O interruptor debaixo da escada

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O interruptor debaixo da escada J a na i na To k i Ta k a a r T h u r Wa r r e n

São Paulo 2017



“Que ótimo! Desde pequeno, sempre quis morar em uma casa mal-assombrada.” Meu amigo Totoro, hayao Miyazaki



Prologo ‘

Toda criança sabe que no escuro o mundo vira um lugar perigoso. Sabe aquele fantasma do filme de terror que você viu sozinho, de noite? aquele mesmo, de cara branca, olhos pretos e dedos gelados? então... quando a noite chega, parece mesmo que ele pode estar escondido dentro do guarda-roupa, embaixo da cama, no corredor entre o banheiro e a cozinha. Toda criança sabe disso, do mesmo jeito que sabe que aquela vacina não vai doer só um pouquinho, que o “frango empanado” de terça-feira, na verdade, era peixe mesmo e que os adultos mentem, principalmente no natal e nas festas do trabalho. Quando você é criança, tem certeza que monstros existem pra valer.

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1. Tava frio demais até pra julho e tava difícil trocar meu pijama de flanela por uma roupa normal. “Tá”, pensei, aceitando a realidade. “este pijama não vai pra lugar nenhum. Mas acho que não é boa ideia fazer como a vizinha, que passeia com o cachorro usando roupa de dormir.” Com muito esforço, dei um jeito de entrar numa calça jeans meio larga e vesti um casaco de moletom por cima de tudo. Pronto. ninguém ia perceber que, embaixo daquelas camadas, tinha um segredo quentinho. “Mais ou menos como o uniforme do Super-homem!”, pensei, mais animada. “isso se o superpoder dele fosse preguiça.” Desci as escadas pulando, com as mãos no bolso do casaco.

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– Miya – minha mãe gritou, da cozinha. – e as caixas do seu quarto? – Já vai. Juro que hoje eu arrumo. Meus pais são as pessoas mais organizadas do mundo. Cinco dias depois de a gente ter se mudado, era como se o apartamento antigo tivesse se teletransportado pro sobrado novo. até os livros da minha mãe estavam na mesma ordem de antes. Coisa de louco. eu sempre tentei seguir o padrão deles, mas, no fundo, sempre me senti cobrindo eternamente a minha bagunça com um moletom gigante. Se alguém se desse ao trabalho de investigar, descobriria como é caótica a minha cabeça. Sentei na copa, peguei um pedaço de bolo e pus oito colheres bem cheias de chocolate em pó dentro do meu leite. Meu pai deu uma olhada de lado, mas não falou nada. eu também fingi que não percebi a cara feia. o chocolate quente era meu. Shimeji, percebendo a minha presença, levantou do tapete e saiu correndo, pulando no meu colo e lambendo minha cara. – Miya, que nojo! Você está comendo! – minha mãe reclamou. – Deixa, mãe, o Shimeji é limpinho. ele só quer que eu termine logo de comer.

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o Shimeji é meu cachorro, um shar-pei gordo, enrugado e mais preguiçoso do que eu. a única coisa capaz de descolar o Shimeji do tapete da sala era saber que ia passear comigo pela manhã. Depois do exercício, ele desmaiava, satisfeito, por cinco horas seguidas, e o mundo podia cair ao redor do bicho que ele não acordava de jeito nenhum. engoli o que restava do bolo, dei um último gole no chocolate quente e prendi a guia na coleira do Shimeji. – Miya, duas voltas no quarteirão e, depois, você arruma suas coisas, combinado? não quero essas caixas na minha sala pra sempre. Minha mãe não ia esquecer aquilo tão cedo. – Tá bom, mãe. Prometo. olhei pro Shimeji abanando o rabo enrolado, ansioso, e suspirei. “Coragem, Miya”, pensei, me preparando para enfrentar o frio, enquanto abria a porta e sentia o vento congelar meu nariz. “Pelo menos o Shimeji vai ficar feliz.”

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2. a vizinhança não parecia ruim. as casas eram antigas e o bairro inteiro era cheio de árvores, todas da mesma espécie. naquela semana, elas estavam cheias de flores com um cheiro engraçado, mais de mato do que de flor. Segui o passeio, contando lojas e restaurantes pelo caminho. Três cafés, uma doceria pequena, uma loja de colchões, uma escola de inglês e – oba! – uma loja de videogames. Tava fechada, mas parei pra dar uma olhada na vitrine, pensando qual jogo eu ia pedir de aniversário. estava tão concentrada tomando a decisão que não vi um menino se aproximar. Quando olhei para o lado, ele estava com o nariz colado no vidro, tentando enxergar alguma coisa no fundo da loja. – o que é que você está olhando? – perguntei, sem pensar muito. eu sempre dizia coisas assim e morria de vergonha logo depois. Meu pai dizia que eu fazia isso porque era “espontânea”.

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– aquele jogo azul, lá no fundo, está vendo? Sabe que jogo é aquele? – o menino respondeu, apontando uma caixinha na vitrine. ele não parecia nem um pouco ofendido com a minha pergunta. – ah, é o Mina dos Monstros. não compra. Sério! É o pior jogo do mundo – respondi, com sinceridade. – É muito chato. não tem o menor sentido. – Por quê? – Você gosta de Mario? – perguntei. – Gosto. – Bom, é tipo Mario, mas não é legal de jogar. Parece que o jogo está querendo te irritar de propósito, sabe? – Sei. uma vez eu joguei o controle na parede, de tanta raiva – disse ele, fazendo um gesto de quem atirava alguma coisa longe, e eu entendi exatamente o que ele queria dizer. – Mas valeu pela dica. eu enxergo meio mal. Miopia, sabe? – ele falou. – Mas miopia é meio normal, não é? Por que você não usa óculos como todo mundo? o menino olhou para mim, muito sério. – eu não posso usar óculos. – ué, por que não? – questionei. eu realmente estava muito curiosa para saber a resposta. – Tem alergia à armação? Tenho um primo que tem isso.

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– não, é que sou gordinho. e, dizendo isso, apertou o indicador contra a própria barriga. – eu não posso ser o gordinho de óculos, é a última coisa que pode acontecer na minha vida. – ah... tá – respondi, sem saber muito bem o que deveria falar. a gente ficou em silêncio por alguns segundos. o Shimeji bocejou e começou a cheirar a barra da calça do menino, curioso. – Que cachorro engraçado! – disse, passando a mão na cabeça do Shimeji. – Parece uma uva-passa. – É um shar-pei, um cachorro chinês. – Como você? – não – respondi, meio brava. – eu sou japonesa. Quer dizer, meus avós são japoneses. – ah, vocês são a família que se mudou para a casa vermelha da esquina? Lá só mora japonês. É muito esquisita aquela casa. – esquisita por quê?

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eu mesma tinha achado a casa meio esquisita quando nos mudamos, mas não gostei de ouvir aquilo de um estranho. – não tem nada de errado na minha casa. – Sei lá, esquisita. Pelo menos os antigos moradores eram bem estranhos. aqui no bairro, ninguém falava com eles e eles não falavam com ninguém. o menino olhou para o lado, meio desconfiado. – De noite, eles acendiam todas as luzes da casa e faziam um barulhão. Meu pai sempre falava que eles deviam ser sócios da eletropaulo. os dois eram japoneses, igual a você e ao seu cachorro. – o Shimeji é chinês... ah, deixa pra lá. Como você se chama? – Celso. e você? – Miya. – Bom, a gente se vê por aí, então, Miya – ele se despediu, abaixando para coçar a orelha do Shimeji. – Tchau, uva-passa! – É Shimeji – resmunguei, mas o Celso já tinha dobrado a esquina. Cheguei em casa congelando e dei com a minha mãe sentada de braços cruzados no sofá

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da sala. É um pouco difícil perceber quando ela está brava porque a cara dela não muda muito. eu aprendi que o melhor truque é olhar para a sobrancelha. Quando ela levanta um pouquinho a sobrancelha direita, já vou caprichando no pedido de desculpa. – Miya, as caixas. É, desta vez não ia ter para onde fugir. olhei para o Shimeji dando voltas no tapete felpudo, preparando-se para dormir por cinco horas seguidas, e suspirei de inveja. – Cadê a tesoura, mãe?

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