Billy Elliot

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Melv in Burgess

BILLY ELL i OT Baseado num roteiro para cinema de autoria de

LEE HALL

Tradução WALDÉA BARCELLOS

SÃO PAULO 2015



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Odeio o meu irmão, ele é um idiota. Mas tem bom gosto pra música. Quando estou por perto, ele sempre usa fones de ouvido, pra eu não poder ouvir. Como se fosse dono do ar ou sei lá o quê. Se ele pudesse, enrolava a música e enfiava no próprio rabo. Faz tempo que não consigo ficar sozinho, a não ser logo de manhã cedo antes da escola, quando o meu pai e o Tony saem pra fazer piquete. Era melhor quando eles trabalhavam. Eu podia chegar da escola e ainda tinha horas para ouvir qualquer coisa que quisesse. A minha avó gosta de música também. O meu pai acha que a música moderna é um lixo, mas a minha avó está velha demais pra se importar com esse tipo de coisa. Ela nunca me dedura. De qualquer maneira, vai ver que ela nem se lembra pra poder contar o que a gente estava fazendo. Assim que o meu pai e o Tony saem de casa, ponho a música pra tocar, enquanto faço o café da manhã. Ela não consegue ficar com os pés parados. Ouço ela acompanhar a música, cantarolando, enquanto ainda está na cama. Às vezes, ela se levanta e a gente sai gingando pela sala juntos. Ela faz umas poses

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com os braços para o alto, tentando se equilibrar numa perna e girar como uma bailarina – só que está com quase oitenta anos e já não consegue andar tão bem assim, imagine dançar. – Manda ver, vó! Boogie-woogie! O meu pai e o Tony tentam fazer ela parar porque acham que está fazendo papel de boba. Mas quem é que está vendo? Só nós, nós somos a família dela. Se ela não pode bancar a boba na frente da família, onde vai poder? Ela devia ter permissão pra dançar e ouvir música o dia inteiro, se quisesse, mas o meu irmão é egoísta demais pra deixar a gente ouvir qualquer coisa que não seja o som da voz dele. I danced myself right out the womb, I danced myself right out the womb. Is it strange to dance so soon? I danced myself right out of the womb.* Sabe? A música encheu a casa inteira. E, puxa, cara, foi simplesmente... incrível. Comecei a dançar em volta da mesa, enquanto punha os ovos pra cozinhar, fingindo que tocava guitarra. É que essa música faz a gente se mexer. Quando eu e meu melhor amigo, Michael, éramos menores, a gente fingia que era roqueiro. O Michael punha o pijama de cetim da irmã – sabe, glam rock? – e usava maquiagem e uns trecos pra ficar parecido com Bowie ou Marc Bolan. Eu não fazia questão de * Em tradução livre: “[Quando nasci], já saí direto da barriga dançando, / Já saí direto da barriga dançando. / É estranho dançar tão cedo? / Já saí direto da barriga dançando. (N. da T.)

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me parecer com ninguém; só gostava da música. Era demais. Eu chamava o Michael de gay, e ele vinha pra cima de mim pra tentar me dar uma surra. Cosmic Boogie dura o tempo exato pra fazer os ovos moles, do jeito que a minha avó gosta. Tirei os ovos da água, pus nos porta-ovos, arrumei direitinho a bandeja e tudo o mais. Então peguei tudo, abri com o pé a porta de correr que dava para o quarto dela e entrei requebrando. – Hei, hei, vó, é o garçom dançarino! – entrei, sacolejando, com o maior cuidado pra não derrubar os ovos... e a danada da velha não estava lá. Droga! Larguei a bandeja de qualquer jeito e saí correndo pela porta. O meu pai vai me matar se eu perder a minha avó. Uma vez ela passou uma manhã inteira sumida. Acabou que a polícia apanhou ela perambulando perto da estação de trem em Jesmond. Só Deus sabe como a vó conseguiu chegar lá. O meu pai acha que ela estava tentando visitar alguém que morreu há uns cinquenta anos. Saí em disparada pelo portão dos fundos e segui pela rua gritando: “Vó! Vó!”, o mais alto que consegui. A minha avó me mata de susto. Está caduca. A gente vira as costas um minuto e... puf! – sumiu. Não que ela ande tão depressa assim. A gente fica querendo saber como consegue ir tão longe. É que, uma vez que começa a andar, ela simplesmente não para mais. Tive vontade de matar a velha! Eu tinha de ir à escola. Mas, bem, não é culpa dela se ficou velha, certo? Pra que lado? Pra que droga de lado? Ela podia ter ido na direção do mar. Dá pra ver o mar de onde a gente mora. Às vezes, ela desce e fica olhando as ondas. Parei ali um ins-

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tante, olhei primeiro para um lado e depois para o outro. Onde? Mas a pequena Alison, que morava umas casas mais adiante, estava ali roendo um biscoito ou algo assim e apontou o dedo para o alto da colina. Saí a toda. Se a minha avó tinha ido para aquele lado, eu já fazia ideia de onde ela estava. Quando cheguei, não me aguentava em pé, mas ela estava lá, sim, no campo, embaixo do viaduto. Eu sabia. Ela sempre vai lá, é um horror: tem um laguinho, ela podia cair nele e se afogar. Ninguém sabe por que ela vai àquele lugar – no fundo, ninguém sabe por que ela faz qualquer coisa. Se a gente pergunta, ela só fica olhando. Imagino que ela brincava ali quando era criança. A minha avó morou aqui a vida inteira. Oitenta anos. Oitenta anos! Dá para acreditar? – Vó! – berrei. Ela se virou e olhou espantada pra mim. Fui abrindo caminho pelo capim alto, todo molhado. Coitadinha, ela estava encharcada. E parecia apavorada. É esse o problema, sabe? Não é só a gente que fica uma boa parte do tempo sem saber o que ela está fazendo. Ela também não sabe. Fica mais assustada do que qualquer um de nós. – E os seus ovos? – perguntei. – Você é novo por aqui – ela disse. – Vó, sou eu, o Billy. O Billy. Ela fez que sim e deu um sorriso meio sem vontade. Eu me lembro bem daquela manhã pelo seguinte: na ponte que passa por cima do fim do campo, pararam três vans pretas, e a polícia começou a saltar delas. Parecia uma cena do Dr. Who – os policiais não paravam de sair pela traseira das vans, como besouros saindo de uma rachadura no chão. Estavam com cassetetes e uns escudos grandes de plástico. Parecia a cena de algum filme.

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A minha avó viu que eu estava olhando pra cima e olhou também. – O que é aquilo? – ela perguntou. – Polícia, vó. É a polícia. – Cretinos! – gritou ela, sacudindo o punho fechado pra eles. – Cretinos! Alguns olharam pra baixo, mas a gente estava longe demais pra eles se incomodarem. – Eles vieram pegar a gente, Billy? – ela perguntou, baixinho. A minha avó pode ser uma velhota boba, mas já viu todo tipo de coisa. Ela sobreviveu à década de 1930 e à guerra. Já viu de tudo. Sabe tudo sobre a polícia. Sabe de que lado a polícia está. – Não, vó. Eles não estão interessados na gente. – E no Jackie? E no Tony? – ela perguntou. Não respondi. Às vezes a minha avó me assusta ainda mais, quando sabe o que está acontecendo. Peguei no braço dela e a levei de volta para casa. *

*

*

Estava tentando tirar no piano a música de Cosmic Boogie, pensando na minha mãe. O Tony corria pela cozinha enfiando goela abaixo umas fatias de pão com margarina, enquanto acariciava seus cartazes. “Não ceder nunca!” “Fora Thatcher!” “FURA-GREVE! FURA-GREVE! FURA-GREVE!” O meu pai estava alvoroçado: lavando a louça, tentando limpar o chão, pondo as xícaras de volta no armário. Susan, que mora mais adiante – Susan Chave de Boca, como a gente diz, por causa da cara que ela tem, vem aqui fazer uma limpeza de vez em quando. A minha

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avó estava sentada na cama, no quarto ao lado, cantarolando. Cantando alguma coisa, de qualquer modo, mas acho que não era o que eu estava tocando. Faz dois anos que a minha mãe morreu. Acho que mais ninguém se lembra da minha mãe, só eu. Sinto falta dela, sinto saudade dela todos os dias. Ninguém percebe como sinto falta dela, mas eu sinto. Quando estou olhando no espelho, quando passo de porta em porta, de um cômodo para outro, ou quando estou batucando qualquer coisa no piano. Fico pensando, bem, os dedos dela teriam segurado aquela maçaneta quando ela abria a porta. Me lembro dela de tudo quanto é maneira. O modo como fazia a maquiagem no espelho do hall quando ia sair e estava com pressa. Tem uma caixinha embaixo do espelho onde ela guardava as coisas. E na verdade até hoje ali tem umas coisas, tipo batom. Tem um pouco do cheiro da minha mãe, mas agora ficou velho. Quando olho naquele espelho, às vezes me pergunto: se eu fixar o olhar por tempo suficiente, será que vejo o rosto dela? Já fiquei séculos olhando, tentando ver o rosto dela dentro do meu. Se a gente fica olhando bastante tempo, parece que a cara muda, e isso me deixa morto de medo. Lembrar e sentir saudade não são coisas exatamente iguais, mas são bem parecidas; e não dá pra fazer uma sem a outra. Tenho uma carta da minha mãe que ela escreveu faz muito tempo. Ouça. “Querido Billy.” Está ouvindo? Está ouvindo a voz da minha mãe? Preste atenção.

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“Querido Billy, sei que devo parecer uma lembrança distante para você. O que provavelmente é bom. Já deve ter se passado muito tempo. E eu terei perdido a oportunidade de ver você crescer, chorar, rir e gritar. E terei perdido a oportunidade de lhe dar umas broncas. Mas quero que saiba que sempre estive aí com você, em todos os momentos. E sempre vou estar. E fico feliz de ter conhecido você. E feliz por você ser meu. Seja sempre você mesmo. Vou amar você para sempre.” Essa é a minha mãe. Eterno, diz ela. Só que não existe nada eterno, certo? Pelo menos, não para ela. Era para eu esperar os dezoito anos, mas não aguentei e abri a carta mesmo assim. Ela fica guardada numa caixa debaixo da minha cama, e eu pego para ler de vez em quando – não muito porque o papel um dia vai se gastar. Nessa hora, sim, vai ser como se ela desaparecesse. Fiz uma cópia, só pra me lembrar exatamente do que ela disse, para quando o papel ficar amassado demais e caindo aos pedaços. Só leio a carta quando estou sozinho. Uma vez li quando o Tony estava no quarto. A gente divide o mesmo quarto. Li com ele ali porque queria que se lembrasse da minha mãe comigo, nós dois juntos. Mas ele não quis. – Você devia ter deixado para depois, como ela pediu. De qualquer modo, você sabe o que está escrito. De que adianta ficar lendo? – ele disse. – Você nunca sente falta dela? – perguntei. – Ora, vai se f***! – ele disse e se virou para o outro lado para dormir. Viu? Eu não disse? Não importa. Eu estava tirando a melodia de Cosmic Boogie no piano e, enquanto isso, imaginava ela tocando

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nas teclas e fazendo a música vir. Ela tocava para todos nós. A minha avó saía valsando pela sala, se fazendo de bailarina. Eu não sei tocar. Queria ter aula de piano, mas não peço, porque sabe o que meu pai ia dizer? – Billy, a gente já não tem dinheiro para comer direito, muito menos para ficar com essa frescura de tocar piano, filho. O meu pai é assim. Ele e o Tony são iguais. Só importa a gente saber se defender, aguentar o tranco e se apoiar uns aos outros. Para eles, não existe essa história de ficar se lembrando das pessoas. Eles estão ocupados demais em se defender. Já ouvi os dois gritando, lutando nos piquetes. “Fura-greve! Fura-greve! Fura-greve!” Dando duro lá embaixo na mina. Só consigo imaginar os dois lá embaixo, lutando com o veio do carvão, arrancando montes de carvão como um par de escavadeiras mecânicas. E brigando um com o outro, além de brigar comigo também. Que diferença faz? Naquele dia de manhã, eles estavam brigando de novo. – Anda, pai! A gente vai se atrasar! Para de enrolar! O Tony corria de um lado para o outro, enfiando as botas, batendo as mãos. Mas o meu pai queria deixar tudo arrumadinho. Ele sempre se preocupa com a minha avó, que fica sozinha em casa. – Eu tenho tempo pra fazer o café da manhã da sua avó, não tenho? – C***! O Billy faz o café. Vamos! – Espera! O meu pai saiu correndo para o quintal. O Tony não parava de andar, estalando a língua. Eu só estava ali senta-

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do, tentando tirar a música. É assim o tempo todo. Brigas e discussões. É só isso que eles fazem. O meu pai voltou com o balde de carvão. – Não sobrou muito carvão. – Mês que vem a gente já vai tirar mais da mina de novo. – Não se iluda – o meu pai disse, ali parado, com a cara fechada. O Tony olhou pra ele como se ele fosse feito de veneno, ou coisa parecida. Deu pra sentir o ar congelar. O Tony detesta esse tipo de papo. – Você simplesmente ia desistir e ficar na cama, se não fosse por mim, certo? – o Tony disse. – Tony – o meu pai começou, mas o Tony já estava saindo. – Faça o que quiser. Não vou ficar aqui esperando – disse ele, agarrando uma braçada de cartazes e se dirigindo para a porta. – Tony! Tony, espera! – o meu pai berrou. Mas o Tony já tinha ido. O meu pai não correu atrás dele. Só ficou ali parado. O Tony acha que pra ele já deu. Acha que o meu pai já se entregou. Não sei. Vai ver que ele tem razão. Continuei com a minha música. – Quer fazer o favor de parar com isso, Billy? – ele gritou de repente pra mim. Não dei bola. – A minha mãe teria deixado – eu disse, continuando a escolher as notas. Ele veio por trás de mim e baixou a tampa com violência. Por pouco não pegou nos meus dedos.

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Então saiu correndo pela porta, atrás do Tony. Pra que ele quer que eu pare de tocar, se nem vai ficar aqui? – Vejo você depois, no Centro Social – ele disse, ao sair. Filho da mãe! pensei. Detesto quando ele vai assistir à minha aula de boxe. – Presta atenção. Eu fiz boxe. O meu pai fez boxe. Você faz boxe. O meu pai é assim. O que ele fez há duzentos anos é o que o pai dele fez duzentos anos antes; e é isso que eu vou fazer daqui a duzentos anos. É assim que o meu pai sabe o que está certo. Quando era mais novo, o meu irmão tirava sarro dele. – Você não pode me ensinar... Eu já sei! – ele dizia. Isso, nos velhos tempos, antes que se transformasse no meu pai também. Agora está igualzinho. E é por isso que todos os sábados de manhã eu penduro as luvas no pescoço e vou até o clube pra esmurrar a cara de alguém, pra eles. Eu até podia gostar de boxe, se eles me deixassem em paz. A verdade é que tenho minhas próprias ideias sobre o boxe, e eles não gostam disso. Pra mim, o segredo do boxe não é o que você faz com as mãos. É o que você faz com os pés. George, o nosso treinador, e o meu pai não entendem isso. Eles acham que tudo é questão da força com que você acerta a cabeça do outro, mas estão errados. Veja o Muhammad Ali. Ninguém acerta ele, porque ele já não está ali. “Voar como uma borboleta; ferroar como uma abelha.” Se o George tivesse de dizer alguma coisa parecida, seria mais como: “Ficar parado como um rochedo; bater como um caminhão.” Ele está sempre aos berros comigo, me dizendo pra parar de dançar por todo o ringue.

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Ele odeia quando faço isso. – Acerte o cara! Acerte nele! Fique parado e lute! – ele grita pra mim. O que ele quer dizer é “fique parado e leve um murro”. Ele acha que só faço isso pra deixar ele irritado. Uma vez, chegou a entrar no ringue e me segurou para o outro cara poder me acertar direito. Se me deixassem em paz até eu cansar os outros caras e eles ficarem com as pernas bambas, aí eu ia começar a acertar neles. Mas eles não conseguem esperar tanto assim. Eles não pensam. É uma tática, entende? Eles simplesmente não pensam.

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