Meu mundo cabeça baixo

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Clare Furniss

Tradução Nicole Anne Collet

SÃO PAULO 2016



Para Marianne, Joe e Ewan, com amor



“Eu pretendia escrever sobre a morte, mas, como sempre, a vida irrompeu.” Diário de Virginia Woolf, 17 de fevereiro de 1922





A luz do semáforo brilha vermelha através do para-brisa molhado, embaçada, nítida, embaçada de novo, enquanto os limpadores se movem de um lado para o outro. Abaixo dela se vê o vulto do carro funerário. Tento não olhar para ele. Minhas mãos estão inquietas como se não me pertencessem, mexendo em um fio solto na minha manga, puxando minha saia para que cubra mais as minhas pernas. Por que eu tinha de usá-la? É curta demais para um funeral. O silêncio está me fazendo entrar em pânico, mas não consigo pensar em nada para dizer. Arrisco um olhar de soslaio para o papai, seu rosto inexpressivo está imóvel como uma máscara. No que estará pensando? Na mamãe? Talvez, como eu, esteja só tentando encontrar alguma coisa para dizer. – Você deveria usar o cinto de segurança – digo por fim, num tom alto demais. 3


Ele se sobressalta e me olha surpreso, parecendo ter esquecido que eu estava ali. – O quê? Eu me sinto idiota, como se tivesse interrompido algo importante. – Seu cinto de segurança – murmuro, o rosto queimando. – Ah. Claro. – E depois: – Obrigado. Mas sei que ele não está de fato escutando. Parece escutar outra conversa, uma conversa que não consigo ouvir. Ele não afivela o cinto de segurança. Somos como duas estátuas frias e cinzentas, lado a lado no banco de trás do carro. Estamos quase chegando, já parando diante da igreja, quando ele põe a mão no meu braço e me olha nos olhos. Seu rosto está enrugado e pálido. – Você está bem, Pearl? Olho-o de volta. Isso é mesmo o melhor que ele consegue fazer? – Sim – respondo finalmente. Aí saio do carro e entro na igreja sem ele. Sempre achei que, de alguma maneira, a gente saberia se algo terrível estivesse para acontecer. Achei que daria para perceber, como quando o ar fica úmido e denso antes de uma tempestade e a gente sabe que é melhor se abrigar em algum lugar seguro até que tudo passe. Mas acontece que não é nada disso. Não tem nenhuma música assustadora tocando como nos filmes. Nenhum 4


aviso. Nem mesmo uma pega* solitária. Uma para a tristeza, a mamãe costumava dizer. Rápido, procure outra. A última vez que a vi, ela estava na cozinha com o avental firmemente atado à barriga enorme, rodeada de formas de bolo e vasilhas, pacotes de açúcar e farinha. Ela seria a perfeita rainha do lar, não fosse pelos insultos que dirigia ao velho fogão, que por sua vez cuspia fumaça em sua cara. – Mamãe? – chamei, cautelosamente. – O que você está fazendo? Ela se virou para mim, o rosto corado, os cabelos ruivos mais desgrenhados do que nunca, mesclados de farinha. – Dançando tango, Pearl – ela gritou e brandiu a espátula para mim. – Fazendo nado sincronizado. Tocando sino. O que acha que estou fazendo? – Só perguntei – eu disse. – Não precisa ficar nervosa à toa. Não foi um comentário apropriado. Mamãe pareceu a ponto de explodir. – Estou assando a droga de um bolo. Só que ela não disse droga. – Mas você não sabe cozinhar – observei, com razão. Ela me olhou de um jeito que arrancaria a tinta das paredes se elas já não tivessem descascado há cem anos. * A pega, também conhecida como pica-pica, é uma ave da família dos corvídeos, que compreende os corvos e as gralhas. Aqui, a pega protagoniza uma rima infantil intitulada One for Sorrow [Uma para a tristeza], na qual, de acordo com uma velha superstição, o número de aves encontradas determina sorte ou azar: uma para a tristeza, duas para a alegria, e assim por diante. [N. da T.]

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– Esse forno está possuído pelo demônio. – Bom, não tenho culpa disso, tenho? Foi você que insistiu em se mudar para uma casa caindo aos pedaços onde nada funciona. Nós tínhamos um forno bem decente na casa antiga. E um teto que não vazava. E aquecimento que de fato aquecia em vez de fazer só barulho... – Tudo bem, tudo bem. Já entendi – ela examinou um risco vermelho inflamado na lateral de sua mão. – Talvez seja bom você colocar a mão debaixo da torneira. – Sim, Pearl, obrigada – ela retrucou – pelos seus conhecimentos médicos. Mas, mesmo assim, ela se debruçou na pia, ainda praguejando baixinho. – Ué, não era para as mulheres grávidas serem bem calmas? – perguntei. – Resplandecendo de alegria interior e tudo o mais? – Não – ela fez uma careta enquanto mantinha a mão sob a água fria. – É para elas serem gordas e propensas a mudanças bruscas de humor. – Ah – reprimi um sorriso, em parte porque tive pena dela e em parte porque não sabia onde aquela espátula iria parar se eu não fizesse isso. Uma risada abafada, dessas que saem pelo nariz, soou no corredor. – Não sei do que você está rindo – mamãe gritou para a porta da cozinha. A cabeça do papai assomou por trás dela. 6


– Rindo? – ele disse, os olhos bem abertos e inocentes. – Eu, não. Só vim parabenizar você por controlar suas mudanças de humor com tanta maestria. Ela o fulminou com o olhar. – Se bem que, se estou lembrado – ele continuou, mantendo-se fora do alcance dela –, você era muito ligeira nas mudanças de humor antes de engravidar. Por um momento, achei que ela atiraria a panela nele. Mas não atirou. Limitou-se a ficar parada no meio da cozinha dilapidada, cheia de cascas de ovo e manchas de chocolate, rindo, rindo, até que lágrimas rolaram por seu rosto e já não sabíamos se ria ou chorava. Papai se aproximou e segurou-lhe as mãos. – Que tal sentar? – ele disse, guiando-a até a cadeira. – Vou lhe fazer uma xícara de chá. Você deveria se poupar. – Malditos hormônios – ela enxugou os olhos. – Tem certeza de que é só isso? – papai sentou-se a seu lado com ar ansioso. – Você tem certeza de que está bem? – Não precisa fazer tempestade num copo d’água – ela disse, sorrindo. – Estou bem. De verdade. É que… bom, olhe para mim. Já estou tão enorme que praticamente preciso de um código postal só para mim. Só Deus sabe como vou ficar daqui a dois meses. E meus tornozelos parecem de velha. É constrangedor. – Tudo isso vai valer a pena – disse papai. – Eu sei – ela concordou, com as mãos na barriga. – A pequena Rose. Ela vai valer a pena. Aí eles ficaram sentados sorrindo um para o outro, de um jeito que dava até enjoo. 7


– Ah, claro – eu disse, com um sorriso largo. – Todas as noites de insônia e as fraldas nojentas. Vai valer muito a pena. Peguei minha jaqueta pendurada nas costas da cadeira e me virei para ir embora. – Vai sair? – mamãe perguntou. – Sim. Vou me encontrar com a Molly. – Espere, Pearl – disse mamãe. – Venha cá. Ela abriu os braços e sorriu, e era sempre assim com a mamãe. Por mais irracional que ela tenha agido e por menor que seja a minha vontade de perdoá-la, ela consegue nos envolver e persuadir. – Me desculpe, meu amor. Eu não devia ter gritado com você. Estou com uma enxaqueca terrível, mas não devia ter descontado em você. Sou uma pobre velha. Eu sorri. – É mesmo. – Você me perdoa? Mergulhei o dedo na vasilha com a massa de bolo de chocolate e provei-a. Estava surpreendentemente boa. – Decididamente, não – debrucei-me sobre a barriga dela e lhe dei um beijo no rosto. – Coloque os seus pés de velha para cima e veja um pouco de televisão, tá? Dê ao coitado do bebê um pouco de paz e sossego para variar. Ela riu e segurou minha mão. – Fique para tomar uma xícara de chá comigo antes de sair. – Não posso mesmo. Nós vamos ao cinema, e a Molly já comprou os ingressos – apertei sua mão. – A gente se vê depois. Mas eu estava errada. 8


Faz frio na igreja. Escondo as mãos nas mangas da blusa para me aquecer, mas, no decorrer da cerimônia, começo a ter a impressão de que o frio está dentro de mim. Imagino cristais de gelo formando-se em minhas veias. Em volta de mim as pessoas choram, mas não consigo sentir nada, só frio. Está tudo errado. A mamãe teria detestado tudo isto: a música solene, a voz monótona do padre. Eu não escuto nada. Ainda estou tentando entender como cheguei aqui: como o mundo virou e eu escorreguei da minha vida confortável e previsível para aterrissar aqui, neste lugar estranho e frio. Pelo menos, já vai terminar. Todo o mundo está cantando o último hino deprimente, mas não posso participar. Limito-me a ficar de pé com os maxilares apertados, perguntando-me com crescente pânico por que não choro. Por que não consigo chorar? Será que as pessoas vão reparar e pensar que eu não ligo? Puxo o cabelo de trás das orelhas e deixo-o cair como uma cortina em volta do rosto. O caixão passa, cheio de cobre brilhante e lírios com seu cheiro adocicado e forte. Por que lírios? Têm uma aparência tão rígida e formal. Mamãe adorava as flores que cresciam onde lhes dava vontade. Madressilvas cor-de-rosa e amarelas enroscadas nas sebes. A forte luminosidade das papoulas à beira da estrada. E, de repente, sei que ela está aqui. Eu sei que, se olhar ao redor, vou vê-la sozinha sentada no meio do banco mais afastado, e ela vai acenar e abrir um sorriso largo para mim e soprar um beijo, como se eu tivesse cinco anos e me apresentasse na peça de Natal da escola. Meu 9


coração bate forte até eu ficar a ponto de desmaiar. Minhas mãos estão tremendo. Eu me viro para trás. Vejo fileiras e fileiras de pessoas sérias de roupa escura. Fico na ponta dos pés para enxergar além delas. Molly está lá com sua mãe, de olhos vermelhos. Ela me vê e sorri tristemente. Eu não sorrio de volta. O banco mais afastado está vazio. Lá fora, a chuva parou. Permaneço de pé, respirando o ar úmido e fresco, tentando passar despercebida enquanto um bando de gente de roupa escura rodeia o papai. Uma mulher com um chapéu que parece um corvo morto lhe dá os pêsames. Ele, no entanto, não a ouve. Posso ver sua mão acercando-se do bolso para apanhar o celular. Ele quer telefonar para o hospital para ver como o bebê está. Sei disso. Nos raros momentos em que não está com ele, liga praticamente de hora em hora. Posso ver que ele está ficando apavorado com o que pode acontecer se não telefonar. Mesmo agora, quando deveria pensar só na mamãe. Enquanto o grupo desce a colina, eu fico para trás, mantendo-me longe de todas as mulheres de chapéu e suas condolências, adiando a silenciosa jornada até o cemitério. Quando chego ao reluzente carro funerário, papai já está dentro dele à minha espera. Olho através da janela, mas não consigo enxergá-lo bem por causa do vidro escuro, vejo apenas sua silhueta emoldurada pelo meu próprio reflexo. Meu rosto está distorcido, comprido e fino. Meus olhos, próximos da vidraça, estão enormes. São a única coisa em mim que parece com a mamãe. Eu sempre 10


quis ter o cabelo igual ao dela. Você faz ideia de como fui perseguida na escola por ser ruiva?, mamãe dizia. Mas herdei os olhos dela: verdes, com cílios escuros. Por um instante, é como se ela estivesse me olhando através da janela. – Preciso voltar – digo. – Esqueci o guarda-chuva. Papai não consegue me ouvir, mas, em vez de abrir a janela, me responde alguma coisa; posso discernir seus lábios movendo-se silenciosamente do outro lado do vidro. Por um momento, nos entreolhamos impotentes. Ele poderia muito bem estar do outro lado do mundo. Sempre fomos muito próximos, papai e eu. Eu detestava quando as pessoas o chamavam de meu padrasto. Desde as lembranças da minha mais tenra idade, ele sempre foi meu pai. Nunca achei que isso poderia mudar. Sou capaz de identificar exatamente o momento em que ocorreu. Estávamos de pé diante da incubadora do bebê. Fazia duas horas que a mamãe havia morrido. – Olhe só para ela – sussurrou. Eu não sabia se estava falando consigo mesmo ou comigo, mas, apesar de não querer e de as minhas mãos tremerem e de me sentir nauseada, forcei-me a olhar para dentro da incubadora. Na minha mente, ainda conseguia ver o bebê loiro com covinhas de anúncio de fralda que eu havia imaginado quando mamãe me contou que estava grávida, o bebê para o qual Molly e eu tínhamos comprado sapatinhos, vestidos e macacõezinhos felpudos com orelhas de urso. Então eu vi ela. E, por uma fração de segundo, só consegui pensar em como nossa gata Fuligem teve filhotes quando eu tinha cinco anos. Já fazia semanas que eu andava animada. Tinha contado para todo o mundo na escola, e 11


mamãe me deu um livro especial que ensinava a cuidar deles. Toda noite, antes de me deitar, eu olhava para as fotos daqueles gatinhos peludos de olhos grandes. Aí um dia mamãe me levou para o quarto dos fundos e apontou para uma gaveta aberta na parte baixa da cômoda. E lá estavam aqueles ratinhos rosados cheios de rugas, contorcendo-se cegamente, e olhei horrorizada para mamãe porque achei que havia um terrível engano; mas ela simplesmente continuou ali sorrindo e não entendeu quando saí correndo do quarto aos prantos porque os detestava. E, enquanto olhava para o monte de tubos, a pele fina como papel, cheia de veias arroxeadas, a criatura esquelética e estranha dentro da incubadora, eu me dei conta de que não era o choque que me fazia tremer. Não era tristeza. Era raiva: grande, escura e assustadora. E me senti como se fosse cair e precisasse de algo em que me segurar, senti muito medo e virei-me para o papai… E ele estava debruçado sobre ela, o bebê-rato, a causa da morte da mamãe, absorto como se ela fosse a única coisa que existisse no mundo. E tudo o que me deu vontade de fazer foi machucá-lo. – Você gosta mais dela do que de mim, não é? – minha voz soou clara e fria. – Porque… – forcei-me a prosseguir. – Porque ela é sua e eu não. E funcionou. Foi como se eu o tivesse atingido com um soco. – Como você pode pensar uma coisa dessas? – os olhos dele se arregalaram em choque. Segurou meus braços. – Você é minha filha. Eu nunca poderia amar ninguém mais do que amo você. 12




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