O segredo da herdeira

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Cristina Caldeira O SEGREDO DA HERDEIRA

Sテグ PAULO 2011



ÍNDICE

O Oceano Invisível 1 O aurígrafo 3 A prova 7 Voto de Minerva 10 A portas fechadas 13 A Missão Monah 18 Melina de Felice 27 Gabriela e Micaela 38 A Caverna das Salamandras 44 Vitória com gosto amargo 50 Últimos acertos 52 O coração de ouro 56 A passagem 59 Muitos imprevistos e grandes emoções 61 A família de Franca 71 Primeiras impressões 78 Estranhas atitudes 87 O início das investigações 92 Primeiros suspeitos 99 Surpresas em torno da piscina 105 Uma sensação desconhecida 114 Mistério e tragédia 122 Seguindo pistas 137 Uma descoberta explosiva 149 Conspiração no mundo mágico 157


Black-tie, violinos e veneno 161 A vida continua 173 Madame M 176 Apis mellifera adamsoni 185 Samara, a herdeira Monah 201 O Olho do Diabo 213 Revelações 227 Expresso real 231 A Maldição dos Contrários 238


O OCEANO INVISÍVEL

O nevoeiro cerrado não permitia ver a distância que o jipe, em alta velocidade, precisava percorrer até alcançar a gruta no rochedo. A escuridão parecia engolir a paisagem. À esquerda, as dunas formadas por grãos negros de areia deslizavam com o vento, agitando seus mantos escuros. Do enorme espaço aberto à direita, um rumor distante indicava que a maré subia pouco a pouco e, em breve, o Oceano Invisível arrastaria tudo que encontrasse pela frente. O jovem Damião, tentando manter o controle do volante, deixava um rastro de pneus pela costa desolada e fria, nas Terras da Solidão – o único acesso para as Regiões Infernais. Damião sentia-se dominado pelos vazios sem fim, pelos ruídos ameaçadores e, acima de tudo, pela certeza absoluta de que estava completamente só. Ele lutava contra a angústia que o arrastava em direção ao barulho das ondas cada vez mais próximas. O jipe seguia pela trilha escorregadia, derrapando e retornando, algumas vezes quase cedendo ao chamado do mar. Para resistir, tentava se concentrar no dossiê que acabara de roubar e que podia sentir colado no peito, por baixo do agasalho. Ele ainda tinha uma missão a cumprir e valia a pena viver por ela. Mais uma vez conseguiu esvaziar a mente e ignorar as ameaças à sua volta, acelerando mais e mais, enquanto uma onda gigantesca se formava pronta para envolvê-lo. Na última guinada à esquerda, o jipe quase colidiu com a entrada estreita da gruta. Damião atirou-se para fora do 1


carro, rolando sobre o chão rochoso e coberto de limo. Levantou-se a tempo de vê-lo ser carregado pela fúria invisível das águas que se chocavam estrondosamente contra as terras por onde ele acabara de passar. Em duas horas as águas recuariam, e os temidos caça-desertores sairiam atrás dele. Sabia do que esses agentes da Central de Inteligência Maligna eram capazes. Não pretendia ser apanhado. O interior da gruta era irregular e íngreme. Os pés escorregavam no solo lodoso. Obstinado, foi escalando sem se virar para a escuridão atrás de si. Enfim, de frente para o paredão que dividia a trilha principal em duas outras, tateou com as mãos feridas até encontrar a reentrância que procurava e ergueu o corpo em um esforço final. Com os pés apoiados no pequeno patamar de pedra, colocou-se de frente para uma estreita fenda, enfiou a mão direita e foi empurrando, primeiro com o cotovelo, depois com os ombros, até conseguir abertura suficiente para passar o corpo inteiro. O sol de um dia muito quente o aguardava do lado de fora. Atrás dele, em silêncio, a passagem na rocha se fechou. Damião estava certo de que só havia um lugar onde poderia viver em paz. Era melhor começar a correr.

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O AURÍGRAFO

A reitora Anabel acompanhava as várias linhas que percorriam o visor de um aparelho muito semelhante aos utilizados para controle de doentes nos hospitais. Um emaranhado de fios e placas ligava o jovem Damião à máquina. O procedimento não era um exame convencional para procurar doenças físicas. O que se buscava ali era bem mais complexo e, para isso, contava-se com a experiência inestimável do doutor Omã – o criador e operador do único aparelho que consegue detectar mentiras com 100% de eficiência, graças a um sensor ultrapreciso capaz de registrar as mínimas variações de tonalidade na aura da pessoa investigada. Tratava-se do famoso e cobiçado aurígrafo. Damião parecia completamente relaxado na cadeira reclinável, ouvindo o som discreto e contínuo que o aurígrafo emitia, enquanto vasculhava suas emoções mais íntimas, farejando indícios de falsidade, por mais insignificantes que fossem. Já era a terceira sessão a que o doutor Omã submetia o rapaz e, apesar das insistentes perguntas sobre os mais diversos assuntos, Damião parecia incrivelmente verdadeiro. Por isso mesmo a reitora fora chamada: nunca o aparelho flagrara tamanha honestidade. A expressão de assombro naqueles olhos muito azuis mostrava que, sem dúvida, Sua Magnificência, a reitora Anabel de Rochel, concordava com o doutor. Certamente este era um caso para a imediata instauração 3


de uma comissão investigativa para concessão de asilo, o que iria agitar o Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical. A reitora acenou positivamente com a cabeça e o doutor começou a retirar os fios ligados a Damião. O rapaz endireitou-se na cadeira, aguardando um veredicto. Anabel aproximou-se e contemplou o rosto jovem e bonito que a observava com seus grandes olhos cor de mel. – Você passou de maneira exemplar pelo aurígrafo. Durante a minha gestão no Preparatório, é a primeira vez que presencio o retorno de um anjo perdido para o caminho do Bem. Muitos impostores se sentaram nesta cadeira com o intuito de enganar a máquina, mas, ainda que muito bem treinados pela Escola das Trevas, sempre foram desmascarados em poucos minutos. – Graças ao aurígrafo, nunca mais houve um único caso de infiltração de agentes malignos entre nós – atestou o orgulhoso inventor, doutor em tecnologia avançada. A reitora Anabel sentia um grande alívio. Agora que estava absolutamente segura de que Damião não era uma fraude, a investigação que se arrastara por meses chegava ao fim. – Levante-se, Damião. De pé, o rapaz parecia muito grande comparado à frágil figura da reitora. Mesmo assim, ela não perdia a autoridade que transmitia com todos os seus gestos, por mais simples que fossem. Ela pôs as palmas das mãos nos ombros do jovem. – Fique tranquilo, Damião, vou convocar uma reunião do Conselho com a maior urgência para reivindicar uma comissão.Você estará inteiramente seguro quando for admitido no Programa. – Programa? – Programa de Proteção ao Anjo Pródigo Reintegrado. Você receberá uma nova identidade, impossível de ser descoberta. 4


– Obrigado por acreditar em mim. – Não me agradeça. Se o Conselho aceitar a minha decisão, logo você terá a oportunidade de trabalhar a nosso favor. Você nos forneceu informações fundamentais para a implantação de uma importantíssima missão. – Provavelmente Vossa Magnificência se refere às informações que forneci sobre o paradeiro da bisneta do homem conhecido como profeta Monah. – Exatamente, meu jovem. Agora que sabemos a localização da jovem herdeira dos dons do profeta, vamos iniciar a nossa ofensiva para impedir que ela seja manipulada pelas forças do Mal. Há quase um ano, mantenho uma Turma de Operações Especiais em treinamento, sob a minha supervisão direta. Acho que, com mais algumas aulas e agora com o apoio do “Dossiê Monah” que você nos entregou, estarei pronta para dar início à missão. – Se vocês estão querendo infiltrar um agente na Terra, espero que seja um ser de muita luz e com grande experiência. – Não é não. – Não?! Que tipo de agente vocês pretendem enviar? – Uma de nossas alunas, uma menina de treze… quer dizer, treze para quatorze anos. – Uma adolescente numa missão perigosa envolvendo a luta milenar entre forças do Bem e do Mal? – Exatamente. Uma das quatro jovens da Turma de Operações Especiais que mencionei. Quando as escolhi, dois anos atrás, levei em conta a idade da herdeira do profeta Monah, justamente para facilitar a aproximação da futura agente. Com base nas novas informações que você nos trouxe, intensificarei o treinamento dessas jovens. Assim que estiverem prontas, serão submetidas a uma prova final formulada pelos mais ilustres professores da nossa Instituição. – Essa jovem, a que for escolhida, não terá dificuldade em permanecer no corpo físico de um humano por muito tempo? Afinal, ela é um ser de luz. A aparência dela não é assim… quer dizer… 5


– Etérea? Como um anjo? – Anabel esticou os braços translúcidos e percorreu-os com os olhos. – Assim como eu? Não, essas quatro jovens são aspirantes ao 72º- Coro, ainda não se diplomaram, o que significa que não possuem a auréola de ouro. Só depois da entrega da auréola é que os seres de luz se transformam em anjos com plenos poderes; elas são noviças, ainda não fizeram os votos angelicais. – E isso não tornará a agente escolhida fraca demais para a missão? – Pelo contrário, esse poderá ser o nosso maior trunfo: ela parecerá verdadeira para os humanos.

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A PROVA

A reitora Anabel de Rochel parecia desanimada naquela manhã, carregando a noite que passara em claro estampada no rosto. Ela teve uma noite de incertezas, revisando as perguntas da prova que indicaria a jovem a ser enviada para a missão mais importante que já passara pelas suas mãos. A madrugada havia se arrastado entre bocejos e xícaras de chá de pétalas de papoula. Agora, subia lentamente a escada que desembocava em um pequeno hall, onde uma placa bem visível alertava: “Área proibida”, e, logo abaixo, havia uma advertência sobre a necessidade de uso de crachá para transitar no local. Na primeira porta à direita, uma nova placa informava: “Turma de Operações Especiais”, e trazia logo acima o emblema do Instituto Preparatório – um par de asas douradas formado por quatro penas de cada lado, que aumentavam de comprimento progressivamente, de baixo para cima, no centro do escudo azul que reluzia na sua moldura de ouro. Anabel respirou fundo, apertou contra o peito a pasta que trazia, girou a pesada maçaneta e entrou. Encontrou Gabriela, Micaela, Rafaela e Angélica em profundo silêncio: não havia o menor sinal da costumeira agitação. Certamente também não era um dia comum para aquelas meninas, e podia-se notar, em cada rosto, os vestígios do sono interrompido por sonhos e sobressaltos. Anabel foi objetiva na sua breve explicação sobre a prova e tentou desanuviar o ambiente usando um tom de voz 7


tranquilo e alegre, retirando um pouco da tensão que dominava a sala. Em seguida, distribuiu as provas. As jovens fizeram suas orações e logo ergueram as canetas, prontas para percorrer as cem perguntas que tinham pela frente. A reitora virou a ampulheta em cima de sua mesa e acionou um botão lateral. A fina areia dourada começou uma descida lenta, depositando-se sobre o visor luminoso que marcava o tempo de duração da prova. – Quatro horas a partir deste momento – Anabel informou. – Boa sorte a todas. As meninas mergulharam na primeira questão. A reitora pegou um artigo que estava preparando para o jornal da escola, O Iluminado, para revisar o texto. Apenas o visor luminoso encarava as alunas: 3:59. Faltavam trinta minutos para o tempo previsto se esgotar, quando Micaela fechou seu bloco e levantou-se com ar vitorioso. Era a primeira a terminar a prova. As outras olharam para ela com apreensão. Anabel tranquilizou-as, apontando a ampulheta. – Vocês ainda têm trinta minutos. Não se afobem. Micaela despediu-se, deixando seu bloco de respostas em cima da mesa. Anabel acompanhou a menina graciosa e um pouco espevitada que se retirava. Reparou que, mais uma vez, ela dispensara a gravata do uniforme, que considerava “masculina demais”. Micaela era assim mesmo, resignou-se a reitora, sempre tentava impor seu ponto de vista e não desistia com facilidade. A gravata era uma questão de honra. Desde a 1ª- série, quando o emblema do Instituto Preparatório na manga de seu casaquinho branco possuía uma única pena, Micaela questionava o uso da gravata de pontas compridas e, com frequência, “esquecia” o acessório. Agora, já ostentando a oitava e última pena do emblema – indicando que a aluna estava apta a alçar o voo maior e que a formatura se aproximava –, a mesma rebeldia a acompanhava. A gravata era apenas o indício mais visível. 8


Anabel afastou as lembranças e abriu o bloco de provas, passando os olhos pelas linhas salteadas. Mesmo sem assinatura, reconheceria o estilo da aluna: sempre seguro, cheio de informações e citações oportunas. – É excelente aluna, essa Micaela – suspirou. Na verdade, ela temia a boa impressão que uma prova daquelas daria aos membros do Conselho. Não gostaria de confiar a missão àquela aluna. A reitora desviou o olhar da prova de Micaela para a mesa de Gabriela, sua aluna preferida. Imediatamente várias razões vieram à sua cabeça para justificar aquela preferência que ela jamais deixava transparecer. A menina escrevia as últimas linhas, totalmente desligada do que acontecia em volta. Em dois dias, os conselheiros apresentariam sua decisão.

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VOTO DE MINERVA

Os dois dias seguintes não foram fáceis. O ultraconservador Conselho para Assuntos Extraordinários deu mais um golpe na eterna luta que travava contra as inovações do doutor Omã, nocauteando o orgulho do cientista. O vetérrimo conselheiro Noel – presidente do Conselho e detentor absoluto da última palavra no Instituto Preparatório – apontou o dedo trêmulo para o aurígrafo e, alisando suas longas barbas brancas, declarou não confiar na“infalibilidade daquela geringonça”. Os cinco conselheiros votaram pela desqualificação do aparelho como prova no processo de reintegração de Damião. Damião, no entanto, não se abalava com nada. O jovem estava disposto a aceitar qualquer exigência para restabelecer o seu elo com o Bem. E foi com a maior serenidade que se expôs aos intermináveis rituais exigidos pelo Conselho, até que não restasse nenhuma dúvida sobre suas boas intenções. Finalmente convencidos, os conselheiros consideraram o rapaz apto a se apresentar ao Programa de Proteção ao Anjo Pródigo Reintegrado e, assunto encerrado, desviaram suas atenções para as provas da Turma de Operações Especiais. Os cinco conselheiros trancaram-se, novamente, na Sala de Deliberações por quase doze horas. Nesse meio-tempo, a reitora fez de tudo para controlar a ansiedade. Deu longas caminhadas por entre as árvores do imenso pomar da escola e fez até uma incursão inédita à sauna a vapor de nuvens, 10


uma das últimas invenções do doutor Omã, popular entre os demais professores. Mas ela não conseguia relaxar, só um pensamento martelava sua cabeça: quem seria a indicada pelos conselheiros? No fim da noite recebeu o chamado do Conselho. Anabel enfrentou o labirinto de corredores que separava a ala dos professores e a Sala de Deliberações – onde só se entrava a convite dos conselheiros – andando cada vez mais rápido. Quando parou na frente da imensa porta dupla, se recompôs, ajeitou os cabelos e, ainda ofegante, bateu. Logo ouviu o barulho da pesada chave de bronze girar na fechadura. Ariel, o conselheiro mais jovem, o único que ainda se locomovia sem ajuda de uma bengala, conduziu-a até a imensa mesa de carvalho onde os outros conselheiros estavam sentados. As provas estavam espalhadas por cima da mesa, as folhas arrancadas dos blocos e várias observações anotadas com letras diferentes. – Temos aqui um impasse, reitora Anabel – anunciou Noel, falando sempre mais alto do que o necessário em função da adiantada surdez. – Pela primeira vez em sua história, o Conselho não conseguiu desempatar os votos. Cada conselheiro acredita firmemente ter realizado a melhor escolha. Decidi que a senhora deverá recolher-se para fazer as suas próprias considerações e, no prazo de 48 horas, proferir o Voto de Minerva. – Mas o Voto de Minerva é seu, conselheiro Noel! – E é meu também o direito de renunciar a ele quando julgar que existe pessoa mais capacitada para desfazer o impasse. No presente caso, estou transferindo esse direito à senhora, que conviveu com essas jovens muito de perto nos últimos meses e que saberá, melhor do que eu, reconhecer as mãos mais seguras para chefiar essa missão. – Eu ainda não sei de que alunas estamos falando. Quem foram as escolhidas? – As alunas Micaela e Gabriela dividiram os votos dos conselheiros. Como elas são muito diferentes, quem vota em 11


uma não transfere seu voto para a outra. Contamos com a sua perspicácia para desfazer esse nó. Além de rever as provas e meditar, a senhora poderá tomar a providência que julgar necessária para realizar uma escolha mais segura. Tenho uma sugestão: recorra aos psicólogos. Em outros problemas relacionados com a análise da personalidade dos alunos, o Departamento de Psicologia sempre prestou ótimos serviços. – Seguirei a sua orientação, conselheiro – concordou Anabel, levantando-se e recebendo as provas das mãos de Ariel. – Sei que a tarefa é difícil, por isso peço licença para me retirar imediatamente. – Claro, reitora. Em nome do Conselho lhe desejo muita serenidade na escolha. Anabel deixou a Sala de Deliberações carregando os blocos de provas e o incômodo peso da responsabilidade que Noel, o vetérrimo, transferira para ela.

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