MICHELANGELO ARQUITETO E ESCULTOR DA CAPELA DOS MÉDICI

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Sérgio Ferro

MICHELANGELO arquiteto e escultor da Capela dos Médici

Tradução | Andréa Stahel M. da Silva Revisão técnica | João Marcos de Almeida Lopes

SÃO PAULO 2016


Sacristia Nova de San Lorenzo, parede leste.


| Primeira parte | A ARQUITETURA DA SACRISTIA Vossa função é talhar a pedra, trabalhar a madeira, erguer as paredes, fazer vosso ofício e executar minhas ordens. Quanto a saber o que tenho na cabeça, vós não o sabereis jamais – isto seria contrário à minha dignidade.1

Introdução Segundo o testemunho de Bottari, Michelangelo não é brando com seus operários na revolta do canteiro de São Pedro. Para além do conflito, no entanto, tal réplica, embora mais literária que real, exprime a efetiva oposição do mestre aos construtores no Renascimento. James S. Ackerman indicou o fundamento técnico do estilo plástico, “volumétrico”, inaugurado por Bramante e levado adiante por Michelangelo, representando uma volta ao brick-faced concrete das grandes termas romanas2. Pesadas massas de tijolos e concreto misturadas formam os componentes estruturais das edificações que eles erigem. É essa técnica que abre caminho aos pilares esculpidos de São Pedro ou aos projetos para San Giovanni dei Fiorentini (São João dos Florentinos). 1. G. Bottari, Raccolta di lettere sulla pittura, sculttura ed architettura. Roma: N. e M. Pagliarini, 1754-1773, 7 vols. 2. J. S. Ackerman, The Architecture of Michel-Angelo. Middlesex: Penguin, 1970, p. 28.

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Nesses exemplos, a massa do material desaparece, recoberta de relevos que expõem suas modenaturas: estruturas factícias, compostas de colunas, pilastras, nichos, frontões. Entre a construção real e a construção aparente, a oposição é total: a decoração substitui o funcionamento uniforme das paredes espessas pela articulação de elementos discretos e especializados. A alvenaria de tijolos e concreto primitiva desaparece sob um revestimento liso e anônimo, enquanto a pedra local ou o mármore caracterizam as peças da camada decorativa. Em toda parte, a ilusão destacada mascara aquilo que efetivamente sustenta. A oposição entre as construções (factícia e real) remete à oposição entre as posições na produção. No topo da evolução que parte do obscuro mestre de obras e torna o arquiteto independente do resto do corpo produtivo, Michelangelo permanece o senhor absoluto, dirigindo canteiros que podem contar com até 2.500 operários e, em 1549, por exemplo, o obrigam a solicitar de Paulo III “um breve de absolvição por lá ter trabalhado e feito trabalhar aos domingos”3. Segundo Vasari, ele declara ao hostil cardeal Cervini, que se tornou o efêmero papa Marcelo II: “Eu não sou e não quero ser obrigado, por nenhum preço, a dizer, nem a vossa senhoria nem a ninguém, o que eu devo e quero fazer. Vosso papel é juntar dinheiro e fiscalizar as roubalheiras. Quanto ao plano, eu vos peço deixar a mim o cuidado.”4 De outro lado, o anonimato que apaga o material é o que convém aos operários a caminho da desqualificação e da desorganização. Tafuri destaca a intenção combativa do desenho à maneira antiga desde Brunelleschi: trata-se de abafar o savoir-faire con3. J. Delumeau, Rome au XVIe siècle. Paris: Hachette, 1975, p. 86. 4. G. Vasari, Les vies des meilleurs peintres, sculpteurs et architectes. Paris: Berger-Levrault, 1983, p. 264.

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temporâneo5. Consequentemente, os salários caem6 e as organizações operárias são alvo de uma implacável perseguição7. Na França, é a época em que a palavra trabalhar (travailler), derivada de tripaliare (“torturar com o tripalium”), aparecia substituindo ouvrer (1507). Todo o poder na produção, uma vez abalado o apoio do savoir-faire, emigra para o novo polo de decisão, o arquiteto, do qual Michelangelo é o primeiro representante. Modalidades construtivas e estruturas do corpo produtivo correspondem-se em seus conflitos. Encontramo-nos em uma situação em que a marca deve estar presente se adotarmos nossa definição: a marca é uma anormalidade em relação à norma produtiva virtual devido à interferência de outra norma produtiva imaginária.

5. M. Tafuri, L’architettura dell’Umanesimo. Bari: Laterza, 1972, pp. 15-29. 6. P. Jaccard, Histoire sociale du travail. Paris: Payot, 1960, p. 159; e B. Bennassar e J. Jacquart, Le XVIe siècle. Paris: Armand Colin, 1972, p. 56. 7. H. Pirenne, Histoire économique et sociale du Moyen-Âge. Paris: Presses Universitaires de France, 1968, pp. 172-9; G. Lefranc, Histoire du travail et des travailleurs. Paris: Flammarion, 1975, pp. 182-8; e M. Dobb, Studies in the Development of Capitalism. Londres: Routledge & Kegan Paul, 1963, pp. 232-4.

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1.1. O material Michelangelo é de uma sobriedade notável na escolha dos materiais. Para perceber isso, basta comparar a sacristia que ficou conhecida como “Sacristia Nova” com as obras de seus contemporâneos – ou opô-la à de Brunelleschi (a “Sacristia Velha”), que, a bem da verdade, já tinha um século: o ouro desaparece, e as texturas variadas, terra e ocre, são substituídas pelo jogo reduzido dos cinzas e dos brancos. Em Michelangelo, essa simplificação do material é uma constante8 e radicaliza as tendências do gosto aristocrático desde o Quattrocento9. Pelo estado atual da documentação, temos de deixar de lado o estudo do tratamento do chão e dos elementos de madeira. Sabemos que o revestimento do chão em mármore cinza e branco foi refeito, provavelmente em 188610. Nada nos garante a fidelidade dessa restauração. Os componentes de madeira das portas e janelas também foram renovados, e desconfia-se de uma alteração de desenho11. Três materiais são originais ou equivalentes aos previstos por Michelangelo para o acabamento interno da sacristia. 8. Ver, em F. de Holanda, Diálogos de Roma. Lisboa: Sá da Costa, 1955, p. 78, este texto que ilustra bem a posição de Michelangelo quanto aos materiais: “E, por sentença minha, aquela é a excelente e divina pintura que mais se parece e melhor imita qualquer obra do imortal Deus [...] e isto não com ouro, nem com prata, nem com tintas muito finas, mas somente com uma pena ou com um lápis desenhado ou com um pincel de preto e branco.” Ver também L. B. Alberti, Il trattato della pittura. Lanciano: R. Carabba, 1934, p. 75: “... tutta la somma industria et arte stà in sapere usare il bianco et il nero...” [... toda indústria e arte consiste em saber usar o branco e o preto...]. 9. A propósito da mudança de atitude dos clientes com relação ao material, que passa da admiração pela ostentação de riqueza ao interesse sobretudo pela habilidade e pela mão do mestre, ver M. Baxandall, Painting and Experience in Fifteenth Century Italy. Oxford: Clarendon Press, 1972, cap. 1. 10. P. Franceschini, artigo em Il Nuovo Observatore Fiorentino, 1886. 11. P. Dal Poggetto, I disegni murali di Michelangiolo e della sua scuola nella Sagrestia Nuova di San Lorenzo. Florença: Centro Di, 1979, p. 53. Ver também o desenho de Federico Zuccari (Louvre, Cabinet des Dessins, n. Louvre 4555 – LUGT 2207), no qual a porta desenhada do lavamani à direita do altar difere daquelas atualmente na Sacristia. Esse desenho data dos anos 1575-1579.

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1. Sacristia Velha 2. Sacristia Nova 3. Capela dos Príncipes 4. Primeiro claustro 5. Segundo claustro 6. Biblioteca Laurenciana 7. Escada de acesso à biblioteca 8. Púlpitos 9. Nave

A Basílica no contexto da cidade de Florença. 27


• O stucco branco (refeito). As paredes, quase em toda parte de pedra irregularmente aparelhada e, às vezes, de tijolos de terra, foram revestidas parcialmente e por ordem do próprio Michelangelo, e depois totalmente, de “stucco [...] che riluce, che pare uno specchio” [stucco [...] que reluz, que parece um espelho] por Vasari em 155612. A cúpula, depois da intervenção de Vasari – que acabou eliminando os estuques e os afrescos encomendados por Clemente VII a Giovanni da Udine –, recebeu o mesmo tratamento. • A pietra serena. Adotada por Michelangelo devido às dificuldades que teve para utilizar o mármore em larga escala (na tentativa malograda para acabar a fachada da Basílica de San Lorenzo), a pietra serena forneceu as peças que entretecem (“tramezzano”) as paredes brancas13. Ela introduz o cinza-escuro que contrasta intensamente com os outros materiais, todos mais claros. Ackerman atribui parcialmente as “dissimilaridades” na elaboração dos detalhes arquitetônicos às diferenças do material, dado que a pietra serena é menos plástica que o mármore14. Veremos que essa hipótese é discutível.

12. K. Frey, Il carteggio di Giorgio Vasari. Munique, 1923, p. 463, CCXLV. E a discussão detalhada sobre os problemas do revestimento em P. Dal Poggetto, op. cit., pp. 22-56. Vasari assumiu a conclusão das obras depois que Michelangelo partiu para Roma, em 1534, sem ter concluído as sepulturas de Lourenço, o Magnífico, e de Juliano de Médici. 13. K. Frey, op. cit., ibidem. 14. J. S. Ackerman, op. cit., p. 91: “The dissimilarity in style between the architectural members of the chapel and those of the tombs is partly due to differences in material. Marble is particularly suited to sculptural refinements and may be carved with most meticulous detail, while pietra serena does not lend itself to such finesse.” [A dissimilaridade de estilo entre os elementos arquiteturais da capela e os das tumbas deve-se em parte às diferenças de material. O mármore é particularmente apropriado para os requintes esculturais e pode ser esculpido com detalhes mais meticulosos, enquanto a pietra serena não se presta a tal apuro.]

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Vista externa do corpo da Sacristia Nova da BasĂ­lica de San Lorenzo.

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• O mármore. Os mármores da sacristia invadem o primeiro nível em contraste com a pietra serena pela cor e com o stucco pelo trabalho dos talhadores (squadratori) e do próprio Michelangelo: em toda parte, o mármore é trabalhado pelo desenho e pelo buril. Os outros materiais utilizados na construção da sacristia e não imediatamente dominados pelo desenho desaparecem, no interior dela, sob os três precedentes. Não há nenhum vestígio de sua presença.

1.2. As ocorrências do material O stucco branco que preenche todos os espaços não ocupados pela pietra serena ou pelo mármore aparenta-se àquilo que Marsílio Ficino chama de universalis materia: “A arte imita a natureza. A arte executa suas obras nessa ordem; isso significa que imprime em dada matéria determinadas formas, não sendo nenhuma delas própria à matéria. A argila não possui como atributo nenhuma forma de vaso, mas recebe alternadamente do ceramista formas diferentes, e, quando os vasos se quebram, resta a argila que servirá para confeccionar outros [...] Assim [...] há uma matéria universal, receptáculo indiferente a qualquer forma.”15 De 15. M. Ficino, Théologie platonicienne de l’immortalité des âmes, trad. fr. R. Marcel, 3 vols. Paris: Les Belles Lettres, 1964, vol. 1, pp. 176-7. Ver também, sobre a disponibilidade total da matéria, os poemas de Michelangelo ns. G 46, G 151 e G 152; o G 151 começa assim: “Non ha l’ottimo artista alcun concetto c’un marmo solo in sé non circonscriva col suo superchio, e solo a quello arriva la man che ubbidisce all’intelletto.” [Não, o maior artista não tem nenhuma ideia / que um bloco de mármore não contenha / em sua massa, e até ela não chega / senão a mão que obedece ao pensamento.] Tradução livre, sem preservação de rimas, a partir da tradução francesa de N. Sanchez-Mateo, C. Givry e Y. Bergeret, em Michel-Ange, Poèmes. Montereau: Les Cahiers du Confluent, 1981.

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fato, em toda parte, a “forma”, a articulação do espaço da sacristia é marcada pelos outros materiais. Assim, o stucco representa o que é não marcado e assume uma dupla negatividade: apaga o canteiro e recua diante daquilo que forma. Aqui o branco é ausência de toda determinação própria, passividade absoluta, submissão total aos escopos da modelagem. A pietra serena é associada a funções precisas: é o material de todos os componentes da estrutura decorativa da sacristia, pilastras do primeiro e do segundo níveis, arquitraves, cornijas, moldura das janelas e dos óculos, arcos, arcadas etc. Sua posição é intermediante: componente ativo da estrutura decorativa, serve ao mesmo tempo de moldura para os componentes não estruturais de mármore. Seu caráter decorativo é salientado pela ausência de relevo mais pronunciado do que de todos os elementos mencionados, com exceção de cornijas e frontões. O mármore é reservado aos túmulos, às ombreiras das oito portas e aos tabernáculos que se projetam acima delas, ao altar e ao equipamento ritual (candelabro16 e pia de água-benta), ou Esse poema é citado com frequência para justificar o neoplatonismo de Michelangelo. Ver, por exemplo, R. Scrivano (org.), Cinquecento minore. Bolonha: Ateneo, 1966, p. 507, nota. Para as Rime [rimas] de Michelangelo, seguimos a classificação de E. N. Girardi, Michelangelo Buonarroti, Rime, con varianti, apparato, nota filologica. Bari: Laterza, 1960. Entretanto, esse mesmo poema poderia permitir outra leitura, na qual o concetto estaria dentro do marmo, o que aproximaria a concepção do material em Michelangelo daquela que propunham os alexandristas de Pádua e, em particular, Patrizzi e Pomponazzi. Ver, a propósito, E. Bloch, La philosophie de la Renaissance. Paris: Payot, 1972, pp. 17-23. Mas o poema G 111 não deixa dúvida quanto à sua dominante neoplatônica: “... Disegna in me di fuora, com’io fo in pietra od in candido foglio, che nulla ha dentro, e èvvi cio ch’io voglio.” [... Desenha em mim por fora / Como eu faço em pedra ou em folha limpa / que nada tem dentro, senão aquilo que quero.] Ver, sobre essa possível dupla posição do concetto: A. Blunt, Artistic Theory in Italy 1450-1600. Oxford: Clarendon Press, 1956, cap. V. 16. Executado por Silvio Cosini provavelmente a partir de um desenho de Michelangelo; apenas o da direita do altar é original. É o mais belo e mais complexo exemplo de grotesco da Sacristia.

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Sacristia Nova, monumento funerรกrio de Lorenzo, duque de Urbino.

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seja, a tudo o que se aproxima da vocação funerária da sacristia. A identidade de matéria para as esculturas e para sua estrutura arquitetônica adjacente também aproxima o mármore da universalis materia. Mas, enquanto o stucco suprime o diverso do canteiro, aqui o diverso erige-se a partir do mesmo. Cada um dos elementos trabalhados em mármore adota uma Gestalt própria e específica, e o todo oferece uma gama de formas que vai do orgânico à abstração cristalina, passando pelo grotesco, ao mesmo tempo que deixa um resíduo de rústico.

1.3. A articulação do material O stucco oferece sua brancura anônima, em nenhum lugar rompida, como suporte indeterminado. Entra na articulação global dos materiais apenas como momento negativo, não marcado, invertendo assim o papel construtivo das paredes que ele cobre, os únicos elementos efetivamente de sustentação. Incrustados nessa pele, a pietra serena e o mármore exibem, cada um, sua rede de variantes formais. Em ambos os casos, a ordem coríntia vai de encontro a manifestações de ordem “abstrata”, “compósita”, diz Vasari, “de uma originalidade que os distingue de tudo o que os mestres antigos ou modernos jamais realizaram”17. O mármore apresenta, ainda, ornamentos em grotesco, enquanto a pietra serena nos oferece um exemplo raro de janelas construídas como se estivessem em perspectiva18. As janelas do segundo 17. G. Vasari, op. cit., p. 233. 18. Trata-se das janelas do terceiro nível, situadas nos tímpanos que fecham os pendentes que sustentam a cúpula. Ao contrário das do segundo nível, construídas com montantes laterais na vertical, elas são emolduradas por montantes levemente inclinados, como se tivessem um ponto de fuga no centro da cúpula. Só se encontram semelhantes janelas na obra de Michelangelo na Capela Sforza em Santa Maria Maggiore (Roma).

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nível e os tabernáculos em mármore (na ordem que denominamos “abstrata”) rompem a continuidade do encadeamento coríntio. As pilastras duplas que enquadram os duques, cujos capitéis são ornados de máscaras, cornos e conchas, contradizem a justificativa que o mito relativo à tumba da jovem de Corinto fornece à recomendação desta ordem para os monumentos funerários. As janelas em perspectiva desvirtuam a função reguladora das ordens devido à relatividade da percepção. Contudo, essas variantes heréticas são justificáveis do ponto de vista formal se nos referimos ao único texto conhecido de Michelangelo sobre a arquitetura19. De fato, as janelas em perspec19. Dada a importância deste texto, reproduzimo-lo na íntegra: “Colendissimo il signor Cardinale di Carpi Monsignore reverendissimo Quando una pianta à diverse parti, tutte quelle che sono a un modo di qualità e quantità, ànno a essere adorne di un medesimo modo e d’una medesima maniera; e similmente e’ loro riscontri. Ma quando la pianta muta del tutto forma, è non solamente lecito, ma necessario, mutare dal detto ancora gli adornamenti, e similmente e’ loro riscontri: e i mezzi sempre sono liberi come vogliono; siccome il naso, che è nel mezzo del viso, non è obligato nè all’uno nè all’altro ochio, ma l’una mano è bene obligata a essere come l’altra, e l’uno ochio come l’altro, per rispetto degli lati e de’ riscontri. E però è cosa certa, che le membra dell’architettura dipendono dalle membra dell’uomo. Chi non è stato o non è buon maestro di figure, e massime di notomia, non se ne può intendere. Michelagniolo Buonarroti” [Ilustríssimo senhor cardeal de Carpi Monsenhor Reverendíssimo Quando um projeto tem diversas partes, todas aquelas que são semelhantes por suas qualidades e quantidades devem ser decoradas do mesmo modo e da mesma maneira; e também o que se contrapõe a elas. Porém, quando o projeto muda completamente de forma, não é apenas legítimo, mas necessário mudar nele também os ornamentos, e do mesmo modo o que se contrapõe a eles: e os meios sempre são livres como se queira; como o nariz, que está no meio do rosto, não está ligado a nenhum dos dois olhos, mas uma mão é obrigada a ser como a outra, e um olho, a ser como o outro, por respeito ao lado e aos opostos. Entretanto, uma coisa é certa: os membros da arquitetura dependem dos membros do homem. Aquele que não foi ou não é um bom mestre de forma, e sobretudo de anatomia, não pode ser um conhecedor.] Tradução livre a partir da tradução francesa da sra. Altarelli. Em G. Milanesi, Le lettere di Michelangelo Buonarroti pubblicate coi ricordi et i contratti artistici, Florença, 1875, p. 554. Para uma análise dessa carta, ver J. S. Ackerman, op. cit., cap. I.

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Michelangelo: croqui para uma tumba mural dupla. British Museum, Londres.

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tiva, por exemplo, estão situadas no centro dos tímpanos do terceiro nível que encimam as paredes da sacristia e, portanto, podem ter um desenho particular: “... i mezzi sempre sono liberi come vogliono...”. Os tabernáculos e as pilastras duplas dos túmulos também podem ter um projeto diferente, mas, “... tutte quelle che sono a un modo di qualità e quantità, ànno a essere adorne di un medesimo modo e d’una medesima maniera [...]; l’una mano è bene obligata a essere come l’altra”. Nesse formalismo semiótico, a axialidade e a simetria dos elementos podem favorecer a especificidade formal – embora a simetria implique a repetição. Outros componentes com individualidade acentuada estavam previstos. Os trabalhos de restauração conduzidos recentemente por P. Dal Poggetto revelaram o projeto de uma falsa janela ou de um ornamento circular na parede situada atrás do altar, sem equivalente em nenhuma outra parte20. Os estudos para os túmulos dos Magnifici, localizados na parede oposta ao altar, depois do abandono do projeto de um monumento central, mostram que eles foram pensados de modo diferente que os dos Duques, com sua posição axial justificando a dessemelhança21. Toda a plástica arquitetônica de Michelangelo é marcada por esses princípios22. Ainda que a variação vertical das ordens fosse habitual desde a sistematização albertiana, Michelangelo acentua a descontinui20. P. Dal Poggetto, op. cit., pp. 42-6. 21. Ver, por exemplo, os desenhos do British Museum n. 28 recto e 28 verso. A respeito desses desenhos, é preciso notar uma curiosa e rara manipulação de um documento por E. Panofsky. Em uma nota da p. 284 de seus Essais d’iconologie, trad. fr. C. Herbette e B. Teyssèdre. Paris: Gallimard, 1967, ele transforma um evidente G em um P para adequar sua análise dos desenhos. Assim, o verso “La fama tiene gli epitaffi a giacere...”, que Girardi, com excessiva liberdade, parafraseia assim: “La fama rende inutile gli epitaffi...”, torna-se, em Panofsky, “La fama tiene gli epitaffi a piaccere...”, que ele diz significar “A fama mantém os epitáfios no devido lugar...”. 22. Em particular: o vestíbulo da Biblioteca Laurenciana, o Capitólio, a fachada do Palácio Farnese, Santa Maria degli Angeli e a Porta Pia.

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dade. O segundo nível tem pilastras demasiado delgadas em relação às do primeiro, contraste agravado ainda mais pela manutenção do coríntio que força a comparação. O nível dos pendentes distingue-se pelo estranho efeito das janelas em perspectiva. A cúpula retoma os caixotões do Panteão sem outros ecos formais em nenhuma outra parte. A sensação de descontinuidade vertical talvez seja reforçada hoje pela ausência de ornamento no friso do entablamento que separa o primeiro e o segundo nível23. Mas o ímpeto de todas as cornijas, constante em Michelangelo, impõe cesuras que quebram a progressão. A Sacristia é em parte caracterizada pela heterogeneidade das formas. Se tudo se ajusta, é em função da observação constante do princípio “anatômico” de seu desenho: tudo o que é único e central pode se individualizar “siccome il naso [...] nel mezzo del viso”, porém tudo o que é simétrico deve manter a mesma configuração, cada parte “è bene obligata a essere come l’altra, e l’uno ochio come l’altro”. “E però è cosa certa, che le membra dell’architettura dipendono dalle membra dell’uomo”, essa é a regra. O emaranhamento de eixos bem afirmados por membros únicos e por retomadas de elementos simétricos tece uma articulação forte que une o todo sem prejudicar as partes sob seu domínio. A distribuição dos dois materiais “positivos”, a pietra serena e o mármore, obedece aos mesmos critérios: é comandada pelo princípio “anatômico” que mistura ortodoxia e heresia. É esse duplo desdobramento, transposição do contraposto figurativo, que assegura a pregnância do todo. 23. Não sabemos com certeza se tais ornamentos estavam previstos por Michelangelo, a exemplo da Sacristia de Brunelleschi. No vestíbulo da Biblioteca Laurenciana, contudo, encontra-se um motivo semelhante: abaixo da pilastra que corre sob as colunas duplas e as paredes salientes uma faixa branca também interrompe a continuidade da decoração arquitetônica, isolando, por exemplo, a base das colunas dos consolos que presumivelmente as sustentariam.

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