José Ortega y Gasset
VELÁZQUEZ
Tradução e organização | Célia Euvaldo
SÃO PAULO 2016
| Sumário |
Apresentação à edição brasileira, por Carlos Zilio . . . . . . . Nota à presente edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
VII XV
Velázquez Prólogo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução a Velázquez – 1943 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A revivescência dos quadros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Terceira aula [1947] . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Para o tema: influência de Caravaggio . . . . . . . . . . . . . . Formalismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Temas velazquianos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Introdução a Velázquez – 1954 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A fama de Velázquez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Sua revolta contra a beleza . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Velázquez e o ofício de pintor . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Um puritano da arte . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As fiandeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . A pintura como pura visualidade . . . . . . . . . . . . . . . . A fauna de Velázquez . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os quadros . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Bodegones . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Quadros religiosos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Retratos . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Velázquez na Itália . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Mitologias . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As fiandeiras . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . As lanças . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Príncipes, anões, bufões e loucos . . . . . . . . . . . . . . . Las meninas ou A família . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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Obras de Velázquez citadas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Índice de nomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Caderno de imagens . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
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| Introdução a Velázquez – 1943* |
I Velázquez nasce em 1599, Ribera em 1591, Zurbarán em 1598, Alonso Cano em 1601, Claude Lorrain em 1600, Poussin em 1593, Van Dyck em 1599. Todos esses famosos pincéis pertencem à mesma geração. Entre as penas espanholas mais conhecidas na Europa e coetâneas de Velázquez estão Calderón, 1600, e Gracián, 1601. Sem dúvida, convém apresentar nosso pintor movendo-se entre essa fauna de pena e pelo. Por outro lado, surpreenderá a advertência – e faço-a precisamente para produzir determinado choque no leitor – de que a essa geração também pertence Descartes, nascido em 1596. A vida de Velázquez é uma das mais simples que alguém jamais viveu. Se considerarmos a estatura de sua figura histórica, é * Publicado em alemão em Velázquez. Berna: Iris Verlag, 1943, e a versão em espanhol em Papeles sobre Velázquez y Goya. Madri: Revista de Occidente, 1950.
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estranho possuirmos tão poucos dados sobre essa vida. O historiador costuma ser extremamente voraz em matéria de dados: todos lhe parecem insuficientes. Apresenta-se diante de nós quase sempre insatisfeito e faminto até o ponto em que, comovidos, temos vontade de falsificar alguns dados para atirá-los entre seus dentes, de forma que ele tenha o que mastigar. A razão dessa incontinente “dadofagia” é que o historiador procura, de costume, evitar fadigas para a cabeça e preferiria que a história se compusesse por si mesma, espontaneamente, como as ilhas de coral – pelo acúmulo de dados. Mas o fato é que, mesmo que possuíssemos todos os dados imagináveis, ainda assim não teríamos história; e, com muito menos dados dos que já existem, algo que se assemelhasse a uma história humana poderia, mesmo vagamente, existir. No caso de Velázquez, a escassez de dados tem um caráter curioso. Sabemos pouco de sua vida, mas esse pouco revela-nos que, a rigor, não precisamos saber mais, porque é o suficiente para revelar que em toda sua vida uma única coisa importante se passou, entre o que se pode averiguar a partir de dados: ser nomeado pintor do rei no começo da vida. Foi em 1623; portanto, quando tinha apenas 24 anos. O resto da vida visível de Velázquez é uma desconcertante cotidianidade. Costuma-se citar outros três fatos que quebram a monotonia dessa longa existência. Pois Velázquez morre aos 61 anos, precisamente na idade que os antigos – mais observadores do que nós da difícil realidade que é viver – consideravam como a mais perigosa e da qual Augusto, num dos poucos fragmentos de suas cartas que nos chegaram, nos diz alvoroçado que acaba de ultrapassá-la. Esses três fatos são: a convivência com Rubens, que está em Madri por oito meses em 1628-1629, e as duas viagens à Itália, em 1629 e em 1649. Não pretendo decretar – e menos aqui, onde não posso estender-me em provas e dis8
cussões – que esses três fatos nos sejam indiferentes, mas afirmo que não são realmente importantes. Não se deve empregar os adjetivos a esmo. Em uma biografia um fato é importante quando ao suprimi-lo, mediante um Denkexperiment, uma construção imaginária, vemo-nos forçados a modificar, também imaginariamente, a trajetória dessa existência. Isso aconteceria se fantasiássemos que Velázquez não fora nomeado “pintor do rei” ou que tivesse chegado a essa honra e a esse posto em idade muito mais avançada. Teríamos tido então outro Velázquez; logo veremos qual. Teria sido como se imaginássemos um Goethe sem Weimar. Eis aí, decerto, um tema para um livro formidável que já deveria ter sido escrito: Goethe sem Weimar! Ora, nada pode nos convencer que a obra e a vida de Velázquez, sem as duas viagens à Itália, teriam sido diferentes. Seria preciso apenas suprimir A forja de Vulcano, A túnica de José e A tentação de São Tomás de Aquino, os três quadros mais equivocados de toda sua obra: eles constituem um estranho parêntese sem relação – salvo, naturalmente, os traços gerais de sua maneira de pintar – nem com os anteriores nem com os posteriores. Dessas viagens, o único efeito claro que percebemos em Velázquez é que ele volta sempre tonificado, como quem volta de uma cura ao ar livre. Maior foi o influxo do encontro com Rubens, que facilitou sua libertação íntima ajudando-o a perfurar a película de provincianismo que envolvia a vida espanhola daquele tempo, apesar de a Espanha ainda ser o poder preponderante no mundo. Mas ninguém que tenha tentado fazer uma imagem precisa do homem que era Velázquez pode duvidar que ele não teria tardado muito mais em romper, por iniciativa própria, essa crosta limitadora. Trata-se precisamente de uma das criaturas mais resolvidas secretamente – isto é, sem gesticulações nem retórica – a existir 9
a partir de si mesma, a obedecer apenas a suas próprias decisões, que eram extremamente tenazes e indeformáveis. Feitas essas reservas, não há inconveniente em dizer que a vida de Velázquez articula-se espontaneamente em quatro períodos, da seguinte maneira: 1. 1599-1623. Diego de Silva Velázquez nasce em Sevilha, de uma família oriunda de Portugal por parte de pai, os Silva, do Porto. O avô havia emigrado para a Andaluzia arrastando algumas posses, ainda que modestas, e uma profunda tradição doméstica de antiga e alta nobreza. Muito cedo, Diego revelou dotes extraordinários para o desenho e a pintura. Aos treze anos entra como discípulo no ateliê de Francisco de Herrera, homem atrabiliário, artista mais impetuoso que talentoso, mas que caminha por boas vias. Não se pode negar que Herrera, o Velho, embora pintor sem qualidade, bracejava nas inovações artísticas da época. Poucos meses depois, espantado sem dúvida pelo temperamento feroz daquele mestre, Velázquez, que em toda a vida teve aversão pelas discussões, transmigra para o ateliê de Francisco Pacheco, como se passa de um polo a outro. Pacheco era um mau pintor, mas excelente homem, de ampla cultura, de modos afáveis e relacionado com a gente ilustre de Sevilha – artistas, escritores, nobres. Cinco anos depois – em 1618 – Pacheco casa Velázquez, ainda adolescente, com a filha Juana de Miranda. Essa mulher o acompanhará caladamente toda a vida e, inversamente, não se conhece nenhum outro envolvimento de Velázquez com o “eterno feminino”. Juana de Miranda se extingue uma semana depois do marido no mesmo quarto onde ele havia expirado. 2. 1623-1629. Em 1621, morre Filipe III e sucede-o o jovem Filipe IV: seis anos mais novo que nosso pintor, ele próprio um apaixonado pela pintura que havia praticado sob o ensino de Maíno. Filipe IV deposita o governo nas mãos do conde duque 10
de Olivares, nascido numa família sevilhana da mais antiga e alta estirpe: os Guzmán. Do mesmo modo que os chefes políticos de todos os séculos, ao chegar ao poder o conde duque apresenta-se com equipe própria, escolhida entre sua clientela. Seus amigos são sevilhanos e são os amigos de Pacheco. Velázquez é enviado a Madri para tentar a sorte e, na mesma oportunidade, ampliar sua educação artística visitando as coleções de Madri e do Escorial. A mudança política é ainda muito recente, são dias de intensa agitação no palácio, e a ocasião para Velázquez brilhar ante o novo monarca não se apresenta. Em contrapartida, pinta um magnífico retrato do poeta Góngora [Luis de Góngora y Argote] (uma maravilhosa cabeça de grande intelectual ressentido, uma má pessoa, como tantos ilustres poetas). Velázquez volta fracassado a Sevilha, mas poucos meses depois é oficialmente chamado ao palácio, com ajuda de custos para a viagem. Na equipe do conde duque, Velázquez representará a pintura. Chega a Madri e imediatamente faz um retrato do rei. A obra produz tal entusiasmo em Filipe IV que este o nomeia em seguida seu pintor de câmara e promete não se deixar retratar por mais ninguém. Velázquez viverá sempre adscrito ao palácio; só deixará um de seus aposentos quando o retirarem para ser enterrado. Note-se: em sua vida veem-se uma única mulher, um único amigo – o rei –, um único ateliê – o palácio. A partir desse momento, que é quando propriamente começa, a vida de Velázquez oferece ao observador um equívoco radical: não se sabe se é a vida de um pintor ou a de um palaciano. Em um ritmo normal receberá um após outro os cargos e as dignidades que constituíam a carreira de um servidor do rei, até o importantíssimo de “aposentador-mor”*. Tudo isso resultará, como * Aposentador-mor: oficial responsável pelo alojamento do rei e das outras pessoas da corte quando em viagem.
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é de rigor, na concessão a Velázquez de um hábito de Santiago, ou seja, de nobreza. Em 1628 Rubens chega a Madri. Ele está no auge de sua fama universal. É enviado pela arquiduquesa, governadora dos Países Baixos, tia de Filipe IV, para encarregar-se de uma missão diplomática junto ao rei da Inglaterra. É importante sublinhar as tarefas alheias à arte com que, nessa época, os pintores devem se ocupar, pois isso revela melhor do que qualquer coisa o poder social que a pintura havia desfrutado nas sociedades europeias, e só essa exuberância de prestígio nos explicará certas qualidades paradoxais da obra velazquiana. Velázquez acompanha Rubens durante os oito meses de sua permanência em Madri. É o primeiro grande artista europeu com quem Velázquez entra em contato, e quis o acaso que à sua estirpe profissional se juntasse um homem do mundo, um grande empresário da indústria pictórica, um político e um turbilhão de vida próprio a um grão-senhor. Essa presença faz Velázquez entrever que o mundo, inclusive o mundo da arte, é maior do que até então acreditava. Pode-se atribuir a essa convivência com o flamengo o impulso de se libertar da Espanha por um momento e conhecer outras terras. Com o pretexto de comprar quadros para o rei, embarca em Barcelona em 10 de agosto de 1629 com destino a Gênova. Segue com ele nas galeras Ambrogio Spinola, o conquistador de Breda. 3. 1629-1649. Gênova, Milão, Veneza. Em seguida desce até Bolonha. Visita Loreto. Três anos antes Descartes estivera ali para cumprir uma promessa feita à Virgem por ter recebido a inspiração da geometria analítica. Por fim, Roma e Nápoles. Nessa cidade conhece o pequeno espanhol dos martírios e das Madalenas, Jusepe Ribera, e se relaciona com ele. 12