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Editorial
CONSELHO EDITORIAL
expediente
emos a alegria de apresentar a primeira edição da Revista Tributaristas. Chega-nos uma edição dedicada a fomentar a produção acadêmica em matéria tributária de graduandos e pós-graduandos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. O projeto reforça o papel de destaque da Universidade de São Paulo, que tem sido responsável por mais de 20% da produção científica do Brasil nos últimos 10 anos. Essa preeminência da USP deve-se ao seu qualificado corpo docente, mas também à excelência do seu corpo discente, conforme demonstram os belíssimos artigos publicados nessa edição. Representativa dessa posição privilegiada da doutrina aqui produzida, tem-se a inigualável escola de Direito Tributário capitaneada pelo Professor Emérito Paulo de Barros Carvalho. Por isso, a substanciosa entrevista obtida pelos seus redatores tem simbolismo significativo. Essa edição, dentre outras virtudes, permitirá ampliar a difusão dos temas relativos à tributação e ao fenômeno financeiro em nossa Faculdade, como meio valioso para estimular seus estudos, numa visão prática e teórica.
CONSELHO DOCENTE Heleno Taveira Torres Paulo Ayres Barreto Regis Fernandes de Oliveira CONSELHO DISCENTE Aristóteles Moreira Filho Guilherme de Andrade Orlando Thyago Pereira Trairi
ARTICULISTAS DESTA EDIÇÃO Aristóteles Moreira Filho Guilherme de Andrade Orlando Maíra Honório Fernandes Thyago Pereira Trairi
COLABORADORES Sérgio Montandon
Vida longa à Revista Tributaristas. DIAGRAMAÇÃO E PROJETO GRÁFICO Gabriel de Castro Hirabahasi
FALE CONOSCO revistatributaristas@gmail.com __________________________ A Revista Tributaristas é uma publicação independente de graduandos e pós-graduandos da Faculdade de Direito do Largo São Francisco. As opiniões expressas nos artigos são as de seus autores e não necessariamente as da Revista Tributarista Heleno Taveira Torres nem das instituições em que atuam. Professor Associado do Departamento de Direito Econômico, Financeiro e É proibida a reprodução ou transmissão de textos desta publicação sem Tributário da Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP autorização prévia. REVISTA TRIBUTARISTAS
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Índice
Entrevista com Paulo de Barros Carvalho, um dos maiores juristas na história do Direito Tributário Brasileiro e Professor Emérito na USP e na PUC (p. 13)
3 / Amortização e Depreciação sob a 18 / A decadência no direito tributário Lei do Bem – uma análise sobre as diferentes regras de aplicação e de interrupção por Aristóteles Moreira Filho do prazo decadencial 8 / A Imunidade Tributária dos Templos por Guilherme de Andrade Orlando Maçônicos: Maçonaria é Religião? 23 / E o direito tributário com isso? por Thyago Pereira Trairi
por Maíra Honório Fernandes
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Opinião
Amortização e Depreciação sob a Lei do Bem O incentivo fiscal do art. 19 da Lei nº 11.196/05 e as despesas com depreciação e amortização de ativos utilizados nas atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica por Aristóteles Moreira Filho Introdução: delimitação do problema ob- a Renda. A Instrução Normativa, por sua vez, jeto da análise em seu art. 4º, §11, expressamente exclui os encargos de depreciação ou amortização de bens A Lei nº 11.196/05 instituiu regime de incen- utilizados nas atividades de pesquisa tecnológica tivos fiscais às atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, para os efeitos da apropriação do benefício do art. 19 e inovação. No seu art. 19, particularmente, restou instituída da Lei nº 11.196/05. Por óbvio que o princípio da legalidade tribua hipótese de exclusão do lucro líquido, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, tária, que exige lei em sentido formal e material do valor correspondente a até 60% da soma dos como veículo normativo necessário à determinadispêndios realizados no período de apuração com ção da base de cálculo da obrigação tributária, pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação não se coaduna com a possibilidade de que uma tecnológica, classificáveis como despesa pela legisla- instrução normativa venha contrariar determinação legal, restringindo-a. ção do IRPJ. Resta, dessarte, examinarmos qual o alcance O dispositivo restou regulamentado pelo Decreto nº 5.798/06 e pela Instrução Normativa nº da cláusula de benefício, do art. 19 da Lei nº 1187/11, esta ultima que, introduzindo diversas 11.196/05, para aferirmos se o seu sentido é disposições inexistentes na lei ou no decreto, tem compatível com o enunciado do art. 4º, §11 da sido objeto de substancial controvérsia desde a Instrução Normativa nº 1.187/11, ou se este sua edição e fonte de grande insegurança entre dispositivo, ao pretender regulamentar o regime de benefícios à atividade inventiva, em verdade os contribuintes1. Efetivamente, a Instrução Normativa traz uma desbordou dos lindes legais e, então, padece série de restrições que não se identificam de de ilegalidade. É a análise que ora nos propomos. forma lhana na Lei, e dentre elas está exatamente a que se refere à possibilidade de enquadramento das despesas de depreciação e O conceito de dispêndios classificáveis amortização na hipótese do art. 19 da Lei nº como despesas operacionais 11.196/05. O enunciado da lei outorga o beJá dissemos em outra oportunidade que a regra nefício a todos os dispêndios realizados com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de ino- padrão do benefício fiscal instituído pela Lei do Bem vação tecnológica classificáveis como despesas é composta de dois critérios básicos: i) sejam reaoperacionais sob a legislação do Imposto sobre lizados gastos com atividade de pesquisa tecnológica Já tivemos oportunidade de analisar, em outro trabalho, a aplicação da Instrução Normativa em outra circunstância controversa, que é a da hipótese de subcontratação de P&D (MOREIRA FILHO, Aristóteles. “Os incentivos fiscais da lei nº 11.196/05 e o caso da subcontratação das atividades de pesquisa 1
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e desenvolvimento: interpretação, validade e aplicação no tempo da instrução normativa nº 1.187/11”, in Revista de Direito Tributário Atual nº 29. São Paulo, Dialética, 2013, p. 63). 2 MOREIRA FILHO, Aristóteles, op. cit.
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Opinião causam redução do patrimônio líquido da entidade, são, portanto, considerados despesas, o que inclui desde as perdas, passando por salários, depreciação e amortização, dentre outros. Neles se incluem os desembolsos propriamente ditos como também as reduções de ativos4. Como se vê, os dispêndios, enquanto sacrifícios de recursos patrimoniais lato sensu, consubstanciam despesas quando adquirem na realidade contábil da entidade o caráter de decréscimo patrimonial da entidade, conceito no qual se esquadrinham (i) a depreciação, enquanto perda sistemática de valor do ativo pelo decurso de sua vida útil, limitada por seu uso continuado, obsolescência e ação da natureza; (ii) e a amortização, enquanto perda sistemática de um valor do ativo em decorrência do prazo limitado, legal ou contratualmente, para sua utilização. Não é suficiente, contudo, para os requisitos da lei, que se trate de dispêndios classificados como despesa, mas que se trate de despesas operacionais assim consideradas sob o regime de apuração do lucro real, à luz da legislação do IRPJ. E aqui a determinação normativa é expressa: nos termos do art. 53 da Lei nº 4.506/64, restam reconhecidos como despesas operacionais os gastos incorridos com pesquisas científicas ou tecnológicas inclusive com experimentação para criação ou aperfeiçoamento de produtos, processos, fórmulas e técnicas de produção, administração ou venda. Esse dispositivo, per se, já seria suficiente para albergar as despesas com depreciação e amortização de ativos, desde que sejam estes utilizados para o desenvolvimento de pesquisas científicas e tecnológicas. A legislação vai mais além, de modo que, quanto à depreciação dos equipamentos e instalações empregados nas atividades de pesquisa tecnológica, determina especificamente, no seu §3º, a dedução como despesa
e desenvolvimento de inovação tecnológica; ii) sejam dispêndios classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ2. Comecemos pelo segundo critério. A Lei nº 11.196/05 instituiu, em seu art. 19, relativamente à apuração de IRPJ e CSLL, benefício incidente sobre a soma dos dispêndios realizados com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, classificáveis como despesa pela legislação do IRPJ. Por sua vez, a espécie objeto da nossa análise diz respeito à apropriação dos encargos de depreciação ou amortização de bens destinados à utilização nas atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento tecnológico; trata-se de aferir se esta possibilidade se subsome ao tipo legal da hipótese incentivada, do art. 19 da Lei. Dispêndios são, na definição de Aulete, gastos ou consumo de riquezas3. É conceito contábil que conota sacrifícios ou consumo de recursos patrimoniais realizados pela entidade no desempenho de sua atividade social, visando a produção e a oferta de mercadorias e serviços no mercado. O dispêndio ou gasto pode ser classificado como (i) custo, quando se trate de sacrifício de recursos realizado visando a aquisição de um bem a ser incorporado no ativo da entidade contábil, que provoca a alteração da qualidade do patrimônio da entidade, mas não da sua dimensão via acréscimo ou decréscimo, ou (ii) despesa, conforme se trate de sacrifícios de patrimônio sob a forma da saída de recursos ou da redução de ativos ou assunção de passivos, que resultam em decréscimo do patrimônio líquido, e que não estejam relacionados com distribuições aos detentores dos instrumentos patrimoniais, ensejando mutação patrimonial negativa na entidade, contabilizada no resultado do exercício. Os dispêndios não ativáveis que, causando mutação patrimonial, são levados a resultado, realizados no curso das atividades usuais da empresa e que assim 2 3
MOREIRA FILHO, Aristóteles, op. cit. http://aulete.uol.com.br/dispendio, Consultado em 05/08/2013. REVISTA TRIBUTARISTAS
Resolução CFC nº 1.374/11, item 4.33. computado como receita o valor do salvado dos referidos bens. 4
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Opinião operacional dos gastos respectivos5. Efetivamente, o art. 53 da Lei nº 4.506/64, reproduzido no art. 349 do RIR/99, reputa despesas operacionais todos os gastos com pesquisa e desenvolvimento, sendo, uma vez assim caracterizados os dispêndios, cumprido este critério da hipótese da norma padrão de incentivo, que é tratar-se de despesas operacionais sob a legislação do IRPJ. Superado o desafio da classificação fiscal-contábil da despesa com depreciação ou amortização, vejamos se tais despesas vinculadas a ativos da pessoa jurídica podem se enquadrar no conceito de atividade de pesquisa tecnológica ou desenvolvimento de inovação tecnológica, sendo este exatamente o outro critério da hipótese da norma padrão de incentivo, definido no regime de benefícios. Os bens de capital empregados nas atividades de P&D e o conceito de pesquisa tecnológica do regime de benefícios da Lei do Bem Os incentivos fiscais às atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento visam ao fomento ou indução da inovação no ambiente empresarial, definida, no art. 17, §1º da Lei nº 11.196/05, como “a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionali-
Art. 53. Serão admitidas como operacionais as despesas com pesquisas científicas ou tecnológicas inclusive com experimentação para criação ou aperfeiçoamento de produtos, processos, fórmulas e técnicas de produção, administração ou venda. § 1º Serão igualmente dedutíveis as despesas com prospecção e cubagem de jazidas ou depósitos, realizadas por concessionários de pesquisas ou lavra de minérios, sob a orientação técnica de engenheiro de minas. § 2º Não serão incluídas como despesas operativas as inversões de capital em terrenos, instalações fixas ou equipamentos adquiridos para as pesquisas referidas neste artigo. § 3º Nos casos previstos no parágrafo anterior, poderá ser deduzida como despesa a depreciação anual ou o valor residual de equipamentos ou instalações industriais no ano em que a pesquisa fôr abandonada por insucesso, 6 Art. 2o Para efeitos deste Decreto, considera-se: II - pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, as atividades de: a) pesquisa básica dirigida: os trabalhos executados com o objetivo de adquirir conhecimentos quanto à compreensão de novos fenômenos, com vistas ao
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dades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado”. A concessão dos incentivos não está condicionada à efetiva geração da inovação, contudo: os incentivos fiscais à inovação são outorgados em face das realização de atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento tecnológico, cujas despesas são elegíveis à apuração dos benefícios, e que visam à concepção de produtos ou processos inovadores. Daí temos dois conceitos interligados, (i) o de inovação, enquanto finalidade do regime de incentivos (outputs de inovação), e (ii) o de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, enquanto atividade-meio, realizadas visando a concepção de produtos ou processos inovadores e cuja realização gera a apropriação dos benefícios fiscais (inputs de inovação). Neste sentido, o conceito de inovação tecnológica, previsto no art. 17, §1º da Lei nº 11.196/05 se complementa com o conceito de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, que, por sua vez, está encartado no Decreto nº 5.798/06, art. 2º, II 6. O dispositivo regulamentar segrega P&D em cinco modalidades: (i) pesquisa básica dirigida; (ii) pesquisa aplicada; (iii) desenvolvimento expe-
desenvolvimento de produtos, processos ou sistemas inovadores; b) pesquisa aplicada: os trabalhos executados com o objetivo de adquirir novos conhecimentos, com vistas ao desenvolvimento ou aprimoramento de produtos, processos e sistemas; c) desenvolvimento experimental: os trabalhos sistemáticos delineados a partir de conhecimentos pré-existentes, visando a comprovação ou demonstração da viabilidade técnica ou funcional de novos produtos, processos, sistemas e serviços ou, ainda, um evidente aperfeiçoamento dos já produzidos ou estabelecidos; d) tecnologia industrial básica: aquelas tais como a aferição e calibração de máquinas e equipamentos, o projeto e a confecção de instrumentos de medida específicos, a certificação de conformidade, inclusive os ensaios correspondentes, a normalização ou a documentação técnica gerada e o patenteamento do produto ou processo desenvolvido; e e) serviços de apoio técnico: aqueles que sejam indispensáveis à implantação e à manutenção das instalações ou dos equipamentos destinados, exclusivamente, à execução de projetos de pesquisa, desenvolvimento ou inovação tecnológica, bem como à capacitação dos recursos humanos a eles dedicados;
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Opinião rimental; (iv) tecnologia industrial básica; (v) serviço de apoio técnico. Em princípio, qualquer uma das cinco modalidades de pesquisa e desenvolvimento pode demandar a utilização de instalações, equipamentos e intangíveis passíveis de depreciação e amortização. Decerto, malgrado as três primeiras modalidades, que concentram P&D em sentido restrito, sejam aquelas mais demandantes de equipamentos de pesquisa propriamente, a exemplo de infraestrutura laboratorial e conhecimentos sob proteção patentária, as modalidades de tecnologia industrial básica e serviço de apoio técnico exigirão por vezes ao menos as instalações em que se processem as suas atividades, e o equipamento mínimo para tal. Daí que todos os ativos e equipamentos adquiridos para o desenvolvimento das atividades arroladas no Decreto nº 5.798/06, art. 2º, II, definidas como pesquisa tecnológica e desenvolvimento tecnológico, e nelas empregados, geram, pela sua depreciação ou amortização, direito à apropriação de benefícios pelo regime incentivado da Lei nº 11.196/05. A propósito, sobre esquadrinhar-se de forma precisa na própria legislação incentivadora, na sua hipótese padrão, os dispêndios vinculados a bens de capital estão classificados pelo próprio Manual Frascatti como integrantes das atividades de P&D, como dispêndios realizados dentro de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica7. O manual elaborado pela OCDE, tornado referencia técnica internacional na análise do setor inventivo e na elaboração e aplicação de políticas públicas para a área, recomenda ainda que, na hipótese em que os bens sejam utilizados em outras atividades além daquelas de P&D, sejam apropriados de forma rateada segundo critério específico, para que sejam reconhe-
cidos como tais apenas os dispêndios relacionados com pesquisa e desenvolvimento. Esta recomendação é especialmente relevante na aplicação do nosso regime de incentivos, sob a Lei do Bem, na medida em que a legislação recomenda a contabilização dos dispêndios em contas específicas, ou seja, que não se imiscuam nas despesas elegíveis valores alheios às atividades de P&D8. De fato, consoante se demonstrou, os encargos de depreciação e amortização, quando decorrentes do emprego de ativos da empresa no desenvolvimento de atividades definidas como de pesquisa e desenvolvimento no regime de incentivos à inovação, consubstanciam dispêndios elegíveis à apropriação de benefícios, subsumindo-se na cláusula geral do art. 19 da Lei nº 11.196/05. Neste contexto, a própria redação do §11 do art. 4º da Instrução Normativa nº 1.187/11, ao excluir a apropriação de benefícios para os encargos de amortização ou depreciação de bens utilizados nas atividades de P&D demonstra já que, em princípio, tais encargos se enquadrariam, pelo seu conceito, e em face da hipótese padrão de incentivo, do art. 19 da Lei nº 11.196/05, na outorga dos benefícios à inovação tecnológica. Decerto, quando decreta que os encargos de depreciação ou amortização dos bens utilizados em P&D não se consideram dispêndios “para o efeito da dedução de que trata o caput”, significa que, em princípio, e para outros efeitos, seriam considerados regularmente dispêndios com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, ou seja, não fosse o dispositivo da Instrução Normativa nº 1.187/11, tais dispêndios seriam elegíveis. Ocorre que essa restrição efetivamente modifica, ou pretende modificar, o regime legal, do art.
7 OCDE. Frascatti manual: proposed standards for surveys on research and experimental development. Paris, OECD Publications, 2002, 6ª ed., p. 111. O manual recomenda que, ao invés de contabilizar-se a depreciação ou amortização, seja contabilizado como despesa de P&D todo o custo com os bens de capital empregados nas atividades inventivas. Tal postura, bem mais ampla do que a da lei brasileira de incentivos, se explica pelo contexto do manual,
em que se pretende aferir o volume de recursos como um todo empregado na atividade, ao passo que a norma brasileira se destina a colaborar, de forma incentivada, na definição da base de cálculo do IRPJ, para o que os custos de aquisição dos ativos não têm relevância vis-à-vis a finalidade desonerativa almejada. 8 Art. 22, I da Lei nº 11.196/05.
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Opinião 19 da Lei nº 11.196/05, que institui a política de incentivos, e os concede a todos os dispêndios com pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica classificados como despesas operacionais, não restringindo sua aplicação quanto a despesas específicas, muito menos àquelas relativas à depreciação e amortização de ativos empregados nas atividades de P&D. Daí porque ilegal, e, dessarte, inaplicável o dispositivo do do §11 do art. 4º da Instrução Normativa nº 1.187/119. Por fim, vale ressaltar que a hipótese incentivada do art. 19 da Lei nº 11.196/05 nada tem que ver com aqueloutras relativas à depreciação e à amortização aceleradas, do art. 17, III e IV da Lei nº 11.196/05. A primeira concede uma dedução extraordinária na apuração do IRPJ e da CSLL para as despesas em geral; as últimas aceleram no tempo a contabilização da depreciação e da amortização regulares de determinados ativos específicos empregados em P&D. Portanto, não se trata de regras que se excluem ou se impactam mutuamente.
concessão e elegibilidade, como critérios integrantes da sua hipótese padrão, os seguintes: i) sejam realizados gastos com atividade de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica; ii) sejam dispêndios classificáveis como despesas operacionais pela legislação do IRPJ. Os encargos de depreciação e amortização, quando decorrentes do emprego de ativos da empresa no desenvolvimento de atividades definidas como de pesquisa e desenvolvimento no regime de incentivos à inovação, consubstanciam dispêndios elegíveis à apropriação de benefícios, subsumindo-se na cláusula geral do art. 19 da Lei nº 11.196/05. E assim o são porque conformam dispêndios, por sacrifícios de patrimônio sob a forma da redução de ativos, que resultam em decréscimo do patrimônio líquido, e porque são classificados como despesas operacionais nos termos do art. 53 da Lei nº 4.506/64, e § 3º, desde que empregados os ativos respectivos nas atividades de pesquisas científicas ou tecnológicas. Daí resulta que a Instrução Normativa nº 1.187/11, no §11 do art. 4º, ao excluir a apropriação de benefícios para os encargos de Conclusão amortização ou depreciação de bens utilizados nas atividades de P&D, efetivamente desafia o regiOs incentivos fiscais às atividades de pesquisa me legal, pretendendo alterar o seu alcance e tecnológica e desenvolvimento têm, quanto à sua confrontando-o expressamente, no que incide em demonstrada ilegalidade.
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9 A Receita Federal do Brasil, em entendmento diverso, já aplicava a restrição referida antes mesmo do avento da Instrução Normativa, como demonstra a Solução de Consulta abaixo: Ementa: INCENTIVO FISCAL À INOVAÇÃO TECNOLÓGICA. DEPRECIAÇÃO ACELERADA INCENTIVADA. DISPÊNDIOS. Para fins de aplicação do art. 17, I, da Lei nº 11.196, de 2005, o valor excluído do lucro líquido para fins de apuração do lucro real, correspondente à depreciação integral, no próprio ano de aquisição, de máquinas, equipamentos, aparelhos e instrumentos novos destinados à utilização nas atividades de pesquisa tecnológica e desenvolvimento de inovação tecnológica, não constitui dispêndio, nem tampouco é classificado pela legislação do imposto de renda como despesa operacional. Dispositivos Legais: Lei nº 11.196, de 2005, art. 17; CTN, art. 111; Decreto nº 5.798, de 2006, arts. 3º e 6º; RIR/1999, arts. 299, 305, 312 e 313. (Processo de Consulta nº 149/10; órgão Superintendência Regional da Receita Federal - SRRF / 9a. RF; Decisão Assunto: Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica – IRPJ; MARCO ANTÔNIO FERREIRA POSSETTI - Chefe da Divisão; Data de decisão: 25/06/2010; Data de publicação: 02/07/2010)
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Especialista e mestre em direito tributário pela PUC-SP. Doutorando em direito tributário pela USP. Advogado.
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Opinião
A Imunidade Tributária dos Templos Maçônicos: Maçonaria é Religião? Entenda as razões que motivaram a recente decisão do Supremo Tribunal Federal por Thyago Pereira Trairi “O legislador assemelha-se ao generalíssimo de um grande exército. Um experimentado chefe militar não ordena as menores operações de tática: abstém-se de prescrever uma conduta para cada eventualidade. Dá instruções amplas: frisa diretivas gerais; delineia um plano de larga estratégia; deixa as minúcias de ocasião à iniciativa individual, ou aos subcomandantes. Também o legislador oferece preceitos abstratos; traça os lineamentos exteriores da ordem jurídica, dentro dos quais o intérprete acomoda o caso concreto, isolado, e às vezes raro”
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(Carlos Maximiliano)1
m antiga decisão da Suprema Corte norte -americana sobre a extensão dos efeitos da imunidade recíproca entre os entes da federação, Mr. Justice Jackson proferiu as seguintes palavras: “looking backward, it is easy to see that the line between the taxable and the immune has been drawn by an unsteady hand”2. Conforme se verá adiante, o caso que será exposto poderia ser utilizado como roteiro para a adaptação cinematográfica da poesia que ecoa das palavras de Mr. Jackson, pois além de lhes dar vida e colocá-las em movimento, ilustra que a mão reticente do legislador, ao economizar palavras necessárias à composição do núcleo material de determinada hipótese de incidência, por exemplo, ou utilizar vocábulos imprecisos, traz à tona o proeminente papel desempenhado pelo exegeta da lei, com todos os seus vícios e virtudes. Trata-se aqui da interpretação da imunidade prevista no artigo 150, VI, “b”, da Constituição Federal, segundo a qual é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir impostos sobre templos de qualquer culto. Inúmeros são os litígios judiciais que decorrem
de diferentes interpretações dessa norma jurídica, pois ainda que, conforme destaca em portentosa doutrina Heleno Taveira Torres3, as normas constitucionais dirijam-se imediatamente às unidades do federalismo, vinculando seus legislativos e respectivas administrações tributárias, essas mesmas regras imunitárias reportam-se mediatamente, porém, aos seus beneficiários, gerando condutas diversas por parte dos contribuintes. Dentre as inúmeras polêmicas decorrentes da interpretação do referido dispositivo - e.g. o caso dos templos onde se praticam seitas satânicas; o caso de grupos historicamente mais recentes que se autodenominam religião, como ocorre com a cientologia; a extensão dos efeitos da imunidade quando o local da prática do culto confunde-se com a residência de alguns dos praticantes, muito comum em terreiros de umbanda; a extensão dos efeitos da imunidade sobre receitas obtidas pela exploração econômica de estacionamentos, imóveis, livros e vídeos; etc – versa o presente caso acerca da incidência ou não da regra imunitária sobre os templos onde se pratica a maçonaria.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007. Ressalte-se que Carlos Maximiliano aponta a origem da comparação em Gaston May e Max Gmür. 2 US vs. Allegheny County, 332 US 174 (1944). Disponível em http://
supreme.justia.com/cases/federal/us/322/174/case.html. TORRES, Heleno Taveira. Direito Constitucional Tributário e Segurança Jurídica: Metódica da Segurança Jurídica do Sistema Constitucional Tributário. 2ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012.
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Opinião Inicialmente a instituição Grande Oriente do Rio Grande do Sul opôs embargos à execução fiscal buscando afastar a cobrança de IPTU pelo Município de Porto Alegre. Após ter o pedido julgado improcedente, interpôs recurso de apelação que também restou desprovido. O caso chegou então ao STF por meio de Recurso Extraordinário4, alegando a recorrente tratar-se das imunidades previstas no artigo 150, VI, “b” (templos de qualquer culto) e “c” (instituições de educação e de assistência social sem fins lucrativos), da Carta Magna5. O recurso, todavia, não fora conhecido no tocante ao art. 150, VI, “c”, sob o argumento de que haveria necessidade de reexame do conjunto fático-probatório, o que é vedado pela súmula 279 do STF6,7. Daí porque optamos por tratar somente da discussão relativa ao enquadramento da maçonaria nos templos de qualquer culto. Entendeu o Egrégio Tribunal que o vocábulo “culto” utilizado pelo constituinte está intimamente ligado à ideia de religião. Sendo a Maçonaria uma associação fechada, não aberta ao público em geral e que não tem e nem professa qualquer religião, não se poderia afirmar que seus prédios sejam templos para o exercício de qualquer culto. Trata-se, na verdade, ainda segundo os eminentes desembargadores, de uma confraria que, antes de mais nada, professa uma filosofia de vida, na busca do que ela mesmo denomina de aperfeiçoamento moral, intelectual e social do Homem e da Humanidade. Segundo o Tribunal, portanto, a Maçonaria não configura um “culto” na acepção técnica do termo, conforme quis a Carta Política, mas tão somente uma ideologia de vida. Uma vez que não possui dogmas, fica impossibilitada sua classificação como “religião”.
Mereceu destaque, ainda, o caráter paradoxal da instituição, pois embora apregoe a melhoria e aperfeiçoamento do homem e da humanidade, não são admitidos mulheres e analfabetos como membros da Ordem. Já no Recurso Extraordinário, a recorrente admite que há posição majoritária dentro da própria Maçonaria que entende não se tratar de uma religião na acepção “mais conhecida”. Tratar-se-ia, porém, da religião das religiões, pois além de exigir de seus membros a crença em Deus, O Grande Arquiteto do Universo (GADU), estimularia no maçom o desenvolvimento da religiosidade, sendo-lhe permitido ter suas próprias convicções religiosas. Nota-se, até o momento, que a discussão central reside em saber se o constituinte, ao utilizar o vocábulo “culto”, referiu-se necessariamente à ideia de “religião”, e em caso de resposta afirmativa, qual seria o conceito de “religião”. Vimos o Tribunal defender a ideia da religiosidade do culto, entendendo, todavia, que a maçonaria não configura religião em virtude da ausência de dogmas. Já a recorrente, ao alegar que se trata da “religião das religiões”, busca ampliar o conceito de “culto” utilizado pelo Tribunal para abarcar não somente as práticas das religiões propriamente ditas mas também os rituais das crenças que estimulem o desenvolvimento da espiritualidade do homem. Nesse sentido, interessante observar que a Procuradoria-Geral da República opinou pelo reconhecimento da imunidade, pois ainda que não se trate de uma “religião”, não é menos verdade que seus prédios são verdadeiros Templos, onde se realizam rituais e cultos, sob a proteção de Deus (GADU), objetivando elevar a espiritualidade do homem, retomando-se a tese, portanto, de que os “cultos” não necessariamente pre-
RE 562.351-RS, 1ª Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, por maioria de votos, j. 04.09.12, DJe 14.12.12. 5 Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: VI - instituir impostos sobre: b) templos de qualquer culto; c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei. 6 Súmula 279 do STF - Para simples reexame de prova não cabe recurso
extraordinário. 7 O Tribunal entendeu ainda descaber enquadrar a apelante como “instituição de educação ou assistência social, na medida em que estas desenvolvem uma atividade básica que, a princípio, deveria ser cumprida pelo Estado, o que não é o caso da Maçonaria”. Enfatizou-se que a maçonaria é uma associação fechada, não aberta a qualquer um que dela queira participar, com admissão restrita a homens maiores de 21 anos, mediante aprovação unânime por escrutínio secreto, sendo as assistências limitadas às viúvas, irmãs solteiras, ascendentes e descendentes que necessitem de auxílio. Daí porque não configura assistência social.
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Opinião cisam estar ligados à ideia tradicional de religião, mas sim à espiritualidade. O relator, Ministro Ricardo Lewandowski, entretanto, cita Sacha Calmon Navarro Coelho, Antônio Roque Carraza, Eros grau e Ayres Brito, para destacar que é possível encontrar na opinião de todos esses eminentes juristas a referência às religiões como as legítimas beneficiárias do preceito imunitário. Em consonância com o voto citado do Ministro Ayres Brito, Lewandowski entende que a imunidade dos templos de qualquer culto consiste em mecanismo que visa dar concretude ao artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal, segundo a qual “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de cultos e as suas liturgias”. A imunidade tributária, portanto, deve ser entendida com o intuito de não criar embaraços à liberdade de crença religiosa. Decorre então do próprio artigo 5º, VI, da Carta Maior, o requisito da religiosidade como complemento ao conceito de “culto” do artigo 150, VI, “b”. Cabe observar, entretanto, que uma leitura mais atenta dos próprios juristas citados pelo Relator enseja interpretações diferentes. Segundo o Ministro Eros Grau, (a imunidade dos templos de qualquer culto) “há de ser amplamente considerada, de sorte a ter-se como cultos distintas expressões de crença espiritual”. Eis aqui a ideia da “espiritualidade”, e não de religiões tradicionais. Segue o raciocínio de Carraza: “Muito bem, com a proclamação da República, que se inspirava no positivismo de Augusto Comte, foi imediatamente decretada a separação entre a Igreja e o Estado. O Estado tornou-se laico. Deixou de dispensar maior proteção a uma religião em particular (ainda que majoritária), para tolerar todas elas. Evidentemente, o Estado tolera todas as religiões que não ofendem a moral, nem os bons costumes, nem, tampouco, fazem perigar a segurança nacional. Há, no entanto, uma presunção no sentido de que a religião é legítima, presunção, esta, 8
que só cederá passo diante de prova em contrário, a ser produzida pelo Poder Público. Graças a esta inteligência, tem-se aceito que também são templos a loja maçônica, o templo positivista e o centro espírita”. Carraza chega a equiparar a loja maçônica e o templo positivista ao centro espírita, o que demonstra não haver qualquer critério objetivo para se definir o que venha a ser uma religião segundo a Constituição. Assim a argumentação do eminente Relator lembra um pouco a “unsteady hand” de Jackson mencionada no início do texto, pois a leitura das mesmas fontes permitiria concluir de forma diversa, segundo a discricionariedade de cada um. Lewandowski destaca ainda que a interpretação do referido dispositivo imunitário deve ser restritiva, conforme segue: “as liberdades, como é sabido, devem ser interpretadas de forma extensiva, para que o Estado não crie qualquer óbice à manifestação de consciência, como é o caso sob exame, porém, às imunidades deve ser dado tratamento diametralmente oposto, ou seja, restritivo”. E por acaso não seriam as imunidades tributárias normas relativas às liberdades religiosas? Conforme ensina Heleno Torres, “as imunidades, em face dos direitos de liberdade ou mesmo do federalismo, não têm o papel de garantir a fundamentação destes, mas de efetivar a concretização e realização dos seus propósitos, o que permite delimitar materialmente seu conteúdo”8. Ainda segundo o brilhante professor do Largo de São Francisco, as regras de imunidade são normas constitucionais com status de garantias materiais a direitos fundamentais. Não se justifica, portanto, a interpretação restritiva, como propugna o Relator. Enquanto os demais Ministros – Ayres Britto, Dias Toffoli e Cármen Lúcia - concordam com o voto de Lewandowski e optam por segui-lo, o Ministro Marco Aurélio demonstra não se ter convencido pelas razões expostas pelo Relator. Marco Aurélio afirma não ver
TORRES, op. cit., p. 621. REVISTA TRIBUTARISTAS
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Opinião na referência a templo, necessariamente a ideia de “religião”. O Ministro Ayres Brito discorda de Marco Aurélio para observar que a Constituição utiliza o termo “culto” em três oportunidades, sendo que em duas delas diz “cultos religiosos”. Assim, uma vez que a própria Maçonaria não se reconhece como “religião”, não há que se falar em imunidade pelo artigo 150, VI, “b” da Constituição Federal. Durante os debates, o Ministro Ricardo Lewandowski alega ter ficado preocupado quanto aos efeitos que o reconhecimento da imunidade poderia ter no que diz respeito a outras entidades semelhantes, como a cientologia. Confirma-se, assim, que a antiga parêmia Fiat justitia, pereat mundus (Faça-se justiça, ainda que o mundo pereça), filha primogênita da exegese tradicional, rígida, geométrica, silogística, há muito foi varrida do Direito Público. O caso da cientologia ilustra bem a recente busca por uma reformulação do que se entende por religião. O caso tem chegado às Cortes Superiores em diversos países. Em vários Estados a cientologia já é reconhecida como religião – e.g. Argentina, Austrália, Áustria, Croácia, Portugal, África do Sul, Espanha, Suécia e Estados Unidos – gozando, inclusive, em muitos desses países, de imunidade tributária, bem como do direito de celebrar casamentos. Segundo a instituição italiana Centro Studi sulle Nuove Religioni, a Suprema Corte italiana decidiu em 2000 que a cientologia é uma religião segundo as leis da Itália9. Entretanto, essa decisão é o resultado de uma batalha judicial que se arrastou por quase 10 anos naquele país. Em 1996 o Tribunal de Justiça de Milão entendeu que a cientologia não era uma religião. Uma vez que não havia qualquer definição legislativa de “religião”, e nenhuma lei fornecia elementos suficientes para distinguir uma religião de qualquer outro grupo social, o Tribunal adotou, dentre as inúmeras definições possíveis, aquela 9
segundo a qual religião é um sistema de doutrinas centrado na pressuposição de existência de um Ser Supremo que se relaciona com os humanos, tendo esses últimos um dever de obediência e reverência para com aquele. Ocorre que a expressão “Ser Supremo” pode ser interpretada de forma teísta ou não-teísta. Ao optar pela interpretação teísta, o Tribunal conseguiu afastar facilmente a cientologia do âmbito das religiões. Em 1997, todavia, a Suprema Corte anulou a decisão do Tribunal de Milão por considerar a adoção de uma definição teísta de religião “inaceitável” e “um erro”, pois baseava-se exclusivamente no paradigma das “religiões bíblicas”. Caso fosse adotada oficialmente a definição teísta de “religião”, seria atingido o absurdo de não reconhecer o status de religião ao budismo, por exemplo. A Suprema Corte ressaltou, ainda, que o fato de um grupo se autodenominar uma religião não é suficiente para caracterizá-lo como uma genuína religião. Foi destacado que a opinião de estudiosos é mais importante que a opinião pública para decidir sobre essa matéria, pois essa última tende a ser mais hostil a grupos minoritários. Já os estudiosos ouvidos foram unânimes em adotar uma concepção mais larga de religião, incluindo a Cientologia. Desde então, essa decisão da Suprema Corte Italiana de 1997 sobre a Cientologia tem representado uma das mais importantes discussões em escala internacional sobre como as cortes podem aplicar suas leis para decidir se um determinado grupo consiste ou não em religião. Alega-se que a não existência de uma definição jurídica de “religião” na Itália (e em qualquer outro lugar) não é mera coincidência, pois qualquer definição se tornaria rapidamente obsoleta e limitaria, assim, a liberdade religiosa. Segundo a Suprema Corte Italiana, é muito melhor não ter uma definição, pois esta sempre terá natureza restritiva. A “religião” é um conceito em permanente evolução, e os Tribunais devem sem-
Disponível em http://www.cesnur.org/testi/scie_march2000.htm. REVISTA TRIBUTARISTAS
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Opinião pre interpretá-la dentro de um contexto geográfico e histórico específico, levando em consideração a opinião de estudiosos. Já na decisão da Suprema Corte por aqui nenhum especialista foi ouvido. Nenhuma audiência pública convocada. Quando o Ministro Ayres Brito afirma categoricamente que é “evidente que a maçonaria não é uma Igreja, não é um templo nesse sentido constitucional, de culto à divindade, a postular uma transcendência espiritual”, reforça novamente a adoção de uma concepção teísta de religião, já superada em 1997 pela Suprema Corte Italiana10. De acordo com essa concepção do voto vencedor, não se deveria reconhecer também o Budismo como religião, pois a doutrina que segue os ensinamentos de Buda possui natureza nitidamente não-teísta. Nesse sentido, diante de tantas incertezas, o Ministro Marco Aurélio pediu vista do processo para votar com maior domínio da matéria, mesmo já estando formada a maioria pela não concessão da imunidade. Em voto-vista, o Ministro traz à lume a doutrina de Ricardo Lobo Torres e Regina Helena Costa para demonstrar que o legislador afastou o exercício da competência tributária sobre determinadas hipóteses com o escopo de garantir a eficácia de inúmeros valores públicos de alta significação política, revelando, portanto, as imunidades um caráter instrumental. Cita, ainda, a famosa expressão do Justice Marshall, segundo a qual “um poder ilimitado de tributar implica, necessariamente, um poder de destruir”, para enfatizar que as imunidades decorrem justamente das liberdades. Assim, diferentemente da interpretação restritiva que Lewandowski propõe, deve ser feita uma
leitura no mínimo estrita. Entende o douto Ministro que a “constituição não restringiu a imunidade à prática de uma religião enquanto tal”, devendo-se utilizar uma perspectiva menos rígida do conceito de “religião”. São extraídas três definições11 de “religião” de um Dicionário Aurélio Eletrônico de 1999 – ignorando-se, consequentemente, todo o desenvolvimento intelectual da humanidade na última década – para sustentar que a maçonaria pode ser classificada como uma corrente religiosa que contempla física e metafísica. Ainda segundo Marco Aurélio estaria presente na Maçonaria “a tríplice marca da religião: elevação espiritual, profissão de fé e prática de virtudes”. Ademais, em deferência ao pluralismo consignado no artigo 1º, V, da Carta Federal, princípio esse tão caro ao Estado Democrático de Direito, o Poder Judiciário não deve adotar uma definição ortodoxa de religião, permitindo assim que até mesmo práticas que poderiam ser classificadas como “seitas”, e não “religião”, gozem da imunidade tributária dos templos de qualquer culto. Nota-se claramente, ao fim, que a frágil fundamentação utilizada pelos ministros do STF não resistiria a uma análise mais aprofundada, relembrando-nos das palavras do Mr. Justice Jackson acima transcritas: é fácil ver-se que a linha entre o tributável e o imune foi traçada por um punho vacilante.
Thyago Pereira Trairi
Disponível em http://www.cesnur.org/testi/SCIE.HTM. 1. Crença na existência de uma força ou forças sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e obedecida(s). 2. A manifestação de tal crença por meio de doutrina e ritual próprios, que envolvem, em geral, preceitos éticos. 3. Qualquer filiação a um sistema específico de pensamento ou crença que envolve uma posição filosófica, ética, metafísica, etc. 10 11
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Graduando do 5º ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP
Coffee Break com Paulo de Barros Carvalho por Guilherme Orlando e Thyago Pereira Trairi
Indiscutivelmente um dos maiores juristas na história do Direito Tributário Brasileiro, Professor Emérito na USP e na PUC, Paulo de Barros Carvalho conversou com a Revista Tributaristas sobre o passado, o presente e o futuro de sua vida pessoal e profissional. Diferentemente do que se poderia imaginar, o professor ainda tem muitos sonhos por realizar
Revista Tributaristas - Primeiramente, poucas pessoas sabem, mas o senhor chegou a cursar engenharia no Mackenzie antes de optar pelo direito. Qual o motivo da transição? Paulo de Barros Carvalho - Eu comecei a estudar engenharia, fiz alguns meses, mas logo no início do segundo semestre eu vi que não era o meu lugar, que não era o espaço que me parecia adequado. Então fui procurar a faculdade de direito para estudar. REVISTA TRIBUTARISTAS
RT - Já era uma engenharia específica? PBC - Ainda eram noções básicas, categorias fundamentais. Eu pensava em fazer engenharia mecânica, muito por iniciativa do meu pai, que dizia que teria mais futuro. Ele foi quem insistiu muito. RT - Seu pai atuou ativamente na Revolução de 30 ao lado de Getúlio Vargas e o senhor chegou a ser oficial de gabinete do Presidente João Goulart.
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Coffee Break Por que não optou pela vida política? PBC - Bom, também por insistência, e uma insistência muito oportuna, do meu pai. Eu estava no gabinete do Presidente João Goulart, mas eu já estava cursando a faculdade de direito. Isso estava me atrapalhando e eu deveria optar: ou continuar os estudos na faculdade de direito aqui em São Paulo ou continuar em Brasília. Para mim era muito agradável a vida por lá. Eu tinha motorista particular, iria receber um apartamento funcional, tinha todo um relacionamento. Via todos aqueles políticos, que me prestigiavam naquela época. Os deputados e senadores me tratavam muito bem porque queriam obviamente manter um clima favorável por eu ser do gabinete do Presidente. Mas meu pai disse: “olha, você tem que se decidir, ou fica por aí, ou então você volta e termina seu curso de direito”. E como eu estava também namorando firme, pensando futuramente em casar com a minha atual mulher, eu, a contragosto, voltei. Para o meu lugar foi um primo meu, indicado por um tio que era muito amigo do Jango. E ele permaneceu e foi colhido pelo Golpe de 64, sofrendo alguns tormentos.
RT - Então o senhor disse que já cursava direito na época. Mas o senhor chegou a precisar suspender o curso? PBC - Não, eu passei nisso uns sete ou oito meses. E eu estava com faltas e quase perdi aquele ano, mas estava levando como dava. E foi por isso que meu pai insistiu nessa tomada de decisão. Aí eu disse que iria trancar o curso, mas ele disse “não”. Ele foi meio impositivo, mas isso foi muito bom porque, caso contrário, eu teria sido apanhado pelo golpe. RT - Como foi a experiência do primeiro escritório de advocacia? Havia muitos clientes? PBC - Eu comecei num escritório com outros três sócios. Éramos eu, o Professor Celso Bastos, o José Eduardo Bandeira de Mello (irmão do Jurista Celso Antônio) e o Michel Temer. Nós éramos quatro e tínhamos um cliente só. A causa era muito esquisita, porque era um filho que negava alimentos à mãe. Era REVISTA TRIBUTARISTAS
uma briga grande, a própria família negava alimentos e, por isso, nós tínhamos muitas dificuldades no fórum para ver o processo, para conseguir documentos. E o pessoal nos olhava de uma forma esquisita. Quem nos dava orientação era o irmão mais velho do Michel – que foi professor da USP. Mas logo em seguida, depois de alguns meses, o Professor Geraldo Ataliba e o Professor Celso Antônio Bandeira de Mello nos visitavam no escritório para conversar (tínhamos um cliente só, então o trabalho não era tão grande). E eu me lembro direitinho das discussões deles sobre “que é o estado?” e nós ficávamos vendo aquela discussão e encantados com aquilo. Até que num belo dia o Ataliba me convidou para ser seu assistente na PUC e convidou o Michel para ser assistente dele em direito constitucional na PUC. E logo começamos. Foi assim que comecei a ajudar o Geraldo Ataliba, que depois pediu para que eu fosse recebido na PUC. E assim que eu comecei a minha vida acadêmica. A nomeação oficial foi em 12/10/1970, mas eu já ajudava o Ataliba antes disso.
“E todos esses clamores das ruas apontam antes para isso, para a efetivação, para a realização concreta daquilo que nós já temos, não para inventar leis novas que levam muito tempo para difundir as suas mensagens” RT - Que conselhos o senhor dá ao jovem bacharel que pretende estabelecer seu próprio escritório de advocacia? PBC - Bem, o conselho que eu dou hoje não é o de que o jovem que se forme inaugure um escritório de advocacia. Eu me lembro que nesse primeiro escritório em que eu participei, todo mundo falava para o meu pai: “olha, dois cegos caem na vala”. Ele queria que eu passasse um período em um grande escritório. E até o Professor Frederico Marques, que era colega de diretoria dele no SPFC, dizia “manda o Paulo para lá, para ele poder passar um período e ver como são as coisas”. Mas eu queria mesmo era ter o nosso
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Coffee Break escritório. Então hoje, se eu tivesse que orientar alguém, seria para ir a um grande ou médio escritório para ver como funciona, como é que os advogados fazem, como recebem os clientes, como conduzem as causas, etc., para depois, quando tiver já uma experiência maior, que se associe com alguém e forme um escritório. RT - Ao longo da sua formação acadêmica o senhor já passou pela PUC, USP e FGV. O senhor vê grandes diferenças entre as três instituições no que diz respeito ao ensino do direito, e em especial do direito tributário? PBC - Bem, na FGV eu fiz um curso, que eles chamavam de pós-graduação, ou seja, era um curso para graduados (engenheiros, economistas, médicos, advogados) com duração de dois anos e meio. Era um curso de administração de empresas, onde havia direito tributário, direito do trabalho e direito comercial. Mas eles não tinham nenhuma experiência nesse ramo, não era do perfil deles e da estrutura do curso qualquer pretensão no campo do direito. Eu acho que as duas, a PUC e a USP, se equivalem hoje em dia. Há momentos em que as coisas oscilam, porque ocorre de aparecer um professor muito bom, uma equipe boa, entusiasmada e tal. Então nesse campo a USP e a PUC predominam. Mas isso vai se estabilizando. Eu diria que a USP tem um corpo discente um pouquinho mais qualificado porque é a primeira opção, mas os alunos da PUC são excelentes também. Essa juventude é muito forte, muito unida. As diferenças vão ficar por conta do corpo docente, em que há certo equilíbrio. Como titular das duas por concurso e como emérito também, eu tenho esse sentido bem presente, a respeito das suas qualidades, porque continuo lecionando em ambas e elas têm um equilíbrio surpreendente.
RT - Existe ou existiu alguém ligado à profissão que o inspirou? PBC - No início eu tive. Meu pai era bacharel em direito, mas ele não exercia. Ele exercia cargos mais ligados à política, à administração pública, etc. E eu REVISTA TRIBUTARISTAS
tinha alguns modelos. Um deles era um jurista do Rio Grande do Sul chamado Mário Orvalho, professor de direito comercial e que foi um advogado muito cuidadoso, muito ético e que me impressionava. O professor Frederico Marques era outro. No caso ele era desembargador, mas após se aposentar se tornou um grande advogado. Houve várias pessoas. Mais adiante o Professor Lourival Vilanova, em Pernambuco, e o professor Geraldo Ataliba, aqui em SP.
RT - Em entrevista concedida em 2010, o senhor afirmou ser contra uma reforma estrutural no sistema tributário brasileiro. Após as recentes ondas de manifestações pelo Brasil clamando por reformas de todos os gêneros, inclusive a tributária, o senhor continua com a mesma opinião? PBC - Continuo. Não só continuo, como me fortaleci nessa convicção. Por quê? Nós temos uma constituição muito bem feita, o que nós precisamos é aplicar os grandes princípios, é aplicar o que existe ali. Então nós temos que testar a Constituição que foi aprovada em 1988. Há uma série de princípios muito bem formulados, uma série de diretrizes que possibilitariam uma sociedade bem mais sadia do que essa que nós vivenciamos. E todos esses clamores das ruas apontam antes para isso, para a efetivação, para a realização concreta daquilo que nós já temos, não para inventar leis novas que levam muito tempo para difundir as suas mensagens. O povo sabe o que quer. Por exemplo, ele quer que o processo do mensalão chegue a um resultado final e pronto. E é isso que está faltando no Brasil. O sistema tributário brasileiro é um sistema muito bem feito, bem concebido, muito bem estruturado. Agora o que falta é o campo da aplicação para a sociedade brasileira. RT - É possível implementar uma reforma tributária eficiente sem a realização de um novo pacto federativo? PBC - Eu fiz parte recentemente da chamada Comissão dos Notáveis do Senado da República para estudar o pacto federativo. A Federação está em crise. O pacto
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Coffee Break
Durante a entrevista o professor falou um pouco sobre sua história pessoal e ainda abordou tópicos como a reforma tributária e a constituição brasileira: “Nós temos uma constituição muito bem feita, o que nós precisamos é aplicar os grandes princípios”.
federativo brasileiro está completamente trincado. Eu não diria completamente inoperante, mas ele está em grande parte inoperante por uma série de questões que precisam ser examinadas. A União se fortaleceu muito, em detrimento dos Estados e dos Municípios. Isso é contra o espírito do pacto federativo, porque é para ser união dos Estados. Então se a União for forte e os Estados forem fracos, onde é que está a união dos estados? E nós chegamos a uma série de conclusões, foi um trabalho sério feito no Senado e esperamos que esse trabalho chegue a um resultado. Eu sou a favor de um reestudo do pacto federativo com medidas severas para se manter a integridade da federação brasileira, sem mexer na estrutura constitucional tributária, mas sim lidando com a parte infraconstitucional, com a aplicação dos princípios constitucionais, o que pode ser feito pela União individualmente com relação aos seus tributos e pelos outros entes da federação em relação aos seus respectivos tributos. Agora, sem mexer na REVISTA TRIBUTARISTAS
armação, na concepção básica do sistema tributário. O sistema é muito bom, em todos os períodos de arrecadação há recordes superados de arrecadação tributária. Sinal de que está funcionando. Alguns dizem, “mas está sufocando a economia”, mas não está. Tanto é assim que em 2010 nós tivemos um crescimento de 7,5% do PIB. Isso mostra que os tributos não estão sufocando a economia brasileira.
RT - Muitos defendem a implementação de um imposto único sobre a movimentação financeira. Isso é constitucionalmente viável? PBC - Eu acho que não, porque nós estamos numa federação e o imposto único é uma utopia, que nunca foi implementado em nenhum lugar do mundo. Mas muitos insistem nisso. Fizeram até uma vez uma passeata em Belo Horizonte dos empresários pelo imposto único. É um absurdo. Em termos jurídicos o Brasil precisaria mudar completamente, teria que ser um es-
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Coffee Break tado unitário. Acho que nem pensar, uma coisa fora de qualquer concepção consciente. Mas muitos tomam essas bandeiras para de certa forma se promover. RT - Como o senhor enxerga a atual produção acadêmica relacionada ao direito tributário no âmbito das universidades públicas e privadas? PBC - Eu acho que vai indo bem a produção acadêmica brasileira, tanto a pública como a privada. Tanto assim que, em congressos internacionais, a experiência doutrinária brasileira já ganhou uma certa respeitabilidade. Em reuniões internacionais sempre se perguntam “qual é a solução que o Brasil arrumou em termos doutrinários?”, de modo que eu acho que vai indo bem. Merece destaque, é claro, os incentivos dados pelo governo, no sentido de concessão de bolsas. O governo tem incentivado muito a pesquisa no campo do direito e eu acho que isso tem contribuído muito positivamente.
RT - Como o senhor enxerga então a questão do estágio? Seria essencial à formação do aluno, ou acaba tirando-o do seu caminho acadêmico? PBC - Olha, as duas teses são defensáveis. Aquela que diz que o aluno tem que cumprir, se dedicar aos estudos e permanecer na faculdade o maior tempo possível, para depois então enfrentar a vida lá fora, é uma tese que pode ser defendida. Mas na realidade em que nós vivemos, é imperiosa essa conjugação. Chega-se no segundo ano e o aluno quer ter uma experiência, quer saber como funciona, vai ganhando prática, vai vendo como a advocacia funciona. E isso vai dando-lhe uma formação importante, desde que ele não abandone os estudos. RT - Que motivações fazem o senhor levantar da cama todos os dias para trabalhar? Ainda há muitos sonhos por realizar? PBC - Por incrível que pareça, há. Eu mantenho um grupo de estudos, que é um programa de leituras no campo da filosofia do direito tributário. E é um trabalho muito interessante, que eu faço há quase 30 anos sem parar. São cerca de 40 pessoas que vêm sem pagar REVISTA TRIBUTARISTAS
nada, todas as semanas. E eu trago professores até de fora do Brasil para falar com eles. E isso é um fator que me anima muito. E entre um e outro professor convidado eu vou conversando com os alunos, lecionando e lendo. Além disso, eu tenho a PUC, onde eu sou, até o dia 2 de agosto, o coordenador do programa de pós-graduação de direito, completando 20 anos no cargo. É uma atividade intensa para se coordenar, são 100 professores. Há também as minhas atividades na USP, em que continuo lecionando na graduação e na pós. E ainda há as aulas do pós da PUC, de lógica jurídica e de direito tributário, em que continuo a todo vapor. Eu dou aula todos os dias, menos às sextas-feiras. E durante o dia tenho o escritório.
RT - De que sente mais orgulho na vida? PBC - Eu sinto satisfação de ter cumprido essas etapas todas, de ter me tornado professor emérito. Na PUC há dois professores eméritos (somos eu e o professor Celso Antônio Bandeira de Mello) em cerca de 60 anos de existência. E Na USP são 186 anos, com 35 professores eméritos. Então eu lecionei e me tornei emérito nas duas faculdades. É uma satisfação muito grande que eu sinto. Além de ser emérito pela faculdade de direito de Itu, onde eu também lecionei junto com o Michel Temer. E ainda tenho dois títulos de mérito do Centro de Estudos Universitários (do professor Ives Gandra) e da Escola Paulista de Direito. RT - Para encerrar, quais são os planos para o futuro? PBC - Meus planos para o futuro são continuar implementando cada vez mais o grupo de estudos, que é uma atividade muito interessante, onde eu aprendo muito. E escrevendo alguns livros que eu pretendo escrever. Deve sair até o fim do ano o terceiro volume do “Derivação e Positivação no Direito”. E depois eu estou pensando muito no que vai ser um livro muito importante para mim, porque é o tema que se tornou mais conhecido no meu trabalho, que é a teoria da regra-matriz da incidência dos tributos. Seria um livro só sobre a regra-matriz.
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Opinião
A decadência no direito tributário – uma análise sobre as diferentes regras de aplicação e de interrupção do prazo decadencial por Guilherme de Andrade Orlando Introdução
Afirma Paulo de Barros Carvalho que a “a decadência ou caducidade é tida como o fato jurídico que faz perecer um direito pelo seu não-exercício durante
certo lapso de tempo”1. A asserção está intimamente ligada à noção instrumental de um mecanismo voltado a garantir a segurança e a estabilidade das posições jurídicas nos casos em que não ocorre atuação ativa, por parte do “credor”, na constituição de um direito dentro de um prazo pré-determinado. A decadência consiste, pois, em instrumento destinado à elevação da previsibilidade das relações jurídicas na medida em que contribui para a sedimentação de um mínimo de certeza quanto à possibilidade da formação de determinado direito. Nesse sentido, agregando elementos fáticos, normativos e relacionais, ensina Eurico Marcos Diniz de Santi que o instituto da decadência, assim como o da prescrição, pode ser tomado sob diferentes enfoques, sendo-lhe permitido atribuir caráter de norma, de evento do decurso de lapso temporal, de fatos ou de relações extintivas do direito2. Passando-se à aplicação do instituto na esfera tributária, observa-se que a decadência ocorrerá com o decurso temporal de que dispõe a Fazenda Pública para a constituição do crédito face ao contribuinte, atuando como “fator de limitação ao exercício da competência administrativa para a emissão do ato de lançamento tributário”3. Assim, decorrido o prazo legal, com a inércia da Fazenda Pública em constituir a obrigação tributária, perecerá o seu direito de fazê-lo4,
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 482. 2 “A decadência e a prescrição, num primeiro momento, podem ser analisadas como (i) normas gerais e abstratas que integram o sistema de direito positivo; (ii) eventos do decurso do lapso temporal, qualificados pela inércia do titular do direito; (iii) fatos, versões desses eventos descritas em linguagem jurídica; (iv) relações extintivas do direito e (v) normas individuais e concretas que congregam à ocorrência dos fatos decadencial ou prescricional os consequentes efeitos extintivos”. (SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 153). 3 PEIXOTO, Daniel Monteiro. Decadência na constituição do crédito tributário: aspectos gerais e análise dos efeitos da notificação prevista no art. 173, pará-
grafo único, do CTN. In “Direito tributário – O direito Tributário na prática dos Tribunais Superiores: Sistema Tributário Nacional e Código Tributário Nacional em debate”. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 470. 4 Embora o legislador, no art. 173 do CTN, se refira a direito, “trata-se, na verdade, de um dever do Estado, enquanto entidade tributante, que se não confunde com o direito subjetivo de exigir a prestação, não podendo ser considerado, também, como pretende importante segmento doutrinário, um direito potestativo”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18ª ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 482). No mesmo sentido, Sacha Calmon Navarro Coêlho – Prescrição e decadência em matéria tributária, in Decadência e Prescrição em direito tributário, 2ª ed, Aurora Tomazini de Carvalho, coordenadora. São Paulo: MP Ed., 2010. p. 221
O instituto da decadência, assim como o da prescrição, está intimamente ligado à estabilização das relações jurídicas e consiste em pilar fundamental à construção e manifestação de um Estado de Direito. A sua aplicação no ramo do Direito Tributário apresenta peculiaridades que a distinguem da decadência vigente no campo do Direito Privado, despertando posicionamentos divergentes por parte da doutrina e da jurisprudência no tocante às variadas hipóteses de configuração da perda do direito do Fisco de proceder ao lançamento do crédito tributário. O presente estudo compreenderá a exposição analítica dos elementos da decadência tributária, assim como os dispositivos legais que regulamentam a matéria, para, ao final, propor uma conclusão sobre o que se entende a respeito da chamada “interrupção” do prazo decadencial do direito do Fisco efetuar a constituição do crédito tributário. Aspectos conceituais e a atuação da decadência no ordenamento jurídico
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Opinião to sem prévio exame da autoridade administrativa, opera-se pelo ato em que a referida autoridade, tomando conhecimento da atividade assim exercida pelo obrigado, expressamente a homologa. § 4º Se a lei não fixar prazo a homologação, será ele de cinco anos, a contar da ocorrência do fato gerador; expirado esse prazo sem que a Fazenda Pública se tenha pronunciado, considera-se homologado o lançamento e definitivamente extinto o crédito, salvo se comprovada a ocorrência de dolo, fraude ou simulação. (grifos nossos)
restando igualmente extinto, nos termos do artigo 156, V, do CTN, o próprio crédito tributário. Dispositivos legais do CTN e hipóteses de operação da decadência Para a análise da perda do direito do Fisco à constituição do crédito tributário, faz-se necessária a transposição dos dois principais dispositivos legais que regulamentam a matéria, assim como uma breve diferenciação dos tipos de lançamento tributário. Prescreve o art. 173 do CTN que:
Art. 173. O direito de a Fazenda Pública constituir o crédito tributário extingue-se após 5 (cinco) anos, contados: I - do primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado; II - da data em que se tornar definitiva a decisão que houver anulado, por vício formal, o lançamento anteriormente efetuado. Parágrafo único. O direito a que se refere este artigo extingue-se definitivamente com o decurso do prazo nele previsto, contado da data em que tenha sido iniciada a constituição do crédito tributário pela notificação, ao sujeito passivo, de qualquer medida preparatória indispensável ao lançamento. (grifos nossos) Além do art. 173, que traz a sistemática universal para a contagem do prazo decadencial à constituição do crédito tributário, observa-se no art. 150, § 4º, do CTN a estipulação de um prazo distinto, destinado aos créditos tributários sujeitos ao lançamento por homologação:
Art. 150. O lançamento por homologação, que ocorre quanto aos tributos cuja legislação atribua ao sujeito passivo o dever de antecipar o pagamenPaulo de Barros Carvalho alerta para a impropriedade técnica em se afirmar a vigência do prazo quinquenal em casos como os previstos no art. 173 do CTN, já que o Código “fixa termos iniciais que dilatam por período maior o aludido REVISTA TRIBUTARISTAS
Depreende-se da leitura dos dispositivos legais que, a princípio, o prazo decadencial de cinco anos5 terá início no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que o lançamento poderia ter sido efetuado, hipótese aplicada aos lançamentos de ofício realizados pela Fazenda Pública. Assim, no caso do IPVA, tomando como exemplo um fato gerador ocorrido em 1º de janeiro de 2011, o Fisco estadual já poderia proceder ao lançamento ex officio a partir de então. No entanto, a contagem do prazo decadencial apenas teria início em 1º de janeiro de 2012, extinguindo-se, portanto, em 1º de janeiro de 2017. Sistemática diferente, entretanto, será observada quanto aos tributos sujeitos ao lançamento por homologação, modalidade em que o próprio contribuinte irá apurar o quantum debeatur e proceder ao recolhimento perante os cofres públicos, sem qualquer medida prévia por parte da Autoridade Administrativa. Conforme apregoa o art. 150, § 4º, do CTN, efetuado o pagamento, terá o Fisco o prazo de cinco anos para homologá-lo, se estiver de acordo com o saldo apurado e efetivamente devido, ou rejeitá-lo, por eventual recolhimento a menor do tributo, ensejando, então, o lançamento de ofício da quantia remanescente. Diante desse panorama, tomando por base o prazo, uma vez que são posteriores ao acontecimento tributário”. (CARVALHO, Paulo de Barros. Op. cit., p. 483).
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Opinião conteúdo dos preceitos legais e servindo-nos dos ensinamentos de Eurico de Santi, diagnosticamos a existência de seis diferentes regras para a regulação da decadência do direito do Fisco de constituir o crédito tributário. Passemos a analisar as quatro principais regras, em razão da delimitação do tema do presente estudo6. A primeira delas diz respeito à hipótese em que o contribuinte não efetuou o pagamento antecipado (típico caso de tributo sujeito ao lançamento de ofício). Terá o Fisco, então, o prazo decadencial de cinco anos, a contar do primeiro dia do exercício seguinte ao que poderia ter sido efetuado o lançamento, para vir a constituir o crédito tributário, nos termos do art. 173, I, do CTN. A segunda regra refere-se ao caso em que também não há pagamento antecipado, mas em que ocorre a notificação ao contribuinte, por parte do Fisco, de alguma medida preparatória indispensável ao lançamento. Aqui, observar-se-á a antecipação do início da contagem do prazo decadencial, sendo que será a data da notificação, nos termos do art. 173, parágrafo único, do CTN, que consistirá no dies a quo do prazo decadencial, e não mais o primeiro dia do exercício subsequente, como exposto na hipótese anterior. A terceira regra consiste na aplicação do art. 150, § 4º, do CTN, quando constatada a hipótese de pagamento antecipado do tributo por parte do contribuinte. Nesses casos, em que se vislumbra a ocorrência do lançamento por homologação e com efetivo recolhimento do tributo, a contagem do prazo decadencial de cinco anos terá início quando da configuração do fato gerador, sendo que, constatada a inércia do Fisco ao longo desse período, “consolidam-se simultaneamente
A última das hipóteses expostas no tópico anterior recebe frequentes críticas por parte de doutrinadores8 que consideram um mecanismo de indevida interrupção do prazo decadencial e excessivamente favorável à Fazenda Pública, que, ao final, poderá contar com notável ampliação do prazo para a constituição de um crédito tributário que fora anulado por equívoco formal de sua inteira responsabilidade. Parte renomada da doutrina, por outro lado, entende que a “interrupção da decadência do direito do Fisco nada mais é do que o reinício de um novo prazo decadencial, decorrente do fato jurídico da anulação do lançamento anterior por vício formal”9. Assim, defende Eurico de Santi que se mostra infundada a crítica que não admite a possibilidade da interrupção da decadência tributária em razão de sua não
6 “(i) regra da decadência do direito de lançar sem pagamento antecipado; (ii) regra da decadência do direito de lançar sem pagamento antecipado e com notificação; (iii) regra da decadência do direito de lançar com pagamento antecipado; (iv) regra da decadência do direito de lançar com pagamento antecipado, ilícito e notificação; (v) regra da decadência do direito de lançar perante anulação do lançamento anterior e (vi) regra de decadência do direito de crédito do Fisco”. (SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Op. cit., p. 166). 7 SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Op. cit. p., 168. 8 CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 7ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p. 657.
9 “Muitos autores criticam o enunciado do art. 173, II do CTN, simplesmente porque a doutrina não aceita essa interrupção. Que fazer se o direito positivo prescreve que o prazo decadencial interrompe ou suspende? Se sabemos que o direito cria suas próprias realidades, como dizer que o direito está errado, que não corresponde à realidade? Que ciência é essa que pretende dizer que seu objeto está errado? É como se o geólogo, fazendo ciência, gritasse para o terremoto: Você não pode acontecer, não está em meus cálculos”. (SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Op. cit. p., 176). 10 GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 535.
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a homologação tácita, a perda do direito de homologar expressamente e, consequentemente, a impossibilidade jurídica de lançar de ofício”7. A quarta principal regra a ser abordada, e que acaba gerando desconforto doutrinário em relação à suposta “interrupção do prazo decadencial”, consiste nos casos em que se aplica o art. 173, II, do CTN, quando sobrevier decisão administrativa anulando o lançamento anterior por vício formal. Nessa hipótese, determina o legislador que terá início uma nova contagem quinquenal a partir da data em que se tornar definitiva a decisão administrativa, constituindo, por conseguinte, uma verdadeira interrupção e ampliação do prazo decadencial posto à disposição do Fisco. “Interrupção” do prazo decadencial
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Opinião aceitação por parte do Direito Privado. De fato, observa-se da própria leitura do art. 207 do Código Civil que “os prazos decadenciais são fatais e peremptórios, pois não se suspendem nem se interrompem”10. No entanto, a sistemática do instituto no ramo do Direito Tributário é distinta daquela verificada no Direito Privado, havendo, como exposto acima, diferentes regras de aplicação da decadência tributária, que se pautam por hipóteses e elementos objetivos distintos entre si. Além disso, a reabertura do prazo teria como finalidade única a adequação do lançamento eivado de vício à sua roupagem formal11, haja vista tratar-se de constituição do crédito tributário tempestivamente efetuada, apenas inexequível em razão do vício detectado. Dessa forma, não se pode querer forçar o encaixe de um instituto que sabidamente vigora por uma sistemática diferente a um modelo civilista do qual não faz parte, razão pela qual, embora constitua procedimento amplamente favorável à Fazenda Pública, é de se admitir como válida, perante o funcionamento do direito tributário, a “interrupção” (ou reinício da contagem) do prazo decadencial trazida pelo art. 173, II, do CTN. O parágrafo único do art. 173 do CTN
lançamento ocorra ainda no exercício em que se verificou o fato gerador, antecipando-se, dessa forma, o início da contagem do prazo decadencial, que comumente apenas teria início no primeiro dia do exercício subsequente. Assim, a aplicação do dispositivo tem apenas o condão de antecipar a contagem do prazo decadencial e não de interrompê-lo em razão da notificação de medida preparatória ao lançamento tributário. Embora tenha sido defendida acima a possibilidade de reinício do prazo decadencial quando configurado o art. 173, II, do CTN, a hipótese trazida pelo parágrafo único é bastante distinta, não se podendo estender a sua aplicação a casos em que a Fazenda Pública sequer tenha constituído o crédito tributário. No primeiro caso, estamos diante de um crédito tributário que já foi constituído, restando comprovada a conduta ativa do Fisco em proceder ao lançamento, que apenas não pôde ser exequível em razão de um vício meramente formal. Ressalte-se, ainda, que o reinício da contagem do prazo apenas se efetivará após a decisão definitiva que tenha anulado o lançamento anterior, não se tratando, portanto, de conduta unilateral promovida pelo Fisco para a postergação do termo decadencial. Já na hipótese do parágrafo único, a delimitação do prazo decadencial acaba ficando inteiramente ao critério da Fazenda Pública, a qual, por uma simples notificação, que de forma alguma representa a constituição do crédito tributário13, poderá unilateralmente adiar por mais cinco anos o término do prazo decadencial, comprometendo a segurança e a estabilidade das relações jurídicas estabelecidas entre o Fisco e o contribuinte.
O problema da mencionada “interrupção” do prazo decadencial se agrava quando a jurisprudência12 pretende estendê-la aos casos em que a Fazenda Pública promove a notificação de medida preparatória indispensável ao lançamento tributário após o primeiro dia do exercício seguinte ao da ocorrência do fato gerador, valendo-se do disposto no parágrafo único do art. 173 do CTN. Como já exposto anteriormente, compartilhamos do entendimento de que o parágrafo único Conclusão do art. 173 do CTN apenas se aplica aos casos em que a notificação da medida preparatória ao Diante do exposto, constata-se que os prazos dePEIXOTO, Daniel Monteiro. Op. cit., p. 489. BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. REsp 766.050/PR, 1ª Turma. Rel. Ministro Luiz Fux, j. 28.11.2007, DJ 25.2.2008, p. 265. 13 Como ensina Luciano Amaro, “uma vez iniciada a contagem nos termos do 11 12
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art. 173, I, do CTN, atribui-se à Fazenda Pública um prazo para que constitua o crédito tributário e não para que comece a constituir o crédito tributário pela notificação de medida preparatória”. (AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 396).
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Opinião cadenciais relacionados ao poder/dever do Fisco em promover a constituição do crédito tributário submetemse a diferentes regras, a depender da sujeição dos tributos a determinada forma de lançamento, assim como de elementos objetivos (notificação de medida preparatória ao lançamento e pagamento antecipado) e subjetivos (eventual conduta do contribuinte impregnada de dolo, fraude ou simulação). Assim, diferencia-se a sistemática da decadência tributária daquela vigente no Direito Civil, demonstrando ser inadequada a tentativa de submeter a primeira aos moldes concretizados pelo ramo privado do ordenamento jurídico. Isso se verifica, por exemplo, quando da ocorrência do reinício da contagem do prazo decadencial em razão de algum vício constatado no lançamento realizado pela Fazenda Pública. Reinício esse, que, de uma forma ou de outra, pode ser considerado uma espécie de interrupção da contagem do prazo decadencial em matéria tributária, o que expressamente não se admite no Direito Privado em razão do categórico teor do art. 207 do Código Civil. No entanto, entendemos que, embora admitida essa espécie de interrupção do prazo decadencial, tal abertura não pode ser estendida desmesuradamente às hipóteses em que o Fisco, promovendo a simples notificação do contribuinte sobre um futuro lançamento, pretenda ver interrompida a contagem do termo de que dispõe para a constituição do crédito tributário. O reinício do prazo decadencial, pontualmente constatado nos casos do art. 173, II, do CTN, não deve albergar, como se de procedimento equivalente se tratasse, a hipótese prevista no parágrafo único do referido dispositivo. Aceitar tal ocorrência como válida consiste em grave afronta à segurança e à estabilidade das relações jurídicas, em razão de possibilitar ao Fisco, de forma unilateral e da maneira que lhe convir, a prerrogativa de reabrir a contagem do prazo decadencial para a constituição do crédito tributário mediante a simples notificação de algum procedimento preparatório ao lançamento, do que resulta ter ao seu dispor praticamente dez anos para a constituição do crédito tributário. REVISTA TRIBUTARISTAS
Referências Bibliográficas AMARO, Luciano. Direito tributário brasileiro. 5ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000. CAIS, Cleide Previtalli. O processo tributário. 7ª ed. ver. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de direito tributário. 18ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. COÊLHO, Sacha Calmon Navarro. Prescrição e decadência em matéria tributária, in Decadência e Prescrição em direito tributário, 2ª ed, Aurora Tomazini de Carvalho, coordenadora. São Paulo: MP Ed., 2010. p. 219-249. GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 1: parte geral. 9ª ed. São Paulo: Saraiva, 2011. PEIXOTO, Daniel Monteiro. Decadência na constituição do crédito tributário: aspectos gerais e análise dos efeitos da notificação prevista no art. 173, parágrafo único, do CTN. In “Direito tributário – O direito Tributário na prática dos Tribunais Superiores: Sistema Tributário Nacional e Código Tributário Nacional em debate”. Tathiane Piscitelli, coordenadora. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 467-495. SANTI, Eurico Marcos Diniz de. Decadência e prescrição no direito tributário. São Paulo: Max Limonad, 2000.
Guilherme de Andrade Orlando
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Graduando do 4º ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP e estagiário na área de direito tributário
Opinião
E o direito tributário com isso? por Maíra Honório Fernandes
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Brasil viveu em junho de 2013 um fenômeno que tem sido chamado por alguns de primavera brasileira, por outros de tentativa de golpe e por mais alguns de exercício da democracia. Independente do nome que se dê à reunião descomunal de pessoas nas ruas das principais capitais brasileiras, potencializadas pelas redes sociais, verifica-se um questionamento social quanto aos rumos que o país tem tomado desde sua independência até os dias contemporâneos. O governo federal, em sua tentativa de acalmar a multidão inebriada e sedenta por atitudes, sejam elas quais forem, resolve, dentre outras medidas, importar profissionais da área da saúde de outros países. Esse projeto, sobre o qual não teceremos comentários valorativos, reacende uma discussão já algum tempo salientada e que demonstra um problema estrutural do país na formação e no oferecimento de mão de obra qualificada para atender ao mercado e à sociedade. Já não é de hoje que o mercado em várias áreas, em especial às ligadas ao desenvolvimento de tecnologia, vem sentindo a escassez de profissionais que tenham a qualificação necessária para desenvolver tecnologia e com isso mudar nossa pauta de exportação de commodities para bens que de fato estejam aptos a competir no comércio internacional de produtos industrializados. Além disso, essa carência de profissionais tem gerado um movimento inflacionário no setor de serviços que com a demanda interna aumentada pela facilidade do crédito ainda conta com o mesmo número de fornecedores, impulsionando os preços para cima. Conforme destaca reportagem divulgada no jornal Valor Econômico do dia 08/05/2013: “O índice de serviços calculado pelo órgão, dentro do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), divulgado hoje, subiu de 0,26% em
março para 0,54% em abril, com alta acumulada de 8,13% em 12 meses. O IPCA subiu 0,55% e acumulou avanço de 6,49% no mesmo período. Aluguel residencial (de 0,34% para 0,83%), mão de obra (de 0,29% para 1,24%), consertos e manutenção (de 0,57 para 0,81%), conserto de automóvel (de 0,59% para 1,82%), médico (0,83% para 1,25%) foram alguns dos itens que mais contribuíram para puxar a inflação do período”1. Diante desse movimento da economia, são de extrema clareza os motivos que levaram boa parte da população a reivindicar de 20 centavos a uma reforma política. Mas, diante do explicitado, perguntamo-nos: e o Direito com isso? Ou melhor, e o Direito Tributário com isso? Bem, o direito enquanto ciência social aplicada tem a função precípua de resguardar os interesses da sociedade e promover a evolução dela, e o Direito Tributário, como ramo que interfere na economia, tem, por dever, de buscar soluções não apenas imediatistas, mas que tenham condão de alteração estrutural em longo prazo. Tendo sido estabelecidas essas premissas básicas, de que o direito tributário consegue regular indiretamente a economia e que há uma falta de profissionais com qualificação que proporcionem desenvolvimento tanto do mercado interno quanto do mercado externo, chegamos há questão de como fazer isso, ou seja, como o direito tributário pode produzir efeitos sociais a ponto de que o país esteja apto a oferecer mão de obra cuja qualificação atenda às demandas do mercado. Ora, a grande questão da mão de obra tem como causa basilar os déficits da educação brasileira, em especial destaque na educação pública até o 2º grau que registra altos índices de evasão além de outros problemas obstantes à formação de técnicos e tecnólogos.
http://www.valor.com.br/brasil/3115416/inflacao-de-servicos-e-itens-monitorados-aceleram-em-abril-diz-ibge#ixzz2YP2CaodU REVISTA TRIBUTARISTAS
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Opinião Diante disso, verificamos que, de início, é necessário não apenas o investimento público, o qual, diga-se de passagem, só tem sido utilizado com finalidades eleitoreiras, mas também o capital privado. No entanto, como se fará a atração desse capital sob o poderio de grandes empresas e instituições financeiras? A lei 9.249/95 traz uma possível medida: os incentivos fiscais. O artigo 13, § 2º, II da lei 9.249/95 estabelece como dedutível, para o cálculo do imposto de renda, pelo lucro real, as doações “efetuadas às instituições de ensino e pesquisa cuja criação tenha sido autorizada por lei federal e que preencham os requisitos dos incisos I e II do art. 213 da Constituição Federal até o limite de 1,5% do lucro operacional, antes de computada a sua dedução e a de que trata o inciso seguinte”. Tal dispositivo tem como fundamento axiológico a ideia de promoção da educação e da pesquisa através do financiamento pelo capital privado que é atraído, sobretudo, pela possibilidade de utilização do benefício fiscal na apuração e pagamento do imposto de renda. Contudo, tanto nesse caso das doações a entidades de pesquisa quanto em outros casos em que a lei estabelece a possibilidade de abatimentos no imposto a pagar em razão de doações, trata-se de percentuais baixíssimos de dedução que pouco ou nada incentivam o patrocínio das atividades de pesquisa e ensino. Tão discretos são os incentivos a quaisquer doações em nosso país que o Brasil no último World Giving Index (relatório que divulga o ranking de países doadores de um total de 160 países) deteve a 83ª posição no ranking geral e 68ª posição em doação de dinheiro, muito abaixo de países cujo estímulo fiscal às doações é notório, como Inglaterra (8º), EUA (5º), Canadá (3º) e Austrália (1º). Percebe-se que há uma falta de espaço em nossa legislação tanto no sentido de impor restrições às entidades para as quais as doações são dedutíveis quanto no de delimitar percentuais irrisórios de benefício fiscal que nada atraem o capital privado a fomentar a educação ou outras áreas do desenvolvimento. Nesse sentido, as normas tributárias, em especial as do imposto de renda, que por concepção teórica tem fundamento na repartição de riquezas, tem uma janela REVISTA TRIBUTARISTAS
de oportunidade para fomentar o estímulo à educação desde a base até os mais altos níveis de escolaridade. Logicamente, esses incentivos encontrarão óbice em vários teóricos que afirmarão que empresas e instituições financeiras têm, por dever cívico, que reinvestir parte de seus lucros na sociedade como forma de retribuir o esforço social na construção dessas instituições. Todavia é da nossa natureza de juristas a observação da sociedade como ela é para tentar pensá-la e estruturá-la de modo a proporcionar-lhe evolução, e, tendo sido isso vislumbrado, percebe-se que num mundo ideal é sem dúvida dever dos agentes econômicos investir na sociedade para que melhore a realocação das riquezas. Entretanto, no mundo real esses agentes agem apenas e tão somente motivados por estímulos utilitaristas e, sob esse aspecto, é legítimo que, ao menos inicialmente, o Estado conceda esses estímulos em prol da sociedade como um todo. Veja-se, não se está aqui apontando como solução a total e completa privatização do ensino, mas sim de operar por uma via oferecida pelo Direito Tributário, o início de uma mudança estrutural na sociedade brasileira, de modo que os agentes econômicos sejam motivados a participar da sociedade e a oferecer a ela novas oportunidades de desenvolvimento educacional que o Estado ainda não foi eficientemente suficiente em criar. Ante o exposto, deixe-se bem claro que os benefícios fiscais são apenas uma ferramenta inicial na tentativa da construção de uma sociedade focada na evolução social e tecnológica pela via da educação. Vislumbramos esses estímulos tributários como um meio de atuação do direito a fim de propiciar o desenvolvimento econômico, social e cultural, criando cidadãos mais conscientes e aptos para a democracia, bem como profissionais mais bem qualificados para o mercado de trabalho.
Maíra Honório Fernandes
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Graduanda do 5º ano da Faculdade de Direito do Largo São Francisco - USP