Silber – O primeiro livro dos sonhos

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Kerstin Gier

Silber

O primeiro livro dos sonhos Romance Tradução de Carla Bessa

SÃO PAULO 2017



Para F. É sempre maravilhoso sonharmos juntos.



What if you slept And what if In your sleep You dreamed And what if In your dream You went to heaven And there plucked a strange and beautiful flower And what if When you awoke You had that flower in your hand Ah, what then?* Samuel Taylor Coleridge

* Trad. livre: E se você dormisse/ E se em seu sono/ você sonhou/ E se no seu sonho/Você foi para o paraíso/ E lá arrancou uma estranha e bela flor/ E se quando você acordou/ Você tinha essa flor na sua mão/ Ah, o que então? [N. da E.]

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1.

O cachorro farejou minha mala. Para um cão detector de entorpecentes ele era um exemplar surpreendentemente fofo, devia ser um Hovawart*. Estava prestes a lhe fazer um cafuné nas orelhas quando ele suspendeu os lábios soltando um “rrr-au” ameaçador. Depois, sentou-se e, enérgico, colou o focinho na minha mala. O agente da alfândega parecia estar tão surpreso quanto eu, olhou duas vezes do cachorro para mim e de volta para o cachorro antes de pegar a mala e dizer: – Bem, então vamos ver o que a nossa Âmbar rastreou por aqui. Ah, fantástico! Não faz nem meia hora que pisei em solo britânico e já sou suspeita de contrabandear drogas. Os verdadeiros contrabandistas na fila atrás de mim devem estar felizes da vida, graças a minha presença podiam agora passar ilesos pelo cordão de isolamento com seus relógios suíços e seus entorpecentes sintéticos. Que agente de alfândega com um mínimo de sensatez pararia uma menina de quinze anos de rabo de cavalo louro em vez de, por exemplo, aquele tipo nervoso com feição de malandro ali atrás? Ou esse garoto de uma palidez suspeita * Hovawart é uma raça canina oriunda da Alemanha. [N. da T.]

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e cabelo emaranhado que, no avião, já tinha apagado antes mesmo da decolagem. Não me admiraria se agora estivesse rindo de mim. As bolsas dele deviam estar abarrotadas de sedativos ilegais. Mas decidi não deixar que estragassem o meu bom humor, afinal, uma vida nova e maravilhosa esperava por nós atrás do cordão de isolamento – o lar com que sempre havíamos sonhado. Lancei um olhar tranquilizador para Mia, minha irmã menor, que já estava do outro lado do cordão andando de um lado para o outro, impaciente. Estava tudo bem. Não havia razão para ansiedade. Esse era apenas o último obstáculo entre nós e a esperada vida nova e maravilhosa. O voo transcorreu sem incidentes nem turbulências, ou seja: Mia não precisou vomitar e eu, excepcionalmente, não sentei ao lado de um homem obeso fedendo à cerveja que me roubou o encosto do braço. E apesar de papai, como era seu costume, ter comprado um bilhete dessas companhias baratas que aparentemente voam com pouco combustível, o avião não apresentou maiores dificuldades quando fomos obrigados a dar várias voltas sobre o aeroporto de Heathrow à espera da autorização para a aterrissagem. E ainda havia aquele garoto bonito de cabelos castanhos, sentado na fila a minha frente, do outro lado, que me chamou a atenção porque se virava toda hora para mim e sorria. Estava prestes a puxar conversa com ele, mas desisti porque ele estava folheando uma revista de futebol e movia os lábios enquanto lia. Esse mesmo garoto olhava agora com curiosidade para minha mala. Aliás, todos estavam olhando curiosos para minha mala. 10


Olhei para o agente da alfândega com os olhos arregalados e dei o meu sorriso mais simpático. – Por favor... estamos com pressa, o voo já sofreu um atraso e esperamos uma eternidade pela entrega da bagagem. Nossa mãe está lá fora esperando por mim e minha irmãzinha. Juro que na minha mala só tem um monte de roupa suja e... – Naquele exato momento me lembrei do que mais estava na mala e me calei por um instante. – ...Em todo caso, não tenho drogas – acrescentei, humilde, e lancei um olhar recriminador para o cachorro. Cão idiota! Sem se deixar abalar, o agente da alfândega colocou minha mala sobre a mesa. Seu colega puxou o zíper e a abriu. Ficou imediatamente claro para todos os que estavam em volta o que havia sido farejado pelo cachorro. Pois, francamente, não era necessário um faro apurado de cão para descobrir aquilo. – Pelos diabos, o que é...? – perguntou o agente da alfândega. Seu colega tapou o nariz e ele começou a tirar as roupas da mala com as pontas dos dedos. Para quem estava olhando devia parecer que minhas roupas estavam com um fedor repugnante. – Queijo suíço de Entlebuch – esclareci, enquanto meu rosto provavelmente tomava uma cor parecida com a do sutiã vermelho que o homem tinha acabado de tirar da mala. – Dois quilos e meio de queijo suíço. – No entanto, eu tinha esquecido que ele fedia tanto assim. – O gosto é melhor do que o cheiro, sério! Âmbar, o cachorro imbecil, se sacudiu todo. Ouvi as pessoas darem risinhos, os verdadeiros contrabandistas com certeza estavam se deliciando. O que o belo garoto de cabelos 11


castanhos estava fazendo, eu não queria nem saber. Provavelmente, estava muito feliz de não ter pedido o número de meu celular. – É isso que eu chamo de um esconderijo genial para drogas – disse alguém a nossas costas. Lancei um olhar para Mia do outro lado e dei um suspiro pesado. Mia também suspirou. Estávamos realmente com pressa. Mas foi muito ingênuo de nossa parte pensar que era só o queijo o que nos separava de uma vida maravilhosa. Na verdade, o queijo só fazia durar mais o tempo no qual acreditávamos piamente ter uma vida maravilhosa a nossa espera. Outras meninas provavelmente sonham com coisas diferentes, mas não havia nada que eu e Mia desejássemos mais do que um lar verdadeiro. Que durasse mais de um ano. E com um quarto para cada uma. Essa era a nossa sexta mudança em oito anos e isso significava seis países diferentes em quatro continentes distintos, seis recomeços em uma nova escola, seis vezes encontrar novos amigos e dizer “adeus” outras seis. Éramos especialistas em fazer e desfazer malas, reduzíamos nossos bens privados a um mínimo possível e é fácil adivinhar por que nenhuma de nós tocava piano. Mamãe era doutora em literatura (com dois doutorados) e era designada quase todo ano para uma cadeira de docente em uma universidade diferente. Até junho moramos em Pretória, antes disso em Utrecht, Berkeley, Hyderabad, Edinburgh e Muni12


que. Nossos pais se separaram há sete anos. Papai é engenheiro e tem o espírito tão errante quanto mamãe, ou seja, troca de residência com a mesma frequência que ela. De modo que nem mesmo as férias nós passávamos num lugar fixo, mas sempre onde papai estivesse trabalhando. Agora ele trabalha em Zurique e é por isso que as férias desta vez foram fantásticas (com direito a diversos passeios pelas montanhas e uma visita à Reserva de Entlebuch), mas, infelizmente, nem todos os lugares nos quais ele já foi parar eram bonitos. Lottie disse certa vez que devíamos ser gratas por poder conhecer tantos lugares do mundo com nossos pais, mas francamente, quando se é obrigada a passar o verão no subúrbio de uma região industrial em Bratislava, a gratidão tem limite. A partir do outono, no próximo trimestre, mamãe lecionaria no Magdalen College, em Oxford, realizando assim um de seus maiores desejos. Há anos que ela sonhava com uma cadeira em Oxford. E com a casinha estilo cottage do século xviii situada um pouco fora da cidade, também um sonho nosso se realizaria. Teríamos finalmente uma residência fixa e um verdadeiro lar. Nos prospectos da imobiliária, a casa parecia aconchegante, romântica e repleta de mistérios maravilhosamente assombrosos, do porão ao sótão. Tinha um grande jardim com velhas árvores e um celeiro, e dos quartos do sobrado a vista se estendia – ao menos no inverno – até o rio Tâmisa. Lottie tecia planos de plantar uma horta, fazer geleia caseira e virar membro da união de agricultoras, Mia pretendia construir uma casa na árvore, comprar um barco a remo e amestrar uma coruja, e 13


eu sonhava em achar uma velha caixa cheia de velhas cartas no sótão e desvendar os mistérios da casa. No mais, sonhávamos em pendurar um balanço nas árvores, de preferência um estrado de ferro enferrujado, sobre o qual se pudesse deitar e olhar para o céu. E pelo menos a cada dois dias organizaríamos um verdadeiro piquenique inglês e a casa exalaria o cheiro dos biscoitos caseiros da Lottie. E talvez de fondue de queijo, pois o nosso bom queijo de Entlebuch foi estraçalhado diante dos nossos olhos pelos agentes da alfândega em pedaços tão minúsculos que não se poderia fazer outra coisa com ele. Quando enfim chegamos ao pavilhão de desembarque (não infringia nenhuma lei trazer quilos e quilos de queijo para a Inglaterra para o próprio consumo, ainda que não servisse mais como presente para Lottie), mamãe precisou de menos de um minuto para desmantelar nossos sonhos de vida rural britânica como se fossem uma bolha de sabão. – Houve uma pequena mudança de planos, fofuras – disse ela logo depois de nos dar as boas-vindas, e, apesar de seu sorriso radiante, a consciência pesada estava estampada em sua testa. Um homem com um carrinho de bagagem vazio apareceu por trás dela e, mesmo sem olhar diretamente para ele, já sabia quem ele era: a mudança de planos em pessoa. – Odeio mudança de planos – murmurou Mia. Mamãe continuou forçando o sorriso. – Essa aqui vocês vão amar – mentiu. – Bem-vindas a Londres, a cidade mais fascinante do mundo. 14


– Bem-vindas a casa – acrescentou o Sr. Mudança de Planos com uma voz calorosa e grave, colocando nossa bagagem sobre o carrinho. Eu também odeio mudança de planos, odeio do fundo do coração.

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