Cornélius

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Cornélius e o armazém de impossíveis



CARLES SALA I VILA

Cornélius e o armazém de impossíveis

Tradução de LUIS REYES GIL Edição de texto de MONICA STAHEL

SÃO PAULO 2014



Índice

Torto • 11 O vovô Lucas • 17 Tobias e o senhor Cornélius • 23 Os tortos e as tortas • 27 Todo o mundo na praça • 35 A Casa Estreita • 39 A Noite, perdida • 47 O armazém de impossíveis • 55 O caso da dona Nuncassono • 61 O segredo do armazém de impossíveis • 69 O laboratório • 75 Os segredos • 83


A cabana • 91 O enigma de Cornélius • 99 Tranquilidade em Torto • 113 O desaparecimento de Cornélius • 121 A concha da alegria • 129 O grande desastre • 141 A volta de Cornélius • 147 Rio abaixo • 153 Mau despertar • 161 O novo Cornélius • 167 Fim • 173


A Eloi, Núria, Inés e Guillem.

“Como não sabia que era impossível, fiz.”



Tem gente que parece que veio ao mundo para mudá-lo, para abrir novos caminhos, fazer com que a vida neste canto do universo seja ainda mais especial. Um dia, tive a sorte de conhecer alguém assim, alguém excepcional, único, incomparável; um homem que vinha de muito longe, quem sabe até de outra época. Uma pessoa com um nome que ressoava dentro da sua cabeça toda vez que você o ouvia: CORNÉLIUS.



1. Torto

T

orto – o nome do meu povoado – não tem um palmo que seja plano. As praças, as ruas, as pontes... tudo desce ou sobe, ou as duas coisas ao mesmo tempo. E as paredes das casas são inclinadas, as escadas enviesadas e os postes de luz oblíquos... Às vezes, até as pessoas parecem andar meio tortas. Mas tanta tortuosidade não é por acaso. Torto é um povoado situado no alto do vale do Bobalhão, ao pé do maciço do Bode, uma montanha majestosa e vertical como ela só, o que torna totalmente impossível qualquer outro tipo de vida. E, se Torto é vertical e elevado, os dois picos que coroam o maciço do Bode são ainda mais

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verticais e elevados. Um, o Chifre Curto, é o pico mais alto que vocês podem imaginar, com penhascos que não acabam mais, cascatas infinitas e escarpas congeladas em que a neve não derrete o ano inteiro. Do outro pico, o Chifre Comprido, só posso dizer que é extraordinariamente mais alto que o primeiro, ou seja, vocês não precisam fazer força para imaginá-lo porque com certeza não vão conseguir. Mas não pensem que esses picos tão imponentes servem apenas para tornar a paisagem mais agreste, não... Acontece que, por falta de paredes verticais, o povoado nunca teve nem sequer um triste relógio de sol; e desde tempos imemoriais as pessoas se acostumaram a controlar a passagem das horas reparando apenas nas sombras dos dois chifres. Assim, até hoje, conforme a porção dos dois picos que esteja sombreada ou não, as pessoas sabem exatamente em que momento do dia estão, e podemos ouvir frases como: “Vou pegar você em casa às três quartos de Chifre Comprido em ponto”, ou então: “Não sei o que está acontecendo comigo hoje, já é um quarto de Chifre Curto e ainda não almocei!” Ou: “Quando chega a hora sem sombra, preciso fazer minha sesta do almoço, chova ou faça sol...”, ou então: “E isso são horas de chegar, seu folgado? Já são três quartos

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de pôr do sol!” Talvez vocês achem que são expressões um pouco rebuscadas, mas para quem as ouviu a vida toda parecem perfeitamente naturais. EQUIVALÊNCIA DAS HORAS EM TORTO (Horário de Verão) 7h 8h 9h30 11h 12h30

amanhecer em ponto Chifre Comprido em ponto dois quartos de Chifre Comprido três quartos de Chifre Comprido um quarto de Chifre Comprido

14h

hora sem sombra

15h30 17 h 18h30

um quarto de Chifre Curto dois quartos de Chifre Curto três quartos de Chifre Curto

20h 21h

Chifre Curto em ponto pôr do sol em ponto

Então, foi aqui em Torto que eu nasci, neste canto de mundo tão especial, longe de tudo e de todos, rodeada de árvores, rochas, barrancos... E de gente entortada para o lado.

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Como vocês podem imaginar, são muito poucos os que percorrem o Vale do Bobalhão de cima a baixo só para chegar a um lugar confuso como este. E tem mais: quase toda vez que recebemos alguma visita, trata-se de andarilhos desorientados que vieram parar aqui por engano; os perdidos, como costumamos chamá-los. Só muito raramente chegam viajantes intrépidos, que ouviram falar da beleza dos arredores, ou então vendedores ambiciosos, dispostos a encontrar clientes a qualquer custo, ou então familiares dos tortos – é assim que a gente chama os habitantes de Torto –, que vêm passar aqui o Natal ou as férias de verão. Mas, seja o insólito visitante um perdido ou, inexplicavelmente, alguém que sabe aonde vai, a chegada de um forasteiro ao povoado é sempre um acontecimento especial. E, certamente por isso, meu passatempo preferido nas horas vagas por muitos anos foi sempre o mesmo: ficar olhando para o horizonte e esperar. Quando eu era pequena, na entrada do povoado, bem perto da minha casa, havia dois lugares de onde eu costumava ficar vigiando. Um era a cabana que construí, um inverno, entre os quatro galhos mais grossos de uma faia centenária. Assim

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que a cabana ficou pronta, pensei que aquele era o lugar ideal para eu passar as horas esperando algum raro visitante, olhando o caminho que serpenteava pelo vale. Mas, quando veio a primavera, os brotos adormecidos da árvore acordaram, e, antes que o verão chegasse, transformaram-se em folhas e ramos novos, de um verde muito intenso, tornando impossível enxergar algo além daquela copa frondosa. Esse pequeno incidente, no entanto, não foi nenhum obstáculo para que eu continuasse minha atividade predileta pelo resto do ano. Havia outro mirante que, embora menos discreto, era tão ou mais eficaz que a cabana camuflada da faia. Era a extremidade do muro de pedra que havia na entrada do povoado, exatamente onde o caminho que leva a Torto se tornava a rua principal. Um ponto dos mais estratégicos e, além disso, o lugar onde começa a história que vou contar agora.

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