Crônicas de Olvaldo Piccinin

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Osvaldo Piccinin Crônicas de

a roça não sai da gente

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Coordenador do projeto Osvaldo Piccinin Coordenação editorial Ana Carolina Xavier Textos Osvaldo Piccinin Fotos Mario Friedlander Fotos do acervo da família Piccinin: pp. 17, 21, 25, 37, 39, 42, 43, 53, 83, 105,155, 191, 197, 215, 233 e 243 Fotos Fotolia: pp. 55, 115, 123, 165, 211, 227, 239, 241 e 245 Fotos Pulsar Antonio Roque Dechen: pp. 51, 149, 217 e 219 Fotos de Antonio Roque Dechen: pp. 93, 199

Projeto gráfico Silvia Massaro Arte da capa Rodrigo Neres Revisão Margô Negro Texto Agro Amazônia Iara Nunes e Luiz Piccinin

ISBN 978-85-67638-03-4

Este livro foi feito via Lei de incentivo a cultura © 2015 Cultura Sustentável Editoração. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida ou transmitida em qualquer forma ou por qualquer meio, eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia, gravação ou armazenamento sem permissão por escrito da Cultura Sustentável Editoração.

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Agradeci me ntos

Agradeço aos meus pais, Benedicto (em memória) e Maria, pelo sacrifício que fizeram para que eu e meus irmãos, Luiz e Neuza, pudéssemos estudar. Aos meus filhos, Thiago, Lucas e Matheus, minhas riquezas de que tanto me orgulho. À minha esposa, Norma, companheira de todas as horas e grande incentivadora desta obra. Agradeço a todos os personagens que me ajudaram a enriquecer o conteúdo deste livro. Agradeço aos leitores que apreciam as histórias, através de vários sites e jornais, onde são publicadas Brasil afora, especialmente ao site www.noticiasagricolas.com.br, na figura do carismático João Batista, e ao jornal Folha de Ibaté. Agradeço ao empresário e jornalista Luiz Carlos Feitosa, que através de seu jornal, A Crítica, ajudou-me a divulgar todo este trabalho. Agradeço aos meus sócios, Luiz Piccinin, Edson Keller, Roberto Motta e Marco Miranda, pelo apoio e incentivo a mim concedido nesta publicação. Agradeço à colaboradora Iara Nunes, pela dedicação para que tudo saísse a contento. Por fim rendo minha homenagem, com eterna saudade, ao Sítio Morro Azul, onde nasci, em Ibaté, SP, que foi palco de inspiração para muitas histórias aqui contadas. Obrigado Osvaldo Piccinin 5


S U M ÁRIO

AGRADECIMENTOS

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BANHO DE RIO

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EXAME DE PRÓSTATA? QUE SUFOCO!

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A ROÇA NUNCA SAIU DE MIM

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BAR DO TRINTA

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FECHANDO A CONTA DA VIDA

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CARTA DO PATROCINADOR

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BEM QUE TENTEI

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FIBRA DE PEÃO

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BENDITAS PIMENTAS

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FOGÃO A LENHA

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A ANGÚSTIA DA ESPERA

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CAÇADA DE ONÇA E OUTROS BICHOS

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JABUTICABEIRAS CENTENÁRIAS

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A CANÇÃO QUE PROMETI

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CACIFE DO JACARÉ

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LAMPARINA A QUEROSENE

138

A CARTA – DE PAI PARA FILHO

20

CADEIRA DE BALANÇO

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LOBO – MEU CACHORRO

140

A ESPINGARDA QUE MEU PAI ME DEU

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CARÍSSIMO CARLITO LOPES

86

MALDITA GANÂNCIA!

142

A LIÇÃO DO PATO

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CARRO DE BOI, POESIA E SAUDADE

90

MANÉ CEBOLA

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A MÃE DE TODAS AS VIRTUDES

28

CASA DO ESTUDANTE

92

MARIA ALEMOA

146

A MORTE COMO ELA É

30

CASAMENTO NA ROÇA

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MARIA-FUMAÇA

148

A PRIMEIRA VEZ NA PRAIA

34

CHUVA E DEVANEIOS NA MADRUGADA

96

MASCATES

152

A SENTEÇA DE MORTE DOS CÃES

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CLIMA DE VELÓRIO

98

MEU AVÔ ERA UMA FIGURA!

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A VARANDA DA FAZENDA LIMÃO DOCE

38

COLCHA DE RETALHOS

MINHA PRIMEIRA CALÇA JEANS

156

ÁLBUM DE FOTOGRAFIAS

40

MULA FORMOSA

158

ALEGRIA DE POBRE

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COLÉGIO DIOCESANO LA SALLE – SÃO CARLOS DO PINHAL

104

NA SOLEIRA DA PORTA

160

ANDO DEVAGAR PORQUE JÁ TIVE PRESSA 46

CULPA DO VIAGRA!

106

NERSO – MEU PRIMO SABIDO

162

ARAPUCAS DA MINHA INFÂNCIA

50

NINHO VAZIO

164

ARMAZÉM DO INÁCIO

52

DE MÉDICO E DE LOUCO TODO MUNDO 108 TEM UM POUCO

NO ESCURINHO DO CINEMA

166

AS CÔMICAS VIAGENS DE AVIÃO

54

DIA DE FINADOS

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NO SILÊNCIO – UMA GRANDE LIÇÃO

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ASSASSINOS DO PARQUE

56

DITO SORVETEIRO

114

O DIA EM QUE SAÍ DE CASA

172

ASSUM-PRETO, POBRE PÁSSARO

58

DOR DA SAUDADE

116

O DOMADOR DE BURRO CHUCRO

174

ATENDIMENTO PREFERENCIAL

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ENGENHO DE PINGA

118

O IPÊ-ROXO DO VERMELHO GRILL

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ATÍLIO BARBEIRO

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ESTAÇÀO DE TREM

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O meu PRIMEIRO EMPREGO

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AVENIDA SÃO JOÃO EM IBATÉ

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ESTILINGUE

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O VALENTE TETECO

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BANHO DE BACIA

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ESTRADA BOIADEIRA

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O VÍCIO DE FUMAR

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PADRE FREDERICO

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PAIOL DE MILHO

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PAPAI NOEL SE ESQUECEU DE MIM

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PEÃO DE RODEIO

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POEIRA DO LAÇO

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PREZADO AMIGO CONDE

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QUANDO FLORESCE O FLAMBOYANT...

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QUE BELÍSSIMO EXEMPLO

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QUERIDA MANA

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REGIME,COMO É DIFÍCIL!

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REI ROBERTO CARLOS

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RELÓGIO CUCO

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RICA INFÂNCIA

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RUGAS DO TEMPO

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SABIÁ-LARANJEIRA – NOSTALGIA

216

SERENATA DO ADEUS

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SITUAÇÕES constrangedoras

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TAMOIO – USINA DE SONHOS

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TELEFONANDO PARA O CÉU – ALÔ PAI! 226 TITÃO SAPATEIRO

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TONICO E TINOCO – INESQUECÍVEIS

230

TORRADOR DE CAFÉ

232

TRIBUTO À PRIMAVERA

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TROPEÇANDO NA HISTÓRIA

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UM NAVIO DE SAUDADE

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VELHA PORTEIRA

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VELHO, MEU QUERIDO VELHO

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riquezaS de uma terra distante

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A RO Ç A N U NC A S A I U DE MIM

A

ssim que me formei, passei um ano sem retornar à casa de meus pais, lugar de meu aconchego e porto seguro. Três mil quilômetros nos separavam e minha sensação era de que eu havia ido morar, para sempre, no fim do mundo. No Pará tudo era diferente: a cultura, os costumes, as comidas; enfim, nada a ver com o mundo em que fui criado de simplicidade e cumplicidade ao sabor da roça. Poucos amigos e muitos contratempos marcaram meu início de carreira em terras estranhas: doenças, solidão, insegurança e outras coisas típicas de um desmamado. Minha moradia se resumia num minúsculo apartamento de 25 metros quadrados. Foi lá que aprendi a “chorar calado, pensar quieto e desabafar com as paredes”. O trabalho duro e as viagens intermináveis pela Amazônia, por terra, água e ar, me ajudaram a vencer os desafios que a profissão me impunha. Gostar dessa exuberante e misteriosa região foi uma questão de tempo. Meu encanto por Belém, onde morava, foi tamanho que lá também encontrei o verdadeiro amor de minha vida. Casei-me na centenária, rica e suntuosa igreja Nossa Senhora de Nazaré.

Sentia muito a falta de casa, mas tinha consciência de que só seria possível voltar a passeio e por pouco tempo. A viagem de volta demorou oito horas devido às incontáveis escalas. Uma eternidade pra quem estava morrendo de saudade! Mas esse era o roteiro mais barato... E para quem tá começando a vida profissional cada tostão economizado vira poupança. Cheguei à minha pequena cidade, Ibaté, às 9 horas da manhã, tomei bênção de minha mãe e fui direto ao nosso sítio abraçar meu velho pai. Plantando feijão de matraca, mal se deu conta da minha presença. Ao notar-me tirou o velho chapéu de palha, olhou para o céu e disse: “Que grata surpresa é essa? Tô sonhando ou é verdade?”. Pude notar em sua testa marcada pelo tempo e em seu peito com rala cabeleira tordilhada o suor escorrendo em bica. O calor estava infernal! Não me contive e fui abraçá-lo fortemente. Num gesto suave me disse: “Estou todo sujo e suado, deixe-me passar uma água no rosto”. Ignorei seu apelo e o abracei com força beijando-lhe a testa. Pude sentir o sal de seu suor de homem honrado e trabalhador. Foi na labuta dura da roça que nos criou. Em seguida convidou-me para repartir seu almoço. Sua mar10


mita, recheada com boia-fria, preparada com carinho pela minha mãe às 4 da manhã, encontrava-se pendurada num galho de figueira, protegida das formigas e animais intrusos. Almoçou rápido, como de costume. Levantou-se de súbito, tomou uns bons goles de água fresca no bico do corote, que, submerso num pequeno córrego, mantinha sua sagrada água fresquinha o dia todo – sabedoria da roça. “Vou continuar o plantio porque a lua está boa e o tempo tá com cara de chuva.” Não tive dúvida, passei a mão na matraca reserva e puxei o eito junto com ele. Passamos boas horas plantando e conversando. Ficou um tanto incomodado ao ver minha disposição e disse: “Esse não é trabalho para um doutor formado, vai fazer bolhas e calos em suas mãos”. Retruquei: “Pai, pare com isso. Você se esqueceu do quanto fui bom num cabo de enxada ou num facão de cortar cana?”. Ao escurecer fomos embora e ele ficou pensativo quando soube que eu voltaria ao Norte em poucos dias. Do seu silêncio brotavam minhas maiores lições. Ficou calado por uns instantes, engolindo um nó seco que travava sua garganta. “Prometo voltar com mais tempo, brevemente.” Mal sabia ele que eu passaria quase mais um ano sem vê-lo. Nas cartas trocadas aliviávamos um pouco da saudade sentida. Parti com vontade de largar meu emprego e ficar por ali, perto do meu antigo ninho, mas segui viagem com a dorzinha da saudade latejando no peito. Assim é a vida, nem sempre temos o privilégio de escolher os caminhos de nossas jornadas. “Somos soldados a serviço da vida”, profetizou-me. “Faça sua cama enquanto é jovem e tem disposição e saúde, porque um dia a velhice será inevitável. O mundo foi feito para ser desbravado por homens fortes. Aproveite sua juventude, meu filho!”

A roça nunca saiu de mim, foi lá que meu caráter e quase tudo que aprendi foram construídos. É na simplicidade que encontro inspiração para vencer os contratempos. É na simplicidade que chego à conclusão de que vale a pena viver intensamente cada minuto da vida. E VIVA A VIDA SIMPLES DA ROÇA!

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C a r t a d o p at ro c i n a d o r

AGRO A M A ZÔ NI A

Guiadas pelo brilho da estrela Sirius, que brilha três vezes mais que o Sol e continua em constante expansão, as empresas por ela controladas seguem se expandindo e construindo suas histórias repletas de capítulos de sucesso, implantando novos processos e implementando constantes mudanças e inovações, visando sempre promover a seus clientes a melhor experiência. A missão de trabalhar pelo desenvolvimento sustentável do agronegócio é o que nos motiva a fazer sempre mais e melhor para o sucesso da nossa empresa, dos colaboradores, clientes, fornecedores e da sociedade. A construção de um processo de governança corporativa estruturado de forma a contemplar as melhores práticas de gestão nos permite continuar acelerando e ampliando a presença da empresa em novos mercados, conquistando novos clientes e fornecedores estratégicos. Atribui-se a essa forma de gestão a receita de sucesso que já passa de três décadas. A Agro Amazônia Produtos Agropecuários teve a sua primeira unidade inaugurada em Cuiabá em 11 de agosto de 1983,

tendo como foco o atendimento aos pecuaristas dos estados de Mato Grosso e Rondônia. Nessa década o agronegócio começou a dar indícios de que cresceria e se expandiria por meio da agricultura. Sempre atenta às tendências do mercado, a Agro Amazônia se estruturou para atender a esse segmento e iniciou o processo de firmar parceria com os maiores e melhores fabricantes de defensivos agrícolas do mundo, produtores de sementes e fertilizantes, treinou e qualificou seus profissionais para prestar aos agricultores serviços que contribuíssem para o aumento de sua produtividade, desenhou processos que promovessem segurança em suas operações a todos os envolvidos com seu negócio. O esperado crescimento da agricultura se confirmou e a Agro Amazônia Produtos Agropecuários o acompanhou, encerrando 2014 com 21 filiais e três escritórios distribuídos nos estados de Mato Grosso, Goiás, Tocantins e Pará. Tendo em seu time 289 profissionais levando soluções completas ao produtor rural. Oferecendo amplo portfólio de produtos, atendendo ao produtor do plantio à colheita. 13


ce do seu crescimento, norteiam as decisões de seus gestores e as ações de seus colaboradores que trabalham alinhados com esses valores. Isso faz com que a paixão que os sócios da empresa têm para com o agronegócio seja multiplicada pela equipe e assim revertida em melhores resultados para seus clientes. Seus sócios acreditam que o desenvolvimento da sociedade se dará de forma mais rápida e expressiva pelo investimento em educação e cultura, só assim teremos um mundo melhor para a atual e futuras gerações, e o resgate das raízes é primordial para que as novas gerações possam vivenciar os sonhos que não viveram e as gerações anteriores possam resgatar um pouco das suas origens. O patrocínio do livro Crônicas de Osvaldo Piccinin – A roça não sai da gente é a contribuição da empresa para a promoção da cultura brasileira e para alimentar a imaginação de seus leitores com o resgate que faz das origens simples de seu escritor, assim como foi a de muitas pessoas que tanto trabalharam para o desenvolvimento do agronegócio brasileiro.

Com o intuito de atender ao produtor de forma mais completa, em 1997 a Sirius decidiu ampliar seu portfólio, tornou-se concessionária da John Deere, a maior e melhor fabricante de máquinas agrícolas do mundo, inaugurando sua sede em Tangará da Serra, MT, e se expandiu rapidamente para outras regiões do estado de Mato Grosso e em 2007 ultrapassou fronteiras e se instalou em Mato Grosso do Sul. Com crescimento constante, em março de 2015 inaugurará a 12ª filial da Agro Amazônia Soluções Integradas. Nas filiais da Agro Amazônia Soluções Integradas o produtor encontra, além dos melhores equipamentos, peças originais e serviços prestados por profissionais capacitados para garantir que ele otimize ao máximo os recursos que só um John Deere pode oferecer. As duas empresas controladas pela Sirius têm como base os mesmos valores, que são: sustentabilidade, integridade, paixão, foco no cliente e segurança, que formam o alicer-

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A A NG ÚSTI A DA ES P ER A

Angústia da espera! Esta senhorita é prima-irmã da ansiedade, da aflição, do desejo ardente e da agonia. Refiro-me à sensação da ausência, da expectativa de ver in loco, de conferir, de tocar, enfim, aquela que um minuto demora uma eternidade. Quando nossos filhos partem, em busca de novos horizontes, novos desafios ou novas oportunidades, nossos corações se amiúdam. Mas quem pode segurar, no ninho, um passarinho empenado que contempla o azul do horizonte e o longínquo infinito como um mundo novo a ser desbravado? E eles voam, voam... Distantes da mamadeira e da submissão paterna ganham o céu. Não importa para onde irão, afinal este mundo a eles pertence. A força física e a irreverência da juventude lhes são peculiares. Da beleza somos suspeitos de falar, pois cada coruja “gava seu toco”. A coragem dessa gurizada chega a nos causar espanto e até certo desconforto, a ponto de nos perguntar: será que esta criatura está mesmo preparada para empreender essa jornada? Quantas foram as noites que, no silêncio de um fingido sono, ao lado do cônjugue, passamos boa parte rolando de um lado para o outro, pensando onde estariam, naquele momento, aquelas pessoinhas criadas com tanto zelo e carinho? Mas onde buscar força para seguir em frente como se no nos-

so caso tudo fosse diferente de casos desastrosos que conhecemos em outras famílias? As drogas e a violência passaram a fazer parte de nossas vidas. É quase uma roleta-russa escapar dessa realidade! E quando passam no vestibular e mal sabem dirigir? E com apenas 17 ou 18 anos nos pedem a chave do carro para ir numa balada? Sim, antes tem o tal do “esquenta”, regado a muita vodka e outras bebidas. Haja coração e conselhos, principalmente das mães, do tipo: meu filho com quem você vai? Aonde você vai? Que horas você volta? Olha, meu filho, não vá beber! E por aí vai. Até aí tudo bem. Seus voos são curtos, pois vão e voltam no mesmo dia, ou na mesma noite. Agora, quando vão estudar fora, longe de nossos olhos, o bicho pega. No início a mãe tenta controlar suas vidas como se possível fosse. Mas logo ela percebe que seu rebento quer liberdade, quer ser dono do seu próprio nariz. Quer correr o próprio risco e provar para ele e para o mundo que sabe se cuidar e não precisa mais da tutela de ninguém. Nessas horas eu procuro pensar em alguns dizeres e ensinamentos aprendidos ao longo da vida. Tais como: “Criamos nossos 16


Meus filhos, minhas riquezas

nos causa impaciência. E se houver atraso? Não acreditamos no aviso e vamos checar no balcão várias vezes. Pobre atendente! O tempo despendido aos pais é curto. Eles, assim como nós fomos, têm pressa. A prioridade é dos amigos. O desejo é viver a vida num piscar de olhos, com muita intensidade, contar suas mais novas conquistas amorosas e as vitórias profissionais aos amigos. O veião e a veinha, no caso da mãe, que se contentem com apenas um beijo na chegada e outro na partida, quase sempre no último minuto do segundo tempo, quando já anunciada a segunda e última chamada para o embarque. Vai com Deus, meu filho, viva com intensidade seu momento, porque o mais importante da vida é a largura e não o comprimento!

filhos para o mundo, entregue-os para Deus cuidar, porque nossa parte nós já fizemos”. “Filhos, nem tê-los, nem perdê-los.” Alguns nos dizem que essa preocupação é exagerada e desnecessária, afinal nós também vivemos as mesmas experiências quando desmamados – sobrevivemos e vencemos. É, pode até ser, mas pai é pai e sabe que filho é para sempre. A sensação de recebê-los no portão de casa, depois de meses ausentes, nos enche a alma de alegria e de certeza de que estão, sim, preparados para enfrentar as loucuras da vida. A demonstração de carinho do cãozinho de estimação é indescritível. “Meu cachorro me sorriu latindo / Eu voltei... agora pra ficar / Porque aqui, aqui é meu lugar.” Cada hora, cada minuto e cada segundo tornam-se modorrentos. A tela arrivals – chegadas – do aeroporto fica pequena e

E VIVA A CHEGADA SEM ANGÚSTIA!

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A C A N Ç ÃO Q U E P ROMETI

Nunca fui de prometer coisas e não cumprir. Pelo menos tenho tentado ser assim por toda minha vida, afinal essa foi uma das lições ensinadas pelo meu pai. Só prometer aquilo que se pode cumprir para não passar vergonha depois. Tive o privilégio de ver o movimento da Jovem Guarda nascer, prosperar com exuberância e morrer aos poucos – o que foi uma pena, pois este movimento nos transportava para um mundo de liberdade e fantasia, sem medo de sermos felizes. Foi um marco importante na vida de qualquer jovem daquela época. Jovens estes que hoje estão beirando 60 anos. A onda jovem era tão eloquente e contagiante a ponto de muitos de nós sonhar em ser cantor ou compositor, inclusive este que vos escreve. Meu ídolo maior era Roberto Carlos. Suas canções românticas tocavam fundo nos nossos corações. Com 16 anos de idade prometi que faria uma música para uma amiga da minha pequena cidade. Apesar de ser um pouco mais velha do que eu, não posso negar ser ela, na época, uma das minhas musas. Claro que nosso flerte, se é que houve, não passou de admiração mútua, pois éramos bastante reservados e respeitadores, como

se dizia na época. Não tinha essa de “ficar”, ou se namorava sério ou simplesmente ficávamos a ver navios! Depois de quase um ano entre a composição e a partitura, feita por um competente pianista e paga a duras penas, finalmente estava pronta a encomenda de minha querida amiga – Nelsia Terezinha Fraige. Hoje uma avó coruja e muito bem casada. Os recursos eram parcos, mas a vontade de ver uma composição minha participando do primeiro festival da música popular de São Carlos era grande. Graças à benevolência do saudoso amigo prefeito Nelson Rodrigues, os amigos foram me prestigiar na vizinha cidade de São Carlos, acomodados numa velha jardineira cedida pela prefeitura. Torcida, portanto, teve de sobra, talvez tenha faltado compositor. Eu era pretensioso, e confesso que não gostei muito quando o locutor anunciou: “Em terceiro lugar foi classificada a música A canção que prometi, de Osvaldo Piccinin, interpretada por Rubens Maciel”. Apesar desta belíssima classificação, eu sonhava mesmo era com o primeiro lugar. Só algum tempo depois, já na faculdade, é que pude refletir o quanto aquele prêmio foi importante, pois consegui provar a mim mesmo, em plena puberdade, que eu era capaz de fazer muito 18


mais. Essa ousadia foi um divisor de águas em minha vida – ganhei confiança e passei a acreditar mais no poder do pensamento positivo e a lutar pelos objetivos que se almeja alcançar na vida. “Hoje de manhã apanhei meu violão / Pensando em você / Eu encontrei inspiração”, assim era o começo do meu pretensioso samba, interpretado por um cantor e quatro mulatas fazendo coro e coreografia. Foi emocionante, e eu mal podia acreditar que era minha aquela canção aplaudida em pé pela plateia. “Pois isso é tão verdade que os passarinhos em seresta / Cantaram um coro em festa / A canção que eu prometi / Agora, meu bem, / Estou em paz / Minha promessa eu cumpri / Não lhe devo nada mais.” E assim terminava minha primeira e única página musical. E VIVA A CANÇÃO QUE PROMETI!

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A C ARTA – DE PA I PAR A F I L H O

Hoje pela manhã ao remexer meu pequeno baú de recordações, deparei-me com uma cartinha escrita à mão há quarenta anos pelo meu saudoso pai. Amarelada pelo tempo, guarda em suas linhas, bem visíveis, demonstrações de afeto e carinho pelo filho que vive distante. Foi postada assim que me formei e fui trabalhar em Belém, no Pará − distante 3 mil quilômetros de casa. Chegou ao meu minúsculo apartamento em dezembro de 1974, faltando quinze dias para o Natal. Nela está a seguinte mensagem: “Querido filho, espero que esta o encontre com muita saúde. Estou escrevendo para lembrá-lo de vir passar o final do ano aqui em casa, pois se não vier esta seria a primeira vez, em nossa família, que passaremos o Natal e Ano Novo sem que estejamos todos reunidos. Eu e a sua mãe estamos sentindo muito sua falta. Ela quer saber se você está se alimentando direito e cuidando da saúde, pois a malária que contraiu é coisa séria. Se cuide! Por aqui está tudo bem apesar de muita saudade. O nosso sítio está bonito. Renovei quase todo canavial e construí mais uma granja, onde deverá abrigar mais 20 mil frangos. Está parecendo uma cidade com as luzes acesas durante a noite. Acabou de chegar quase 40 mil pintinhos. Daqui a cinquenta dias serão frangos pesando 3 quilos cada. Incrível, né?

As paineiras que você plantou entre as granjas estão lindas. Eu irrigo todos os dias. Meu sonho é vê-las florindo, igual àquela que tínhamos na margem de nosso riozinho, mas creio que vai demorar um pouco porque estão novas. Elas me fazem lembrar o dia de sua formatura, quando juntos arrancamos as três mudinhas debaixo de uma paineira velha em sua faculdade lá em Piracicaba. Sua mãe manda dizer que aquela gatinha que você tanto gosta deu cria − três branquinhos e três pretinhos. A porca Cassebra também pariu doze leitõezinhos. Estão muito sadios e acredito que não irá morrer nenhum. Só ela está muito magra, mas esperta. A Tata, sua irmã, está dando aula numa escola da Usina da Serra e está muito contente. Começou a namorar o Carlito da farmácia, que agora é soldado. Nós gostamos desse namoro, porque ele é de boa família e muito esforçado. Acabou de entrar na faculdade de engenharia em Araraquara e já fala em casar. O Luizinho, nosso caçula, também foi embora estudar, só vem pra casa a cada quinze dias, parece que está gostando da faculdade. Ainda está de cabeça raspada, do trote que recebeu dos colegas. Tá parecendo um cotonete − magro e cabeçudo! 20


Você sabe que não sou muito de escrever. Minha leitura é fraca, falta-me treino. Naquele tempo, mal se aprendia escrever o nome e rabiscar poucas palavras, já tinha que agarrar no cabo da enxada. Vou parar por aqui porque eu e a sua mãe somos dois manteigas. Fique com Deus e se cuide. Mande notícias. P. S.: o papagaio que você enviou pelo motorista do caminhão já aprendeu a falar meu nome e o da gatinha. Cada vez que olhamos para ele aumenta nossa saudade!”. E VIVA AS CARTAS CHEIAS DE SAUDADE!

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A ES P ING ARDA Q U E ME U PA I ME DE U

Há um equívoco comum entre as pessoas que se sentem superiores às outras. Curiosamente, o individualista se julga mais forte que o resto do mundo. Mas é o contrário. Você se fortalece muito mais quando assume as limitações e é humilde o suficiente para pedir ajuda. Para mim este é o verdadeiro herói e sábio. Depois de passar quase toda minha infância caçando com estilingue, forcei a barra para meu pai me dar de presente de Natal uma espingarda de carregar pela boca, tipo pica-pau, como chamava. Com apenas 11 anos de idade, pude sentir o gosto de me diferenciar dos demais primos da colônia do sítio onde morávamos. Afinal, portar uma arma de fogo era coisa para adultos e não para um pirralho como eu metido a homem. Como de praxe, nessas ocasiões, antes da entrega definitiva do perigoso brinquedinho, havia a entrega técnica – sempre acompanhada de muitas explicações quanto ao manuseio e aos cuidados a serem tomados. Meu velho pai confiava muito em mim, mas a pressão dos tios, mãe e primos para não me dar a tão sonhada espingarda pesava muito em sua consciência e na sua tomada de decisão, por isso tanta cautela. Herdei do meu avô o gosto pelas armas. O velho não largava

sua velha garrucha de dois canos por nada desse mundo. Dizia-me: “Homem de verdade tem que andar armado”. Passei a caçar com os adultos, sempre nos finais de semana, e me sentia o tal. O prazer sentido ao amanhecer, bem antes de o sol nascer, ainda com a relva molhada, me causava uma sensação de superioridade perante os meus primos. Era a pica-pau nas costas, no ombro o embornal com as munições e pernas pra que te quero! E lá íamos nós, com extrema ansiedade, tentar encontrar alguém com o qual nem encontro havíamos marcado. Nossos alvos preferidos eram as ariscas pombas e os tinhosos inhambus. Nas lavouras de milho recém-colhidas, nosso ponto de encontro. Dificilmente voltávamos para casa sem pelo menos um troféu para exibir aos demais amigos e familiares. Quando achava que já sabia tudo sobre a arte de caçar e manusear minha espingardinha, dei um vacilo que me custou um zumbido no ouvido até hoje. Um amigo, que, por ingenuidade, ignorância ou maldade, me sugeriu usar pólvora empregada em cartuchos, alegando ser mais potente. E o velho caninho da minha joia preciosa não aguentou e explodiu. Daí a sequela do zumbido no ouvido. 24


Meu pai, ao ouvir sobre o que havia acontecido, deu-me uma explicação jamais esquecida. “Você deveria ter me consultado antes de usar algo que desconhecia. Você achou que já sabia tudo e se deu mal. Sabe, meu filho”, prosseguiu o velho, “na vida a gente não sabe e não tem a obrigação de saber tudo, por isso devemos ter humildade suficiente para perguntar a quem sabe. E agora o que vamos falar para sua mãe? E para seus tios e primos que tanto me criticaram?” Depois de passado o susto e de ter levado um baita sabão, entendi que ser humilde não significa ser trouxa, mas sim precavido. Quanto mais sabedoria mais humildade se fará necessária. Nossos semelhantes perceberão em nossas digitais essa qualidade e seremos admirados e respeitados pelos nossos atos e palavras. Ao contrário do que acontece com o prepotente e arrogante, em que a soberba funciona como viseira. O tipo eu me basto padecerá pela vida afora, culpando a todos pelo seu fracasso, como se o mundo estivesse contra ele. E VIVA A HUMILDADE!

Espingarda pica-pau

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A L I Ç ÃO DO PATO

Sou da época em que cursar uma faculdade era coisa de alguns pobres teimosos ou de filhinhos de papai. Olhe que não sou tão velho assim. Estou falando de apenas cinquenta anos atrás. Os cursos superiores disponíveis se contavam em duas mãos. O mais comum era completar o primário, ir ajudar o pai na roça, ou arrumar um trampo para defender o pão de cada dia. Terminar o ginasial tinha certo status e era para poucos. E o sujeito enchia o peito para dizer que tinha o ginasial completo. Depois vinha o científico, o clássico e o normal. Cursava o primeiro quem tinha vocação para a área de exatas e biológicas, o segundo para quem tivesse vocação para línguas e direito, se não estou enganado, e o normal quem queria seguir o magistério. Muito bem, eu fiz parte daqueles pelados que lutou com muita dificuldade para fazer um curso superior, no meu caso agronomia. Exatamente por isso dou valor a tudo que conquistei e conquisto em minha vida. Como se diz: “Todos querem o perfume das flores, mas poucos sujam as mãos para cultivá-las”. Muitas vezes, a alternativa que nos restava, para fugir do cabo da enxada, era entrar num seminário e tentar se tornar padre. Dessa eu escapei, mas estive na boca da área. Até acho que a igreja não perdeu grande coisa!

Hoje em dia vejo com muita frequência amigos dos meus filhos trocarem de curso duas ou três vezes, sempre alegando que o tal curso não tem nada a ver com sua personalidade ou vocação. Na maioria das vezes, acabam sem fazer curso algum, ficando perdidos e sem rumo por um bom tempo na vida. Franklin Roosevelt dizia que quando uma pessoa fica como barata tonta ou pulando de galho em galho pela vida afora dificilmente será alguém bem-sucedido profissionalmente. “Franklamente” eu até conheço algumas exceções, mas acho que ele tinha lá suas razões. A pior coisa do mundo é não saber o que se quer da vida, ou, pior ainda, é quando a gente sabe, mas surge alguém, principalmente da nossa família, nos pressionando a desistir em nome das melhores intenções. Isso me faz lembrar a história infeliz do frustrado Joãozinho. Quando pequeno, queria brincar de boneca e seu pai proibiu, alegando ser coisa de veado. Aos 10, foi ajudar a mãe na cozinha e também foi proibido pelo mesmo motivo. Aos 12, queria ser bailarino e ouviu a mesma cantilena... Já com 16 anos cismou de ser cabeleireiro e seu pai o proibiu novamente alegando ser coisa de mariquinha. Aos 20, quis ser cabeleireiro e a família novamente 26


Sem dúvida, o ser humano tem vocação para exercer muitas profissões na vida, desde que tenha foco, muita dedicação e dignidade naquilo que faz. Aí é que entra a lição do pato. A pobre ave quer andar, voar, nadar e acaba não fazendo nenhuma delas bem feito. Em compensação, Deus lhe deu uma “sabedoria” incrível. Qual foi? Nascer com os dedos grudados pra não precisar usar aliança. “Amigo, lembre-se: se um dia fecharem a porta de sua vida, pule a janela, mas siga em frente.”

“cortou seu barato”, alegando não ser coisa para homem. Finalmente Joãozinho cresceu se transformou num belo rapaz. Hoje, é veado e não sabe fazer coisa nenhuma! É desse jeito!... Na minha época não tinha disso não! Primeiro a gente agradecia a Deus por ter tido uma oportunidade de estudar, depois estudava feito um maluco, para se formar sem repetir o ano. Em seguida, já com o diploma na mão, íamos à luta com muita garra para vencer na profissão que havíamos abraçado. Não tinha essa de mudar de curso. O sistema era bruto, amigo! E dava certo.

E VIVA A LIÇÃO DO PATO!

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A M ÃE DE TODAS AS V IRT U DES

Costumo dizer que ficar mais velho tem poucas vantagens, cito como exemplo o tratamento preferencial que recebemos nas filas, a experiência e a paciência adquiridas são as principais. E haja paciência para lidar com tantas adversidades neste mundo. Muitos, assim como eu, tiveram o privilégio de ser criados em famílias humildes, mas de caráter, em que receberam ótima educação. As dificuldades que passamos nas mais diferentes situações nos serviram para aprendermos a nos defender, desenvolvermos malícia e a entender e a respeitar melhor nosso semelhante. Puxão de orelha e tapa na bunda na hora certa também educam. Ou não? Para privilegiados, que enfrentaram as adversidades da vida, dei o nome de pinto de galinha caipira, pois demoraram um bom tempo de choco para se tornarem alguém e levaram muitas pancadas. Ao contrário dos pintos de chocadeira, que são mais protegidos das intempéries. Isso independe da classe social a que pertença o indivíduo, e sim do tipo de criação recebida e das respostas aos estímulos recebidos. O bullying, tão em voga nos dias atuais, corresponde a tirar sarro, ou fazer gozação da minha época. Nos colégios por onde passei, as zoadas frequentes em nada me afetaram, ajudaram-me, sim, a aprender sobre as voltas que esta vida dá, além de engrossar o couro do lombo para aguentar os trancos do mundo.

Penso que o excesso de proteção ao filho mais prejudica do que ajuda a criar anticorpos. Que me perdoem os psicólogos de plantão. Independentemente de qual tipo de “pinto” sejamos, não podemos nos esquecer de que do útero ao túmulo vivemos numa escola, por isso o que chamamos de problemas são apenas lições. Quando o sucesso bater em sua porta esteja certo de que não foi por acaso, este foi construído ao longo do tempo, tijolinho por tijolinho. Agradeça a todos os mestres e pessoas que lhe auxiliaram nessa caminhada. Com certeza parte da realização deles é assistir ao seu sucesso. A isso chamo gratidão – a mãe de todas as virtudes. “Os mortos recebem mais flores que os vivos porque o remorso é mais forte do que a gratidão.” Nascemos para ser felizes, diz um velho ditado. Nascemos para brilhar, vamos fugir dos pessimistas que nos cercam. Nesta vida temos que ser igual ao cavalo do desfile de 7 de Setembro: andar cagando e ser aplaudido, afinal a vida se resume em sonhar e resolver problemas. O sucesso é ir de fracasso em fracasso sem perder o entusiasmo, assim dizia Churchill. E VIVA A MÃE DE TODAS AS VIRTUDES!

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A MORTE COMO E L A É . . .

Lembro-me da primeira vez que fui a um velório. Contava com 6 a 7 anos de idade, morava na roça e morria de medo dos mortos. Já minha mãe, apesar de seus 80 anos, não perdeu um até hoje, só para ver quem chora mais e se o defunto está bem-vestido, corado ou pálido. Mas, voltando ao meu caso, fui ao funeral de uma velhinha, nossa vizinha de sítio, com 90 anos aproximadamente. Lembro-me daquela noite escura e do tempo armado para chover. Relampejava e trovejava muito, um verdadeiro cenário de terror para uma criança como eu. Para chegarmos lá, tínhamos de atravessar um canto de mata fechada e uma pinguela sobre um riacho, e esta, por si só, já me metia medo, devido à lenda da sucuri que engolia bois, crianças e cachorros que por ali passavam em noites escuras. Naquela noite, minha mãe sabedora do medo que eu sentia, resolveu dar um basta e disse-me: “Para perder o medo de defunto você precisa beijar o pé do infeliz. Quase caí de costas, pois ela falava sério e acreditava piamente nessa lenda. A partir daquele momento, passei a sentir pavor, em vez de medo, mas não poderia dar tanto na cara, porque desde pequeno éramos ensinados a acreditar que homem que é homem não chora e nada teme.

Nossa caminhada até ao velório parecia interminável, e a cada passo sentia como se o coração fosse sair pela boca. Não tinha como desistir, nem chorar, porque senão os primos mais velhos iriam zoar muito, ou seja, eu estava num mato sem cachorro. E, por falar em cachorro, o nosso corajoso guaipeca, de nome Chulico, nos acompanhava, acuando um tatu de vez em quando, e eu me perguntava: como ele pode ser tão valente e não ter medo? Bem que eu poderia ser como esse pestinha, quero só ver se ele terá coragem de encarar a falecida e passar na pinguela da sucuri. Ao chegarmos ao tal funeral deparei-me com uma cena jamais apagada de minha memória. Era apenas um bico de luz bem fraquinho; quatro velas acessas ao redor do esquife de cor roxa; um véu preto cobrindo o rosto; um chumaço de algodão em cada narina; e um lenço branco, tipo tiara, amarrado no queixo e na cabeça, provavelmente para ajudar no fechamento da boca banguela da pobre velhinha. Vestida de preto, usava meias marrons, daquelas fininhas que davam para ver as varizes azuis do pé. Um detalhe importante: ao mirar o corpo, numa distância de 3 metros, a única coisa visível era o nariz da velhota, por sinal muito avantajado. 30


Voltei mais apavorado ainda imaginando a chegada do meu dia, “se a morte é um descanso, prefiro viver cansado”, diria eu hoje. Aquele aranzel me deixou com tanto trauma, a ponto de passar uns quarenta anos evitando ambiente de velório, pois sempre arranjava uma desculpa para não comparecer. A volta para casa foi uma verdadeira tragédia e quase rasgo a saia de minha mãe de tanto agarrá-la. Deixando o lado cômico da morte, devo dizer que hoje sou espiritualizado, entendo melhor essa passagem para o oriente eterno. Todo mundo quer viver muito, mas ninguém quer ficar velho e muito menos morrer. Fico com as palavras do brilhante Paulo Autran quando disse: “Somente a morte nos dá a verdadeira dimensão de que viver vale a pena”.

Aí vinham na mente as histórias de bruxas contadas pelo meu pai e tios. Para completar o cenário, o corpo estava quase todo coberto por dálias, um tipo de flor de cheiro marcante, muito usado naquela época nos velórios do interior de São Paulo. Confesso que até hoje não suporto sentir o cheiro dessa planta. ... E minha mãe insistindo para que eu beijasse o pé da velhinha. Consegui no máximo dar três voltas ao redor do caixão, e só. Meu medo foi crescendo de forma incontrolável e comecei a chorar. Uma senhora, por certo parenta da falecida, ficou com pena de me ver soluçando daquele jeito, me levou pelo braço até a cozinha da humilde casa para me dar um copo de água e me confortar dizendo mais ou menos assim: “Não chore, meu filho, a nonna já era velhinha, estava cansada e sofrendo muito, ela não morreu, ela descansou, já cumpriu sua missão, um dia todos nós vamos morrer também”.

E VIVA A VIDA, PORQUE A MORTE É CERTA!

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