Podem Os Mortos Dançar?

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WV FOCHETTO JUNIOR

I Queres ser eternamente vivo? Publicas ao menos mais de dois livros. Serás eternizado por tua obra (conjunto de trabalhos realizados) literária. Quanto à qualidade dela, bem, isso é outro assunto. Unanimidade nem sempre está atrelada ao bom gosto ou ao discernimento do que merece atenção ou é apenas um golpe de sorte agraciado por aquelas fases da vida em que os modismos ditam as regras. Só o que é imortal, duradouro, memorável, é eterno.

† Visito os “Reinos do Silêncio” quando me vejo em ambiente calmo, tranquilo e passo a folhear o trabalho de algum outro autor (que não eu) e nesse exercício recordo-me de outros tempos, guardados no passado e que reaparecem, muito raramente, com o “Espírito da 6ª Série”, a definição que emprego para não usar, de modo inadequado, o termo alemão Zeigeist. Embora ele me pareça bastante apropriado para ser empregado e atender às minhas necessidades de comunicar minha sensação de estar vivendo, por alguns instantes, na vibe, na atmosfera ou ambiência, do Ano I* (1991).

† A tal da Eternidade** concebida mais ou menos ao meio da narrativa de “Crime e Castigo”, de Dostoievski, me parece de um niilismo do pior tipo: aquele que toma parte em letras de Black Metal e povoa mentes mórbidas, perturbadas, que necessitam de tratamento psiquiátrico. (Não olhem para mim; não sei de nada disso.) Por um


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lado, enquanto literatura, essa descrição pertinente ao livro1 é de uma riqueza enorme. Mas somente quem escreve e/ou lê com vontade, tendo muitas páginas em seu currículo pessoal (publicadas OU não), entende que esse excerto mínimo do diálogo de ambos renderia ao menos uma aula de pós-graduação strictu sensu ou palestra na área da Teoria Literária, Literatura Comparada e/ou Psicanálise e Literatura, para expor a possibilidade de compreensão que esse trecho constitui, por si só, um mundo à parte. Já começo a fornecer pistas: a) num diálogo em que o conceito de Eternidade é sintetizado (ou ainda reduzido) a um cômodo cheio de vapor e com aranhas nos cantos (Deus! Isso me causa certa perturbação; me incomoda!), ora, carece de maior atenção por parte de especialistas nas áreas do conhecimento supracitadas, porque é um mundo, sim. Porque esse mundo está limitado em si mesmo, porque nos leva a perguntar: “de onde vem esse diabo desse ambiente? Como se formou? Qual a função do vapor lá? Para que as aranhas? Qual espécie de aranhas são? Quem está destinado a ir para lá? Por quê?” É um mundo, sim: porque tem uma definição particularíssima. Porque é um ente – ainda que irreal, pensado, planejado mentalmente, esboçado e a povoar mentes doentias. E a riqueza desse conceito negativo, hostil, consiste em servir de modelo para análise das condições psíquicas do indivíduo que o criou. Não, não me refiro ao autor russo, nada disso. Me refiro ao fato de se poder traçar um perfil psicológico dessa personagem e tentar compreendê-la – claro que à parte sua concepção de “eternidade”.

O Leitor Atento, Curioso, Questionador, haverá de concordar comigo que mesmo a mais absoluta miséria pode servir de assunto riquíssimo a um estudo literário. Tudo depende, apenas, da ótica a ser empregada. Coisas minúsculas dependem de lentes de aumento para serem vistas e analisadas, não? Já as coisas grandes, enormes, precisam de certo distanciamento por parte do observador para serem melhor observadas. Eis o viés primeiro. Eis o ponto de partida.

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Cf. DOSTOIEVSKI, F. M. Crime e castigo. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Todavia, 2019. p. 320.


PODEM OS MORTOS DANÇAR?

† Meu Nº 1643 fora escrito principalmente por influência de dois Gigantes, a saber: Fiódor Dostoievski e Clarice Lispector. Ele fora esboçado em uma sala de aula em uma escola técnica, na qual lecionei, cinco anos antes de sua publicação. Nesse meu livro (que eu creio ser justamente o meu mais expressivo e injustiçado livro até hoje) há um tom niilista que sempre me foi peculiar. Não obstante, é igualmente uma coleção de contrastes. No capítulo “Geografia da Alma” eu simplesmente devo ter tocado ao menos o coração de algum leitor em especial ao ter tido contato com essa leitura. É um livro que, creio eu, está fadado ao sucesso póstumo. Como fora Nietsche com sua obra. Ou, caso eu caia no esquecimento, ao menos em meus livros eu ficarei vivo. Como cabe a todo autor.

† Estas notas (as quais pretendo me valer mais tarde para uma Autobiografia) foram escritas num tom que me remetem demais a Joseph Brodsky. É como se ele estivesse ditando-as para mim. “Menos Que Um”, livro ao qual eu cheguei por inspiração de Luiz Felipe Pondé em seu “Ensaios do Afeto” e foi adquirido em um ano muito chato de minha vida: 2011. Mas houve anos mais chatos ainda. Que pretendo deixar fora de minha autobiografia. Porque os enterrei com as areias do tempo. Mas ainda emanam alguns miasmata que podem ser inalados com certo nojo...

NOTAS

* O conceito é explicado com mais profundidade em um livro que estou escrevendo há quase cinco anos.


PODEM OS MORTOS DANÇAR?

** Na qual um sujeito conversa com o protagonista Raskólnikov, dizendo-lhe que não concebe a eternidade como algo enorme, e sim como um quarto pequeno, cheio de vapor, qual o interior de uma sauna, e com aranhas pelos cantos.


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