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Admirável nova baiana
COM SUA ENERGIA CRIATIVA E SUA CONEXÃO COM A MÚSICA NO AUGE, PITTY SE APRESENTA ESTE MÊS NO LOLLAPALOOZA E, EM SEGUIDA, RODA O PAÍS COM UM SHOW QUE CELEBRA OS 20 ANOS DO LANÇAMENTO DE “ADMIRÁVEL CHIP NOVO”, SEU ANTOLÓGICO ÁLBUM DE ESTREIA
TODA MENINA BAIANA tem um jeito que Deus dá, como dizia Gilberto Gil, mas nem todas têm o mesmo jeito. Nascida em Salvador há 45 anos, a pequena Priscilla Novaes Leone sempre valorizou sua individualidade, seu próprio jeito de ser. Nunca se identificou com a euforia do axé, com a brisa lânguida de Caymmi ou com o hedonismo odara de Caetano. Identificava-se mais com Raul Seixas e com a marginália soteropolitana. Em meados dos anos 1990, começou sua trajetória na cena musical underground da Bahia com duas bandas de hardcore, a Shes e a Inkoma.
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Foi nessa época que Rafael Ramos, produtor e diretor artístico da gravadora Deckdisc, a “descobriu”. “Quando ouvi sua demo, foi paixão à primeira vista por sua música. A primeira impressão que ficou foi a de uma vocalista de hardcore extremamente afinada e talentosa. Ela era incrível em todos os aspectos, muito autêntica, brilhante mesmo”, recorda.
De lá para cá, Priscilla virou Pitica (por causa de seus 1,61 m de altura), depois Pitty e, a partir do lançamento de seu primeiro álbum, “Admirável Chip Novo”, em 2003, também passou a ser chamada de “Princesa do Rock” –apesar dessa coisa de princesa não ser muito a sua onda...
POR KIKE MARTINS DA COSTA
Hoje, com centenas de milhares de álbuns vendidos, bilhões de plays em plataformas de som digital, incontáveis prêmios e uma filha (a fofa Madalena, que veio ao mundo em 2016), Pitty é pura potência. Com sua voz poderosa e suas bem articuladas ideias, ela é mais do que uma cantora – é um farol para milhões de brasileiras e brasileiros.
Neste mês, ela será uma das atrações do festival Lollapalooza São Paulo, apresentando-se no sábado, dia 25. Em seguida, nos meses de abril, maio, junho e julho, vai rodar o país com uma turnê que celebra os 20 anos do lançamento de “Admirável Chip Novo”, uma obra que mudou a sua vida e a de muita gente, com suas letras que até hoje soam pertinentes e atuais. Naquela época, quando tudo ainda era mato no universo das discussões sobre questões identitárias, Pitty já cantava “o importante é ser você, mesmo que seja estranho” e “cada um em seu casulo, em sua direção, vendo de camarote a novela da vida alheia, sugerindo soluções, discutindo relações, bem certos de que a verdade cabe na palma da mão”.
“O rock é a minha essência, o meu estilo de vida. É por meio dele que eu me expresso e enxergo o mundo. Sempre fui de provocar, de questionar o status quo”, resume a cantora, compositora e produtora. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que ela concedeu à 29HORAS:
Qual foi a sua sensação quando, ao final de 2003, ver que seu álbum de estreia havia se tornado o mais vendido entre os lançamentos do rock nacional daquele ano? Como explicar o sucesso de uma nova baiana que de repente surge do nada e sem cantar axé, sem ser tropicalista e longe dos estereótipos de Marina Morena e de Gabriela Cravo & Canela?
Foi a realização de um sonho, um desejo que soava como loucura, utopia, insanidade. Não parecia possível haver algo assim, especialmente naquele cenário dos anos 2000, no auge da música baiana “tradicional” e do axé. Era uma boa época para o rock brasileiro – nas rádios do Sudeste tocava muito Charlie Brown, Planet Hemp, O Rappa e CPM. E a cena de Pernambuco se destacava com Chico Science e Nação Zumbi. Mas na Bahia era outra história. Eu já tinha minha banda de hardcore em Salvador, e ver o rock nacional bombar me inspirava a seguir. Mas, parecia uma maluquice que uma menina baiana pudesse viver de rock no Brasil. Como assim? Assim, mesmo, ora! Meu existir significava avisar que baianos não são todos iguais, que não cabemos em estereótipos, que somos diversos e que tem muito nordestino que curte rock, jazz, blues e outros estilos musicais.
Desse primeiro álbum, cinco faixas já se tornaram clássicos do rock brasileiro (“Máscara”, “Admirável Chip Novo”, “Equalize”, “Semana Que Vem” e “Teto de Vidro”). Como clássicos, essas canções não envelheceram e seguem atuais musicalmente e nas letras. Como você explica isso?
Não sei explicar, só sentir [risos]. Fico maravilhada e grata. Quando a gente escreve, compõe uma canção, os sentimentos e a inspiração contidos ali simplesmente vêm. Pelo menos assim é para mim. E aí, quando essa canção vai para o mundo e ocupa esse espaço na vida e na história das pessoas de forma tão profunda a ponto do tempo se dissolver, é algo mágico e imprevisível. Essa é a beleza da arte e especialmente da música, que envolve as pessoas com a poderosa tríade “letra-ritmo-melodia”. Especialmente nesses últimos anos, tenho sentido como essas músicas continuam atuais para as pessoas. O povo comenta comigo pelas redes, e eu vejo isso nos shows também. Elas não soam datadas ou nostálgicas. As letras fazem muito sentido hoje – quiçá até mais sentido hoje. E eu fico muito feliz de saber que seguem fazendo sentido para mim também, porque assim eu posso continuar a cantá-las nos shows de forma verdadeira.
O que mudou no mundo de 2003 para 2023? Onde avançamos e onde regredimos? Na sua opinião, o sistema que nos diz “pense, fale, compre, coma, beba, ouça, tenha” ficou mais forte ou menos poderoso?
Ele continua aí, e vai encontrando formas de se modificar através dos tempos e evoluir e se disfarçar à medida em que o identificamos. Como um vírus que vai mutando para encontrar novos hospedeiros. É a lógica que nos empurra para o consumismo, para o “ter” em detrimento de “ser”, para o culto à aparência, para a falsa liberdade do neoliberalismo. É o jeito que o mercado se apropria de pautas por motivações econômicas, e não éticas ou sociais. Como seres críticos, é importante refletirmos e termos consciência dessas questões, para que possamos escolher como queremos viver, que valores queremos praticar. Era sobre isso e continua sendo. Mas de 2003 para cá muita coisa mudou, e a questão da tecnologia é a mais evidente. Não havia internet como ela é hoje, nem smartphones, nem redes sociais. A comunicação era intermediada pela imprensa, pelo rádio ou a TV. Hoje as pessoas se tornaram o próprio meio e a mensagem. Todo mundo é influencer. Em relação às discussões e pautas, muita coisa não tinha nome ou não era chamada como fazemos hoje. Lembro da primeira vez que publicaram sobre mim “feminista!”, como algo pejorativo. Hoje, essa conversa está amplificada, assim como a questão das liberdades individuais, do respeito à comunidade
LGBTQIA+ e do combate ao racismo. Nesse ponto, avançamos. Agora, esse lance de ressuscitar a calça cintura baixa eu acho que não precisa, sabe? Aí é retrocesso [risos]!
E o que mudou em você de 2003 até hoje, como pessoa e como artista? Antes eu tinha tempo, mas não tinha dinheiro. Aí comecei a trabalhar e ganhar dinheiro, mas fiquei sem tempo [risos]. Eu tenho muito afeto e gratidão por aquela menina sonhadora e determinada, que conseguiu botar no papel seus sentimentos, se expressar e se comunicar com tanta gente. Continuo obstinada, inquieta e sonhadora; a cada projeto eu me reinvento, me desconstruo e reconstruo, de forma a não me deixar estagnar em zonas de conforto. Sigo me arriscando artisticamente, apostando no inusitado e nas experimentações sonoras, sem recorrer a caminhos já pisados ao subestimar o público achando que não vão entender..
Voltando para a música, como será o seu show no Lollapalooza?
Estou bem animada e preparando um show especialíssimo. Será a estreia da nova turnê, mas ali será apenas um gostinho, pois em festival nosso tempo de palco é reduzido. Quero mostrar a ideia do novo show em comemoração aos 20 anos do “Admirável Chip Novo”, e mesclar essa amostra da nova tour com outras músicas conhecidas – afinal, quero todo mundo celebrando com a gente. Vamos entregar um show intenso, vigoroso e divertido!
2022 foi um ano intenso. Você fez shows da turnê “Matriz” e rodou o país com Nando Reis no projeto “PittyNando”. O que te faz queimar de novo, como você mesma canta em “Ninguém É De Ninguém”?
Projetos desafiadores, isso me motiva, como foi “PittyNando”. Montar uma turnê dessa proporção, dirigir um show e uma equipe gigante foi algo novo e empolgante. E o Nando é um parceiro incrível, que não só me apoiou como me deu asas. Em “Matriz”, eu já havia me jogado nessa de dirigir show, de montar de fato um espetáculo. Gosto de propor essa narrativa através do roteiro – continua sendo um show de rock, não é uma peça de teatro. Mas eu entendi que adicionar algumas marcações, mudar o eixo da cena, encaixar a cor certa na música – tudo agrega e deixa a experiência mais sensorial. É usar os recursos cênicos como pano de fundo para as canções, não só subir lá e tocar. Enfim, isso é muito legal, embora também sofrido e angustiante [risos]. Mas a arte é meio que um parto: a gente fica ali gestando, sem enxergar direito, confiando na natureza de que está criando algo bonito. E só descobre qual é a real quando ele vai para o mundo e é compartilhado. Aí é uma coisa linda! Sinto que, neste momento, estou no auge da criação e da conexão com todas as linhas que formam essa teia.
Agora preciso te fazer a pergunta que não quer calar: quando teremos um álbum da Pitty com canções inéditas?
Em 2023, a prioridade será a turnê de celebração dos 20 anos de “Admirável Chip Novo”. Sobre disco novo, devo começar esse processo só após a turnê –aí eu vou parar pra me concentrar nisso.
Entre 2017 e 2021, você ocupou um lugar no sofá do “Saia Justa”, no canal GNT. Você curtiu a experiência, se sentiu à vontade naquela saia?
Nossa, eu adorei a experiência! Foi um desafio novo, e eu topei: estar ao vivo na TV toda semana, conversando sobre assuntos às vezes complexos – não era algo a se fazer de qualquer jeito. Me comprometi e estudei sobre cada tema antes de falar, me informava, pesquisava. Acho que, para esse lugar, é necessário ir além do “eu acho”. Claro que se trabalha ali também com a própria vivência, mas eu sinto que me informar e ter mais dados agregava à discussão e podia torná-la mais abrangente. A vontade de dialogar com pessoas diferentes de mim me levava a isso, também. Porque eu poderia me contentar em só falar o que já sei e o que penso; mas eu sinto que a comunicação pode ser mais ampla do que nós mesmos e nossos universos pessoais. E, ao mesmo tempo, nas conversas do programa também era possível imprimir a minha identidade, o meu jeito de ver as coisas – que geralmente é uma visão não ortodoxa, fora dos padrões, questionando o status quo. Gostava de ser provocativa e criar debates apaixonados.
Para encerrar, dá para ver nos seus shows e nas suas redes sociais que os fãs te acham cada vez mais gata e maravilhosa. Você se acha bonita? Nunca fui um modelo de beleza, muito menos do que se entende como padrão, e desde muito nova procurei encontrar beleza na estranheza, na diferença. Essa coisa da perfeição, especialmente pelo fato de ser mulher, sempre me soou muito opressor. Mas eu sou uma esteta por natureza – será que é coisa de libriana? Acredito que o belo pode estar em várias formas. Resumindo, tem dia que eu estou mais bonitinha do que outros, e depende muuuito do meu estado de espírito.