o s l i v r o s da s a g a o t o r i
A rede do cÊu Ê vasta O piso-rouxinol A relva por travesseiro O brilho da lua O grito estridente da garça
O S T R Ê S PA Í S E S
OSHIMA Katte Jinja
HAGI
SHUHO
OHAMA
Otori Yaegahara
PAÍS OESTE
TSUWANO
A
Terayama
M YA
U AR
Asagawa
M
CENTRAL A AT
AG
M YA
KIBI
Seishuu Kusahara Santuário
SHIRAKAWA O
KU
MA
T MO
NOGUCHI
Miyamoto Hofu
KUSHIMOTO
N fronteiras dos feudos
UE
TS MA
fronteiras dos feudos antes de Yaegahara estrada principal
LESTE CHIGAWA
Tohan INUYAMA Hinode
campos de batalha
Mino
cidade fortificada
santuรกrio
templo
Lian Hearn
A SAGA OTORI Prelúdio
A REDE DO CÉU É VASTA
Tradução
Rodrigo Neves Revisão da tradução
Ana Caperuto
SÃO PAULO 2013
A rede do Céu é vasta, Mas sua trama é sutil
A REDE DO CÉU É VASTA Personagens
OS CLÃS Otori Otori Otori Otori Otori Otori Otori
Shigeru: herdeiro do clã Takeshi: seu irmão mais novo Shigemori: seu pai, senhor do clã Masako: sua mãe Shoichi: seu tio Masahiro: seu tio
Otori Ichiro: professor de Shigeru Chiyo: velha criada da senhora Otori Otori Eijiro: chefe de um dos braços da família Otori Eriko: sua esposa Otori Danjo: seu filho
Harada: um dos homens de Shigeru Komori: um morador de Chigawa, o “Imperador do Subsolo” Haruna: dona da Casa das Camélias Akane: cortesã famosa, filha de um pedreiro de cantaria Hayato: seu amante Yanagi Moe: esposa de Shigeru Mori Mori Mori Mori
Yusuke: domador de cavalos da família Otori Yuta: seu filho mais velho Kiyoshige: seu segundo filho, melhor amigo de Shigeru Hiroki: seu terceiro filho, que se torna sacerdote
Miyoshi Satoru: um ancião do clã Miyoshi Kahei: seu filho mais velho, amigo de Takeshi Miyoshi Gemba: seu filho mais novo Irie Masahide: professor de esgrima dos meninos Otori Kitano Tadakazu: senhor de Tsuwano, vassalo dos Otori Kitano Tadao: seu filho mais velho Kitano Masaji: seu segundo filho Noguchi Masayoshi: vassalo dos Otori Nagai Tadayoshi: o mais velho vassalo de Yamagata Endo Chikara: o mais velho vassalo de Hagi Terada Fumimasa: comandante da frota pesqueira de Hagi Terada Fumio: seu filho
Matsuda Shingen: outrora guerreiro, atualmente sacerdote, futuro abade de Terayama
Seishuu Maruyama Naomi: líder do clã Maruyama Maruyama Mariko: sua filha Sugita Sachie: sua criada, irmã de Otori Eriko Sugita Haruki: o mais velho vassalo dos Maruyama, irmão de Sachie Arai Daiichi: herdeiro do clã Arai, em Kumamoto
Tohan Iida Sadayoshi: senhor do clã Iida Sadamu: seu filho, herdeiro do clã Miura Naomichi: professor de esgrima dos Tohan Inaba Atsushi: seu vassalo
A TRIBO Muto Shizuka: amante de Arai Muto Zenko e Muto Taku: seus filhos Muto Kenji: tio de Shizuka, chefe da família Muto, amigo de Shigeru Muto Seiko: sua esposa Muto Yuki: sua filha Kikuta Kotaro: tio de Shizuka, chefe da família Kikuta
Kikuta Isamu: seu sobrinho, membro da Tribo Bunta: cavalariรงo
OS OCULTOS Sara: esposa de Isamu Tomasu: seu filho Shimon: segundo marido de Sara Maruta: filha mais velha do casal Madaren: filha mais nova do casal Nesutoro: sacerdote itinerante Mari: sua sobrinha
CAVALOS Karasu: preto, cavalo de Shigeru Kamome: cinzento com crina e rabo pretos, cavalo de Kiyoshige Raku: cinzento com crina e rabo pretos, cavalo de Takeshi Kyu: preto, segundo cavalo de Shigeru Kuri: baio, muito inteligente
1.
Os passos eram leves, quase indiscerníveis em meio à miríade de sons da floresta outonal – o farfalhar das folhas espalhadas pelo vento noroeste, o distante ruflar de asas dos gansos em seu voo para o sul, os ecos dos ruídos da aldeia, lá embaixo –, mas Isamu os ouviu e identificou. Pousou a enxada na relva úmida, junto às raízes que estivera colhendo, e se afastou. Sua lâmina afiada o chamava e ele não queria ser tentado por ferramentas ou armas. Virou-se para a direção em que o primo se aproximava e o esperou. Kotaro chegou invisível à clareira, à maneira da Tribo, mas Isamu não se preocupou em se ocultar. Conhecia todas as habilidades do primo: tinham quase a mesma idade, Kotaro era menos de um ano mais novo que ele; tinham treinado juntos, sempre tentando superar um ao outro; tinham sido amigos, de certa forma, e rivais por toda a vida. Isamu pensava ter escapado, refugiando-se ali naquela aldeia isolada, na fronteira leste dos Três Países, longe das grandes cidades onde a Tribo preferia morar e trabalhar, vendendo suas habilidades sobrenaturais para quem oferecesse mais dinheiro e encontrando muito serviço naqueles tempos de intriga
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e discórdia entre os guerreiros. Mas ninguém escapava da Tribo para sempre. Quantas vezes não ouvira esse aviso quando criança? Quantas vezes não o repetira em pensamento, com o sombrio prazer que lhe inspiravam as velhas habilidades, ao desferir uma silenciosa facada, apertar um garrote ou, seu procedimento preferido, pingar veneno lentamente em olhos desprotegidos ou na boca de alguém que dormia? Ele sabia que esse aviso ecoava agora na mente de Kotaro, à medida que a imagem tremeluzente do primo se tornava visível. Por um momento, encararam-se sem dizer palavra. A própria floresta pareceu emudecer, e, naquele silêncio, Isamu pensou ouvir a voz da esposa lá embaixo. Kotaro também seria capaz de ouvi-la, pois ambos possuíam o dom da superaudição, característico dos Kikuta, assim como a linha reta da família dividindo a palma das mãos. – Custei a encontrá-lo – disse Kotaro, por fim. – Foi essa a minha intenção – respondeu Isamu. A compaixão ainda lhe era estranha, e ele se encolheu diante da dor que o sentimento despertava no coração renascido. Pensou com remorso na generosidade, na alegria, na bondade da moça; queria poder poupá-la do sofrimento; indagou-se se o breve período de seu casamento teria sido suficiente para gerar nela uma nova vida e imaginou o que ela faria após a morte dele. Encontraria consolo em seu povo, no Deus Secreto. Seria amparada por sua força interior. Choraria e rezaria por ele, o que ninguém na Tribo seria capaz de fazer. Seguindo um instinto ainda não muito bem compreendido, como as aves daquele lugar selvagem que aprendera a amar, Isamu decidiu adiar a morte e levar Kotaro ao coração da floresta. Talvez nenhum dos dois retornasse de sua imensidão. Duplicou sua imagem e enviou a cópia na direção de Kotaro, enquanto fugia ligeiro, no mais absoluto silêncio, os pés mal tocando o chão, passando por entre troncos tenros e delgados de cedros, saltando sobre as pedras que tinham caído do penhasco, deslizando pela superfície escorregadia das rochas escuras sob as cachoeiras, sumindo e reaparecendo entre a espuma. Estava atento a tudo ao seu redor: o céu cinzento e a umidade do décimo mês; o vento frio, que anunciava o inverno
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e o fazia se lembrar de que nunca mais veria a neve; o distante bramido de um cervo; o ruflar de asas e os gritos estridentes dos corvos assustados que levantavam voo. Então, ele correu, e Kotaro o seguiu, até que, horas mais tarde, depois de ter percorrido uma longa distância desde a aldeia onde se refugiara, Isamu diminui o passo e deixou que o primo o alcançasse. Isamu jamais se embrenhara tanto na floresta; não havia sol. Ele não reconheceu o ambiente e torceu para que Kotaro também estivesse perdido. Esperava que o primo morresse ali, nas montanhas, naquela encosta solitária à beira de um profundo precipício. Mas não o mataria. Ele, que matara tantas vezes, não poderia tomar outra vida, nem mesmo para se salvar. Fizera essa promessa e sabia que não podia quebrá-la. O vento agora soprava do leste e estava bem frio, mas a perseguição fizera Kotaro suar. Isamu viu gotas brilhantes na pele do primo quando ele se aproximou. Nenhum deles estava ofegante, apesar do esforço. Por trás da enganadora constituição esguia, havia músculos duros como ferro e anos de treinamento. Kotaro parou e tirou um graveto de dentro das vestes. Mostrou-o a Isamu e disse: – Não é pessoal, primo. Quero que fique bem claro. A decisão coube à família Kikuta. Tiramos à sorte e fiquei com o menor graveto. Mas por que você quis deixar a Tribo? Como Isamu não respondeu, Kotaro continuou: – Suponho que esteja tentando fazer isso. Essa foi a conclusão a que toda a família chegou depois que você ficou um ano sem dar notícia, não retornou a Inuyama ou ao País Central nem executou as missões que lhe tinham sido encomendadas, e pagas, vale dizer, pelo próprio Iida Sadayoshi. Alguns disseram que você estava morto, mas não havia provas, e achei difícil acreditar nisso. Quem seria capaz de matá-lo, Isamu? Ninguém conseguiria chegar perto o suficiente para usar o punhal, a espada ou o garrote. Você não dorme; não bebe; tornou-se imune a todos os venenos; e seu corpo se cura de todas as doenças. Nunca houve um assassino como você na história da Tribo; até eu admito sua superioridade, embora seja muito difícil fazê-lo. Mas eis que o encontro aqui, vivo e saudável, muito longe de onde deveria estar. Só posso supor que tenha abandonado a Tribo, e, para isso, há apenas um castigo.
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Isamu esboçou um sorriso, mas permaneceu calado. Kotaro guardou o graveto dentro das vestes. – Não quero matá-lo – disse suavemente. – Mas são ordens da família Kikuta, a menos que retorne comigo. Como eu disse, tiramos à sorte. Enquanto falava, Kotaro mantinha-se alerta, os olhos inquietos, o corpo tenso à espera de um ataque. – Também não quero matá-lo – disse Isamu. – Mas não retornarei com você. Tem razão em dizer que abandonei a Tribo. Deixei-a para sempre. Jamais voltarei. – Então tenho ordens de executá-lo – disse Kotaro, com certa formalidade, como quem anuncia uma sentença judicial. – Por desobediência à família e à Tribo. – Compreendo – respondeu Isamu, de maneira igualmente formal. Nenhum dos dois se mexeu. Kotaro continuava suando profusamente apesar do vento frio. Seus olhos se encontraram, e Isamu sentiu a força do olhar do primo. Ambos tinham a habilidade de induzir o oponente ao sono; e ambos sabiam como resistir a esse tipo de ataque. O confronto silencioso se estendeu por algum tempo. Então Kotaro puxou seu punhal. Seus movimentos foram desajeitados e hesitantes, sem a costumeira destreza. – Faça o que deve fazer – disse Isamu. – Eu o perdoo e espero que Deus também o perdoe. Essas palavras pareceram deixar Kotaro ainda mais nervoso. – Você me perdoa? Que palavras são essas? Quem na Tribo já perdoou alguém? Existe apenas a obediência integral ou o castigo. Se não se lembra disso, então se tornou tolo ou louco... Seja qual for o caso, a cura é a morte! – Sei disso tão bem quanto você. Estou ciente de que não posso fugir dessa sentença. Então siga suas ordens, sabendo que eu o absolvo de qualquer culpa. Não deixo herdeiros para vingar minha morte. Você será obediente à Tribo e eu... ao meu senhor. – Não vai se defender? Não vai lutar comigo? – perguntou Kotaro. – Se lutarmos, eu o matarei. Acho que nós dois sabemos disso – Isamu riu. Em todos os anos em que ele e Kotaro tinham
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competido, ele nunca se sentira tão superior ao primo. Abriu os braços, a fim de deixar o peito desprotegido. E ainda estava rindo quando a faca lhe adentrou o coração. A dor se alastrou por seu corpo, o céu escureceu, seus lábios formaram um último adeus. E ele trilhou o caminho que, em seu tempo, obrigara tantos a percorrer. Seu último pensamento foi a lembrança da moça e de seu corpo quente, no qual – sem saber – deixara parte de si.