Lua de larvas

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“DeslumBrante, arrePIante, De tIrar o fôlego. um lIvro PerfeIto.” meg rosoff



LUA DE LARVAS



LUA DE LARVAS Sally Gardner

Tradução de WALDÉA BARCELLOS

SÃO PAULO 2014



Para vocês, sonhadores, que foram deixados de lado na escola e jamais ganharam prêmios. Para vocês, a quem o amanhã pertencerá.



Um Fico me perguntando e se. E se a bola não tivesse voado por cima do muro. E se Hector nunca tivesse ido procurar a bola. E se ele não tivesse guardado o segredo sinistro só para si. E se... Nesse caso, acho que eu estaria contando para mim mesmo uma outra história. É que os “e se” são infinitos como as estrelas.

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Dois A senhorita Connolly, nossa antiga professora, sempre dizia para começarmos a história do início. Façam dela uma vidraça limpa para podermos enxergar através dela. Mas eu acho que não era realmente isso o que ela queria dizer. Ninguém, nem mesmo a senhorita Connolly, tem coragem de escrever o que vemos através daquele vidro lambuzado. Melhor não olhar lá para fora. Se for preciso, então o melhor é ficar calado. Eu nunca seria maluco a ponto de escrever isso, não em papel. Mesmo que eu pudesse, não conseguiria. Veja só, não sei nem soletrar meu nome. Standish Treadwell. Não sabe ler, não sabe escrever. Standish Treadwell não é inteligente. 3


A senhorita Connolly foi a única professora que chegou a dizer que o que faz Standish ser diferente é que ele é original. Hector sorriu quando eu lhe contei isso. Disse que ele mesmo tinha sacado essa de cara. – Tem os que pensam nos trilhos, e depois tem você, Standish, uma brisa no parque da imaginação. Repeti isso para mim mesmo. “E depois tem Standish, com uma imaginação que sopra como uma brisa pelo parque, nem mesmo vê os bancos, só percebe que não há cocô de cachorro onde deveria haver.”

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Três Eu não estava prestando atenção na aula quando o bilhete chegou do gabinete do diretor. Porque eu e Hector estávamos na cidade do outro lado da água, em outro país, onde os prédios sobem sem parar até prender as nuvens no céu. Onde o sol brilha colorido. A vida no final de um arco-íris. Não importa o que eles nos digam, eu vi isso na TV. Eles cantam nas ruas – eles até cantam na chuva, enquanto dançam em volta de um poste de luz. Isto aqui é a idade das trevas. Nós não cantamos. Mas esse era o meu melhor devaneio desde que Hector e sua família haviam desaparecido. A maior parte do tempo, eu tentava não pensar em Hector. Em vez disso, eu preferia me concentrar em me imaginar no nosso planeta, aquele que Hector e eu tínhamos inventado. Júniper. Era 5


melhor do que ficar morrendo de preocupação com o que teria acontecido com ele. Só que esse foi um dos meus melhores devaneios fazia muito tempo. Era como se Hector estivesse ali perto de novo. Estávamos passeando de carro num daqueles enormes Cadillacs da cor de sorvete. Eu quase sentia o cheiro do couro. Azul-claro, azul-celeste, assentos de couro azul. Hector no banco traseiro. Eu, com o braço apoiado na janela aberta, a mão na direção, indo para casa para tomarmos Croca-Colas numa cozinha reluzente, com uma toalha de mesa quadriculada e um jardim que dava a impressão de que passaram um aspirador de pó na grama. Foi nessa hora que percebi vagamente que o senhor Gunnell dizia meu nome. – Standish Treadwell. Apresente-se no gabinete do diretor. Caramba! Eu devia ter previsto. A vara do senhor Gunnell fez meus olhos arderem. Bateu com tanta força no dorso da minha mão que deixou sua assinatura. Dois vergões finos e vermelhos. O senhor Gunnell não era alto, mas seus músculos pareciam feitos de tanques velhos do exército em bom funcionamento. Ele usava uma meia peruca que tinha vida própria e lutava para se manter gru6


dada no alto de sua careca brilhosa e suarenta. Suas outras características não lhe eram favoráveis. Ele usava um bigode pequeno, escuro, como se o muco de seu nariz estivesse escorrendo até a boca. E sorria apenas quando usava a vara – esse sorriso retorcia o canto de sua boca de tal modo que sua língua de sanguessuga ficava aparecendo. Pensando bem, não sei bem se a palavra “sorriso” está certa. Pode ser que sua boca simplesmente se contorcesse daquele jeito quando ele usava a mente para praticar seu esporte preferido: machucar os outros. Ele não se preocupava tanto com o lugar atingido pela vara, desde que ela atingisse a pessoa, que a fizesse saltar. Veja bem, eles cantam só lá do outro lado da água. Aqui o céu despencou há muito tempo.

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Quatro Mas o que me tirou do sério de verdade foi o seguinte: eu devia estar a um montão de quilômetros dali. Nem mesmo vi o senhor Gunnell se aproximar, apesar de haver uma pista entre mim e sua mesa. Quer dizer, eu me sentava bem no fundo da sala – o quadro-negro poderia estar em outro país. As palavras não passavam de cavalos de circo, dançando para cima e para baixo. Pelo menos, elas nunca ficavam paradas tempo suficiente para eu entender o que estavam dizendo. As únicas que eu conseguia ler eram aquelas enormes palavras vermelhas escritas por cima da imagem da Lua. Elas eram um tapa na cara, eram sim. TERRA MÃE. Por ser burro e não ser nada que se encaixasse direito em um papel pautado, eu sentava no fundo da sala fazia 9


tempo suficiente para saber que tinha me tornado praticamente invisível. Só quando os braços de tanque de exército do senhor Gunnell estavam precisando de exercício é que eu aparecia para ele. Só então é que eu ficava com raiva.

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“A publicação mais original dos últimos anos.” The Times O livro mais premiado do ano na Inglaterra. Uma narrativa inusitada e contundente sobre amizade e revolta. Quando seu melhor amigo, Hector, é levado pelas forças totalitárias do governo, Standish Treadwell percebe que cabe a ele, ao avô e a um pequeno grupo de rebelados enfrentar o totalitarismo da Terra Mãe. Impossível não se sensibilizar com o heroísmo de Standish Treadwell.

ISBN 978-85-7827-798-7


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