A Saga Otori - O grito estridente da garça (epílogo)

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o s l i v r o s da s a g a o t o r i

A rede do cÊu Ê vasta O piso-rouxinol A relva por travesseiro O brilho da lua O grito estridente da garça


O S T R Ê S PA Í S E S

OSHIMA Katte Jinja

HAGI

SHUHO

OHAMA

Otori Yaegahara

PAÍS OESTE

TSUWANO

A

Terayama

M YA

U AR

Asagawa

M

CENTRAL A AT

AG

M YA

KIBI

Seishuu Kusahara Santuário

SHIRAKAWA O

KU

MA

T MO

NOGUCHI

Miyamoto Hofu

KUSHIMOTO


N fronteiras dos feudos

UE

TS MA

fronteiras dos feudos antes de Yaegahara estrada principal

LESTE CHIGAWA

Tohan INUYAMA Hinode

campos de batalha

Mino

cidade fortificada

santuรกrio

templo



Lian Hearn

A SAGA OTORI A última parte da Saga Otori

O GRITO ESTRIDENTE DA GARÇA

Tradução

Ana Caperuto

SÃO PAULO 2014



O GRITO ESTRIDENTE DA GARÇA Personagens principais

Otori Takeo........... Otori Kaede .......... Shigeko ................. Maya .................... Miki

governante dos Três Países sua mulher filha mais velha deles, herdeira de Maruyama filhas gêmeas deles

Arai Zenko ............ chefe do clã dos Arai, senhor de Kumamoto Arai Hana............... sua mulher, irmã de Kaede Sunaomi .............. filhos deles Chikara

Muto Kenji ............ chefe da família Muto e da Tribo Muto Shizuka ........ sua sobrinha e sucessora, mãe de Zenko e Taku Muto Taku............. chefe dos espiões de Takeo Sada ....................... Mai......................... Yuki (Yusetsu) ...... Muto Yasu ............. Imai Bunta ............

membro da Tribo, acompanhante de Maya irmã de Sada filha de Kenji, mãe de Hisao um comerciante informante de Shizuka


Doutor Ishida ........ marido de Shizuka, médico de Takeo Sugita Hiroshi ....... o mais antigo vassalo de Maruyama Miyoshi Kahei ....... comandante supremo de Takeo, senhor de Yamagata Miyoshi Gemba..... seu irmão Sonoda Mitsuru ..... senhor de Inuyama Ai ........................... sua mulher, irmã de Kaede Matsuda Shingen... abade do templo de Terayama Kubo Makoto ....... seu sucessor, melhor amigo de Takeo (mais tarde Eikan) Minoru ................... escriba de Takeo Kuroda Junpei Kuroda Shinsaku

 guarda-costas de Takeo

Terada Fumio ........ capitão de navio e explorador Senhor Kono ......... um nobre, filho do Senhor Fujiwara Saga Hideki ........... general do imperador, senhor das Ilhas do Leste Dom João .............. um mercador estrangeiro Dom Carlo ............ um sacerdote estrangeiro Madaren ................ sua intérprete Kikuta Akio ........... chefe da família Kikuta Kikuta Hisao ......... seu filho Kikuta Gosaburo .. tio de Akio CAVALOS Tenba..................... cavalo negro que Shigeko deu a Takeo


Os dois filhos de Raku, ambos cinzentos com crina e cauda pretas Ryume ................... cavalo de Taku Keri ........................ cavalo de Hiroshi Ashige ................... cavalo cinzento de Shigeko



O sino de Gion Shoja ecoa a impermanência de todas as coisas. A cor das flores de sala revela a verdade que o próspero deve declinar. O orgulhoso não resiste, eles são como um sonho em uma noite de primavera; O poderoso cai, enfim, eles são como poeira antes do vento. Heike Monogatari (O conto dos Heike)



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– Venham depressa! Papai e mamãe estão lutando! Otori Takeo ouvia claramente a voz da filha chamando as irmãs do interior da residência no castelo de Inuyama, assim como ouvia a mistura de todos os sons do castelo e da cidade além dele. No entanto, ignorava-os, assim como ignorava a canção das tábuas do piso-rouxinol sob seus pés, concentrando-se apenas em sua oponente: sua mulher, Kaede. O casal estava lutando com bastões de madeira. Ele era mais alto, mas ela era naturalmente canhota e, portanto, hábil com as duas mãos, ao passo que ele, que tivera a mão direita mutilada por um punhal, muitos anos antes, precisara aprender a usar somente a esquerda; essa, porém, não era a única causa de sua lentidão. Era o último dia do ano, um dia dolorosamente frio, com um céu cinza-pálido e um débil sol de inverno. Com frequência, nessa época, eles se exercitavam assim, para aquecer o corpo e deixar as articulações mais flexíveis, e Kaede gostava que as filhas vissem que uma mulher podia lutar como um homem.


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As garotas vieram correndo. No ano novo, a mais velha, Shigeko, faria quinze anos, e as duas mais novas, treze. As tábuas do piso cantaram sob os passos de Shigeko, mas as gêmeas caminhavam com leveza, à maneira da Tribo. Desde muito pequenas corriam pelo piso-rouxinol e tinham aprendido quase inconscientemente a mantê-lo em silêncio. A cabeça de Kaede estava coberta com um lenço de seda vermelho, que se enrolava em torno de seu rosto, de modo que Takeo só podia ver-lhe os olhos. Eles estavam cheios da energia da luta, e os movimentos dela eram rápidos e fortes. Era difícil acreditar que Kaede tinha três filhas – ainda se deslocava com a vitalidade e a liberdade de movimentos de uma jovem. Sua investida levou Takeo a se conscientizar de sua idade e de sua fragilidade física. O impacto do golpe de Kaede em seu bastão fez a mão dele doer. – Desisto – admitiu ele. – Mamãe venceu – exultaram as garotas. Shigeko correu para a mãe com uma toalha. – À vencedora – disse ela, fazendo uma reverência e oferecendo a toalha com as duas mãos. – Devemos agradecer por vivermos em paz – afirmou Kaede, sorrindo e secando o rosto. – O pai de vocês aprendeu as artes da diplomacia e já não precisa lutar por sua vida! – Pelo menos agora estou aquecido! – exclamou Takeo, acenando para um dos guardas que tinham ficado observando do jardim, para que viesse pegar os bastões. – Deixe-nos lutar com o senhor, papai! – suplicou Miki, a mais nova das gêmeas. Ela foi até a beirada da varanda e estendeu as mãos para o homem. Ele tomou o cuidado de não olhar para ela nem tocá-la enquanto lhe entregava o bastão. Takeo notou a relutância do guarda. Mesmo homens adultos, soldados calejados, tinham medo das gêmeas, e até a mãe delas, pensou com tristeza. – Deixe-me ver o que Shigeko aprendeu – disse ele. – Vocês podem lutar com ela, uma de cada vez. A filha mais velha tinha passado a maior parte dos últimos anos em Terayama, onde, sob a supervisão do velho abade, Matsuda Shingen, que também fora mestre de Takeo, estudara o Caminho do Houou. Ela havia chegado a Inuyama no dia


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anterior, para celebrar, com a família, o Ano-Novo e também sua maioridade. Agora Takeo a observava pegar o bastão que ele tinha usado e se certificar de que Miki estava com o mais leve. Fisicamente, Shigeko se parecia muito com a mãe, era tão esguia quanto ela e aparentava a mesma fragilidade, mas sua personalidade era única: prática, bem-humorada e firme. Embora a disciplina no Caminho do Houou fosse rígida e os professores não lhe fizessem concessões por conta de sua pouca idade ou de seu sexo, ela aceitava os ensinamentos, os treinos e os longos dias de silêncio e solidão com entusiasmo sincero. Tinha ido para Terayama por vontade própria, porque o Caminho do Houou era um caminho de paz, e desde a infância compartilhava com o pai sua ideia de uma terra pacífica, onde nunca seria permitida a violência. Ela lutava de maneira bem diferente daquela que Takeo aprendera, e ele adorava vê-la lutar, apreciar como os movimentos de ataque tradicionais tinham se transformado em movimentos de autodefesa, com o objetivo de desarmar o oponente sem feri-lo. – Não trapaceie – disse Shigeko a Miki, porque as gêmeas tinham todas as habilidades da Tribo de seu pai. E até mais algumas, suspeitava ele. Agora que elas estavam prestes a fazer treze anos, essas habilidades se desenvolviam rapidamente, e, embora as duas estivessem proibidas de usá-las no dia a dia, de vez em quando a tentação de provocar os professores e enganar os criados era muito grande. – Por que não posso mostrar ao papai o que aprendi? – argumentou Miki, que também tinha voltado recentemente de um treinamento com a família Muto, na aldeia da Tribo. Sua irmã Maya iria para lá após as comemorações. Eram raros os dias em que a família inteira se reunia, pois a educação diferenciada das meninas e a necessidade dos pais de dar a mesma atenção a todos os Três Países os obrigavam a viagens constantes e separações frequentes. As demandas administrativas estavam aumentando: as negociações com estrangeiros; a exploração e o comércio; a manutenção e o desenvolvimento de armamentos; a supervisão de distritos que organizavam a própria administração; os experimentos agrícolas; a chegada de artesãos estrangeiros e a importação de novas tecnologias;


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as audiências de queixas e denúncias. Takeo e Kaede dividiam igualmente seus encargos: ela tratava sobretudo com o Oeste; ele, com o País Central; e, juntos, ocupavam-se do Leste, onde a irmã de Kaede, Ai, e seu marido, Sonoda Mitsuru, controlavam o antigo domínio dos Tohan, incluindo o castelo de Inuyama, onde a família estava passando o inverno. Miki era pouca coisa mais baixa do que a irmã, mas muito forte e ágil; Shigeko, em comparação, parecia mover-se com mais dificuldade, porém Miki não conseguia ultrapassar sua guarda e em pouco tempo perdeu o bastão. Ele pareceu voar de sua mão e, quando passou por cima de Shigeko, ela o agarrou sem muito esforço. – Você trapaceou! – protestou Miki, ofegante. – O Senhor Gemba me ensinou a fazer isso – disse Shigeko, orgulhosa. Em seguida, Maya, a outra gêmea, também fez sua tentativa, mas o resultado foi o mesmo. – Papai, deixe-me lutar com o senhor! – pediu Shigeko, com as bochechas vermelhas. – Está bem – concordou Takeo, impressionado com o que a filha aprendera e curioso para ver como ela lutaria contra um guerreiro forte e treinado. Ele a atacou rapidamente, sem se conter, e o primeiro assalto a pegou de surpresa. Takeo tocou o bastão no peito dela, mas refreou o golpe, pois não queria feri-la. – Uma espada a teria matado – disse. – De novo – respondeu ela calmamente. Dessa vez, Shigeko estava pronta para ele. Moveu-se com velocidade e sem esforço, escapou de dois golpes e conseguiu chegar ao lado direito dele, o de sua mão mais fraca; combateu um pouco, o suficiente para desequilibrá-lo, e então girou completamente o corpo. O bastão dele escorregou para o chão. Takeo ouviu as gêmeas, e também os guardas, suspirarem de surpresa. – Bravo! – elogiou ele. – O senhor não estava tentando de verdade – disse Shigeko, desapontada.


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– É claro que eu estava. Tanto quanto da primeira vez. É claro, sua mãe já tinha me deixado cansado. Além disso, estou velho e fora de forma. – Não! – gritou Maya. – Shigeko bateu o senhor honestamente! – Mas é como se tivesse trapaceado – afirmou Miki, séria. – Como você fez aquilo? Shigeko sorriu, balançando a cabeça. – É algo que você faz com a mente, o espírito, as mãos, tudo junto. Levei alguns meses para pegar o jeito. Não consigo simplesmente lhe mostrar. – Você se saiu muito bem – disse Kaede. – Estou orgulhosa. – A voz dela estava cheia de amor e admiração, como de costume quando se tratava da filha mais velha. As gêmeas trocaram um breve olhar. “Elas estão com ciúme”, pensou Takeo. “Sabem que o que a mãe sente por elas não é tão forte.” E experimentou o familiar impulso de proteção em relação às filhas mais novas. Parecia estar sempre tentando mantê-las em segurança, desde o nascimento, quando Chiyo tentara levar Miki, a caçula, para abandoná-la à morte. Naquele tempo, era isso que se fazia com filhos gêmeos, e provavelmente ainda era assim na maior parte do país, pois se considerava o nascimento de gêmeos não natural entre seres humanos, porque os equiparava a animais, como gatos e cachorros. – Pode parecer cruel, Senhor Takeo – aconselhara Chiyo –, mas é melhor fazer isso agora do que suportar a desgraça e a má sorte que as pessoas vão pensar que o senhor estará carregando, por ser pai de gêmeas. – Como as pessoas poderão um dia deixar de ter superstições e crueldade se não dermos o exemplo? – respondera Takeo com raiva. Afinal, ele, como todos os que nasceram entre os Ocultos, valorizava a vida das crianças acima de tudo e não podia acreditar que poupar a vida de uma delas tivesse como consequência desaprovação ou má sorte. Pouco tempo depois, surpreendeu-se com a força das superstições. A própria Kaede não era imune a elas, e sua atitude em relação às filhas mais novas refletia uma incômoda ambiguidade. Preferia mantê-las separadas, o que acontecia na


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maior parte do ano, pois uma ou outra habitualmente ficava com a Tribo, e não queria que estivessem presentes na celebração da maioridade da irmã mais velha, temendo que sua presença trouxesse má sorte a Shigeko. No entanto, Shigeko, que, como o pai, protegia as gêmeas, insistira para que elas comparecessem. Takeo estava contente com isso; nada o deixava mais feliz do que ter a família toda reunida perto dele. Ele as olhou com ternura, mas deu-se conta de que algo mais intenso estava se sobrepondo a esse sentimento: o desejo de se deitar com sua esposa, de sentir a pele dela em contato com a sua. O exercício com bastões havia despertado nele lembranças de quando se apaixonara por ela, na primeira luta em que se enfrentaram, em Tsuwano, ele com dezessete anos e ela com quinze. Fora em Inuyama, praticamente nesse mesmo local, que eles haviam se deitado juntos pela primeira vez, levados pela paixão que nascera do desespero e da dor. A antiga residência, o castelo de Iida Sadamu, incendiara-se com a queda de Inuyama, mas Arai Daiichi a reconstruíra quase do mesmo jeito, e agora essa era uma das famosas Quatro Cidades dos Três Países. – As garotas devem descansar antes da noite – afirmou ele. À meia-noite, haveria longas cerimônias no santuário e, em seguida, a celebração do Ano-Novo. Eles não poderiam dormir até a hora do Tigre. – Eu também vou me deitar um pouco. – Vou mandar braseiros para o quarto – disse Kaede – e logo me juntarei a você. • A claridade já desaparecia quando ela foi até ele, e as primeiras sombras do inverno começavam a se instalar. Apesar dos braseiros, com o carvão incandescente, sua respiração produzia uma nuvem branca no ar gelado. Ela havia se banhado e o aroma de pó de arroz e de babosa da água aderira à sua pele. Por baixo do roupão acolchoado de inverno, o corpo estava quente. Ele desfez a faixa da cintura dela e deslizou as mãos sob o tecido, puxando-a para perto de si. Então, desamarrou o lenço que lhe cobria a cabeça e o tirou, passando as mãos pelos cabelos curtos e sedosos.


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– Não faça isso – pediu ela. – É tão feio... Ele sabia que a esposa nunca superara a perda dos belos cabelos longos, nem esquecera as cicatrizes na nuca branca, que tinham danificado a beleza que, outrora, fora objeto de lendas e superstições. Entretanto, ele não via isso como desfiguração, apenas como maior vulnerabilidade, o que a tornava mais adorável a seus olhos. – Eu gosto. É como se estivesse representando. Faz você parecer ao mesmo tempo homem e mulher, adulta e criança. – Então você tem de me mostrar suas cicatrizes também. – Ela tirou a luva de seda que ele costumava usar na mão direita e aproximou os lábios do coto dos dedos. – Machuquei você hoje? – Não muito. É só um resto de dor; qualquer golpe provoca um choque nas articulações e elas doem. – E acrescentou em voz baixa: – Estou com dor agora, mas por outra razão. – Essa dor eu posso curar – sussurrou ela, puxando-o para si, abrindo-se para ele, trazendo-o para dentro dela, satisfazendo a urgência dele com a sua, fundindo-se a ele com ternura, adorando a familiaridade de sua pele, de seus cabelos, de seu cheiro e a estranheza que cada ato de amor trazia novamente consigo. – Você sempre me curou – disse ele mais tarde. – Você me completa. Ela repousava nos braços dele, a cabeça apoiada em seus ombros. Percorrendo o quarto com os olhos, viu as lâmpadas brilhando nos recipientes de ferro e, além das janelas, o céu escuro. – Talvez tenhamos feito um filho – comentou ela, incapaz de esconder a esperança na voz. – Espero que não! – exclamou Takeo. – Por duas vezes, minhas filhas quase custaram sua vida. Não precisamos de um filho – afirmou ele um pouco mais suavemente. – Temos três meninas. – Certa vez eu disse a mesma coisa a meu pai – confessou Kaede. – Achava que eu poderia ser como qualquer menino. – Shigeko certamente pode – falou Takeo. – Ela herdará os Três Países, e seus filhos depois dela.


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– Seus filhos! Ela mesma ainda parece uma criança, embora já tenha idade suficiente para se casar. Onde encontraremos alguém para se casar com ela? – Não há pressa. Ela é muito valiosa, uma joia inestimável. Não a deixaremos ir por pouca coisa. Kaede voltou ao assunto anterior, que parecia atormentá-la: – Espero lhe dar um filho. – Embora você mesma seja uma herdeira e apesar do exemplo da Senhora Maruyama, ainda fala como a filha de uma família de guerreiros. A escuridão e a tranquilidade em torno deles levaram-na a manifestar novamente sua preocupação: – Às vezes penso que as gêmeas fecharam meu útero. Se elas não tivessem nascido, acho que eu poderia ter tido meninos. – Você dá muita atenção às velhas supersticiosas! – Você provavelmente está certo. Mas o que acontecerá a nossas filhas mais novas? Elas só poderão ter direito à herança se algo acontecer a Shigeko, que o Céu não permita. E quem vai querer se casar com elas? Nenhuma família de nobres ou de guerreiros se arriscará a aceitar uma gêmea, especialmente uma maculada... perdoe-me... pelo sangue da Tribo, com habilidades que se parecem tanto com feitiçaria. Takeo não podia negar que a mesma ideia frequentemente o perturbava, mas ele tentava afastá-la. As garotas ainda eram muito jovens; quem saberia o que o destino lhes reservava? – Mas talvez já sejamos muito velhos – ponderou Kaede tranquilamente depois de um momento. – Todos se perguntam por que você não arranja uma segunda esposa, ou uma concubina, para ter mais filhos com ela. – Quero somente uma esposa – disse ele, sério. – Por mais que eu finja emoções ou assuma certos papéis, meu amor por você não é fingimento, é verdadeiro, e jamais me deitarei com outra mulher a não ser você. Estou lhe dizendo: fiz uma promessa a Kannon, em Ohama, e não a quebrei por dezesseis anos. Não vou quebrá-la agora. – Acho que eu morreria de ciúme – admitiu Kaede –, mas o que sinto é menos importante do que as necessidades do país.


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– Acredito que o amor que nos une é o fundamento de nosso bom governo. Nunca farei nada que arruíne isso. – Takeo a puxou novamente para perto de si e correu as mãos delicadamente pelas cicatrizes de seu pescoço, sentindo as bordas de tecido endurecidas que as chamas tinham deixado. – Enquanto estivermos juntos, nosso país permanecerá forte e ficará em paz. – Lembra-se de quando partimos para Terayama? – perguntou Kaede, sonolenta. – Você fixou profundamente seus olhos nos meus e eu adormeci. Nunca lhe contei isso. Sonhei com a Deusa Branca e ela me disse: “Seja paciente. Ele virá para você.” E nas Cavernas Sagradas ouvi a voz dela mais uma vez, pronunciando as mesmas palavras. Esse foi meu único conforto no tempo em que o Senhor Fujiwara me manteve em cativeiro. Lá eu soube ser paciente. Precisei aprender a esperar, a não fazer nada, e ele não teve nenhum motivo para me tirar a vida. E, mais tarde, quando ele morreu, eu só pensava em ir para as cavernas, em voltar para a deusa. Se você não tivesse aparecido, eu teria ficado ali, servindo-a pelo resto de meus dias. E você veio, eu vi você, tão magro, com o veneno ainda em seu corpo, sua bela mão mutilada. Nunca esquecerei aquele momento: sua mão em meu pescoço, a neve caindo, o grito estridente da garça... – Eu não sou digno de seu amor – sussurrou Takeo. – Ele é a maior bênção de minha vida, e não posso viver sem você. Você sabe, minha vida também tem sido guiada por uma profecia... – Sim, eu sei. E nós vimos a profecia se cumprir: as cinco batalhas, a intervenção da Terra... “Vou lhe contar o resto agora”, pensou Takeo. “Direi por que não quero ter filhos: a vidente cega disse que somente meu filho me traria a morte. Vou lhe contar sobre Yuki e a criança que ela teve, meu filho, que hoje tem dezesseis anos.” No entanto, ele seria incapaz de causar dor à esposa. Qual era o sentido de remexer no passado? As cinco batalhas já faziam parte da mitologia dos Otori, embora ele mesmo tivesse perdido a conta da quantidade delas; podiam ter sido seis, ou quatro, ou três. Palavras eram facilmente alteradas ou manipu-


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ladas para significar quase qualquer coisa. Quando se acredita em uma profecia, ela com frequência se realiza. Ele não pronunciaria as palavras, pois se o fizesse lhes daria vida. Takeo viu que Kaede começava a dormir. Estava quente debaixo dos acolchoados, embora o ar em seu rosto fosse congelante. Em pouco tempo, ele deveria levantar, tomar um banho, vestir roupas formais e se preparar para as cerimônias de chegada do Ano-Novo. Seria uma longa noite. Seus membros começaram a relaxar e ele também adormeceu.




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