Lá vem Lola!

Page 1



Isabel Abedi

Lá vem Lola! Tradução de Carla Bessa



Índice 1. Quem eu sou e qual era o meu maior desejo

7

2. Quatro meninas e um lugar livre . . . . . . . . . . 16 3. O problema com a letra P . . . . . . . . . . . . . . . . 20 4. A cor errada e bolas de chiclete . . . . . . . . . . . 26 5. Tia Lisbeth e o palco . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 6. A galinha, o ovo, o galo e as cabras . . . . . . . . 36 7. Hamburgo faz faxina e eu desmaio . . . . . . . . 42 8. Eu grito “não” e Annalisa diz “sim” . . . . . . . . 46 9. Annalisa vem e o papai não está . . . . . . . . . . 52 10. Rezamos e meu coração ficou leve . . . . . . . . 62 11. Sinto todo o tipo de coisas e tomo uma decisão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66 12. 440 balões de gás . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 71 13. Annalisa recebe uma carta e o nosso restaurante, uma garçonete . . . . . . . . . . . . . . 78 14. Turno no estábulo e uma mensagem engarrafada . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 84 15. A primeira carta . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 87 16. Penso na morte e tento me despedir no sonho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 90


17. Recebo visitas e faço um show . . . . . . . . . . . . 95 18. Salvamos um gato doente . . . . . . . . . . . . . . . . 103 19. Uma visita à rua Rambach . . . . . . . . . . . . . . . 109 20. O restaurante ganha um nome e eu e Flô distribuímos filipetas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 114 21. Planejamos uma apresentação . . . . . . . . . . . . 121 22. Eu procuro a Flô e encontro algo inacreditável . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125 23. Um trapo, um farrapo e muitas lágrimas . . . 130 24. Mamãe conhece uma história . . . . . . . . . . . . 134 25. Eu e Penélope escrevemos uma canção . . . . 138 26. Eu entrego um balão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 142 27. “Ulhu lhu” . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 145 28. Meu balão vermelho-brilhante . . . . . . . . . . . 150


1. QUeM eU SOU e QUAL eRA O MeU MAiOR deSeJO

Minha amiga diz que antes de contar para vocês toda a história eu devia primeiro me apresentar . E acho que ela tem razão . Afinal, esta história trata, basicamente e acima de tudo, de mim . Bem, é claro que é também a história da minha amiga, mas ela ainda não pode ser apresentada . Senão vocês já ficariam sabendo como tudo acaba . A única coisa que posso revelar é que agora minha amiga está sentada ao meu lado e vai me ajudar a contar esta história . Mas escrever, sou eu que escrevo, diz ela – e agora também está dizendo que é hora de começar . Pois bem: eu me chamo Jacky Jones (é pronunciado assim: Djequi Djones) e tenho 15 anos . Apesar de ainda ir à escola, sou cantora profissional . Meus shows de música pop atraem multidões e uma vez até cantei na televisão . Desde esse dia, eu sou famosa . Agora dou no mínimo uns trinta autógrafos por dia . Principalmente em festas de aniversário e na esco7


la . E, porque sou sua aluna, nossa escola também ficou famosa . Na última reunião de pais sugeriram mudar o nome da escola para Escola Jacky Jones . E o diretor colou até um pôster com uma foto minha na parede . Nele, estou com uma jaqueta de couro preta com tachas de prata e com um microfone em cada mão . Como vocês podem imaginar, como cantora famosa eu tenho um número razoável de fãs . E ganho também um bom dinheiro com a minha cantoria . Mais ou menos uns dois ou cinco milhões por canção . Uma parte do dinheiro eu sempre doo para crianças pobres do Brasil . Mas a maior parte eu gasto . Com patins Rollerblade, mountain bikes e, claro, com chiclete Hubba Bubba . É que sou completamente louca por esse chiclete . Outro dia até comprei uma chicleteira automática . A máquina estava presa na parede de um prédio, e o prédio era tão lindo que comprei ele logo junto . Tem quatro andares e quando mostrei aos meus pais eles choraram de alegria . Então, arrumamos tudo, mas eles me deixaram fazer a partilha dos andares porque, afinal, fui eu que comprei o prédio . O primeiro andar é da mamãe . Tem um quarto para os seus pacientes e um ateliê de pintura para ela . O segundo andar eu dei ao meu pai . Tem um espaço de música e uma sala de dança, pois o meu pai também gosta de música . Ele só não é famoso; em compensação, eu sou . 8


Vovó, vovô e a tia Lisbeth moram no terceiro andar e eu moro no quarto . Tenho cinco cômodos: uma sala de escalada, um laboratório, um trem fantasma, uma piscina e uma discoteca infantil . O nosso restaurante fica na cobertura . Às vezes, convido meus fãs para comer lá antes de irmos dançar na discoteca . É para eu continuar contando? Ou será que não é melhor dizer logo que tudo isso só acontece comigo à noite, é óbvio, quando estou na cama e não consigo dormir? O que, aliás, acontece com muita frequência . Toda noite, para ser sincera . Quando mamãe me diz para eu apagar a luz, ainda estou pilhada . Ela não liga a mínima para isso, e tenho a sensação de que não sou só eu que fico rolando na cama sem conseguir dormir . E olha que já tentei realmente de tudo para dormir, juro! Até cheguei a contar carneirinhos, mas foi realmente uma bobagem . Os meus carneirinhos, em vez de pular a cerca, paravam na frente dela e berravam . Não dava para contá-los, pois eles ficavam todos amontoados . Fiquei tão alvoroçada que me deu uma coceira danada no couro cabeludo . E, quando berrei com os carneiros dizendo que era para os MALDITOS PULAREM A CERCA DE UMA VEZ POR TODAS, mamãe entrou no quarto e disse que eu devia estar com um parafuso solto, para fazer aquele estardalhaço no meio da noite . Depois que ela saiu, os carneirinhos berraram todos em coro e era como se estivessem rindo 9


de mim . Demorou uma eternidade até eu espantar todo o rebanho da minha imaginação, e, depois disso, fiquei numa afobação maior ainda . Então, experimentei a tática do xixi, porque a vovó sempre fala que, quando a gente não sabe mais o que fazer, o melhor é ir ao banheiro, porque aí pelo menos a gente sempre faz alguma coisa . Então, eu ia ao banheiro de cinco em cinco minutos e sempre fazia alguma coisa! Mas, depois da décima terceira vez, mamãe disse que, se me pegasse no banheiro de novo, me poria uma fralda . Pois é . Aí começaram as doenças . Assim que a luz se apagava, eu me sentia mal . Mas mamãe não dava a mínima para minhas dores de cabeça . Muito menos para o zumbido no ouvido, a garganta arranhando, as dores de crescimento ou a tontura repentina . E, uma vez, quando entrei na sala por volta das 11 e meia para comunicar que tinha acabado de ter um enfarte, ela se zangou feio: “Mais uma palavra e eu arranco a sua cabeça”, esbravejou . Será que todas as mães são tão insensíveis? Ou é só a minha, mesmo ela sendo enfermeira? Eu precisava urgentemente de uma ocupação noturna, mas, de início, não me vinha nenhuma ideia boa . É que é muito difícil se ocupar deitada no escuro sem poder dar nem um pio porque senão a sua mãe vem arrancar a sua cabeça . Fiquei com tanta pena de mim que não quis mais ser eu . 10


Foi aí que comecei a imaginar quem eu seria, se eu não fosse eu . Então, de repente me veio um monte de coisas à cabeça . Eu era bombeira, pirata, detetive, órfã, e uma vez até morri . Foi depois de uma briga com os meus pais . Minha nossa, como eles choraram! Mas no dia seguinte fizemos as pazes e, desde então, sou cantora . Agora ando ocupadíssima todas as noites e os meus shows são tão animados que me deixam mais acordada ainda . O pior foi quando comprei o prédio de quatro andares . Demorou pelo menos até meia noite para a gente terminar de arrumar tudo! Mas eu só fico cansada mesmo na manhã seguinte e a mamãe se zanga porque fico com olheiras tenebrosas . – Lola – diz ela –, Lola, você ficou acordada de novo até de madrugada inventando histórias? Como vocês estão vendo, durante o dia eu não me chamo Jacky Jones . Durante o dia eu também não tenho um prédio de quatro andares . E muito menos 15 anos . Eu tenho 9, 9 e meio para ser mais exata . Mas acho que nessa idade não dá para ser uma cantora famosa de verdade . É por isso que eu envelheço um pouco na minha vida noturna . E Jacky Jones soa melhor para uma cantora . Até a minha amiga concorda, apesar de ela gostar do meu nome verdadeiro . Meu nome verdadeiro é Lola Veloso . Lola foi ideia da mamãe e Veloso é porque meu pai também se chama Veloso . E meu pai se chama Veloso porque ele é 11


brasileiro . Por isso eu chamo meu pai de papai, em português, e não de “papa”, como se diz em alemão . A palavra “papai” soa muito suave para mim . Em português várias palavras têm um som mais suave . Papai fala quase sempre português comigo . Ele diz que acha importante eu saber falar a sua língua . Mas acho que ele também acha importante que ele próprio não a esqueça . É que papai já vive há muito, muito tempo na Alemanha . Foi aqui que ele e a mamãe se conheceram . Num banheiro de trem, sério! Mas isso é outra história e não vem ao caso agora . Minha história começou numa quarta-feira depois do feriado de Páscoa . Numa quarta-feira, às 7 e meia da manhã . Eu estava à mesa, tomando café da manhã com a mamãe, e estava tão alvoroçada que meu couro cabeludo começou a coçar de novo . Dessa vez não foi por causa dos carneiros, mas porque era meu primeiro dia de aula . Não o primeiro primeiro, é claro, afinal não é com 9 anos e meio que a gente entra no primeiro ano . O ano passado eu fui para a terceira série . Mas, mesmo assim, aquele foi um primeiro dia de aula para mim – porque fui para uma escola nova . É que nós nos mudamos de um lugarejo relativamente pequeno para uma cidade relativamente grande . Agora vou contar rapidinho sobre a mudança, e aí espero ter me apresentado direito para que possa deslanchar a história . 12


Então: a cidade para a qual nós nos mudamos se chama Hamburgo e fica às margens do Elba . O Elba é um rio . Claro que não nos mudamos para Hamburgo por causa do rio Elba, mas por causa da vovó, do vovô e da tia Lisbeth . E por causa do restaurante, claro . E saímos da cidadezinha por causa dos problemas de pele do papai . Mas não fiquem pensando que o papai tem comichão ou outras doenças estranhas ou coisa parecida . Não, na verdade é a mamãe que tem essas coisas porque a pele dela é muito clara . Quando a mamãe come morango, ela fica cheia de manchas, e quando faz sol ela tem de passar protetor na hora, senão fica vermelha feito um camarão . A pele do papai é escura feito café e ele pode comer morango e ficar no sol o quanto quiser . O problema de pele do papai era com as pessoas do lugar onde vivíamos . Lá quase ninguém tinha pele morena ou negra . Até eu tenho pele clara e cabelos claros . E também tenho olhos verde-claros . Papai disse que isso acontece porque os genes da mamãe foram dominantes . Significa que eu herdei mais as características da mamãe do que as do papai . Mas não entendi por que as pessoas do nosso lugarejo tinham problema com a pele do papai, e a mamãe disse que, no fundo, nenhuma pessoa normal pode entender isso . 13


Portanto, parece que havia muita gente anormal na nossa cidadezinha . Afinal, as pessoas tinham problema com a pele do papai, e isso estava mais claro do que água . A mulher do supermercado sempre fazia cara de quem chupou limão azedo quando chegava a vez do papai . Na minha escola, as crianças sempre ficavam cochichando quando o papai ia me buscar . E numa festa da escola uma garota do quarto ano me perguntou se meu pai não tomava banho . É óbvio que eu tive de dar uma bofetada nela . Mas os cochichos não pararam . Então, quando, um belo dia, no muro da nossa casa apareceu escrito “Lugar de macaco é na floresta”, o papai deu um basta . Nós nos mudamos dois meses depois . Não para a floresta, claro, mas, como eu disse, para Hamburgo . Aqui muita gente tem a pele negra e até agora não encontrei ninguém que tivesse problema com isso . O papai anda muito mais bem-humorado do que antes e eu acho isso muito, muito bom . O que também acho bom é o nosso apartamento novo . É verdade que tenho menos espaço só para mim do que no prédio da chicleteira automática da minha imaginação, mas em compensação a vovó, o vovô e a tia Lisbeth moram no apartamento do andar de cima do nosso . Isso vale ouro numa cidade grande, segundo mamãe . O hospital onde ela trabalha fica a vinte minutos de carro e o restaurante do papai e do vovô, a cinco estações de metrô . 14


Mas naquela quarta-feira em que a história começou, o restaurante ainda não tinha sido inaugurado . Primeiro precisava ser reformado . E eu ainda teria de passar pelo meu primeiro dia de aula . – Tenho certeza de que você vai encontrar novas amigas em breve! – disse mamãe ao me levar à escola naquele dia . E eu queria encontrar amigas o mais rápido possível! Principalmente uma melhor amiga . Para ser franca, uma melhor amiga era o que eu mais desejava no mundo . Muito mais do que ser Jacky Jones, cantora ou dona de um prédio de quatro andares com chicleteira automática . Pois de que serve tudo isso quando não se têm amigos? (Minha amiga diz que não serve para nada .) Porém, naquela manhã, quando apertei a maçaneta da porta da sala de aula faltando um minuto para as 8 horas, eu ainda não tinha nenhuma amiga . Só tinha uma sensação esquisita na barriga . E a sensação esquisita me sussurrava no ouvido: Lola, Lola, essa coisa de melhor amiga não vai ser nada fácil .

15



Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.