A melhor hora para chorar é de noite, quando as luzes estão apagadas e alguém está levando uma surra e gritando por socorro. Desse jeito, mesmo que a gente fungue um pouco, eles não ouvem. Se alguém souber que você está chorando, vai começar a falar sobre isso e vai ser a sua vez de levar uma surra quando apagarem as luzes. Há um espelho acima da pia de aço na minha cela. Ele tem 15 centímetros de altura e está riscado com os nomes de alguns caras que estiveram aqui antes de mim. Quando olho naquele pequeno retângulo, vejo um rosto olhando de volta para mim, mas não o reconheço. Não parece 1
comigo. Não posso ter mudado tanto assim em alguns meses.
Eu me pergunto se vou me parecer comigo mesmo quando o julgamento acabar. Hoje no café da manhã um
sujeito levou uma porrada na cara com uma bandeja.
Alguém disse alguma besteira e outro cara ficou enlouquecido. Havia sangue por todos os lados.
Quando os guardas chegaram, mandaram a gente formar uma fila contra a parede. Fizeram o cara que levou a porrada se sentar à mesa, enquanto esperavam outro guarda trazer as luvas de borracha. Os guardas 2
calçaram as luvas, algemaram o sujeito e o levaram para a enfermaria. Ele ainda sangrava
muito.
Dizem que a gente se acostuma à cadeia, mas não entendo como. Toda manhã eu acordo e fico surpreso de estar aqui. Se a vida lá fora era real, então aqui dentro é exatamente o contrário. Dormimos com estranhos, acordamos com estranhos e vamos ao banheiro na frente de estranhos. São estranhos, mas mesmo assim acham
um jeito de machucar-se uns aos outros.
Às vezes me sinto como se tivesse entrado no meio de um filme. É um
filme estranho, sem enredo e 3
sem começo, em preto e branco e
granulado. Às vezes a câmera chega tão perto que a gente não consegue dizer o que está acontecendo, só escuta os sons e imagina. Eu já assisti a filmes de prisão, mas nunca como este aqui. Não é sobre grades de ferro e portas trancadas. É sobre estar sozinho quando não se está realmente sozinho e ter medo o tempo todo. Acho que para me acostumar com isso aqui vou ter de desistir daquilo que penso ser real e colocar outra coisa no lugar. Gostaria de poder dar algum sentido a tudo isso. Talvez eu possa fazer o meu próprio filme. Poderia escrevê-lo e 4
encená-lo na minha cabeça. Poderia cortar as cenas como fizemos na escola. O filme seria a história da minha vida. Não, não da minha vida, mas desta experiência. Vou anotar no caderno que eles me permitem ter. O título do filme será o tal nome pelo qual a promotora me chamou:
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