Poemaço

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#poemaรงocontracopa_1







jeferson mattos

A COPA É MORTA É com profundo pesar que comunicamos o falecimento da Copa do Mundo. Batizada “ Taça Jules Rimet”, nascera com o defeito congênito de ser torneio, não campeonato. Como se sabe, campeonato é robusto, consistente, enquanto torneio, caráter efêmero, tende ao insuficiente. Apesar da fragilidade orgânica, a Copa foi se desenvolvendo, de certa forma amadoristicamente, a paixão pelo futebol navegando nas ondas nacionalistas do rádio. Mas já há algum tempo, para nossa maior infelicidade, a Copa foi acometida pela “”fúrias lucratifs”, doença cujo agente transmissor é a FIFA. Os males decorrentes vão do descolamento de placas de grama das arenas ao desalojamento imediato de centenas de famílias, da não-localização do lugar constante no ingresso à impossibilidade de continuar morando no entorno das arenas por não poder pagar o valorizado aluguel, da festividade ensaiada à morte de operários. Assim não há organismo que agüente, e a Copa não agüentou. A pá de cal coube a Dilma Rousseff, com a profusão de gasto público. Aí já era demais. Haja capacidade de abstração para continuar apreciando a paixão.


guto leite

“VIVA O FUTEBOL” a folha de pagamento mensal do barcelona paga todos os professores estaduais do rs a folha nada seca de pagamento mensal de um clube de futebol o barcelona põe o leite o pão a carne os grãos na mesa das famílias de todos os professores estaduais do rs um craque do barcelona digamos o neymar não o messi recebe em sua conta ao final de dez anos de dribles chapéus passes e gols o equivalente à reforma celebrada


do hospital de clínicas que atende no mesmo período seis milhões de gaúchos metade da população do estado a alegria que um craque do barcelona dá ao mundo por dez anos vale em igual intervalo de tempo o bem cuidar gratuito da saúde de seis milhões de gaúchos dez beira rios lotados de doentes em suas macas soros gazes curativos analgésicos assistem a magia do barcelona sem assisti-la porque não têm tv a cabo


às quartas domingos ou sábados quando um craque do barcelona parte com a bola dominada de seu campo na rede globo e arrasa a defesa adversária professores pacientes vibram com a jogada correm por seu corpo não a comida não a partícula que sara mas a vida a própria vida que se esconde na habilidade com a bola um deus rude físico sensível quando a bola estufa a rede


do rival do barcelona a fome a morte a folha mensal do time dos atacantes os direitos de imagem o orรงamento do estรกdio ficam para mais tarde e viva o futebol


andré vallias

LOGÍSTICA nacional de sítio estádio baixada de exceção arena mineirão de sítio estádio pantanal de exceção arena castelão de sítio estádio amazônia de exceção arena beira-rio de sítio estádio pernambuco de exceção arena dunas de sítio estádio fonte nova de exceção arena maracanã de sítio estádio são paulo de exceção arena


maura voltarelli

FANTASMAS Avistarás em algum lugar pelo meio desse caminho grandes construções oponentes. Quase palácios, quase castelos majestosos e solitários a contrastar com todo restante da paisagem desses lugares festivos e amenos. Haverá alguém que neles cante haverá alguém que neles grite e ainda, sempre, mais uma vez, haverá alguém que neles chora. Não um choro de emoção tampouco um choro de alento mas um choro de resíduos, de restos de despejo, de progresso. Um choro cadavérico. Não verás verdes, nem amarelos não há loucura nem esperança quem dera se houvesse. Há apenas um cheiro de sangue e gás que violento cresce.


paulo spina

INDEPENDÊNCIA OU COPA Ou temos Copa e não temos direitos Ou conquistamos direitos e não temos copa Ou nos calamos e engolimos mais um sapo Ou nos revoltamos e exigimos “Não vai ter Copa” Ou nos enganamos e achamos que somos soberanos Ou encaramos a verdade que somos ainda o mesmo [ Brasil Colônia de tantos anos atrás Ou Aceitamos ser colônia da Fifa Ou mandamos A Fifa rifar a Copa Ou continuamos presos a escravidão assalariada [de todos os dias Ou enfrentamos o capitalismo internacional Ou continuamos ajoelhados a tudo que vem de fora Ou nos levantamos e lutamos Ou somos miseráveis fãs das bobagens do Pelé e [do Ronaldo Ou mandamos eles se ferrar e dizemos não [ tem arrego Ou se tem medo e não se tem coragem Ou se tem coragem e não se tem medo Ou assistimos a corrupção Ou se indignamos e vamos pra rua Ou se tem Copa e não se tem Independência Ou se tem independência e não se tem Copa


Ou submissão, ou emancipação! Ou isto ou aquilo1!

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Nome do poema de Cecília Meireles que inspirou este.


marília moschkovich

GRITO FUNDAMENTAL Lanço esta pedra - camaradas futuros! fundamental já lascada polida aponta a ponta e crava na ferida. Fundo esta luta - camaradas eternos! classe a classe que atiça o fogo em catarse. A chuva contralto mezzo soprano corrói aguda em ácido e molha profano. (Acre com acre se combate - companheiro; por acaso queres um pouco de vinagre?) Fumo esta pedra - camaradas extintos! filosofal já moída e dichavada contorcida bem bolada nas folhas de meus livros militantes ou nas fotografias em papel-jornal queimadas às pressas aos prantos e sinto


aquilo que também canto. Vos mando então, camaradas à fogueira às favas ao que resta das palavras este monolito: meu eterno, futuro, e agora já extinto grito.


ivan antunes

em uma copa [que não] capa sonho arranca pobre mata gente compra farda testa bala e faz da fifa um troféu nacional em uma copa [que nunca] cospe em gente especula imóvel abre buraco e finge trem seca a água e todo o canto falta luz pra alumiar bem qualquer arena em uma copa [esquizofrênica] não há cores na bandeira mas, luta e greve, sim! grito em praça, sim! “deveria ter sido antes” embate-corpo-a-corpo antes que assim o faça a rede bobo! - o poema vem antes da bola, que vem antes do ovo ou que vem antes da fifa? se a ordem dos tratores alterasse a construção as exceções e as mentiras impostas sobre a arquibancada leste


seria um puxadinho com todo direito a ser no padrão-maloca e o rei não aumentaria o poder na pele judiada do povo hienas camufladas cantam BRA na tela na rua perfumam ácido sabor lacrimogênio de felasdafifa em chibatadas e bombas com exoesqueletos verdeamarelos brotam mais feridas e pulsa em todo canto revolta popular


pedro lostes

FUTEBOL a bola rolando todos postados em suas legítimas posições: ricos, pretos, gays, mulheres, padres (o mundo feito um perfeito balé) cada qual exercendo a sua função o jogo prossegue sem en/traves/. há quem acredite nessa pretensa harmonia mas de vez em quando alguns se chocam. falta, na área. é penalti. e o cobrador bate na porta da sua casa com a conta vencida do mês passado. isto é pelé!


pedro tostes

Aos 45’ do 2o Tempo A vida, eterno empate. Jogo rolado na rua. Descido ladeira. Pegado na veia. Firme, de canela. Sem piedade nem proteção. Toda par tida é falta. Sempre uma decisão. Ouvi dizer que nesse embate não vai ter prorrogação. Então bola pro mato que o jogo é de campeonato.


lucas page pereira

AVISO Que os leitores não pensem que esses poemas constituem uma antologia “ante-Copa”, mas, sim, uma ontologia do “não vai ter Copa”. É nesse espírito, ao menos, que os versos que seguem devem ser sidos. I “Sou seu trezentos, sou trezentos-e-cinquenta, sou trezentos-e-cinquenta-mil...” “Sai!” “Não!” O trabalho começou logo cedo instrumentado e aparatado de de farda e de medo que por cada beco apertado maltratado e decrépito sobe retirando lágrimas, lástimas e mobílias que em caminhão de lixo ||O F I C I A L|| carregam as memórias e as vidas acumuladas e compradas à prazo à força de lidas e lidas. “Oficial!” grita @ pobre que sem gênero ou dignidade é novamente reduzido à contabilidade: - os zeros que lhe faltam à direita no contra-cheque - os zeros que se somam à sua senha de espera Desespera. Chega de esperar! “Oficial! Essa é minha casa!”


“Cumpro o ofício, apenas.” “Meu irmão! Essa é nossa casa!” “Cumpro o ofício. À penas!”


II Pegue sua bandeira e pinte sua faixa carregue-se de lenço e de vinagre, pois é com coragem e não milagre que se se luta quando bomba baixa. Arranque depressa sua alma da caixa e encha bem com pedras seu corpo-onagre, mostra que é tudo menos salagre, que luta e que jamais cabisbaixa. Alonguemos nossas vozes e almas. Que a chuva venha nos fortalecer cobrindo a rubra rua com suas palmas. Do fim da tarde ao escurecer, face à Estrela de luzes alvas, foice e martelo dão seu parecer.


III ¡La calle está llena de negros coches y hombres! Desvia ! A bala não está ¡borracha! Dis per sa e reagrupa! Sobre esta imensa urbe-gruta voam águias treinadas que iluminam com sua gra(s)nada o avançar dos cães, cavalos, escudeiros e cavaleiros. Correm os morenos. Abraçam-nos corpo-a-corpo. E Seu José pasma-se: com as demandas levadas pela enxurrada com o prazer do UFC live on the street com os blocos que se agregam [para desagregar Deus e o choque protegeram o templo de São FORD. Os estilhaços estão por toda parte. “E você telespectador? Aprova a baderna contra [ a Copa?” “Não tenho crédito, mas se tivesse diria que apoio o Brazil.”


IV As ruas não estão verdes nem amarelas Amarelo mesmo só o ocre das mãos dos que voaram dos estádios; dos arrastados e desaparecidos pelas forças do Estado. Verde mesmo só a erva que sobre eles cresce Nostro Problem não es la “Coupe du Monde”. Nostro Problem es le “Coup du Monde” que sobre seu Altar-Símbolo não importa muito onde exalta seu sentido-arque: TM . Trade Mark.


mariana ruggieri

CORNUCÓPIA o estádio come gente cospe gente gargareja gente depois gruda gente com corega que também grudou a caxirola na gravata com corega entre o trabalho e o happy hour porque uma hora é o suficiente uma hora é o tempo de fixação depois de limpar bem a superfície enxugar com alvejante o entorno da festa e também a escadaria onde os meninos iam para a outra festa que não se pronunciava em inglês com sotaque constrição do fonema - só a bala contra o grito da maré e os homens-chocalhos atrozes mas principalmente ridículos com seus carrinhos de supermercado abarrotados de produtos taeq nem sabem das meninas no vestiário masculino pé apoiado no mictório para dar dois laços na chuteira larga e do mainá do garrincha que quando detonar o seu canto vai dizer algo que a elza provavelmente já há algum tempo mas ninguém escutou preocupados em amar a bomba em adorar a bomba em montar a bomba porque cresceram demais para o carrossel




tomaz amorim izabel

SIM, CINISMO! I RELAXA E GOZA RALÉ GLAMUROSA RACHA O BICO RALA A RACHA BICA, BRIGA BICHA, BISCA ASSOPRA A BRISA E A BRASA DO CAXIMBO DA BIQUERA PISCA-ALERTA PARA GRINGO LAMBE ARISCA A GULOSA E RELEVA A GOSMA A GLOSA ESGANADA ENGASGADA A GLANDE ENROSCADA NO FUNDO DA GARGANTA GLAMUROSA RALÉ


RE-LÊ E RELAXA RELAXANTEMENTE RELINCHANTEMENTE RELAXA E RELEVA O LANCHE E O LATICÍNIO LAXANTE NA QUEIXOSA LEITEIRA NA CHEIROSA LIXEIRA DA LUSTROSA LITEIRA SOLETRA O ALGOZ: RELAXA E (A)GO(NI)ZA.


II Pelé pelo menos pela pele. Pelé rei enlouquecido. Pelé por que nos abandonaste? Pelé quando desafiou os colonizadores e venceu os inventores da bola foi arauto de camisa tão amarela quanto a cara dos subdesenvolvidos. Pelé, que escreveu arabescos nas folhas verdes, hoje escreve seus mais sublimes versos em branco silêncio, Edson mudo. Ronaldo e seu mantra amaldiçoado: - Não se faz Copa com hospital, ardo. Ronrona para o público e depois mostra as garras, enche o largo e discreto cofre anal de dinheiro aliciando aqueles que encantou na final do mundial de dois mil e dois, e depois, mais um louco, falsário, da Fiel, do time do povo? Não! No céu em preto e branco dos manos não tem espaço para quem é traíra, e hipócrita, talvez jogou mais bola, talvez não, e se é tão bom, por que não joga-te


ao contra-ataque com o povo? Ronaldinho ou Ronaldão, Sócrates nunca serão! Blatter, Joseph e outros chefes teus blá-blá-blás, nomes e assinaturas nas folhas da história e dos cheques não sobreviverão ao primeiro tabefe de ar ao primeiro soprar da brisa. Os brasileiros que entendem do campo mandam os suíços de volta ao banco com suas reservas. As delícias das nossas terras e peladas estão fechadas a quem quer cercá-las. Meninas e meninos, solteiros e casados, de camisa e descamisados, todos jogam, todos sabem que não é o lucro do prédio, mas o lúdico do pédico. A única copa que importa é a manilha vermelho-coração sacada de súbito do calção com a qual vence o nosso lado e manda sua quadrilha embora. Cobras, crápulas, cúpula, - catapultados. Único grito de gol que se ouve é das crianças nas ruas do globo. O estranho silêncio da Rede Globo testemunha da Copa que não houve.


III. “Gol impedido ou não, meu time foi campeão!” Reage à emoção decretada nas tábuas sagradas de construção dos superfaturados estádios. Depois da última pedra de fechada a última entrada de instalada da última antena repara que já não há lugar na arquibancada que já se aproxima sem pena a hiena e que se está, desarmado, no meio da arena. Relaxa e agoniza, operário, imortalizado entre o rejunte da muralha que dá liga ao circo da massa. Goza e urra, ao gênio do drible e ao tremular da filigrana branca e da grama verde no fundo do gol engenhoso embuste da coleira coletiva meia-lua neon-cristal-líquido, meia-lua de cal e grosso calibre de chumbo dos manda-chuva da FIFA. Reage ao decreto de remoção forçada à demolição das tábuas de palafita e das paredes de madeirite. Resiste ao choque brilhantinado pelo flash da imprensa, pensa ao lucro vil, ao sequestro do parque juvenil pelo tapete de veludo gramado. - Relaxa,


energúmeno, não tem feijão, mas tem Chiclets: Engole, energúmeno, ein? Gol! E gum? (Gun! Não é bala de borracha não é bala de bolacha, não é bala de chiclete!) E não? En(gol)ener(gum)ino - Let’s... get chic! Relaxa. Engole. Engasga. Relaxa - relicham e passa monange na assadura da bala de borracha (sem, antes, jurar revanche). Reage às premissas de progresso aos processos de molde e demole levados na fibra do braço de anônimos sem voz e máscara em ininterruptos projetos onde tudo que era antigo, agora antiquado, foi destruído para tornar-se aço, e vidro e – para segurança da vizinhança – concreto-armado. Arranha-céus ali, prisões e muros lá, reage a esta epidemia de ferrugem,


a esta Dalila, arquiteta de arapucas, que nos deixou eunucos e carecas em troca de uma verde-loura peruca. Mas estas forças reagem e por mais que se raspe a cabeça insiste a juba, laranja-gari, e ressurge. O operário acuado de quem se toma a vida para espetáculo alheio urge por bem roer os reios e calar o riso das hienas que espreitam. Reage, operário, e ruge! Revigorado de força capilar encerra o cortejo na Arena esmagando nos punhos erguidos os pilares reduzindo o Mausoléu de Itaquera a areia. Rei preto, Pelé, Rei branco, Tostão, desmoralizados por Sansão. “Gol impedido ou não, meu time foi campeão!”


thiago cervan

COPA


romário de souza barboza

ALUGUEL SOCIAL A cova Adia A Covardia. A MOR daça do dia AMOR DIA A moradia A mor te de dia. De um sonho Que reluzia. Em cima de Uma caçamba. Todo o pertence Se Destruía...


eduardo sterzi

O REINO O rei estรก nu a caminho da guilhotina Se a gente bater palmas ele danรงa



roberto casarini

TUPI VIROU UM GOLE DE PITÚ PARA AFOGAR AS MANDRÁGORAS o tupi virou o pote de pitú para regar as mandrágoras “a minha tribo quando chega na aldeia índio não faz cara feira não deixa a flecha cair tupi, tupi or not tupi tupi, tupi or not tupi ser ou não ser, tupi!!! não sei se vou não sei se estou não sei se fico nada aí disso explico nessa história or not tupi... tupi, tupi or not tupi tupi, tupi or not tupi ser ou não ser, tupi!!!” to be or not to be is the question tupi is the answer tupi não topa papo de copa se não tiverem todas as aldeias maracanãs...


futebol: ao sol, à sombra. ao rico, tudo ao pobre, a sobra futebol do mundo, mudo-mundo-bola do patrão, a sola que ao vagabundo assola. futebol de todos, futebol de poucos, fútil bola. vai, voa vem, rola... futebol: ao sol, à sombra. ao moleque, tudo ao cartola, a foda futebol da massa muda-massa-manobra na torcida, a sombra da bandeira assomb


Felipe Braga futebol: ao sol, à sombra. ao rico, tudo ao pobre, a sobra futebol do mundo, mudo-mundo-bola do patrão, a sola que ao vagabundo assola. futebol de todos, futebol de poucos, fútil bola. vai, voa vem, rola... futebol: ao sol, à sombra. ao moleque, tudo ao cartola, a foda futebol da massa muda-massa-manobra na torcida, a sombra da bandeira assombra futebol de todos, futebol de poucos futebol da vida vem, voa vai, rola... tempo remoto no fim da partida apito por vir de anúncio final, jogo partido vida que parte final da partida


não há mais sinal. no campo vazio, fica a memória: resiste a vida em curtas estórias: capítulos épicos derrotas e glórias, instantes que sós: amargam, assolam consagram, sangram; na festa da bola, ao sol e à sombra tudo se amarra: o eco do grito rouco de gol o sofrer do choro seco de dor. futebol: do sol à sombra do gol à tumba futebol: só; assombra futebol: do sol à sombra do gol à tumba futebol: só; assombra no campo vazio, fica a memória: resiste a vida em curtas estórias: capítulos épicos derrotas e glórias, instantes que sós: amargam, assolam consagram, sangram; na festa da bola, ao sol e à sombra tudo se amarra: o eco do grito roco de gol o sofrer do choro seco de dor.


futebol: do sol à sombra do gol à tumba futebol: só; assombra vagabundo passa a fútil bola para o patrão, que fominha, segura e perde a bola...


amara moira

TENDO-SE RECUSADO O INTELECTUAL A FAZER PARTE DA GREVE, ESTOURA-LHE UM PIQUETE NOS PAÍSES BAIXOS caralho falho à mão que empunha apanha no que tenta a bronha e se unha atrás da langonha venha o que lhe venha melhor morder fronha ou guardar a lenha pois quando se acanha quanto mais se ordenha mais ele se aninha e faz passar vergonha que lhe valha a alcunha


Juliana Bessa Copa, topa? Brigo, abrigo... Falamos,falhamos? Falta sempre e agora? Investe no que veste, Fabrica o que pinta, Assim a banda toca. Torcida vibra? Há ralos e tvs. Curti, cortei, calei. Pólo, pálido, político? Trabalho e tardo. Foda-se. Emoção não se mede. Nunca Vi Tantos Corpos.


dolores bezerra

diagnóstico não dá pra namorar não dá tempo de cuidar dos cabelos da pele dos dentes do corpo pôr as pernas pra cima um pouquinho, descansar no fim do dia não dá pra ouvir histórias da pequena do dia na creche não dá é preciso limpar a casa o nariz da pequena tirar o pó lavar roupa panela chão janela bebê fazer jantar e malabares para a quentinha de amanhã consolar a vizinha que perdeu um menino tão bom tão bom tão bom morto a tiro de policial dividir o que dá da cesta básica com a irmã grávida com problema de pressão que não pode trabalhar as pernas queimam no fim do dia durante a noite no começo do outro dia que não é começo e queima o mais velho queima lixo queima o pé chutando bomba de volta pra polícia se o destino é morrer cedo, não vou ficar calado, polícia filha da puta, na favela a gente sabe: a vida é luta mal vê o sol aos finais-de-semana. aprendeu a dormir em pé no trem. o motorista do trem mora ali perto de casa. disse que vão fazer greve porque o dinheiro não dá. meu dinheiro também não dá, sem trem como chego na patroa? não se avexe, a gente junta todo mundo junta todos os fogão


toda cesta básica bota água no feijão e dá comida pras crianças só não pode chover só não pode chover não pode chover não choveu. ninguém morreu perdeu a casa o colchão a TV que ainda faltam oito prestações nenhum bebê de mãe endividada irmã passando a infância passando roupas num tempo que diz que há trabalho por fazer é preciso trabalhar é preciso pagar as prestações comprar leite e um chinelo para a escola que não ensina quantas roupas engomadas quantas golas cabem numa hora em que nenhum nenhum bebê da zona leste de são paulo foi levado pela enchente que hoje não aconteceu.


sem autor

ÊXODOS DO BRASIL Um brasileiro extraviado diz ‘aqui não dá mais pra levar’ nas pontas dos dedos segura pelando talão fantasmático do INSS não é viável adquirir mais uma doença Bolsas, incentivos, trocados de nota fiscal a privatização dos bens escavando no dia a residência que não possuímos ainda Conheci uma menina florão da américa que em coma esplêndido o pai prostituiu E pelo menos um milhão de brasileiros esforçados que se cansaram de gols e outros orgasmos frígidos e talvez alguma bola de borracha escave também seu olho e conheçamos por nós as novas cadeias privatizadas O país vende tudo e as promessas sentimos muito a beleza atordoada um pavor nas ruas


o linchamento dos ladrões o incêndio dos indígenas as figurinhas da Copa o medo o asilo na casa dos vizinhos e as meninas algumas grávidas Estava vendo no youtube qual a graça dos pés dos jogadores exportados e percebo que o drible diário de eu que não adoeço impressiona mais O sorriso esgarça violentado a cara da multidão vai transmutando numa careta esculpida num troféu


andré nogueira

O MANIFESTO LENITIVO


CAPÍTULO I.

(O Cataclismo dos Catadores): Atenção, todos que estão a bordo e a transbordo deste bonde – a sanfona de foles de alumínio é sempre mais que a soma dos cólicos dos intestinos. Aquele que se senta e põe no colo as magras nádegas de um livro e os outros sessenta a quem restam os fones de ouvido. Pensam estar vivos porque do peixe não se fecham os olhos enquanto ele flota no óleo do laticínio “não-perecível” e rangem os dentes com um ódio que é de rachar o aparelho ortodôntico à espera de no próximo dos bondes assistir a mais um episódio de desencarne coletivo se com sorte cavoucar um ângulo inequívoco de onde a telinha esteja visível. Mas quem olha de fora do aquário só vê manchas de gordura nos vidros e umas cabeças neles batendo, num desmaio que é demasiado chamar de “vida”. Vocês, ocos de atributos divinos: impotentes, inconscientes... onívoros, sim, comem de tudo bem pouco. No raio de possibilidades de uma cesta natalícia tão básica


não se pode calcular, senão com um milagre, algum dia uns ovinhos de páscoa. Embora os coelhinhos não parem de se multiplicar... Onde conseguir aquela delícia de vinho reservado aos vestibulinhos da primeira classe que em seus doze lugares se sentam com a fórmula de báskhara e escutam música clássica? Tenho-lhes a dar umas palavras indigestas, eu sei, mas precisamos conversar num mesmo nível e é para coçarmos nossas calvas daqui a cem anos que hoje proclamo este manifesto lenitivo. Vocês querem, pois, um livro? Sempre, quando abro uma gaveta de achados e perdidos, entre tocos de lápis grampos de cabelo gordurentos e chaveiros com escudos futebolísticos, encontro uma (ou duas) amostra grátis do Novo Testamento e às vezes uma brochura, num capricho de papel magenta, do Manifesto Comunista. Alguns temem, sobre as cabeças da gente, de Lênin o seu indicador em riste. Nas universidades há outros que chupam, com afinco e minuciosamente,


os bicos dos bebedouros, dizem-se marxistas porque disputam nas reuniões de departamento quem mais estufa as plumas em torno de alguma questão de alpiste até que, a miúdo e com a sintática fineza de um pente, arrancam o couro cabeludo dos colegas grevistas! Eu pergunto: acaso eles sabem o que é isso, a “práxis”? Por mais que gastem as pontas de seus lápis! E por mais que brilhe a nova placa “Carlos Marighella” sobre a velha, de chumbo e ferrugem: “Colégio Presidente Médici”. Só vocês, da cotidiana guerrilha, é que vão puxar o passado pela goela e morder com esses dentes tão gastos e sujos quanto espátulas de self-sérvice! Vocês, que catam do lixo e achatam com a botina (ou até mesmo descalços) por dia uma centena de latinhas, se quisessem, por um capricho, esmagar o mundo, conseguiriam fácil: basta que respirem fundo e todos, a um só toque de tambores, como um exército de chineses, instaurem, com ferraduras de aço, o cataclismo dos catadores – depois de dois mil e treze, esse é o nosso próximo passo.


A “práxis” do dicionário, a revolução saída da caixa do mágico, é um papelão risível mas até que aproveitável para o catador. Mas seu fardo diário não vem escrito “frágil” nem seu cabresto encontra o alívio de aspas de isopor.


CAPÍTULO II.

(Meu Primeiro Benzetacil): “Relaxa – uma vez disse, preciso como sentença religiosa e com sabedoria bacharelada, certa figura notória, prefeito ou vice – e goza”. Chegou a hora, perdidas as rédeas da biga, de encarar os coiceantes traseiros dos fatos: com relinchos assim, esses que nos guiam quem poderia esperar que fossem elegantes como um Incitatus? Mas uma dessas malas-sem-alça com uma prosa dessa e um dinheiro na meia conseguiu que lhe dessem as rédeas em forma da verde-amarela faixa. Agora não adianta pôr rodinhas nos pés. Só uma nova “Nuvem de Calças” saída de uma panela brasileira pode ser um remédio para esta auto-estima baixa da embaixada rebaixada a embaixadinha nas terras do rei Pelé. Mas, para isso, a linguagem binária (“Crédito ou débito?”) de todos os operadores de caixa terei de levar a óbito. O povo andará ébrio pelas ruas com uma cara de tacho por ter esquecido em que dia recebe


e quanto era seu salário pois encontrou, na sua própria fervura, seu ópio. Como não disponho de um zíper para extrair a barrigada, a nação, de Floripa a Sergipe, terei de vivisseccioná-la. Mas prometo defendê-la, a causa das calças com números de pernas ímpares e o direito das malas de não serem puxadas pelas orelhas. Os algozes gozam, varrendo no chão da delegacia montículos de lascas de unha: “Vocês estão nervosos? Mamãe já dizia: relaxa e passa hipoglós na assadura da bala de borracha”. Os porcos-fardados grunhem assim como trina o pássaro o cão rosna o sapo coaxa e todos, cada um em seu uniforme, variam a mesma baboseira conforme seu grau de escolaridade ou sua proposta poética. Mas uma verdade exista por trás desse “relaxa e goza” como quando a lata da lixeira, lembrando o invólucro da marmita, ressignifica-se e a salada de babosa só pode ser ingerida dentro da validade de uma sentença ética.


As variações giram em falso mas eu quero parafusar o tema. E os convido, mastigadores de bagaço, arrulhadores verde-amarelos, nas vias metroviárias ciscadores de farelos, a dar atenção a este tira-teima. Façam de conta que esta penalidade máxima, além das duras penas que vocês contam as vizinhos de fila na sala de espera médica, é, embora uma solução um tanto ácida, se me fizerem o favor de engoli-la, uma boa decisão para a Copa América. Vocês variam apertando o mesmo mi-mi-mi, mas eu, num desvario em meu banquinho, para cada apóstolo darei uma Santa Tecla e, como o Filho de Deus, serei um distribuidor de missões dodecafonista. Como às bolinhas dentro do apito vou enfurecer suas moléculas, para que não anunciem, quando mais um jogar-se nos trilhos dando seu último adeus, “o atraso se deve a um probleminha de animal na pista”. Os que gritavam “Rota na rua!” gritarão afinal: “Pena máxima para ele!”, apontando para mim os dedos, pois só bala de prata contra vampiro. Mas aqui eu testifico que não tenho um grau menor de escolaridade penal.


Se me encerrar entre quatro paredes tenham de mim dó e honre-me o tão rico metal condecorando-me com o tiro. Não tenha eu de comer carne crua no bandejão penitencial e ser executado pelo rotavirus! Aqui eu os convido para um lanche feito na chapa de uns coligados muito idôneos. João Havelange tostou a largada com o ebuliente motor da lancha numa dessa junta de cabeçotes. Tanto faz se mal, bem ou ultra-passada a paisagem protéica do corpo de um cetáceo; se, no topo de serra de carne morta, há uma folhinha de alface hidropônico. O que importa estar voltada para Meca, no momento do cacetaço, a cabeça do garrote? Ouça lá o som dos escapamentos... Coitado do coiote atrás dessa lufada! Não há quem tão ávido pilote sem deixar na cueca uma freada com um número contável de pregas ou careca, se muito rodada. O Papa-móvel que celebre, enquanto limpa-se o Papa-léguas atrás da moita no acostamento, a vitória da tartaruga sobre a lebre! E, como uma caçamba carregada, a fralda resta na calçada.


Mas, num pit stop em ilhas pra canários com ipsilones, nada que não refresque uma limonada e um abano com o leque, os lábios beiçosos dos Rolling Stones num desbunde de ula-ula enquanto é completo o drink com a gasosa. Nós sabemos quem se funde tomando numa rima com Honolulu e, na dialética do laxante e relaxante, entre um lanche e outro lanche, retardatariamente goza. O someliê faz caras e bocas de degustador para o somaliano, ao dizer: relaxa e, apesar da dor, degusta este ano de copas e cabanas – as empilhadas ocas dos indígenas americanos, com uma ajuda de custo (eu doarei as madeirites do container onde trouxe a bicicleta ergométrica de Wall Street o meu personal trainer) ficam ecologicamente mais corretas em reciclados de papel higiênico. Nunca antes, quando crianças, vocês quiseram uma casinha na copa? Sorriam! A mais bela árvore frutífera financiada pela FIFA é este pé de pano pra manga à beira da esteira que sempre roda na fábrica chinesa de bugigangas e de onde pilhados saíram os castiçais dourados de Tezcatlipoca!


Enquanto isso estou cuidando, neste ano em que a palavra de ordem é o atletismo, dos meus batimentos cardíacos e tomo também um concentradíssimo chá de losna. E ali fico, no píncaro, como o sábio babuíno, num alongamento ginástico esticando a corcunda ou numa pose de ioga. Num telhadinho da colina ele avalia a consistência do próprio esperma e posa para a academia de ciências dobrando as pernas e mostrando a bunda cor de relaxa-e-rosa. Mas, vocês – de pele cor de pé-de-moleque, cabelo black e cabeça de microfone-aberto ligado no power! Vão viver tomando omeprazol e em seus esconderijos nas cabines de banheiro da rodoviária ler revista de sexo segurando o membro nem rijo nem mole? Não lembram que é necessário lavar as mãos antes de pegar no cartão “sodexo” ou cumprimentar o adversário para o jogo de bola? Não! Assim de cócoras é que estão se cagando os milionários, pois eu garanto: quanto maior o rolo do extrato bancário tanto mais papel higiênico desenrolam. Eles não ignoram, os sofredores de algoritmia,


que o penico é de pedra dura mas, quem muito bate, uma hora fura, e essa hora será nossa “Ode à Alegria”. Digo a vocês: é triste vê-los como essas floresinhas e coelhinhos em relevo no papel amaciante... Que essas flores tenham espinhos e, esses coelhos, dentes dilacerantes! Eu vejo que o concurso de popozudas é uma concorrência desleal: “As poupanças mais carnudas do Brazil”. E todos, afinal, o dia de seu primeiro beijo estão dispostos a revivê-lo. Mas eu, o dia em que você baixou a bermuda vou reavivar, e com um selo de poema premiado: “Meu Primeiro Benzetacil”. Você, então, quer ser macho? Faça dessa uma cabine de maquinista e arraste a rodoviária impondo um ritmo de marcha com pressa para que empecilho não exista em atropelar esta cidade ordinária! E não ligue se estiver escrito “Não pise na grama”. Ela não é assim tão sagrada quanto a relva do púbis da garota de programa. Preciso citar uma errata a um versículo bíblico:


“O lugar público às vezes aguarda por quem atire a primeira pedra!” Colocaremos, como piratas, as carcaças dos banheiros químicos nos assentos das catapultas e, enquanto alguém arreda no heliporto do terraço da prefeitura, miraremos bem na hélice – sob os guarda-chuvas acotovelem-se! Pois haverá uma fontana de merda. Para não ser sua cabeça sua propriedade e sua privada, não se preocupe: só veja se pensa em alguma novidade que possa ser gritada em praça pública! Eu já lhes dei que ler um livro e estudem, pois todos vão passar pelo exame de toque! Eu já lhes falei do dedo indicativo de uma múmia enrolada em papel branco e marchando em ritmo de polka? Lênin vive! Agora todos formem uma duma e convoquem em exército branco. Pois não vai ter copa nem camisa pioneira, mas somente o branco afro dos moleques que entraram na roda de capoeira e nunca mais no semáforo pedirão se alguém lhes dá um copeque.


Já o Manifesto diz: “Um espectro ronda a Europa”. E tinha de ser eurocêntrico... Agora, em nosso país, tem até copa! Mas tudo segue idêntico desde a descoberta da América: o espectro magnético ainda descende dividido em capitanias hereditárias e os índios continuam levando bucha enquanto todos sintonizam vozes luciféricas tocando, tanto faz se de frente ou ao contrário, o disco da Xuxa. Cheios de “coragem” xingam da passeata a bandeira vermelha pelo espelho retrovisor de direita de seus Jaguares engarrafados e carrancudos. Quero ver, quando sair da garagem a gigantesca rata “Caveirão”, com seu arroto satisfeito de ter engolido uma ovelha, como se mijam então esses seus gatinhos miúdos. E faça-se um bom proveito dessa poça de óleo diesel. Nunca antes um isqueiro serviu tanto ao dever cível! Óleo para fritar estrelas de programa num horário em que só estejam as nobres em seus trajes retrôs bélle-epóque ou cintas-liga com rabicós de coelho. Quem sabe a esta ratazana depois de um banquete de carne humana não apetece tão delicado profiterole?


A tropa de choque será engolida pelo Mar Vermelho! Não o do Êxodo nem este vermelho também com a foice e o martelo de um imperfeito pretérito. Arranquem com os dedos as estrelas das Mercedes-Benz e as pendurem na lapela de seus uniformes de detentos como medalhas de honra ao mérito! E então veremos como goza com seus punhos sangrentos a “aurora dos dedos de rosa”. Realizaremos o sonho da Itália chutando, em seu eterno ímpeto, a bola quadrada da ilha siciliana e sempre freada pelo paradoxo da tartaruga. A Terra, nós vamos murchá-la mordendo hexágonos e paralelepípedos, e chegaremos ao umbigo de Brahma puxando a raiz de uma verruga. É tempo de pedirmos ajuda aos anjos (os anjos universitários...) Eu afirmo, com voz de corneta: é peremptório formarmos uma falange não sei se de mascarados mas, certamente, com asas. Pois, rumo ao penta de um pentagrama dos diabos, nosso país, sob um enxame de helicópteros, sofre de asma – e, contra isso, só uma bomba


desferida na boca. Já eu recomendo a Pomba de uma notícia boa. E, enquanto as turbinas assim ecoam, você escuta easy music nas lojas da “Abuse e Use”! Se elas fossem espertas recheariam seus cabides não de calças jeans com furos ou malhas para o outono e inverno, e sim com uma grande oferta para, acredite, uma grande procura por coletes à prova de balas! Agasalharmo-nos no inferno. Prevejo tempos em que um jarro de água, inerte sobre a mesa, terá a densidade de uma granada desrosqueada, e uma garrafa pet de uma empresa rival da coca-cola demarca o ponto x no mapa. E em todos os mictórios haverá tapetinhos em formato de bola enquanto o nível de água sobe – “Consolatrix afflictorum ora pro nobis” – e às vésperas do dilúvio para desentupir o ralo não nos darão luvas, eles só pensando em como tocá-lo, este monumento à vitória em que a bola substitui o Salvator mundi orbe.


Alistem-se! Ter dois cus será o principal atributo de seus currículos! Um deles só para ralar nos corrimãos em corridas de polícia. O le parkour será nosso principal esporte olímpico – esporte esse em que os lixeiros, atrás do caminhão, já há tempos são especialistas! O que você faz atrás da vitrine na academia olhando o povo passar na avenida? Vai ficar aí tomando “bomba” e correndo na esteira feito um hamster? Mais amor à vida vamos ter – e não adianta o protetor contra o sol nem no suco de melancia o adoçante. Tire os fones dos ouvidos derrube esses biombos e venha provar-se capaz, segurando raquetes de frescobol, de rebater os dardos tranqüilizantes! Num capacete de operário esticando as tripas de um burguês faça Hermes uma nova lira para novos poetas. Que atropele os outdoores partidários pisoteando seu estilizado português uma manada de paquidermes por ter confundido com um camundongo um rabo demasiado longo de uma letra do alfabeto. Somente lute quem tiver um pé na África e sangue quente de mamute


segurando nos dentes baionetas de marfim. E a próxima arca não resulte num navio negreiro, e nem embarque corpos humanos como sashimis. Deus, se a tudo quiser lançar um jato de água, consinta que eu fique na dianteira de teu barco de braços abertos, como no Titanic, para eu ser uma cruz no estado laico para eu ser, meio à enxurrada metálica dos carros, uma última capelinha de pau-a-pique. Que, atracando no pico de uma montanha, eu pegue do velho mundo o crânio e lhe diga, face a face, como Hamlet: “Eu disse ou não disse?”. Mais literatura vamos ler – e menos literatice. Que, no cume do cânone, me publiquem depois de tudo ter ido pelo cano e a tudo possa eu recolocar nos trinques. Se alguém, amistoso, puxasse a descarga desse estádio no Itaquera... Afinal, não é conclusivo que este colosso de argamassa é um imenso vaso sanitário? Teríamos, além de um princípio de alívio, um ritual re-iniciático para a nova era. É para expurgar todas as classes a começar pela arquibancada ruralista e alguns outros salafrários quererão sair de maca. Como se adiantasse... Impedimento não exista depois de resolvido o impasse com toda a corja que os adula


incluindo alguns gandulas sempre lhes segurando as bolas do saco. Já vi que, para me fazer um remendo, terei de comprar um band-aid e me anestesiar com aspirinas dessas detentoras de patentes e patrocinadoras oficiais da CBF. Em tudo vejo um logotipo amarelo e verde atrás escrito “Made in China” e, indiretamente, incentivo o patrocínio da compra de porretes para os mesmos “oficiais” que me deram o tabefe! Se algo me acontecer e eu cair desse trapézio pelo menos enfaixem em pé o dedo que ora levantei para as bombas de gás lacrimogêneo e nunca relaxem, por conta do analgésico, voltadas a vocês as minhas nádegas gêmeas (ou trigêmeas, considerando agora este calombo). E então irrompa o fundo o penico e seja o fantasma de minha mão boba, manejando castanholas sobre o punho decepado, o meu troféu olímpico a lhe esmagar o testículo como a uma bola de capotão dourado.



CAPÍTULO III.

(Uma Pausa para os Comerciais): No fim de maio de dois mil e catorze recebi um e-mail de uma famosa emissora de TV. Eu já ia achando que eles perceberam que me deviam um honoris causa pelas minhas obras primas. Leio. O produtor perguntou se eu não queria escrever um poema festivo aos 240 anos da cidade de Campinas. “Precisa ter no máximo 28 segundos para caber no comercial, e uma linguagem coloquial, compreensível para todo mundo, senhoras e senhores de todas as camadas sociais e de idade. Algo, tipo assim, que seja ‘televisivo’, que possa ser declamado por nossos atores junto com cenas inspiradoras da cidade. Enfim, esta série vai se chamar ‘Os Encantos de Campinas’. Queríamos usar o seu verbo para dar o nosso recado! Uma notícia ruim: não espere que paguemos por suas rimas. Nada de verba! Mas prometemos citá-lo num lindo clip com os textos selecionados!”


Logo, erguendo as orelhas pontiagudas por trás da tela do computador, veio meu amigo felino dar uma patada no mouse. Os egípcios crêem que os gatos atuam em nosso favor contra o maligno. Meu gatinho bolchevique não vai deixar que por qualquer prêmio (por mais que eu seja digno...) eu sacrifique a honra da causa. Não se sobe ao verdadeiro céu com o alpinismo acadêmico nem, passando o cartão na maquininha “cielo” num provador da “Riachuelo”, uma nuvem troca de calças. Às vezes, para sapatear sobre nossos tetos ela põe tamancos de flamenco. Mas, uma vez que vestiu “social”, para sempre social, sem chance de trapaça. Na véspera eu estivera num sarau e o poeta do Jardim Boa Vista contara que, como esse ano o povo não quis colorir as ruas com as cores da bandeira, os capitalistas ofereceram seu ouro e seus preciosos muros para os nossos melhores grafiteiros. E o resultado está nas paredes num “lindo” mural amarelo e verde e ao longo o anel viário do casamento entre as classes fundiárias


e estes talentos que esperavam por nascer. E o poeta acrescentara: “Olha bem o caso deles. Como você vai julgar a moral dos caras se você tem o que comer?” Sim, eu não me fundo assim tão diretamente e eu sei que neste mundo uma flor por nascer só necessita que a fomentem e, para o dom artístico florescer, come-se até excremento sendo ele um bom adubo. Sou feliz por não ter TV. Não recebo seu catecismo nem ofereço minha sala para a sessão de descarrego. Só lamento por não ter uma máquina de escrever, pela beleza de seu mecanismo, pois também ela escreve com patadas molhando-as antes no leite negro. No computador, apesar de tudo, posso mesclar com episódios divertidos a visão da página do poema. Uma agência de enciclopédias disponibilizou no youtube uma extensa matéria em vídeos de eventos históricos com todos os temas. Clicando em “Tragédia” eu me incumbi de aprender história em stereo e pus fones de ouvido para causar um efeito de cinema. Na seção de acidentes aéreos apertei o pause


para contemplar o Hindenburg tomado pelo fogo com as suas suásticas trêmulas nas bandeiras. Bem observou Stockhausen: algumas explosões com seu ronco têm a beleza plástica de uma obra de arte verdadeira. Publiquei o vídeo, então num post escrito embaixo, numa palavra: “#NãoVaiTerCopa”. E, para continuar a sessão, desci até o posto para ver se achava um pacote de pipoca. Quando olho, na fila do caixa, para a telinha ali no meio entre as lamúrias dos ventiladores, não quero acreditar no que estou vendo: “Avião que transportará a seleção brasileira ganha pintura com as cores dos famosos grafiteiros ‘Os Gêmeos’”! A esta altura do campeonato! Pois eu digo: este jogo da velha não vai dar empate. E, com golpes assim baixos, o #VemPraUrna quase manda o #VemPraRua para a cova. À toa se esgoela na “Ordem n.2 ao Exército das Artes” Maiakovski: “Para arrancar a república da escória dai-nos uma arte que seja nova – NOVA!” Já eu estava adivinhando que, coloridos demais,


os Gêmeos acabariam uns Romero Britto segundo e terceiro. À toa a voz da sabedoria ecoa na pedreira: eu brito, tu britas, nós britamos. A arte se faz com uma britadeira! Não precisa o velho Moisés, com seus braços mal suportados pelos tendões, se esforçar demais para quebrar a tábua da lei brasileira. Ele, em completa ascese, pega a nossa Constituição e ela se desfaz que nem areia! Preciso de um cajado que acerte em dois gêmeos com uma só cajadada e derrubarei a ditadura do faraó com uma mistura mortífera de caratê com faroeste. Pelas narinas escorrerei as gemas de seus miolos de criatividade amarela e, acrescentando umas pitadas de pimenta do Reino de Deus em pó, num esquife baterei o omelete! Nesse momento a pipoca começou a estourar no micro-ondas. Pus metade na minha tigela e a outra metade no potinho de ração. Tem de haver quem responda a essas vozesinhas da teletela com seus sotaques cariocas e os animadinhos locutores da rádio


com sua cínica impostação. Nas novelas, todas essas donas meio robóticas são replicantes univitelínicas do Grande Irmão. E basta dessa revoluçãozinha cativa entre prognósticos de horóscopo e internáuticas notícias! Venham! Como em ostras vivas eu vou lhes dar meu sagrado ósculo e lhes erguer da tumba da preguiça! Viva a Muda FM livre! Eu ensinarei a fórmula da ressurreição a todas as rádios ditas “piratas” e vítimas de saques da polícia: homens, mulheres, algumas sementes de fecundação, um toque de voltagem alta, talheres e outros utensílios da obstetrícia. Prometo fazer uma limpeza nos agentes da passiva e, como o Capitão Gancho, os infiltrados da língua inglesa eu os farei saltar da prancha como da boca gotas de saliva. Quero conversar com os sobreviventes náufragos da internet profunda, apenas os que tocaram o fundo e voltaram à superfície; apenas os que tenham visto, quando tudo fosse trevas pela frente, quando em tudo se desiludissem, o raiar enfim das guelras dos peixes bioluminescentes;


apenas nesses, apenas nesses eu acredito – os que professam as estrelas que existem entre as âncoras dos navios arruinados pela guerra e toda a riqueza que submergiu nos porões dos barcos vikings! Para quem fremia os sprays do sagrado pigmento que devolve à vida a resistência dos muros, aliar-se às companhias fabricantes de spray de pimenta é um perjúrio! Deve ser difícil, por mais que se trave com cores fortes e talento a batalha artística, sendo gêmeo, sempre ter, desde o nascimento, alguém igual a si mesmo e por isso sempre ser inteiramente imitável. Mas, eu – o inigualável Maiakovski do Exército Branco, que transponho montanhas de gelo esquiando sobre um dístico – não me vendo por qualquer prêmio de duas asas místicas ou dois míseros centavos. Não se preocupe, população campineira, pois eu sou evoluído e faço questão de lançar educadamente em vossas vidraças uma pedra polida. Assinado “Nogueira” no campo do remetente


eu lhes envio, de graça, mais uma das minhas cassiteritas: “Noite dessas em Campinas eu vi um grupo de policiais espancar um morador de rua com bastões e paus. Os moradores dos prédios do Cambuí, ouvindo todos aqueles ‘ais’, juntavam-se nas suas coberturas e soltavam aplausos. Perdi a vontade de passear lá fora com meu gatinho Liubliú – ele sempre se apavora com a ronda dos pitbulls. Devo me jogar, com ele no colo, pela janela do meu apartamento? Sinto haver no meu sofá uma mola propulsora do auto-aniquilamento! Passei o ferrolho na janela, nas duas folhas – a de vidro e a de metal – para lacrar contra o aedes aegypti. Só a abrirei quando Deus derramar de seu olho uma chuva torrencial de lágrimas de conjuntivite! Como demolir um templo bizantino, no lugar erguer um toldo da ‘Igreja Universal’, e esperar que Deus ali habite? Assim, eu sinto que Campinas, por mais que os cães estejam soltos, já teve algo de especial (por mais que meus óculos duvidem –


talvez necessite uma revisão de grau). Nos bosques de eucalipto tudo soa tão efêmero quando, com o grito – ‘madeira!’ – do operador da serra elétrica, tomba mais um capítulo de tentativa de enraizamento. As pragas apocalípticas, prenunciadas pelos índices epidêmicos, se aproximam à maneira de um exército de toxoplasmáticos pombos executando ordens de políticos e balançando a cabeça positivamente. Mas é belo o Bosque dos Jequitibás. Minha infância morei numa transversal. Algo de nostálgico até hoje se encerra naquele cheiro de cocô de macaco ou no focinho molhado dos quatis que roubavam as chupetas das crianças... Os torcedores, saindo dos estádios, batiam com pedaços de pau em nosso portão de ferro, riscavam os carros com cacos e se, na esquina, descontassem nos travestis ouvia-se de longe apitar a ambulância. Quando universitário eu habitava numa certa Via Sacra das churrascarias carinhosamente chamada de ‘Barão’. Uma plaquinha demarca o lugar em que o boi falou ao escravo que na Sexta Santa não se trabalha. Em todos os outros 364 dias, assim como o gado é cortado em fatias, os chicotes se cravam


nos descendentes de Elesbão e acham-se seus pedaços em toda a quilometragem de cascalho. Tal como as carpas e girinos se estapeiam com as barbatanas sempre que um cisco perturba a superfície do laguinho na Praça Carlos Gomes, assim tumultuam-se os mendigos em torno da ‘kombi da caridade’ dos franciscanos, mas qualquer migalha que aterrisse já serve para enganar a fome. Mas eles saem vazando de uns homens com uns certos uniformes que reúnem num ‘expresso rural’ os indigentes da Praça Catedral Metropolitana e os desembarcam nas cidades próximas: Jaguariúna, Espírito Santo do Pinhal, Americana, Cosmópolis (falando em termos hipotéticos, já que o ponto talvez fosse só um canavial). Em cada uma destas (Jaguariúna, Espírito Santo do Pinhal, etc.) novamente os reúnem para a Campinas devolver com toda pressa. E assim, viajando de ponto em ponto, como numa ‘nau dos loucos’, eles revivem alguma lenda medieval. Se Nova Odessa fosse a velha Odessa... É que eu, como uma cereja do bolo, não ando por aí tão misturado com a massa (embora o ideal


esteja bem acima da cobertura com esta agüinha rosicler...). Eu só vejo, chacoalhando dentro da ampola os meus comprimidos de homeopatia, o que vê um qualquer que descanse na praça encostado a uma palmeira imperial. (... Aproxima-se, parecia a lua, mas é uma colher!) Sim, embora justíssimo para os efeitos de um prólogo, tudo isso soa insuficiente e um tanto falsamente bucólico. Que tipo de poesia se alcança salpicando o cafezinho com pó de canela numa esquina da rua Olavo Bilac? Ou olhando pela janela as senhoras descerem dos táxis com seus cachorrinhos (para os entregar à tosa) como tzarinas de um fiacre? Por mais que eu canse de quebrar sintaxes como talos de leguminosas! Eu ser poeta em Campinas é um verdadeiro milagre! Hilda Hilst só conseguiu medicando-se com uma overdose de companhias caninas e refugiada em sua chácara.


Algo me diz que uma linguagem ainda mais justíssima para descrever Campinas, eu não a encontrarei nos cardápios de culinária vegetariana ou no livro de normas do meu condomínio residencial. Nem na margem entre o dizível e o indizível por coloquialismos, mas talvez sim nessa língua anônima que se rumina nas linhas de ônibus sobre cujos destinos eu nunca plaino quando à noite faço projeção astral. Quero, num único parágrafo, esboçar uma tese de por que os pedintes no semáforo e todos esses que se dão a moer nas engrenagens, embora feitos de carne de vacas magras, apenas deitam um sumo dulçor de cana no centrífugo graau. Eu aviso que chegará o dia em que a garapa se tornará uma bebida amarga, daquelas que só se serve numa ponta de lança. Vocês acharam um prejuízo aquelas vidracinhas mas está por vir uma nova etapa da Revolução do Vinagre. E quero ver quem se atreve a ir até onde minha poesia alcança.


Eu lhes digo: cada pedra que assim se lança contra o vidro é uma pedra preciosa e os deuses as querem em seus colares. É um favor nosso abrir uma janela – pois isto é objetivo: os alvos que mais se blindam são os que, silenciosos, mais esperam por uma renovação de ares”. http://omanifestolenitivo.blogspot.com.br/



veronica stigger

O HERÓI Joel esquecera como era difícil andar de chuteira fora do gramado. Ainda mais com aquele par antigo, pesado, de couro preto e cadarço branco, com as travas cravadas a prego. Joel também esquecera como os pregos das travas feriam seus pés. Invariavelmente, terminava a partida sangrando, com as meias, antes tão brancas, tingidas de vermelho. Mas já era uma sorte as chuteiras ainda lhe servirem depois de sessenta e quatro anos sem calçá-las – sessenta e quatro anos em que adquiriu dois joanetes robustos e uma infinidade de calos nos dedos. A mesma sorte não teve com o uniforme. A camiseta branca, de gola polo azul, não desceu além dos ombros; e o calção, igualmente branco, não subiu além das coxas. Joel foi obrigado a improvisar. Abriu as costuras laterais da camiseta e do calção e fez emendas nos dois lados. Depois de tanto tempo, ele não encontrou o mesmo tipo de algodão da camiseta. Tecidos como aquele já não se fazem mais, pensou com tristeza. Pegou então dois panos de prato brancos que estavam no fundo de uma gaveta da cozinha e os usou na reforma do uniforme. Não se pode dizer que tenha ficado bom, muito menos bonito, mas funcionou. Era preciso que Joel usasse aquele conjunto de camiseta e calção – aquele conjunto que passara décadas amarelando na gaveta da cômoda de seu quarto, servindo de alimento às traças. Joel prometera a si mesmo. E vivia a repetir a sentença que dizia ser de Confúcio: verifica se o que prometes é justo e possível, pois promessa é dívida. Era justo. Era possível. Joel não duvidava disso. Foi com as chuteiras cortantes e o uniforme todo furado pelas traças e mal remendado, que Joel saiu da casa simples, de madeira, que fora da sua mãe e agora era sua. Carregava nas costas uma mochila preta, estufada de tão cheia, mas que


não parecia estar pesada. Na cabeça, levava o chapéu de explorador com o qual seu avô aportara no Brasil na segunda metade do século dezenove. O chapéu passou do avô para o pai e deste para Joel. Quando Joel o recebeu, no dia em que completou quinze anos, seu pai lhe disse: preste atenção, Joel, este chapéu veio de longe, de outro país, e foi o único objeto de seu avô que nos restou, é o nosso maior bem; por isso, ele só pode ser usado em momentos especiais. Joel só o usara antes numa única ocasião: quando se apresentara pela primeira vez ao clube. Agora, nessa que seria sua última partida, era hora de voltar a vesti-lo. E lá ia ele, a pé, porque também isso fazia parte da promessa. Joel sabia que demoraria uma hora e meia para chegar, mas tudo bem. Fora ele que decidira assim. Seguia devagar, sério, com a cabeça erguida e os braços ao longo do corpo numa tentativa inútil de esconder os remendos mal feitos da camiseta e do calção. Joel olhou para suas chuteiras, engraxadas no dia anterior com tanto carinho, e ensaiou um sorriso. Ao contrário do uniforme, elas estavam um brinco. Couro bom é assim: dura mais do que a gente, pensou. Joel mancava um pouco da perna esquerda. Há uns dois dias, seu joelho voltara a incomodar, como nos velhos tempos. Deve ter sido em função dos preparativos, cogitou. Ele combinara de se encontrar com os rapazes às dez horas da manhã em frente à distribuidora de bebidas, na zona leste da cidade. Olhou para o relógio: faltavam três horas para o horário combinado. Havia tempo de sobra, até para dar uma parada no caminho se fosse preciso. Joel estava cansado. Muito cansado. O ano anterior fora puxado. Passara agosto, setembro e outubro recolhendo tampinhas e anéis de refrigerantes. Queria a qualquer custo ganhar a promoção “cante e leve todo mundo para os jogos”. Joel, porém, não tomava refrigerante. Não porque não gostasse, mas porque era contra seus princípios – princípios esses que ele acreditava terem sido os verdadeiros responsáveis


pela sua queda no passado. Como ele não bebia refrigerante, fora obrigado a recolher as tampinhas e os anéis das latas que as pessoas deixavam nas mesas de bar. O problema é que não era só ele que pretendia participar da promoção. Assim, eram poucos os que deixavam as tampinhas e os anéis para trás. Joel tentara convencer Juraci, do boteco da esquina, a guardar umas tampinhas e uns anéis para ele, mas o filho do Juraci também as colecionava. Lá por setembro, Joel percebeu que não tinha conseguido tantas tampinhas e anéis quanto gostaria e começou a ficar preocupado. Comprar os refrigerantes estava fora de cogitação. O que fazer então se só coletar o que era deixado no bar do Juraci não estava dando certo? Joel então arrumou um saco de lixo bem grande e saiu pelas ruas com o saco nas costas a catar latas do refrigerante da promoção e ocasionais tampinhas que encontrava pelo caminho. Mas eram poucas as latas que preservavam o anel e muito insignificante o número de tampinhas que recolhia em uma jornada de trabalho. Chegou a propor uma troca aos mendigos da região: dez latas por um anel. Mas não obteve resultado satisfatório. Eles também não encontravam muitas latas com o anel. Num momento de desespero, quando estava quase desistindo da empreitada, Joel teve uma ideia: iria pegar os anéis e as tampinhas no supermercado mesmo. Não se tratava de roubo, mas de expropriação, pensou consigo. Uma espécie de financiamento. Isso mesmo, era um financiamento. Vestiu então sua melhor roupa: o terno, com gravata e colete, que usara há mais de vinte anos no enterro de sua mãe. Achava que a ocasião exigia. Pegou a mochila preta, para guardar as tampinhas e os anéis, e tomou o ônibus em direção ao hipermercado mais longe de sua casa, onde ninguém o conhecia. Tinha que ser no maior supermercado e no horário de maior movimento. Assim, a ação de Joel passaria despercebida. Era o que ele imaginava. Os seguranças logo notaram sua presença. Pararam o


que estavam fazendo para acompanhar com os olhos o lento e firme deslocamento daquele senhor alto, levemente curvado, mas imponente, de cabelos brancos e tão distintamente vestido, apesar da mochila nas costas. Parecia vindo de outro tempo, de um tempo em que ainda existiam heróis. Respeitosos, deixaram-no passar antes de voltar a seus afazeres. Não seriam eles a perturbar a paz daquele senhor. Dentro do supermercado, Joel foi direto ao setor de bebidas e se pôs a arrancar, o mais discretamente possível, os anéis das latas dos refrigerantes em exposição e as tampinhas das garrafas pequenas, médias e grandes. Difícil era arrancar o anel e girar a tampinha sem fazer barulho. E, principalmente, sem que aquela meleca doce e quente vazasse. Mas Joel era um craque e em minutos desenvolveu uma técnica precisa. A cada dia, ele ia a um supermercado diferente para não ficar marcado. Em sua sala, crescia a montanha de tampinhas e anéis. Agora, só era preciso cadastrar o código de cada uma delas na internet. Joel não tinha computador e nem sabia como usar um. Pediu ajuda a Juraci, que deu a ele de presente o computador velho e colorido do filho. Joel não era um craque: Joel era o rei. Em pouco tempo, descobriu a senha do wifi de Juraci e passava os dias na internet a cadastrar os tais códigos. Ficou sabendo que, para triplicar a chance de ganhar a promoção, o concorrente devia cantar a musiquinha criada pelo refrigerante enaltecendo os jogos, o governo e a seleção nacional. Era humilhante, mas Joel se submeteu também a isso. Ele precisava vencer. Foi na internet também que ele conheceu os rapazes. Lera no jornal sobre grupos de jovens que protegiam os mais velhos nas manifestações. Era triste admitir que não era mais o mesmo. Não poderia ir sozinho e não tinha nenhum amigo com quem pudesse contar. O Raulzito quebrara o fêmur há dois anos e não conseguia andar, e o Moisés não reconhecia mais ninguém. Se ganhasse a promoção, ele poderia levar cem daqueles jovens para o estádio. Mas


Joel não ganhou. E essa derrota não o esmoreceu. Promessa é dívida, e sua promessa era justa e possível. Entrou em contato com os rapazes e eles, destemidos, toparam o desafio. Fora um deles que sugeriu usarem os caminhões de entrega daquele mesmo refrigerante da promoção. Ele tinha um amigo que trabalhava lá e poderia ajudá-los. Joel gostara da ironia. E, por isso, ele seguia agora pelas ruas, a pé, como prometera. Ai, que dia, disse enchendo os pulmões quando bateu a porta de casa atrás de si, havia uma hora. Logo encontraria os cem rapazes no lugar combinado e diria a eles, confiante e feliz, antes de entrarem clandestinamente nos caminhões de distribuição que os levariam até o estádio: agora, é hora de vencer. Eles esperariam o jogo começar nos subterrâneos, sem água, sem luz e sem comida e, quando faltassem quinze minutos para terminar a partida, subiriam às arquibancadas, saltariam os parcos obstáculos do novo estádio, invadiriam o campo, correriam até o círculo central entoando um canto que falava em castigo e justiça e, antes que a polícia os alcançasse e os prendesse, abririam as mochilas e milhares de gafanhotos famintos sairiam de dentro delas, pulando com avidez na grama, deixando todos – inclusive a polícia – estupefatos com o tapete escuro, espesso e ameaçador que formariam no gramado verde e recém-plantado da arena superfaturada.



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