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Prólogo Escrever uma história é sempre um exercício difícil. Escrever uma história que é a nossa mais difícil ainda. Quando é feita a quatro mãos, com a barreira da língua a querer travar o processo, parece uma tarefa impossível. Mas, só há impossíveis se não os derrubarmos. Há sempre uma passagem para chegar ao outro, para deixar o outro chegar a nós. Só nos podemos encontrar na alteridade. Só assim nos podemos compreender, aceitar. A vida revela-se, plena, nas situações limite. É aí que encontramos, ou não, a nossa humanidade. Esta história pretende ser um relato que podia ser feito por qualquer um de nós, em diversas circunstâncias, tempo e lugares. 4
O nosso único desejo é que ela vos faça parar e pensar um pouco. Todos nós não passamos, a maior parte das vezes, de um dado lançado pela sorte. Não pretendemos uma exposição gratuita da intimidade mas, dar um testemunho do que pode ser uma vida diversa daquelas que habitamos normalmente. Esperamos que a vejam como uma história de amor. Amor ao outro, à diferença, à diversidade. Amor à independência e à liberdade.
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CAPÍTULO I
Mosul 6
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O Tigre corria tranquilo acompanhando os cheiros, os sabores e os sons da cidade e eu criança seguia a rotina dos dias sem a questionar. Na minha vida não existia lugar para preocupações ou angustias. Aqueles eram dias alegres em que íamos todos passear de barco no rio e ver a cidade passar diante dos nossos olhos. A vida a desfilar com a fluidez da água corrente . De todas as vezes era a mesma animação que contagiava todos, dos mais novos aos mais velhos. A vida não tinha sobressaltos nem contrariedades que me impedissem o desfrutar de
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uma infância feliz. Talvez um pouco mimado talvez um pouco traquina, como qualquer filho mais novo de sete irmãos mas, sempre rodeado de muito amor numa família que se alargava até aos tios e primos. A escola foi feita não tanto por convicção mas mais por obrigação. As aulas seguiam-se umas às outras mas a minha cabeça estava sempre a desejar que chegasse o último toque para correr para o talho da família onde, desde pequeno, adorava passar todos os tempos livres. Podem pensar que era um lugar estranho para um miúdo gostar mas eu adorava ver toda aquela movimentação de animais e pessoas. Todo o ritual, desde a chegada, o abate, até ao momento em que comprador levava a carne para a sua refeição. Todo o processo fascinava-me. Mais do que a escola, o talho foi o cenário da minha infância e juventude. Foi aí que aprendi a minha primeira profissão, que tomei consciência da importância do trabalho, do rigor e carinho que se deve pôr em tudo o que se faz. 9
Em 2004 terminei a escola. Estava desejoso por ir trabalhar no negócio da família com o meu pai e irmãos. Foi neste mesmo ano que perdi o primeiro dos meus irmãos. Um dos que o DAESH levou. Era polícia e tinha vinte e sete anos. Em 2007, morreu outro irmão, policia também e tendo no mesmo responsável a causa da sua partida tão cedo, com apenas 32 anos. Os restantes, continuámos com o nosso trabalho no talho. E assim, a minha vida esteve concentrada na arte de corte e venda de carne, até 2010.
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A nossa família sempre foi muito chegada, os filhos foram casando mas ficaram a viver, ou a ser presença frequente, na casa grande. Era bom tê-los a todos por perto. Consegui guardar o meu primeiro dinheiro e, então, achei que tinha chegado a hora para abraçar novos projectos. Tornar-me financeiramente independente da família e encontrar o meu caminho. O primeiro passo foi o negócio do táxi. Em 2009 comprei um belo automóvel por 13.000us$. Era um bom negócio ter um táxi em Mosul naquela altura. Com o dinheiro que fui ganhando e com o que tinha guardado,em 2011, abrir um café. Um sonho antigo agora concretizado. O café estava bem localizado e tinha uma excelente clientela. Tinha bons empregados e eu não precisava de estar lá permanentemente para que o negócio florescesse. O facto de ter vários policias na família levou muitos dos seus colegas a frequentarem o 11
meu espaço. Mas também membros do governo e outros clientes importantes eram vistos no café. A vida seguia o seu curso. O café prosperava e, com o meu taxi, eu era um homem livre e feliz. A minha vida tinha um rumo. Fazia sentido. Tinha dinheiro para viver confortavelmente, sustentar alguns vícios e ainda colocar algum de lado. E era sempre acompanhada de música. Música iraquiana que cantava todos os dias com os amigos acompanhando uma bebida, uns grelhados ou simplesmente quando estávamos juntos gozando o prazer de estar vivo. Não podia querer um início de vida mais auspicioso. Tudo corria bem, não fora mais um momento triste na família. A minha mãe deixou-nos em 2012. Sendo o filho mais novo, foi uma perda muito dolorosa e difícil de ultrapassar. A família reduzia-se. o meu irmão rapaz mais 12
próximo, o outro irmão policia, tinha partido para a Europa e desde 2008, vivia longe do Iraque. São, no entanto, estes os empurrões que nos endurecem e nos obrigam a ir mais longe e comigo assim foi. Eu avancei. Trabalhava com prazer. O meu taxi era o meu orgulho. Tinha-o sempre impecável, chegando mesmo a lavá-lo duas vezes por dia para lhe retirar o pó do calor de Mosul. Era um jovem, com independência financeira, um futuro pela frente e sem preocupações no horizonte. A vida sorria-me. Sempre tive um espirito aberto, sem grandes fanatismos. A minha religiosidade era vivida de uma forma mais pessoal do que pública. Tinha aprendido a tolerância e o respeito pelos outros dentro da minha família. Sou de uma geração que se habituou a ter o mundo ao seu alcance através da internet, em que as diferenças culturais se foram esbatendo e em que os princípios e objectivos na 13
vida são cada vez mais comuns, independentemente do sitio onde nasces ou onde vives. Um jovem com 20 anos de Mosul, nestes dias, tinha muito mais em comum com um outro de Lisboa, Istambul ou Toronto do que se possa imaginar. Os sonhos eram os mesmos e a vontade de os concretizar também. Mais do que tudo, esses sonhos estavam a tornar-se a cada dia mais reais. Eu tinha uma vida muito, muito boa. Mas, sem que me desse conta, os radicais do DAESH tomaram Mosul e fizeram-na capital do seu auto proclamado Califado, em Junho de 2014. Nesta altura, estava eu a sonhar com uma vida bonita, igual à minha infância e juventude e não percebi como tudo estava prestes a desmoronar-se para sempre. O sonho a transformar-se num infindável pesadelo.
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CAPÍTULO II
O DAESH 16
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O que mudou? Tudo! Invadiram a cidade, tomaram o poder e transformaram-se no poder. Autoritário, e tendo a violência gratuita e absoluta como braço armado, o fanatismo religioso como mote ideológico. Não estávamos à espera de toda esta agressividade e arbitrariedade. O meu café, era um ponto muito activo na vida da cidade.Um dia, logo no início da sua chegada a Mosul, os elementos do DAESH entraram pelo café adentro e disseram que ou começava a colaborar com eles ou teria problemas. Queriam os nomes e moradas dos meus clientes para os poderem identificar e prender. E talvez algo mais. Disse-lhes que não. Não podia dar essas informações.Não podia entregar os amigos dos meus irmãos, os meus amigos e os que nos tentavam defender daquela morte negra que caíra sobre nós. Então, sob as acusações de ser fumador, 18
vestir à ocidental, e outras do género, fui preso e sumariamente condenado a oitenta chicotadas. Não sei quantas contei antes de perder, finalmente,os sentidos….. Sei que fiquei uma semana num estado de inconsciência completa. Com a carne dilacerada e sem qualquer resto de pele nas costas. Demorou a recuperar, o médico mal sabia por onde começar a fazer o tratamento. Mas, acima de tudo, foi um choque de realidade que me deixou sem capacidade de reacção. A vida que até então tinha vivido não me tinha preparado para uma coisa assim. Nem mesmo a morte dos meus irmãos, combatendo a besta, me tinha alertado para uma tão grande mudança de regras, de princípios, de tudo. A seguir, a essa primeira prisão, vieram mais três. Sempre com a mesma acusação. Eu era um herege e um fumador.
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Era uma pressão constante para que cedesse, para que colaborasse. O café estava fechado, o taxi estava parado. A vida estava parada em Mosul. O DAESH tomou conta de tudo. A guerra tomou e destruiu tudo. Não era mais possível seguir a vida normal. A normalidade desapareceu. Só o medo e o horror cresciam a cada dia que passava. Amigos, vizinhos, conhecidos eram levados, presos, mortos pelos mais diversos e absurdos motivos. Surgiam cada vez mais valas cheias de cadáveres de jovens iraquianos abatidos indiscriminadamente. O rio estava tingido do sangue dos que eram mortos e para lá lançados, diretamente dos camiões onde eram transportados ,como animais para o abate. A cidade a cada dia mais destruída pelas 20
bombas e rajadas de metralhadora. O isolamento em que ficámos com o bloqueio no acesso à internet deixava-nos perdidos e sem referências. O DAESH protegia-se e para isso todas as armas eram legitimas. Todos os métodos possíveis. O medo e a morte a tomarem conta de toda a cidade. Depois de alguma ponderação, de falar com os que me eram mais próximos, vendi o meu taxi por 5,000us$. Foi o máximo que consegui. Não havia mais nada a fazer. O sonho tinha de ficar para trás. E aí, o meu pai, chamou-me e disse-me, com a voz firme “Filho, quero que vás embora. Tens de partir. Não quero chorar a tua morte. Já estou cansado de chorar a morte dos meus filhos”. Não é fácil ver o nosso velho pai, de oitenta anos, dizer estas palavras. Não, quando fica 21
apenas acompanhado por uma filha deficiente e sabe que pode pode ser a última vez que vê o filho, a quem pede para partir. Mas com dois filhos assassinados e um longe ele sabia que eu ou partia ou morria. As escolhas eram limitadas. Consegui um contacto através de um dos meus irmãos e resolvi partir para a Síria. Despedi-me do meu pai e irmãos, das minhas irmãs e dos meus sobrinhos. Estava pronto para abandonar o Iraque. Até quando… Estava na hora de deixar Mosul, a minha casa, deixar tudo o que conhecera até então. Deixar uma vida que se estava a tornar cada vez mais perigosa de ser vivida. O simples facto de estar vivo era suficiente para afrontar os senhores da guerra e do fanatismo religioso. A qualquer momento podia ser, de novo, preso ou morto.
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Medo do desconhecido? O medo do conhecido era muito maior. O que me aguardava ali não tinha presente nem futuro. Parti. Uma longa jornada me aguardava. Fhad, um amigo de Mosul, partiu ao mesmo tempo e foi acompanhando e vivendo comigo os percalços e aventuras que a vida nos foi colocando à frente. Para nos pôr à prova, talvez para testar a nossa amizade, a nossa própria humanidade.
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CAPÍTULO III
O caminho da Síria 24
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O meu contato tinha encontrado uma forma eficaz de me passar para a SĂria. Era uma viagem arriscada. Sair do centro do furacĂŁo sem levantar suspeitas, naquela altura, era muito perigoso. Por 1.000,00 us$, consegui um lugar dentro de um camiĂŁo cisterna que fazia o percurso
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entre os dois países. Foi um dos momentos mais intensos da minha vida e que me deixaram uma memória física, visceral. O depósito do camião tresandava ao cheiro do petróleo que costumava transportar.
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Fomos, um a um, escorregando pela escotilha de abastecimento para o fundo do tanque, até não caber mais ninguém. Assim que entrávamos, íamo-nos acomodando àquele espaço escuro, onde o ar que se respirava era um bafo quente, metálico, com sabor a escape de automóvel. Éramos tantos quantos os que conseguiam entrar, nem mais nem menos. Havia adultos, crianças, bebés. É impossível descrever o que foi aguentar aquele cheiro que se agarrava aos nossos pulmões, para lá da nossa capacidade de respirar. Não conseguia pensar, sentir. Só queria não voltar a experimentar as náuseas e o desespero que enchiam por completo aquele espaço de uma claustrofobia sufocante, ultrapassada apenas pelo medo da morte e do sofrimento que nos esperava se ficássemos. Foram nove horas, dentro do depósito do camião cisterna, em que senti o hálito do meu vizinho entrar pelas minhas narinas, em que fizemos as necessidades pelas pernas abaixo, 28
juntando assim o cheiro da urina e fezes com o do petróleo. Foi pior do que alguma vez podia imaginar. Estávamos sentados tão juntos quanto era possível. Estranhos que me estavam mais próximos do que os meus próprios pensamentos. Uma mole humana que se movia ao ritmo das curvas da estrada que o camião ia percorrendo, numa escuridão e silêncio absolutos. Pedem-me para descrever, contar um detalhe, um pormenor desta viagem mas, a única coisa que consigo recordar, é a mais desamparada solidão, a indiscritível falta de humanidade que se viveu dentro daquele inferno sobre rodas, e o silêncio. Sempre o silêncio, que o medo do DAESH nos impunha, e nos fez resistir àquele inferno sem ouvir sequer o choro de uma criança. A partir de certa altura, o efeito alucinógeno do combustível misturado com o do calor insuportável deixou-nos num estado de letargia tal que nos impedia de percepcionarmos a 29
nossa verdadeira condição. Já não éramos seres humanos que íamos naquela cisterna, éramos apenas carga. Muito cara mas, muito pouco valiosa. Quando chegámos não queríamos acreditar que o pesadelo tinha terminado, que tínhamos finalmente atravessado a fronteira e deixado o Iraque para trás. Estávamos em Tell’Abiad, na Síria. Aquelas nove horas tinham-nos retirado as nossas capacidades mais elementares. As pernas mal se conseguiam aguentar de pé, os olhos readaptavam-se lentamente à luz. O simples respirar passava por reaprender o cheiro, a fluidez, o peso e a temperatura do ar que agora nos inundava as narinas e rompia caminho até aos pulmões atrofiados pela escassez anterior. Mas, mais do que tudo, estávamos a caminho da liberdade. E este fato fazia-nos esquecer imediatamente tudo o que tínhamos passado. 30
TĂnhamos chegado ao fim da primeira etapa. Muitas mais estavam por vir.
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CAPÍTULO IV
A Turquia 32
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O caminho seguia agora na direcção da Turquia. Um percurso que foi feito durante dois longos dias. Dias de muitos passos, de muitos metros de escalada, cruzando as montanhas a pé, com ajuda de um guia, pelo que paguei mais 700,00 us$. Um pequeno carreiro de formigas subindo por um monte de pedras. Tentávamos chegar junto da fronteira mais próxima. Era ali que íamos tentar a passagem para entrar na Turquia. Um passo difícil mas sem o qual não teríamos qualquer segurança relativamente ao nosso perseguidor, sem o qual não deixávamos de ser presas fáceis para ser capturadas pelas forças do DAESH e voltar ao pesadelo a que queríamos fugir. Atravessar não foi nem simples nem fácil. Os guardas estavam preparados para afastar todos os que tentassem passar, disparando sem se preocupar com as consequências. Cumpriam ordens. Afastavam os indesejáveis. 34
Esperámos que caísse a noite, para que a escuridão nos desse alguma proteção contra os disparos vindos do outro lado. A única hipótese que tínhamos era correr, correr e esperar que nenhuma das balas nos atingissem ao longo daquela trincheira que nos separava do objetivo ali tão próximo. Ouvia-lhes o som, perto, muito perto, como que roçando os meus ouvidos. Não sei bem o que vi, pois, só conseguia correr e continuar a correr, até estar bem longe dali, num local seguro. Sem balas e sem guardas. Quando o perigo e o medo passaram, quando deixei de ouvir o barulho dos tiros dos guardas fronteiriços, respirei fundo. Talvez pela primeira vez desde que partira. Passar esta fina linha que me separava de um mundo mais seguro não significou o fim das dificuldades. Tinha ainda um longo e penoso percurso, a pé, até uma cidade próxima onde pudéssemos encontrar transporte. Foi um 35
esforço que durou cinco dias, por caminhos difíceis e afastados de tudo o que era local habitado. Contatei o meu amigo iraquiano que vivia em Istambul. Agradeço pela internet e por poder contar com a minha rede de amigos. Fui de Gaziantep, onde estava, até à capital, de autocarro, encontrar-me com ele. Conhecíamo-nos do Iraque e ele seria o meu contacto para me ajudar a preparar a travessia para a Grécia. Encontrar o porto de saída que me permitiria alcançar o meu destino. Fiquei apenas dez dias na Turquia, o suficiente para restabelecer as forças e preparar a nova etapa desta longa viagem em que me encontrava. Aqui, foi o primeiro lugar onde me senti seguro desde que saí de Mosul. Foi aqui que, em muitos dias, não precisava de estar permanentemente alerta, sem o medo como companheiro inseparável, persistente, impossível de largar. Entranhado nas roupas, no corpo, nos pensamentos, era 36
como um irmão siamês de que não me conseguia separar. Se, ao menos, pudesse usar uma das faca do talho que tantos anos me serviram para separar a carne dos ossos, da pele. Como agora gostava de poder separar este medo de mim. Separar-lo com a lâmina fria e exata de quem corta o que não presta, o que deve ser deitado para o lixo e ficar para trás. Mas, este passado, fará para sempre parte de mim, das minhas memórias mais vividas e, espero, mais longínquas. Embora as imagens do passado me acompanhem todos os dias, quero empurrá-las para uma prateleira afastada, substituídas por outras mais recentes e mais felizes. Não é bom lembrarmos demasiado o que nos faz infeliz.
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CAPÍTULO V
A travessia para a Grécia 38
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Tinha chegado o dia à tanto tempo esperado, 28 de Outubro de 2015. Finalmente ía entrar num espaço de liberdade, prosperidade, solidariedade. O sonho estava a umas quantas milhas de distância. E ao preço de 1700 euros, o valor pago ao dono do barco que me levaria de Esmirna até à ilha de Lesbos.
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Se olharmos para o mapa vemos que é uma pequena distância, tão pequena, se comparada com a viagem que já tinha feito, que só podia acreditar que o pior tinha ficado para trás e tudo iria correr bem. Poucas eram as horas que me separavam do refúgio que procurava. O barco tinha cerca de oito metros de
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comprimento e dois pisos. Para mim, naquele momento, era enorme, o que me dava uma sensação de segurança e a certeza de que ía conseguir chegar a Metilene sem correr grandes riscos. Agora, que estava praticamente no final, não valia a pena correr mais riscos do que os realmente necessários. Éramos mais de 300, os passageiros. Muitos disseram-me que tinham pago 2500 euros pela viagem. Homens, mulheres, famílias inteiras, crianças sozinhas. Havia de tudo. Mais uma vez, o sonho era comum entre tantos desconhecidos. Deixámos a Turquia e a bordo, a alegria misturada com a ansiedade, justificava-se pela cada vez mais próxima concretização de uma esperança, a do recomeço. Longe da guerra que tinha ficado no que parecia um outro mundo, uma outra vida. Conversávamos sobre como seria a etapa que se aproximava, já em solo da União Europeia. Será que conseguiríamos alcançar a Alemanha, a Suécia ou a Holanda?
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Os europeus, como nos iriam receber? Olhando o mar agitado que nos rodeava, todas as possibilidades estavam em aberto. A felicidade são apenas momentos, uns mais breves que outros, mas sempre e só momentos. A viagem não tinha começado nem há 30 minutos, quando naquilo que me pareceu menos de um minuto apenas, o barco afundou. Foi a pique, desapareceu engolido pelas águas do mar Egeu, sem que tivéssemos tempo para pensar sequer no que nos estava a acontecer. Como pode uma coisa destas suceder? Culpa de quem? Só ali, daquele grupo, mais de meio milhão de euros tinham sido entregues ao dono do barco. Devia ser uma travessia segura, tranquila, mesmo num mar algo agitado. De repente, vi-me rodeado de pessoas deses43
peradas, que não sabendo nadar nem tendo nada a que se agarrar morriam ali, debaixo dos meus olhos sem que pudesse fazer nada. Corpos a povoar um mar que devia ser de esperança e agora era um mar da morte. Cadáveres por todo o lado Como estava no deck de cima, quando caí à água, afastei-me do barco e, por isso, não fui ao fundo com ele como aconteceu a muitos dos que estavam no piso inferior e que não tiveram tempo sequer de tentar a fuga daquele que se transformou num enorme caixão flutuante. Depois do primeiro impacto na água, de algumas voltas sem saber onde nem como estava, senti que tinha de tentar manter a calma para poder sobreviver a mais esta adversidade, procurar algo a que me agarrar para ter alguma hipótese de salvamento. As minhas capacidades de natação, não sendo exemplares, tinham sido adquiridas no rio com os irmãos e amigos, eram suficientes para me manter durante algum tempo à superfície com o auxilio do colete que me tinha 44
custado 10 us$, na Turquia. Estava eu a tentar sobreviver naquele mar de morte quando, daquela agitação, das dezenas de corpos que tentavam manter-se à tona, ouvi os gritos desesperados de um pai com os seus quatro filhos e a mulher a pedir que o ajudassem. A uma bóia, estavam agarradas duas crianças, uma menina de dois anos e e um menino de quatro. Aterrorizados tentavam não largar a única coisa que os mantinha à tona de água. O pai lutava para os manter vivos mas tinha ainda a mãe e mais dois filhos, numa outra bóia, a lutarem contra as ondas que os afastavam uns dos outros. Das 3,04h até às 7,33 horas da tarde, daquele dia de outono, passaram as mais longas, difíceis e simultaneamente afortunadas horas da minha vida. A sorte e o azar entrelaçam-se para nos confundir e deixar incapazes de saber qual o caminho a seguir. Se é que temos algo a dizer sobre o nosso destino, sobre o que a vida nos reserva. 45
Podemos sempre fazer as nossas escolhas mas estas, a maior parte das vezes, são determinadas por todo um conjunto de circunstâncias, de pequenos acontecimentos que fazem toda a diferença. Os bebés, em choque, choravam e gritavam pela mãe. Tinham medo e frio, muito frio. Os corpinhos ficaram colados a mim e os três colados à bóia. Foi um instante, estiquei um dos braços e consegui agarrar aquela bóia de onde pendiam aquelas pequenas algas que balançavam, quase a soltar-se. Com o passar das horas, ao frio, juntaram-se também a fome e o cansaço que veio da luta contra as ondas que permanentemente nos batiam e tentavam vencer, separar uns dos outros. Pensei no meu pai, no pedido que me tinha feito. No motivo da minha presença ali. Pensei em desistir. Foram horas, minutos sem fim, ao longo dos 46
quais toda a minha vida foi questionada e totalmente esvaziada. Há medida que as ondas por mim passavam fui perdendo tudo o que me restava, roupa, dinheiro, documentos, a esperança. As forças eram cada vez mais escassas e a vontade de continuar cada vez mais diluída naquele mar que me parecia imenso, interminável. Se não fossem aquelas crianças, tão pequenas e indefesas, que continuavam a lutar para sobreviver e a lembrança dos pais e dos irmãos, agarrados a outra bóia, a tentar o mesmo e com os olhos postos em mim, não sei se teria conseguido. Nunca o tempo passou tão devagar, cada segundo parecendo uma eternidade. Nunca o mar me pareceu tão grande e ameaçador. A partir de algum tempo, já não sentia sequer as pernas, completamente dormentes, esgotadas de bater, de lutar. Apenas aqueles dois corpinhos gelados que tinha agarrados a mim me diziam que ainda estávamos vivos. 47
Anoiteceu, e as forças estavam a faltar. A esperança de podermos ser salvos estava a desaparecer rapidamente. Era completamente impossível resistir uma noite naquela situação. E foi nesse momento que chegou aquela fragata da guarda costeira. Uma equipa internacional, com um helicóptero que lançou sobre nós um feixe de luz. Primeiro, eles resgataram os bebés, depois foram os adultos que estavam mais debilitados e eu fui ficando para o fim. Até que estava completamente sozinho, naquele mar de escuridão. Um ponto flutuante sem qualquer referência. O feixe de luz do helicóptero oscilava nas ondas para cá e para lá e eu pensei que já não ia sair dali, que me tinham perdido e o mar Egeu seria a minha tumba. Mas, já não tinha mais forças ou vontade de resistir, de continuar. Fui o último a ser salvo. Puxado para o helicóptero, arrancado aos braços da morte que 48
me acariciava num desejo de tranquilidade e de descanso. Quando me vi em terra, só chorava e perguntava pelos bebés. Onde estão os bebés? Os bebés? Onde estão os bebés? Em hipotermia e vomitando convulsivamente, os irmãos,foram logo para o hospital mais próximo para uma tentativa de estabilização. A sua situação era muito delicada. Tinham estado demasiado tempo na água, ao frio, desidratados e sem comer. Só passado algum tempo os voltaria a ver, a saber da sua sobrevivência e de que todo o esforço tinha valido a pena. A família estava toda reunida, de novo. Tinham conseguido. Não era o único a chorar. À minha volta, os que tinham escapado àquele pesadelo choravam, riam, como que não acreditando que estavam ali, vivos, salvos. Não éramos muitos, os que restavam, se comparados com os que tinham partido de Esmirna no barco da esperança e agora da tragédia. 49
Não sobrou nada. Não sobrou nada. Voltei a sentir o meu corpo gelado, embrulhado no cobertor térmico que me tinham dado e, nesse momento, tive a consciência de que não me tinha restado nada. Só aquele cobertor que me enrolava o desalento. Não tinha mais nada do que tinha sido a minha existência anterior. Só a vida tinha ficado. A vida para conquistar de novo, a partir do zero, a partir do nada. Se ao menos, tivesse um cigarro para fumar.
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CAPĂ?TULO VI
O campo de refugiados 52
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Fomos levados para a Grécia, para um campo de refugiados na fronteira da Macedónia. Idomeni. O que iria acontecer agora? Não sabíamos o que iam fazer connosco. Qual ia ser o nosso destino? Foram dias muito difíceis. O que mais recordo do campo, é o cheiro. Um cheiro nauseabundo que se entranhou em nós e que nos fazia a todos iguais naquele campo imenso de seres sem identidade, nem mesmo no cheiro. Um amontoado de pequenas tendas, de pessoas, de vidas que procuravam organizar-se, tomar um rumo. Consegui manter o meu amigo Fhad próximo durante toda esta aventura. Agora, juntavam-se o Ashraf, o Wisam, o Belal e a mulher. Ahlam e a Shoroq com os seus dois filhos. Os outros dois e o marido 54
perdeu-os no caminho, no mar. Dois mortos e um filho desaparecido sem qualquer contato nem forma de o encontrar. Formámos uma pequena comunidade dentro daquele caos em que nos encontrávamos. Tentávamos organizar-nos pois não sabíamos quanto tempo ía durar esta nossa paragem. Os dias eram passados a jogar dominó e a conversar sobre o passado e sobre o que seria o futuro. Esperávamos que nos dessem um rumo, ansiávamos por saber qual seria a direcção que a nossa vida iria tomar. Como não tinha qualquer documento de identificação tive de fazer um registo baseado apenas na minha palavra. A minha identidade é a minha memória, tudo mais perdi pelo caminho. Ficámos cerca de mês e meio neste campo de acolhimento, sofrimento e esperança.
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O numero de refugiados aumentava a cada dia. Pessoas, tal como nós, que chegavam sem nada. O crescente vermelho deu-nos algumas roupas, os meus únicos pertences desde então. E recebi um telemóvel, que um amigo iraquiano aqui encontrado, me ofereceu. É o meu bem mais precioso, que me tem acompanhado desde então. Tem sido a minha conexão com a vida, com os amigos, com as recordações, com as notícias do Iraque. Tem sido o meu tradutor, o meu melhor amigo. As nacionalidades eram muitas e as origens e culturas diversificadas. Todos se misturavam mas, especialmente entre os magrebinos e afegãos, a violência era frequente. Mais do que entre qualquer outros. Os conflitos e tensões não desaparecem, nem mesmo quando a existência está num nível quase vegetativo. Outro tipo de violência, violações, por exem56
plo, não vi. A maior violência era mesmo a nossa situação. Depois de um período que nós pensávamos não terminar mais, perguntaram-nos se queríamos ir para um lugar seguro, para sermos recolocados. Dissemos todos que sim. Após tantos tormentos para fugir à guerra e à morte, o nosso maior desejo era encontrar um sitio tranquilo onde pudéssemos refazer a nossa vida e descansar de tanta incerteza. Encontrar um lugar a que pudéssemos chamar lar. Só isso. Agruparam-nos, por lugar de destino, e levaram-nos de Idomeni para apanhar o voo a Atenas. E, no dia 17 de Dezembro de 2015, depois de uma paragem em Madrid, onde ficaram alguns dos que nos acompanhavam, chegámos a Lisboa num voo cheio de esperança que se abria para o futuro. Um novo país entrava na minha vida. Algum 57
dia será meu ou é só uma passagem. Uma passagem segura. Ou talvez um momento de pausa na busca do reencontro com o país que deixei, com a minha vida, comigo mesmo. Sei que não vai ser fácil. Não vai ser fácil terminar esta guerra nem concertar o que se partiu dentro de mim. Quando perdemos a inocência o nosso olhar jamais volta a ver a vida como antes.
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CAPÍTULO VII
O aeroporto 60
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Vínhamos todos com um nó no estômago. Que país era este que nos acolhia e do qual muito pouco sabíamos? Tínhamos ouvido falar vagamente de Portugal mas era pouco o que conhecíamos. Nada que nos pudesse indicar o tipo de vida que nos esperava. À medida que o avião se aproximava fui deitando um olho pela janela para poder ver o meu novo país, pela primeira vez. A cidade parecia bonita. Será que esta ía ser a minha nova casa? A minha nova Mosul? Ao entrarmos no aeroporto a única coisa que vi foram policias, muitos policias. A segurança e as burocracias atiravam-nos de um lado para o outro. E gente, muita gente, de entidades diferentes, cada uma a desempenhar o seu papel, cada uma a dizer coisas numa língua que eu não percebia e a fazerem perguntas a que não podia responder.
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Um tradutor ajudou-nos a dar as respostas que conseguíamos ter ou a resolver algumas questões práticas e a perceber um pouco o que se passava e o que se ia passar a seguir. O grupo que se tinha criado e mantido coeso em Idomeni ía agora, arbitrariamente, ser separado. Cada qual para seu lado, poucos se mantiveram juntos. O casal claro e Ashraf com Shoroq e os filhos. Eu fiquei com o Wisam.
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CAPÍTULO VIII
A chegada 64
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Mais pessoas chegaram e vieram ter connosco. Estas eram da Instituição que nos ía acolher, a Misericórdia de Alfeizerão. As pessoas que nos esperavam eram o Provedor e a técnica responsável. Seriam eles a conduzir-nos até ao carro e a levar-nos para longe de Lisboa. 100 quilómetros a norte, soubemos mais tarde. A viagem foi feita quase toda em silêncio. Estávamos cansados de tantas emoções contraditórias que invadiam e dominavam estes dias de fim de caminhada. Chegámos por volta da meia noite à nossa nova casa. A noite não deixou ver bem a pequena vila que nos acolhia e os vizinhos já estavam todos a dormir. Chegados, indicaram-nos quais seriam os nossos quartos onde depositámos a nossa muito curta bagagem. O nosso passado cabia todo numa pequena mala de roupa.
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Ficámos a saber que já tinha chegado, no mesmo dia, mais cedo, um outro refugiado vindo de Itália, de uma outra rota, a africana, mas com o mesmo ponto de chegada. Aquele onde nos encontrávamos neste momento. Começou todo um período de descoberta e adaptação. À nossa espera estava o jantar. Arroz com peixe. Muito mais peixe iríamos comer nos próximos tempos. O tempero é diferente, a preparação também. Sinto falta da comida da minha casa, em Mosul.
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CAPĂ?TULO IX
Os primeiros dias 68
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O dia mostrou-me, pela primeira vez, o sitio onde estava, a minha nova casa. Conheci o jovem vindo da Eritreia que seria o nosso companheiro de viagem. Pareceu-me simpático mas muito triste pois foi separado dos seus dois amigos que seguiram para outro local. Desde o aeroporto que não parava de chorar. Fomos descobrindo a casa, onde estavam também alguns portugueses, e as pessoas com quem iríamos contatar. Nos dias seguintes, passeei pela vila para tentar descobrir onde iria viver partir daqui. Era um sitio sossegado e por certo seguro. Podia estar descansado. Como tínhamos internet na casa onde estávamos, pude entrar e manter-me em contacto com os meus recentes e antigos amigos. Saber noticias dos mais próximos, falar com o meu irmão que também está na Europa. Era bom se nos pudéssemos encontrar.
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Alguns membros da comunidade muçulmana de Palmela vieram visitar-nos e trazer carne para que pudéssemos comer mais do que o peixe ou o frango com arroz e batatas. A adaptação à comida não tem sido fácil. Nem para nós nem para as pessoas responsáveis pela nossa alimentação. Por estes dias chegou o Natal. Não que eu tivesse dado por isso mas, as pessoas fizeram várias referências ao mesmo e deixaram-nos um jantar diferente no dia 24 de Dezembro. Num dos dias da última semana do ano de 2015, a técnica da Misericórdia responsável pelo nosso acolhimento, levou-nos a um café para iniciarmos a nossa aprendizagem da língua. Foi uma professora que nos recebeu e levou para uma pequena sala com cadeiras à volta de uma grande mesa feita de mesas mais pequenas. Apresentou-se, chamava-se Helena, e ía dar-nos aulas de português. Começámos logo. 71
Eu queria muito aprender, saber falar a língua do país que me acolheu e poder comunicar com as pessoas que me rodeavam. Até agora a única possibilidade de comunicação passava pelo google translator e muitos gestos. E estávamos no final do ano. No dia 31, disseram-nos para estarmos prontos às 22,00 horas pois vinham-nos buscar para a passagem de ano. Há hora marcada, apareceu o provedor e a professora de português que nos levaram para um sitio à beira mar chamado S. Martinho do Porto. Fui eu e o meu amigo da Eritreia. O Wisam ficou a dormir. Subimos até ao sexto andar e lá estava a família toda reunida, a mãe, a irmã, o namorado e os sobrinhos. Estavam a ver um filme de desenhos animados, na televisão. A casa era alegre e bonita. Diferente das casas árabes e a familia estava toda reunida na sala. A professora perguntou se queríamos conhecer o local e veio connosco até à rua, deu-nos 72
as referências do local e disse que podíamos ir e voltar daí a uma hora. Foi o que fizemos. Havia música, pessoas que passeavam pelos passeios e outros que enchiam a praia de alegria, de vida, de festa. Pareciam todos felizes e sem qualquer preocupação a atravessar o seu caminho. Fumavam, bebiam, sem ter de olhar para a policia que de longe em longe ia passando mas sem interferir. O meu amigo só dizia que lhe doíam as pernas mas, eu gostei de ver toda aquela animação do final do ano e a hora passou rapidamente. Voltámos a casa da professora, estava o ano quase a terminar. Já estavam as passas prontas e os copos de champanhe preparados à nossa espera. O ano ia terminar. E que ano. Chegou 2016! Com champanhe e fogo de artificio. Muito bonito! O fogo na baía era 73
espetacular. Tirei fotografias e bebi uma taça de sumo para comemorar. Um novo ano chegou e com ele uma nova vida começa. E tem o som de uma música diferente. Desejei que a minha jornada tivesse terminado. Não que os desafios que se avizinham não sejam igualmente difíceis mas, serão por certo diferentes. Ainda que muitos deles me sejam desconhecidos estou confiante. Tenho de estar. Todos à minha volta parecem felizes e despreocupados. Festejam a chegada de um novo ano como se a vida se renovasse. Que este início de ano seja o sinal para o recomeço, para o reencontro com a esperança e a felicidade. Eu tenho muita vontade de ser feliz.
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