(Novas) margens: as sombras seguem1
Isto é uma singularidade em nossas vidas: somos frequentemente observados pelos mortos – mas tão raras vezes podemos observá-los
Morto. Subs-
Edmond Jabès2 diz que “A sombra da morte é bran-
sobre nós
tantivo res-
ca.” Não nos caberia – não com a intenção que por
sistemas lin-
semantizado.
ora temos – desconstruir esta afirmação poética (e
guísticos ba-
Refere-se a
próxima das fronteiras entre a poesia e a filosofia3).
seados nas
tudo que abandonamos (planos, so-
Pelo contrário, reconstruamo-la, tentando agregarlhe alguns possíveis (por proximidade) sentidos.
nhos, esperanças, dese-
relações do silêncio etc. Quanto à escuridão, as
Se começamos por entender, via comparação, que,
sombras são.
jos, projetos
por meio de oposições binárias como vida/morte e
As sombras
etc.) após mal
sombra/luz ser-nos-á possível darmos um primeiro
levam-nos aos
termos come-
passo, teremos esboçado, como se verá a seguir,
seus mistérios
çado. E que,
uma interpretação (busca e/ou recuperação do sen-
da mente.
insepulto,
tido) desta impossibilidade aos olhos habituados às
Somos som-
(per)segue-
visões do cotidiano (que poderiam questionar como
bras do que
nos em para-
poderia uma sombra ser branca?). Desta forma, ex-
fomos – me-
lelo, sob a
pomos algumas observações:
forma de
a sermos al-
lembrança (sobre alguém, sobre
nos aspirantes
guém maior,
(1) As sombras dependem da luz para projetarem-se sobre as paredes, o chão etc.
mais iluminados (em busca
uma época de
(Explicação: isso implica às sombras tons
de Satori), na
nossas vidas,
escuros, em escala de cinza, porque elas
fila para
1
Por: Wellington Vinícius Fochetto Junior. Bacharel em Publicidade e Propaganda (Universidade Braz Cubas, 2001), certificado em Letras – Português (Centro Universitário Claretiano, 2007), ouvinte na disciplina “O semisimbolismo – Tópicos de Semiótica Visual” (Universidade de São Paulo, 2010) e pós-graduado em Saberes e Práticas em Língua Portuguesa (AVM Faculdade Integrada, 2014). Professor de Língua Portuguesa da Rede Pública (São Paulo) desde agosto de 1998. 2 Livre tradução de “Death’s shadow is White.” “Page without date, Undatable”. In: The book of margins. University Of Chicago, 1993. p. 7. 3 Uma território interessante esse, próprio dos textos literários.
despertar
resultam do obstáculo entre a área em
não é chegada
(novamente
que projetam e a luz por trás ou por cima
a hora de
Satori).
do objeto ou pessoa que se põe entre a
enterrarmos
Desconhece-
luz e sua sombra.
nossos mor-
mos as fron-
(2) O branco é a soma de todas as outras co-
teiras que não
res do espectro da luz. “O branco é luz”,
nos permitem
tem-se nessa oração os conceitos-chave
diferenciar a
de pureza (espiritual), limpeza, inocência,
Luz da
tos. Quem sabe se assim – e somente assim – dare-
Escuridão.
caminho sem obstrução alguma. (Expli-
mos por ter-
(Cabe um
cação: uma das propriedades das altas
minada gran-
parêntese:
luzes é sua alvura, seu tom branco tão
de parte dessa
como pode a
luminoso que chega a cegar, ainda que
nossa jorna-
Escuridão
temporariamente. E, seja por sua intensi-
da?
alcançar seus
dade, seja por sua extensão, o branco de
objetivos sem
uma luz afasta a escuridão. (Um efeito
dainhas Mar-
dispor da Luz
contrário, neste caso, e típico a tudo que
para enxergá-
em excesso produz sempre resultados in-
los? “A fun-
desejados, contraproducentes, foi bem
ção primordi-
observado por Goethe ao afirmar “Luz de
al da Escuridão é, pois,
mais é como [a] Escuridão: não deixa
afastar a
ver”).
Luz”, uma Voz nos diria
Em (1) re-vimos o aspecto mais comum de uma
isso.
sombra: sua tonalidade cinzenta, quase preta. Em
Viagem longa
(2) pudemos lembrar da propriedade cultural ao ho-
essa nossa – a
mem ocidental em ter na cor branca uma represen-
do Homo Sapiens –, convém dar
tação cromática para o Bem, a Limpeza, a Pureza Espiritual.
uma pausa. E perguntar,
(Fim das La-
Busquemos por um sentido implícito na comparação
mesmo que
entre esses dois casos particulares – (1) e (2). Ora,
para nós
se em (1) as sombras, seja pelo seu tom escuro,
mesmos, se já
seja pela atribuição (cultural e semântica) que o ser
ginais)
humano lhe deu de encobrir, tornar obscuro etc., são reconhecidas como algo negativo, de valor adverso à luz. Em (2) a caracterização do branco opõe-se, cultural e religiosamente, ao menos no mundo ocidental, àquela caracterização da sombra. Ambos contrastam.
Logo, cabe uma pergunta que ficou implícita logo na leitura da declaração de Jabès. Por que “a sombra da morte é branca”? O que confere à sombra da morte um tom alvo, branco, totalizante? Uma pista, aqui, seria supor que a morte, por nivelar a tudo e a todos, traz o infinito a quem ela vem buscar. O infinito, representado pela cor branca, explicaria, de imediato, esta sentença jabesiana. E, por infinito, uma luz cegante, oposta às sombras do dia-a-dia, encobriria a vida com o véu da morte.
Mas atermo-nos apenas a esta leitura – muito breve, embora reveladora, pode não dar conta de explicar esta marca do pensamento do autor egípcio. Continuar com as explicações – advindas de ainda outras possíveis leituras (interpretações) desta “sombra da morte” – poderia, aqui e agora, permitir o aparecimento de algumas novas possibilidades de compreensão (na obtenção de significado, isto é, de sentido). Podemos, então, ao menos deixar mais uma pista: todos os tons do espectro da luz somam-se na “branca sombra da morte”. Isto pode significar uma convergência suicida (e simbólica) de tudo o que for representado em cada cor; ora, se tudo caminha para seu fim, nesta união total das cores a morte recebe, recompondo as cores numa junção final. Se
a luz se decompõe (morre) em cores, ela se refaz na cor branca. “A sombra da morte é branca”: uma ideia da força da luz – ou da Luz – derradeira sobre a vida. Eliminando as sombras escuras, projetandose sobre elas. Sem propósito? Ou com o propósito de libertar – infinitamente?
Ilustração do autor do texto para o tema “A sombra da morte é branca