A história de Iqbal

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IQBAL A HisTÓriA de

Francesco d’Adamo

tradução de Karina Jannini



A históriA de iqbAl Francesco d’Adamo introdução de Gad lerner tradução de Karina Jannini



Para Annarita



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sim, conheci iqbal. sempre penso nele, principalmente à noite, quando acordo com frio ou estou muito cansada para pegar no sono. No quarto debaixo do telhado, onde nossos patrões italianos nos fazem dormir, há uma janela estranha, virada para o alto, para o céu. Não sei como vocês a chamam; no meu país não há janelas assim. Mas aqui na itália tudo é muito diferente do Paquistão. Ainda não me habituei. Gosto dessa janela porque, às vezes, quando o céu está limpo, através do vidro veem-se as estrelas e talvez até a foice da lua. As estrelas são a única coisa que encontrei de igual ao vir para cá do lugar onde eu vivia, perto da cidade de lahore. É claro que as nossas brilham um pouco mais, mas acho que as estrelas são iguais no mundo inteiro e são sempre um consolo para quem vive em um país estrangeiro e se sente sozinho e melancólico. dois dos meus irmãos estão aqui comigo: hasan, um pouco mais novo do que eu, e Ahmed, o mais velho. Por sorte, hasan trabalha para a mesma família que me em13


pregou. são bons patrões. Nunca nos tratam mal e, claro, não nos batem como faziam meus patrões de lahore. O trabalho também é menos duro: limpo, vou ao mercado, fico com as crianças. essa é a parte de que mais gosto. A patroa tem dois filhos, uma menina e um menino. são bonitos, limpos. Gostam de mim e sempre me dizem: “Fátima! Fátima! Venha brincar com a gente!” então, pegamos todas as bonecas, os bonecos de pano e outros brinquedos misteriosos e estranhos, e brincamos. Alguns falam, outros se movem sozinhos, outros ainda têm uma porção de luzes coloridas que acendem e apagam. Não sei usá-los, nunca os tinha visto antes, às vezes até me assustam. No começo, eu pensava que fosse alguma magia e sentia medo. de vez em quando, as crianças perdem a paciência e dizem: “Nossa, Fátima! Como você é burra!” Mas aprendo rápido e passaria dias brincando com elas, descobrindo coisas novas, como se eu também ainda fosse uma menina. infelizmente, sempre chega a patroa dizendo: “Fátima, o que está fazendo aqui? Não deveria estar na cozinha?” saio correndo, cobrindo o rosto de vergonha, pois já tenho 16 anos, talvez até 17, não sei direito, mas de todo modo sou uma mulher adulta e deveria estar casada há tempos e ter meus próprios filhos. No Paquistão, os patrões não nos deixavam brincar, não havia tempo para isso, tínhamos de estar sempre junto ao tear, do amanhecer até o pôr do sol, todos os dias. Mas 14


me lembro das pipas e da vez em que iqbal e eu empinamos uma, de como ficamos emocionados e felizes por vê-la subir ao vento, cada vez mais alto. isso foi antes de ele partir para sua longa viagem, para um lugar chamado América. ele me disse: “quando eu voltar, vamos soltar pipa todos os dias.” Mas não foi o que aconteceu. Gostaria de ensinar os filhos da patroa a empinar pipa, iam se divertir. Mas não sei se conseguiria fazê-la voar: nesta cidade não há espaço, nem vento nem céu azul. Acho que se prenderia nas antenas e ficaria enrolada nelas até morrer. Por outro lado, não sei o que faz Ahmed, meu irmão mais velho. Vemo-nos algumas vezes, quando os patrões nos concedem meio dia de liberdade. há uma praça em que todos nós, paquistaneses que agora vivemos aqui, nos encontramos. Para dizer a verdade, não é uma praça bonita, tem apenas três bancos e algumas árvores secas, e com frequência chove. Mas não temos outro lugar aonde ir. encontramo-nos para conversar e rir um pouco, os homens de um lado, as mulheres de outro. Nessas ocasiões, nós mulheres observamos a purdah, usando um véu que cobre os cabelos e parte do rosto por pudor, como é nosso costume. Ahmed chega como se estivesse na defensiva, agita as mãos, diz que devemos ficar atentos, que logo voltaremos para casa, para nosso país, quando tivermos dinheiro suficiente. só que está sempre sem dinheiro, e muitas 15


vezes somos nós que lhe damos. Mais de uma vez, senti seu hálito de cerveja e, para nós, beber álcool é pecado. Mas não quero julgá-lo, é meu irmão mais velho, e depois – imagino – deve estar infeliz como todos nós. Nem sei se quero voltar para o meu país: lá eu estava mal, aqui estou bem. É verdade: aqui, ninguém me maltrata; aqui não me obrigam a trabalhar até eu cair exausta no chão de terra batida; não fico com as mãos cheias de bolhas e cortes de que ninguém cuida e que infeccionam; aqui não sou uma escrava. Os patrões me dão comida, lugar para dormir e dinheiro. Não posso me queixar e sou grata a eles. Aqui sou livre. Mas Ahmed diz que, se nos encontrarem, primeiro vão nos colocar em um campo cercado, depois nos mandam embora. Não sei. talvez diga isso por causa do que sinto quando vou ao mercado fazer compras. Visto o véu e carrego uma bolsa grande. Caminho de cabeça baixa. Aqui há muito mais coisas do que nos nossos mercados, mas menos coloridas, menos alegres. são tantos os produtos que, no começo, eu não sabia o que eram nem conhecia seus nomes. Apontava com os dedos: quero três deste, quatro daquele. Muitas vezes errava, e a patroa ficava brava. Agora é mais fácil. Mas o fato é que ninguém me vê. Não sei como explicar. Passo no meio de toda aquela gente que fala, grita, se cumprimenta, e é como se somente eu fosse invisível. 16


Ninguém me dirige a palavra. trombam em mim no meio da multidão, mas ninguém me pede desculpa. Cheguei até a pensar que tinha me tornado um jin, um daqueles espíritos invisíveis que se divertem quebrando vasos dentro de casa e sumindo com os objetos. Caminho e não existo. Paro para olhar as bancas cheias de frutas e verduras, e não existo. Faço as compras, e o comerciante me dá a mercadoria, recebe meu dinheiro, conta o troco – que verifico para não me deixar enganar –, mas olha através de mim para a pessoa que espera logo atrás, conversa com ela, ri, brinca. Não existo. Por isso, fico triste à noite, no sótão. É nesses momentos que penso em iqbal, e penso nele como meu esposo. sei que é um pensamento estúpido. É bem coisa de meninas tolas, que sussurram uma no ouvido da outra, para dar risada. Além do mais, nem é bom pensar uma coisa dessas. No meu país, não é comum uma moça escolher o esposo. É a família que cuida e se ocupa das negociações para estabelecer o dote. sempre foi assim, com a minha mãe e com a mãe dela, e está certo – provavelmente. Aqui, no país de vocês, é diferente. Mas já estou velha demais para encontrar marido. Ninguém iria me querer. No entanto, em certas noites, o céu é frio e escuro, e já não se ouvem os barulhos da rua. Fico com os olhos arregalados no escuro e gostaria de chorar, mas não consigo, então sonho que iqbal sobe a vereda que leva à casa dos meus pais, cercado por seus amigos e parentes, inclu17


sive por eshan Khan, o homem que foi seu segundo pai, e estão todos com roupas de festa. sonho que o espero nas dependências das mulheres e não posso transparecer a emoção que aperta meu coração. estou vestida de vermelho, como cabe a uma esposa, e minhas irmãs decoraram minhas mãos e meus pés com motivos florais, desenhados com hena escura. sonho que iqbal entra na minha casa perfumada de flores e incenso e, diante dos meus pais, dos meus irmãos e dos meus parentes, toma-me como esposa e vamos embora, ele e eu, juntos, livres. sei que isso é apenas um sonho. Ou melhor, uma ilusão. sei que iqbal já não pode voltar para me buscar neste país incompreensível e estrangeiro. e, se voltasse, nem sei se iria me querer como esposa. Afinal, há cinco anos éramos apenas duas crianças. Mas iqbal foi isso para mim: minha liberdade. talvez a única liberdade da minha vida. Permitam-me, então, esse sonho. Não faz mal a ninguém. Para ele, eu não era invisível. eu existia. Por isso, esta é a história de iqbal como eu a conheci, como a recordo.

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