Gordura sem medo

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GORDURA SEM MEDO Por que a manteiga, a carne e o queijo devem fazer parte de uma dieta saudável

NINA TEICHOLZ

Tradução de Marcelo Brandão Cipolla

SÃO PAULO 2017



Para Gregory.



Sumário

Ilustrações IX Nota da edição brasileira XI Introdução 1   1.

O paradoxo da gordura: saúde com uma dieta gorda 11

2.

Por que pensamos que a gordura saturada não é saudável 23

3.

A introdução da dieta de baixo teor de gordura nos Estados Unidos 57

4.

Falhas científicas no confronto entre gorduras saturadas e poli-insaturadas 87

5.

A dieta de baixo teor de gordura chega a Washington 125

6.

Efeitos da dieta de baixo teor de gordura sobre mulheres e crianças 163

7.

A comercialização da dieta mediterrânea: o que a ciência tem a dizer? 211

8.

Saem de cena as gorduras saturadas, entram as gorduras trans 271

9.

Saem de cena as gorduras trans, entra algo pior? 311

10.

Por que a gordura saturada nos faz bem 343 Conclusão 397 Uma observação sobre carne e ética 405 Agradecimentos 407 Glossário 411 Permissões e autorizações 415 Índice remissivo 417



Nota da edição brasileira

As notas de referência da autora e a bibliografia encontram-se disponíveis on-line no endereço: <http://gordurasemmedo.com.br/>.



INTRODUÇÃO

Lembro o dia em que parei de me preocupar com a ingestão de gordura. Isso foi muito antes de eu começar a ler milhares de estudos científicos e fazer centenas de entrevistas para escrever este livro. Como a maioria dos norte-americanos, eu seguia o conselho de limitar o consumo de gorduras de acordo com a pirâmide alimentar divulgada pelo US Department of Agriculture (USDA); e, quando a dieta mediterrânea se tornou conhecida, na década de 1990, acrescentei azeite de oliva e porções extras de peixe a minha dieta, diminuindo ainda mais o consumo de carne vermelha. Eu tinha certeza de que, agindo assim, estava fazendo o melhor que podia em favor do meu coração e da minha silhueta, pois as fontes oficiais diziam havia anos que a melhor dieta é a que privilegia carnes magras, frutas, hortaliças e cereais e que as gorduras mais saudáveis são as dos óleos vegetais. A medida mais óbvia que qualquer pessoa poderia tomar em prol da própria saúde seria evitar especialmente as gorduras saturadas encontradas em alimentos de origem animal. Foi então que, por volta de 2000, mudei-me para Nova York e comecei a fazer crítica de restaurantes para um pequeno jornal local. O jornal não me dava ajuda de custo para as refeições, por isso eu geralmente comia o que o chef quisesse me oferecer. De repente me vi diante


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de refeições gigantescas, com alimentos que, antes, eu jamais permitiria que cruzassem a barreira dos meus lábios: patês, os mais diversos cortes de carne bovina preparados de todas as maneiras que se possam imaginar, molhos cremosos, sopas e cremes, foie gras – todos os alimentos que eu sempre evitara na vida. Esses pratos simples e substanciosos foram uma revelação para mim. Eu comia à vontade. No entanto, estranhamente, vi que estava perdendo peso. Na verdade, logo perdi cinco quilos que me perseguiam fazia anos, e meu médico disse que meu índice de colesterol estava ótimo. Talvez eu não tivesse pensado mais no assunto se minha editora no Gourmet não me pedisse para escrever uma reportagem sobre as gorduras trans, que não eram tão conhecidas na época e nem de longe tinham a má fama que têm hoje. Meu artigo chamou a atenção e levou a um contrato para que eu escrevesse um livro. No entanto, à medida que me aprofundava nas pesquisas, fui me convencendo de que o assunto era muito mais amplo e mais complexo do que a questão das gorduras trans. Estas pareciam ser apenas o mais recente bode expiatório para os problemas de saúde do país. Quanto mais eu investigava, mais percebia que todas as recomendações dietéticas sobre a gordura – o ingrediente que mais obcecou as autoridades de saúde ao longo dos últimos 60 anos – pareciam ser não apenas ligeiramente inexatas, mas completamente erradas. Um exame atento revela que quase nada do que pensamos hoje sobre as gorduras em geral, e as gorduras saturadas em particular, corresponde à verdade. A descoberta dessa verdade se tornou, para mim, uma ambição que me consumiu durante nove anos. Li milhares de artigos científicos, compareci a conferências, aprendi detalhes da ciência da nutrição e entrevistei praticamente todos os especialistas em nutrição vivos hoje nos Estados Unidos, alguns mais de uma vez, além das dezenas que entrevistei no exterior. Entrevistei também muitos executivos do setor alimentício para entender como esse setor tão grande e poderoso influencia a ciência da nutrição. Os resultados são alarmantes.


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É bastante popular a suposição de que a indústria alimentícia, movida pelo lucro, está por trás de todos os problemas dietéticos, de que essas empresas são, de algum modo, responsáveis por corromper as recomendações nutricionais, distorcendo-as de modo a favorecer seus próprios objetivos. E é verdade que o setor alimentício não é feito de anjinhos. De fato, a história dos óleos vegetais, e inclusive das gorduras trans, trata em parte de como a indústria alimentícia sufocou a ciência para proteger um ingrediente essencial para o setor. Apesar disso, descobri que, em geral, os erros da ciência da nutrição não poderiam ser todos atribuídos aos interesses escusos do setor alimentício. A fonte do descaminho nas recomendações alimentares era, de certo modo, mais perturbadora, pois esse descaminho parece ter sido motivado antes de tudo por especialistas que, trabalhando em algumas das instituições em que mais confiamos, acreditavam estar promovendo o bem público. O problema é, em parte, fácil de entender. Esses pesquisadores depararam com um problema antigo na ciência da nutrição: boa parte dessa ciência acaba por revelar-se altamente falível. A maioria das recomendações dietéticas se baseia em estudos que tentam medir o que as pessoas comem e as acompanham durante anos para verificar o que acontece com a saúde delas. É claro que é bastante difícil identificar um elo direto entre determinado elemento da dieta e uma doença que sobrevém muitos anos depois, principalmente quando levamos em conta todos os outros fatores e variáveis que fazem parte do estilo de vida de uma pessoa. Os dados fornecidos por esses estudos são fracos e baseados em impressões. No entanto, no calor da luta contra as cardiopatias (e, mais tarde, contra a obesidade e o diabetes), esses dados fracos tiveram de ser considerados suficientes. A concessão feita pelos pesquisadores parece ter causado boa parte dos fracassos das políticas nutricionais: especialistas bem-intencionados, apressando-se para combater epidemias de doenças crônicas cada vez mais intensas, acabaram interpretando os dados de forma pouco equilibrada. Com efeito, a história perturbadora da ciência da nutrição no último meio século é mais ou menos assim: os cientistas, reagindo a um


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aumento súbito do número de casos de doenças cardíacas, que passou de um punhado em 1900 à principal causa de mortes em 1950, formularam a hipótese de que a culpa era da gordura na dieta, principalmente a gordura saturada (por causa de seu efeito sobre o colesterol). A hipótese foi aceita como verdadeira antes de ser devidamente comprovada. Os estamentos burocráticos da saúde pública adotaram e santificaram esse dogma, que não tinha provas a seu favor, imortalizando a hipótese nas gigantescas instituições públicas de saúde. Desse modo, o habitual mecanismo de autocorreção da ciência, que envolve o questionamento constante das próprias crenças por parte dos cientistas, deixou de funcionar. Apesar de a boa ciência ser regida pelo ceticismo e pela dúvida metódica, o campo da nutrição foi, ao contrário, moldado por paixões que beiram o dogmatismo. E o sistema pelo qual as ideias se canonizam e são aceitas como fatos nos traiu. Depois que as ideias sobre a gordura e o colesterol foram adotadas pelas instituições oficiais, até para grandes especialistas na área tornou-se quase impossível contestá-las. O químico orgânico David Kritchevsky, um dos nutricionistas mais venerados do século XX, deparou com essa realidade há 30 anos, quando, num painel da National Academy of Sciences, sugeriu que se abrandassem as restrições à gordura na dieta. “Fomos severamente repreendidos!”, ele me contou. “As pessoas cuspiam em nós! É difícil, hoje, imaginar o calor daquela discussão. Foi como se tivéssemos profanado a bandeira americana. Eles se irritavam porque estávamos contrariando as sugestões da American Heart Association (AHA) e dos National Institutes of Health (NIH).” Todos os especialistas que criticaram a opinião dominante sobre a gordura na dieta depararam com esse tipo de reação e, assim, toda e qualquer oposição foi silenciada. Os pesquisadores que insistiram no desafio viram-se impossibilitados de obter financiamento, proibidos de galgar cargos de responsabilidade em associações profissionais, sem convites para participar de painéis de especialistas e incapazes de encontrar revistas científicas que publicassem seus artigos. A influência deles se extinguiu e seus pontos de vista se perderam. Em decorrência disso, há muito que vem se apresentando ao público um suposto con-


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senso científico sobre o tema da gordura – especialmente da gordura saturada –, mas essa aparente unanimidade só foi possibilitada pela supressão das opiniões discordantes. Ignorantes dos frágeis alicerces científicos que respaldam suas referências alimentares, os norte-americanos têm procurado segui-las com zelo e obediência. Da década de 1970 para cá, conseguimos aumentar a ingestão de frutas e hortaliças em 17% e a de cereais em 29%, bem como reduzir a quantidade de gordura que comemos de 40% para 33% do total de calorias, ou menos. A proporção de gorduras saturadas entre as gorduras totais também diminuiu, de acordo com dados do próprio governo. (Nesse período, os norte-americanos também passaram a se exercitar mais.) Com o corte no consumo de gorduras, foi preciso começar a comer mais carboidratos, como grãos, arroz, macarrão e frutas. Um café da manhã sem ovos e bacon, por exemplo, mas geralmente com cereais ou mingau de aveia; o iogurte semidesnatado, escolha comum para o café da manhã, tem mais carboidratos que o integral, pois a remoção da gordura dos alimentos quase sempre exige o acréscimo de substitutos à base de carboidratos para que o alimento recupere a textura perdida. Além disso, a renúncia à gordura animal nos fez adotar os óleos vegetais; nos últimos 100 anos, a participação desses óleos no total das calorias consumidas pelos norte-americanos subiu de zero para 8%, tendo sido essa, de longe, a maior mudança em nossos padrões de alimentação ao longo desse período. Também nesse período a saúde dos Estados Unidos piorou de modo impressionante. Quando, em 1961, a AHA recomendou oficialmente ao público pela primeira vez a dieta de baixo teor de gordura e de colesterol, um em sete adultos norte-americanos era obeso. Quarenta anos depois, essa proporção era de um em três. (É triste perceber que a meta “Pessoas saudáveis”, projetada pelo governo federal para 2010 num processo que começou em meados dos anos 1990, consistia apenas em levar o público de volta aos índices de obesidade de 1960, e que nem mesmo essa meta foi alcançada.) Ao longo dessas décadas, também vimos os índices de diabetes subirem drasticamente de menos de 1% da população adulta para mais de 11%, enquanto as cardiopatias


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continuam sendo a principal causa de morte tanto para homens quanto para mulheres. Esse é um quadro trágico para um país que, segundo o governo, vem seguindo fielmente todas as diretrizes alimentares oficiais há tantos anos. É justo perguntarmos: se temos sido tão bonzinhos, por que nosso prontuário médico é tão ruim? A dieta de baixo teor de gordura e quase vegetariana dos últimos 50 anos pode ser entendida como um grande experimento feito com toda a população norte-americana, um experimento sem grupo de controle, que alterou significativamente a dieta tradicional e teve resultados imprevistos. Talvez essa afirmação pareça dramática, e eu mesma jamais teria acreditado nela, mas uma das coisas mais impressionantes que aprendi em minha pesquisa foi que, nos 30 anos depois da recomendação oficial da dieta de baixo teor de gordura, embora considerássemos seus benefícios certos e garantidos, ela não foi sujeita a nenhuma verificação científica formal de grande escala. Empreendeu-se então a chamada Women’s Health Initiative (WHI), um experimento que envolveu 49 mil mulheres em 1993 com a expectativa de que, quando saíssem os resultados, os benefícios de uma dieta de baixo teor de gordura fossem confirmados de uma vez por todas. No entanto, depois de passar 10 anos comendo mais frutas, hortaliças e cereais integrais e diminuindo o consumo de carne e gordura, essas mulheres não só não conseguiram perder peso como tampouco tiveram redução significativa do risco de cardiopatia ou dos principais tipos de câncer. A WHI foi o maior e mais longo experimento já feito com a dieta de baixo teor de gordura, e seus resultados indicaram que a dieta fracassara. Agora, em 2014, um número cada vez maior de especialistas começa a reconhecer que talvez não tenha sido uma boa ideia fazer da dieta de baixo teor de gordura o elemento principal dos conselhos nutricionais ao longo de 60 anos. Mesmo assim, a solução oficial consiste em continuar dizendo a mesma coisa: ainda nos aconselham a seguir uma dieta alimentar feita principalmente de frutas, hortaliças e cereais integrais, com modestas porções de carne magra, leite e laticínios semidesnatados. A carne vermelha continua sendo praticamente proibida, assim como o leite e o queijo integrais, o creme de leite, a manteiga e, em menor medida, os ovos.


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No entanto, argumentos a favor do consumo desses alimentos integrais de origem animal começam a surgir entre os autores de livros de receitas e outros gastrônomos que não acreditam que tudo que seus avós comiam pudesse fazer tão mal. Há também os adeptos da chamada dieta paleolítica, que trocam informações em blogs e sobrevivem praticamente à base de carne vermelha e nada mais. Muitos desses devotos dos alimentos de origem animal foram inspirados pelo médico cujo nome é o mais ligado à dieta de alto teor de gordura: Robert C. Atkins. Como veremos, suas ideias tiveram extraordinária longevidade e foram tema de muitos estudos e pesquisas científicas nos últimos anos. Mas os jornais ainda publicam manchetes alarmantes sobre a carne vermelha como causa de câncer e doenças cardíacas, e a maioria dos nutricionistas afirma que as gorduras saturadas devem ser evitadas a todo custo. Quase ninguém dá o conselho contrário. Para escrever este livro e abordar este assunto, foi uma vantagem o fato de eu ser de fora da área, com mentalidade científica totalmente desligada de qualquer corrente estabelecida e sem receber nenhum financiamento. Busquei informações sobre a ciência da nutrição desde seu nascimento, na década de 1940, até a época atual, a fim de encontrar respostas para as perguntas: por que evitamos as gorduras na dieta? Será que convém fazer isso? Será que existe algum benefício para a saúde na recusa da gordura saturada e no consumo de óleos vegetais no lugar delas? Será que o azeite de oliva é realmente a chave para uma vida longa e saudável? A situação dos norte-americanos melhorou por tentarem proibir o uso de gorduras trans nos alimentos? Este livro não oferece receitas nem recomendações dietéticas específicas, mas chega a algumas conclusões gerais sobre a melhor combinação de macronutrientes numa dieta saudável. Em minhas pesquisas, evitei expressamente me apoiar em relatórios sumários de pesquisas, que tendem a reiterar os conhecimentos convencionais e, como veremos, podem, sem querer, perpetuar a má ciência. Em vez disso, li os estudos originais e, em alguns casos, escarafunchei dados obscuros, que estavam cuidadosamente escondidos para nunca serem encontrados. Este livro, portanto, contém muitas revelações


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novas e, às vezes, alarmantes sobre falhas nos estudos fundamentais da ciência da nutrição e também sobre as maneiras surpreendentes pelas quais esses estudos foram mal concebidos e mal interpretados. É difícil de acreditar, mas descobri que não só foi um erro restringir o consumo de gorduras como também que nosso medo das gorduras saturadas dos alimentos de origem animal – manteiga, ovos e carne – não é nem nunca foi baseado em provas científicas sólidas. O preconceito contra esses alimentos surgiu há muito tempo e logo se consolidou, mas as provas apresentadas em favor dele, além de nunca terem sido convincentes, de lá para cá caíram por terra. Este livro apresenta um argumento científico em favor da ideia de que nosso corpo é mais saudável quando ingerimos uma dieta com ampla quantidade de gordura. Defende também que essa dieta necessariamente inclui carne, ovos, manteiga e outros alimentos de origem animal com alto teor de gorduras saturadas. Gordura sem medo nos acompanha ao longo das dramáticas reviravoltas de 50 anos de ciência da nutrição e apresenta suas provas de forma que o leitor possa compreendê-las e ver por si mesmo como chegamos a nossas concepções atuais. No fundo, este livro é uma investigação científica; mas é também uma narrativa sobre personalidades fortes que coagiram seus colegas a acreditar em suas ideias. Esses pesquisadores ambiciosos empreenderam uma verdadeira cruzada levando toda a população dos Estados Unidos, e depois do resto do mundo, a adotar uma dieta semivegetariana com baixo teor de gordura, que paradoxalmente pode ter exacerbado muitos dos males que visava curar. Para todos nós, que passamos a maior parte da vida acreditando nessa dieta e seguindo-a, é importantíssimo compreender o que deu errado e por quê, bem como o que devemos começar a comer a partir de agora.


Principais fontes de diferentes tipos de gordura Saturada

• Manteiga de cacau • Leite e laticínios • Ovos • Azeite de dendê • Óleo de coco • Carnes

Insaturada

Monoinsaturada • Azeite de oliva • Banha • Gordura de frango e pato Criada por processamento químico • Óleos hidrogenados (gorduras trans)

Poli-insaturada – “Ômega-6” • Óleo de milho • Óleo de semente de algodão • Óleo de soja • Óleo de açafrão • Óleo de amendoim • Óleo de canola “Ômega-3” • Óleos de peixe • Óleo de linhaça



1 O PARADOXO DA GORDURA: SAÚDE COM UMA DIETA GORDA

Em 1906, o antropólogo Vilhjalmur Stefansson, formado em Harvard e filho de imigrantes islandeses, resolveu viver com o povo inuíte no Ártico canadense. Foi o primeiro branco com quem os inuítes do rio Mackenzie tiveram contato e que com eles aprendeu a caçar e pescar. Stefansson fez questão de viver de modo exatamente igual ao de seus anfitriões, e, assim, passava o ano comendo quase exclusivamente carne e peixe. De seis a nove meses, eles não comiam nada além de carne de caribu; depois, passavam meses comendo apenas salmão, e um mês comendo ovos na primavera. Observadores estimam que de 70% a 80% das calorias na dieta dos inuítes vinham de gorduras. Stefansson percebeu que a gordura era o alimento predileto e o mais precioso aos inuítes. Os depósitos de gordura atrás dos olhos e ao longo das mandíbulas dos caribus eram os mais apreciados, seguidos pelo restante da cabeça, pelo coração, pelos rins e pelas espáduas. As partes mais magras, como o filé mignon, eram dadas aos cães. “Para a maioria dos esquimós […] os vegetais eram consumidos principalmente nos períodos de fome”, escreveu Stefansson no controverso livro Not by Bread Alone [Nem só de pão], publicado em 1946. Ciente de que essa afirmação seria chocante, Stefansson acrescentou:


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“Se a carne exige o consumo de carboidratos e outros aditivos vegetais para fazer bem, os pobres esquimós não estavam comendo de forma saudável.” Pior: Stefansson observou que eles passavam meses inteiros na escuridão quase total do inverno sem fazer nada, incapazes de caçar, sem “nenhum trabalho de verdade”. “Deveriam estar em péssima condição. […] Mas, ao contrário, pareciam as pessoas mais saudáveis com quem já convivi.” Stefansson não viu, entre eles, nem obesidade nem doenças. Os especialistas em nutrição do começo do século XX não enfatizavam a importância do consumo de frutas e hortaliças como fazem os de hoje, mas mesmo naquela época era difícil acreditar nas afirmações de Stefansson. Ansioso para provar suas alegações quando voltou do Ártico, Stefansson arquitetou um experimento drástico. Em 1928, ele e um colega, sob a supervisão de uma equipe de cientistas altamente qualificados, internaram-se no Hospital Bellevue, em Nova York, e juraram ingerir apenas carne e água durante um ano inteiro. Os dois homens enfrentaram “uma chuva de protestos” quando entraram no hospital. Stefansson escreveu: “Nossos amigos diziam em coro que, se comêssemos carne crua, seríamos excluídos da sociedade.” (Na verdade, a carne seria cozida.) Outros temiam que Stefansson e seu colega morressem. Depois de cerca de três semanas de dieta, ao longo das quais se submeteram a uma bateria de exames no hospital, os dois homens, ainda saudáveis, foram para casa e permaneceram sob supervisão cerrada. Durante o ano seguinte, Stefansson ficou doente apenas uma vez – quando os experimentadores o encorajaram a comer apenas carne magra, sem a gordura. “Os sintomas provocados em Bellevue por uma dieta incompleta de carne (a ração de carne magra, sem gordura)” sobrevieram rapidamente: “diarreia e uma estranha sensação de desconforto geral”, lembra Stefansson – mas logo foram curados por uma refeição de contrafilé bem gordo com miolos fritos em gordura de bacon1. 1. O equilíbrio ideal parecia consistir numa proporção de três partes de gordura para uma parte de carne magra, e, de fato, essa foi a fórmula adotada por Stefansson ao longo de seu experimento de um ano. “Só carne”, portanto, era uma descrição inexata de sua dieta, que na verdade consistia basicamente em gordura.


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Ao fim de um ano, os dois homens se sentiam muito bem, e seus exames acusavam uma saúde perfeita. Meia dúzia de artigos publicados pelo comitê de supervisão científica registraram o fato de que os pesquisadores não encontraram nada errado com eles. Esperavam que eles contraíssem no mínimo escorbuto, pois a carne cozida não é fonte de vitamina C. Mas isso não aconteceu, talvez porque não comessem somente a carne, mas o animal inteiro, inclusive os ossos, o fígado e os miolos, que, como se sabe, contêm essa vitamina. Mascavam os ossos para obter cálcio, como faziam os inuítes. Stefansson seguiu essa dieta não somente no ano em que fez o experimento, mas durante quase toda a vida adulta. Permaneceu ativo e saudável até morrer, aos 82 anos. Meio século depois, do outro lado do mundo, George V. Mann, médico e professor de bioquímica que havia viajado à África, também passou por uma experiência que desafiava a intuição. Embora seus colegas norte-americanos estivessem todos dando apoio à hipótese cada vez mais disseminada de que as gorduras animais causavam doenças cardíacas, a realidade que Mann viu na África era completamente diferente. Ele e sua equipe da Universidade Vanderbilt levaram um laboratório móvel ao Quênia no começo da década de 1960 para estudar o povo massai. Mann ouvira dizer que os massais comiam apenas carne, sangue e leite – uma dieta que, como a dos inuítes, era composta quase inteiramente de gordura animal – e consideravam frutas e hortaliças alimentos próprios para vacas. Mann estava levando adiante o trabalho de A. Gerald Shaper, médico sul-africano que trabalhava numa universidade de Uganda e viajara um pouco para o norte a fim de estudar uma tribo semelhante – os samburus. Um jovem samburu bebia de dois a sete litros de leite todos os dias, dependendo da estação do ano, o que significava, em média, mais de meio quilo de gordura do leite. Mann constatou a mesma realidade entre os massais: os guerreiros bebiam de três a cinco litros de leite por dia, geralmente divididos em duas refeições. Quando a quantidade de leite diminuía, na estação seca, eles o misturavam com sangue de vaca. Não recusavam nenhum tipo de carne e comiam regularmente cordeiro, cabrito e carne bovina. Em ocasiões especiais ou


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nos dias de feira, quando abatiam animais, cada homem comia de 1,8 a 4,5 quilos de carne gorda. Em ambas as tribos, a gordura era a fonte de mais de 60% das calorias ingeridas, e toda ela era de origem animal, o que significa que era, em grande parte, saturada. Segundo o relato de Mann, os jovens da casta guerreira (murran) “não consumiam produtos vegetais”. Apesar disso, a pressão sanguínea e o peso dos massais e dos samburus eram cerca de 50% mais baixos que os dos norte-americanos – e, mais importante, os índices não aumentavam com a idade. “Essas descobertas representaram um duro golpe para mim”, disse Shaper, pois o obrigaram a reconhecer que não era biologicamente normal que o colesterol, a pressão sanguínea e outros indicadores de boa saúde piorassem automaticamente com o envelhecimento, como todos supunham nos Estados Unidos. Na verdade, uma revisão sistemática de 26 artigos sobre vários grupos étnicos e sociais concluiu que, em populações homogêneas e relativamente pequenas vivendo em condições primitivas, “em certa medida não perturbadas por seus contatos com a civilização”, o aumento da pressão sanguínea não fazia parte do processo normal de envelhecimento. Será que a anomalia éramos nós, os ocidentais, que estávamos aumentando nossa pressão sanguínea e, de modo geral, arruinando nossa saúde por meio de algum aspecto da dieta ou do modo de vida moderno? É verdade que os massais não estavam sujeitos ao estresse competitivo e emocional que corrói os cidadãos de países mais “civilizados” e que, na opinião de alguns, contribui para as cardiopatias. Além disso, eles faziam mais exercícios do que os ocidentais presos a suas escrivaninhas: esses pastores altos e esguios andavam muitos quilômetros por dia com o gado, em busca de pastagens e água. Para Mann, todo esse exercício talvez protegesse os massais das doenças cardíacas2. Mas ele também 2. Mann foi um dos primeiros pesquisadores a investigar os benefícios potenciais dos exercícios físicos para a prevenção de doenças cardíacas. As vantagens da corrida, no entanto, não parecem ser inequívocas; Jim Fixx, por exemplo, famoso entusiasta da corrida, morreu de ataque cardíaco enquanto corria em 1984. E diz-se que o famoso soldado Filípedes, na Grécia antiga, que correu a primeira maratona para dar aos atenienses a notícia da vitória na Batalha de Maratona, morreu logo após entregar a mensagem.


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reconheceu que a subsistência era “fácil” e o trabalho “leve”, e que os anciãos, que “parecem sedentários”, não morriam de ataque cardíaco. Se nossas crenças atuais sobre a gordura animal estão corretas, toda a carne e o leite que esses povos ingerem deveriam causar uma epidemia de doenças cardíacas no Quênia. No entanto, Mann constatou o contrário – quase não conseguiu identificar casos de cardiopatia. Para documentar esse fato, fez eletrocardiogramas em 400 homens, entre os quais não constatou nenhum indício de ataque cardíaco. (Shaper fez o mesmo teste em 100 samburus e encontrou “possíveis” sinais de cardiopatia em apenas dois.) Depois, Mann fez a autópsia de 50 homens massais e só encontrou um caso com sinais “inequívocos” de infarto. Os massais também não sofriam de outras doenças crônicas, como câncer e diabetes. De um ponto de vista superficial e em vista do que sabemos sobre a gordura animal e o risco de infarto, esses relatos da África e do Ártico (bem como de Nova York) parecem paradoxais. A boa saúde e o alto consumo de gordura animal devem excluir-se mutuamente, pois o consenso atual diz que essas gorduras, sobretudo as da carne vermelha, causam doenças coronarianas e, talvez, câncer. Essas crenças estão tão entranhadas que nos parecem evidentes por si mesmas. De acordo com os conselhos que ouvimos há décadas, em vez de produtos de origem animal deveríamos comer vegetais – a dieta mais saudável seria quase vegetariana. A AHA e o USDA, além de quase todos os grupos de especialistas do planeta, recomendam que as calorias necessárias para nossa vida diária sejam obtidas principalmente de frutas, hortaliças e cereais integrais, e que o consumo de qualquer tipo de gordura animal deve ser minimizado. A ingestão de carne vermelha não é aconselhada. Como escreveu Mark Bittman, principal colunista de alimentos do New York Times: “Para comer ‘melhor’, […] a parte principal da resposta é conhecida por todos: coma mais plantas.” A primeira diretriz alimentar do USDA diz: “Aumente a ingestão de hortaliças e frutas.” Podemos também citar as palavras de Michael Pollan na primeira linha de seu popularíssimo livro Em defesa da comida: “Coma comida. Não em excesso. Principalmente vegetais.”



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