Valorização e Requalificação do Património Arquitectónico e Paisagistico
Cabo Espichel
MUSEU PORTUGAL NO ATLÂNTICO Um percurso sobre a história
José Pedro Pimenta Dias da Silva JULHO, 2015 ii
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PALAVRAS-CHAVE: Ver, Sentir, Relembrar
Quando me foi dado a escolher o tema deste trabalho de curso, “Portugal no Atlântico”, optei pelo desenvolvimento de um projeto para um “Espaço Museológico”, ainda com muitas dúvidas quanto à forma como o abordaria e desenvolveria, mas já certo que queria propor algo de menos comum, que não se transformasse num espaço tradicional, fechado e dedicado ao colecionismo simples, mas sim orientado para a exposição e partilha de sensações e sentimentos, evocando feitos e memórias, que permitisse rever e reviver parte da nossa História, designadamente o período dos descobrimentos portugueses. Queria que o museu difundisse e expusesse testemunhos materiais e imateriais da nossa História, tendo como exemplo Camões que tão sábia e nobremente fez com os Lusíadas. Da investigação para a escolha do local, o que naturalmente condicionaria fortemente o projeto, e tendo uma especial admiração pela costa alentejana, deparei-me com o Cabo Espichel. Fiquei então convencido que tinha de ser aí. E quanto mais investiguei, mais visitei o cabo, mais percorri os caminhos, dos mais simples aos mais arrojados, mais tentei sentir a imensidão do espaço, porque este completa-se com a vastidão de mar que lhe faz parte, e me apercebi do fluxo diversificado e desorganizado dos visitantes, que ora se dirigem apenas ao santuário, ou vagueiam pelas veredas, desde as mais acessíveis às mais “assustadoras”, ou ainda dos que praticam atividades desportivas, mais convencido fiquei que “tinha de ser aí”. Toda essa convicção se reforçou com a própria História do Cabo.
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ÍNDICE
I.
Um Promontório Esquecido
II.
Um Lugar com Alma
III. 1. Singularidade III. 2. Sacralização de um espaço III. 3. Um Milhão e duzentos mil anos de ocupações III. 4. O Culto da Nossa Senhora do Cabo III. 5. Círio perseverante III. 6. Uma cenografia Melódica III. 7. Ignorando a fantasiosa etimologia
III.
Território Indissociável
IV. 1. Rota do Peregrino IV. 2. Tudela-Culip IV. 3. Roden Crater
IV.
Um Mar de Relações
V.
Museu Portugal no Atlântico
VI.
Conclusão
VII.
Bibliografia
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Nossa Senhora do Cabo Seu caminho pedras tem Se não fosse por milagre Já cá não vinha ninguém
José Alberto Sardinha
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I.
UM PROMONTÓRIO ESQUECIDO
“ O conjunto de edificações que no início do séc. XVIII foi erguido no Cabo Espichel (...) marca uma extraordinária presença naquelas terras desarborizadas, sobranceira ao oceano, e constitui, sem dúvida, uma peça singular no nosso modesto património arquitectónico. Contudo não são muitos os que conhecem e ainda menos os que lhe atribuem o valor e o significado que pretendemos salientar. O menosprezo do valor arquitectónico do santuário, julgamos compreendê-lo, sem o aprovar. Talvez derive, precisamente, daquilo que mais nos seduz nesse conjunto de edificações: o seu sabor popular, a simplicidade e o informalismo do conjunto, com uma composição axial, sem rigidez geométrica, cuja simetria a determinada altura se abandona, se desfaz, e cuja modulação se harmoniza com saborosas diferenças de interpretação dos elementos que marcam o ritmo dos edifícios; uma composição sem grandiloquência, singela de volumes, sem arrebiques decorativos, mas que assim mesmo, por caminhos pouco comuns, atinge os domínios da arte e da monumentalidade. Não existem, neste país, muitos conjuntos arquitectónicos tão acentuadamente de cá, em que a marca de uma região se imponha com aquela e sóbria e sábia evidência (...). Admiramos, pois, o conjunto arquitectónico da Senhora do Cabo, em boa hora erguido. E connosco um número já apreciável de estrangeiros que o estão descobrindo, apesar da cegueira dos mentores do nosso turismo (...). Impressiona-os a singularidade do santuário e a sua insólita presença naquele ambiente agreste, de surpreendente
beleza.
Mas
impressiona-os
também,
infelizmente
a
incúria
imperdoável, o estado de abandono e de imundície em que tudo aquilo se encontra (...). Porque o santuário está em ruína. Abandonado. Abandonado e em ruína. Exatamente: esquecido, ignorado e caindo aos bocados”1 Em 1964 num documento escrito por Francisco Keil do Amaral, António Pinto de Freitas, Carlos Kjoner Worm, Salustino dos Santos, Hélder Pereira de Almeida e Diogo Lino Pimentel, que integraram uma “missão de estudo” subsidiada pela Fundação Calouste Gulbenkian com vista à recuperação do santuário, deram um alerta para a necessidade urgente de intervenção e adoção desse espaço como área de interesse patrimonial (Pato, 2008).
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 308
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O primeiro projeto de recuperação do santuário foi aprovado em 1968, no seguimento das obras que a Direção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais tinha realizado desde 1964. O projeto, no entanto, não teve continuidade. O conjunto edificado do cabo Espichel, à exceção da Igreja, encontra-se atualmente muito danificado e com algumas construções em completa ruína. O abandono a que o santuário foi votado teve o seu ponto alto após o 25 de Abril de 1974, quando as hospedarias foram ilegalmente ocupadas por sesimbrenses que se serviam das casas durante todo o ano e especialmente aos fins-de-semana e no Verão, altura em que para ali se mudavam de modo a poderem alugar a turistas as suas residências em Sesimbra. “Apesar do seu carácter único, o Santuário ali tem permanecido abandonado e sujeito a vandalismos vários, à exceção da igreja, que aliás apenas beneficia de energia elétrica aos fins-de-semana, fornecida por um gerador de Câmara Municipal de Sesimbra... Moribundo naquele imenso silêncio só cortado pelos visitantes e pelo vento frio que sopra do mar. E, no entanto, não é fácil encontrar em Portugal um outro local que, como este, se distinga em simultâneo pela importância da sua paisagem, da geologia e da paleontologia, da flora e da fauna, da arqueologia e da iconografia, da arquitetura e da arte, da religião e da tradição popular, do edificado patrimonial e dos valores imateriais e simbólicos.”2 Para os que admiram a grandiosidade do Cabo é-lhes doloroso assistir ao sistemático e progressivo estado de degradação. Sentem o ar de abandono, com a tristeza de quem vê desperdiçar tanta matéria cultural, histórica e natural, por não ser devidamente divulgada e protegida. Percebi que desde o princípio do estudo do lugar, que quando casualmente o Cabo Espichel surge na memória de alguém, o seu pensamento remete instantaneamente para o Santuário Nossa Senhora do Cabo. Senti-o quase como um centralismo adjacente ao santuário que abafa completamente as outras e tantas singularidades do Cabo Espichel. Não obstante do obrigatório peso que o santuário tem de incutir no lugar, apresentando-se como local primordial e sagrado de todo aquele território, solto de vícios sociais e ataques que tentem rivalizar com a sua monumentalidade e delicado encanto, sou da opinião que toda a sua tremenda e inquestionável riqueza está a ajudar a um ocultamento involuntário de um lugar como um todo que não deveria ser ocultado, deveria ser sim, divulgado e dar-se a mostrar ao mundo em todos os seus metros quadrados de terra de promontório sagrado. O cenário agrava-
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 308
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se quando nem o elemento principal do lugar é devidamente distinguido. Dando origem a um abandono e deterioração de um património cultural e natural. (Marques,2007) Os alertas foram chegando ao longo das décadas das mais variadas formas e feitios. Nos dias de hoje o Cabo Espichel lá continua, emproado sobre o Atlântico revigorante e vitalizador como se nada o afetasse, pois a sua força assim o permite, vai sobrevivendo de feiras aos fins-de-semana, de encontros de motoqueiros e ciclistas, as roulottes com os turistas, essas, são as únicas que marcam presença regular nos dias de semana, estas estendem-se pelo Cabo Espichel em toda sua área (e não só junto ao santuário), instalam-se onde a vista lhes seja mais agradável e por ali desfrutam sossegadamente do Cabo Espichel em todo o seu esplendor. Penso que sejam eles (os turistas), mais que os próprios portugueses, que melhor conhecem aquilo a que gosto de chamar de maravilhas do cabo.
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II.
UM LUGAR COM ALMA
SINGULARIDADE “Situado no extremo sudoeste da Serra da Arrábida, o Cabo Espichel, esse lugar muito alto e quase talhado a pique, que os antigos geógrafos designavam Promontório Barbarico ou Cabo Finis Terrae. As características deste spi seôl assumem-se simultaneamente excecionais e contraditórias, isto é, hostis à habitabilidade e favoráveis ao despertar de sentidos hierofanicos. À aspereza do solo e à dureza do clima – onde durante todo o ano se escuta o som agudo do vento marinho – junta-se a extrema luminosidade, a altitude, a vastidão de horizontes que, por vezes, quase parecem fundir céu e mar. A Natureza mostra-se aqui incólume na sua pujante beleza, ao mesmo tempo que também se revela agreste, e de grandeza assustadora.” “Libertação, evasão, ventura, regeneração, apaziguamento. Um promontório sacro, e não um paraíso bíblico. Local inóspito, desabrigado, batido incessantemente pelo mar ruidoso e pelos sibilantes ventos inclementes. Mas o lado de Natureza selvagem, de “terra livre”, indomada, descontaminada de malefícios sociais, dá-lhe também uma qualidade fascinante que suplanta o seu aspecto tremendo e desolador de “cabo do mundo”, levando as populações a frequentá-la e a apreender o que ela tem de mais autêntico, deixando-se contagiar por essa grandeza “imutável” e “incorruptível”. 3 O Santuário da Nossa Senhora do Cabo, no Cabo Espichel, ergue-se num lugar especial. A sua situação geográfica privilegiada, a marca da história, o peso das obras de arte e das obras da natureza que nele se disfrutam tornam-no um verdadeiro locus amoenus intemporal. À imponência, beleza e desafogo da paisagem aliam-se as riquezas de um património natural e da história e da arte que, desde tempos incontáveis aí foi criada por sucessivas gerações. O Cabo Espichel aglutina, num mesmo espaço, provavelmente o maior número de aspetos patrimoniais e naturais em Portugal. É notória a sua importância geológica (Jurássico e Cretácico), paleontológica (trilhos de dinossauros), arqueológica (do Paleolítico ao Calcolítico), arquitectónica (Ermida da Memória de nítida feição árabe,
3 Marques, Luís, 2007 – O paraíso no “fim do mundo” - O culto de Nossa Senhora do Cabo. Lisboa: Sextante Editora, p. 15
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igreja de Nossa Senhora do cabo e albergarias dos romeiros do inicio do século XVIII), artística (pintura, escultura, talha e azulejaria existentes nestes templos), paisagística, faunística e florística. Aqui se associam elementos de inegável valia. Desde os icnofósseis de um trilho dos dinossauros, até aos contornos de um antigo itinerário islamita, aos tipos e variedades de flora virgem de lugar, ao calor dos círios e das romarias populares desde a idade moderna aqui repetidos e com extensões que se prolongam até os nossos dias, aos vestígios de um antigo templo quinhentista com as suas tábuas renascentistas ao amplo santuário barroco construído no tempo de D. Pedro II, ao esplendores da festa barroca com opera e touradas e cortejo de berlindas a preceito, ou ao inesperado pitoresco cenográfico do arraial com os dois corpos de casario saloio para abrigo dos romeiros. Quem se dirige para o árido e fragoso Cabo Espichel passa pela pequena povoação da Azóia que se ergue do planalto que vem de Santana. Parece ser um dos últimos sítios habitados da terra; percebe-se bem que um antigo documento de 1366 afirme que aquelas terras do ermo, onde ainda perpassem as vozes de deuses velhos e roucos, “jazem em huu dos cabos do mundo e fora de todo o caminho”. No caminho que conduz ao Promontório, estende-se de ambos os lados da estrada uma charneca quase lisa, de vegetação rasa e humilde, robusta e pobre, mas de suave odor adocicado, pontuada aqui e ali de antigos casais de nítida feição saloia; apenas do lado direito se vai percebendo o muro arcado do aqueduto mandado edificar por D. José I e logo mais à frente o recinto vedado da horta adjacente à casa da Água, mandada delimitar pelo mesmo monarca para grande conforto de peregrinos cansados e dos animais sedentos (Pato, 2008). A chegada à imensa esplanada faz-se com surpresa. Um simples cruzeiro abençoanos com as boas vindas ao local sacro, e à nossa frente alonga-se o grande terreiro do arraial pelos dois compridos corpos de rés-do-chão e primeiro andar dos antigos quartéis, erguidos sobre um pórtico rústico de infindos alpendres onde os romeiros se hospedavam a descansar depois dias e noites de sacra folia. Ao fundo a igreja barroca tapa-nos momentaneamente o horizonte, apenas deixando adivinhar o que por detrás dela se esconde. E se lhe virarmos as costas veremos então, a coroar um pequeno morro, uma elegante Casa da Água, admirável na sua cenografia de pequeno templo oitocentista (Pato, 2008). Passando sob os arcos das hospedarias e ultrapassada a Igreja surge-nos, com espanto, o promontório sagrado, o tremendo finis terrae levantado ao Atlântico, que cai e mergulha na abertura sem fim de um mar de ondas. A atenção muda de foco e orienta-se exclusivamente para a fronteira terminal e esmagadora onde se imagina o
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desconhecido, desse vasto oceano que é a verdadeira raia de todas as coisas. Por isso o olhar se afasta da terra firme e sólida e, como Vieira poderia ter dito, “ já nada se logra avistar senão mar e céu de todos os lados”; ou, como escreveu Sebastião da Gama, “ vem do oceano, quase sempre, um ventinho agreste mas belo: fala de Portugal e do seu destino”. No silêncio cortado por muralhares distantes só a pequena Ermida da Memória, com a sua cúpula boleada a lembrar um morabito de velho santarrão islamita, nos revela que também aqui há uma história construída por homens para domesticarem o vazio e delimitarem o sagrado. Porque tudo o resto é apenas distância, mar e céu. O adro da capelinha, dependurado sobre as tremendas arribas, convida-nos a olhar o azul que se espraia, sem nos darmos conta de que nos declives que descem ou se precipitam até á praia dos Lagosteiros existem vários trilhos de dinossauros. É precisamente uma destas pistas icnofósseis – numa arriba a pique quase direito sob esta Ermida da Memória - que foi interpretada como o rasto deixado por uma mula que dos mares teria transportado a Virgem até ao topo do promontório, com seu Menino ao colo, dando assim origem a uma das lendas de Santa Maria do Cabo ou da Pedra da Mua. Foi aqui que se fixou, pelo menos desde os tempos de D. Pedro I, um culto religioso popular que rapidamente se firmou em ambas as margens do Tejo e que desde o reinado de D. João I veio a constituir-se em moldes originais e a persistir até aos nossos dias como um traço indelével da cultura saloia. Estas romarias vulgarmente conhecidas por círios, organizavam-se na margem Norte a partir de 1430 sob a forma de giro itinerante, com as localidades participantes a prestarem culto à Virgem anualmente e à vez, de forma rotativa (Pato, 2008).
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SACRALIZAÇÃO DE UM ESPAÇO Todos os acidentes naturais, geográficos e geológicos foram desde a mais remota antiguidade sacralizados pelas mais diversas comunidades humanas, do Extremo Oriente à América pré-colombiana, da Europa à África e Oceânia. Fossem bosques, florestas, rios, poços, fontes, fragas, serras, montes, vales, grutas, cavernas, cumeadas, desfiladeiros, vulcões, rochedos.... Aí residiam e se manifestavam divindades ou forças transcendentes de que nem sempre se conhecia o nome, embora não se duvidasse do seu poder: como disse o rei Evandro quando conduziu Eneias à rocha Tarpeia e ao Capitólio, aqui habitam deuses, mas não sabemos que deuses são... E aí, nessa loci sacri, nesses primeiros santuários onde se ritualizavam os gestos da observância religiosa e do culto temeroso à divindade, delimitaram-se recintos de devoção ou construíram-se altares e capelas para lhes reverenciar os poderes, agradecer-lhes os favores e aplacar-lhes as iras (Pato, 2008). Os promontórios que dominam as arribas escalvadas aproando o mar do desconhecido e sobre ele avançando em cunha como pontas inexpugnáveis sempre mereceram especial destaque. Considerados lugares sagrados por inúmeros povos antigos, estas terras do fim constituem pontos altos de sacralização. São sempre misteriosos braços de montanhas que dividem “terras, mares e céu”. Os promontórios não representam apenas o mero acidente geográfico; eles são em simultâneo e antes de mais, um lugar de história e de religião – e, portanto, de tradição e arte. Nestes ícones sagrados unem-se os céus e a terra, o observável e o invisível, provavelmente porque estes são espaços onde se verifica o mais desnivelado confronto do homem com a imensidão do horizonte, um lugar tremendo, esmagador, que infunde temor, mas simultaneamente se oferece belo e deslumbrante, e em que algo de mágico ou sobrenatural pode acontecer. Aqui, onde a terra acaba (em declive abrupto) e o mar começa, não parecem habitar vícios, corrupções e imperfeições humanas, o que favorece o encontro com a boa fortuna. Lendas e versões míticas vão sustentando este lugar de eleição. Da “idade do ouro” ao “paraíso perdido”, isto é, do espaço de delícias onde, segundo o Antigo Testamento, Deus colocou Adão e Eva, até à expulsão destes, imensas têm sido as tentativas para localizar e habitar esse paraíso terreal. Mas não é de uma geografia mítica associada às três religiões monoteístas (judaísmo, cristianismo e islamismo) que se trata, quando falamos deste cabo sagrado ou sacralizado. Com efeito, o Cabo Espichel, ermo árido, desabitado, assediado pelo vasto oceano, pode
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dispor de outras virtualidades e ser entendido como local de mundificação, imaculado ou “terra pura”. Ao manter-se firme na sua majestosa solidão, resistindo a todas as investidas de penitentes vivências religiosas anacoretas, cenobíticas ou eremíticas, apenas tem cedido para com aqueles que, de forma regular e comunitária, aqui têm encontrado o melhor tempo das suas vidas, o destino próspero, e a alegria. Só por eles se deixa “domesticar” ou “amansar”, permitindo que sejam deles os principais vestígios, ruínas e patrimónios físicos que presentemente permanecem na paisagem. Pertence-lhes, pois, uma singular forma de comunicar com este “cabo do mundo”. O “tempo d’ouro” das sucessivas gerações liga-se indelevelmente ao itinerário espichelense. Assim, ao longo dos séculos, este promontório surge para os chamados Círios como sítio sagrado, propício ao encontro com o indizível e ao revigoramento espiritual, sem exclusão dos seus habituais componentes de folia, excesso, divertimento...em rompimento com as constantes preocupações do dia-a-dia. Esta característica distintiva dos seus modos de vivenciar o religioso, assente em multimodas formas afetivas, autónomas, espontâneas e sem ideologia leva a que, por vezes, sejam designados como “expressão atual dos hábitos de paganismo” ou “sobrevivência de ritos pagãos” (Marques, 2008).
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1 MILHÃO E 200 MIL ANOS DE OCUPAÇÕES “Os primeiros hominídeos ter-se-ão instalado nesta zona há cerca de 1 milhão e 200 mil anos, oriundos de África e ocupando em especial o litoral da cordilheira da Arrábida, entre o Espichel e Sesimbra, com as suas praias recortadas e grutas, utilizadas quer como habitat quotidiano, quer como necrópoles”.4 As primitivas comunidades de Homo erectus, agrupadas em pequenas populações tribais, habitavam nessas praias e lagoas pantanosas ou nas grutas naturais, produzindo artefactos a partir de seixos rolados, geralmente de quartzito, ao longo de um horizonte temporal que se terá estendido até há 200 mil anos. Destes materiais paleolíticos
foram
recolhidos
exemplares
em
toda
a
costa
da
Arrábida,
nomeadamente na baía dos Lagosteiros e no planalto do Cabo Espichel. As populações viveriam de recoleção de mariscos, pesca e da caça de pequenos animais. Nesse tempo, e de acordo com os resultados de escavações arqueológicas realizadas na Gruta da Figueira Brava, situada perto do Portinho da Arrábida, era região exuberantemente povoada por leões, panteras, hienas, lobos, raposas, ursos, mamutes, auroque, focas, golfinhos, rinocerontes, cavalos, javalis, veados, cabras e coelhos (Marques, 2007). “A zona da Serra da Arrábida e do Cabo Espichel poderá ter sido um local de devoção mágico-religiosa desde a mais alta antiguidade, tendo começado a constituir-se nessas remotas eras como centro polarizador de forte atração cultural. É na verdade possível – embora não certo – supor que o Espichel, em tempos muito anteriores ao cristianismo, fosse já um “local propiciatório de práticas cultuais, talvez suscitadas, desde tempo muito recuados, pelas pegadas de dinossauros”5 A permanência do topónimo Azóia nas proximidades do Cabo Espichel indica claramente a existência – naquele tempo, naquele local e naquela zona de influência – de um sítio sagrado, de um túmulo-santuário de santarrão, ou marabuto, venerado pelas populações muçulmanas. É, por isso, possível e legitimo supor-se já nessa época a organização de peregrinações religiosas à finisterra sagrada da Arrábida, de que as posteriores romarias à Senhora do Cabo viriam a ser, afinal, uma (re)atualização. Recorde-se que esta zona de forte implantação islamita, onde abundam os topónimos de origem árabe, era atravessada por uma via romana que, vinda de Mérida,
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 49 5
Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 50
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passava por Alcácer do Sal e terminava no Seixal ou em Porto Brandão ou Cacilhas, passando não muito longe de Murfacém, com o seu conjunto de 30 cisternas árabes e um morabito cristianizado sob a invocação de Nossa Senhora dos Remédios. As arrábidas ou rábidas atingiam ocasionalmente dimensões expressivas. Eram nelas que em muitos casos, simples cenóbios ou eremitérios se instalavam e alojavam um mestre: nestas circunstâncias, são geralmente designados por morabitos, pequenos edifícios de forma quase sempre cúbica com cobertura em meia-esfera que reproduziam a forma do mais importante edifício religioso muçulmano, a Kaaba de Meca. Em Portugal, estes edifícios são popularmente designados por cubas, embora os respetivos significados não sejam exatamente sinónimos: os morabitos, ou eremitérios, são locais onde vive um religioso, enquanto as cubas são túmulos em que se veneram homens santos (os marabu), onde se vai em peregrinação para os honrar e participar do seu poder (baraka). Por assinalável coincidência, não é apenas a Ermida da Memória, no Santuário do Cabo Espichel, que recorda pela sua estranha forma uma antiga cuba, de que poderá eventualmente constituir a reedição cristã; arquitetura semelhante apresentam as ermidas de Nossa Senhora da Graça, na fortaleza de Sagres, e de Santa Catarina, no vizinho forte do Belixe, edificadas no séc. XVI de acordo com a mesma gramática árabe ibérica e que igualmente sacralizam um promontório (Pato, 2008). “A localização no fim do Continente, o Oceano alteroso, mas também a abundância e amenidade do seu hinterland, desde cedo inculcam nos viajantes e nos estantes um sentido muito forte do espírito deste lugar, demarcado entre duas serras, Arrábida e Sintra, que são dois gigantes que “defendem” as portas do Tejo (...) Dos fogos que os bárbaros do finisterra ateavam no Cabo Espichel e que os gregos e romanos anotaram na toponímia até ao milagre da Senhora do Cabo, o fogo (o espírito...) não deixou de rondar a Arrábida (...) As peregrinações passam dos castrejos aos romanizados e cristianizados, destes aos mouros e destes novamente aos cristãos”
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 55
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O CULTO DA SENHORA DO CABO “Após a tentativa falhada de Carlos Magno reconquistar para o cristianismo os territórios ibéricos sob o domínio muçulmano, que se saldou na derrota de Roncesvalles em 778, e na sequência das represálias então exercidas por Abderramão I, os cristãos teriam em 781 transportado a imagem para uma lapa, escondendo-a depois dentro do tronco de uma nogueira, onde viria a ser encontrada no séc. XVI; nas
imediações
do
santuário
foram
descobertas
várias
ossadas
humanas,
maioritariamente de mulheres e de crianças, muito provavelmente empedradas vivas. Mencione-se, por curiosidade, que também esta Senhora teria deixado a marca dos seus pés na “Cueva des Zapatos de la Virgen”, situada nas proximidades do santuário, e que corresponde a uma cavidade natural. Alguns concílios cristãos deliberaram que “todas as imagens fossem portáteis, para poderem ser levadas a sítios ocultos, como sucedeu na invasão dos Mouros na Península, quando os fiéis fugiram com elas, enterrando umas e ocultando outras em grutas e montanhas (...) Por isso depois se encontravam imagens, e o milagre do aparecimento provocava as romarias. A cada passo aparecia uma imagem da Virgem a uma pastorinha inocente ou a um pescador aflito; e os locais que tocavam a imaginação popular, rochas das arribas ou lapas e furnas dos tesouros mouriscos, animavam-se com o aparecimento da Virgem a corrida dos romeiros”7 É muito frequente que se edificam os grandes santuários de peregrinação, templos ou lugares sagrados em que se veneram testemunhos ou memórias de santos, da Virgem ou de Cristo a partir do achamento de uma imagem ou relíquia, ou da sua trasladação para o local. Esta descoberta tanto pode ser meramente acidental, como provocada diretamente pela própria entidade através de sinais portentosos. É igualmente habitual que os santuários, capelas e simples nichos suscitadores de grande fervor religioso se situem no exterior dos povoados e afastados das áreas urbanas, até porque o estabelecimento desses locais de culto, frequente implantados em sítios altaneiros e que assim se transformavam em pontos de referência e de orientação para as populações, representava segundo Pedro Panteado “a conquista de um novo espaço para a vida da Cristandade. O sagrado permitia, desta forma, domesticar a natureza selvagem por parte da comunidade envolvente e afastar do local as forças obscuras existentes. Ao mesmo tempo, representava a rutura com o domínio do caos, através da elaboração de um novo espaço organizado, habitado e dominado pelo homem na arquitetura do cosmos”
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 57
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Quanto à origem do culto a Nossa Senhora do Cabo – uma das tantas e tantas Senhoras aparecidas que se multiplicaram em todo o Ocidente cristão – quase tudo mergulha na realidade difusa da lenda, quase tudo é imprecisão histórica ou suposição, quase tudo é mito ou fonte de dúvida. A uma das arribas que contêm pegadas de dinossáurios, está associada uma lenda. A da Nossa Senhora da Pedra da Mua, que toma aquele rasto como pertencente a um muar que teria transportado Nossa Senhora do Cabo desde o mar até ao cimo. Não podemos ignorar que certas rochas, frequentemente associadas a “Senhoras aparecidas” são suportes lendários que se encontram em várias partes do território nacional (Pato, 2008). Poder-se-á concluir que o culto da Santa Maria do Cabo/Santa Maria da Pedra de Mua remonta pelo menos a meados do séc. XIV, encontrando-se já amplamente estabelecido com a realização de romarias ao Cabo Espichel em 1366, no reinado de D. Pedro I, mas sendo certamente anterior a essa data em várias gerações. O forte incremento da devoção ter-se-á realizado durante o reinado de D. João I, daí a falta de documentos que afirmem com total certeza a data de origem do culto. O culto assim nascido de forma espontânea crescerá de tal modo que, já antes de 1414, ali se encontra edificado (ou reedificado) um templo comemorativo. Para essa minúscula capela da Memória se dirigirão importantes peregrinações populares de carácter cíclico provenientes da zona saloia a Norte do Tejo, que irão sedimentar-se e organizar-se numa estrutura altamente complexa, institucionalizando os círios sob a forma de giros anuais integrados originalmente por 30 freguesias, numa tradição “sempre constante, ou festejando em círios separados desde o seu principio até o ano de 1430, ou em giro de Freguesias desde então até hoje” (127, fl.6). O giro saloio da Nossa Senhora do cabo, em que as freguesias se sucedem à vez na posse da sua bandeira (e mais tarde da imagem) durante um ano, poderá assim constituir o mais antigo exemplo conhecido desta forma particular de culto itinerante à Virgem (Pato, 2008).
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CÍRIO PRESERVERANTE O afastamento temporário do espaço doméstico, da aldeia ou povoação, a caminhada coletiva, por vezes bastante prolongada, em direção ao santuário (um lugar solitário que permite a proximidade com a divindade, “escutá-la” melhor, onde se pode rezar e meditar), constitui um ato libertador, regenerador, que acalenta o regresso e a convicção da sua fé. Tudo terá começado há mais de seis séculos quando Santa Maria do Cabo foi descoberta ou se fez descobrir sobre a Pedra da Mua numa rocha escalavrada, passando a ser motivo de reverência constante. Iniciaram-se assim na zona saloia, e desde então se mantêm praticamente sem interrupções, as romarias cíclicas em honra da Nossa Senhora do Cabo. Em todos os círios estremenhos observam-se etapas obrigatórias, num conjunto de cerimónias rituais e festivas: da partida ao regresso, passando pela estrada no santuário, tudo está preordenado pela tradição. A partida para o santuário fazia-se alguns dias antes da data da grande celebração religiosa, num cortejo coletivo em carros e galeras puxados a cavalos, mulas ou bois e que integrava os juízes e mordomos, os anjos declamando as loas, o clero, o povo e, quase sempre, a indispensável música. Havendo disponibilidade, o cortejo incluía ainda pessoal fardado da Casa Real que disponibilizava o transporte naval. Ocasionalmente, a própria Família Real assistia aos festejos, acompanhada da grande Nobreza: nessas ocasiões, círios transformavam-se pelo espaço de alguns dias em pontos de contacto privilegiados entra uma sociedade urbana e aristocrática, com os seus códigos próprios e ligada ao alto clero, e as comunidades maioritariamente campesinas que habitavam nas periferias rurais das grandes cidades. A entrada no santuário obedecia a uma ordem cerimonial com precedências rigorosamente estabelecidas sendo usual dar-se três voltas em torno da igreja, tomando deste modo os romeiros posse simbólica do espaço sagrado e dele se apropriando. Esta prática de circulação, que se verifica ainda hoje em várias romarias um pouco por todo o País e que é feita em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, recorda o rito cristão de sagração de um templo, que se iniciava, aspergindo as paredes: nos círios, tudo se passa como se os romeiros quisessem reconsagrar o templo antes da Senhora nele entrar. Os romeiros instalavam-se em tendas e barracas improvisadas ou em acomodações próprias do Santuário (Espichel, Nazaré, Remédios) até ao dia da festa religiosa. A comida podia ser confecionada nessas casas, quando dotadas de estruturas
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adequadas (Espichel), em instalações de natureza coletiva (Nazaré) ou ainda em simples fogueiras. Por vezes existiam também casas de pasto (Nazaré) e de bebidas (Espichel). Havia tendas amovíveis de venda de comida e de vinho e havia igualmente distribuição de água. Durante o dia, mas sobretudo à noite, o arraial acolhia as diversões populares, com o seu conjunto de jogos de destreza, danças de carácter lascivo e transgressor – como a fofa, o batuque, o lundum, a arrepia, a sarabanda ou fandango – folias, representações teatrais, touradas e grandes espetáculos de pirotecnia, hoje em dia reduzidos às tasquinhas, às bandas musicais e grupos folclóricos e a algum foguetório. Todo o recinto era então propositadamente iluminado por lampiões e vasilhas com alcatrão, como ainda hoje se faz (Pato, 2008). Apesar da festa religiosa variar de lugar para lugar, incluía sempre procissão, missa e pregação, dando-se tradicionalmente grande relevância a esta ultima parte, não sendo rara a contratação de pregadores conhecidos. Saliente-se ainda o pagamento de promessas isto é, do tributo prestado à Virgem pelos romeiros, através da oferta de ex-voto (quadros pintados, documentando o milagre; peças figurativas, normalmente de cera; ou o próprio círio). Compravam-se medalhas, imagens, pagelas, registos que por vezes concediam indulgências e insígnias de flores votivas, como comprovativo público e ostensivo de que havia estado na peregrinação, muitas vezes exibidas como sinal de prestígio. Assim era também no círio dos saloios de Nossa Senhora do Cabo. O cortejo começava por dirigir-se a Lisboa, seguindo percursos de há muito traçados pela tradição e naturalmente variáveis consoante a proveniência geográfica dos romeiros. Havia um itinerário que seguia paralelo ao litoral atlântico. O cortejo atravessava então o Tejo junto a Belém, em bergantins e galeotas da Casa Real e sendo saudado por 21 tiros de salva a partir do forte de S. Vicente (Torre de Belém). Desembarcando na praia de Porto Brandão, rumavam a pé ou em carros de tração animal pelas praias da costa - para quem pretendesse cumprir promessa – ou pela estrada de Sesimbra, em direção ao santuário do Cabo Espichel a cerca de 40km de distância, onde faziam a entrada triunfal ao som de trombetas e atabales, conforme o evoca um dos painéis azulejares da Ermida da Memória. Desde 1996, ano em que as hospedarias do santuário foram desocupadas e posteriormente entaipadas, os romeiros pernoitam em tendas instaladas no arraial e nas proximidades. Nas noites de sábado e domingo e na tarde de segunda-feira, por entre a venda de quinquilharias várias e de comestíveis, bem como de frutas e legumes frescos levados pelos agricultores da vizinha povoação da Azóia, realizavamse antigamente bailes de roda junto ao cruzeiro, acompanhados a gaitas-de-foles e concertinas, hoje em dia foram substituídos por conjuntos musicais, bem como jogos
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tradicionais e mascaradas. Aliás, até há alguns anos era habitual que o peditório feito a pé pela freguesia fosse acompanhado por um fogueteiro, um tocador de gaita-defoles, um zabumba e um tambor. Na segunda metade do séc. XX continuava a erguer-se no meio do arraial um grande coreto de madeira para as festividades. Representações teatrais ocorriam por vezes na Casa da Ópera adstrita às hospedarias, continuando a realizar-se nos inícios do séc. XX. Um dos pontos altos e mais populares das festas, sempre aguardado com grande expectativa, era uma garraiada que decorria no recinto murado na antiga horta adstrita à Casa da Água, a qual deixou de se realizar a partir de meados dos anos 1980. Noutros tempos os romeiros lavavam o rosto com água do poço existente no santuário, porque “a água nesse dia era milagrosa”; hoje já sem água, o poço continua no entanto a ser visitado pelos mais velhos para recordarem a tradição. Em 1904, num artigo da Illustração Portugueza de 29 de Agosto, comentava Rocha Martins: “Porque o círio é uma cousa bem portuguesa, é como o fado e como a favarica”. O fado ainda existe, e não parece que esteja em mau vigor; a fava-rica, essa, já só se guarda na memória dos mais velhos... Por isso se impõe aqui uma curta reflexão: e os círios, que lhes adivinha a eles o futuro? Terão estas romarias, indubitavelmente a principal manifestação religiosa do povo estremenho e a mais identitária da sua cultura, permanência assegurada? (Pato, 2008) O abandono e consequente declínio do santuário do Espichel terá ficado, ao menos parcialmente, a dever-se à circunstância de os círios saloios já não realizarem ali a sua romaria, tendo deixado de se deslocar ao local onde o culto começou em plena Idade Média. Por outro lado, a região saloia, apesar de pequenas ilhas rurais que ainda subsistem, tem sofrido nas últimas décadas um acelerado processo de betonização e de terciarização. E é sabido – curioso paradoxo, que a sociologia explica – que a introdução das autoestradas aproxima as comunidades na exata medida em que tende a afastá-las das suas origens. Até ao séc. XIX ainda se ia ao Espichel em carroças puxadas a bois, atravessando-se no Tejo em barcaças e seguindo depois pelo extenso areal que bordeja toda a península; e nessa viagem se levava pelo menos um dia ou dois, por vezes mais. Depois dos anos 80 do séc. XX tornou-se muito mais fácil ir – com a simples diferença de que já quase ninguém quer sofrer dessa forma o cumprimento do voto ancestral; e por isso não se vai, ou vai-se cada vez menos. A transformação socioeconómicas das décadas recentes, sobretudo no que respeita ao crescente abandono dos campos, à terciarização dos aglomerados urbanos, às mudanças na organização do trabalho e dos tempos de ócio, sem esquecer a alteração dos estatutos familiares, conduziram a nítidas alterações na antiga prática
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religiosa popular. Por outro lado, algum do presente magistério católico e da atual devoção moderna tendem a minimizar o carácter simultaneamente expiatório e congratulatório das romarias, ao mesmo tempo que as tradições enraizadas seculares parecem não se dar bem com algumas das reformas do Concílio Vaticano II nem com a tendência crescentemente centralizadora de grande parte do clero. Adivinha-se um futuro não muito promissor para os círios em honra da Senhora do Cabo enquanto manifestações verdadeiramente populares, não apenas devido a eventuais restrições por parte do clero, mas também porque hoje se nota a sua crescente dependência do turismo e dos patrocínios comerciais. A não ser que as populações
reorganizadas
em
comunidades
de
vizinhos,
suficientemente
autonomizadas em relação à hierarquia – como era seu timbre antigo – e unidas em torno de uma comum devoção identitária, consigam resistir aos apelos de um massificante turismo falsamente cultural ou religioso e que mais não é do que um abastardamento das velhas tradições. E que, sobre esse antiquíssimo fundo religioso e festivo, saibam emancipar e fazer levedar a indispensável vertente cultural, de que a realização dos Encontros de Nossa Senhora do Cabo constituem bom exemplo (Marques, 2007).
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CENOGRAFIA MELÓDICA “Mais um dos lugares remotos da pátria. Um ermo árido pelo mar, uma igreja torreada, terreiro alpendrado e uma tabuleta em má caligrafia a informar que “há petiscos”. Portugal. Um Portugal inserido no mundo e fora dele, lendário e arruinado, de romarias pagãs e ex-votos agradecidos, troféus em cera benta das santas mães que nos vão ganhando os desafios que fazemos ao destino quando ele está desprevenido” Assim escrevia Miguel Torga, em 12 de Abril de 1938, no seu Diário XIV. E pouco mudou, desse então, no santuário da Senhora.”8 Erguendo-se em local grandioso, no esporão do Cabo Espichel, o atual conjunto do Santuário da Nossa Senhora do Cabo, parcialmente classificado como imóvel de interesse público, integra a pequena Ermida da Memória, de construção medieval, a Igreja da Nossa Senhora do Cabo Espichel, as Hospedarias, a Casa da Ópera, o Aqueduto e a Casa da Água, edificados ao longo do séc. XVIII. Organizando-se em torno da extensa esplanada central (o arraial), constitui um raro exemplo de santuário monumental de peregrinação religiosa cenograficamente planificado de raiz e um conjunto arquitetónico civil e religioso único em Portugal, em que o decorativismo barroco do templo se alia ao carácter popular das hospedarias. O Santuário contava com infraestruturas e dependências de apoio à comunitária permanência temporária e ao espírito festivo que nestes dias a animava, nomeadamente: cozinha coletiva; casa do forno (padaria); casa das lenhas; cavalariça; cisterna; No local podem também ser observados os escassos vestígios do forte de Nossa Senhora do Cabo, implantado a Oeste da Ermida da Memória, que defendia o planalto juntamente com o forte da Baralha construído na outra ponta do promontório. O sistema defensivo da Arrábida assentava tradicionalmente numa rede de torres de vigia e fachos, com sinais de fumo e fogo, instalados em pontos estratégicos da costa dotados de grande visibilidade, de que constituem vestígios toponímicos a Facho da Azóia e o Facho da Santana, ambos situados no planalto do Espichel. Mencione-se ainda o farol, situado a cerca de 600 metros para sul do santuário, que poderá ter sucedido a algum farolim medieval mandado instalar pela Confraria da Nossa Senhora do Cabo. Datado de 1790, de planta hexagonal, é um dos mais antigos do País, inserindo-se na reforma empreendida pelo Marquês de Pombal ao
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 249
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criar em 1758 o Serviço de Faróis. Ultrapassando os 30 metros de altura, situa-se a uma altitude de 168 metros e possui atualmente um alcance de 26 milhas. “O médico, químico e naturalista alemão Heinrich Friedrich Link, que esteve em Portugal entre 1797 e 1799, visitou o Cabo Espichel, em cuja extremidade “se encontra ainda hoje uma pequena igreja, com uma imagem miraculosa da Virgem” É muito interessante a descrição que nos deixou. “Esta igreja, chamada Nossa Senhora do Cabo, constitui o centro de uma construção que se prolonga por duas longas alas, compostas por dois andares, onde se encontram em grande número pequenos compartimentos sem janelas de sacada, que têm por único mobiliário cadeiras e mesas de madeira, destinadas aos devotos que aí frequentemente se deslocam em peregrinação. Todos os anos, no início do mês de Maio, uma procissão vai de Belém a Porto-Brandão, e daí ao Espichel, através das charnecas desertas e de florestas de pinheiros (...) Este promontório é, com efeito, o mais agradável de Portugal; os arredores estão bem cultivados; por todos os lados se vêm casas dispersas, aqui e ali; as colinas são alegres e a grande construção que coroa o seu cume torna-o ainda mais agradável. No extremo mais avançado do promontório situa-se a igreja de Nossa Senhora do Cabo,
com
uma
imagem
miraculosa
da
Virgem;
aí
se
fazem
frequentes
peregrinações, nas quais a Corte toma parte. O piso térreo das duas construções, que constituem como que duas alas de um recinto aberto, consiste em galerias de arcadas; o andar superior, em pequenos compartimentos. Aqui não existe uma hospedaria, mas o eclesiástico colocou-nos num destes pequenos compartimentos e teve o cuidado de nos fazer servir por criados. Nas alturas de peregrinação reúnem-se aqui a Corte e uma imensa mole gente; fazem-se distribuir pelo povo tendas, alimentação e esmolas. O tempo é dividido entre os exercícios da religião e os prazeres; realizam-se combates de touros, concertos, iluminações; e existe mesmo uma sala de ópera. A igreja é pequena, mas bem construída; as pinturas da abóbada são boas. Todos estes edifícios estão construídos na beira de um precipício escarpado, contra o qual as vagas do mar se despedaçam com a maior fúria e provocam um ruído estarrecedor durante as tempestades. Um outro governo que não o atual teria mandado plantar primeiramente uma álea de árvores, mas é no que menos se pensa em Portugal; não existe uma única árvore neste promontório, e de que serviria? Os dias são passados a rezar, comer e dormir, os ventos do mar temperam o calor e passam-se noites agradáveis ao ar livre” 9
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 212
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ERMIDA DA MEMÓRIA Desconhece-se como terá sido o mais primitivo local de culto no Cabo onde acorriam inúmeros peregrinos já em 1366. Tratar-se-ia certamente de uma estrutura de dimensões modestas, uma pequena capela – talvez construída em materiais perecíveis – de nave única, erguida por aqueles que ali veneravam a imagem da Virgem e em torno da qual pernoitariam em abrigos improvisados. A estrutura atualmente existente, conhecida por Ermida da Memória, ergue-se sobranceira ás escarpas abruptas que se elevam no extremo Norte do Cabo Espichel quase no escarpado do rochedo de grandíssima altura sobre o mar e está implantada precisamente no local onde o mito de origem diz ter sido descoberta a imagem de Nossa Senhora. A “confirmar” a tradição, existe na ermida uma lápide com a seguinte epígrafe: “CONSTA POR TRADIÇAO, SER ESTE O PROPRIO LVGAR AONDE A MI / LAGROSA IMAGEM DE N. SENHORA DO CABO APPARECIA E SE MA APPARECIA E SE MA / NIFESTOU AOS VENTUROSOS VELHOS DE CAPARICA E ALCABIDECHE; / MOTIVO POR Q. SE FEZ AQUI ESTA ERMIDA EM QUE PRIMEIRO FOY VEN / ERADA ATÉ Q. TRASLADOU A OUTRA MAYOR E DESTA A MAGNIFICA / IGREJA EM QUE HOIE EXISTE NO ANNO DE 1707”. (Pato, 2008) A sua existência é documentalmente referida nos inícios do séc. XV, em 1414, mas foi certamente erguida em época anterior. “De planta quadrangular e paredes pouco elevadas, com certa de 7 metros quadrados de área, o templo é coroado por uma invulgar cúpula contracurvada, em forma de bolbo, terminada por um pináculo boleado (mas cuja bola terminal desapareceu nos anos 90 do século passado). Paulo Pereira escreve que “com a sua forma cúbica e cúpula bolbosa lembra indubitavelmente as antigas cubas muçulmanas, de que se deveriam conhecer algumas. Não é de afastar a hipótese de , antes da instauração cristã do culto, este promontório (...) ter sido ponto de instalação de um ribat ou, mais simplesmente, de um morabito, na continuidade de outros que se dispunham ao longo da costa sul do caminho que vinha de Setúbal até àquela ponta ocidental (...) Na sua configuração atual parece, todavia, ser obra de finais do séc. XVII” (153, vol. V,p.123). Na verdade, a construção afasta-se um pouco da volumetria paradigmática das cubas, que é de facto cúbica, obedecendo geralmente às proporções de 1x1x1;
no caso da ermida pelo contrário, a pouca
altura das paredes dá-lhe um perfil acentuadamente rectangular. De volumetria
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mesmo assim harmoniosa e rodeada por um pequeno miradouro com adro onde se pode vislumbrar uma vista desafogada sobre o azul do Oceano.” 10
IGREJA DE NOSSA SENHORA DO CABO ESPICHEL “Com a quantidade crescente de romeiros, já nos finais do séc. XV, a ermida revelouse exígua. Em 1490 a pequena construção ameaçava mesmo a ruína, tendo os festeiros decidido a construção de “uma nova Igreja, maior, e mais decente”; e, em 1495, “deu-se princípio ao templo da Senhora” 8127, fl. 105). Nos painéis azulejares da Ermida da Memória pode observar-se a reportagem gráfica da edificação deste novo templo, com os trabalhadores a levantarem as paredes (6º painel) e com o templo já construído, vendo-se várias barracas e tendas erguidas no local (7º painel).”11 Desta primeira igreja nada resta hoje em dia. Em 1662 o 4º Duque de Aveiro D. Raimundo de Lencastre, mandou construir um templo maior, afastado da Ermida. Nessa altura, porém, tinha o Duque passado para o serviço de Espanha; e por esse motivo foram os seus bens confiscados, sendo condenado à execução em estátua, o que ocorreu em outubro de 1663. A edificação da atual igreja ficou portanto adiada, tendo vindo a iniciar-se apenas em 1701 por iniciativa real de D. Pedro II. A construção terá ocorrido a bom ritmo, já que apenas seis anos depois – a 7, 8 e 9 de Julho de 1707 – foi para ali trasladada e pequeníssima imagem que até então se conservara na Ermida da Memória. Sabe-se que aquando da construção da igreja foram as antigas hospedarias destruídas, com muitos dos seus materiais a serem reaproveitados. Por esse motivo, são hoje visíveis três pedras epigrafadas reaproveitadas e colocadas no chão da igreja. O atual templo, característico da arquitetura chã do primeiro barroco, ainda de sabor maneirista, é da autoria do arquiteto régio e da Casa do Infantado João Antunes. Ao contrário do que é habitual, a igreja está implantada a poente, não só para proteger contra os ventos marítimos o terreiro onde se erguem os quartéis dos peregrinos, mas também – e talvez tenha sido esta a razão fundamental – para simbolicamente apontar o lugar onde Nossa Senhora terá deixado as marcas da sua passagem. A fachada do templo é monumentalizada por duas torres sineiras prismáticas, com três fenestras cada uma, rematadas por pináculos nos ângulos e cobertura em coruchéu, às quais se unem os dois corpos paralelos das hospedarias e
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 251 11 Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 254
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da sua galeria de circulação porticada. Esta ligação efetua-se por duas elegantes construções com janelas de sacada rematadas por frontões contracurvados, assentes em arcos de passagem. Na esplanada do cabo Espichel dos inícios do séc. XVIII é projetada e construída aquela que será talvez a primeira praça absolutista de Portugal, isto é, um lugar público em que a arquitetura, obedecendo a um programa para um palco cénico no qual o povo observa, admira, inveja e acata as representações áulicas do poder régio e religioso. Não uma ágora em que o povo livremente se manifesta na sua natural exuberância, mas um fórum racionalizado que tenta ordenar a natural desordem da espontaneidade. À sua maneira, o delineamento programático do Santuário do Cabo Espichel, organizado em função de um terreiro escrupulosamente geométrico, e nessa mesma medida monumentalizada, com a sua repetição métrica de arcadas, constitui um vaticínio do que cinquenta anos depois viria a ser o plano meticuloso da reconstrução pombalina do velho Terreiro do Paço e de toda a zona da baixa de Lisboa após o terramoto, como aliás notaram os autores do Inquérito à Arquitetura Regional Portuguesa (1955-60). (Pato, 2008) As hospedarias setecentistas do Espichel – e aqui reside o seu carácter único em Portugal – não constituem um apenso que houvesse sido acrescentado à igreja, antes a integram num conjunto harmonioso e unificado, antecedendo-a, focalizando-a e fazendo-a coroar a praça pública que delimitam. À maneira de um gigantesco nártex colunado, apresentam-na visualmente como ponto de fuga do cenário sagrado, constituindo deste modo um corredor que dirige o olhar para o centro do culto, para o sancto sanctorum. Trata-se, além do mais, de uma solução brilhante adaptada ao terreno. Se noutros santuários do País, situados em montes ou cumes, o ponto de fuga visual se concretiza verticalmente, com escadarias ascendentes cujo último patamar se abre para abraçar o terreiro da Igreja, no Espichel tudo é plano... porque plana é a esplanada do promontório: o olhar do peregrino dirige-se então em frente e não para cima, e a altura desse olhar é traçada precisamente pelo ponto de fuga da longa sucessão das arcadas térreas que enquadram e realçam o templo, antecedendo-o quase a jeito de galilé. Nas suas atuais dimensões de 160m de comprimento a Norte por 30m de largura, numa área total de cerca de 4.800 metros quadrados, as hospedarias apresentam 47 arcos na ala Sul e 63 na ala Norte. Esta ala foi prolongada em 37 metros mais que a ala Sul, de modo a proteger o terreiro contra as fortes nortadas que ali se fazem sentir. De traçado rústico e quase ríspido, respeitando a tradição da arquitetura saloia – bem patente nos materiais de construção, nas proporções das coberturas, nos beirais dos telhados mais antigos, no tratamento dos vãos, no corte irregular das cantarias e até
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no facto de comportarem dois pisos – as hospedarias correspondem ao somatório de vários módulos unifamiliares de planta retangular, justapostos uns aos outros e que sucessivamente se repetem lado a lado, formando assim as duas alas do arraial. (Pato, 2008)
A CASA DA ÁGUA E A HORTA A aridez e isolamento do santuário, vieram a ser bastantes atenuados, com a construção da mina, do aqueduto e da Casa da Água. A nascente do arraial, no enfiamento axial da igreja e do cruzeiro e elevando-se sobre uma acentuada baixa do terreno, situa-se uma mãe de água com horta anexa. Esta Casa da Água, de traçado classicista e cortesão, quase palaciano, foi mandada edificar pelo rei D. José I em 1770. É antecedida por uma escadaria de cinco lanços e envolvida por um recinto murado, com a sua porta de entrada de arco perfeito e janelas panorâmicas abertas sobre o mar e a paisagem circundante, ladeadas pelos respetivos poiais de pedra. A elegante construção apresenta planta hexagonal, com cunhais apilastrados marcando as seis faces, e uma única porta encimada por frontão triangular; com paredes cegas, é coberta por cúpula de seis panos em meia – laranja, rematada por um lanternim de seis janelas parcialmente derruído. No interior, com banquetas corridas ao longo das paredes, deve admirar-se a fonte rocaille em mármore inspirada em Bernini, com o seu belíssimo mascarão representado um leão de juba revolta de onde jorrava a água, bem como os restos totalmente destruídos dos silhares de azulejos de Fábrica de Belém com cenas de caça e cenas alusivas aos círios; as duas figuras de convite que existiam à entrada foram roubadas. Com os seus bancos laterais de pedra a proporcionar momentos de fluição e descanso, e a coada iluminação zenital fornecida pelo lanternim a refletir-se nos painéis azulejados, constituindo na verdade uma das casa de fresco tão tradicionais na arquitetura palaciana e conventual do séc. XVI ao sec. XVIII, a que o constante murmúrio da água correndo na fonte emprestava um ambiente de frescuras e bucólico repouso. A água era transportada até ao Espichel por um aqueduto, ao longo de cerca de 2.5km, que se conserva em relativo bom estado, com estruturas subterrâneas e troços visíveis, estes assentes em arcaria de volta perfeita e abatida. A principal nascente situa-se em Casais da Azóia, no chamado “poço velho”, sendo o caudal engrossado por mais seis poços. De lá se vê ainda a mãe da água poligonal, coroada por uma cúpula que recorda vagamente a da Ermida da Memória.
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A partir da casa da Água eram diretamente alimentados um tanque no interior da horta e, no exterior do recinto murado, um chafariz de duas bicas, ainda existentes e em bom estado de conservação, que deixou de funcionar nos anos de 1970; junto a ele vê-se também um bebedouro para animais. Próximo do fontanário das duas bicas situava-se o poço grande, aberto no ano de 1707, fronteiro ao poço pequeno, mais a sul, que se encontrava No local podem observar-se estes dois poços, em bom estado de conservação, na estrada para o farol conservam-se duas colunas encimadas por coruchéus decorativos, uma das quais parcialmente derruídas. Para além destas fontes de alimentação de água, existia ainda uma cisterna junto à igreja, adoçada à residência do capelão, da qual se conservam vestígios semidestruídos. (Pato, 2008) O cercado da Casa da Água, em que se distribuíam cinco ruas arborizadas, albergava uma horta ajardinada para abastecer os habitantes fixos do local e os romeiros. Tratava-se de uma horta-jardim que à sua escala procurava imitar os programas eruditos palacianos, articulando e disciplinando – num terreno de difícil topografia, em plano excessivamente inclinado – espaços diferentes, mas habilmente complementares, com os seus recantos de prazer e as zonas de utilidade, o seu hortus e os seus canteiros de arbustos aromáticos, a casa da água azulejada para descanso e refrescamento de lazer e os tanques de abastecimento, e em cuja cerca se abriram inclusivamente janelas e se instalaram bancos para assim se apreciar o panorama que a Natureza ali oferecia (Pato, 2008).
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“No horto ajardinado do Espichel, a cortesã Casa da Água, verdadeiramente uma casa de fresco, coroa todo o recinto do santuário numa evidente linha de continuidade visual entre o templo e o cruzeiro situado no topo do arraial, traçando como que uma axis mundi de equilíbrio e dialogo entre o poder da Igreja e o poder da Corte e salientando, deste modo, a axialização e o racionalismo de todo o conjunto. Do seu alto goza-se um vasto panorama, que através da abertura de janelas na cerca murada foi ele próprio convocado e integrado na arquitectura do lugar: para a direita, o mar que se abre até aos contrafortes azulados da serra de Sintra; para a esquerda, as terras que se alongam na Arrábida; ao centro e em frente, o imenso oceano recortando a igreja, as hospedarias e a diminuta ermida. Era aqui que se entretinham “uma grande parte do tempo os Romeiros, onde não cessam de haver descantes, e concertos de música, que muito convida a atenção, e é para onde concorre tudo que há de mais brilhante no arraial, a frescura do sítio, o concurso da gente, a harmonia das vozes, tudo convida aos Romeiros a disfrutar as delícias de tão aprazível local”12
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 273
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“IGNORANDO A FANTASIA ETIMOLOGICA” O atual nível médio do mar ter-se-á apenas fixado nesta região em épocas geológicas muito recentes, entre 3000 e 1000 anos antes da era comum. Até então o nível do oceano chegou a situar-se 135m abaixo do nível atual, há cerca de 19 mil anos, quando a última glaciação de Wurm se encontrava no seu auge; a plataforma continental portuguesa era, assim, bastante mais extensa do que hoje em dia, tendo vindo progressivamente a recuar face à linha de água, situação que se comprova em mapas medievais. Também o perfil costeiro da Arrábida se foi modificando ao longo dos tempos geológicos. A cadeia montanhosa de formação miocénica, que emergiu dos pântanos do Atlântico é, na sua zona litoral constituída por rochas essencialmente carbonatadas (margas e calcários) dos períodos Cretácico e Jurássico, abrindo-se nas imediações do Cabo Espichel numa sucessão de reentrâncias e praias cavadas no sopé da grande arriba fóssil. Atualmente, a cadeia da Arrábida prolonga-se, na plataforma continental, pelo menos ao longo de cinco quilómetros para Oeste do Espichel, sendo frequente a ocorrência de grutas, quer situadas em escarpas elevadas, quer junto ao mar, na extremidade do promontório, por exemplo, abre-se a Lapa das Pombas, acessível para quem desce ao chamado Focinho do Cabo, e que se prolonga pela Furna dos Segredos, de difícil acesso. A costa é predominantemente constituída por falésias, que dificultam o acesso ao interior, embora alguns vales ou gargantas de paredes abruptas terminem em pequenos ancoradouros e baías de areias brancas. Na realidade, e ignorando a fantasiosa etimologia, o promontório é um local agreste de calcários descobertos pela erosão, ventos frios e salinos, sempre húmidos e constantemente batido pelo oceano alteroso. O seu coberto vegetal é por isso formado quase exclusivamente por tojos, estevas, urzes, aroeiras e Zambujeiros, bem como alecrim, alfazema, rosmaninho e pequenas orquídeas selvagens, para além de líquenes e fetos. Entre estes matagais do Espichel surgem duas espécies endémicas únicas, a Convolvulus Fernandesii, que apenas ocorre nas arribas da Arrábida/Espichel e a Euphorbia Pedroi, consideradas em perigo. À medida que se avança em direção ao interior, os terrenos adaptam-se gradualmente a pastagens e culturas de sequeiro, embora magras, permitindo então uma agricultura pobre de mera substância e alguma pastorícia, bem como a cultura do mel. (Pato,2008) A serra da Arrábida apresenta um sistema ecológico único em Portugal, um espesso e quase impenetrável maquis mediterrânico, fruto do seu clima temperado com influências atlânticas. Praticamente intocado, a sua sobrevivência até aos nossos dias
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terá ficado a dever-se não só à fraca qualidade dos solos para a agricultura e à rarefação populacional, mas sobretudo à circunstância de a zona ter sido floresta real até meados do séc. XVIII, ficando assim excecionalmente preservada; considerada coutada desde a Idade Média, era ali a caça abundante, com a presença de coelhos, perdizes, lobos, raposas, javalis e veados, estes extintos no início do séc. XX (Pato, 2008). “A sensação de lugar ermo e desolado fora já salientada pelo geógrafo Orlando Ribeiro em A Arrábida Esboço Geográfico, sua tese de doutoramento de 1936: “Muito antes que a vista dê a noção de promontório, vai se fazendo sentir o isolamento finisterra. O ar carrega-se de humidade; no solo, varrido pelos ventos impetuosos, a vegetação rareia e faz-se em tufos esparsos cosidos no chão. As marcas da ocupação humana tornam-se mais ténues e raras, como se esta se degradasse antes de atingir os limites impostos pela natureza; casas isoladas, povoações muito rústicas, leiras cultivadas entre muros de pedra solta”.13
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 42
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III.
TERRITÓRIO INDISSOCIÁVEL
ROTA DO PEREGRINO Com mais de 200 anos de tradição, a Rota do Peregrino, no México, apresenta-se como um caminho com 117km de distância com cerca de 3 milhões de pessoas a acorrerem-no todos os anos, especialmente no mês de Março, data da Semana Santa. Todos os anos, os peregrinos dirigem-se, nesta altura do ano, para cumprir tradição e realizarem a jornada que parte de Ameca, passa pelo Cerro del Obispo, escala pelas “Costas do Diabo” e daí desce para a pequena cidade de Talpa de Allende. Destino de toda a festividade celebrativa onde está erguida a grande Basílica de Nossa Senhora do Rosário. Toda esta romaria, tal como a da Nossa Senhora do Espichel, gira em torno do aparecimento de uma imagem sagrada, a da Virgem Santa de Talpa, famosa por realizar milagres e aliviar o sofrimento e o medo. Em sua homenagem se construí a basílica em 1782. Em torno dela os peregrinos se juntam e dão forma a um magnífico culto. O propósito é visitar a Virgem da Nossa Senhora do Rosário no mês de Março, especificamente entre os dias 11 e 19, nas festas de S. José. Como viaja até ao destino cabe ao peregrino escolher. Segundo a longa tradição, seria em percorrer toda a extensão do percurso a pé, saboreando cada passo dado como uma imensa recompensa da dádiva que prestarão à Virgem no fim do extenso caminho. Hoje já muitos o percorrem de bicicleta, ou mesmo transportes públicos, numa estrada que vai acompanhando o trilho pedonal e que até se cruza com o original em certos pontos. Cada um dos meios certamente com a sua particularidade e ambiente festivo. Outros optam por usufruir da rota noutra altura do ano, com vivências totalmente diferentes. As ruas das pequenas aldeias que caem no esquecimento de um amplo território natural, nesta semana da Páscoa enchem-se de pó tal a afluência de peregrinos a passar. Por toda a parte se vêm os panos esticados entre as árvores e as coloridas cadeiras de plástico. É permito dormir onde quer que haja sombra. Os peregrinos viajam de dia e de noite, num passo certo até as estações de abastecimento de água e comida. Tudo se torna num animado e barulhento caminho celebrativo. Para os que optam pela genuína e tradicional escolha pedonal, o caminho permite um mergulho mais fundo no coração daquele lugar, dando a conhecer comunidades
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quase inalteradas pela sociedade atual e lugares fantásticos onde a natureza cresce na sua forma natural. A convivência e a partilha da experiência com o cruzamento das pessoas que por lá prestam a sua devoção é fundamental para o ambiente festivo e religioso que se sente em toda aquela celebração sagrada. Em Abril de 2008, Emilio González, governador de Jalisco, anunciou a intenção de melhorar as infraestruturas da Rota. A construção de serviços básicos, alojamentos e miradouros pontuados ao longo do percurso viria a ser a estratégia delineada. Romper com a dinâmica de fluxo sazonal a que esta rota estava a ser sujeita era o objectivo fulcral. Durante as festas tradicionais e as festividades religiosas toda aquele território se enche de magia e de costume, com pessoas de todo mundo a acorrerem à Virgem, mas num todo resto do ano, que também passa por aquelas bandas, todo esse fervor festivo desaparece deixando apenas um pequeno rasto de ocupações desordenadas que esvoaça poucos dias depois. A nova intervenção visa uma requalificação do percurso de tal maneira que surja um fluxo adicional de turistas durante todo o ano. A coordenação da parte projetual recaiu sobre os arquitetos mexicanos Tatiana Bilbao e Derek Dellekamp, que se associaram a arquitetos de todo o mundo. Três miradouros. Dois em Atenguillo e um em Ameca, colocados em sítios propícios de apreciar a “paisaje jalisciense de la Sierra Madre Occidental”. Seis momentos de descanso. Dois albergues para hospedar os peregrinos e uma escultura de 18 metros dedicada à virtude da gratidão compõem este projeto pensado para um lugar sacralizado por um culto que não tenta rivalizar com a sua tradição mais remota nem interferir com as suas vivências já com dois séculos, mas sim dignificar o lugar, tornando-o intemporal e com um uso à altura da sua etimologia.
TUDELA-CULIP Num cabo, não muito parecido com o do Espichel, de carácter mais térreo e linhas mais orgânicas a condizer com os ares do mediterrâneo e sem o “condimento atlântico” a abanar com toda a morfologia e atmosfera do lugar, o Cabo Cap De Creus foge do verdadeiro sentido da palavra promontório, que tem como definição “Cabo composto por rochas muito elevadas e por penhascos” e não se afigura tão pouco como um território sagrado. A razão pela qual faço a comparação entre o Cabo Cap De Creus e o Cabo Espichel reside na riqueza do território como valência natural a preservar e a divulgar. O Projeto de restauro Tudela-Culip toma um atitude
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interessante, a meu ver, quando identifica o que necessita o território para ser entendido. Tudo começou em 1960, na ponta mais a leste que a Península Ibérica pode ir, num recanto bastante ventoso, que uma espécie de vila privada de férias com 400 apartamento que acomodava cerca de 900 visitantes no verão, o Club Med. A vida no Club Med era primitiva, destinava-se a fomentar a relação com a natureza. O projeto de todo este complexo foi considerado um dos exemplos mais notórios do movimento moderno na costa do Mediterrâneo. Em 1998, resultante da ascensão da democracia e preservação ecológica, O Cabo, que incluía os arredores do Club Med, recebeu o mais alto nível de proteção da terra devido ao seu notável valor geológico e botânico e foi declarado Parque Natural. Consequência desse factor foi o encerramento do Club Med no verão de 2003. Mais tarde, em 2005, os 200 hectares foram adquiridos pelo Ministério do Meio Ambiente donde lançaram o projeto de restauração que foi realizado entre 2005 e 2007. Em 2009 o Club Med acaba por ser desconstruído numa tentativa das dinâmicas ecológicas reviverem e prevalecerem, aliando a elas um projeto público respeitoso para com a paisagem natural que com ela se relaciona, celebrando-a na real das suas capacidades. A arquitetura surge aqui como o elemento que ajuda a identificar, revelar, e eventualmente, transformar o lugar para que este possa ser compreendido. Com tal finalidade uma série de intervenções foram construídas focando aquilo que mais interessa num lugar tão particular. Compostas apenas por materiais existentes no local com exceção do aço corten pela sua integração paisagística e a sua resistência à exposição ao mar. O seu desenho pende um pouco para o abstrato na tentativa de introduzir uma certa universalidade ao artefacto, distanciando-se do real, que se conecta com a história.
RODEN CRATER Monumental em escala e concepção, a Roden Crater de Turrell não é um monumento com qualquer sentido tradicional. Ele não comemora factos históricos ou conquistas, em vez disso aproveita o drama da luz, da paisagem e dos eventos celestiais, perturbando-nos e acordando-nos para a subjetiva compreensão do universo que temos. A cratera de Turrell é um monumento à própria percepção humana.
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É uma cratera vulcânica localizada numa exposta área de geologia, no Painted Desert. Zona onde se sente o tempo geológico. Sente-se que estamos de pé na superfície do planeta. Desde 1972 que James Turrell tem vindo a transformar a cratera numa obra de arte em grande escala, que se relaciona, através da luz, com um universo nas imediações do céu, terra e cultura. Situado em San Francisco, o complexo vulcânico perto do Painted Desert e do Grand Canyon, acolhe o lugar onde Turrell se dedica afincadamente há varias décadas na concepção de uma obra de arte monumental que se apresenta quase como um observatório a olho nu. O vulcão, com 400 mil anos de idade e cerca de 180m de altura recebe uma série de câmaras, salas, caminhos, túneis e aberturas para o céu estrategicamente
colocadas.
Proporcionando
aos
espaços
uma
variável
de
mudanças e experiências de luz. Turrell trabalha então com fenómenos visuais que têm interessado ao ser humano desde o alvorejar das civilizações. O projeto pretende trazer a luz dos céus para a terra, e estabelecer uma ligação entre os visitantes com os movimentos celestes dos planetas, estrelas e galáxias. Para além de ter explorado exaustivamente a interação da luz com o espaço nas suas obras, Turrel sempre se referenciou nos projetos de observatórios antigos que para ele significam lugares de excelência para a percepção visual. Em 1974, Turrell (2015) realiza um projeto para um cenário natural no qual poderia pôr em prática todos as suas explorações de luz e espaço. Após uma extensa pesquisa, Turrell consegue organizar fundos e financiamentos suficientes para comprar a Roden Crater, em 1977. Em 1979 a construção começa a ser feita com a ajuda da entidade DIA Art Foundation. A ideia apresentava-se complexa. Turrell não queria que o seu trabalho fosse uma marca sobre a natureza mas sim que se envolvesse com ela de tal maneira que a luz do sol, lua e estrelas capacitasse os seus espaços. Queria um espaço onde se tivesse a noção de permanência física no planeta. Queria uma zona de geologia exposta como o Grand Canyon ou o Painted Desert onde se pode sentir a idade do nosso mundo. Queria trabalhar a luz como substância material. Intensificá-la A sequência de espaços, levando o visitante de um para o outro e assim sucessivamente até ao grande espaço final, no topo da cratera, amplia a percepção dos eventos celestiais. Turrell seleciona diferentes partes do céu e respectivos eventos associados. A partir daí surge a concepção dos espaços. Sendo esta a principal razão para o seu elevado número.
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O inteligente gesto do artista em se colocar a 150 metros acima da linha do horizonte altera a percepção do espectador sobre o céu. Certas salas dentro da cratera permitem-nos ver e medir a passagem do tempo através do movimento das estrelas e dos planetas. Outros espaços revelam a natureza mais subjetiva do nosso relacionamento humano com o tempo, luz e espaço. A visão de Turrell (2015) foi se alterando pouco a pouco ao longo dos anos, fruto da sua incessante experimentação da luz. Espaços foram adicionados e outros alterados, contudo o a ideia do plano original para o vulcão continua bem presente e consistente em relação a 1977. Quando concluído, a obra terá 20 espaços, alguns com mais do que um espaço de visualização. A luz no interior dos espaços virá de varias fontes. O afastamento da Roden Crater com zonas urbanas é considerável, o que exigirá uma viagem e um compromisso de tempo por parte dos visitantes, o que com certeza aprofundará a experiência da descoberta. Se for possível uma comparação: A Roden Crater pela sua razão de existir, distanciasse da intervenção na Rota dos Peregrinos e do projeto de restauro do Tudela-Culip. Enquanto no México e em Espanha as obras manifestam a clara de se relacionarem com a paisagem natural e até com toda uma cultura e tradição histórica no caso da Rota do Peregrino, a obra de Turrell desliga-se de toda a informação envolvente e inerente ao espaço em que se coloca, aproveitando somente o céu, seus eventos celestiais e luz que provem dele. Um projeto que me fascina e que funciona igualmente como observatório a olho nu é a Star Axis de Charles Ross. Estrutura imponente no Novo México, iniciada quase na mesma altura que a cratera de Turrel, em 1971. O papel principal caí sobre a nossa estrela Norte, a estrela Polar, focalizando-a e tornando real um espaço magnífico criado em torno do estudo exaustivo dela. Esta escultura arquitetónica tem como seu elemento principal o grande canal em escadaria, que escrupulosamente alinhado pelo eixo da terra, aponta com uma força estrondosa para a Estrela Polar. Ross raramente dá entrevistas sobre a Star Axis, mas quando o faz, descreve-a simplesmente como um “instrumento de perceção”, que se destina a oferecer uma experiência intima de como o ambiente da Terra se estende para o universo das estrelas. Tem estado a trabalhar nele há mais de 40 anos. Tal como a Roden Crater, ainda não terminou. Uma outra breve referência: As estruturas no deserto de Marrocos de artista alemão Hansjorg Voth. Em especial para a Stairways to Heavens, não pela génese e função
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dessa mesma estrutura, mas sim pela simultânea delicadeza e imponência na paisagem que adquirem num deserto cheio de nada. Diálogo. O elemento comum de todos os projetos apresentados. Todos se abrem para um mundo exterior, dialogam com ele, aproveitam-se dele para acentuar a razão de existir. A maneira de olhar para um espaço e aproveitar o que ele nos dá.
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IV.
UM MAR DE RELAÇÕES
No poderoso promontório do Espichel, onde a serra da Arrábida mergulha abruptamente no mar Atlântico, parecem nascer – sobretudo à luz ainda pouco límpida do sol que desponta no nascer das manhãs, ou no trémulo fim de entardecer – as próprias neblinas da lenda e do mito. Como em todos os fins de terra, em que o horizonte do mar adivinha brumas de mistério e sustos de espanto, fronteiras naturais entre o conhecido e o apenas suposto, aqui se foram criando histórias de muito maravilhamento, se ergueram antiquíssimos cultos de perdida memória e se construíram seculares lendas. “Desde sempre me senti atraído pela atmosfera dos lugares - esse estranho e indizível sopro que não é feito de vácuo ar, mas de alma ou espírito, que nos povoa por dentro e em nós se alastra para marcar a mais longínqua das memórias. O Cabo Espichel é um desses sítios de exceção. Ali fui, em muito jovem, sofrer a insidiosa ventania que vinha do Oceano e salgava a espuma em murmúrios fortes. Murmúrios de quê eu não sabia então apenas o adivinho hoje; e bem poderiam ser aqueles mesmos que Camões evocava nos seus Lusíadas, falando dessa outra fímbria de terra de que o grande Gama se despedira ao partir em busca da Índia, quando depois de toda ela se esconder ”não vimos mais enfim que mar e céu”.(Luís de Camões, Os Lusíadas, Canto V.) O Cabo Espichel como uma unidade orgânica: espaço e luz, imensidão e trevas, mar bravio e vento, espuma e gaivotas, arquitetura e arte, natureza e pacificação, silêncio e infinitude, sob a égide de gerações de homens devotos na sua veneração do transcendente.”14 A oportunidade de trabalhar sobre um território com tanta matéria estimula o nosso cérebro a relacionar tempos, histórias, vistas, perspetivas... A matéria entra pelos mais diversos meios. Precisamente pela abundância dessa matéria surge a ideia de desconstruir um possível programa proposto para reabilitar o cabo espichel, numa tentativa de divulgação de acontecimentos que vão pontuando a costa sul do Cabo Espichel. As Maravilhas do Cabo que se escondem atrás de tortuosos trilhos de difícil acesso. Um percurso, uma rota, ou um caminho. Uma série de peças, estruturas ou plataformas expositivas, abrigadas do vento impetuoso do promontório através dos muros que lhes
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Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica, p. 15
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delimitam o espaço. Um motivo, o evocar a autoridade do Atlântico sobre a história do nosso país. “Portugal no Atlântico”. Ao estabelecerem-se relações, sejam elas quais forem, entre o presente e o passado, o imaginário e o real, a nossa mente sente-se recompensada e os sentimentos e a emotividade apodera-se de nós com mais profundidade. O percorrer convida a relacionar, o relacionar estimula o sentimento, o sentimento reforça o foco e o foco está na arquitetura. A arquitetura floresce de relações que se manifestam de razões e intenções.
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V.
MUSEU PORTUGAL NO ATLÂNTICO
O “MUSEU PORTUGAL NO ATLÂNTICO” é um espaço fluido, aberto, em diálogo permanente com o sítio e com a envolvente, espalhado pelo Cabo, e que pretende através de um circuito que não é rígido, pontuado por várias construções, ir evocando momentos da nossa História dos Descobrimentos, e levar o visitante a sentir e perceber as razões, os sentimentos e as emoções das Descobertas, que no fundo é o que se pretende expor e partilhar. É também o resultado da interpretação da história do Cabo, do reconhecimento do seu valor humano e patrimonial, da sua singularidade, e da vastidão de referências que oferece. É ainda o aglutinar de tanta informação para que o Cabo remete, informação própria ou longínqua, material ou imaterial, informação que lhe confere as razões da sua forma, do seu desenho e do seu objetivo. As incontáveis referências obrigam, para que não se adulterem, a um grande cuidado no desenho, depois a uma evidente coerência construtiva, que pode ser progressiva mas ordenada, e ainda a refletir uma lógica rigorosa e racional. Apesar de “espalhado” pelo Cabo tem que ser uno, percetível e coerente. Tem de respeitar a envolvente e cingir-se à própria dimensão, sem exageros desnecessários e fúteis, mas simultaneamente com o arrojo necessário que certos momentos impõem. Tendo o carácter de percurso ou circuito, deve ser descrito como quem o percorre. Desde o ponto de chegada, mais próximo do Santuário, até à edificação final, o “MAR”, o museu vai-se espraiando e procurando os locais que pela sua situação, exposição e relação com o mar, altimetria e relação com as escarpas, podem ser compostos com construções, umas mais simples, outras mais elaboradas, que representem o próprio percurso dos Descobrimentos. Não sendo o circuito rígido, pode ser visitado de modo aleatório, convidando o visitante a voltar e a contemplar demorada e sentidamente cada um dos pequenos espaços das diversas evocações. O próprio percurso interseta uma diversidade de outros trilhos já existentes, marcados pelo pés dos caminhantes ou pelas rodas dos motards e dos praticantes de BTT. Da interpretação da História dos Descobrimentos identifiquei cinco momentos que pretendo realçar, as “Motivações”, as “Descobertas”, os necessários “Instrumentos e Embarcações”, os “Mitos e Lendas” e as “Consequências”. Apesar do percurso voltar à origem, Casa da Água e a sua relação com o Santuário, há ainda um momento designado por “Mar”, que no fundo remete para a nossa vocação e paixão marítima,
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paixão que nos levou tão longe, tanto nos engrandeceu e tantos mundos deu a conhecer. Os momentos são espaços de contemplação, meditação e exposição. Neles se fazem alusões aos descobrimentos com gravações talhadas na pedra, ou se expõem pequenas peças relativas ao tema. O percurso, ou circuito, é assim um modo de recordar e sentir a História, e ainda viver na plenitude todas as diversidades que o Cabo nos oferece.
O INÍCIO Quem sai da Azóia em direção ao Cabo Espichel apercebe-se da ausência gradual de construções, da presença do mar, ainda sem o ver, e, pela sua atmosfera, do aproximar de um lugar sagrado. A primeira preocupação é controlar o trânsito, que hoje é perfeitamente desorganizado, de modo a evitar conflitos com o que se pretende que seja um espaço de todos, mas devidamente estruturado. O estacionamento faz-se continuamente ao longo da estrada, evitando assim um parque de estacionamento agregado a um sítio específico do cabo e de grandes áreas, que traria uma mancha automóvel bastante desagradável e contraditória do que é toda a imagem do cabo e do que se pretende com o projeto. No fim da nacional apenas tem um pequeno parque em saibro escondido na morfologia da zona atrás da horta da casa das águas, que se destina exclusivamente para os autocarros que transportam peregrinos e outros viajantes. Pouco antes dos muros do complexo da casa das águas à nossa direita, o percurso de acesso ao santuário passa a ser apenas pedonal, impedindo a passagem dos carros e de camionetas para todo o recinto do santuário. Facto que hoje em dia acontece e que interfere brutalmente na vivência que o conjunto edificado e a sua cenografia pretendem transmitir. Nesta altura a pavimentação já é em saibro, material escolhido para o grosso da intervenção. A sua tonalidade condizente com todas as cores que lá se vêm, a sua sonoridade a anunciar cada passo dado naquele grande território e o facto de não criar lama foram condições que influenciaram na escolha. Ao dirigirmo-nos para o grande terreiro, atraídos pelas duas longas alas e cruzeiro a meio, somos acompanhados por um comprido passadiço em calcário, que nos leva até estarmos junto ao edificado. O passadiço surge na necessidade de geometrizar
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toda a zona de intervenção definindo uma grande ante praça antes do terreiro. A preocupação de não colocar nenhum elemento vertical para esse fim foi crucial na escolha deste passadiço, permitindo então uma vista desafogada, respeitando o plano de todo complexo do santuário, onde o terreiro continua a ser o único sítio onde o nosso olhar é encaminhado. Este longo tapete de calcário vem oferecer aos feirantes um chão mais duro e regular que o próprio saibro, mais cómodo para a colocação das respetivas mesas e panos já que se pretende que os romeiros regressem e se revivam as tradições mais ancestrais.
O SANTUÁRIO A intenção não é intervir no santuário, mas sim requalificar o espaço sugerindo uma futura reabertura. Enquanto isso não acontece, todas as cerimónias, encontros, festas e feiras que ali decorrem irão poder usufruir de infraestruturas e espaços que visam dar o mínimo de condições a toda esta área. Como já foi dito, todos os que escolhem o Cabo Espichel como local de visita, ou de culto, ou até de comércio, escolhem-no, certamente, não pelas condições cómodas existentes, mas sim por toda uma atmosfera que o lugar possui provenientes da sua natureza e história. Da falta de comodidades mínimas a inexistência de instalações sanitárias é a mais gritante. Há apenas uma cabine de plástico, daquelas que costumamos ver nas obras ou nos festivais. Mesmo havendo um pequeno bar sediado num acrescento que visa copiar uma linguagem popular de hospedaria. Para além do seu mau desenho coloca-se exatamente num sítio que sufoca um bonito e alto arco, porta de entrada para uma fração da ala sul do santuário cujo uso se relacionava com o Santuário. Pretende-se não rivalizar com uma obra como o Santuário, prevalecendo este como peça rainha de todo o promontório sagrado. Escondem-se discretamente as infraestruturas, não interferindo no sensível espírito de culto que o Santuário sugere. Um pequeno café e umas boas instalações sanitárias, um pavimento nobre, e um volume transparente destinado a exposição temporária e posto de informação, que se esconde dentro de uma ruina, é o que proponho para as imediações do Santuário. Pretendo que prevaleça a cenografia atual, não interferindo com nenhum volume pré existente e destacado. Procurei identificar o que tem e o que não tem valor, e decidi destruir o que não tem valor e apropriar-me do que tem, sem tocar no Santuário.
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Procurei intervir de modo quase cirúrgico, pontuando e escondendo, deixando as condições de vivências de grupo já existentes. Mantive todo o eixo axial igreja-cruzeiro-casa das águas, intervindo tangencialmente no lado mais a sul de toda esta zona, junto ao passadiço. Os espaços são regrados por esse tapete de calcário, que nos encaminha ao longo da ruína onde instalo o volume transparente destinado para exposições não permanentes, um espaço polivalente, com uma linguagem solta de referências, sem tocar em algum momento nas paredes de pedra solta e no chão de saibro. Crio ainda uma praceta mais aconchegante regulada por muros, pelos sanitários e pelo bar, sítio de uma esplanada, livre dos ventos impetuosos do cabo. O bar apropria-se do volume do arco e apresenta-se como o único volume torcido em relação ao tapete. Tem com um caráter muito fechado, acolhendo no seu interior um espaço calmo e descontraído como um retiro de toda aquela árida paisagem. O bar, muito simples, apenas se destina ao serviço de snacks e bebidas e não de restauração, para não rivalizar com a tradição dos cirios espichelenses que nas datas da romaria ali se instalam com as suas tendas e fogareiros à porta a confecionarem seus petiscos para as festanças que a seguir se fazem. Os sanitários tinham que ganhar um tamanho considerável, disponíveis para receber os tantos acontecimentos que ali ocorrem. Esta construção dá as costas para a praceta que finaliza o tapete, e vira-se para um pequeno pátio que lhes fornece luz natural e as traseiras da ala sul como fundo. Estas
são
as
infraestruturas
mínimas,
mas
confortáveis,
obrigatórias
para
o
funcionamento do cabo e suas vivências. Todas se encontram escondidas do imponente terreiro não perturbando toda aquela atmosfera particular. Dentro da ruína que acompanha o passadiço está situado o edifício destinado a exposição temporária em simultâneo com posto de informação. Executada com estrutura em aço a levitar do chão e revestida a vidro, permitindo que se sintam as paredes de pedra calcária desgastadas pelo tempo. Esta estrutura, de carácter fechado no seu meio, faz prolongar da sua laje de pavimento para um lado, e da sua laje de teto para o outro. O pavimento cria uma valsa que se estende para o lado onde a ruina esta mais composta. O teto estende-se para poente, para o lado da praça, definindo a porta de entrada para o museu pelo seu momento de tensão com a zona da praceta. O uso desta linguagem separa o que é para o santuário do que é para o museu, sendo o museu discreto, respeitador e pontual e o Santuário grandioso e regrado.
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Construtivamente, além do que já se disse do edifício de exposição temporária, é usado o betão em paramentos singelos e um tratamento de vãos com perfis simples e vidro.
O PERCURSO O percurso, estreito e delimitado do terreno natural por um lancil em chapa de aço corten que mal aflora acima do pavimento em saibro, molda-se à morfologia existente. Antes da entrada em cada uma das peças existe um banco e um painel em aço com um pequeno texto em forma de poema alusivo a cada uma das peças ou ao seu tema. Os temas que cada peça tem associado não seguem uma ordem cronológica pois não retratam acontecimentos em específico mas sim momentos relacionados, permitindo a que os utilizadores possam visitá-las aleatoriamente. Atribuo uma estrutura mais abstrata a todo o museu: partida-viagem-chegada.
AS MOTIVAÇÕES A expansão e divulgação do Cristianismo seria (talvez) a maior motivação. O pavilhão das “Motivações” é o único que estabelece uma relação forte com o edificado existente no cabo. Uma série de muros em calcário independentes e fragmentados, delimitam o espaço do pavilhão e focam o objeto (pré-existências) como elemento complementar à exposição. Sem pretender conflituar com as ruinas, absorve-lhe as referências. O visitante entra no pavilhão sobranceiro ao percurso, chegando inicialmente a um varandim à cota mais elevada donde se pode vislumbrar o farol. Seguidamente é convidado por uma rampa que nos leva para a sala expositiva, onde estará uma gravura ilustrativa dum combate entre os cruzados e os muçulmanos. O desenho do pavimento e os próprios muros sugerem o deambular até ao sítio onde se focam as imponentes traseiras da igreja, contrastando com a pequena ermida da Memória, simbolizando o grande poderio cristão sobre a religião muçulmana. Uma vez atravessada a sala expositiva somos abraçados por um corredor que nos larga novamente para o percurso, já a uma cota mais baixa em relação à entrada da peça e que nos faz perder a noção, por completo, de toda a zona do santuário. Entra-se
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agora num novo mundo que muita gente desconhece. O Cabo em todo o seu esplendor natural.
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Todo este “ar” que se sente na peça das motivações tem fortes semelhanças com varias situações que acontecem ao redor do santuário, onde a ruina está em elevado estado de degradação. A histerotomia provem dessa mesma linguagem que está presente junto ao santuário. À medida que as peças vão perdendo a relação com as pré existências vão simultaneamente ganhando outras formas, mais arrojadas pela falta dessas referências próximas. Em termos construtivos prevalece o calcário em peças de variadas dimensões e textura, quer nos muros quer nos pavimentos, remetendo estes às cartas de navegação marítima pelo desenho das suas linhas loxodrómicas.
AS DESCOBERTAS A peça designada “Descobertas” é um salão virado ao mar. Tem três patamares, o do meio protegido por uma cobertura em telas flexíveis, com uma geometria rígida e uma simetria perfeita, pretende levar o visitante a sentir a imensidão de mar que se lhe oferece e a imaginar o que está para além do horizonte. Inspira-se nas naus e caravelas portuguesas, no espaço enclausurado, e vai perdendo as referências com a envolvente próxima, porque quanto mais se entra mais se afunda. A entrada e a saída são as mesmas. Pode ser percorrida e passeada, mas obriga sempre ao retorno à origem. A geometria escolhida procura isso mesmo, como quem entra e sai duma embarcação sempre pelo mesmo passadiço. Ou ainda que por muito longe que se fosse esperava-se sempre que se votasse a casa. A inclinação dos paramentos de parede pretendem reforçar essa sensação de isolamento. Representa o convite que o mar nos faz para que o exploremos. Convite esse que em tempos foi aceite e que levou o nosso povo tão longe. Situa-se no ponto mais a sudoeste do cabo, isto é, o mais dentro do mar. É igualmente executada com blocos de calcário de diversas dimensões e texturas e volta no pavimento a referenciar-se nas cartas de navegação. A singela cobertura em telas representa as velas das embarcações, que se espera que dancem com o vento e acentuem o seu ruído.
OS INSTRUMENTOS E EMBARCAÇÕES Esta peça é a única que está integrada completamente no percurso. Compõem-se de uma travessia aérea através de uma ponte sobre a escarpa e sobre o mar, que vai
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subindo suavemente até entrar literalmente na escarpa, onde remata num espaço expositivo e de miradouro, encastrado na encosta. O conjunto ponte-miradouro-salão procura traçar uma marca clara mas subtil na face sul do Cabo. É, sem dúvida, um dos momentos mais “arrepiantes” do percurso. É o convite a viver as mesmas emoções dos navegantes, a sentir-se fora de terra, com o mar bravo por baixo e ao lado, que devia ser “bombordo”, uma escarpa violenta onde rebentam as ondas. O salão de exposição torna-se assim no espaço de descompressão, volta-se a ver o mar, mas controlado porque já se sente que se voltou a terra, e completa-se com um corredor para exposição de pequenas peças alusivas aos descobrimentos. Este corredor
é
estreito
mas
tem
uma
altura
assinalável,
como
a
procurar
desesperadamente a luz do sol. Remata com uma claraboia que ilumina as peças expostas. Toda a geometria é fluída e procura o encaixe perfeito no desenho e morfologia do Cabo, tornando quase natural as passagens a céu aberto como as partes em túnel. Construtivamente aqui prevalece o betão. A ponte e os tuneis são todos em betão armado, muros e pavimentos e tetos, quando existem. Apenas o pavimento da sala de Instrumentos e Embarcações é em lajeado de calcário e remete para a costa portuguesa e para a costa Atlântica de Áfriva.
OS MITOS E LENDAS Os mitos e as lendas que acompanham a história dos descobrimentos são inúmeros, sendo de realçar os alusivos à passagem de Bartolomeu Dias, pelo Cabo das Tormentas ou Cabo da Boa Esperança. A Peça “Mitos e Lendas” representa os medos e as dificuldades dos navegantes, e convida os visitantes a um desgastante percurso através de enormes escadarias, com passagem por um salão intermédio onde só se vê o céu e uma gravação numa parede inclinada do “famoso” Mostrengo, e um término num mirante sobre uma entrada de mar na escarpa. Dos feitos dos navegantes portugueses a passagem do Cabo das tormentas terá sido dos mais significativos já que dava a conhecer a existência de uma rota marítima para a India, rota demasiado importante para D. João II. Mas reza a História que não foi fácil, assim o diz Camões ou Fernando Pessoa, e, como tal deu azo à criação de muitas lendas e ao realçar de diversos mitos. A forma e o desenho escolhidos procuram suscitar os medos, os receios do escondido e do incerto, o susto pela aparição quase violenta de um espaço
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aparentemente agressivo, para no fim nos transportar a um espaço de contemplação da braveza da natureza. O caminho de volta já se faz mais tranquilamente, mas de modo igualmente desgastante. Tinha forçosamente de ser uma construção audaciosa, integrada num dos pontos mais abruptos da escarpa, e dirigida a uma particularidade da natureza, quando o mar corrói a terra e entra por ela dentro. Os métodos construtivos são idênticos ao da peça anterior. A prevalência do betão e a marcação apenas do pavimento da sala do Adamastor com lajeado de calcário.
AS CONSEQUÊNCIAS A peça chamada “Consequências” é um conjunto de espaços que permitem circular por várias cotas e por diferentes caminhos. Tem espaços de estar e espaços de observação e contemplação. Remete para o conhecimento que se deu ao mundo, para o domínio dos mares e das suas rotas, mas não ignorando os custos e as dores que geraram. É um espaço de relaxe, quase um remate da História de Portugal no Atlântico, representando a grandiosidade, a riqueza e o reconhecimento que Portugal atingiu. Pelo seu posicionamento tem uma relação evidente com as réstias do forte, evocando a arquitetura de natureza militar que tanto Portugal desenvolveu e espalhou pelo mundo. Mas não é o ponto final. Esta peça também conjuga o betão armado com um espaço pavimentado com lajes de calcário.
O MAR O mar foi o que nos sobrou. Nesta peça, a mais simples de todas, representa-se a forte relação que Portugal tem com o Atlântico. Não se manifesta com esta peça a tristeza de uma perda, mas sim o exemplo que devemos reter do que foi Portugal no mundo. Exemplo esse que nos pode vir a servir de modelo e de otimismo. Portugal tem e sempre terá uma relação forte com o Atlântico. Muitos podiam ter olhando-o como nós, mas fomos nós que o dominamos, primeiro com os olhos, depois com os desígnios e ambições, e depois com muito sofrimento e aventura.
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Porventura hoje somos diferentes, mas a nossa relação com o Atlântico é eterna, e terá começado por ser a mais arrojada. Fazer parte dos maiores feitos mundiais, ter um lugar de exceção na História Mundial, ter dado tanto à cultura e ao conhecimento. Esta peça tem simplesmente duas paredes em betão armado e um banco em calcário porque o que interessa mesmo é o mar.
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VI.
CONCLUSÃO
O museu “PORTUGAL NO ATLÂNTICO” pode ser um mero exercício académico, pode nunca ser realizado, pode não servir de referência a quem disponibilize algum tempo a tentar interpretá-lo, mas expressa inequivocamente uma violenta paixão que foi crescendo enquanto nele se trabalhou. É um projeto que foi desenvolvido com a convicção que é viável, que é consistente, que é devidamente fundamentado e elaborado no sonho de que um dia podia ser realizado, sonho que qualquer arquiteto tem, o de ver a obra pronta. Desde a primeira visita ao Cabo, desde a recolha de toda a informação, desde a investigação a que o trabalho obrigou, aliada à admiração que foi crescendo pela singularidade e beleza do local, o projeto foi ganhando progressivamente a coerência que se desejava. Eventualmente não expressa as angústias que se viveram nem as dúvidas que foram surgindo ao longo do ato de projeto, mas também são essas as que confortam e provocam a vontade de persistir e continuar. O tema “PORTUGAL NO ATLÂNTICO” era um desafio de peso, a proposta de criar um espaço museológico mais peso lhe deu, e a escolha de um local tão rico, quase o esmagou. Mas as adversidades são para serem ultrapassadas. Acho que em jeito de conclusão posso dizer que o desafio foi ganho, e que apesar da vastidão do espaço, da sua história e da sua matéria, atingiu-se um projeto controlado, devidamente referenciado, atento e respeitador das mais diversas condicionantes, e acima de tudo elevando o tema, “PORTUGAL NO ATLÂNTICO”.
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VII. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS Livros: Marques, Luís, 2007 – O paraíso no “fim do mundo” - O culto de Nossa Senhora do Cabo. Lisboa: Sextante Editora Norberg-Schulz, Christian, 1980 - Genius loci – Towards a phenomenology of architecture. Londres: Academy Editions Pato, Heitor Baptista, 2008 – Nossa Senhora do Cabo - Um culto nas Terras do Fim. Lisboa: Artemágica Ribeiro, João Mendes (Fátima Fernandes e Michele Cannatá/Isabel Penh), 2003 - João Mendes Ribeiro Arquitecto - Obras e Projectos 1996-2003. Porto: Edições ASA Sargedas, Carlos (Paulo Caetano, Luís Ferreira), 2014 – Cabo Espichel - Em Terras de um Mundo Perdido. Sesimbra: Carlos Sargedas Siza, Alvaro, 1992 – Francesco Venezia, Catálagos de Arquitectura Contemporânea. Barcelona: Gustavo Gili
Referências eletrónicas: EMF Landscape Architects, J/T Ardèvolemf, 2014 (2012)- Tudela-Culip (Club Med) Restoration Project in the Natural Parc ‘Cap De Creus’. Consultado em 15 de dezembro de 2014, de http://divisare.com/projects/207005-EMF-landscape-architectsJ-T-Ard-vol-Tudela-Culip-Club-Med-Restoration-Project-in-the-Natural-Parc-Cap-DeCreusTurrell, James e Holzherr, Florian, 2015 (2010) – Roden Carter. Consultado em 12 de fevereiro de 2015, de http://rodencrater.com/about Turrel, James, 2015 – Roden Carter. Consultado em 12 de fevereiro de 2015, de http://jamesturrell.com/roden-crater/roden-crater/introduction/
Referências das Imagens: Todas as imagens são da minha autoria
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Fátima Fernandes, arquitecta PHD Professora do Departamento de Arquitectura da ESAP Membro do Laboratório de Investigação – LIA Representante do Curso de Arquitectura da ESAP na rede PHI Portugal 00351 96 5809469 Largo de S.Domingos nº 80 4050-545 Porto t. 00351. 3392130 www.esap.pt www.esap.pt/mestrado-integrado-arquitetura
To whom it may concern, As Pimenta Dias da Silva’s professor at Escola Superior Artística do Porto ESAP, I have had an opportunity to observe the student's participation and interaction in class and to evaluate his knowledge of the subject matter. I would rate the student's overall performance in these subjects as high: - Surveys. - Drawing of conception; - Drawing of representation and communication of the idea, - Drawing of detail; - Execution of scale models; The engagement and passion for architecture that He demonstrated while my student of the 5th Year in the discipline of Project of the Course of Architecture at the Escola Superior Artística do Porto were essential supports for the success of the Academic Year of 2013-2015. Possessor of irreproachable treatment and position, Pimenta Dias da Silva made possible with exemplary opening and contribution, the discussion and resolution of all the joined problems. Further more, that in workmanships where if it comes to verify the necessities of this type of involvement, we will not hesitate in appealing to its valuable services.
Fátima Fernandes arquitecta
May 20, 2016
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