O discreto charme do intestino

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Giulia Enders

O DISCRETO CHARME DO INTESTINO TUDO SOBRE UM ÓRGÃO MARAVILHOSO Com ilustrações de Jill Enders

Tradução de KARINA JANNINI

SÃO PAULO 2015



Prefácio Nasci por cesariana e não pude ser amamentada. Isso me transformou na perfeita criança-modelo do mundo intestinal no século XXI. Se na época eu soubesse mais sobre o intestino, poderia ter apostado do que adoeceria mais tarde. Primeiro tive intolerância à lactose. Nunca me surpreendeu o fato de que, depois do quinto ano de vida, de repente pude voltar a tomar leite, em algum momento engordei e depois voltei a emagrecer. Fiquei bem por um longo tempo, até que veio “a ferida”. Aos 17 anos, apareceu sem razão alguma uma pequena ferida em minha perna direita. Simplesmente não cicatrizava, e, após um mês, fui ao médico. A doutora não sabia direito o que era e me prescreveu uma pomada. Três semanas depois, minha perna inteira estava repleta de feridas. Em pouco tempo, ambas as pernas, os braços e as costas. Às vezes, também o rosto. Por sorte era inverno, e todos acharam que eu estava com herpes e um arranhão na testa. Nenhum médico conseguia me ajudar – devia ser algum tipo de neurodermite. Perguntaram-me se eu andava muito estressada ou se não me sentia bem psicologicamente. Cortisona funcionou um pouco, mas, assim que eu a interrompia, tudo voltava. Por um ano vesti meias-calças tanto no verão quanto no inverno, para que as feridas não molhassem as calças. Até que arregacei as mangas e comecei a me informar por conta própria. Por acaso, deparei com um relato sobre uma doença de pele muito semelhante. Um homem teve a mesma reação após tomar an11


tibióticos, assim como eu, que algumas semanas antes da primeira ferida também tive de tomá-los. A partir desse momento, deixei de tratar da minha pele como se estivesse com um problema dermatológico e passei a considerar que estava com um problema intestinal. Parei de comer laticínios e quase não comi mais produtos com glúten, ingeri diversas bactérias e, de maneira geral, passei a me alimentar de maneira mais saudável. Nesse período, fiz algumas experiências malucas... Se na época já estudasse medicina, não teria ousado fazer metade do que fiz. Cheguei a tomar uma superdose de zinco por várias semanas, o que elevou consideravelmente a sensibilidade do meu olfato. Com alguns truques, consegui finalmente controlar minha doença. Foi uma experiência bem-sucedida, e senti no próprio corpo que conhecimento pode significar poder. Comecei a estudar medicina. No primeiro semestre, durante uma festa, sentei-me ao lado de um rapaz que tinha o hálito mais forte que já senti em toda a minha vida. Era um odor atípico, bem diferente dos aromas hidrogenados e acres de homens mais velhos e estressados, ou dos odores adocicados e podres das nossas tias que comem muito açúcar. Um instante depois, fui me sentar em outro lugar. No dia seguinte, o rapaz estava morto. Tinha se matado. Sempre penso nisso. Será que um intestino muito doente é capaz de cheirar tão mal que esse tipo de doença também acaba afetando o ânimo? Uma semana depois, tomei coragem para conversar com uma boa amiga sobre minhas suposições. Alguns meses mais tarde, essa amiga pegou uma forte gastrenterite. Ficou muito mal. Quando nos vimos novamente, ela me disse que minha tese poderia estar certa, pois fazia muito tempo que não se sentia tão mal, inclusive do ponto de vista psíquico. Isso me estimulou a dar mais atenção a essa tese. Ao mesmo tempo, descobri um ramo 12


completo de pesquisa, cujo objeto é a ligação entre o intestino e o cérebro. Trata-se de uma área que está crescendo muito rápido. Há cerca de dez anos havia poucas publicações a respeito, e nesse meio-tempo já foram lançadas centenas de artigos científicos. A influência do intestino na saúde e no bem-estar é um dos novos rumos da pesquisa do nosso tempo! Rob Knight, renomado bioquímico americano, disse à revista Nature que ela é tão promissora quanto a pesquisa sobre células-tronco. Eu havia entrado em um campo que sempre achara fascinante. Durante a faculdade, percebi como essa área é negligenciada na medicina. No entanto, o intestino é um órgão excepcional. Ele forma dois terços do sistema imunológico, tira energia de sanduíches ou salsichas de tofu e produz mais de vinte hormônios próprios. Durante sua formação, grande parte dos médicos aprende muito pouco sobre ele. Em maio de 2013, quando participei do congresso “Microbiome and Health” (Microbioma e saúde), em Lisboa, o grupo não era grande. Cerca da metade vinha de instituições que tinham condições financeiras suficientes para figurar entre “as primeiras”, como Harvard, Yale, Oxford ou o EMBL de Heidelberg. Às vezes acho assustador quando cientistas discutem conhecimentos importantes a portas fechadas, sem que o público seja informado a respeito. A cautela científica é sempre melhor do que uma afirmação precipitada. Mas o medo também pode destruir oportunidades importantes. Aos poucos, passou-se a considerar no mundo científico que pessoas com determinados problemas digestivos costumam ter distúrbios nervosos no intestino, que manda sinais a uma área do cérebro que, por sua vez, processa sensações desagradáveis, embora essas pessoas não tenham feito nada de errado. Elas se sentem mal e não sabem por quê. Quando então o médico as trata como casos psíquicos irracionais, isso é muito contraproducente! Este é apenas um dos 13


exemplos em favor de uma divulgação mais rápida dos conhecimentos obtidos com as pesquisas. Com este livro, meu objetivo é facilitar o acesso ao conhecimento e, ao mesmo tempo, divulgar o que os cientistas escrevem em seus trabalhos de pesquisa ou discutem atrás das portas nos congressos – enquanto muitas pessoas buscam respostas. Entendo que muitos pacientes com doenças desagradáveis se decepcionem com a medicina. Não posso vender nenhum remédio milagroso, assim como um intestino saudável não pode curar qualquer doença. No entanto, posso explicar de maneira agradável como o intestino funciona, as novidades que a pesquisa oferece e como podemos melhorar nosso cotidiano com esse conhecimento. Minha graduação em medicina e meu trabalho de doutorado no Instituto de Microbiologia Médica me ajudaram a avaliar e a selecionar resultados. Minha experiência pessoal me ajudou a trazer o conhecimento para perto das pessoas. Minha irmã me ajudou a não perder o foco, pois, quando ouvia minha leitura da obra, olhava para mim e dizia sorrindo: “Essa parte você precisa refazer.”

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1 POR DENTRO DO INTESTINO

O mundo parece muito mais divertido quando vemos não apenas o que pode ser visto, mas também todo o resto. Nesse sentido, uma árvore não é uma colher. Em uma simplificação grosseira, nossos olhos percebem apenas a forma: um tronco reto com uma copa redonda. Sobre a forma, o olho nos diz: “colher”. Mas debaixo da terra existem tantas raízes quantos são os galhos na parte de cima, no ar. O cérebro deveria então dizer algo como “halter”, mas não o faz. Ele recebe dos olhos a maioria dos inputs e muito raramente de uma ilustração em um livro que mostre uma árvore perfeita. Portanto, quando passa em velocidade por uma floresta faz o seguinte comentário ao ver a paisagem: “Colher, colher, colher, colher.” Enquanto passamos “às colheradas” pela vida, perdemos coisas incríveis. Sob nossa pele está sempre acontecendo alguma coisa: fluímos, bombeamos, sugamos, comprimimos, estouramos, consertamos e reconstruímos. Toda uma equipe de órgãos sofisticados trabalha com tanta perfeição e eficiência que, por hora, um adulto precisa de quase tanta energia quanto uma lâm17


pada de 100 watts. A cada segundo, os rins filtram nosso sangue, limpando-o meticulosamente – em substância, com tanta precisão quanto um filtro de café –, e, na maioria das vezes, duram a vida toda. Nossos pulmões foram projetados de maneira tão inteligente que, na verdade, só consumimos energia quando inspiramos. A expiração acontece por si mesma. Se fôssemos transparentes, poderíamos ver como os rins são belos: no tamanho, parecem esses carrinhos de fricção, flexíveis e pulmonares. Enquanto às vezes uma pessoa está sentada, pensando: “Ninguém gosta de mim”, seu coração está justamente fazendo o enésimo turno de 24 horas e teria toda razão de sentir-se negligenciado com esse tipo de pensamento. Se víssemos mais do que é visível, também poderíamos assistir a aglomerados de células no abdômen transformando-se em um ser humano. Entenderíamos que nos desenvolvemos, de maneira rudimentar, a partir de três “mangueiras”. A primeira nos percorre e dá um nó no meio. É nosso sistema de vasos sanguíneos, a partir do qual nosso coração surge como nó central dos vasos. A segunda mangueira se forma quase paralelamente em nossas costas, constituindo uma bolha que migra para a extremidade superior do corpo, onde permanece. É nosso sistema nervoso na medula espinhal, a partir da qual se desenvolve o cérebro e crescem os nervos por todo o corpo. A terceira mangueira nos percorre de cima a baixo. É o tubo intestinal. O tudo intestinal ordena nosso mundo interno. Forma brotos que se espalham, arqueando-se para a direita e para a esquerda. Esses brotos se transformam em nossos pulmões. Um pouquinho mais para baixo, e o tubo intestinal forma uma saliência, compondo nosso fígado. Também molda a vesícula biliar e o pâncreas. Mas a mangueira começa a ficar cada vez mais cheia de truques. Participa da construção elaborada da boca, forma o esôfago, capaz de dançar break, e um pequeno saco gástrico, para 18


armazenar a comida por algumas horas. Por fim, o tubo intestinal cria sua obra-prima, que acabou por dar-lhe nome: o intestino. As duas “obras-primas” das outras mangueiras – coração e cérebro – gozam de muito prestígio. O coração é considerado fundamental para a vida, pois bombeia o sangue pelo corpo; o cérebro é admirado, pois processa incríveis estruturas de pensamento a cada segundo. Enquanto isso, o intestino, assim crê a maioria, quando muito vai parar na privada. Ou talvez esteja preso de qualquer jeito à barriga, soltando uns peidos vez por outra. Na verdade, não se sabe quais são suas capacidades especiais. Podemos dizer que o subestimamos um pouco – para falar a verdade, não apenas o subestimamos, mas também costumamos até nos envergonhar de nosso tubo intestinal. Que órgão mais constrangedor! Nesse sentido, este livro propõe algumas mudanças. Vamos tentar fazer aquilo que os livros nos permitem realizar de modo tão extraordinário: competir de maneira autêntica com o mundo visível. Árvores não são colheres! E o intestino é muito interessante!

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