Hoje é o último dia do resto da sua vida Ulli Lust Tradução Augusto Paim
Diário de 1981, tenho 13 anos
Quando olho pra trás, sempre penso que vou me deparar com aquelas lembranças inocentes que achamos que as crianças pequenas têm. Mas não encontro nenhuma. Quando eu tinha 9 anos, por exemplo, pensava: já sou muito velha, já sou tão sensata. E estranhamente penso isso até hoje. É tão estranho. Que tipo de ser humano sou eu, afinal? Sou mesmo um ser humano? Simplesmente não chego a nenhuma conclusão, algumas vezes estou melancólica, outras me comporto de forma totalmente estúpida, cometo erros e então fico transbordando de energia, parece que vou explodir. Como agora. Meu corpo inteiro está coçando, é horrível.
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Diário, 1984
Em algum momento, aos 14 anos, eu acreditava estar vivenciando algo; aos 15, me sentia mais experiente do que os outros; aos 16, já tinha vivido mais coisas do que muita gente aos 40; agora tenho 17 e estou com dor de dente. Deveria ter ido ao dentista hoje, não consegui acordar. Tá, e daí? Sou anarquista, hoje vou procurar um otorrino e colocar um piercing no nariz. Tá, e daí? Vive l’anarchie! Vou fazer uma tatuagem – talvez.
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e Olhar também pod ser interessante.
Os outros com certeza acham que sou uma chata, porque falo pouco...
Você não me ouviu? Perguntei se você me faz um boquete!
Tá achando que não tenho nojo de nada?
Falar com quem, afinal de contas?
Tsc... ela não tá a fim.
Então você pode só bater uma pra mim.
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I. o VERテグ
Valeu!
Alguém tem fogo?
Ei! Tem um cigarro aí?
Minha irmã mais velha, com quem eu dividia um apartamentinho em Viena, passou as férias de verão com nossos pais, no interior.
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He he! Mais um!
Belo truque!
A gente tinha que tentar pescar cerveja.
É isso aĂ! Ou baseado.
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Ulli...
... ela diz que é sua mãe.
Quietos, por favor!
Tudo bem?
São só amigos me visitando. Sim... não.
Argh
... não, ainda não.
Escuta, não estamos gostando de você querer continuar em Viena. Se não arranjar trabalho em duas semanas, você vem pra casa!
Já que largou a escola, pode muito bem voltar a morar em casa!
Você pode fazer um curso de vendedora com o Biedermayer em Haugsdorf, a sra. Biedermayer é minha prima, com certeza vai te aceitar. E isso também tem a ver com moda.
O que é que eu vou fazer no interior? Aí nunca vou encontrar trabalho!
Ai, céus!
Por que ela sempre tem que fazer tempestade em copo d’água?
Pelo amor de Deus! Você tem que começar a dar um jeito na sua vida!
Por que não volta pro colégio em Hollabrunn? Se fizer aulas de reforço em latim durante o verão, só vão faltar três anos até o vestibular...
Pfff
Que ideia absurda!
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Minhas avós eram mulheres batalhadoras. Uma delas deu à luz treze filhos e recusou a Cruz de Honra das Mães Alemãs, dos nazistas. A outra educou sozinha o Franz, seu primogênito, até o pai retornar da guerra. Franz casou com uma garota loira e pálida do vilarejo vizinho. Suas três filhas cresceram saudáveis, sob a proteção de uma família grande e muito ramificada. A mãe, membro do conselho paroquial e presidente do Clube de Mães, era para elas um exemplo de soberania feminina. Nosso vilarejo, a setenta quilômetros de Viena, ficava no lado ocidental da Cortina de Ferro. Quando crianças, costumávamos ficar junto da fronteira no vinhedo do meu avô, com os dedos enfiados nos vãos da cerca, trêmulas, sentindo um medo prazeroso de que atirassem em nós lá do outro lado. Aos 15 anos, cheguei a Viena, para frequentar uma escola técnica de design de moda.
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Não se preocupe, vou procurar trabalho.
Você não sabe o que está dizendo!
A gente precisa de um lápis, duas agulhas, linha e tinta.
Seria melhor se você pudesse aprender alguma coisa!
Aff
Com certeza você sabe mais do que eu!
Material de costura havia de sobra, pois minha irmã estava fazendo um curso de costureira. A tinta nós retiramos dos cartuchos de uma caneta-tinteiro que eu não usava mais.
Quero mesmo aprender, mas não numa escola!
Sem dúvida!
A linha absorve a tinta e leva a cor até a ponta da agulha, ponto a ponto...
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Ai!
Não se mexe! Tô perfurando só a primeira camada da pele.
Eu adoraria fazer mais uma acima dos peitos. E o que você quer?
Isso!
: TOS MOR DOS is O r à seu Osí ALC O F Ísis e o com e US, s. s d HÓR lho de mun e asa Morto o d i o f evoa bater o dos r n sob eroso o Rei pod vessa a atr
Wickerl, você me tatua uma caveira?
Quero uma caveira gigante nas costas! Tatuar as suas costas?
Não, obrigado. Você tem um monte de espinhas cheias de pus, seria um massacre.
Ah, vai!
Ulli, não entendo como você consegue fazer carinho no Gerry. Não dá nojo?
Ele faz o meu tipo.
Não seja assim, Wickerl!
Dá só uma olhada nos ombros largos, aqueles braços... e acho maneiro o piercing no nariz! Tem razão, a bunda dele é muito sexy.
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Ei, Günther, para de ficar olhando pra minha bunda! Me deixa nervoso!
Uau, é bem fácil!
Tímido!
E então? Ela tá fazendo direitinho? A caveira tá ficando da hora?
De que caveira ele tá falando, Günther?
Vamos lá ver...
Para de se mexer!
Muito bom! Ela tá caprichando! Muito legal essa geladeira!
O quê?!
Tão ? malucos?
Pode !! parar já
Ei!
A porta tá aberta e tem um monte de cerveja dentro. Ela tá tatuando uma geladeira perfeita na sua lombar.
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Nós chamávamos muita atenção quando circulávamos juntos pela cidade. Reuni numa lista os comentários do povo vienense:
Vocês foram atropelados pelo metrô? Tomou um choque elétrico, foi? Um aparador de grama passou por cima de você, foi? Tá na hora de voltar pro cabeleireiro! Faz tempo que você não vê um pente. Você parece a Cyndi Lauper. Vocês são do teatro? Deve ter algum circo por aqui. Olha, devem ser do elenco de Cats. O Carnaval já passou. Olha, aqueles lá são roqueiros. Olha, aqueles lá são punks. (cochichando entre si, hesitantes:) Pois é, agora isso é moderno. Ora, com vocês ninguém vai casar!
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