A maldição dos contrários

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Cristina Caldeira A MALDIÇÃO DOS CONTRÁRIOS

SÃO PAULO 2009



Para minha mãe, Aurélia, meu pai, Tito, pela infância mágica que me proporcionaram. Para minhas irmãs, Sílvia, Ana Luisa e Mônica, que compartilharam comigo a fantástica aventura dos primeiros anos das nossas vidas.



ÍNDICE

PARTE I Mensagem urgente 3 O arquivo secreto 8 Reformas no preparatório 14 Sem descanso 22 Planejamento defensivo 27 A conspiração 30 O Conselho de Exceção 36 Os convocados 44 Gabriela 48 Rose Demale 58 Teodor Brudja 64 Papéis definidos 68 O surfista e a bailarina 73 Duas arqueiras 79 Um espião na Brigada dos Eleitos 83 Gabriela e Damião assumem o comando 92 PARTE II Duzentos talheres 97 Um churrasco no centro do poder 105 Indícios 110


Quebra-cabeça 114 Peças que não se encaixam 124 A maldição dos contrários 129 A isca 143 Micaela e o duque Teodor Brudja 150 Contaminada 158 A primogênita 172 A véspera 178 PARTE III Dia 22 de dezembro 189 A festa de Natal 191 Choque e comoção 193 Através do espelho 196 A terceira derrota 201 Clara Alencar 203 Apartamento 606 209 O legado de Gina 213 Reinaldo Alencar 216 O Sítio das Amendoeiras 219 Em solo sagrado 222 De volta 227 Uma visita especial 239 O duque Brudja no divã 247 O melhor papel 250


PARTE I



MENSAGEM URGENTE

A chuva fina e o vento gelado deixavam as ruas, nas proximidades do Malevolato, inteiramente desertas. Encolhido dentro da sua capa preta, Damião espreitava o Palácio dos Ímpios havia horas. As luzes vermelhas da Sala das Grandes Conspirações, no segundo andar, permaneciam acesas. O rapaz, apreensivo, acompanhava aquela movimentação atípica no centro administrativo das Regiões Infernais. Não era difícil deduzir o que significava uma reunião dos temidos e poderosos malévolos avançando noite adentro: alguma decisão aterrorizante estava para ser tomada. Já eram três horas da manhã, quando o pesado portão de ferro se abriu e um homem de baixa estatura disparou pela noite fria, com uma capa vermelha esvoaçando nas costas e um chapéu de aba curta na cabeça. Damião recuou alguns passos para garantir que não seria visto e conseguiu dar uma boa olhada na pessoa que cruzara a rua correndo. Logo reconheceu o escudo no chapéu e percebeu a bolsa de couro com a alça cruzada no peito. Não era um homem adulto que corria pelas ruas escuras. Era um menino pertencente à Brigada dos Eleitos, organização formada por jovens de 13 a 17 anos que haviam se distinguido com graus superiores a 320 no teste de CM – Coeficiente de Maldade – obrigatório para todos os meninos da Cidade Alta no ano em que completavam o 13º- aniversário. 3


A tarja vermelha na bolsa que o garoto carregava indicava que o motivo de tamanha correria era uma entrega urgente. Os mais novos da Brigada exerciam a função de mensageiros particulares dos malévolos. Damião apressou-se. Precisava seguir o menino para saber por que a mensagem era tão urgente a ponto de ser entregue no meio da noite. Pelo caminho que o pequeno mensageiro escolheu, não foi difícil entender que ele se encaminhava para a garagem dos Correios. De acordo com o tipo de veículo que o mensageiro escolhesse para a entrega, talvez desse para deduzir que rumo ele pretendia tomar. Em poucos minutos, uma pequena moto de 125 cilindradas, com pneus off-road desproporcionalmente robustos para a máquina, deixou a garagem. Damião estremeceu ao perceber o destinatário da mensagem. Não havia dúvida de que aqueles pneus atravessariam a Floresta das Sombras, fora dos limites da Cidade Alta. A Floresta levava ao castelo de Teodor Brudja, o poderoso vampiro que se tornara ermitão. Os malévolos não se comunicavam com os vampiros havia quase cem anos, em função de sérios desentendimentos. Alguma coisa muito importante estava sendo tramada naquela madrugada fria. Era preciso agir rápido. A motocicleta parou a poucos metros da garagem para que o jovem piloto trocasse a capa de mensageiro por um grosso casaco de couro apropriado para enfrentar as baixas temperaturas da Floresta. Damião percebeu que não podia vacilar e, rapidamente, segurou a pistola de dardos paralisantes que trazia enfiada na cintura. Olhou em redor, avaliando a possibilidade de agir imediatamente. A impressão era a de que só havia a escuridão da noite e o barulho incessante da chuva. Mas ele conhecia os olhos invisíveis da Patrulha da Madrugada, apesar de já não possuir os sentidos que o fariam reconhecê-la em qualquer beco. Mesmo assim, ainda era reconfortante sentir que havia muito tempo deixara de fazer parte do horripilante Mundo das Trevas. Retirou a mão da pistola, consciente de que não poderia agir dentro 4


da Cidade Alta. Restava-lhe recorrer à única arma que não deixara para trás na ocasião da sua fuga e que, certamente, carregaria para sempre: a memória. Damião lembrava-se perfeitamente de todos os caminhos possíveis nas proximidades da região administrativa, onde se especializara no curso de Indução aos Sete Pecados Capitais e se tornara um proeminente agente da CIMA – a Central de Inteligência Maligna –, na sua renegada época de anjo caído. Agora, redimido e trabalhando para o seu retorno ao mundo da luz, sabia que tinha a cabeça a prêmio e não subestimava a crueldade infinita do inimigo. Ele conhecia todos os recursos e os revia em pesadelos quase todas as noites. Só mesmo a memória que guardara de seus dias negros poderia ajudá-lo a interceptar o mensageiro e conseguir a valiosa informação que viera buscar. Estava disposto a trilhar novamente todas aquelas passagens imundas na tentativa de descobrir o que os malévolos estavam tramando. O ronco do motor acelerando apressou a decisão do rapaz. Sempre se esquivando de sombra em sombra, as costas grudadas em muros e fachadas diversas, olhos vigilantes, ouvidos atentos, Damião foi deixando a cidade e embrenhando-se em áreas quase despovoadas, beirando a região dos pântanos. Daquele ponto em diante passou a correr em direção ao atalho que lhe possibilitaria surpreender o mensageiro na entrada da Floresta das Sombras. A caminhada era árdua, entre pedras e uma água malcheirosa que corria em dezenas de filetes negros. Árvores secas e retorcidas abrigavam pássaros agourentos com olhos famintos. Cada farfalhar de asas soava como uma ameaça. Damião afugentou-os com a luz de uma lanterna especialmente fabricada para desnorteá-los, que se mostrou extremamente eficaz: os pássaros acabavam colidindo uns com os outros e perdendo inteiramente o rumo. “Obrigado, professor Omã”, agradeceu em pensamento, lembrando-se do fantástico cientista e inventor. Em outros tempos, uma máquina de alta tecnologia desenvolvida pelo professor fora decisiva para avaliar seu arrependimento 5


incondicional, prova indispensável para o duro processo de retorno ao Mundo Pré-Celestial – o Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical –, passagem obrigatória para conseguir reaver sua posição no Mundo dos Anjos. Atualmente, era um experiente agente do Bem que se redimia do passado em arriscadas missões de espionagem. Uns vinte minutos depois, chegou, arfando, exausto da corrida pelo atalho acidentado. O chão estava seco, a chuva não chegara até a Floresta. Caminhou um pouco até ouvir o ronco da motocicleta se aproximando. Procurou uma posição favorável e destravou a pistola. No exato momento em que o mensageiro passava, o dardo paralisante atingiu o lado direito do seu pescoço, provocando sua queda. A motocicleta, sem piloto, desacelerou ziguezagueando até trombar com uma árvore. Damião correu até o menino, que conservava as pernas encolhidas e os braços parcialmente esticados, como se ainda estivesse sobre a moto. A bolsa a tiracolo estava caída de lado, sobre as folhas ressecadas. O rapaz desafivelou a bolsa e retirou dois envelopes pretos idênticos. Os destinatários estavam subscritos pelo mesmo bico de pena e a caligrafia era firme e sem floreios. Damião reconheceu o traçado grosso da pena das harpias e, pelo tom vivo do vermelho das letras, deduziu que o sangue de algum animal fora colhido recentemente para abastecer os tinteiros do Malevolato. Virou um dos envelopes e percebeu o lacre com o brasão dos malévolos – uma corda escarlate com três voltas distribuídas como se formassem um trevo, que nada mais era do que uma representação plástica de três números 6 entrelaçados. Lacre idêntico fechava o outro envelope. Com um canivete e muita habilidade, retirou as duas mensagens sem danificar os lacres. Abriu-as sobre as folhas secas e leu o que estava escrito. Um forte arrepio percorreu todo seu corpo. Foi preciso muito controle para segurar uma minúscula câmera que retirou do bolso, fotografar os textos e, depois, os envelopes com seus destinatários. Recolocou as cartas nos envelopes e lacrou-os novamente com perfeição. 6


Em poucos minutos, o mensageiro estava em cima da moto, que se equilibrava sobre grosso tronco. A bolsa a tiracolo com sua fivela fechada guardava as duas mensagens intactas. Damião certificou-se de que tudo estava em ordem e retirou o dardo. Imediatamente o pequeno orifício vermelho no pescoço do menino se fechou. Em três minutos ele recobraria a consciência e os movimentos. Certamente levaria um grande susto, mas nunca relataria o estranho acontecimento aos malévolos por conhecer seus horrendos castigos. Mesmo atordoado, sem entender o que havia acontecido, acabaria seguindo o seu caminho. Agora, Damião refaria o trajeto até alcançar o litoral. Escondido, aguardaria a hora da maré baixa para não ser surpreendido pela fúria do Oceano Invisível, que com suas ondas gigantescas varreriam a costa. O rapaz ainda se lembrava do rumor crescente das águas que ninguém conseguia ver, mas que provocava pânico em quem ouvia a sua estrondosa aproximação. Esperava conseguir atravessar pela base das dunas negras e, entre tantas outras, reconhecer a única rocha por onde era possível escapar. Sabia quanto era importante que as informações em seu poder chegassem às pessoas certas. Elas precisavam saber.

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O ARQUIVO SECRETO

A senhorita D’Antolhos enfrentava o pior momento de toda sua vida. Havia mais de um mês se arrastava pelos longos corredores do Superior Instituto Preparatório carregando o arrependimento pelo único erro que cometera no decorrer da sua impecável carreira de supervisora do Berçário. Lá, instalada em sua cadeira, os cotovelos apoiados na grande mesa em frente, passava em revista, com os olhos cansados, as fileiras compridas de berços azuis intercaladas com outras igualmente extensas de berços cor-de-rosa. O Berçário era isolado por um grosso vidro de cristal que dava a impressão de uma imensa caixa transparente. Dos quatro lados do vidro era possível acompanhar o movimento no seu interior. Mas somente a senhorita D’Antolhos possuía uma visão total do que se passava não apenas dentro do Berçário, mas também por trás de toda a extensão do vidro. Para quem observasse o local de qualquer ponto de fora do escritório, o vidro se transformaria em uma linda e colorida vegetação, uma ilusão de óptica criada pelo titular da cadeira de tecnologia, o incrível inventor, professor Omã. Mais desanimada do que nunca, passava horas com os olhos vagando de um berço para o outro, buscando uma saída para minimizar as consequências inevitáveis de anos de ocultação de informações importantíssimas. Era verdade que agira única e exclusivamente por lealdade ao vetérrimo conselheiro Noel. No entanto, já se imaginava exonerada de 8


seu cargo, substituída por uma máquina qualquer e, pior, imortalizada como a grande vilã dos acontecimentos que, em breve, mobilizariam todo o Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical. A morte do vetérrimo a privara não só de sua inestimável amizade, mas também da cumplicidade que lhe permitira viver confiante e impune. Sua reputação seria arrasada, toda a sua vida exemplar ficaria marcada por um deslize que só servira para lhe atormentar a consciência. Sentia-se injustiçada, seguira apenas as instruções do vetérrimo Noel. Afinal, ele não era a autoridade máxima do Superior Instituto Preparatório? Assoou o nariz vermelho com seu minúsculo lencinho de renda e ergueu os ombros tentando recuperar um pouco da postura dos velhos tempos. Logo depois, desabou sobre a mesa, rendendo-se diante da tragédia anunciada. A punição estava prestes a bater na sua porta e, quando seus arquivos fossem examinados, ela arcaria sozinha com a responsabilidade de todos aqueles gráficos mantidos em segredo. Na parede, bem atrás dela, uma foto resistia aos novos fatos: uma altiva senhorita D’Antolhos posava com seu sorriso confiante. Mas a realidade ali, em carne e osso, era só desespero. A aparência impecável sofrera um abalo gritante: o coque preso no alto da cabeça desabara para o lado direito e já se desfazia pelo ombro. A camisa branca com gola e punhos de renda, sempre alvíssima e engomada, era agora uma ruína de rendas desfeitas e tecido amarfanhado. As meias pretas estavam furadas em diversos lugares e os sapatos de verniz, embora ainda brilhantes, mostravam o desligamento total da dona que calçara um pé marrom e outro preto. A coitada já nem se olhava no espelho e até renunciara ao uso de seu camafeu de estimação, presente do vetérrimo Noel, nos bons tempos em que ela se orgulhava de ser a burocrata número 1 da milenar instituição. Agora, sentada na sala que tanto prezava, olhava, com melancolia, os objetos que haviam norteado toda a sua vida. O relógio de pêndulo, uma versão de mesa, parecia reger 9


toda atividade em volta com seu vaivém regular. O conjunto formado pelo tinteiro, mata-borrão e caneta de pena ultrafina de um dos cisnes brancos que viviam no lago do Bosque das Hamadríades já quase não era retirado da bandeja de prata reluzente. A senhorita acariciou a linda pena branca, que lhe permitia florear a caligrafia de que tanto se orgulhava, sem engrossar seus traços precisos. Por último, encarou a pilha de pergaminhos em branco. Um acesso de espirros incontrolável denunciou o estado de abandono geral: os finos pergaminhos, com suas delicadas bordas de ouro, começavam a acumular poeira. A senhorita vivia em compasso de espera, certa de que o novo vetérrimo, recém-empossado, estava prestes a convocá-la para um balanço da real situação em seus domínios. Cada dia ficava mais longo do que o outro, mas ela cumpria seu interminável expediente com o rigor habitual. Não pretendia abandonar o posto sem uma dispensa oficial: ordem e pontualidade, essas eram as palavras que pautavam sua vida. Eram cinco horas e trinta minutos quando a luz vermelha do h-mail começou a piscar. A senhorita D’Antolhos percorreu com os olhos o visor do pequeno aparelho em busca do nome do emissor da mensagem: conselheiro Lucas de Belmonte. O suor começou a escorrer-lhe pelo rosto antes mesmo de ela apertar o botão receptor e a imagem holográfica de apenas vinte centímetros de Lucas aterrissar no meio da sua mesa com uma convocação curta e objetiva. Ele simplesmente a informava de que estaria em sua sala às dezenove horas e gostaria de analisar as fichas dos arquivos referentes aos últimos meses. Pronto, pensou ela, estava feito: dali a uma hora e meia ela estaria frita. A senhorita caminhou até a entrada do Berçário e, endireitando o rosto e os ombros, resolveu fazer sua última revista nas inúmeras fileiras de berços. Começou a andar devagar, reparando em cada detalhe, aprovando a assepsia do local realizada por imensos filtros sugadores de sujeira que, sem emitir nenhum som, funcionavam sem parar, em10


butidos em pontos estratégicos do grande salão de vidro. Tudo estava na mais perfeita ordem, exatamente como sempre estivera desde que assumira a administração daquela ala do Preparatório. Ergueu os olhos para, mais uma vez, ler os dizeres que, em letras de ouro, se agrupavam suspensos no ar, um recurso mágico para lembrar a natureza especial dos bebês ali reunidos. Era uma citação textual do capítulo de abertura do Livro dos Princípios, leitura obrigatória que se estendia pelas oito séries do Preparatório. Leu e releu aquelas palavras que traziam aos pequenos alunos da 1ª- série a compreensão de sua origem fantástica. Apenas os seres humanos gerados com muito amor e aguardados com carinho e desprendimento são capazes de, no exato momento da sua primeira respiração, liberar partículas mágicas, invisíveis a olho nu pelos terráqueos, mas imediatamente detectadas pelos anjos-coletores. É função desses anjos o pronto recolhimento e transporte desses resíduos em suas mantas especiais. Ao chegar ao Superior Instituto Preparatório, essas partículas permanecerão depositadas em uma pequena incubadora por quarenta dias consecutivos, alimentando-se apenas de luz natural. Transcorrido esse período, um recém-nascido se formará e terá a aparência de qualquer bebê humano. No entanto, em nada mais se assemelhará aos humanos, pois não é filho de um homem e uma mulher, apenas um reflexo do amor incondicional de uma mãe, um sentimento reconhecido como tão especial e único que é capaz de gerar a essência de um futuro ser de luz. A senhorita D’Antolhos lembrava-se do intenso movimento dos anjos-coletores entrando e saindo com suas mantas e ainda podia sentir os dedos enrijecidos de tantos registros feitos em poucas horas. Depois, quando o movimento diminuía, sentava-se para copiar os dados das fichas nas certidões de pergaminho, momento em que caprichava nas letras bem desenhadas. Agora, amargurava-se com a visão dos coletores, alguns já meio barrigudos, cochilando nas macias poltronas reclináveis de pena de ganso. Ela já os 11


pilhara na sala de espera, outrora impecavelmente limpa, cheia de caixas com restos de roscas de leite de cabra, taças de musse de romã e garrafas de absinto emborcadas na lixeira. Arrepiou-se com a lembrança das garrafas. Sentira-se ultrajada ao verificar o rótulo com o emblema do Preparatório e reconhecer a indicação das melhores safras identificadas com o selo da maçã dourada, exclusivas da adega dos conselheiros. Só o vetérrimo Noel possuía a chave da adega, mesmo assim ela preferiu afastar a desconfiança de que ele poderia ter presenteado os coletores para compensar o descontentamento pela ociosidade reinante. Além disso, estava certa, um grupo de anjos-coletores disputava, no Bosque dos Carvalhos, um campeonato clandestino do jogo dos onze aros – o esporte mais popular do Preparatório. Não havia nada que ela pudesse fazer. A angústia diante da perspectiva do seu julgamento não lhe impedia de agir como a funcionária dedicada que sempre fora. Repensara milhões de vezes os motivos por trás dos berços vazios e dos anjos-coletores ociosos. É bem verdade que evitara encarar a explicação mais óbvia, sempre acreditando que uma solução mágica reverteria o quadro. Agora, graças à dificuldade em aceitar o que se passava bem diante de seus olhos, a realidade era aterrorizante e parecia irreversível. Não adiantava culpar os coletores pela ociosidade reinante. Afinal, eles não tinham mesmo o que fazer, diante da absurda escassez da poeira da concepção. Como detectar e colher um material em extinção? Os seres humanos não faziam ideia de que o amor de uma mãe pelo seu filho seria capaz de produzir a essência, a energia vital, dos seres angelicais. Enquanto as famílias humanas comemoravam a chegada de mais um ente querido, os coletores abrigavam em suas mantas a poeira para a concepção de mais um anjo. Era essa premissa que colocava em perigo o futuro do milenar Superior Instituto Preparatório para Ascensão Angelical. Se faltava a matéria-prima para viabilizar a existência dos bebês, toda aquela complexa estrutura escolar organizada 12


para a formação dessas crianças se transformaria em um inútil e grande espaço vazio, habitado apenas por sábios professores. Tudo culpa dela, lamentava-se a senhorita. E, de lágrima em lágrima, a infeliz se corroía de remorso cada vez que era assaltada pela grande incógnita que evitara enfrentar durante os últimos vinte anos. Ela sabia muito bem o que significava para o Superior Instituto Preparatório e para os seres do Bem em geral a curva descendente de recém-nascidos dentro do seu Berçário. A senhorita D’Antolhos já não podia sonegar a informação de que dispunha havia muitos anos e que levava a uma óbvia interpretação: havia uma alarmante carência de amor entre os humanos. Dentro de algumas horas seria confrontada e nada poderia alegar a seu favor. Aceitaria, de bom grado, qualquer punição e não tentaria fingir que não percebera a implicação maior de toda aquela situação catastrófica. Sim, ela estava ciente de que o Mal se alastrara pela Terra como nunca.

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