, da verdade para a validade e escrituralidade do discurso próprio. Desses deslocamentos e vertigens, enfim, surgem as inexistências de diferenciações claras entre o Barthes-crítico e o Barthes-escritor porque poderíamos intercambiá-los, sem prejuízo para qualquer uma das escolhas, embora uma seja espelho da outra, como reflexões autocríticas. Barthes-escritor ou crítico ajuda a ler outros autores ou a ele mesmo; um Barthes-criador, mesmo em seus ensaios, quando realiza a partir de sua escritura fragmentária, outro texto que se quer literário. Entre os disfarces do artista e do discurso, nessas leituras surgem cruzamentos irônicos de caminhos difíceis de mapear, porém ambos se 60
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mascaram para entreolharem-se com curiosidade e deleite, e, é difícil saber onde a enunciação do primeiro foi descoberta/construída pela sagacidade do segundo: nesse cruzamento, o autor é nome guardado no tempo, mas as leituras plurais são possibilidades de revelações do que está guardado para a criação de um valor presente. Referências ARAÚJO, rodrigo da C. Fragmentos de Roland Barthes: entre l’ovie et l’obtus. Revista Partes. São Paulo. 2008. ___. A escritura inquieta de Roland Barthes. Rio de Janeiro. Revista Litteris, n. 4, 2010. ___. À beira de espelhos. Roland Barthes fragmentário. Revista Escrita (PUCRJ. Online), v. 10, p. 1-13, 2009. ___. Diário de luto de Roland Barthes ou a estética do fragmento. XIV Congresso de Linguística e Filologia, 2010, Rio de Janeiro. Cadernos do CNLF, v. XIV, n. 4, Anais do XIV CNLF (Tomo 3)., 2010. v. 4. p. 2564-2576. BARTHES, R. Roland Barthes por Roland Barthes. Lisboa. Edições 70. 1975. ___. O prazer do texto. São Paulo. Perspectiva, 1996. ___. Le plaisir du texte. Paris. Seuil.1973. ___. Roland Barthes par Roland Barthes. Paris. Seuil.1975. ___. Fragments d’un discours amoreux. Paris. Seuil. 1977. ___. S/Z. Paris. Seuil. 1970. ___. Essais critiques. Paris. Seuil. 1964. ___. Le degré zéro de l’éscriture: suivi de nouveaux essais critiques. Paris. Seiul. 1972. ___. L’obvie et Ll’obtus: essais critiques III. Paris. Seuil. 1982. ___. Sollers Escritor. Tempo Brasileiro. Fortaleza. 1982. ___. L’empire des signes. Paris. Seuil, 2005. ___. O império dos signos. São Paulo. Martins Fontes, 2007. ___. O grão da voz. Rio de Janeiro. Francisco Alves. 1995. ___. A preparação do romance: a obra como vontade. v. I. São Paulo. Martins Fontes. 2005. ___. A Preparação do romance: da vida à obra. v. II. São Paulo. Martins Fontes. 2005. BURCH, Noel. Barthes e o Japão. In: SEABRA, José A. (Org.). Roland Barthes. Discurso - Escrita - Texto. Porto. Edições Espaço. 1979. pp. 57-64. COSTE, Claude. Barthes. Paris. Points.2010. BOUÇAS, Edmundo. Qui je dois désirer (deliberação de um écrivaindandy). In: CASA NOVA, Vera e GLENADEL, Paula (Org.). Viver com Barthes. Rio de Janeiro. Sete Letras, 2005. p.91-106. CALVET, J.L. Roland Barthes. um olhar político sobre o signo. Lisboa. Vega. (s/d) CULLER, J. As ideias de Barthes. São Paulo. Cultrix. 1988. GENETTE, G. O reverso dos signos. In: Figuras. São Paulo: Perspectiva, 1972. 61
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Sobre desejos, sabores e resistência, em Isabel Allende e Laura Esquivel* About desires, tastes and strength, Isabel Allende and Laura Esquivel
Maria Mirtis Caser
Doutora em Letras Neolatinas (UFRJ), Mestre em Letras Neolatinas (UFRJ), Professor Associado 1 da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: mirtis@terra.com.br
* Neste trabalho retomo um artigo que publiquei, em espanhol, com o título Las mujeres en la narrativa hispanoamericana em TROUCHE;REIS (Org.) Hispanismo 2000. Niterói, Consejería Educación, Embajada de España. 2011. p. 897-901. Resumo: Com este trabalho, propõe-se a análise dos romances La casa de los espíritus, de Isabel Allende, e Como agua para chocolate, de Laura Esquivel, investigando-se o tratamento dado pelas autoras às personagens femininas, em seu percurso de mulher, mãe e filha, frente ao autoritarismo patriarcal, exercido primordialmente por homens, mas praticado também por representantes femininas, nas sociedades que servem de espaço e cenário para essas produções ficcionais. Ao lado de estudos críticos de Luiza Lobo e Susan Kirkpatrick, recorre-se, para as discussões de gênero, e ao suporte teórico de Nelly Richard, que fala da necessidade de se questionarem as manobras do poder simbólico em favor de uma “masculinização da cultura”. A contribuição para os aspectos comparativos entre as duas narrativas vem dos estudos desenvolvidos por A. Owen Aldridge. Palavras chave: Literatura. Mulheres. Autoritarismo patriarcal. Personagens femininas. Abstract: The purpose of this paper is to analyze the novels La casa de los espíritus by Isabel Allende, and Como agua para chocolate by Laura Esquivel, by investigating the treatment conferred by both writers to their female characters as women, mothers, and daughters who face patriarchal authoritarianism (primarily defended by men, but also practiced by female representatives) in the societies that provide scenario and space for those fictional productions. Besides some critical studies by Luiza Lobo e Susan Kirkpatrick, support is provided by discussions about gender and theoretical elaborations by Nelly Richard, who talks about the need to question the maneuvering tactics used by the symbolic power in favor of a “cultural masculinization”. The comparative framework adopted here derives from A. Owen Aldridge’s studies. Keywords: Literature. Patriarchal authoritarianism. Female characters.
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Deve-se notar, no entanto, que, embora se distinga pela ruptura das convenções estéticas e pelo valor literário inquestionável, o período mostrou uma produção pouco avançada no tocante às relações sociais, principalmente no que se refere às questões de gênero, pois a masculinidade é uma de suas âncoras — o boom “fue un movimiento de autores masculinos”, nas palavras Donald Shaw (1999, p. 260). As mulheres não tiveram espaço naquela corrente literária. O tratamento dado às personagens femininas, tampouco, fugiu ao padrão patriarcal existente, dedicando-se aos homens o lugar privilegiado que sempre lhes coube. Destinou- se, nas produções do período, tratamento diferenciado a homens e mulheres, com clara desvantagem para as representantes femininas. Algumas personagens femininas de García Márquez, por exemplo, são apresentadas, em certas ocasiões, como inoportunas, interesseiras focadas apenas em aspectos práticos; preocupam-se somente com o “ter”, tentando impedir os homens de viverem seus sonhos, de investirem nas atividades consideradas nobres, como acontece, para citar um caso, com o casal de El coronel no tiene quien le escriba. Enquanto o Coronel, contra todas as circunstâncias, tenta manter vivas as esperanças e lutar de forma digna por aquilo em que acredita, ir a cada quarta esperar o barco que traria, finalmente, a notícia de sua pensão, a sua mulher parece existir apenas para fazer contraponto a ele, colocando empecilhos às suas expectativas, exercendo, enfim, um papel claramente secundário. Sobre essa função arraigada aos velhos costumes, podemos tomar as palavras de Rosa María Rodríguez (1994, p. 140): Las hembras de García Márquez son seres primarios, voraces o leves, presencias quedas en rincones de milenos, matronas aguerridas, pasiones salvajes como frutas o puñados de tierra. La Maga o Polaquita, en Cortázar, responden más bien a la fantasía de hombre lúcido que ansía un mar extraño de azar intuitivo, lo femenino como reducto mágico, puerta a lo inaprensible […].
Tomamos aqui a questão do masculino/feminino como conceitos passíveis de discussão, como elementos problematizados e problematizadores. É preciso perguntar-se o que são escritos de mulher, se há algo que identifica um texto como um texto feminino ou um texto masculino. Em Intervenções críticas, Nelly Richard (2002, p. 143) assinala que grupos ligados aos estudos feministas com fundamentação teórica que dialoga com a filosofia, a psicanálise, a desconstrução e a crítica cultural reelaboram os conceitos principais da questão: “os signos ‘homem’ e ‘mulher’ são construções discursivas que a linguagem da cultura projeta e inscreve na superfície anatômica dos corpos, disfarçando sua condição de signos (articulados e construídos) atrás de uma falsa aparência de verdades naturais, ahistóricas”. É preciso então desnaturalizar essa metafísica (destituída de verificabilidade) dominando a linguagem e o discurso que sustentam a organização da ideologia cultural que busca transformar masculino e feminino em signos inquestionáveis, confundindo natureza e significação e levando64
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nos a acreditar que “a biologia é o destino” (Richard, 2002, p. 143). A discussão acerca dos conceitos de masculino e feminino chega à literatura e deixa ver, segundo Richard (p. 128), que a tradição dos estudos literários registrados na década de 90 do século passado, ignorava, ou desprestigiava a produção feminina e, quando se registrava essa produção, não era difícil identificar o caráter paternalista da atitude. Falando da literatura produzida por mulheres no Chile, Richard (2002, p. 128) registra a grande quantidade/qualidade de textos literários que teve lugar nos últimos anos naquele país, mas questiona, mesmo diante de uma “escrita de mulheres”, se essa escrita de autoria feminina, “em tensão com o masculino, ativa as marcas da diferença simbólico-sexual e as recombina na materialidade escritural dos planos do texto”. E alerta a pesquisadora para o perigo de se buscar as características dessa produção no nível expressivo ou temático, “concepção representacional”, que levaria em conta as experiências de vida das mulheres, atribuindo à literatura feminina conformação realista, isto é, o texto concebido como expressão de conteúdos vivenciais. Reportando-se a Hélène Cixous, Toril Moi e Jacques Derrida, Luiza Lobo, em seu artigo intitulado A literatura de autoria feminina na América Latina (2000), registra que se mantêm, ao final do século XX, as oposições binárias próprias do quadro epistemológico de conhecimento do mundo no Ocidente: “macho”, “fêmea”, “forte”, “fraco”, “público”, “privado”, “espírito”, “corpo”, “razão”, “emoção”, “cultura”, “natureza”, “polaridades estabelecidas através da história da sociedade-judaico-cristã ocidental a partir do logocentrismo (evidentemente, contendo ideias patriarcais)”, que se constituíram como verdades. E segundo Lobo, é preciso desconfiar do cientificismo que eterniza essas dicotomias. Tomo ainda para a leitura das duas obras focalizadas aqui os ensinamentos de A. Owen Aldridge (1994, p. 255-7) que em Propósito e perspectivas da literatura comparada define a matéria como “[...] o estudo de qualquer fenômeno literário, sob a perspectiva de mais de uma literatura nacional [...]” e explica que se pode utilizar a comparação nos estudos literários “para indicar afinidade, tradição ou influências. E segue o autor, esclarecendo que “a afinidade consiste nas semelhanças de estilo, estrutura, tom ou ideias entre duas obras que não possuem qualquer outro vínculo” e que a tradição versa sobre o “estudo das semelhanças entre obras que fazem parte de um grande grupo de obras similares interligadas histórica, cronológica ou formalmente”. A influência se daria em obras diretamente inspiradas em outras obras. Anota ainda Aldridge (p. 257) que se costuma intercambiar o emprego dos termos literatura geral e literatura comparada, que compreenderiam “os estudos de temas, gêneros e obrasprimas sem referência explícita a épocas ou períodos”. Levando em conta essas anotações, tomamos duas obras que foram escritas por mulheres e que têm mulheres como personagens principais. Trata-se de La casa de los espíritos, da peruana nacionalizada chilena Isabel Allende, publicado em 1982, e de Como agua para chocolate, da mexicana 65
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Laura Esquivel, publicado em 1989. No primeiro relata-se a história de Clara Trueba, uma mulher que prediz o futuro, que se comunica com fantasmas, interpreta sonhos e tem poder sobre os objetos, os quais ela movimenta com a força do pensamento. Mulher do patriarca Esteban Trueba, Clara é mãe de Blanca, Jaime e Nicolás e, com as suas predições e seu carinho, mantém a família unida. Personagem misteriosa, vive em um mundo próprio, mas é bastante determinada ao defender as decisões dos filhos, mesmo contrariando o, às vezes, furioso marido. No segundo romance, conta-se a história de Tita, a caçula de três irmãs, vivendo ao tempo da revolução mexicana sob o jugo da Mamá Elena, que, na ausência do homem e marido, assume o papel patriarcal e decide sobre a vida e os sonhos das habitantes da casa. Tita sobrevive ao cerco que lhe impõe Mamá Elena, elaborando receitas, com as quais alimenta os corpos, corações e mentes dos que a rodeiam. Nos dois romances, a memória e os escritos de uma mulher (o diário no caso de La casa de los espíritus e as receitas no caso de Como agua para chocolate) servem para que uma descendente recupere a história daquela mulher, da família e de uma sociedade, que, de certa forma, guarda pontos comuns com a história de muitas mulheres. O fato de uma mulher construir uma personagem feminina sugere, em princípio, pelo menos, a possibilidade de um ponto de vista diferente daquele arquitetado por um escritor homem. É o que já se pode constatar em produções literárias de autoria feminina do século XIX nas quais já são fortes os indícios da busca de novos espaços para a mulher, ainda que nessas produções se detecte o olhar masculino. Citamos Susan Kirkpatrick (1990, p. 156) que, em referência à crítica literária que Emilia Pardo Bazán faz de Tristana, de Galdós, afirma que ali se “estava forjando um ‘contradiscurso’ frente às ideologias dominantes e se defendia a igualdade da mulher no terreno político e econômico”. Nos romances de Allende e Esquivel se denuncia a repressão, o constrangimento e a violência de que as mulheres são vítimas em decorrência da sede de poder que move os homens e em alguns casos também as mulheres, quando estas assumem papéis costumeiramente masculinos (podemos exemplificar essa assertiva com Mamá Elena, de Esquivel, e para tomar um exemplo de literatura feita na Espanha, por um homem, me valho de Bernarda Alba, de García Lorca). Registra-se por outro, a presença de uma tipologia textual própria da ficção feita por mulheres: a narrativa baseada na memória ou engastada por receita culinárias, cartas, orações, diários, elementos pertencentes por tradição ao universo feminino. Deve-se apontar em La casa de los espíritus, uma certa contradição no percurso das personagens em suas relações de gênero: estabelecem-se com clareza para as mulheres papéis/atitudes que fogem à percepção androcêntrica característica da sociedade latino-americana – as mulheres de Allende são fortes, decididas, capazes de escolher o que responde a suas expectativas e desejos. Essas mulheres sabem que a realização pessoal está em suas próprias mãos e que não é possível e não é necessário esperar que 66
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um príncipe as resgate de situações desconfortáveis. Mas, apesar da crítica contundente feita no romance ao sistema político, econômico e patriarcal que vigorava no Chile de então, concede-se destaque especial à figura de Esteban Trueba, representante do regime autoritário, que atravessa, com seus 90 anos de existência, toda a narrativa com gritos e bengaladas. Algumas passagens da obra de Allende exemplificam a contradição das mulheres da casa: começamos com Nívea, que, “a pesar de los lavados con vinagre y las esponjas con hiel, había dado a luz quince hijos” (p. 7), acompanha o marido Severo del Valle em suas ambições políticas e tem consciência de que as mulheres precisam mudar o que está posto – “era considerada para entonces la primera feminista del país” (p. 75). Não consegue, no entanto, tomar a decisão de fazer as pequenas mudanças que impediam que as grandes transformações se fizessem verdade. Escapar à ditadura da moda estava entre as decisões imperativas e aparentemente fáceis, mas difíceis de tomar na realidade, como se pode ver no fragmento: Una barba del corsé de Nívea se quebró y la punta se le clavó entre las costillas. Sintió que se ahogaba dentro del vestido de terciopelo azul, el cuello de encaje demasiado alto, las mangas muy estrechas, la cintura tan ajustada que cuando se soltaba la faja pasaba media hora con retorcijones de barriga hasta que las tripas se le acomodaban en su posición normal. Lo habían discutido a menudo con sus amigas sufragistas y habían llegado a la conclusión que mientras las mujeres no se cortaran las faldas y el pelo y no se quitaran los refajos, daba igual que pudieran estudiar medicina o tuvieran derecho a voto, porque de ningún modo tendrían ánimo para hacerlo, pero ella misma no tenía valor para ser de las primeras en abandonar la moda (p. 9).
Entre os muitos filhos de Nívea e Severo del Valle, Clara se destaca por viver um mundo à parte, sem medidas ou regras, como se o entorno não lhe dissesse respeito. A personagem é uma verdadeira representação do realismo mágico: Clara pasó la infancia y entró en la juventud dentro de las paredes de su casa, en un mundo de historias asombrosas, de silencios tranquilos, donde el tiempo no se marcaba con relojes ni calendarios y donde los objetos tenían vida propia, los aparecidos se sentaban en la mesa y hablaban con los humanos, el pasado y el futuro eran parte de la misma cosa y la realidad del presente era un caleidoscopio de espejos desordenados donde todo podía ocurrir (p. 53).
O casamento com Esteban Trueba, que havia sido noivo de Rosa, a irmã que morre envenenada, não altera a atitude de Clara, que não se interessa pelos assuntos práticos, mas faz com que os que a rodeiam se sintam queridos: A Clara no le interesaban los asuntos domésticos. Vagaba por las habitaciones sin extrañarse de que todo estuviera en perfecto estado de orden y de limpieza. Se sentaba a la mesa sin preguntarse quién preparaba la comida o dónde se compraban los alimentos, le daba igual quién la sirviera, olvidaba los nombres de los empleados y a veces hasta de sus propios hijos, sin embargo, parecía estar siempre presente, como un espíritu benéfico y alegre, a cuyo paso echaban a andar los relojes (79).
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Uma catástrofe natural, representada por um terremoto, tem um efeito inesperado sobre a mulher, que assume depois do flagelo o papel esperado para uma pessoa madura e atenta ao entorno: Clara cambió mucho en esos meses. Debió ponerse junto a Pedro Segundo García a la tarea de salvar lo que pudiera ser salvado. Por primera vez en su vida se hizo cargo, sin ninguna ayuda, de los asuntos materiales, porque ya no contaba con su marido, con Férula o con la Nana. Despertó al fin de una larga infancia en la que había estado siempre protegida, rodeada de cuidados, de comodidades y sin obligaciones (p. 100).
Com o tempo, Esteban Trueba fica cada vez mais obcecado por Clara e, quando morre a mulher, Esteban se desinteressa por completo da administração da casa, que se deteriora completamente. A terceira mulher de nome luminoso é Blanca, a filha de Clara e Esteban. Moderna, a jovem se dedica aos estudos e, diferentemente de sua mãe, é tranquila e equilibrada. Mantém com Pedro García Tercero, filho do capataz da fazenda, uma forte relação amorosa, que lhes dá forças para enfrentar os reveses impostos pela vida e pelas pessoas. Desse amor nasce a quarta mulher alumiada, Alba, representante na obra das vítimas da violência política e pessoal. Esteban García, neto ilegítimo de Esteban Trueba, aproveita a impunidade de fazer parte do grupo que defende o golpe militar e se vinga da família: retira Alba da casa do avô, sob a acusação de comunismo e na prisão transforma-se em algoz da moça, submetendo-a a todo tipo de humilhação e tortura. Depois de uma visão da avó Clara, que lhe deu “la idea salvadora de escribir con el pensamiento, sin lápiz ni papel [...]” (p. 249), Blanca recupera as forças e conclui que o resgate da vida pode ser buscado em seu amor por Miguel, o revolucionário, e principalmente que pode ser redimida pela escritura, pela palavra, porque nos escritos de sua avó Clara, ela recuperaria os acontecimentos passados e isso poderia ajudá-la a sobreviver ao seu próprio espanto (p. 260). É junto do avô Esteban Trueba que Alba busca refúgio, quando finalmente é libertada da prisão. Aquele homem havia sido violador das jovens empregadas da fazenda e defensor do regime anticomunista, e acaba sofrendo em sua família, em Alba, a repressão nos mesmos moldes. E é ela quem segura a mão do velho patriarca, que morre aos 90 anos de idade e segundo as palavras da neta, ele se vai não “como un perro, como él temía, sino apaciblemente en mis brazos confundiéndome con Clara y a ratos con Rosa, sin dolor, sin angustia, consciente y sereno, más lúcido que nunca y feliz” (p. 254). Em Feminismo y teoría del discurso, Giulia Colaizzi (1990, p. 1012) assinala o que poderia ser uma contradição no romance: a delicadeza que as mulheres de La casa de los espiritus dispensam a Trueba, que havia tratado com violência e brutalidade muitas das mulheres que passaram em sua vida. A autora sugere que a (aparente) indiferença dessas mulheres às ordens e desmandos de Trueba não justifica a simpatia, talvez excessiva, de que é objeto o patriarca brutal. 68
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A aproximação do romance de Isabel Allende com Cien años de soledad, de García Marquez, provocou muitas críticas à autora, mas sirvo-me das palavras de Luiza Lobo para anotar que a obra traz “[...] como marca de originalidade, um ponto de vista exclusivamente feminino, delineando a ação real sempre a partir dessa ótica”. E, ainda segundo Lobo, anotar que “(o)s diários da avó Clara, localizados pela neta Alba, que conduz a narrativa, servem de argumento e fio condutor para que se articule todo o discurso fragmentado das mulheres da família e revele a alegria da descoberta do belo e da vida, que em geral é o reprimido e o recalcado no discurso feminino”. Em Como agua para chocolate (1993), o autoritarismo patriarcal é exercido por uma mulher, Mamá Elena, que como guardiã da tradição local, determina que Tita não pode casar-se para cumprir o que reza o costume. A jovem está enamorada de Pedro e encontra na elaboração de deliciosas receitas culinárias a forma de expressar o seu amor pelo amado e sua indignação diante de seu destino. O preparo da comida é utilizado como elemento amenizador do desespero de Tita e, ao mesmo tempo, serve de componente organizador da narrativa. Os ingredientes, os condimentos, os modos de fazer e as recomendações diversas acerca dos pratos vão-se enredando com as lembranças, sentimentos, experiências da jovem, que “de igual forma confundía el gozo de vivir con el de comer” (p. 11). Com as poucas armas de que dispõe, Tita ensaia lutar contra a mãe repressora e as convicções em que se baseava para atormentá-la, como se pode ler no fragmento: — Pero es que yo opino que ... — Tú no opinas nada y se acabó! Nunca, por generaciones, nadie en mi familia ha protestado ante esta costumbre y no va a ser una de mis hijas quien lo haga (p. 13).
Numa valorização do fazer feminino, fugindo à narrativa convencional, Esquivel transforma receitas culinárias na tipologia textual básica do seu romance. Os 12 capítulos, intitulados com os meses do ano, iniciam como se de um caderno de receitas se tratasse, recuperando um trabalho comumente desprestigiado pela tradição social e literária. A obra foi recebida com grande entusiasmo pela crítica e pelo público, o que se pode atribuir ao misto de delicadeza e sensualidade/sexualidade com que a autora aborda os problemas que afetam a todos: a alimentação, o trabalho, o amor/sexo, as relações familiares e sociais, as questões históricas e a luta por direitos individuais. Tudo isso apresentado em uma linguagem cotidiana e expressiva ao mesmo tempo. A história tem um certo sabor romântico – amores proibidos, desejos insatisfeitos, segredos inconfessáveis e uma revolução por pano de fundo-, receita que agrada ao público feminino para quem a obra parece estar dirigida. Tal expectativa é frustrada, no entanto, porque não se realiza o amor prometido no decorrer de todo o relato; ou se realiza na verdade no cruzamento da linha entre a vida e a morte. Tita e Pedro amaram-se toda a vida mas só conseguem juntar69
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se para sempre na morte, que pode ser vista como eternização da aliança dos dois enamorados, levando-nos ao soneto de Quevedo (1580-1645): “Amor constante más allá de la muerte”, em que o corpo dos amados será polvo “mas polvo enamorado”. As mulheres desenhadas por Allende e por Esquivel não são responsáveis por grandes façanhas, não influenciam nas decisões políticas importantes, não comandam exércitos em batalhas grandiosas, nem participam diretamente da luta armada contra o regime político do qual discordam . Tais papéis são desempenhados pelas personagens masculinas nas narrativas. Lembremos que em La casa de los espíritus, Esteban Trueba é o senador e tem poderes na área pública e o amado de Alba, Miguel, é o revolucionário, ainda que Alba sofra as consequências de estar unida a ele. Em Como agua para chocolate, as armas que Tita maneja são as que tradicionalmente as mulheres manuseiam, ou seja, a jovem não ultrapassa os limites de sua cozinha, não participa das grandes deliberações em qualquer âmbito e sua revolução se faz com açúcar, manteiga, pimenta e essências que ela encontra na tradição do mundo feminino. Mas temos que reconhecer que as atitudes tomadas por essas mulheres são uma nova maneira de verem o mundo e de pensarem sobre si mesmas. E isso nos remete a Nelly Richard (2002), para quem é necessário que se questionem as manobras do poder simbólico em favor de uma “masculinização da cultura”, mas isso não quer dizer, em sua opinião, que se devam adotar as mesmas regras que combatemos. Referências ALLENDE, Isabel. La casa de los espíritus. 2. ed. Buenos Aires: Sudamericana, 1985. COLLAIZZI, G . (Ed.). Feminismo y teoría del discurso. Madrid: Cátedra, 1990. ALDRIDGE, A. O. Propósito e perspectivas da literatura comparada. In: COUTINHO, Eduardo; CARVALHAL, Tania. Literatura comparada: textos fundadores. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p. 255-59 ESQUIVEL, Laura. Como agua para chocolate. Barcelona: Mondadori, 1993. KIRKPATRICK, Susan. La narrativa de la seducción en la novela española del siglo XIX. In: COLAIZZI, Giulia (Ed). Feminismo y teoria del discurso. Madri: Cátedra. 1990. P. 153-167. LOBO, Luiza. Narrativas de autoria feminina e a construção do novo milênio. In: VASSALO, Ligia (Org.). Estudos neolatinos 2. Rio de Janeiro: UFRJ, n. 2, 1997. _____. A literatura de autoria feminina na América Latina. Disponível em: < http://lfilipe.tripod.com/LLobo.html>. Acesso em: 20 junho 2012. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Tradução de Rômulo Monte Alto. Belo Horizonte: UFMG, 2002. RODRIGUEZ, Rosa María. Femenino fin de siglo: la seducción de la diferencia. Barcelona: Anthropos, 1994. SHAW, Donald. Nueva narrativa hispano-americana. Boom. Posboom. Posmodernismo. 6. ed. Madrid: Cátedra, 1999.
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Gestao de pessoas ~
A Consciência e as Pessoas na Organização ou A Consciência nas Organização ou Gestão com Consciência The Consciousness Evolution inside Organizations
Fernanda Castro de Nadai
Mestre em administração (PUC).
Luiz Roberto Calado
Economista (USP), Mestre em administração (PUC) e Doutorando (Universitat Bonn). E-mail: luizcalado@gmail.com
Resumo: A sociedade está vivendo um período de transformação de um paradigma mecanicista e reducionista para o paradigma ecológico, que tende a substituir a noção de mundo como máquina por um universo orgânico, com vida e espiritualidade. Faz-se premente a necessidade de uma visão integral do ser: matéria, corpo, mente alma e espírito. Nas organizações, uma gestão consciente da importância dos valores humanos e do desenvolvimento integral do homem, segundo os princípios da união dos campos da ciência, da filosofia e da espiritualidade, contribui para que a consciência empresarial evolua. Palavras-chave: Espiritualidade. Valores humanos. Administração. Abstract: The society is in a transformation period: from the mechanistic and reductionist paradigm to an ecological one, that tends to replace the notion of the world as being a machine for an organic universe, with life and spirituality. There is a pressing need to have a comprehensive vision of being: substance, body, mind, soul and spirit. In organizations, a management aware considering the human values importance and the human’s integral development, according to union principles of the sciences fields, philosophy and spirituality, contributes to the consciousness companies evolution. Keywords: Spirituality. Human values. Management.
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As Transformações na Sociedade Houve uma época em que o fator indispensável para a produção era a energia física - mão de obra das pessoas. No século passado com a aplicação da eletricidade e do petróleo nas atividades, o fator essencial passou a ser a máquina e, posteriormente, com a revolução tecnológica, surge a visão de que a produção é intensiva em conhecimento (DOWBOR, 2001). A competição e a evolução tecnológica fizeram com que o conhecimento tornasse um diferencial competitivo para as empresas, tornando-se necessário seu gerenciamento para servir como fonte de vantagem competitiva e trazer resultados. A atual economia baseada no conhecimento e intensiva em serviços traz implicações estratégicas às organizações que necessitam ser competitivas. Na sociedade do conhecimento, ora vigente, as organizações se deparam com muitos desafios, tanto em resposta às constantes inovações tecnológicas, quanto às alterações nos padrões de trabalho, em mudança de paradigmas, na necessidade de treinamento de novas competências, enfim, na resignificação do trabalho, a qual exige a adoção de novas práticas e políticas de gestão das pessoas, no intuito de prepará-las às novas demandas (DE NADAI, 2006). A intensa competição exige que as empresas sejam capazes de aprender e assim, desenvolver novos conhecimentos. O capital já não pode ser considerado o único recurso estratégico importante a ser gerenciado nas organizações, e as responsabilidades dos gestores devem ir além da aquisição, alocação e emprego de maneira eficaz deste recurso. Existe algo que vale mais do que os recursos registrados na contabilidade financeira: um capital acumulado em busca do talento e do conhecimento que a empresa possui. O conhecimento sempre foi um componente importante e necessário para a realização das tarefas e atividades de qualquer pessoa seja dentro das organizações ou sociedades. A diferença é quando este conhecimento passa a ser visto como um insumo de alto valor que pode ser comprado e vendido, ofertado e demandado. Com a revolução tecnológica a produção passou a ser, progressivamente, intensiva em conhecimento, o qual necessita gerenciar de forma eficaz seu principal ativo para que seja uma ferramenta na busca por resultados para a empresa e também para a sociedade. Dib (2002) e Dib e Guevara (2006) abordam as sociedades antigas em que já vivemos – sociedade da colonização, a que vivemos atualmente – sociedade do conhecimento e, a sociedade que tende a emergir em um futuro próximo - a qual denomina sociedade da consciência. A Sociedade da Informação que representou a primeira fase da Era Pós-industrial, atualmente parece estar em transição para a Sociedade do Conhecimento (ver Figura 1). 72
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Figura 1: Da Sociedade Agrícola à Sociedade do Conhecimento Fonte: Guevara e Dib (2006).
A sociedade do conhecimento incorpora a Sociedade Pós-Industrial anterior e que parece estar em diferentes graus de desenvolvimento em diferentes países, apresenta como fonte de riqueza o capital intelectual e social, se encontra principalmente nas próprias mentes das pessoas, no seu conhecimento e processo de conhecer (processo e conteúdo, conforme Bohm(2005), capítulo 3), que no global constitui o próprio conhecimento implícito e explicito da organização, ou seja, conhecimento tácito e explícito conforme nos lembra Sveiby (1998) em A nova riqueza das organizações. O recurso natural nessa fase evolucionária é o conhecimento. O conhecimento e o desenvolvimento das competências é um ativo muito importante para as organizações e para a Sociedade do Conhecimento, e o tipo de organização que está emergindo se caracteriza como um tipo organização de aprendizagem em rede. A ênfase no conhecimento – abrindo caminho para a consciência Desde que a humanidade passou a acumular conhecimentos, as ideias são consideradas importantes, porém, de forma progressiva, podemos perceber um aumento gradativo na importância do recurso conhecimento nos negócios e na sociedade como um todo. A sociedade do conhecimento deve buscar o equilíbrio da ecologia social, por meio da ação das tecnologias de conhecimento, na qual os agentes sociais locais recriam os sistemas de conhecimento, para que a sociedade da consciência possa emergir. Segundo Capra (1996), podemos aprender lições com o estudo dos ecossistemas, ou seja, com o entendimento das comunidades ecológicas e usar estes princípios nas comunidades humanas: na família, nas organizações, nos grupos de amigos etc. Os princípios dos ecossistemas que podem ser adotados pelas organizações são: (i) da interdependência entre os seres, todos estão ligados e se relacionam; (ii) da natureza cíclica dos processos: o que é resíduo de 73
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um ser é alimento para outro e tudo se recicla; (iii) da parceria, da cooperação e coevolução: ganha-ganha; (iv) da flexibilidade, o que em uma organização significa adaptar-se continuamente às necessidades do sistema; (v) do respeito à diversidade, o que traz a vitalidade do sistema. Neste momento, a sociedade está vivendo num período de transformação de um paradigma mecanicista e reducionista para o paradigma ecológico, que tende a substituir a noção de mundo como máquina por um universo orgânico, com vida e espiritualidade. “A visão clássica, (determinista e reducionista) elimina a consciência, o sujeito e a liberdade” (Morin, 2005, p. 72). O primeiro compreende o corpo humano como uma máquina, com uma sociedade voltada à disputa competitiva pelo alcance do progresso material, obtido por meio do crescimento econômico e tecnológico, o que traz o empobrecimento espiritual e a perda da diversidade. O segundo, dá ênfase no todo e na holística (Capra, 1996). Transformações ocorreram e ainda estão em curso. Primeiro da substituição da força física do homem pelas máquinas, pouco depois o advento da informação. E hoje, percebemos que cada vez mais o foco está no conhecimento e atitudes, o que fez com que o ser humano tornasse o principal “insumo” das organizações do conhecimento, quando em muitas organizações o “custo” da mão-de-obra supera em muitas vezes o custo dos outros insumos. Mas não nos cabe aqui explorar o trabalhador do conhecimento, tema de nosso último livro. O retrato do século passado é o homem especialista. Wilber (2000) considera que uma das causas da infelicidade humana é fragmentação de funções e a conseqüente limitação das potencialidades da nossa mente. O homem do futuro é o homem consciente: de sua missão, perante seu eu e seu mundo, notadamente seguro da interdependência dos processos existentes. Diante desse cenário, as organizações necessitam cada vez mais de líderes e colaboradores que não tenham apenas conhecimentos e habilidades, mas, principalmente, atitudes e valores correspondentes com o que se pode chamar de espiritualidade. Contudo, há um conflito constante entre diferentes interpretações do que são as organizações, centradas em duas diferentes concepções: a da racionalidade instrumental – centradas no alcance dos objetivos de eficiência e eficácia – e a concepção vinculada à subjetividade – voltada ao corpo social organizacional, à lógica afetiva, consciente e inconsciente das relações. Sendo assim, se faz premente a necessidade de uma visão integral do ser: matéria, corpo, mente alma e espírito. A palavra integral “significa integrar, reconciliar, juntar as partes, unir”, sem uniformizar, nem eliminar as diferenças. Portanto, é uma visão que inclui a espiritualidade (Wilber, 2000, p. 14).
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Consciência nos indivíduos A consciência humana é ilimitada e o entendimento dela é a própria evolução da espécie humana. A palavra consciência é utilizada cotidianamente na sociedade com vários sentidos. Segundo a definição aureliana, consciência é: O atributo pelo qual o homem pode conhecer e julgar sua própria realidade; faculdade de estabelecer julgamentos morais dos atos realizados; conhecimento imediato de sua própria atividade psíquica; cuidado com que se executa um trabalho, se cumpre um dever; senso de responsabilidade; conhecimento; noção. (FERREIRA, 1993, p. 140).
O indivíduo tem sua consciência construída, por elementos racionais (definidos pelo ambiente em que o indivíduo se insere), emocionais e sociais (Magalhães, 2001). Ainda podemos definir a consciência e a consciência crítica, sendo que a primeira é definida pela sociedade, ou seja, aqueles valores que a sociedade acha que o ser humano precisa ter; enquanto que a segunda, refere-se ao esforço do ser humano em transcender, modificar e ampliar os valores estabelecidos. Para Keppe (apud Pacheco, 2003), a verdadeira consciência resulta da união da consciência ética ou afetiva – ligada ao sentimento de bondade e da verdade - com a consciência mental, intelectual – apreendida através das experiências e informativos, arquivada em nossa memória, que formam uma terceira consciência, que possibilita o transcender. Peter Senge (2004), também relaciona a consciência como a busca constante do saber e aprimorar o papel de cada pessoa no mundo e a influência de suas ações e decisões no mesmo. Ele salienta que é importante nos conhecermos e também conhecermos o nosso papel e como ele interage com o mundo, isso porque, somo um só, nós e o mundo, pois ambos se inter-relacionam todo o tempo. Para ele, não basta sermos intelectualmente conscientes de algo, é preciso praticar, agir, aplicar o conhecimento aprendido. A partir das fragmentações ocorridas durante milênios, o universo necessita de uma síntese. Wilber (2000) diz que estamos vivendo na época ideal para esta evolução de consciência, ou seja, de uma maior integração do conhecimento, e do entendimento do homem como um ser integral: biopsicossocial e espiritual. Portanto, quanto mais integrados com a nossa essência, mais felizes, satisfeitos e completos nos sentiremos. Quanto mais a negarmos, mais na escuridão e no individualismo estaremos. Esse processo é contínuo e dinâmico e ele está presente em algum momento na vida de cada ser humano, pois é inerente à nossa condição. Cabe às organizações fornecer uma educação mais apropriada ao ser humano, por meio de uma gestão consciente. 75
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Espiritualidade nas Organizações A aproximação da espiritualidade da esfera organizacional tem relação com a necessidade de construção de valores de transcendência e estabilidade, o que minimiza o clima incerto e provisório vivido pelas pessoas que convivem numa organização, amenizam os conflitos organizacionais e transcendem a finitude terrestre ao oferecer um rol de referências valorativas. Para Motomura (2007), algumas empresas são respeitadas pela vanguarda em tecnologia. Outras são respeitadas pelo equilíbrio entre o técnico e o humano. Entre estas há aquelas em que o lado humano acontece pelo técnico. Ou seja, todas as tecnologias humanas são utilizadas com grande eficiência. Estão na vanguarda da “mecânica” do humano, mas não pela sua essência. Há, entretanto, aquelas em que o humano não é algo tecnológico. São empresas com espírito.
A atuação empresarial mais preocupada com a gestão dos valores humanos e desenvolvimento integral do homem, segundo os princípios da união dos campos da ciência, da filosofia e da espiritualidade, contribuem para que a consciência empresarial evolua. Portanto, para compreender a espiritualidade, é necessário repensar paradigmas ora praticados, encontrando uma forma melhor de conviver com os outros colaboradores, clientes, fornecedores e em última análise o planeta terra e as outras espécies aqui existentes. O respeito ao outro, o olhar voltado à comunidade, a preocupação com o trabalhador e com os impactos ambientais e sociais, o respeito às diferenças de valores, comportamentos e posturas, um ambiente de trabalho agradável, o reconhecimento dos limites de cada um, resulta no bom relacionamento entre as pessoas e suprem a necessidade do trabalhador encontrar um lugar de pertencimento mais latente (Manzini-Covre, 2005). Morin (2005, p. 21) afirma que “todo olhar sobre a ética deve perceber que o ato moral é um ato de religação; religação com um outro, religação com uma comunidade, religação com uma sociedade e, (...) com a espécie humana”. A espiritualidade é um dos caminhos para o desenvolvimento da consciência de estar no mundo. Não é o caso de se pregar a religiosidade nas organizações, mas uma forma de evitar que a fragmentação e a departamentalização, isto é, a dissociação das estruturas burocráticas do lado humano. O modelo da competitividade e da disputa ruiu. O advento do Google, Wikipedia e Linux, indica uma tendência de valorização do que é construído em conjunto, com base no princípio da cooperação em detrimento do princípio da competição. Refletindo no quanto a espiritualidade ajuda as empresas, existem ganhos não apenas os colaboradores da organização, mas também para a 76
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comunidade, os parceiros, fornecedores, clientes e mesmo concorrentes. Estes ganhos trazem resultados positivos para ambas as partes. Ao contrário, da religião, na qual se alguém é cristão, geralmente não se interessa pelo islamismo, e vice-versa. Um ser espirituoso jamais deixaria as belezas de todas as religiões, em detrimento de alguma delas. Empresas mais “espirituosas” convivem com diversidade generalizada, do ponto de vista das ideias e até emoções. Conseguem equacionar melhor a metas, respeitando limites. Durante todo o século passado, o foco das grandes corporações foi VENDER, ou seja, sensibilizar o cliente a consumir o seu produto. Hoje o foco deve ser entender as necessidades dos atores envolvidos com ela, criar um ambiente onde os “clientes” desejem viver experiências e participar, não necessariamente estabelecer relações de consumo e troca. Atingir a maturidade enquanto ser humano em sua essência é atingir a espiritualidade: um movimento universal pelo bem e respeito ao próximo, mesmo se o próximo é seu concorrente, mesmo se o próximo lhe prejudica. Não significa criar uma dualidade entre os interesses econômicos e a espiritualidade, um rompimento com as normas econômicas vigentes, nem realizar uma hierarquização entre o econômico e o social, a ética e a produtividade, mas uma complementariedade, uma simbiose entre os dois aspectos. O que muda, é a busca do lucro a qualquer custo. Dessa forma, as pessoas se tornarão conscientes do que querem, onde querem chegar, transformando-se em sujeito de sua vida, e podem sentir-se parte de uma unidade, reconhecidos e valorizados por seu trabalho. Estudos mostram que alguns funcionários que não incorporaram a ideia de cooperação e de respeito ao outro e passaram a ter atitudes antiéticas optam por se excluírem da organização, pois não conseguem sentirse aceitos no grupo (Manzini-Covre, 2005). Perceber o todo, é perceber o universo e a energia existente em tudo o que nos cerca e em nós. Referências BOHM, D. Diálogo: comunicação e redes de convivência. São Paulo: Palas Athena, 2005. CAPRA, F. A teia da vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. São Paulo: Cultrix, 1996. DE NADAI, F.C. Gestão do conhecimento: um estudo no jornalismo regional. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Dissertação de mestrado, São Paulo: PUC/SP, 2006. DIB, V.C. A sociedade do conhecimento: mito ou realidade. Tese de doutorado, São Paulo: PUC/SP, 2002. 77
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Ergonomia - enfermagem do trabalho DOENÇAS NO AMBIENTE DE TRABALHO: A LER/DORT EM GARIS DE TEIXEIRA DE FREITAS, BA DISEASES IN THE WORKPLACE: LER/DOT IN workers cleaning public IN THE CITY TEIXEIRA DE FREITAS, BA
Margarete Ines Portela de Paula
Doutoranda em Administração, Mestre em Economia de empresas, Especialista em Saúde Publica e Especialista em Gestão Empresarial. E-mail: margaretepaula@uol.com.br
Resumo: Esta pesquisa discute a realidade dos garis que convivem com situações de trabalho em que os vêem-se obrigados diariamente a ter que lidar com uma realidade dura podendo causar doenças relacionadas ao trabalho, conhecidas como LER/DORT. A metodologia utilizada neste estudo foi a Pesquisa de Campo de natureza qualitativa, tendo-se como cenário o município de Teixeira de Fritas, extremo sul da Bahia, que compõe a Microrregional do Extremo Sul da Bahia. Palavras-Chave: Garis, LER/DORT, trabalho insalubre. Abstract: This research presents the reality of living with street sweepers work situations that are forced daily to have to deal with a harsh reality may cause work-related diseases, known as RSI / WMSD. The methodology used in this study was the Field Research of a qualitative nature, and it was set in a city in the extreme south of Bahia, which consists of a micro-regional Southern Bahia. Keywords: Garis, RSI / WMSD, unhealthy work.
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Introdução Após a primeira Revolução Industrial, ocorrida em meados do séc. XVIII, os produtores, movidos por um grande mercado consumidor em expansão, viram-se obrigados a abandonar seus métodos tradicionais de produção industrial e a arriscar seu capital em novos e revolucionários métodos, capazes de ampliar, em proporções nunca imaginadas, sua produção (PEDRO, 1985). Essas mudanças proporcionaram maior carga de trabalho e o aparecimento das doenças ocupacionais (relacionadas ao trabalho) bem como a necessidade, por meio do avanço tecnológico na especialização médica, de oferecer condições mais saudáveis aos trabalhadores portadores de lesões por esforços repetitivos, tais como os antigos artesãos que, habituados a controlar o seu próprio ritmo de trabalho, foram submetidos à disciplina da fábrica com claro enfoque na produção (ARRUDA, 1988). As doenças apresentadas pelos trabalhadores estavam diretamente ligadas ao crescimento do trabalho e da jornada, para o aumento do capital e do rendimento dos produtores. Nesse contexto, surge a manutenção do corpo que antes era colocada em segundo plano. Porém, naturalmente e como resposta a um enfoque mais humano, os trabalhadores formularam novas exigências às empresas, tais como o fornecimento de equipamento de proteção individual (EPI), uso adequado do corpo (postura correta), mudança periódica da posição sentada ou em pé em jornadas de longo período, ajuste do ambiente de trabalho e o cuidado com os sintomas psicológicos patológicos, relacionados ao trabalho. Nas últimas décadas, as sociedades modificaram e transformaram seus padrões de consumo por meio da utilização crescente de produtos industrializados e descartáveis. Esse consumo massificado, sobretudo nas grandes cidades, tem gerado um aumento contínuo e exagerado de resíduos sólidos, popularmente conhecidos como lixo. O intenso volume de lixo descartado pela população produz odores fétidos, gera doenças e pode se tornar um passivo ambiental para futuras gerações sendo, dessa forma, um sério problema que ameaça à sustentabilidade urbana, à saúde e à qualidade de vida das pessoas. Percebe-se que a profissão dos garis apesar de sua importância social, enfrenta desafios importantes na implementação de uma proposta de monitoramento e avaliação das condições de trabalho visando maior segurança nas políticas preventivas para a saúde desses trabalhadores. Este estudo tem como objetivo discutir os fatores que atingem a saúde e traçar um perfil de LER/DORT em profissionais de limpeza urbana da cidade de Teixeira de Freitas, BA. Metodologia da pesquisa O estudo caracteriza-se como pesquisa de campo de natureza qualitativa. O estudo qualitativo assume as características colocadas por Bauer, 80
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Gaskell e Allum (2003), tais como: na pesquisa qualitativa, evitam-se números, lida-se com interpretações das realidades sociais, podendo, depois do levantamento, guiar a análise dos dados levantados e fundamentar a interpretação com observações mais detalhadas. A abordagem qualitativa visa “lograr, explicar os meandros das relações sociais consideradas essência e resultado da atividade humana criadora, afetiva e racional, que pode ser apreendida através do cotidiano, da vivência, e da explicação do senso comum” (MINAYO, 2004, p.11). Em princípio, foi utilizada como estratégia de investigação. As pesquisas realizadas na área, documental e entrevistas semiestruturadas, bem como a análise de dados secundários, de modo a apoiar a caracterização e apreciação dos componentes da intervenção normativa. A pesquisa documental foi utilizada como facilitadora a aproximação com o processo de trabalho dos garis, propiciando oportunidades de cruzamentos de dados e informações na construção de sínteses na dimensão da pesquisa. Recorremos à amostra aleatória composta por 10% do universo dos garis do município de Teixeira de Freitas-BA. Para a coleta de dados, será utilizada entrevista com roteiro semiestruturado por se considerar uma estratégia adequada de pesquisa de campo, destinada a construir informações pertinentes para coleta de dados (MINAYO, 2006). Esse tipo de entrevista possibilita a obtenção dos dados de uma realidade, acerca do tema estudo, buscando informações para atender aos objetivos propostos. As entrevistas serão realizadas individualmente, mediante agendamento prévio com os garis, de acordo com sua disponibilidade, após a autorização por escrito do entrevistado para utilização dos dados obtidos para essa pesquisa. Aplicou-se questionário sobre as doenças relacionadas ao trabalho dos participantes, considerando cinco itens: lesões ou doenças oculares por poeira, dor em MMSS, dor em MMII, dor em coluna, queimaduras solares e alcoolismo, a fim de classificar e avaliar quais as doenças trabalhistas que estão diretamente relacionados aos sujeitos da pesquisa, considerando a legislação vigente. Marco teórico Quando pensamos no ambiente de trabalho ou uma mudança no ambiente, o qual está centrado para o uso do ser humano, deve-se basear-se nas características físicas e mentais do usuário. A ergonomia no trabalho dos garis tem como objetivo melhorar a condição de trabalho e a segurança, minimizando a carga física e mental, aumentando a produtividade da organização. Logo ”a ergonomia é, portanto o estudo do homem em suas relações com o ambiente de trabalho” (MURREL, apud BARROS, 1999, p. 11). Neste estudo, abordaremos as LERs/DORTs relacionadas ao sistema osteomuscular que, segundo Vidal, trata da carga física, que o corpo humano sofre em uma situação de trabalho, causada por movimentos 81
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repetitivos, manuseio de matérias, força excessiva, posturas desfavorável, relacionada com desordens músculo-esquelético. A Lesão por Esforço Repetitivo (LER) é conhecida também com o nome de DORT (Distúrbio Osteomuscular Relacionado ao Trabalho), definição do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS). A sigla foi criada para identificar um conjunto de doenças que atingem músculos, tendões e membros superiores (dedos, mãos, punhos, antebraço, braços e pescoço) e tem relação direta com as condições de trabalho, não favorecem bons relacionamentos e bem estar (condições psicossociais). Por ser um distúrbio do sistema osteomuscular não está relacionado a um ramo específico no qual a LER aparece, isto é, ela pode aparecer em qualquer ramo de trabalho, nos quais as atividades são exercidas, com esforços repetitivos. Nas empresas, cujos serviços exigem mais dos membros superiores e inferiores, bem como da coluna vertebral, as LERs/ DORTs se tornam mais comuns, principalmente em locais que nãopreocupam com a questão da ergonomia. Segundo a NR 17, “[...] cabe ao empregador realizar a análise ergonômica do trabalho [...]”. Para prevenir, as organizações devem estudar e fazer as alterações. Caso não sejam realizados os devidos estudos e alterações necessárias, a LER/DORT continuará sendo um fator dentro das empresas. Conforme a NR-15 da portaria 3214 do Ministério do Trabalho de 03/06/1978, o trabalho de coleta de lixo domiciliar é considerado insalubre em grau máximo (SANTOS, 2004; ROBAZZI et al., 1992). Estudos constataram diversos tipos de patologias relacionadas ao trabalho dos garis, tais como doenças respiratórias e cardiovasculares, distúrbios osteomusculares, perdas auditivas, dentre outras (SILVA, 1983; ROBAZZI; BECHELLI, 1985; ROBAZZI e al., 1992; MADRUGA, 2002; PAVELSKI, 2004). Por isso, reforçamos a importância de medidas ergonomicas nas empresas para diminuir o número de funcionários afastados, e melhorar as condiçoes de trabalho e vida diária através da ginástica laboral, conscientizando seus funcionários em relação à postura e sobre o que isso pode acarretar em sua saúde, para oferecer maior conforto, segurança e melhoria das condições no ambiente de trabalho. Muitos empresários pensam que a ergonomia deve ser aplicada somente nas indústrias, empresas de grande porte e não se dão conta que ela também deve ser aplicada nos consultórios, nas pequenas empresas e até mesmo em nossos lares. Os garis realizam vários movimentos no decorrer do dia, os quais deviram ser realizados de acordo com a ergonomia, para obter menos fadiga e um maior rendimento na realização de suas atividades. As empresas que começaram a realizar pausas para alongamentos, perceberam que, houve um aumento em sua produtividade e na qualidade de seus produtos e no bem-estar de seus funcionários e, consequentemente a redução de gastos sociais com as LERs/DORTs. As principais doenças que acometem os garis causadas por esforço repetitivo são membros superiores e colunas, assim descritas: 82
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a) renossinovite: inflamação do tecido que reveste os tendões e atinge a classe de trabalhadores que utiliza movimentos repetitivos das mãos como por exemplo, garis, digitadores, caixas, datilógrafos, pianistas, tricoteiras, jornalistas, trabalhadores de perfuradeiras vibratórias além dos remarcadores de supermercados. A tenossinovite surge do atrito excessivo do tendão que liga o músculo ao osso. Este tendão é protegido por uma bainha que é sempre cheia de um líquido. Os movimentos repetitivos é que provocam a inflamação do tendão, causando a doença, que já está sendo considerada o mal do avanço tecnológico; b) tendinite: inflamação dos tendões: essa inflamação pode ter duas causas, que são: Mecânica – esforços prolongados e repetitivos, além de sobrecarga e Química – A desidratação, quando os músculos e tendões não estão suficientemente drenados, a alimentação incorreta e toxinas no organismo podem conduzir a uma tendinite. Ela pode ser confundida inicialmente com artrite reumatóide e, portanto, existe a necessidade de que o médico faça um bom exame no paciente para estabelecer um diagnóstico diferencial. No caso da tendinite crônica, segundo o reumatologista Miszpunter (2005) o diagnóstico em geral é mais difícil, por não haver aumento no fluido sinovial, o que requer mais cuidado nas investigações; c) epicondilite: inflamação das estruturas do cotovelo. A epicondilite lateral do cotovelo, também conhecida como cotovelo do tenista (tennis elbow), é definida como uma lesão crônica de repetição que acomete os tendões que têm origem no epicôndilo lateral do cotovelo, podendo causar alterações internas de sua estrutura e degeneração de sua matriz, impedindo a sua regeneração e maturação em tendão normal (ZOPPI FILHO et al., 2004, p. 2). d) síndrome do túnel do carpo: A síndrome do túnel do carpo é um problema comum que afeta muitas pessoas em todos os tipos de trabalhos. Os ossos do punho chamados ossos carpais formam um túnel através do qual o nervo mediano e tendões flexores correm até as mãos. O nervo mediano fornece a sensação da maioria das partes da mão e os tendões flexores permite a movimentação da mão. O trauma repetitivo no caso da síndrome do túnel do carpo pode ser decorrente a simplesmente flexionar e estender o punho. Eventualmente o movimento repetitivo do punho pode causar inchaço no túnel de carpo, pressão no nervo mediano e tendões flexores, e finalmente dor e torpor nas mãos. O túnel do carpo é um espaço restrito, elíptico, confinado ventralmente pelo retináculo dos flexores, inelástico e resistente e, dorsalmente, pela superfície anterior dos ossos do carpo. As maiores estruturas que passam pelo túnel são: quatro tendões flexores superficiais dos dedos e quatro tendões flexores profundos, tendão do flexor longo do polegar, e o nervo mediano. A incidência de Síndrome Túnel do Carpo na população geral é menor do que 1%, podendo ser encontrados, entretanto, valores acima de 15% em trabalhadores de risco, sendo a tendinite o achado mais comum. (FERNANDES; NATOUR (2005). e) síndrome do ombro doloroso: compressão de nervos e vasos em região do ombro, muito comum em esforços repetitivos causando lesão em 83
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graus diferentes. Sabendo-se que as LERs/DORTs têm característica progressiva, torna-se, portanto salutar chamar a atenção para os seus estágios evolutivos. No Brasil, há uma gama de queixas de LERs/DORT e estatísticas dos serviços de saúde públicos e em especial os de saúde do trabalhador (CEREST) mostram que em todo o país as LER/DORTs ocupam posição de destaque entre os trabalhadores. Dentre as causas mais frequentes das LERs/DORTs encontram-se a má postura, o esforço excessivo dos membros superiores, a falta de exercícios físicos para o fortalecimento dos nervos e músculos (sedentarismo), a alta repetitividade de um mesmo padrão de movimento, a compressão mecânica das delicadas estruturas dos membros superiores, a correlação com ambientes frios, ausências de pausas ou períodos de pausas insuficientes, fatores pessoais físicos (a predisposição, sedentarismo, baixa resistência) e emocionais (personalidade tensa, insegurança) e fatores organizacionais entre outros. Embora os membros superiores e particularmente as mãos sejam as estruturas afetadas com maior frequência, o pescoço e a região lombar também fazem parte do quadro (CEREST, 2010). Em um mercado cada vez mais competitivo, as pessoas, no limiar de sua reserva funcional, permanecem por muitas horas seguidas no trabalho, sem pausa, com prazos muito curtos para conclusão das tarefas, horas extras muito frequentes, o que provoca stress muscular e, consequentemente, o surgimento de doenças relacionadas ao excesso de esforço repetitivo. Vieira (1999, p. 430) e Nicoletti et. al (2003, p. 3) assim classificam essas doenças dessa forma: Estágio I: caracteriza-se pela ausência de sintomas e sinais objetivos. Não existe dor propriamente dita. Predominam as queixas vagas de desconforto e peso nos braços, que melhoram com o repouso, nos finais de semana e nas férias. Os sintomas não são nitidamente localizados e atingem áreas envolvidas na movimentação e no posicionamento dos membros superiores, como as regiões cervicotorácica e os ombros. Os objetos parecem mais pesados e existem referências a pontadas e agulhas, que, apesar de incômodas, não interferem com a produtividade. O exame clínico pode evidenciar contratura e dolorimento à palpação dos músculos cervicais e certo “empastamento’ dos músculos da cintura escapular, principalmente na por das pessoas que atingem este estágio não é bom.” Pacientes afastados do trabalho durante meses continuam sentido dor. Estágio II: a dor já é o sintoma predominante. Aparece principalmente na segunda metade de uma jornada de trabalho diário de 8 (oito) horas. É tolerável, mas começa a prejudicar a produtividade. Frequentemente, os pacientes se queixam da persistência de dor noturna. Existe referência comum à sensação de “inchação” que não apresenta os sinais objetivos da alteração mencionada. Mudanças no ritmo de produção, como ocorre nas épocas de produção mais intensa, tendem a produzir exarcebações agudas da dor. Existe também um ritmo característico de aumento da dor do co84
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meço para o final da semana. Na segunda-feira a dor é menos intensa e só aparece no final da jornada de trabalho. Do meio da semana em diante, os sintomas aparecem mais precocemente e aumentam de intensidade. Formigamento, calor e distúrbios discretos de sensibilidade tátil, como sensações de “aspereza” e “dedos grossos”, são queixas comuns nessa fase. Estágio III: a dor torna-se mais intensa, persistente e localizada. O paciente não consegue manter sua atividade profissional normal devido à dor. O repouso atenua, mas não faz a dor desaparecer completamente. Até o presente momento, o Prognóstico de recuperação funcional das pessoas que atingem este estágio não é bom. Pacientes afastados do trabalho durante meses continuam sentido dor. Estágio IV: a dor é contínua e piora com a mobilização dos segmentos afetados. Geralmente existem vários segmentos dolorosos à palpação. O estado emocional do paciente está claramente afetado. Isso faz com que suas queixas e reações aos estímulos mecânicos originados pelas manobras diagnósticas sejam desproporcionais aos achados observados pelo exame físico. Em geral a dor na coluna não é sinal de problema médico sério. A grande maioria dos casos de dor na coluna são benignos e não progressivos. A maioria das síndromes de dor na coluna são devido a inflamação, especialmente na fase aguda, a qual geralmente dura de duas semanas a três meses. Quando a dor na coluna dura mais de três meses, ou quando há mais dor na perna do que nas costas, geralmente é necessário um diagnóstico mais específico. Há várias causas para a dor na região lombar e pernas: para adultos de menos de 50 anos elas incluem prolapso ou hérnia de disco e doença degenerativa do disco; para pessoas acima de 50 as causas mais comuns são osteoartrite e estenose espinhal. As Lesões por Esforços Repetitivos (LERs) ou Distúrbios Osteomusculares (DORTs) são relacionados como a segunda causa de morbidade na população adulta em vários países, inclusive no Brasil (FREEMAN et al.,1995a). Se apresentam com frequência dores na coluna devido às características de suas atividades, pois trabalham constantemente em posturas inadequadas, sem períodos de repouso e em muitos casos serviços que demanda de esforço fisico, por exemplo o arremesso de lixo em cima de caminhões. Segundo Luduvig (1998), no tratamento das LERs/DORTa necessita-se de uma equipe multiprofissional composta por médicos que identificam o problema e coordenam o tratamento; fisioterapeuta responsável pela aplicação de exercícios para reabilitar movimentos comprometidos; terapeuta ocupacional responsável pela adaptação do local de trabalho ao tipo físico da pessoa e psicólogo ou psiquiatra que tenta detectar a causa de fatores como angústia e ansiedade no trabalho. Os garis desempenham atividades laborais desgastantes, com grande esforço físico e posturas inadequadas. Além desses fatores, existe normalmente a dupla jornada de trabalho, visto que grande parte desses profissionais é do gênero feminino. Para um aprimoramento da qualidade de 85
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vida desses profissionais devem-se ocorrer algumas adaptações ergonômicas, tais como a promoção de pausas regulares, a utilização de vassouras e pás mais adequadas, a adoção da prática de exercícios físicos no ambiente do trabalho (ginástica laboral) e o estímulo à prática regular esportiva. Entretanto, para alcançar os benefícios associados à saúde corpórea, os exercícios devem contemplar principalmente os componentes que envolvem a aptidão física relacionada à saúde (flexibilidade, força muscular, condicionamento aeróbico e composição corporal). Apresentação e análise dos dados Estudos focados nas enfermidades dos profissionais de limpeza urbana são inegavelmente valiosos, especialmente na elaboração de medidas combativas aos problemas de saúde, fornecendo dados para que sejam priorizas medidas preventivas. Os dados obtidos foram obtidos por meio de questionário aplicado entre garis no mês de dezembro de 2011, no municipio de Teixeira de Freitas, BA. Os dados da Secretaria de Infraestrutura de Teixeira de Freitas, BA, também serviços quantitativamente para descrever as variáveis e ampliar o conhecimento sobre o fenômeno estudado, tais como sexo, idade. A maior parte desses trabalhadores, em 2011, pertencia ao sexo feminino (70%) entre os garis, na ocasião em que os dados foram coletados, parte desses trabalhadores são de uma empresa de caráter particular, terceirizada pelo departamento da Prefeitura Municipal, responsável pela urbanização e saneamento da cidade, e os demais são concursados pelo municipio que realizam as funções de varrição e coleta de lixo, bem como do recolhimento de entulhos de logradouros públicos, feiras livres e das ruas (Secretaria de Infraestrutura de Teixeira de Freitas, BA, 2011). Mais de 50% dos garis estão na faixa etária entre 25 a 45 anos, e realizam trabalho externo (rua), não tendo na grande maioria um local fixo para o trabalho, sendo distribuído por um encarregado (coordenador) diariamente o local a ser limpo, prática comum para esses trabalhadores. A incerteza começa na composição da equipe e na distribuição dos roteiros de coleta, quebrando a relação de apropriação das condições de trabalho que eles expressam como “meu trecho” (SECRETARIA DE INFRAESTRUTURA DE TEIXEIRA DE FREITAS, BA, 2011). Existe também a prática de desvio de função para quem tem “conhecidos” na prefeitura (prática não legalizada), que gera insatisfação aos demais trabalhadores. No que se refere ao grau de instrução, a maior parte dos trabalhadores (60%) concluiu apenas o ensino básico, enquanto outros 32% concluíram o ensino médio, como é comum em trabalhos que demandem de mais do esforço físico do que da habilidade intelectual para o desempenho das funções diárias que são propostas. Isso implica ressaltar que o conhecimento é também fundamental para os garis uma vez que estão traba86
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lhando com limpeza pública e encontrarão lixo com material biológico entre outros, em sua composição e o reconhecimento ajudará na prevenção de acidentes. Uma pequena parcela (8%) informou ter concluído o ensino superior, o que pode deveria ser comprovado e analisado em outra circunstãncia, diante do tipo de atividade desenvolvida pelos sujeitos estudados. Com relação ao tempo de serviço, constatamos que a grande maioria dos efetivos tem menos de três anos na empresa (Prefeitura Municipal de Teixeira de Freitas) e quando analisados os contratados não foi diferente. Isso se justifica pela mudança de contrato com a empresa particular a cada mandato de um prefeito. A prática de concursos vem sendo regularizada, após liminar judicial em 2004. Mais detalhadamente, o perfil dos trabalhadores se apresenta assim: 12%, menos de um ano; 28%, um a dois anos; 36%, de dois a três anos e 24%, mais de três anos. Com relação ao atendimento da empresa sobre o fornecimento de EPIs, conforme preconizado na NR, constatou-se que 90% não recebem equipamentos de proteção individual regularmente, podendo favorecer o acontecimento de acidentes de trabalho (Secretaria de Infraestrutura Teixeira de Freitas- BA, 2011). Nesse sentido, os trabalhadores manifestaram da seguinte forma: [...] A melhor coisa que eles tinham que fazer é dar material que a gente precisa para trabalhar. A roupa, o sapato, a luva e protetor solar. Além desses, a gente não pode mais usar equipamento nenhum, por causa dos movimentos que a gente faz. Eles não dão capa para a gente trabalhar, se estiver chovendo a gente trabalha embaixo de chuva. [...] as costas no final do dia estão doendo... precisamos pegar latões grandões (200 litros) e que não socassem bastante o lixo, para não ficar tão pesado, ainda mais quando chove ele enche de água e fica mais pesado.1
Nessa discussão, os trabalhadores evidenciam a necessidade de medidas preventivas especiais e a existência de um serviço de atenção à saúde do trabalhador, que contemple não só a atenção médica básica, como também treinamento em primeiros socorros relacionados à exposição ao risco. Os trabalhadores percebem que os cuidados da empresa estão voltados somente à limpeza, negligenciando a sua saúde e assim se manifestam: Equipamentos, materiais de forma adequada para o nosso uso. Eu trabalho na coleta hospitalar, tem que ter uma roupa especial; luva,uniforme... porque a gente entra em certos hospitais que existe muito tipo de infecção.
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Todos os depoimentos descritos neste estudo foram feitos de forma oral, por meio de entrevista com pergunta fechada.
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Já tentamos muitas vezes para ver se consegue algum dia, por a lei em pratica. Até agora, trabalhamos sem uniforme muitas vezes ou com roupa comum e chega em casa tem que separar essa roupa. A roupa a gente leva para lavar sujeira pra casa. Já furei até o dedo numa agulha que estava dentro do lixo comum. Assistência médica melhor para os funcionários, se a gente não tiver bem de saúde não vai adiantar a gente fazer um certo tipo de esforço, que a gente não vai conseguir trabalhar no pesado. Mais treinamento! mais conhecimento ao gari, o cara só sabe que vai pegar o lixo. Tem gente, que trabalha com lixo contaminado.
Durante as observações do processo de trabalho, verificou-se que os trabalhadores, nem sempre trajavam uniforme completo, ou seja, apresentavamse sem botas, sem luvas, sem boné, com calça e blusa em estados precários. Com relação à doença relacionada ao trabalho, em 2011, constamos que 78% dos trabalhadores sentem-se culpados ou responsáveis pelos acidentes sofridos. Nas entrevistas para preenchimento dos questionários alguns trabalhadores se autoidentificaram como responsável pelos acidentes que sofreram (SECRETARIA DE INFRAESTRUTURA TEIXEIRA DE FREITAS, BA, 2011). É interessante notar que a maioria desses trabalhadores divide a sua responsabilidade com a empresa, na percepção de causalidade dos acidentes, porque sabem que não devem trabalhar sem EPI (Equipamento de Proteção Individual) e ou que foram negligentes em relação à sua segurança. Importante ressaltar que as normas regulamentadoras (NRs), em particular as NR6 e NR26, preveem a obrigatoriedade de fornecimento de EPIs a seus empregados sempre que as condições de trabalho o exigir e a sinalização de segurança nos ambientes de trabalho. Quanto às incidências de Lesão/DORT em membros superiores em garis, no ano de 2011, os dados da Secretaria de Infraestrutura Teixeira de Freitas- BA, 2011, demonstram que mais da metade dos trabalhadores como garis (57%) sofreu lesão nas mãos, 10% dor no cotovelo e 33% dor no ombro reafirmando a necessidade do uso adequado de EPIs, nesse caso de luvas de proteção. Porém, o excesso de peso também tem sido um problema no dia a dia, como relata um trabalhador: Precisamos pegar latão pesado de 200 litros... tem que ter quatro pessoas para levantar. Tem de tudo um pouco (vidro, lata que corta e machuca). A falta de segurança é grande na hora de carregar o lixo. Às vezes uma luva furada, uma bota soltando a sola. Você pede a Deus que não aconteça nada. Atrás do caminhão é muito perigoso porque o motorista nem sempre vê a gente agachado pegando lixo.
Na avaliação de campo, a não conformidade na utilização dos EPIs foi evidente, em decorrência de a Administração Pública disponibilizar apenas e quando necessário, uniformes, bonés com logomarca da gestão 88
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atual e luvas. Os calçados antiderrapantes, máscaras e coletes sinalizadores nunca foram adotados por nenhum gestor municipal, assim os garis ficam sujeitos a riscos diversos e à morbidade coletiva. Quanto às lesões dos membros nota-se que 57% dos entrevistados tiveram algum tipo de lesão nas mãos. Isto significa que, esses entrevistados estão sujeitos a afastamento do trabalho ou aposentadoria prematura por futuras complicações à integridade física dos mesmos em decorrência dos serviços sem o uso de EPIs necessários. Quanto à Lesão/DORT em membros inferiores em garis, no ano de 2011, 5% garis apresentavam dor na coluna cervical, 68% na coluna lombar e 27% na coluna lombosacra (Secretaria de Infraestrutura Teixeira de Freitas, BA, 2011). Quanto à lesão/DORT em membros inferiores em garis, no ano de 2011, 20% apresentaram dor/lesão nas pernas, 60% nos pés e apenas 20% não apresentaram (Secretaria de Infraestrutura Teixeira de Freitas, BA, 2011). A prevenção através da ginástica laboral tem sido apontada como uma estratégia de ação importante tanto no caráter preventivo de sintomas do sistema músculo-esquelético como na integração social de pessoas envolvidas em atividades laborais afins. Para Lima (2005), esta atividade consiste na prática de exercícios físicos específicos, durante o expediente de trabalho, onde o relaxamento e alongamento muscular terão a finalidade de prevenir sintomas provenientes de doenças ocupacionais, como os distúrbios osteomusculares relacionados ao trabalho (DORT), os quais podem ser caracterizados por encurtamentos e estiramentos musculares, tendinites, lombalgias, etc. e a manutenção do bem estar físico e mental por meio de atividades variadas. Ela pode ser realizada antes do expediente de trabalho, considerada Ginástica Laboral Compensatória, durante o trabalho, caracterizada como Ginástica de Pausa e após as atividades laborais, denominada Ginástica de Relaxamento. É preciso que os serviços públicos implantem a Norma Regulamentadora – NR4, que trata de Serviços Especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT), que estabelece a obrigatoriedade das empresas públicas e privadas de promover a saúde e proteger a integridade do trabalhador no local de trabalho, embasados juridicamente pelo artigo 162 da Consolidação de Leis Trabalhistas ( CLT). Na tentativa de entender um pouco mais sobre a profissão dos sujeitos estudados procuramos compreender a sua percepção: Profissão boa, ela garante o sustento da minha família. Quanto a isso, tudo bem. Meu problema está nesses acidentes que a gente pode sofrer. As pessoas quando jogam lixo não pesam que a gente vai ter que lidar com isso depois. Estou satisfeito, porque o que tenho é um trabalho como outro qualquer... sou concursado. Estou construindo minha casa, graças a Deus.
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Fui criado na roça e não tive estudo, para mim é um bom trabalho. É da onde eu tiro o sustento da família.
Apesar de estarem satisfeitos, essa categoria de trabalhadores sente a discriminação da população em relação ao seu trabalho, como bem colocado no relato a seguir: Eles discriminam, eles olham para o gari como se não fosse gente ali. Eles não sabem que o gari é um homem ou uma mulher igual a eles. Uma vez um amigo meu que passava na rua me viu trabalhando num carro de lixo, eu falei com ele e ele não respondeu, ai me dei conta do preconceito contra a gente. As pessoas têm nojo da gente, acham que a gente tem uma doença contagiosa. A gente entra no ônibus, o pessoal se afasta da gente.
Esse sentimento de inferioridade pode causar sofrimento mental desses trabalhadores, de duas formas: de um lado, a consciência do risco no trabalho, a impossibilidade de romper a precariedade das interações trabalho e ambiente em que a sua própria “sujeira” é fator decisivo e de outro, a necessidade de descarregar frustrações e a agressividade podem induzir o uso de bebidas alcoólicas, como forma de aliviar a tensão interna, muito comum nesse meio, aumentando a possibilidade de um acidente de trabalho. Aliados ao esforço físico, esses traalhadores enfrentam ainda o preconceito e o estereótipo, sobretudo por lidarem com lixo, e são considerados repugnantes pela sociedade. O que, aos poucos, mina a sua autestima possibilitando que eles próprios passam a reproduzir o discurso da desqualificação social. Considerações Finais Concluímos que o trabalho dos garis é considerado insalubre, em decorrência dos agentes biológicos presentes nos lixos recolhidos e materiais perfuro-cortantes realizado em praças, ruas e demais logradouros públicos. O que provoca a submissão dos trabalhadores ao trabalho que demanda de esforço físico repetitivo (varrer, coletar embalagens, etc..) a variações climatológicas, ruídos, poeiras e outros agentes agressores, que lhes podem favorecer a ocorrência de enfermidades e acidentes de trabalho. Constatamos que parte dos acidentes foi causada por objetos cortantes e/ou perfurantes, excesso de esforço físico dos trabalhadores. As partes do corpo mais agredidas foram os membros superiores, seguidos dos inferiores. Em decorrência das informações prestadas pelos garis, observou-se que não utilizam os EPIs adequadas (luvas, macacão, sapatos apropriados , etc..) para realizar o seu trabalho. Nesse sentido, recomendamos que se proporcione maior atenção ao trabalho dos garis e lhes forneçam luvas e calçados adequados, roupas e demais EPIs, para a realização de seu serviço. 90
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Necessário se faz realizar campanhas no município estudado a fim de orientar a população a separar adequadamente os resíduos, não jogando objetos cortantes/perfurantes e os lixos na rua. Faz-se necessário, também, o desenvolvimento de um trabalho no sentido de produzir entre os trabalhadores a percepção da importância de sua profissão para a sociedade e a elevação da autoestima. Assim, a sociedade precisa compreender que a problemática da limpeza publica não é só responsabilidade dos garis, da ação municipal, envolve toda uma cadeia de ações com mudanças de hábitos, trabalhos de educação ambiental e mobilização individual e coletiva. Referências BRASIL, Ministério do Trabalho. Portaria MT no 3.214, de 8 de junho de 1978. NR-15. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p.10423, 6 jul., Suplemento. 1978a. BRASIL, Ministério do Trabalho. Portaria MT no 3.214, de 8 de junho de 1978. NR-17. Diário Oficial da União, Brasília, DF, p.10423, 6 jul., Suplemento. 1978b. BRASIL, Ministério da Previdência Social. Quantidade de acidentes de trabalho registrados, por motivo, segundo a Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). [Tabela]. Disponível em: <www.previdenciasocial.gov.br/docs>. Acesso em: 15 de set. 2011. FERREIRA JR., Y. M. A atuação da medicina do trabalho em face da utilização dos equipamentos de proteção individual. Revista Brasileira de Saúde Ocupacional, 1985. FERREIRA, A.B.H. Minidicionário Aurélio da língua portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. FERREIRA, J. A. Lixo hospitalar e domiciliar: semelhanças e diferenças: estudo de caso no município do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado-Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 1997. FONTOURA, I. P.; SABATOVSKI, E. Legislação previdenciária. Curitiba: Juruá, 1997. LIMA, V. Ginástica laboral: atividade física no ambiente de trabalho. 2. ed. São Paulo: Editora Phorte, 2005. LUDUVIG, M. M. DORT: Saúde é Vital, n. 174, p. 46-59, mar. 1998 SANTOS, I. V. A. Estudo dos riscos de acidentes de trabalho em coletores de lixo. São Paulo: ANAP. 2008. SILVEIRA, E. A.; ROBAZZI, M. L. C.; LUIS, M. A.V. Varredores de rua: acidentes ocorridos na cidade de Ribeirão Preto, Estado de São Paulo, Brasil. Rev. Latinoam. Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 6, n.1, p. 71-79, Janeiro 1998. GOMES, A. Doença profissional, do trabalho ou ocupacional. Revista CIPA, São Paulo, n. 271, p. 60-62, 2002. GUEDES, D. P; GUEDES, J. E. P.. Exercício físico na promoção da saúde. Londrina: MidioGraf, 1995. 91
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Fisioterapia A INFLUÊNCIA DA TÉCNICA WATSU® NO QUADRO DE DOR EM MULHERES COM LOMBALGIA The influence of technical watsu under pain in women withlow back pain
Rhollander B. Aride
Mestrando em Ensino de Ciências da Saúde e do Ambiente (UNIPLI/Anhanguera), Especialista em Fisioterapia Traumato-ortopédica (UCB) e Docente do Centro Universitário São Camilo, ES
Natália Grancieri Mateus Candeia Gianizelli
Graduandos em Fisioterapia (Centro Universitário São Camilo, ES) Resumo: Entende-se por lombalgias todas as condições de dor localizadas nas regiões inferiores do dorso, entre o último arco costal e a prega glútea. O WATSU® é definido como uma técnica que promove relaxamento físico e mental. A pesquisa é um estudo de campo de caráter qualiquantitativo, realizada com pacientes que relatavam possuir lombalgia. Foram realizadas duas sessões por semana, durante 06 meses. Os atendimentos eram realizados entre 40 a 60 minutos. Antes do tratamento 75% dos pacientes relatavam sentir dor no grau 10 e 25% no grau 5. Depois do tratamento, todos os pacientes relataram diminuição da dor, sendo 25% com grau 2, 25% com grau 4,25% com grau 7 e 25% com grau 8. A presente pesquisa foi de grande importância na comprovação da utilização da técnica de WATSU® na diminuição no aspecto dor de mulheres que sofrem de lombalgia. Palavras-chave: Watsu. Dor. Lombalgia. Abstract: It is understood by all conditions of backache pain localized in the lower regions of the back, between the last rib and the gluteal fold. The WATSU ® is defined as a technique that promotes physical and mental relaxation. The research is a field study of character qualiquantitativo conducted with patients who reported having low back pain. There were two sessions per week for 06 months. The treatments were conducted between 40 to 60 minutes. Before treatment 75% of the patients reported pain scales 10 and 25% grade 5. After treatment all patients reported decreased pain, 25% with grade 2, 25% grade 4, grade 7 with 25% and 25% with grade 8. This research was of great importance in proving the use of the technique WATSU® in reducing the pain aspect of women who suffer from low back pain. Keywords: Watsu. Pain. Lumbago.
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Introdução O termo lombalgia refere-se à dor na região inferior do dorso, desde o arco costal até a prega glútea (COUTO, 2007). Essas dores podem ser com ou sem irradiação para os membros inferiores. São reconhecidas e estudadas há séculos e, atualmente, aumentou a sua incidência (CRUZ, MATOS, BRANCO, 2003). A prevalência da lombalgia é de 59% no Reino Unido, sendo que é mais comum em pessoas entre 45 e 59 anos de idade. Na Suíça, destacase maior prevalência em mulheres quando comparado aos homens. Nos Estados Unidos da América é causa frequente para consulta médica e hospitalizações (PONTE, 2005). A lombalgia trata-se de várias manifestações dolorosas que acometem a região lombar, lombrosacral e sacroilíaca. São vários os fatores de risco que podem gerar uma lombalgia, estando entre eles: acometimentos degenerativos ou traumáticos no disco intervertebral ou no corpo vertebral, sobrecarga sobre a região lombar em atividades laborais antiergonômicas, movimentos repetitivos, falta de preparo físico, obesidade, tabagismo e até fatores psicológicos e mentais, como: depressão e ansiedade (OCARINO et al, 2009). Cerca de 98% das lombalgias ocorrem por lesão, geralmente, temporária, de músculos, ligamentos, ossos ou discos vertebrais, porém suas causas ainda não estão bem definidas. A lombalgia se tornou um problema de saúde pública devido ao que pode acarretar como impossibilidade para o trabalho, hospitalizações, cirurgias, que são fatores que acarretam custos para os cofres públicos (CARAVIELLO et al., 2005; CRUZ, MATOS, BRANCO, 2003; PONTE, 2005), visto ainda que a ocorrência da lombalgia é alta, sendo que em adultos cerca de 80% terão em algum momento da vida, podendo ter até mais de uma crise de dor (COUTO, 2007; OCARINO et al., 2009). A dor crônica poderá acontecer em 10 a 20% dos casos, sendo essa definida como dor e/ou incapacidades persistentes por mais de três meses e de origem heterogênea (COUTO, 2007). Segundo Cruz, Matos e Branco (2003), é rápida a recuperação da dor, mesmo quando esta é intensa, apesar de poder ter recorrência e mesmo se houver também há chances de boa recuperação. De acordo com Monteiro et al. (2007), é necessário um instrumento que seja capaz de avaliar os indivíduos com lombalgia antes e depois de um tratamento, para verificar as melhoras que se obteve. Apesar de algumas modalidades terapêuticas não estarem comprovadas cientificamente, algumas mais utilizadas são: uso de medicações analgésicas, AINH, miorrelaxantes, meios físicos e cinesioterapia (CARAVIELLO et al., 2005). Torna-se mais difícil traçar um plano de tratamento para aqueles pacientes que estão mais acometidos, devido as deformidades que já possuem. Porém, uma conduta de tratamento fisioterapêutico que tem sido 94
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bem aceita pelos pacientes e recomendada pelos profissionais da área é a hidroterapia (DORNELAS, 2011). No meio aquático encontram-se benefícios para a realização dos exercícios que não são encontrados em solo, como diminuição da sobrecarga articular, menor risco de lesões e quedas, levando-se e, conta os sintomas que o paciente pode apresentar, como dor, desequilíbrio, fraqueza muscular, obesidade, desordens da marcha etc. (ACOSTA, 2010). Como em todo programa de saúde, a hidroterapia objetiva o bem estar social do indivíduo. Quando passamos por dificuldades, o organismo tende a se desorganizar e essa desarmonia pode trazer sérias consequências físicas e/ou psíquicas (ELSNER, TRENTIN, HORN, 2009). A hidroterapia é uma forma de tratamento aplicado na piscina aquecida, que utiliza movimentos específicos dentro da água, com objetivo de promover, manter e reabilitar a saúde dos pacientes. Como uma modalidade de reabilitação possui uma longa história e é tão importante atualmente quanto foi no passado. Hoje, devido ao amadurecimento do recurso, os fisioterapeutas são encorajados a utilizar a água, aproveitando ao máximo suas qualidades únicas (CAMPION, 2000). O principio físico da água denominado empuxo (pressão contrária, de baixo para cima, igual ao peso do liquido deslocado – diminui o estresse gravitacional, beneficia o tratamento do paciente pois permite que se realize movimento em forças gravitacionais reduzidas, aliviando o estresse sobre as articulações (DORNELAS, 2011). Além desse efeito, devemos citar a flutuação, a pressão hidrostática, a turbulência, a diminuição das zonas de sustentação, a refração e a temperatura (ACOSTA, 2010). Dentre os principais efeitos terapêuticos da água estão o alívio da dor, diminuição dos espasmos, relaxamento muscular, aumento da amplitude de movimentos, aumento da circulação sanguínea, fortalecimento muscular, aumento da resistência muscular e melhora da autoestima (DIAS et al., 2003). Além disso, o meio aquático é considerado seguro e eficaz na reabilitação, pois a água age simultaneamente nas desordens musculoesqueléticas e melhora o equilíbrio (ACOSTA, 2010). Esse processo terapêutico foi criado nos anos 60 por Harold Dull, terapeuta Americano e Mestre de Zen Shiatsu, que registrou a marca Watsu®. O Watsu® está bem disseminado no mundo e suas aplicações são amplas. Para trabalhar com esta técnica é necessário participar de cursos e vivências conferidos pela WABA (World Aquatic Bodywork Association) (CANTOS, SCHÜTZ, ROCHA, 2008; CANTOS et al., 2008). O Watsu® é definido como uma técnica de massagem e bem–estar, que utiliza água aquecida e uma variedade de alongamentos e movimentos, de forma que o paciente flutua sobre a água, podendo relaxar o corpo e a mente, permitindo o alívio da dor e do estresse (CANTOS, SCHÜTZ, ROCHA, 2008; CANTOS et al., 2008). Segundo Acosta (2010), a força do empuxo da água diminui a força 95
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da gravidade facilitando execução de movimentos, os efeitos combinados destas duas forças (empuxo e gravidade) facilitam o movimento rotacional, flexo - extensão e alongamentos muito utilizados no método Watsu. O Watsu® tem o intuito de desbloquear os canais de energia do corpo, podendo ter seus efeitos ampliados dentro da água aquecida, uma vez que a associação de calor e flutuação permite uma diminuição das tensões físicas e emocionais (DULL, 2001). Além dos benefícios físicos resultantes dos movimentos e alongamentos facilitados pela utilização da água morna, o poder do Watsu em reduzir o estresse se baseia na eficiência em relação às condições nas quais o estresse está implicado e em sua crescente popularidade entre o público em geral (ACOSTA, 2010). Atualmente, o Watsu® é praticado em clínicas, spas, por terapeutas corporais, favorecendo não apenas o paciente praticante, como também o terapeuta, numa profunda troca energética. É recomendado para todos os tipos de pessoas (crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos) em casos de estresse físico e mental, medos, bloqueios emocionais, doenças cardiovasculares, problemas neurológicos, ortopédicos, osteoporose e outros (CANTOS, SCHÜTZ, ROCHA, 2008; CANTOS et al, 2008). Métodos A pesquisa é um estudo piloto de relato de caso, com caráter qualiquantitativo, realizada na piscina de hidroterapia do Centro Universitário São Camilo – ES, com pacientes que relataram possuir lombalgia. Entre os fatores de inclusão para pesquisa temos: (1) pacientes cadastrados no Centro de Reabilitação do Centro Universitário São Camilo – ES; (2) pacientes que atenderam o contato por telefone, (3) pacientes que sentem lombalgia, (4) Ser do sexo feminino. E entre os fatores de exclusão temos: (1) pacientes que não possuíam cadastro no Centro de Reabilitação do Centro Universitário São Camilo – ES; (2) pacientes que não atenderam o contato por telefone, (3) pacientes que não sentem lombalgia, (4) Não do sexo feminino. A seleção dos pacientes realizou-se no Centro de reabilitação do Centro Universitário São Camilo – ES, com os pacientes que se enquadravam dentro dos critérios de inclusão e exclusão. Os pacientes estavam cientes dos objetivos da pesquisa e que as análises não causariam desconforto ou risco à saúde deles. Após o esclarecimento de dúvidas, os pesquisadores realizaram a leitura e aplicação do termo de consentimento livre. Também realizaram anamnese, avaliação postural, aplicação da escala analógica da dor e aplicação de um questionário contendo perguntas sobre a relação da dor provocada pela lombalgia com o sono dos pacientes. Os horários de cada paciente fioram agendados, tendo sido realizadas as seções duas vezes por semana, durante 02 meses. Os atendimentos eram realizados entre 40 a 60 minutos. O tratamento adotado foi uma técnica de Fisioterapia aquática de96
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nominada Watsu® . Antes de entrar com o paciente na piscina, era realizada a verificação dos sinais vitais. Os atendimentos começavam com a Fisioterapeuta levando o paciente até dentro da piscina, encostando as costas do paciente na parede. No primeiro dia, o paciente obtinha uma explicação de como o tratamento iria ocorrer. O sujeito e o pesquisador ficavam frente a frente com os ombros submersos na água e com uma leve flexão de membros inferiores (MMII). O sujeito dava um passo para frente junto ao pesquisador, (com uma rotação de 180º) que o colocava em decúbito dorsal, flutuando sobre a água. Eram realizados os movimentos básicos do Watsu®, como dança da respiração, balanço da respiração, liberando a coluna vertebral, ninar (sanfona), moinho (sanfona rotativa) rotação da perna de dentro, rotação da perna de fora, flutuar livre e pêndulo. Após o tratamento, foram realizadas uma nova anamnese, avaliação postural, aplicação da escala analógica da dor e aplicação de um questionário contendo perguntas sobre a relação da dor provocada pela lombalgia com o sono dos pacientes. Os dados colhidos por meio dos prontuários foram analisados no programa Excel para a construção dos resultados e dos gráficos. Resultados e Discussão A amostra deste estudo contou com 4 indivíduos do sexo feminino, tendo as seguintes idades: 2 pacientes com 46 anos, 1 com 69 anos e 1 com 78 anos. Na anamnese, verificou-se que 3 pacientes foram afastados do trabalho devido à dor lombar e todos disseram que a dor prejudica de alguma forma seu convívio social. Com a aplicação da técnica de Watsu® nos pacientes com lombalgia, pôde-se perceber por meio da escala analógica da dor melhora após o tratamento. Antes do tratamento 75% dos pacientes relatavam sentir dor no grau 10 e 25% no grau 5 (conforme o Gráfico 1). Depois do tratamento todos os pacientes relataram diminuição da dor, sendo 25% com grau 2, 25% com grau 4, 25% com grau 7 e 25% com grau 8 (conforme o Gráfico 2). Antes do tratamento com Watsu
80% 60% Grau 10 - (75%)
40%
Grau 5 - (25%)
20% 0%
Gráfico 1: Escala analógica da dor
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Depois do tratamento com Watsu 25% 20% 15%
Grau 2 - (25%)
10%
Grau 7 - (25%)
Grau 4 - (25%) Grau 8 - (25%)
5% 0%
Gráfico 2: Escala analógica da dor
Antes do tratamento de hidroterapia com a técnica de Watsu® , durante o sono 25% das entrevistadas relataram muita dor, porém suportável, 25% dor razoável e 50% dor insuportável (conforme o Gráfico 2). Após o tratamento 50% relatou muita dor, porém suportável, 25% pouca dor e 25% dor razoável (conforme o Gráfico 3). Antes do tratamento com Watsu 50% 45% 40% 35% 30%
Muita dor porém suportável - (25%)
25%
Dor razoável - (25%)
20%
Dor insuportável - (50%)
15% 10% 5% 0%
Gráfico 3: Durante o seu sono você sente
Quando foi analisado o que o paciente sentia ao permanecer deitado (a) em uma cama, antes do tratamento 25% afirmaram sentir dor razoável e 75% dor insuportável (conforme Gráfico 5), enquanto após o tratamento 25% afirmaram sentir muita dor, porém suportável, 25% pouca dor e 50% dor insuportável (conforme Gráfico 6) . Antes do tratamento com Watsu
80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0%
Dor razoável - (25%) Dor insuportável - (75%)
Gráfico 5: Você consegue permanecer deitado (a) em uma cama com
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Depois do tratamento com Watsu 50% 45% 40% 35%
Muita dor, porém suportável (25%)
30% 25%
Pouca dor - (25%)
20% 15%
Dor insuportável - (50%)
10% 5% 0%
Gráfico 6: Você consegue permanecer deitado (a) em uma cama com
Em relação ao o que os pacientes sentiam quando acordavam, antes do tratamento 25% dizem que sentiam pouca dor, 25% dor razoável, 50% dor insuportável (conforme o Gráfico 7). Após a intervenção 25% sentiam pouca dor, 25% muita dor, porém suportável e 50% dor razoável (conforme o Gráfico 8). Antes do tratamento com Watsu
50% 40% 30%
Pouca dor - (25%) Pouca dor - (25%)
20%
Dor insuportável - (50%)
10% 0%
Gráfico 7: Você acorda com
Depois do tratamento com Watsu 50% 45% 40% 35% 30%
Pouca dor - (25%)
25%
Muita dor, porém suportável - (25%)
20%
Dor razoável - (50%)
15% 10% 5% 0%
Gráfico 8: Você acorda com
Em relação ao que os pacientes sentiam ao levantar de uma cama, antes do tratamento com Watsu®, 25% afirmam sentir muita dor, porém suportável, 25%, pouca dor e 50% dor insuportável (conforme Gráfico 9). Após o tratamento 25% afirmam sentir muita dor, porém suportável, 25% pouca dor, 25% dor razoável, 25% dor insuportável (conforme Gráfico 10).
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Antes do tratamento com Watsu 50% 45% 40% 35%
Pouca dor - (25%)
30%
Muita dor, porém suportável (25%)
25% 20%
Dor insuportável - (50%)
15% 10% 5% 0%
Gráfico 9: Ao levantar-se de uma cama você sente
Depois do tratamento com Watsu 25% 20%
Pouca dor - (25%)
15%
Muita dor, porém suportável (25%)
10%
Dor razoável - (25%) Dor insuportável - (25%)
5% 0%
Gráfico 10: Ao levantar-se de uma cama você sente
A técnica de Watsu® demonstrou como uma ferramenta excelente e eficaz, dentro das terapias aquáticas, no tratamento da lombalgia em mulheres. O meio aquático e aquecido também favorece a diminuição da dor, mais a técnica de Watsu® faz melhorar muitos outros aspectos como a melhora do sono e na melhora da Qualidade do sono relatada pelas pacientes. Conclusão A presente pesquisa foi de grande importância na comprovação da utilização da técnica de Watsu® na diminuição no aspecto dor de mulheres que sofrem de lombalgia. Também houve a descoberta de relatos das pacientes na melhora do sono e da qualidade do sono, como há poucos artigos na literatura referindo a este aspecto, fica o propósito de realizar outra pesquisa sobre o sono e a qualidade do sono, utilizando um número de pacientes maior. Referências ACOSTA, Antonio Maria Cardozo. Comparação da utilização das técnicas Watsu® e relaxamento aquático em flutuação assistida nos sintomas de ansiedade, depressão e percepção da dor. Universidade Metodista de São Paulo – Faculdade de Psicologia. São Bernardo do Campo, 2010. CAMPION, M. Reid. Hidroterapia: princípio e prática. SP: Manole, 2000. CANTOS, Geny Aparecida Cantos; SCHÜTZ, Rodrigo; ROCHA, Maria Edinéia. Associação das técnicas de Watsu e Halliwick com a Biodanza® Aquática, como forma de melhorar o estresse psicológico de pacientes 100
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Ictiologia Nota prévia sobre a alimentação de Bagre bagre (Linnaeus, 1766) (Actinopterygii: Ariidae) na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia) Previous note about feeding of Bagre bagre (Linnaeus, 1766) (Actinopterygii: Ariidae) in Malhado beach, Ilhéus (Bahia)
Jailza Tavares de Oliveira-Silva
Mestrado em Ecologia e Biomonitoramento pela Universidade Federal da Bahia. Atualmente é bióloga da Universidade Estadual de Feira de Santana. Tem experiência na área de Ecologia. Atuando principalmente nos seguintes temas:ICTIOFAUNA, estrutura de comunidade, Baía de Todos os Santos, Bahia. E-mail: jtosilva@yahoo.com.br
Paulo Roberto Duarte Lopes
Mestre em Ciências Biológicas (Zoologia) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, Professor assistente da Universidade Estadual de Feira de Santana. E-mail: andarilho40@gmail.com
Ideval Pires Fernandes
Mestre em Biologia, Prof. assistente da Universidade Estadual de Santa Cruz
Resumo: São apresentados aspectos da alimentação de Bagre bagre (Actinopterygii: Ariidae) com base em 27 exemplares capturados entre outubro de 2004 e agosto de 2006 na Praia do Malhado, município de Ilhéus, litoral sul do estado da Bahia (nordeste do Brasil). Actinopterygii Teleostei (peixes) e Crustacea Decapoda Dendrobranchiata (camarões) foram as principais categorias alimentares em ocorrência e em número. Palavras-chave: Alimentação. Bagre bagre. Bahia. Abstract: Aspects of feeding of Bagre bagre (Actinopterygii: Ariidae) are presented with basis in 27 specimens gathered between October, 2004 and August, 2006 in Malhado beach, Ilhéus municipality, state of Bahia south littoral (northeastern of Brazil). Actinopterygii Teleostei (fishes) and Crustacea Decapoda Dendrobranchiata (shrimps) wase the principal food item in ocurrency and in number. Key words: Feeding. Bagre bagre. Bahia.
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Introdução Bagre bagre (Linnaeus, 1766) distribui-se do sul do Caribe ao sul do Brasil e atinge um comprimento máximo de 550,0 mm; é uma espécie marinha, comum próximo à boca de rios até 50,0 m de profundidade (geralmente menos) e também entra em estuários; possui importância comercial como alimento (FIGUEIREDO, MENEZES, 1978; TAYLOR; MENEZES in FISCHER, 1978; CERVIGÓN, 1991; ACERO in CARPENTER, 2002). Material e métodos A Praia do Malhado (Figura 1), localizada na zona urbana da sede do município de Ilhéus, está sob influência do Porto do Malhado (o maior do sul da Bahia) e não é própria para banho devido aos dejetos que recebe através de um canal que corta bairros da cidade mas sustenta, através da captura de peixes e crustáceos, vários pescadores artesanais e agregados. Logo após a captura, os peixes foram congelados até o momento de serem examinados para identificação em nível genérico e específico (com base em Figueiredo e Menezes (1978), fixados em formol 10% e transferidos para o conservante álcool 70%. Cada exemplar teve o comprimento total (CT) determinado (segundo a definição de Figueiredo e Menezes (1978) e foi dissecado para retirada do estômago e exame do seu conteúdo sob microscópio estereoscópico e das gônadas para identificação do sexo (quando possível) através do seu exame direto. Definições de freqüência de ocorrência e numérica bem como a determinação do volume de alimento ingerido (realizada através do deslocamento de água em uma proveta graduada com precisão de 0,1 ml) seguem a proposição de Fonteles Filho (1989). Resultados Foram examinados 27 exemplares de B. bagre coletados entre outubro (6 indivíduos) e dezembro de 2004 (6), novembro de 2005 (3) e agosto de 2006 (12) cujos CTs variaram entre 80,0 e 266,0 mm. Foram reconhecidas 10 fêmeas (CT variando entre 143,0 e 208,0 mm) e 6 machos (CT variando entre 114,0 e 191,0 mm) sendo que em 11 indivíduos o sexo não pode ser determinado (CT variando entre 80,0 e 266,0 mm). Foram identificadas 6 categorias alimentares cujas respectivas freqüências de ocorrência e numérica são apresentadas na Tabela 1. Actinopterygii Teleostei (peixes) e Crustacea Decapoda Dendrobranchiata (camarões) se destacaram tanto em ocorrência como em número (Tabela 1). Restos de vegetais superiores (ocorrência de 3,7%) são considerados como acidentais tendo sido ingeridos juntamente com presas do interesse de B. bagre. Quanto ao grau de repleção, predomínio de estômagos meio cheios 103
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(66,7%) seguido por pouco cheios (22,2%) e cheios (11,1%). Com relação ao grau de digestão, destaque para alimento digerido (70,4%) seguido por meio digerido (18,5%) e pouco digerido (11,1%). No que se refere ao volume total de alimento ingerido, peixes predominaram (54,1%) seguido por camarões (34,4%), Annelida Polychaeta (poliquetas, 7,0%) e Crustacea Decapoda Brachyura (siris, 4,4%). O volume de alimento ingerido variou entre 0,1 e 1,7 ml: nas fêmeas, variou entre 0,2 e 1,7 ml, nos machos, entre 0,1 e 1,0 ml e naqueles cujo sexo não pode ser determinado variou entre 0,1 e 1,6 ml. Quanto ao peso do estômago com alimento, variou entre 0,18 e 4,52 g: nas fêmeas, variou entre 0,7 e 2,64 g, nos machos, entre 0,32 e 2,98 g e naqueles cujo sexo não pode ser determinado variou entre 0,18 e 4.52 g. Discussão Segundo Acero (apud CARPENTER, 2002), quanto à dieta, os membros da família Ariidae variam de onívoros (incluindo detritos) a fortemente carnívoros (incluindo grandes peixes ósseos e crustáceos). B. bagre é citado como se alimentando de pequenos peixes e invertebrados, como pequenos crustáceos e poliquetas (CERVIGÓN, 1966; TAYLOR, MENEZES in FISCHER, 1978; CERVIGÓN, 1991; ACERO in CARPENTER, 2002). Mishima e Tanji (1982) analisaram os conteúdos estomacais de 6 espécies de Ariidae no complexo estuarino lagunar de Cananeia (estado de São Paulo, sudeste do Brasil, 25ºS, 48ºW) totalizando 4.879 indivíduos sendo 60 de B. marinus (Mitchill, 1814) e 7 de B. bagre; em B. marinus, houve variação segundo classes de comprimento mas com predomínio de crustáceos decápodos e peixes e, em B. bagre, indivíduos medindo entre 10,5 a 20,0 cm, alimentaram-se de peixes, decápodos e anelídeos em proporções praticamente iguais. Segundo Cervigón (1991), exemplares de B. bagre do delta inferior do Orinoco (Venezuela) se alimentam de caranguejos, tanaidáceos, isópodos e poliquetas. Chaves, Vendel (1996) examinaram o conteúdo estomacal de 105 exemplares de Genidens genidens (Valenciennes, 1839), outro representante de Ariidae, coletados mensalmente entre setembro de 1993 e abril de 1995 na Baía de Guaratuba (Estado do Paraná, sul do Brasil), medindo entre 107,0 e 357,0 mm de comprimento total, e identificaram 7 itens alimentares (crustáceos decápodes, crustáceos diversos, matéria vegetal, peixes, poliquetas, moluscos, material não identificado) e constataram uma forte variação estacional na dieta. Os dados aqui apresentados, embora limitados pelo pequeno número de exemplares examinados, coincide com o que é citado em geral sobre a alimentação de B. bagre e de Ariidae confirmando sua tendência de ser predador e carnívoro, conforme as definições propostas por Fonteles Filho (1989) e Zavala-Camin (1996), tendo como principais presas na Praia do Malhado peixes e camarões. 104
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Agradecimentos Aos pescadores da Praia do Malhado pela cessão, mediante venda, do material aqui citado; aos membros da colônia Z-34 (Ilhéus), especialmente Márcio, Hilton, Quidemir e Genivaldo, pelo auxílio para a conservação dos peixes adquiridos; às universidades estaduais de Feira de Santana e de Santa Cruz pelo apoio proporcionado.
Referências ACERO, A. Ariidae. In: CARPENTER, K. E. (Ed.). The living marine resources of the Western Central Atlantic. v. 2: bony fishes, part 1 (Acipenseridae to Grammatidae). Rome: FAO Species Identification Guide for Fishery Purposes and American Society of Ichthyologists and Herpetologists Special Publication no. 5, 2002. CERVIGÓN, F. Los peces marinos de Venezuela. Tomo I. Caracas: Estación de Investigaciones Marinas de Margarita - Fundación La Salle de Ciências Naturales, 1966. CERVIGÓN, F. Los peces marinos de Venezuela. . Caracas: Fundación Científica Los Roques, 1991. v. I. CHAVES, P.T.C.; VENDEL, A.L. Aspectos da alimentação de Genidens genidens (Valenciennes) (Siluriformes, Ariidae) na Baía de Guaratuba, Paraná. Revista Brasileira de Zoologia, 13, 3, 669-675, 1996. FIGUEIREDO, J. L.; MENEZES, N.A. Manual de peixes marinhos do sudeste do Brasil. II. Teleostei (1). São Paulo: Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, 1978. FONTELES FILHO, A.A. Recursos pesqueiros: biologia e dinâmica populacional. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1989. MISHIMA, M.; TANJI, S. Nicho alimentar de bagres marinhos (Teleostei, Ariidae) no complexo estuarino lagunar de Cananeia (25ºS, 48ºW). Boletim do Instituto de Pesca, 9 (único), 131-140, 1982. TAYLOR, W.R.; MENEZES, N.A. Ariidae. In: FISCHER, W. (Ed.). FAO species identification sheets for fishery purposes. Western Central Atlantic (Fishing área 31). Rome: Food and Agriculture of the United Nations, 1978. ZAVALA-CAMIN, L.A. Introdução aos estudos sobre alimentação natural em peixes. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 1996. ANEXO Tabela 1: categorias alimentares com suas respectivas freqüências de ocorrência e numérica para 27 estômagos de Bagre bagre da Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia). Categoria alimentar
Frequência de ocorrência
Freqüência numérica
Actinopterygii Teleostei
85,2%
55,2%
Crustacea Decapoda Dendrobranchiata
63,0%
34,5%
Crustacea Decapoda Brachyura
11,1%
5,2%
Annelida Polychaeta
7,4%
3,4%
Mollusca Gastropoda
3,7%
1,7%
Restos vegetal superior
3,7%
---
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Notas sobre a biologia de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia) Notes about biology of Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) in Malhado beach, Ilhéus (Bahia)
Paulo Roberto Duarte Lopes
Professor assistente. Mestre. Universidade Estadual de Feira de Santana - Departamento de Ciências Biológicas. E-mail: andarilho40@yahoo.com.br
Jailza Tavares de Oliveira-Silva
Bióloga, Mestre. Univ. Est. de Feira de Santana Dep. de Ciências Biológicas - Lab. de Ictiologia. E-mail: jtosilva@yahoo.com.br
Ideval Pires Fernandes
Professor assistente. Mestre. Universidade Estadual de Santa Cruz. E-mail: ipfernandes@uesc.br
Aline Rocha França Milena Costa Ferreira
Bolsistas PROBIC/UEFS. Graduadas em Ciências Biológicas pela UEFS.
Resumo: São apresentados aspectos da Biologia (alimentação e reprodução) de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) com base em 315 indivíduos medindo entre 38,0 mm e 209,0 mm de comprimento total capturados entre novembro de 2003 e dezembro de 2006 na Praia do Malhado, município de Ilhéus, litoral sul do estado da Bahia (nordeste do Brasil). Palavras-chave: Biologia. Lycengraulis grossidens. Bahia. Abstract: Aspects of Biology (feeding and reproduction) of Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) are presented with basis in 315 specimens measuring about between 38,0 mm and 209,0 mm of total length gathered between November, 2003 and December, 2006 in Malhado beach, Ilhéus municipality, state of Bahia south littoral (northeastern of Brazil). Key words: Biology.Lycengraulis grossidens. Bahia.
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Introdução Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829), pertencente à família Engraulidae e conhecido como sardinha-prata ou manjubão, atinge até 27,0 cm de comprimento total e ocorre desde Belize à Argentina tendo hábito pelágico em águas marinhas costeiras até cerca de 40 m de profundidade, associado à substrato mole (geralmente lama), mas também habita em estuários, lagoas, bocas de rio e em água doce formando cardumes de tamanho moderado (FIGUEIREDO; MENEZES, 1978; WHITEHEAD; NELSON; WONGRATANA, 1988; NIZINSKI; MUNROE in CARPENTER, 2002). O presente estudo aborda aspectos da biologia (alimentação e reprodução) de L. grossidens na Praia do Malhado, Ilhéus (litoral sul do estado da Bahia, nordeste do Brasil). Material e métodos A Praia do Malhado localiza-se na zona urbana da sede do município de Ilhéus (Figura 1), não é considerada própria para banho devido aos dejetos que chegam através de um canal que corta bairros da cidade mas sustenta vários pescadores artesanais e agregados e encontra-se sob influência do Porto do Malhado, o maior e mais importante desta região. O material aqui citado neste estudo foi coletado por pescadores artesanais locais em um trecho desta praia, com auxílio de rede de arrasto denominada calão sendo, logo após a captura, mantido congelado e posteriormente fixado em formol 10%, transferido para o conservante álcool 70%, identificado à nível genérico e específico segundo Nizinski; Munroe (Apud CARPENTER, 2002), medido para determinação do seu comprimento total (CT), segundo Figueiredo; Menezes (1978), e dissecado para retirada do estômago e exame do seu conteúdo sob microscópio estereoscópico e das gônadas para identificação do sexo através do seu exame direto sendo então depositado na coleção do Laboratório de Ictiologia (Departamento de Ciências Biológicas) da Universidade Estadual de Feira de Santana (Bahia). Estágio de maturação gonadal (quando possível de ser definido), também através do seu exame direto, foi baseado nas definições propostas por Vazzoler (1982). Definições de frequência de ocorrência e numérica bem como a determinação do volume de alimento ingerido (realizada através do deslocamento de água em uma proveta graduada com precisão de 0,1 ml) seguem a proposta de Fontelles Filho (1989). Resultados Foram examinados 315 exemplares de L. grossidens coletados em novembro de 2003 (17 indivíduos), janeiro (44), fevereiro (8), março (7) 107
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e agosto (9) de 2004, março (42), junho (54), setembro (70) e novembro (22) de 2005, agosto (25) e dezembro (17) de 2006 cujos CT´s variaram entre 38,0 e 209,0 mm. O sexo não pode ser determinado em 206 exemplares (65,4%). Machos totalizaram 64 indivíduos (20,3%) enquanto 45 (14,3%) eram fêmeas. O CT dos exemplares de sexo indeterminado variou entre 38,0 e 160,0 mm, dos machos variou entre 89,0 e 192,0 mm e das fêmeas variou entre 100,0 e 209,0 mm. Entre os machos, aqueles em estágio B de maturação gonadal totalizaram 73,4% e ocorreram em 9 dos 11 meses de coleta sendo que 29,8% foram observados em agosto de 2006; seus CT´s variaram entre 92,0 e 176,0 mm. Aqueles em estágio C compreenderam 12,5% do total estando presentes apenas em 4 meses de captura e seu CT variou entre 110,0 e 185,0 mm. Com relação às fêmeas, 40,0% encontrava-se em estágio C de maturação sexual (CT variando entre 128,0 e 209,0 mm) e 37,8% em estágio B (CT variando entre 113,0 e 195,0 mm), todos amplamente distribuídos nos meses de captura. Porém, para a maior parte dos indivíduos (206) o sexo não pode ser determinado (65,4%), a maioria tendo sido capturada em junho e setembro de 2005 (54,4%) sendo que seus CTs variaram entre 48,0 e 140,0 mm; 64,1% apresentaram tamanho inferior a 100,0 mm de CT. Doze estômagos (3,8%) encontravam-se vazios. Quanto ao grau de repleção, 53,5% dos tubos digestivos examinados estavam pouco cheios, 28,4% estavam meio cheios e 18,1% estavam cheios. No que se refere ao grau de digestão, predominaram alimento meio digerido (49,8%) seguido por digerido (41,9%) e pouco digerido (8,2%). O volume de alimento ingerido variou entre menos de 0,1 ml até 2,0 ml. Na maioria dos estômagos (53,5%) o volume foi inferior a 0,1 ml e 18,5% dos estômagos apresentavam 0,1 ml. Em 31,5% dos estômagos o volume variou entre 0,2 ml e 2,0 ml. Foram identificadas 15 categorias alimentares cujas freqüências de ocorrência e numérica são apresentadas na tabela 1. A maior parte dos Teleostei ingeridos como alimento não puderam ser identificados devido ao adiantado grau de digestão; entre os que puderam ser identificados, 6 indivíduos eram Engraulidae (sem evidência de canibalismo) e apenas 1 era Pristigasteridae, famílias comumente presentes nas coletas juntamente com L. grossidens. Discussão A maioria das espécies de Engraulidae alimenta-se de pequenos animais planctônicos (especialmente crustáceos) (WHITEHEAD; NELSON; WONGRATANA, 1988). Porém, as espécies de Lycengraulis Günther, 1868 possuem dentes desenvolvidos, como caninos, bem espaçados, 108
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especialmente na maxila inferior; são predadores, alimentando-se de peixes e crustáceos (WHITEHEAD; NELSON; WONGRATANA, 1988). L. grossidens é citada como alimentando-se de pequenos peixes e de vários grupos de crustáceos (FIGUEIREDO; MENEZES, 1978, WHITEHEAD, 1978; WHITEHEAD; NELSON; WONGRATANA, 1988, NIZINSKI; MUNROE apud CARPENTER, 2002). Em água doce, segundo WHITEHEAD; NELSON; WONGRATANA (1988), L. grossidens alimenta-se principalmente de pequenos peixes, pitús, copépodos e larvas de insetos. Segundo Whitehead; Nelson; Wongratana (1988) e Ninzinski; Munroe (apud CARPENTER, 2002), outras espécies reconhecidas de Lycengraulis também são predadoras: L. poeyi (Kner; Steindachner, 1865), de bacias e costa pacífica do sul da América Central, alimenta-se de peixes, incluindo outros engraulídeos, e talvez também crustáceos e L. batesii (Günther, 1868), de bacias do nordeste da América do Sul, ingere pequenos peixes e provavelmente crustáceos. Menezes (1950) estudando a alimentação de L. barbouri Hildebrand, 1943 (considerada como sinônimo de L. batesii segundo Ninzinski; Munroe (apud CARPENTER, 2002) na bacia do Rio Parnaíba (estado do Piauí, nordeste do Brasil) identificou em seu conteúdo gástrico peixes, algas, restos de vegetais e crustáceos. Eskinazi (1972) analisou a alimentação de L. grossidens no Canal de Santa Cruz (estado de Pernambuco, nordeste do Brasil) e confirma a predominância na ingestão de peixes (principalmente Eucinostomus Baird & Girard, 1855, família Gerreidae), e camarões. Cervigón (1991) registra como alimento, na Venezuela, para L. batesii peixes da família Engraulidae e camarões e para L. grossidens peixes e crustáceos e entre aqueles exemplares medindo entre 90,0 e 105,0 mm de comprimento padrão também membros da família Engraulidae medindo entre 25,0 e 40,0 mm de comprimento total. Lopes (1998) identificaram, para 138 indivíduos de L. grossidens, 14 itens alimentares na Praia de Jaguaribe (Ilha de Itamaracá, Pernambuco) com predomínio de matéria orgânica digerida, 4 ordens de crustáceos, algas e peixes. Lopes; Silva (2000) identificaram, para 39 indivíduos de l. grossidens, 10 itens alimentares para L. grossidens na Praia de Ponta da Ilha (Ilha de Itaparica, Bahia) com predomínio de camarões, peixes, matéria orgânica digerida e restos de vegetais. Aguiar; Filomeno (1995) afirmam que a alta frequência de matéria orgânica digerida parece estar relacionada com uma alimentação próxima ao padrão sequencial, no qual se observa uma busca constante de alimento que é ingerido em pequenas quantidades a cada vez, o que justificaria sua elevada ocorrência também em L. grossidens na Praia do Malhado pois mais da metade dos estômagos continha menos de 0,1 ml.. Sedimentos, vegetais superiores e Algae, embora em baixa frequên109
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cia, foram considerados como acidentais pois devem ter sido ingeridos juntamente com presas do interesse de L. grossidens no presente estudo. A presença, em baixa freqüência e em número, de Isopoda, Amphipoda, Bivalvia e tubo de Polychaeta nos estômagos de L. grossidens aqui examinados indica que na Praia do Malhado esta espécie, de hábitos pelágicos, pode se aproximar do substrato, mesmo ocasionalmente, em busca de alimento. É possível que uma parte ou a totalidade das categorias alimentares Crustacea Decapoda e restos de Crustacea constituam na verdade Crustacea Decapoda Dendrobranchiata, não identificados devido ao grau de digestão, o que ampliaria a participação desta categoria na composição da dieta de L. grossidens na Praia do Malhado confirmando Figueiredo; Menezes (1978), Whitehead (1978), Whitehead; Nelson; Wongratana (1988) e Nizinski; Munroe (apud Carpenter, 2002) sobre a importância de camarões em sua alimentação. Assim, com base nos dados obtidos, com base em material coletado na Praia do Malhado, confirma-se a alimentação de L. grossidens como sendo baseada em crustáceos (principalmente camarões) e peixes podendo ser classificado como predador e carnívoro conforme as definições propostas por Fonteles Filho (1989) e Zavala-Camin (1996). Agradecimentos Aos pescadores da Praia do Malhado pela cessão, mediante venda, do material aqui citado; aos membros da colônia Z-34 (Ilhéus), especialmente Márcio, Hilton, Quidemir e Genivaldo, pelo auxílio para a conservação dos peixes adquiridos; às universidades estaduais de Feira de Santana e de Santa Cruz pelo apoio proporcionado. Referências AGUIAR, J.B.S.; FILOMENO, M.J.B. Hábitos alimentares de Orthopristis ruber (Cuvier, 1830), (Osteichthyes - Haemulidae) na Lagoa da Conceição, SC, Brasil. Biotemas, 1995, 8, 2, 41-49. CERVIGÓN, F. Los peces marinos de Venezuela. Volumen I. Caracas: Fundación Científica Los Roques, 1991. ESKINAZI, A.M. Peixes do canal de Santa Cruz - Pernambuco - Brasil. Trabalhos Oceanográficos da Universidade Federal de Pernambuco, 1972, 13, 283-302. FIGUEIREDO, J.L.; MENEZES, N.A. Manual de peixes marinhos do sudeste do Brasil. II. Teleostei (1). São Paulo: Museu de Zoologia da Universidade de São Paulo, 1978. FONTELES FILHO, A.A. Recursos pesqueiros: biologia e dinâmica populacional. Fortaleza: Imprensa Oficial do Ceará, 1989. LOPES, P.R.D. Nota sobre a alimentação de Lycengraulis grossidens (Agas110
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siz, 1829) (Osteichthyes, Clupeiformes, Engraulidae) na Praia de Jaguaribe (Ilha de Itamaracá), Pernambuco. Acta Biologica Leopoldensia, 1998, 20, 2, 243-249. LOPES, P.R.D.; SILVA, G.R. Nota sobre a alimentação de Lycengraulis grossidens (Agassiz, 1829) (Actinopterygii: Engraulidae) na Praia de Ponta da Ilha (Ilha de Itaparica, Bahia). Acta Biologica Leopoldensia, 2000, 22, 1, 129-132. MENEZES, R.S. Alimentação de peixe cachorro, Lycengraulis barbouri Hildebrand, 1943, da bacia do rio Parnaíba, Piauí (Actinopterygii, Engraulidae). Revista Brasileira de Biologia, 1950, 10, 3, 285-293. NIZINSKI, M.S.; MUNROE, T.A. Engraulidae. In: CARPENTER, K.E. (ed.). The living marine resources of the Western Central Atlantic. Volume 2. Bony fishes part 1 (Acipenseridae to Grammatidae). Rome: FAO Species Identification Guide for Fishery Purposes and American Society of Ichthyologists and Herpetologists Special Publication No. 5, 2002. VAZZOLER, A.E.A.M. Manual de métodos para estudos biológicos de populações de peixes. Brasília: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, 1982. WHITEHEAD, P.J.P. Engraulidae. In: FISCHER, W. (ed.). FAO species identification sheets for fishery purposes. Western Central Atlantic (fishing area 31). Rome: Food and Agriculture Organization of the United Nations, 1978. WHITEHEAD, P.J.P.; NELSON, G.J.; WONGRATANA, T. FAO species catalogue. Vol. 7. Clupeoid fishes of the world (suborder Clupeoidei). An annotated and illustrated catalogue of the herrings, sardines, pilchards, sprats, shads, anchovies and wolf-herrings. Part 2. Engraulididae. FAO Fisheries Synopsis, 1988, 7, 125, pt. 2, 305-579. ZAVALA-CAMIN, L.A. Introdução aos estudos sobre alimentação natural em peixes. Maringá: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 1996.
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ANEXOS ANEXO A: Tabela 1: categorias alimentares e respectivas freqüências de ocorrência e numérica para Lycengraulis grossidens na Praia do Malhado, Ilhéus (Bahia). Categoria alimentar Freq. ocorrência Actinopterygii Teleostei 42,2% Crustacea Decapoda 32,0% Crustacea Decapoda Dendrobranchiata 26,1% Matéria orgânica digerida 26,1% Sedimento 7,9% Vegetal superior 3,6% Algae 2,6% Material não identificado 2,3% Escama Teleostei 1,0% Resto de Crustacea 0,7% Crustacea Isopoda 0,7% Matéria inorgânica 0,7% Crustacea Amphipoda 0,3% Tubo Annelida Polychaeta 0,3% Mollusca Bivalvia 0,3%
Anexo B: Praia do Malha (Ilheus, BA
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Freq. numérica 17,5% 35,0% 44,6% --------0,9% 0,3% 0,4% 0,3% 0,2% 0,1% 0,1% 0,1%
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Resenha IMPRESSÕES DE BARTHES SOBRE A CHINA DOS ANOS 70 Rodrigo da Costa Araújo BARTHES, Roland. Cadernos da viagem à China. São Paulo. Matins Fontes. 2012. 255 p. Como o próprio título/paratexto indica ou encaminha, Cadernos da viagem à China é redigido a partir das impressões de viagem anotadas por Roland Barthes (1915-1980) em três cadernos de anotações. O último deles foi utilizado para organizar o índice temático das duzentas e cinquenta e cinco páginas desse percurso diarístico.
Pintura de Barthes na capa do livro Cadernos da viagem à China (2012)
A capa dessa edição brasileira retoma as grafias de Barthes na pintura. Como a caligrafia chinesa, esse paratexto imita gestos sem palavras, os traçados delicados do semiólogo na tela. Feito o espaço vazio da linguagem, a pintura imita o gesto do instante, a trajetória dos desvios, silêncios, retornos ou fugas de um escritor. O volume retoma os registros a respeito de uma pesquisa sobre a China e que integrou uma equipe de intelectuais franceses, e só foi publicado trinta anos depois da experiência. Dessa vocação diarística de Roland Barthes, também é possível retomar, intertextualmente, os livros Incidentes, O Império dos Signos, Roland Barthes por Roland Barthes e Diário de Luto, este último, escrito na mesma época de Cadernos da viagem à China. Eles, de certa forma, integram a paixão do escritor-esteta pelos registros breves, pelo tom aforístico e fragmentário, ou a sua relação quase fetichista com o suporte ficha que discorreram muitos desses volumes. 113
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Apesar de ser fruto de registros diarísticos, de uma visita organizada e supervisionada de três semanas, de ter seguido um itinerário preestabelecido, Cadernos da viagem à China apresenta, transgressoramente, uma visão distanciada desse percurso. Eles propiciam ao leitor o contato com inúmeros detalhes, cores, paisagens, corpos e acontecimentos pinçados do cotidiano, reflexões de Barthes comentadas com algum humor discreto e requintado. Essas anotações diarísticas, no entanto, diferentemente de outros livros de Barthes, revelam acontecimentos vistos, sentidos ou ouvidos na China, alternadamente, com observações inseridas entre colchetes, reflexões, meditações, “incidentes”, críticas ou expressões de simpatia que funcionam como comentários paratextuais aos episódios. Também são recorrentes, no discurso desse livro, certas expressões de cansaço diante do estereótipo, como por exemplo, “etc” ou certo ar de descontentamento diante dos protocolos e das anotações. Cadernos da viagem à China pode ser lido como estratégia própria da linguagem da literatura, ou mesmo de fatos cotidianos, se os entendermolos como uma forma de linguagem, reunião de minúcias e insignificâncias, como as que encontramos em romances. O prazer do leitor, do crítico ou do semiólogo será, nesse caso, o de perceber em todos esses registros ou fragmentos, uma pista de algum outro discurso ou sentido a ser construído. Pistas não para entender a China em si, mas, na maioria das vezes, de artimanhas sem proveito, de astúcias, sem explicação. Essas astúcias semiólogicas, talvez, inspiram o romanesco e a atividade crítica de Roland Barthes. A partir deles, o semiólogo assume a postura de um detetive de “traços”, “elementos”, “componentes” que brilham por clarões, em desordem, fugaz e sucessivamente, no discurso, tecido de anedotas da vida. Nesses cadernos, a tendência de Barthes é a de mobilizar a máxima agudeza na descoberta de novas fontes de prazer estético, retirando-os dos lugares mais improváveis. Ao longo das páginas, damo-nos conta de que o fascínio de Barthes não é tanto a aparição discreta de signos, mas a sua ausência sistemática. Aquilo que podemos reter, por um vago tédio neurastênico é, de fato, uma formidável matriz do pensamento barthesiano, provado por certa neutralidade radical: neutralidade das emoções (sentimento de tédio) enfado de gostos, indiferença sexual ou imposição ideológica. Por isso, importa-nos observar com neutralidade, os signos do neutro, da política e, por extensão, a neutralidade do discurso. A proposta do livro, desse modo, consegue transgredir a lógica do diarista (diacrônica), em favor de uma outra lógica, onde a leitura passa a ser descontínua, oscilante e mais livre. O índice do livro é a prova de que o diarista admite uma escolha de transição - o que tornaria os cadernos o reflexo do padrão viajante, certa configuração fragmentada do discurso (que é sugerida ao leitor), ou a liberdade de movimento que Barthes não usufruiu durante a viagem.
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Apesar disso, a viagem de Barthes à China revelou vários fracassos, salvo, todavia, o trabalho da escritura. As cores, as paisagens e o tempo, de um modo geral, são descritos com certo incômodo: monotonia e o tédio na China, contribuem com certa melancolia que recai sobre ele o diarista. No início da viagem, apesar de pouca diversão, ou mesmo uma curiosidade entusiástica para as sociosincrasias chinesas, a retórica ideológica e formatação do discurso reforçam certo lugar-comum, espécie de “loucura” - estavam em 1974, em plena campanha “Pilin Pikong” contra Confucius e Lin Piao. Esses elementos, particularmente os comuns, e os jargões da retórica ideológica que deveriam fascinar o semioticista, o entediam-no e adiam suas descobertas porque estão limitados, na camisa de força da visita guiada, enganosa em seu fluxo, exigindo acordos, convenções que não foram escolhidas por Barthes, e por isso mesmo, questionados nas anotações. Em oposição ao Japão, esta viagem de Barthes à China - apesar de ter sido “organizada” e “controlada” desempenhou um papel significativo: “Lembrando o incidente de ontem à noite, a descoberta inesperada do cinema ao ar livre, tão cheio de coisas descabidas (o filme romeno, as cadeiras trazidas, a suavidade do escuro): isso provaria que é a presença contínua, acobertada dos funcionários da Agência que bloqueia, proíbe, censura, anula a possibilidade de Surpresa, Incidente, Haiku” (BARTHES, 2012, p. 125). Ela instigou uma escritura reflexiva e indagante a respeito do discurso, das relações socais e de poder. Cadernos de viagem à China revela uma imagem deceptiva, instiga as relações entre a errância e a escrita, mostram o triunfo da página sobre a paisagem e fazem do fracasso do diário de viagem, uma obra. De qualquer modo, Barthes convida a compreender a China inversamente aos signos japoneses, erotizados. O desinteresse crescente de Barthes pela China não teria sido a questão do erótico na viagem: estes são os signos classificados, instituídos pela “viagem organizada” que não fala com ele, porque ele a recupera e a erotiza, em detalhes biográficos, em biografemas. Barthes reencontra nas leituras da China, o “vazio” do Japão. A partir daí, a “inexpressividade” semântica é percebida e apresentada de maneira mais significativa, entusiasmada, instaurando, de certa forma, o tom amoroso pelo Neutro. Assim, são eleitos por ele, três “significantes” que transbordam os sentidos e escapam à descolorização da China: a cozinha, as crianças e a escritura. As crianças cansam-o, rapidamente, a cozinha é um grande contentamento, visível nas anotações, mas a caligrafia chinesa é outra grande paixão de Barthes, e por isso mesmo, exaltada no diário, como ato corporal, pulsão (o erotismo encontrado), elas informam o espaço do neutro da China: “as caligrafias de Mao”. Cadernos de viagem à China, de Barthes revela a frustração pessoal sobre a inacessibilidade da China.Todas as anotações atestam nele, certo fracasso com a escritura (por comparação com o Japão). Porque segundo 115
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ele, “Todas estas anotações comprovarão decerto o malogro de minha escrita neste país (em comparação com o Japão). Na verdade, não encontro nada para anotar, enumerar, classificar” (BARTHES, 2012, p. 72). Isso fica percebido na clara aproximação entre a experiência pessoal do semiólogo e a afirmação filosófica que mais tarde ele faz no Jornal Le Monde: A gente se pergunta: e se estes objetos que queremos a todo custo transformar em questões (o sexo, o sujeito, a linguagem, a ciência) fossem somente particularidades históricas e geográficas, idiotismos de civilização? Queremos que haja coisas impenetráveis para que possamos penetrá-las: por atavismo idelológico, somos seres de deciframento, sujeitos hermenêuticos, acreditamos que nossa tarefa intelectual é sempre de descobrir um sentido. A China parece resistir em entregar esse sentido, não porque ela o esconda, porém, mais subversivamente, porque (e nisso bem pouco confuciana) ela desfaz a constituição dos conceitos, dos temas, dos nomes; ela não partilha os alvos do saber como nós; o campo semântico é desorganizado: a pergunta feita indiscretamente ao sentido é devolvida em pergunta do sentido, nosso saber em fantasmagoria: os objetos ideológicos que nossa sociedade constrói silenciosamente declarados impertinentes. É o fim da hermenêtica (BARTHES, 1974).
Como percebemos nessas considerações, Barthes adquiriu a reputação, em decifrar os signos e desconstruir as mitologias da sociedade moderna. Enfim, neste livro ensaia-se o neutro que é vislumbrado, através de figuras, figurações, configurações, cintilações, condutoras a possibilidades, jamais a um sentido dado, mas a uma flutuação de sentidos. A partir desses fragmentos e registros sobre a China, o autor de Le plaisir du texte, instaura o desejo do Neutro: certos estados intensos, fortes, inauditos, que suspendem as ordens, as leis, as arrogâncias, as intimidações e quaisquer outras características que remetem às relações de poder. O neutro, em Cadernos da viagem à China, desvia a norma, o paradigma dos gêneros, a normalidade, a opinião corrente, o estabelecido e o preestabelecido nas relações discursivas. Referência BARTHES, Roland. Alors, la Chine? Le Monde. 24 maio 1974.
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