Bellzebuu, nr. 3, contra a censura, junho de 2019

Page 1

Mutismo E de repente as bocas foram convidadas a deixar os rostos. Às que não aceitaram, línguas decepadas. De repente, não! Muitos viram o facão sendo amolado. Muitos pesaram a mão do carrasco. Muitos inflaram sua garganta, o sangue a escorrer pela voz. Agora, as bocas apátridas, por detrás do muro verde-oliva, velam as línguas que se decompõem no subsolo da memória. Mesmo o carrasco desaprendeu a gritar. Os rostos, que não beijam mais, que não mais clamam por justiça, ainda podem chorar. E choram. Choram muito. Inclusive porque não conseguem sentir o gosto da saudade. Matheus Arcaro/SP

Nº 3 - Censura - Belo Horizonte / MG , junho/2019


( interferências de Sérgio Fantini em verbete da Wikipedia)

QUOD ERAT DEMONSTRANDUM

O propósito da censura está na manutenção do status quo, evitando alterações de pensamento num determinado grupo social e a consequente disposição de mudança de paradigmas políticos ou de comportamento. (Arte altera.) Desta forma, a censura é muito comum entre instituições religiosas e governos, como forma de fazer a manutenção do poder ou constituir hegemonia. (O fiel escolheu entrar ali, o cidadão, não.) A censura procura também evitar que certos conflitos e discussões se estabeleçam na sociedade, pelos mesmos motivos: alterações de pensamento e a consequente disposição de mudança de paradigmas. A censura pode ser institucionalizada, proibindo a informação de ser acessível, após ter sido analisada previamente por uma entidade censora que avalia se a informação pode ou não ser publicada (entidade censora = pessoas sem a menor competência para entender o que estão julgando), ou pode tomar a forma de intimidação governamental ou popular, onde as pessoas passam a ter medo de expressar ou mostrar apoio a certas opiniões, com medo de represálias pessoais e profissionais (você não sabe se a porrada veio do policial ou do seu vizinho); nesse caso o modus operandi dessas instituições se assemelham a certos tipos de terrorismo. (Terrorismo: estamos chegando lá.) Pode também a censura ser entendida como a supressão de certos pontos de vista e opiniões divergentes, através da propaganda, da contrainformação ou da manipulação dos meios de comunicação. (Você já não assistiu à tevê o bastante?) Formas modernas de censura incluem concessões de rádio e televisão. (Compra-as quem pode, não as consome quem tem juízo.) Muitas vezes, a censura de governos se justifica em termos de “proteção do público”, mas, na verdade, esconde uma posição que submete artistas, intelectuais e grupos de movimento social ao poder do Estado. (cf. 1984, George Orwel et alii.) Com os recursos e o advento da Internet, os meios para instituição de censura foram em geral bastante prejudicados, apesar das ocorrências dentro da própria rede. (Nós não acreditamos que estaríamos livres, não é?) A convivência quotidiana com a censura pode suscitar, entre os produtores culturais e formadores de opinião, uma atitude de defesa bastante corrosiva — a autocensura, que consiste em evitar a abordagem de certos assuntos ou a não expressar opiniões que possam gerar situações de confronto com o poder. (CQD)


a esperança é uma mentira sim, dói destruíram tudo não, não melhora resta saber quem é o mais fudido tudo começou não sei quando sonharemos a vida inteira com victor heringer não, não gostamos do que fazemos tampouco acreditamos não fique à vontade afinal, não faz sentido tem essa pulga atrás da orelha tem essa vontade de sair correndo não, não foi um acidente sim, eu ainda sinto sua falta isso também mata é como ser atropelado sim, um beijo não, nunca só um beijo o nome correto é tortura não, não somos iguais não existe jeito certo marielle é mais que uma palavra eu calculo que dois tios, uma tia, quatro primos, nenhum amigo, vários vizinhos votaram em bolsonaro poesia não é só luz (ainda bem) eu sei quem foi não, você não tem menos medo do que eu isso não passa de marketing eu tinha oito ou nove anos na época o presidente é um canalha você não consegue chorar isso com certeza dói Regina Azevedo/RN


Noutra era ia-se Pensava-se A quarenta Tempo de ver a paisagem Enquanto se dirigia Para a festa Os bebês esperavam A celebração da vida Pensava-se Ledo engano Nunca Essa calma

PAÍS NO AUTOMÓVEL

A inércia ou o Pesadelo Ponta de fuzil Ficou claro O Brasil É oito ou oitenta.

Adriane Garcia/MG

Em memória de Evaldo Rosa e Luciano Macedo, assassinados pelo Exército Brasileiro em abril de 2019


adeus cidadezinha qualquer ontem decidimos ir embora cada um de nós juntou o livro a roupa o dito delírio e saiu ao sol olhando em frente rua a rua casa a casa a casca grossa de ser chutada a mão atrevida a cabeça quente o chão como macio bosque de míssil vida fresca ironia para as janelas em zoom: cada mente por trás dos olhos remoto corvo de ódio pavio curto pensa que censura e mata a gente os indesejáveis da aldeia morta mas decidimos ir embora ao sol quente em livre escárnio e gozo: nós temos o ainda, o quase, o porvir o ritmo vago e as vagas do desejo eles que fiquem em sua clausura ruína do amor e da fissura devagar, a pensar na morte besta da vida

Na escola Da cantina, o cheiro de alho retorcido

no banheiro, dois meninos copulam o diretor escreveu sobre a lousa onde repousavam apontamentos do MST: TUDO VAGABUNDO A secretaria cortou minha língua elencou meus temas proibiu a palavra sexo mas eu vi nos olhos da aluna grávida no aglomerado, não há sujeito indeterminado aqui o filme Roma roda todo dia.

Adri Aleixo/MG

Fabíola Mazzini/ES


DIZEM QUE NÃO PODEMOS FALAR Dizem que não podemos falar. Calar é coisa de obediente. Esconder a verdade é coisa de “gente de bem”. Ah, esse deus deles... “Oremos”! Dizem que não podemos falar das trapaças da ditadura. Da usura dos poderosos. Das injustiças contra Lula; o preso político. Da política de Moros e Morros. Dos militares enferrujados. Dos atrasos vomitados pela boca de quem vê fraquejadas nas mulheres. Dizem que não podemos falar das eleições fraudulentas. Das fraldas sujas dos “garotos”. Dos esgotos abertos deixados pela famiglia. Da homilia podre dos falsos cristãos que dão ou pedem dízimos, para enfim dizimar os pobres. Dizem que não podemos falar que querem matar os pobres. Seja por bala ou falta de Saúde, Educação e Cultura. Seja por falta de Poesia. E aos velhos, que se retirem aos seus aposentos, talvez no meio da rua, famintos e sem aposentadoria!

Dizem que não podemos falar das mentiras de um governo perverso, imerso em um mar de preconceitos e maldades. Dá mares que vêm para males! Do vexame imputado às mulheres, índios e gays. Dizem que não podemos falar que a corrupção não acabou, mas aumentou. Que a mamata cresceu e se espalhou nesse desgoverno. Que a mentira e a roubalheira viraram laranjais. Que as milícias matam pretos e pobres. Matam Marielles e todos que falam e sabem demais. Ainda que muitos não consigam enxergar. Ainda que existam fanáticos maldosos nesse inferno de Dante, pior que antes de 1985!

tico!)

Dizem que não podemos falar que nosso país agora tem o pior presidente. Que suas falas são imorais e indecentes. Que suas decisões não são condizentes com um país livre e democrático. (Ai, meu nervo ciá-

Dizem que não podemos falar, mas gritaremos se for preciso, em verso-prosa-choro-riso e a história irá cobrar.

Chris Hermann/RJ (vive na Alemanha)


som refugiado

arranca com a boca o silêncio do corpo

DEMETRIOS GALVÃO / PI

pronuncia o som refugiado liberta a divergência da musculatura a energia que multiplica a vida.


não posso falar da vida fora da Terra que sei eu da vida fora da Terra? da inteligência presente nas moléculas de proteína? das bactérias? sei que a humanidade tem febre arde que sei eu da febre? de quem arde? não posso falar do que queima do fogo comendo os barracos comendo o destino de outros humanos não posso falar do desespero de quem se queima quem perde de quem nunca teve tevê, geladeira, colchão e futuro com queimaduras de terceiro grau que sei eu do futuro? o presente é o que nos chama e precisa ser arrancado das mãos de deus ou do diabo não posso falar das chamas que o homem ateia incêndio de estimação criado no peito que sei eu do peito humano? não comemoro meu nascimento vou festejar abandono alheio? Adrienne Myrtes/PE (vive em SP)

mas não posso falar da vida fora da Terra diante da morte do meu semelhante tão diferente o incêndio dentro de mim arde e nubla os olhos com sua fumaça

morte que sei eu da morte? meu rosto envelhece diante do espelho d’água meus olhos cada dia mais abismados atestam a inabilidade com as palavras que sei eu da linguagem? de que maneira dizer do sentimento? não posso falar de mim porque o corpo espelha a humanidade inteira a poeira das estrelas que já morreram a dança das partículas subatômicas a vida se expandindo em todas as direções dentro e fora da Terra


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.