euOnca_2

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euOnรงa_2


Expediente editores _Tiago Fabris Rendelli Wladimir Vaz conselheiros_ Ana Elisa de Arruda Penteado _Andressa Tata Coutinho_ Diego Cajuru Scoca _Diogo Henrique Cardoso_ Gabriel Edé_ Lea Czeresnia Taragona _Natália Gregorini _Pedro Spagnol _Stella Zagatto Paterniani _Galo Branco projeto gráfico_Wladimir Vaz campinas_fevereiro de 2014

_o issn da euOnça é 2318-0994

Editora Medita Rua Maria Madalena Selim Zanchetta| 22 Vila São João| Barão Geraldo | Campinas | SP 13084-577 | 19 4141 1965 | 19 3307 3112 wlad@editoramedita.com.br www.editoramedita.com.br

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euOnรงa

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12 editorial

nósOnças

14 paisagem sem ti

Gil T. Sousa

16 o espelho

Mariana Campos

18 a queimada

Pedro Spigolon Barbosa

22 a conspiração da lâmpada André Nogueira 30 ozymandias Percy Bysshe Shelley tradução: Tomaz Amorim Izabel 34 disse-me o rato

Gustavo Bianezzi

38 dédalo

Jefferson Dias

42 sem título

Sarah Valle

44 atobás

Sel Kinski

46 um estranho numa cidade distante Mahmoud Darwish tradução: Jaqueline Camara Ramos 6


50 transfavela

Zuza

54 (f )ode ao shopping

Rafael Longo

56 caminhão pipa

Heyk Pimenta

62 a memória dos outros

Thyago Marão Villela

64 tareqa

Mariana Ruggiero

68 sílaba viva Júlio Cortazar tradução: Roberto Casarini 72 sem título

Fernanda Tatagiba

74 deslocamento ou desencontros ou afastamentos ou distanciamento… Thiago Leonello Andreuzzi 78 sem título

Diogo Marciano

80 musgo ferro

Tullio Sartini

86 glossário

Lucas Peixoto

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88 canção das horas Georg Trakl tradução: Priscila Salomão 92 janela que eu estou

Augusto Meneghin

98 Mandame un saludo cuando llegue o al menos la intención Juan Pablo Cascini tradução: Tiago Fabris Rendelli 100 sem título 7

Filipe Marinheiro

104 a sombra de Goya Beso 109 chamada

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Thales Lira 9


09

Thales Lira

21

Natália Gregorini

28

Paula Chimanovitch

29

Daniel Lima

33

Thyago Marão Villela

41

Carolina Gaspar

49

Bruno Trochmann

53

Claudio Matsuno

71

André Nogueira


77

Renan Marcondes

83

Eduardo Araujo

87

Waldomiro Mugrelise

91

Daniela Koyama

95

LĂ­via Diniz

99

Mariana Novelli Hardman

106

Pedro Spagnol

108

Bianca Moschetti

110

Maria Paula Ferraz Dias


“Viemos de longe, do largo, do alto profundo Cercado de inícios de todos os mundos Sem poder parar.” (Amor Cósmico, Oliveira de Panelas) 12


Escrever sobre este projeto é tarefa árdua, pois sempre que descrevemos qualquer amor, sobram espaços entre as palavras. A edição desta revista traz o bafo quente da onça celeste, cor do lápis-lazúli, devoradora de sóis e luas, geradora de eclipses. A mesma onça que no fim dos tempos se jogará contra a humanidade para fazer dela sua presa final e que, no princípio de tudo, soprou nos ouvidos de Maivotsinim o segredo da criação dos homens. O segundo número da euOnça nasce com uma fome renovada. Os escritores, tradutores e ilustradores aqui presentes nos emprestam sua carne para produzir outra geração deste animal de fôlego secular que ruge poesia pela noite escura. Artistas que se encontram em pontos distintos da vida e nos oferecem seus olhos para gerar outros entendimentos sobre nosso tempo fragmentado. Artistas oriundos de diferentes tradições e geografias, que se juntam nestas páginas para oferecer ao leitor a experiência da mata escura. Cada qual caminhará por esta selva de acordo com seus medos e suas crenças, sem saber ao certo se algum mistério será revelado ou se a próxima vereda guarda o último passo. Ya’wara-etê, onça-divina, rogai por nós nesta hora, já que somente o risco é certo. nósOnça 13


paisagem sem ti

Gil T. Sousa

14


fervem nos ombros dos montes as pedras do silêncio e isto podia ser o mundo ou a casa onde a morte se cansa de mentir no céu, só os restos dum incêndio trabalham esta febre do olhar toda a tarde te respiro por entre as árvores submersas! estou tão quente como um fruto que o sol ferrou só, só eu te sei cantar até seres chuva

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o espelho

Mariana Campos

16


não me afaga a cabeça enquanto choro antes de falar-me das leis do amor, faz outra vez verde os brotos desta orquídea sem vida canta um hino pedindo às ondas que voltem ao lugar de onde vieram calça-te as pedras do caminho e caminha até a ilha por debaixo d’água oferta, por outro lado, grandes flores vermelhas aos trompetes dos músicos da orla rouba as maçãs de quem nem maçãs tem, penetra-lhe o medo come-lhe a carne viva desperdiçada como papéis para rascunho como alfinetes de um que se declara responsável por espetar — sucessivamente — as jaboticabas açu e ponhema recolhe - agora sim — os meus cabelos como estas cascas distraidamente ofertadas ao nada afasta-te do indescritível medo — de uma vez por todas — de abrir os olhos e sonhar — feito um filhote gestado do lado de fora do ventre — nestes cacos de espelho o meu rosto em desespero idêntico ao teu. 17


a queimada

Pedro Spigolon Barbosa

18


Tentei lhe avisar da queimada mas é sempre tarde quando o vento esculpe cinzas em nossa língua. É sempre cedo para descobrir as pedras atrás do olho e o porquê de nunca chorar. Quem trás o espelho no corpo deve calar-se não há barulho algum no reflexo do fogo. As palavras não ditas são a fuligem da boca dessas deve-se arrepender-se.. Tentei lhe avisar da queimada mas os anjos tiveram medo de revelar meu sinal às custas de uma asa incendiada. Desisti de orar no templo de seu corpo sacrificado O pó jamais volta a ser brasa Revirei sua carne como quem desenterra um cadáver. Provei de suas entranhas no desencontro dum mês a gosto. 19


Quem esqueceu do sal? Quando envenenaram nosso cio? Tentei lhe avisar da queimada depois preferi que n찾o soubesse. embrulhei-me num rel창mpago. chovi. Fiz o mato matar nossa horta.

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Natรกlia Gregorini 21


a conspiração da lâmpada

André Nogueira

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“Provocar um apagão na cidade coletando lâmpadas como antigas estrelas, costurar um eclipse na bandeira, e hastear o apocalipse num 7 de setembro” — Pedro Spigolon Barbosa. “Ela continuava a acentuar idéia e pára. Era sua revolta contra o sistema” — Ana Júlia Carvalheiro.

*** Acionei... um grilo! Ele, reco-recorrentemente via aurélia no meu pensamento; ele, um sinaleiro ortográfico na linha vermelha do tempo; ele – este cílio virgulino – não vou entregá-lo, como uma pérola a porcos-fardados acadêmicos. *** Quem corta o agudo da idéia odeia a sua chispa lampiã. 23


Chispe dessa horta o subtraidor de floreios, trator de rolimã que cobre de piche. Camuflei-os: estratégicos carrapichos. Quando pousa o mosquito na dobra da página aberta, já não é livro o que eu fecho: só concentrar-se é o que quer a dionéia! *** O maior dos méritos do braseiro prometéico foi equilibrar-se sobre a ponte monocorde de um fio de cobre. A surda-muda condução elétrica pela ceticíssima seta de uma asséptica aljava com acepções de palavras, E acendeu-se o orbe das plantações de couves parabólicas. 24


Existe vida após a fita métrica fora das esferas luciféricas no reticente pontilhão dos et céteras? *** Ninguém diz “pare!” a um pilar. Porém, este mundo de estacionamentos que se prepare – vou girar uma estação. Quando no céu catracabum, chuvas de meteorias cairão. *** Se estiver interrompida uma passagem na rua, divida-a em duas – em nome da vida que tumultua a oprimida safena; Derrube todos os tapumes projetando cinema.

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Se alguém vier palpitar interrompa (a não ser que seja, este alguém, o coração); Raciocine recinto adentro na inteligência em busca de um projetor, e a pálpebra que se irrompe leva qualquer muro ao chão. *** Pela ventarola, quando grila o mecanismo, vitrola. Ele, que é cata-vento e não é cataclismo; ele, mistifório de clics de relógio e celulares; ele – unicelular – cantarola. *** Este grilo, vou abri-lo para ti:

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*

*

*

(Obs): A era da obsolescência programada está com os dias contados. Para a óbvia idéia de um sol ascendente todas as lâmpadas se apagam.

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Paula Chimanovitch 28


Daniel Lima 29


ozymandias

Percy Bysshe Shelley tradução: Tomaz Amorim Izabel

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Conheci um viajante de antiga terra que disse: — Duas pernas destroncadas, pétreas, estão no deserto. Perto delas, soterra a areia meia face despedaçada, cujo lábio firme e poderio de olhar, frio, diz que seu escultor bem lhe leu as paixões que sobrevivem, nas meras coisas sem vida, à mão que zombou e ao coração que nutriu. E no pedestal tais palavras aparecem: “Meu nome é Ozymandias, o rei dos reis: Vejam minhas obras, ó fortes — desesperem-se!” Nada resta: junto à ruína decadente e colossal, de ilimitada aridez, areias, lisas e sós, ao longe se estendem.

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I met a traveller from an antique land Who said: - Two vast and trunkless legs of stone Stand in the desert. Near them on the sand, Half sunk, a shatter’d visage lies, whose frown And wrinkled lip and sneer of cold command Tell that its sculptor well those passions read Which yet survive, stamp’d on these lifeless things, The hand that mock’d them and the heart that fed. And on the pedestal these words appear: “My name is Ozymandias, king of kings: Look on my works, ye mighty, and despair!” Nothing beside remains: round the decay Of that colossal wreck, boundless and bare, The lone and level sands stretch far away.

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Thyago Mar達o Villela 33


ja disse-me o rato a janela que

Gustavo Bianezzi

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Porque já não calam os bueiros e fossas sobre os sonetos e glosas que tanto adoras, porque não deram aos ratos os requintes necessários para o silêncio morreram de fato nossos ouvidos cansados que já viram lagartos virarem pássaros, e Lutécia bárbara vestir-se em lábaros exaustos porém estamos, homem hodierno de todo teu lirismo; A bem da verdade não importa, a folha é só um punhado de célula vegetal morta teu verso é um molho de tinta amargo que velhos miomorfos doentes mascam como placebo contra o enfado, eis o problema: não estamos mais na aurora do teorema podes achar bonito ou moderno amar como Ovídio ou Otelo ou exibir teu corno lustrino com um dodecassílabo alexandrino (ai no primeiro hemistíquio eu solto um arroto) quando incorporas Caeiro eu me finjo ignoto "O poeta é um fingidor?" finge pois ficar calado cá na madrugada cinza eu, apenas um roedor, agradeço anhoto. Explico: é que tugúrios dúcteis sob a vila de lama replicam com a mesma minúcia a ladeira acima e as falsas angústias da tragi-comédia humana. 35


Tudo o que escreves é por uma gorda ratazana repetido ad nauseam em poética subterrânea que nunca descrita, mas sempre declamada no Guincho imortal da memória coletiva roedora A Cantalena a trova a novela o cordel a Odisséia Modorra, é tanta palavra em cizânia discórdia (até um tal Grass nos dedicou prosódia) Que em rítmica, mas monossilábica, métrica Rática, apática, entretido simulacro, eis-me também rato: assim aproveito um breve intervalo no ruído antrópico para fazer-te um apelo. Não posso escapar-me da onipresente Cultura a bem da verdade não importa, é tudo gordura mascamos afeitos a ti, há uma certa harmonia já que roemos os belos volumes da Academia mas evita o enfado, todo o resto está perdoado se queres inovar, toca aquela sinfonia de Mahler com o teclado plástico do teu celular (a última quadra original na boca de uma amazona índia, quantos anos antes da escrita não saberia dizer) já vimos tudo, já lemos tudo, eis Longinus mudo: um russo tocou flauta com as costelas de Amado e um ébrio em delírio já havia sussurrado o Fausto aos colegas ratos na rua do Eivado, quando Públio Cornélio Tácito ainda era um menino. "Sê inteiro", seja até brega se queres inovar, 36


experimenta um tetranapéstico escrito no ar ou uma redondilha em um só suspiro, leremos porque a fossa do mundo nos atinge em certeiro não temos escolha desde que deixamos o celeiro da selva primal para vossa urbe inquieta ultrajante escreve o que queres, um solilóquio barulhento, um coro hierático, vers libre, um acróstico unguento apenas nos livre, se não for lhe causar aborrecimento do ímprobo típico humano de tornar-se maçante.

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dĂŠdalo

Jefferson Dias

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Há o quadrilátero da condolência, O unto da tua presença lavrada, O conjunto das mobílias e arranjos De que tu foras privado, Tua carpintaria parada no alto, Há o teu pedido mudo, A herança ornitológica e a naftalina Que andam suspensas no ar, O postigo aberto na culpa, nestas angústias Que não são minhas, A lembrança anódina do totem umeral, Teus pressentimentos tristes e abusões, O lombo sujeitado dos teus desejos Os embriões hediondos nos gestos, Os martelos e dentes sobressalentes; Há o meu sonho secreto cuja luz Bate o monstro do teu regresso, Há o monólito muito tênue Do tempo que não consumimos juntos, A poeira eterna dos nossos desencontros, O silêncio inexpugnável das confissões Que jamais levamos a efeito, Pedaços de coisas inúteis metidos dentro Nas gavetas impudentes, Há o teu gabinete, Edgard Varèse se ri a um canto – 39


Tu me perguntarás “quem?”, dirás “nunca eu o vira lá” – O réquiem polonês no dorso do gato, Mata Hari e Jesus Cristo Com o coito bucal nas paredes pornográficas, Tu não me ensinaste, Partiste, a baba do exílio ressequida na esquina branca Do teu assovio, Deixaste-me Ariadne e Pasífae, E estes pedaços de coisas, estas portas e novelos, Estes corredores pesados Que respiram, Estes colchões que sabem a ressentimentos e mentol, O que farei com estes colchões? Com a tua nudez em pé, bíblica? Deixaste-me – mas não deliberadamente – O teu ofício. As gentes, entretanto, não me chamam homem.

40


Carolina Gaspar 41


sem tĂ­tulo

Sarah Valle

42


Você se casou com flores artificiais no cabelo. Imagino a textura do pó sobre seu rosto e o tom de base que escolheu. Ele lhe dará tempo. Tempo? Poderia levar você para dormir na casa da vovó. Ela não desconfiaria. Você se lembra de nós brincando no box? Se lembra de medirmos seus seios na máquina de costura? Você se casou com o tênis colorido que usa para trabalhar. Se lembra quando seu pai nos proibiu de irmos ao jantar? Que comia ruffles e fanta uva chorando na beliche? Que conheci você na piscina, dando caldos nas amigas? E que tinha medo de trampolim? Cortaram a árvore com nossas iniciais. Você não confiava em músicos que confiavam em ritmos. Me disse que todos, menos as crianças, têm pavor de visitar os velhos. Mas está bem. Está ok. Você casou com flores de plástico no cabelo. Como as que, um dia, eu desempoeirei. 43


atobรกs

Sel Kinski

44


Cobiço um pouco de morte entre meus dentes a esqualidez, os ossos cobertos pela tua teia adiposa Teu olhar d'água, tuas pálpebras semicerradas Esta minha aflição sobre tua vagina – metal, lava em teus seios, lábios, nuca Sobre teu ânus... a tua agridoce ferida enquanto tento sobreviver dentro de ti E tu te contorcerás ou pensarás em sei lá o que (em teus outros amantes ou no aborto que fizeste alguns meses atrás ou na traição da melhor amiga Na violência que só se apercebe pela tv Ou quem sabe no jantar de domingo e no vazio depois das 23 O vazio das horas, o sem-sentido a náusea: talvez o único lugar onde te encontras)

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um estranho numa cidade musgo ferro distante

Mahmoud Darwish tradução: Jaqueline Camara Ramos

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Quando eu era jovem e bonito, as flores eram meu lar e as fontes, meu mar. As flores se tornaram uma ferida e as fontes, sedentas. — Eu mudei muito? — Eu não mudei muito. Quando, como o vento, retornamos ao nosso lar. Olhando na minha testa você encontrará flores empalmeiradas e fontes transpirando. Me encontrará assim como eu era, jovem e bonito.

47


‫غريب يف مدينة بعيدة ‬ ‫عندما كنت صغريا ‬ ‫ومجيال ‬ ‫اكنت الوردة داري ‬ ‫و الينابيع حباري ‬ ‫صارت الوردة جرحا ‬ ‫و الينابيع ظمأ ‬ ‫هل ر‬ ‫ثغريت كثريا؟ ‬ ‫ما ر‬ ‫ثغريت كثريا ‬ ‫عندما نرجع اكلرحي ‬ ‫اىل مزنلنا ‬ ‫حدريق يف جهبيت ‬ ‫جتدي الورد خنيال ‬ ‫و الينابيع عرق ‬ ‫جتديين مثلام كنت ‬ ‫صغريا ‬ ‫ومجيال‪...‬‬ ‫‪48‬‬

‫ ‬


Bruno Trochmann 49


transfavela

Zuza

50


Esta vida tem copas vales e montanhas Desníveis que calham águas tórridas dos pensamentos Ruas estreitas que se entrelaçam freneticamente avessas à lógica das cidades Contornadas por casas empilhadas pela sobrevivência impelida ao riso Entre árvores amantes as nobres antenas e fontes improvisadas as carriolas passam coletando ideias em desespero pelo ultimatum das utilidades básicas elas são colhidas entre lírios secos do almoxarifado secretárico das ruínas Toda banalidade do destinatário será degringolada e desestabilizada pelo abalo Risível da bricolaje destes catadores-coletores de invisíveis Indígenas do aço nos mistérios das cidades Que carregam os coloridos parangolés habitantes das margens recheados de alegria Eles povoam o caos emergido na sola dos sapatos gastos inebriados por não serem objeto de fé E de longe penetram uma praia entupida com grãos bregas e cafonas Pedrinhas xexelentas entoando badernas cósmicas por entre seus demais 51


E as barraqueiras embelezadas com o exagero químico das plantas Fofocam dezenas de inventos A geografia é cultivada e exercida com intento colorido das Solanges e Mafaldas É Levada inteira para dentro da pele amorfa do cotidiano Fustigando a craca morna de todas as esperanças com a chicotada mágica da informalidade Ela soa faísca de ideia louca no improviso Há uma bagunça primordial que sua e se borra de barro por mero amor ao ato Há uma música de extremo mau gosto para os ouvidos afofados que afundam as bundas para o profano Há um grito histérico que advém inapropriado E por todo canto emana a simplicidade de nobreza torta que ri Os gestos jogados ao vazio das palavras sendo faladas por outras vozes nos fazem dançar com a falta de respeito toda gravata há de ficar consternada todo sonho frouxo enriquecerá de miséria Será um jeito será também um fardo

E de todas as coisas inteiras se levantaram os mil pedaços

52


Claudio Matsuno 53


(f )ode ao shopping

Rafael Longo

54


shopping símbolo cintilante címbalo sistema chupa chocalho social serpente cheia chato sujeira chinfrim sanitário cingido chão serviço chapado chamado seu sortuda cisão salutar chulé chaleira sevícia suave chamado choca sinhá chuta sinhô

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caminh達o pipa

Heyk Pimenta

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I a rua mesa de dissecação barroca

nossa treva sem qualquer centímetro de recuo diante da investida de cem 30 dois postes públicos

porque o metal nunca vencerá o asfalto II o homem um mito de cera as asas liquefeitas e os carros incendiados o lixo fruto primeiro da passeata trinta toneladas de panfletos de saldo sendo as barricadas do carnaval

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III tudo íngreme e sem adesivos sobre o manto do rei caminhão sal nas penas dos pássaros mas retiraremos nosso quinhão de entulho, de discórdia, de solas de pão, caminhão. porque suas rodas são o motivo primeiro do alvorecer IV e cada camada da casa se desdobra em jardim em carteiro em mãe em brinquedos nossos mantras E ele acelera desfazendo as pilhas 58


encontrando nos frisos da avenida seu amor derradeiro o aliado definitivo a lágrima de sabotagem que há no ato de derramar uma lágrima E ele arranca sólido em seus estofamentos fixo à brisa do ventilador do vermelho mais só e por isso tão amigo e escudeiro de seu chofer E ele arranca sobre o veludo imperial tão vermelho e tão só sobre a lama que a cerveja faz com os confetes com os abanadores da antártica com a serpentina que nunca se desenrola até o fim

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V O caminhão lustroso cera sebo e brilho anuncia magistral o fim da festa húmus cinza da rua que entre listras preto em amarelo rende acua e acolhe em seu veneno. finda porque já era finda finda porque jamais foi sua finda e lava a lama até trazer de volta a peçonha da rua devagar sem conhecer alegria sozinho arrasta seus trapos 60


o zelador caminh達o.

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a mem贸ria dos outros transfavela

Thyago Mar茫o Villela

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as roupas, o silêncio a memória dos outros, estalada e suja, nesses olhos de conhaque, nessas mãos que seguram um copo com a finura própria do vidro, desembainhando os dedos das mangas negras, desembainhando o corpo (esse tecido), resistindo à agonia, ao inquérito, ao tórax da noite; a memória dos outros, essa fugidia, essa que mora na língua — ah!; essa memória que me conta por onde estivestes— e eu não estive; por onde as ruas foram uma vez magnéticas, por onde os tênis (esses, brancos) foram despejados como areia; a memória de quando, em janeiro, na lapa, andamos feito dois guarda-chuvas (eu não andei, mas caí no centro de sua voz), essa memória inquieta, justa, que estala as unhas na mesa. a memória. a memória. a memória. — bruna, no último século, te juro, seremos sós, cada qual com sua roupa e seu silêncio.

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tareqa

Mariana Ruggiero

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ele disse você não é daqui mas se ainda ontem eu calibrei meu pneumotórax 38psi no posto da esquina e minhas clavículas atarracadas ao pixe desarticuladas da via óssea sob o exército de rodas desespinhada [traíra na superfície de corte] pela polia do caminhão de lixo monstro mastigóforo que o poste não iluminou orquestrando válvulas de escape correias banguelas em cacófatos intempestivos ritmados na contagem regressiva do semáforo intermitência rubra que dança faísca com o motor quatro tempos eu suplico que me deixem acender um cigarro 65


um mísero cigarro na ponta do pistão para morrer um pouco menos mas as escápulas já viraram pá para a próxima obra da Companhia de Engenharia de Tráfego recicladas pela Eletropaulo para consertar a fiação da rua vítima dos agentes infiltrados chuva galhos pássaros gatos pipas que o ferro velho recusa e proíbe a subida aos seus montes oxidados o rei da sucata, operando a sua córnea metálica remove meu occipital e de dentro desabam parafusos pregos roscas e alguns cartões de visita Henrique Miranda Quadros – Assistência Técnica e notas fiscais do Lanches Xangô que ele organiza em seu arquivo gavetões emperrados sobre trilhos tortos não colete também as unhas, senhor dos indicadores daquilo que eu não sei exijo uma radiografia ouso chamá-la gravura quero os isótopos, imploro-os 66


preciso atestar no imperativo os dentes no copo são irmãos dos dentes na boca? ele me encaminha a uma sala de espera me besunta com chumbo mercúrio cádmio lhe falta a decência de diluir na cachaça que ingere pela abertura da sua máscara cirúrgica os corpos estranhos neurotóxicos mais impiedosos que todos os psicotrópicos inscritos em mim como os anéis das árvores extintas desse parque industrial devastado na sua ausência tento soletrar vida em meio ao lixo só sons mudos sem eco o viaduto acima dorso de baleia-azul decomposta é garrote e cobertor para a minha catalepsia aguda de estilhaçar os vidros de carros encalhados ano 1995

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sílaba viva

Júlio Cortazar tradução: Roberto Casarini

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sílaba viva que que se vai fazer, che, está aí ainda que não queiram está no choque, está no queijo, em cada tanque e cada queda e cada quebra está, soltarão as cachorras e no mesmo lugar estará ainda que o cerquem, o busquem aos trancos e barrancos e ele estará com aquele que luta e com aquele que morre e em tudo aquilo que se quer e se passa ele estará, que diacho, che

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70


AndrĂŠ Nogueira 71


sem tĂ­tulo

Fernanda Tatagiba

72


o som que sobra barulho o som que dobra musica o som que solta danรงa o som que volta voa o som que soma soa o som que some sombra

73


deslocamento ou desencontros ou afastamentos ou distanciamento‌

Thiago Leonello Andreuzzi

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Cá estou Lá tu estás Se cá tu vens Pra lá eu vou Se lá tu voltas Pra cá novamente estou Se cá tu vens Lá permaneces Mesmo que cá esteja eu! Aqui tô. Lá cê tá Se aqui cê vem, pra lá eu vou Se lá cê volta, aqui novamente estou Se aqui cê vem, lá fica Mesmo que aqui esteja eu! Cá estou. Lá tu estás Se cá tu vens, pra lá eu vou Se lá tu voltas, pra cá novamente estou Se cá tu vens, lá permaneces Mesmo que cá esteja eu! Aqui tô lá cê tá Se aqui cê vem pra lá eu vou Se lá cê volta 75


aqui novamente estou Se aqui cê vem lá fica mesmo que aqui esteja eu!

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Renan Marcondes 77


sem tĂ­tulo

Diogo Marciano

78


Eu, que 15% de mim aos Domingos de manhã é profeta do apocalipse. Eu, que me sinto mais perfeito quanto menos me percebo. Eu, que no silencio pressinto uma sombria desventura ao mundo. Eu, que sou mais triste do que útil. Eu, que busco morrer mais leve do que nasci. Eu, que vim do fundo do barro e que hoje me enrosco em fibras óticas. Eu, que sou capitão de um continente em motim a deriva. Eu, que tropeço nas fronteiras das cartas geográficas. Eu, que possuo meus alvarás de existência em dia. Eu, que patético me concebo o herói hipotético. Eu, que nasci com nome, número e cú atarraxado na carne. Eu, que igual a todos suporto uma alma que sofre de amplitude e que não se cabe muita coisa.

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musgo ferro

Tullio Sartini

80


Musgo Ferro, a memória é fuligem neblina de sáis, cor dos anos, nitrato esquecido até onde revivo, o alcance, solda fio por fio; revela, a sala vítrea, revela, regresso após regresso: a máscara inversa que já não é breu, inversa tem a fuligem do verde e o sabor do musgo feito página, a cicatriz branca na lacuna 81


forjada do passo ao passante.

82


Eduardo AraĂşjo 83


glossรกrio

Lucas Peixoto

84


Glossário descoberto durante uma aula na universidade de engenharia mais conservadora do estado mais conservador da matéria. _ Au∙la | s. f. 1 Onde se transmite conhecimento de pensadores e pesquisadores, sem questioná-los 2 Local de dilatação do tempo-espaço, para mais ou para menos _Pro∙fes∙sor | s. m. | adj. 1 “Slideshow Bob” _Co∙nhe∙ci∙men∙to | s. m. | s. m. pl. 1 Como ganhar dinheiro de forma eficiente, minimizando recursos (tempo de vida) e maximizando resultados (estresse) _Co∙mu∙ni∙car | v. tr. | v. intr. | v. pron. 1 Fluir pela fala 2 “Tudo vai, tudo vem, tudo vai e vem em vão” 3 Descaracterística de _Pro∙fes∙sor _A∙dap∙tar∙-∙se | 1ª pess. sing. infinitivo pessoal, flexionado de a∙dap∙tar 1 Estar bem onde estiver 2 Quem não sabe, aprende _Res∙pon∙sa∙bi∙li∙da∙de | s. f. 1 Fazer o que tem que ser feito 2 O que diferencia os homens dos meninos 85


3 Ir ao mercado 8 horas da manhã e comprar café e morangos _Sin∙gu∙la∙ri∙da∙de | s. f. | s. f. pl. 1 Momento de distorção do espaço-tempo, onde/quando as ações do passado convergem a um único momento/instante, alterando toda a continuidade de duas vidas. Pode se repetir. No quadro negro encontrava-se a frase “Pensar ou não pensar? Esta é a questão!”, possivelmente utilizado pelo último palhaço¹ a sair do recinto a fim de exemplificar um paradoxo. ¹ Professor, ver definição.

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Waldomiro Mugrelise 87


canção das horas

Georg Trakl tradução: Priscila Salomão

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Com olhares escuros contemplam-se os amantes Os loiros, radiantes. Em treva hirta Braços ávidos enlaçam-se com langor. Lábios abençoados se dilaceraram em púrpura. Olhos redondos Espelham o ouro escuro da tarde primaveril, A orla e o negror da floresta, no verde o terror noturno; Talvez o inefável voo dos pássaros, a vereda Do não nascido em aldeias sombrias, em verões solitários E do azul decadente por vezes surge um corpo. Suave no campo sussurra a semente dourada. Árdua é a vida e firme o camponês maneja a foice, Com força o carpinteiro concebe grandes vigas. De púrpura tinge-se a folhagem no outono; o espírito monástico Percorre dias alegres; madura é a uva E festivo o ar em vastos pátios. Mais doce o aroma dos frutos amarelados; silencioso é o riso Das pessoas serenas, música e dança em tavernas sombrias No jardim crepuscular, o passo e o silêncio do menino morto.

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Mit dunklen Blicken sehen sich die Liebenden an, Die Blonden, Strahlenden. In starrender Finsternis Umschlingen schmächtig sich die sehnenden Arme. Purpurn zerbrach der Gesegneten Mund. Die runden Augen Spiegeln das dunkle Gold des Frühlingsnachmittags, Saum und Schwärze des Walds, Abendängste im Grün; Vielleicht unsäglichen Vogelflug, des Ungeborenen Pfad an finsteren Dörfern, einsamen Sommern hin Und aus verfallener Bläue tritt bisweilen ein Abgelebtes. Leise rauscht im Acker das gelbe Korn. Hart ist das Leben und stählern schwingt die Sense der Landmann, Fügt gewaltige Balken der Zimmermann. Purpurn färbt sich das Laub im Herbst; der mönchische Geist Durchwandelt heitere Tage; reif ist die Traube Und festlich die Luft in geräumigen Höfen. Süßer duften vergilbte Früchte; leise ist das Lachen Des Frohen, Musik und Tanz in schattigen Kellern; Im dämmernden Garten Schritt und Stille des verstobenen Knaben. (STUNDENLIED)

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Daniela Koyama 91


a janela em que eu estouque a janela

Augusto Meneghin

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a chuva mostraria, talvez, a dimensão da janela quando tudo estivesse inundado e, seguindo certo princípio de inundação, levaria meus olhos a acreditarem na teoria do dilúvio. o rio corta a parte que avisto da mesma janela: parece começar da esquerda extrema e seguir adiante na extrema direita, em algum local onde o vento pede permissão para soprar. é estranho que não me recordasse, na infância, destes quilômetros de rio e nunca me perguntei se o rio era para sempre. o deus egípcio diz: minha forma mais antiga é a forma de um afogado e quando vejo um corpo ser retirado parentes ao redor, pranto antecipado, sei que ele retornou à forma antiga e que de sua boca somente o sal se extrairá. é óbvio, está atestado: o rio não tem sal. quem dele bebe, bebe apenas a água que corre de um sentido ao outro e isso, muitas vezes, não tem importância. 93


desta janela em que estou latitude exata desconhecida (hoje chove) vejo e revejo, minerando a infância, que um barco de papel do ano 97 dissolveu-se em musgo verde: os retratos acompanham-no de mãos dadas. as avós, os parentes, um realejo na loja de usados, isto também segue um curso de inundação. quando a areia vier convocando a água para que se retire, mudarei as palavras: da esquerda para a direita tudo será deserto.

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LĂ­via Diniz 95


Mandame un saludo cuando llegue o al menos la intención

Juan Pablo Cascini tradução: Tiago Fabris Rendelli

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Como artefato do eterno o perfume da lembranรงa arrasta meu nariz rebobinado ao mentol e cigarros do abraรงo de meu pai ou ao suor do primeiro beijo em um vinte oito de setembro.

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Como artefacto de lo eterno el perfume del recuerdo arrastra mi nariz rebobinada al mentol y cigarrillos del abrazo de mi padre o al sudor del primer beso en un veintiocho de septiembre.

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Mariana Novelli Hardman 99


sem tĂ­tulo 7

Filipe Marinheiro

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Devorei pulsos em chamas. Amplamente o rosto envolto por coágulos de sangue luzidio a trespassarem as veias estanques como a enrolar as cores existentes por dentro. Certo é percorrerem todo esse ar que engole o corpo celeste mergulhado na textura do nosso corpo temporal. Fico com as mãos cheias de ossos trancados. Levanto a cauda de um espelho e alongo as vísceras astronómicas, com bastante força química, a dilatar numa circulação sanguínea até a leveza da garganta se alagar na sombra líquida das artérias contra o alto esquecimento das coisas profundas, contra os tendões severos a racharem a boca desvairada. Relembro quando adormecia sobre todas as 101


coisas vivas ou mortas por fora. Submetia os lábios a girarem a voz louca ao lume pedestre e ardia pelo estremecimento terrível dos nervos cabeça adentro, donde múltiplas estrelas demoníacas a baterem-se em mim longamente param, a pouco e pouco, a potência que nunca me sorriu e vago ou inocente deixo de caber nos sítios superficiais à minha volta. Releio todas as cumplicidades translúcidas a moverem toda a pele num feixe de pérolas das salgadas mãos, aos braços a escorrerem aquele alimento metidos nas águas sentadas no túmulo dessas estrelas tubulares. A destreza deste poema extingue-se quando as unhas tocarem na carne abaixo, rompendo, com sinceridade, a desvastação simbólica 102


da escrita furibunda ou silêncio furibundo a pesar com delicada melancolia. Ouço o rasgão do corpo a sangrar com os tecidos dos versos a palpitarem porque se nomeiam e se escrevem dentro da pulsação ininteligível. Por cima, devoro os pulsos em chamas.

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a sombra de Goya

Beso

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os monstros no tempo de Goya não mais vencidos à luz do trabalho (o bico do olhar das corujas) abdicando da imaginação pelo seu suor o homem de água-forte perderá caprichos de cabeça erguida em badaladas retóricas a presença do que ainda não sabe de cor sombra de uma falsa distância sobra escura de uma distante sombra máscara sombras lúcidas dependentes cão parindo morcegos e esta não extinção estes medos anônimos e sua toda moldura sendo sangues inconscientes ressaca de abstração de poder livrar-se do suor de acordar os olhos da noite sem razão de ser luz

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Pedro Spagnol 107


Bianca Moschetti 108


Maria Paula Ferraz Dias 109


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