Ecos do passado

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Ecos do Passado1 W. V. Fochetto Junior2

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Retomo esse título desde minha primeira utilização dele, em 1992. Tomei-o emprestado da primeira história da HQ Capitão América, de número 91, publicada no Brasil pela Editora Abril. O ano desse exemplar, se não me falha a memória, é 1987. Essa retomada é feita sempre que encontro um conteúdo que importe muito a mim por questões pessoais. 2 Bacharel em Publicidade e Propaganda (Universidade Braz Cubas, 2001). Licenciado em Letras: Português (Centro Universitário Claretiano, 2007). Especialista em Saberes e Práticas em Língua Portuguesa pela AVM Faculdade Integrada (2014). Professor da rede pública municipal de Poá (SP). Autor de vários livros (cinco deles publicados em 2016), dentre os quais há um destaque para Nº 1643 (prosa de ficção) e Chocolate Boox (caixa com dois livros-objeto, a saber: Book do Bréki-Bróko (Vol. 1) e Blanc Bloc Book (Vol. 2).


A meus mais fiéis leitores. Em especial, a Rafaella Encarnação


Autor e Leitor: Que possuem em comum? “Os livros” Pouco importa isso; Ambos podem não mais estar vivos; Mas seguem sua missão com rigor: Eis seu maior compromisso! W. V. Fochetto Junior


225. [...] Ah, quem me salvará de existir? Não é a morte que quero, nem a vida: é aquela outra coisa que brilha no fundo da ânsia como um diamante possível numa cova a que não se pode descer. É todo o peso e toda a mágoa desse universo real e impossível, deste céu estandarte de um exército incógnito, destes tons que vão empalidecendo pelo ar fictício, de onde o crescente imaginário da lua emerge numa brancura elétrica parada, recortando a longínquo e a insensível. É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito – porque és infinito, não se pode fugir de ti! Fernando Pessoa, Livro do Desassossego (2002)

Há quase um ano do lançamento de meu Nº 1643, ao fazer uma de minhas leituras exploratórias, me deparei com esse trecho do livro “composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa”. O fiz poucos instantes atrás. O momento em que produzo estas linhas (e na véspera de legá-las aos leitores de meu referido 1643, além de suas duas continuações a que ando a redigir) é de um assombro contido, se é que cabe a expressão por aqui. Quando um scriptum passa para um escrito: é um ritual interior. Participa de uma descoberta subjetiva. Não pode, sem provocar certa confusão, ser descrito em meras palavras. Também não se pode, sob a pena de ocultar sentimentos e sensações que bem poderiam servir de partilha aos de outras pessoas (leitores, leitores, leitores a quem muito prezo), esse um prejuízo, ou um silêncio de natureza egoísta, reitero, não se pode, de igual modo, esconder essas descobertas. “Mas quais descobertas, Homem? A que te referes? Diga! Sem mais delongas! Vamos! Diga!” Claro, claro. Sabei-o: nos dois parágrafos – como noutras passagens do livro de Bernardo Soares – eu notei que, embora eu mal conhecesse Pessoa3, bem, há em meu livro algo próximo ao dele. Veremos o que tento dizer nas linhas que seguem. Tento efetuar um cotejo entre (um excerto de) meu Nº º 1643: Todos em volta das torres: de observação, gêmeas, do que for – o tempo parou. E nós continuamos perplexos em nome de algum deus cretino e fracassado. Um cadáver desse tamanho não pode ser sepultado sem fazer tremer o universo... (2016)

E esse, do fragmento supracitado na intro a esse meu estudo:

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Tive contacto com um ou outro texto dele; ademais, sempre o insuficiente; tinha-o por um autor muito voltado a si mesmo, no sentido de consistir em difícil fonte de leitura e, por conseguinte, compreensão. Julgava-o, por assim dizer, muito influenciado por seu tempo; pelo século em que vivera (e, com efeito, ainda o faço; mas agora com certo cuidado; menos ainda; conto, agora, com esse tesouro do Autor Português para desfazer um pouco do véu que faz fronteira entre ele e mim).


É toda a falta de um Deus verdadeiro que é o cadáver vácuo do céu alto e da alma fechada. Cárcere infinito – porque és infinito, não se pode fugir de ti! (2002:227)

Teremos como similar, num primeiro momento, a reiteração dos substantivos Deus e cadáver. Um equívoco. Talvez então possamos contar com o adjetivo infinito e o substantivo universo, é isso mesmo? Pois que há uma intrínseca similaridade (corporizada pela intertextualidade, essa “memória que a literatura tem de si mesma”, conforme Samoyault [carecemos, por ora, de referir o ano do exemplar que temos em nossa biblioteca e a página; far-lo-emos assim que nos for possível] define o termo cunhado por Julia Kristeva, num momento do pós-estruturalismo, se não m’engano), sim, não se pode negá-la. E em outros trechos de ambos os livros encontrar-se-á conteúdos e formas com mais alguma similaridade. Não se trata, declara-o, para os devidos fins, de plágio; recorri a Samoyault para afirmar essa minha declaração com um pouco mais de autoridade. Mas o que me levou mesmo a compor esse texto tão breve? Ah, sim. A descoberta de um autor pela escrita de outro. Muito mais antigo. De renome. E que jamais conseguiu se livrar do misterioso véu que lhe cobre a obra. Mau nenhum vejo nisso. Mas Pessoa, bem como Bernardo Soares, guardava, para si, a essência-de-si-mesmo. Uma relação do esse (o ser em Latim) com o Dasein (ser-aí, para Heidegger; e Este ser, como prefiro, por ora, me referir ao conceito do filósofo alemão). Sim: a desculpar-me pelo trocadilho, são textos Pessoais. E os segredos que guardamos morrerão com nós. Pois trancamo-los tão bem, a quarenta e nove chaves, a ponto de não mais podermos lembrarmo-nos de quais seriam eles. Nem ao menos de quantos. E quanto ao jovem que irá visitar um assassino em série na prisão... Esperemos que ele (o jovem ou o assassino?) saia de lá para nos contar como foi essa experiência.


ReferĂŞncia

PESSOA, Fernando. Livro do desassossego. SĂŁo Paulo: Companhia das Letras, 2002.


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