Lee Harvey Oswald - Conto de Tadeu Sarmento

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LEE HARVEY OSWALD

Conto de Tadeu Sarmento 1


Copyright © Tadeu Sarmento. Todos os direitos reservados. Revisão & Amor: Adriane Garcia.

“Os fatos narrados neste romance não são reais, embora pudessem ter sido, como a própria realidade o tem demonstrado” – Leonardo Padura.

Para Adriane Garcia, sempre & tudo.

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“Cansei de falar, vou até lá matar aquele filho da puta”.

Foi com essa frase que legendei o print de tela com o trecho do meu voo de Belo Horizonte à Brasília e enviei para o grupo da família no WhatsApp. Suspirei dois segundos depois e quase ri, olhando as luzes piscarem para além das largas janelas do aeroporto. Largas. Ana? Gargalhou até lacrimejar. Suas bochechas avermelharam iguais a seus ataques de rinite. Em seguida, lançou seu olhar bonito e comprido sobre mim, misto de ironia e preocupação – “espero que aquele seu irmão fascista não entregue você à polícia”. Ao ouvir isso, enruguei a testa por dois segundos e acrescentei uma risada à mensagem no aplicativo, voltando novamente os olhos para os aviões que partiam. Eu esperava. “Não posso imaginar de que maneira algo que pese toneladas consiga decolar desse jeito”, murmurei, lembrando do piloto que, uma semana antes, fez um pouso forçado depois que uma pane eletrônica o deixou às cegas no céu escuro. Ao contrário do que podia imaginar, essa lembrança me deixou um pouco mais tranquilo. Saber que existem pilotos tão bons assim. Fazer figa para que o meu seja um desses. Sempre tive medo de voar, daí as cinco doses de Jack Daniel’s que tomei uma atrás da outra antes de sair, enquanto arrumava a pequena mala de couro, suficiente para uma viagem rápida de dois dias. Sem chance de 3


melhorar. Aliás, foi o uísque circulando em minhas veias que me levou a considerar a possibilidade da delação que Ana sugeriu. Só que, menos de um minuto depois de enviar a mensagem, minha irmã mais nova respondeu com

memes de gargalhada. Fiquei um pouco mais aliviado e devolvi emoticons gargalhando. Seguimos. A cura para a ansiedade é a indiferença. Já para a indiferença não há cura. Atravessado os portões de embarque, o sinal do wi-fi sumiu, e fiquei sem contato com o mundo, que agora caminhava para alguma parte sem o meu consentimento. Não bastasse, a decolagem atrasou duas horas por conta do mau tempo. Chovia. Voltei a ficar ansioso. Relâmpagos riscavam o céu. Dessa vez Ana não me deixou beber mais nada. É ela quem traça diariamente a linha que me separa do alcoolismo. Só que, para mim, manter essa linha não é sacrifício algum, o que só prova que eu poderia tomar mais uma dose. De qualquer forma, este é o raciocínio de todo alcoólatra que se preze e respeitei a regra para mantê-la sorrindo. Depois lembrei dos diários de John Cheever, onde ele descreve a batalha que era só começar a beber após o meiodia, como se só se caracterizasse alcóolatra aquele que começasse a beber antes disso. “Isso até ele descobrir na velhice que é sempre meio-dia em algum fuso-horário do planeta”. Sem comunicação com o grupo da família, não vi mais as consequências da minha mensagem. Fiquei com o estômago gelando e as

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mãos suadas, entregue às minhas fantasias. E se a turbina incendiasse, ou a polícia federal estivesse me esperando no desembarque? Tortura, pau-dearara? Duas horas de atraso seria tempo suficiente para avisar as autoridades da intenção que minha mensagem sugeria? Parecia óbvio que sim. O grupo da família é formado por três irmãs, três irmãos (contando comigo) e um pai em comum que, apesar da total incompetência como pai (demonstrada ainda no primeiro casamento) decidiu se casar de novo e ter mais uma filha e dois filhos – como se o problema estivesse no mundo, e não nele. Por isso, as mães não foram adicionadas ao grupo, já que a única coisa que nos acorrenta ali é a maneira que cada um encontrou para sobreviver, a despeito do pai que teve. Não que minha mãe tenha se saído melhor que ele. A verdade é que quando eu tinha quatro anos de idade os dois se separaram. Foi o suficiente. Assim que conheceram outras pessoas, decidiram que os filhos em comum eram um entrave para o recomeço da vida de ambos. O resultado? Vivi longe de minhas duas irmãs por um bom tempo, uma vez que quicamos feito bolas em direções opostas, na casa de tias, de avós, de padrinhos. Com o segundo casamento, meu pai ampliou um pouco o curto alcance de sua incompetência, finalizada com o abandono por dez anos dos três filhos do segundo casamento. Minha mãe (não por prudência, mas por

laqueadura) não teve mais filhos.

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É preciso muita culpa para manter no ar um grupo de família no WhatsApp e isso temos de sobra. A culpa se alastra rápido. Tem o contágio fácil de uma risada. Com ela, a compaixão e o ressentimento. É comum entre pais que abandonam os filhos tratá-los como crianças mesmo depois de adultos e é isso que nosso pai faz com maestria. O problema é que o tempo perdido não pode ser recuperado. Nunca. Mesmo que você pergunte mais de dez vezes por dia se sua filha de quarenta e três anos tomou o remédio contra a gripe. Não. Essa pergunta deveria ter sido feita trinta anos atrás. No mínimo. Aliás, tomar o remédio contra a gripe deveria ter sido a única preocupação de minha irmã mais velha naquela época e não o receio de se desvencilhar das tentativas de abuso sexual do marido de nossa mãe. Onde estava nosso pai, hoje tão online? Provavelmente na vara de família, explicando ao juiz porque não podia ficar com a guarda dos filhos. Claro. Eu poderia perguntar também onde estava nossa mãe. Mas ela não faz parte desse grupo de família no WhatsApp. Nele, meu pai é a única estrela. E ele tenta brilhar. É meu pai quem abre o teatro ridículo e diário com seu “bom dia, filhos queridos”. Ao longo do dia, as respostas espaçadas dos meus irmãos completam a artificialidade da coisa toda. Apenas eu e minha irmã mais nova, filha do segundo casamento, não respondemos nunca. Talvez porque tenhamos memória. Mas essas investidas paternas dão mais pena que qualquer outra coisa, desse jeito, o restante costuma aparecer de modo automático, respondendo ao 6


cumprimento iguais àqueles Teletubbies que acenam para o sol que nasce com o rosto narcótico de um bebê amarelo-brilhante. O fato é que não são as grandes tragédias que nos destroem; mas essa pequena infelicidade do dia a dia, esses gestos rotineiros e hipócritas; um sofrimento ameno e sem consolo que julgamos ser capazes de suportar até que, um dia, uma gota d’água torne tudo insuportável e você saia do grupo com fama de “encrenqueiro”. O que tais grupos de aplicativos de celular impõem para nós é a presença daqueles que só veríamos nas festas ou nos enterros; nada além de um grande tapete branco onde todos dançam em cima, depois que a sujeira é varrida para baixo. A convivência de espectadores não envolvidos de verdade. Só que essa paz estúpida e cansativa, ruminada de “bom dia filhos

queridos” e de uma infantilização de adultos maiores de trinta anos, foi quebrada durante a última campanha para presidente, que dividiu famílias e polarizou o país inteiro. Todos nós sabemos: tivemos nosso Trump tropical à frente de uma extrema-direita tosca e brega, que venceu as eleições com base em notícias falsas e lutas inexistentes contra inimigos imaginários: a ideologia de gênero, o socialismo no Brasil, o politicamente incorreto, as mamadeiras com bico em formato de pica cabeçuda. Dos irmãos, apenas dois infames declararam voto no fascista, coincidência ou não, dois homens brancos, para os quais toda a felicidade do mundo foi prometida. O grupo acabou virando palco aberto de provocações políticas. De um lado o tiroteio serviu para sacudir o pó e o tédio daquele espaço irrespirável de amabilidades artificiais. 7


De outro, serviu para revelar monstros. E quando digo “monstros” não estou falando apenas deles. Imagine então que, frase enviada, todos saberíamos de quem eu estava falando: do líder supremo dos brancos fracassados; destes que, a exemplo de meus irmãos, não conseguiram conquistar o mundo e colocaram a culpa da própria derrota nos negros, nos pobres e, principalmente, nas feministas. Quer dizer, todos sabemos muito bem que essa é a principal razão para o fascista ter sido eleito. Foram essas pessoas quem, entendendo direitos como privilégios, carregaram o anão nas costas, de modo que isso não deveria ser tão difícil assim de ser colocado em palavras. E eu pus. “Tem certeza que não quer sentar na janela”, Ana perguntou. Claro que ela mexia comigo de propósito. Eu jamais sentaria perto da janela. Jamais. De avião algum e em hipótese nenhuma. Tanto que nem respondi, limitando-me a agarrar os braços da cadeira como se tudo fosse se despedaçar a qualquer momento. Notamos o avião vazio, fato que as poucas pessoas esperando na fila para embarcar já denunciava minutos atrás. Nada demais, afinal, foi para isso que o presidente mentecapto também foi eleito: para evitar que negros ou pobres viajassem de avião. Colocaram um despreparado perverso no poder para manter longe dos aeroportos todos aqueles que, na primeira crise econômica que chegar, reencontrarão na rodoviária. Mas por enquanto estamos aqui, em aeroportos transformados em grandes shopping centers,

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onde jecas tatus acima do peso andam para lá e para cá e sorriem como se Adão não tivesse mordido a maçã do conhecimento. Os avisos luminosos se acendem. A aeromoça inicia os procedimentos de bordo. Informa que, apesar de a aeronave estar com cadeiras sobrando, ninguém poderá trocar de lugar, uma vez que, por exemplo, sentar perto da saída de emergência é privilégio apenas de quem escolhesse pagar uma passagem mais cara. “Pagar para ser a primeira pessoa a escapar em caso de acidente”, Ana disse alto, acrescentando ser isso o que o capitalismo faz com as pessoas: obriga-as a decidir quem morrerá primeiro: “e quase sempre a escolha são os pobres, desculpa, quase sempre não, sempre”. Bom, fiquei pensando nisso enquanto o avião decolava e meu estômago parava na garganta. O medo? O medo tem gosto de plástico. Ana? Não só olhava a janela para baixo quanto para cima. Segundo ela, livre da iluminação artificial das cidades, o céu exibe o espetáculo de estrelas bem próximas e em maior quantidade. Uma máquina de fliperama suspensa no nada. Ela debochava de mim, claro, tanto que permaneci reto e na minha, notando por um rabo de olho que Ana sorria, abrindo o romance Por cima do mar, de Deborah Dornellas. Curiosidade automática de um leitor que esqueceu um importante item para a viagem, notei que, do meu outro lado (eu estava sentado no meio), uma mulher também abria seu laptop, para ler um artigo médico em inglês, alternando sua atenção com um curioso vídeo sobre o famoso assassinato de Kennedy. Nesse vídeo (pelo que eu pude perceber, de óbvias conotações 9


conspiratórias), um dos seguranças que corre ao lado do carro do presidente olha na direção do tiro cinco segundos antes do disparo, diminuindo a velocidade das pernas. A impressão que se tem é que quis sair do campo de visão do atirador. A cena se repete inúmeras vezes e em câmera lenta, o que acabou me dando sono. Cochilei em um piscar de olhos e, quando os abri, estávamos aterrissando na capital federal. Acordei curioso e contrariado e quase pergunto à mulher a que conclusão o vídeo chegou. Suas pernas eram finas pernas de flamingo. Ela usava um daqueles vestidos brega de festas ao ar livre. No desembarque, nenhum policial esperando por mim, apenas a filha da amiga que fomos visitar no distrito. Muito parecida com a mãe, nós a reconhecemos de imediato. Eu seguia suando frio. Acho que estava mal do estômago.

“Foi Deus quem colocou ele lá”.

As ruas de Brasília são as ruas de um filme distópico em super-oito. E só lá é que minha ficha foi cair: de fato o presidente de extrema-direita havia sido eleito. Ponto. Cartazes nas ruas, faixas de saudação, outdoors. Tudo parecia funcionar no automático, a despeito do desgoverno que perseguiu, exonerou funcionários, fechou ministérios, anunciou demissões pelo twitter e 10


desdisse, em cada um dos seus primeiros sete dias depois da posse, informações desencontradas e ruídos de comunicação. Que importa? Glória, nossa amiga, estava bem contente com nossa visita e não parou de falar um só dos dez minutos de carro que separam o aeroporto de seu apartamento na superquadra. Sua filha dirigia e ria. De minha parte, estava admirado com a objetividade matemática das ruas, sua organização, com as sinalizações milimetricamente perfeitas. Brasília dá a impressão de ser um outro país. Pelo menos o Plano Piloto. Tudo plano, tudo regular. Chegamos. Agora já fazem duas horas que chegamos. Glória está feliz para lá e para cá, porque aceitamos seu convite para ficar com ela e a filha, e não em um hotel. Sorrimos. A cadela Lala vem comer na minha mão e o bom e velho Mitre deita-se no meu pé. A primeira é vira-lata; o segundo, um cão salsicha com doze anos de idade (um ancião, para os cachorros). Começa a chover. Bebemos ouvindo a chuva repicar lá fora. Imaginava garagens inundando. Vez ou outra eu bisbilhotava o grupo de família. Nenhuma repercussão a mais. Tudo calmo. Glória falava do seu trabalho como funcionária da câmara: dos horários, da falta de educação dos deputados, ou sobre quem levava prostitutas para as festas e quem não levava. Fomos dormir. Ficamos em um quarto com uma cama de frente para uma estante cheia de livros. No dia seguinte, almoçamos em um restaurante chique de frente para as águas calmas do Lago Paranoá, cortesia de nossa anfitriã. Ao contrário das águas, permaneci tenso. Olhava para os lados com a expressão de quem está 11


apertando uma daquelas bolas de borracha de fisioterapia, Ana o tempo inteiro pisando no meu pé debaixo da mesa. À medida que o almoço avançava fui ficando mais asfixiado. Levantei duas vezes para ir ao banheiro. Deixei a água corrente da torneira escorrer pelos meus pulsos. Tossi, com medo de estar tendo um ataque cardíaco e voltei. Sentei com as costas mais endireitadas. Pedimos café, depois, pedimos a conta. Minto: a sobremesa e depois a conta. Nossas anfitriãs resolveram nos levar por um passeio de carro até a praça dos três poderes, passando pelo Congresso Nacional, Ponte JK, Palácio da Justiça, do Itamaraty e, finalmente, o Palácio da Alvorada, residência oficial do primeiro Presidente da República a acabar com a simpatia forçada dos grupos de família do WhatsApp. Estava tão concentrado que nem percebi minha mãe ligando para mim diversas vezes, o celular no silencioso durante todo o passeio. Se eu estivesse mesmo ali para matar o presidente, o que restaria dele para matar, depois que a burocracia o engolisse, ou que seus danos ao país se tornassem irreparáveis? Nada, provavelmente nada. Minha mãe, aliás, também votou nele. E não só votou: ela o defende com unhas e dentes, tendo sido uma das principais disseminadoras de notícias falsas de toda a campanha do “mito”. A primeira vez que li sobre a “mamadeira de piroca”, por exemplo, li na página pessoal dela. Minha mãe sempre foi presa fácil das mentiras. Isso desde sempre. Hoje, acredito que seja por causa da apneia diagnosticada há poucos anos. Falta de oxigênio no cérebro causa idiotia? Ou imaginação excessiva? Não sei ao certo. Orelhas 12


roxas eu sei que causa, por conta da máscara conectada à máquina que injeta ar nos pulmões do usuário durante o sono. O que sei é que parte do que minha mãe acredita depende de sua predisposição para tanto. Não acreditou na primogênita, por exemplo, quando ela disse que sofria investidas do seu marido. Deve ser por isso que minha irmã mais velha arruma um jeito de desesperar nossa mãe, sempre que pode, o que pude constatar assim que voltamos do passeio e ouvi o áudio enlouquecido que minha mãe me mandou. Às vezes, não há nenhum aviso, e tudo acontece em segundos: “meu

filho, que história é essa que sua irmã me contou, que você está em Brasília com intenções más no coração”... a gravação segue com choros e gritos de “se nosso presidente foi eleito é porque Deus quis, não lute contra Deus”. Minha irmã tinha enviado o print do grupo para minha mãe. Quase pude vê-la de outras vezes, ao centro do mesmo ataque de raiva e pânico, agitando os braços, os cabelos despenteados de uma louca. *** À noite, esticamos até o bar Beirute. “Tem esse bar no romance da Deborah”, Ana falou. De fato, o romance começa em Angola, passa e termina voltando para Brasília. É. Assim é a vida: toda ela começa em algum lugar e termina em outro. Um fim que não leva a nada, a não ser ao ridículo, depois que garantimos nosso lugar no fluir das coisas e os dias de batalha finalmente passam, sem que nenhuma vitória seja alcançada. Parte de um país inteiro era

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como minha mãe, e isso me deu uma tristeza daquelas. Pensei muito sobre isso, enquanto bebia uma cerveja horrível para acompanhar um conhecido à mesa. Depois disso, não houve muita coisa. E ali bebendo no meio de amigos, passando copos e garrafas, fiquei com vontade de ir embora, de voltar para o quarto onde estávamos tão bem hospedados diante da estante cheia de livros e reler os contos de Lucia Berlin que eu só conheci naquelas prateleiras. Tem um lugar no coração que nunca será preenchido. Nunca. E estamos todos morrendo disso.

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