O Torresmo - nº 0

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Indigesto Gutural

ano 1 número 0

A crise do Demiurgo Nova política prevê juros A Revolução tardará Perfil: Apologius Matacastros


Matéria Paga de Esquina

A contrarrevolução gutural de Apologius Matacastros Homem de bens, pau de família, emprazário, alicerce que sustenta amoral da pátria... Nenhum adjetivo é o bastante para definir personalidade de tamanha destridade como a de Apologius Matacastros. Natural de Suíça do Sul, cedo começou a deixar sua marca nos gramados e calçadas da vizinhança e no pensamento de Eulavio Madera, tutor sem pudor de direito pensar que, em exílio, fincou pé como farol da juventude carapintada das redes no perigoso mar vermelho.

trabalho e dedicação. E gostava de exibir as mãos calejadas como resposta aos detratores, antes que estes fossem presos, torturados e desaparecidos para a segurança de todos. Apologius Matacastros contrarrevolucionou o mundo de maneiras que este nem imagina, nem lerá em jornal nenhum. E é graças a ele que hoje ostentamos orgulhosos esta etiquetazinha com preço em nossas almas.

Matacastros se fez a si mesmo, trancado no banheiro por horas, com muito

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A Crise do Demiurgo “Venderam nossos filtros sociais”, denuncia Magma Gribz, a viúva do intendente Gribz, personagem do maior escândalo que se tem notícia, conhecido na imprensa como a Crise do Demiurgo. Em mais um surpreendente capítulo, a Crise do Demiurgo parece longe de acabar. Após a derrubada de Bernard Golem, possível candidato da oposição e promessa publicitária, nova onda de denúncias abala a aparente tranquilidade da matriz. Desta vez, a viúva do intendente Gribz, Magma Gribz, vem a público denunciar um suposto esquema de vendas de filtros sociais para uma holding que administra os negócios do governo oculto do mundo. Os auditores de bingo declararam que vão investigar todas as denúncias assim que receberem os documentos oficiais. Agora, é esperar que Thomas Tzu Neves não receba a visita de um gato preto, durante a noite, quando se levantar para ir ao banheiro.


Entre e vista

O corpo teórico da Revolução almanaqueísta Enquanto ia à farmácia comprar remédios para enxaqueca, encontrei com a Revolução na portaria do prédio, que me acompanhou e aceitou conceder uma entrevista informal, desde que eu não gravasse a conversa. Perguntei sobre a carreira, o futuro e a sua relação com a mídia. CARREIRA “Aprendi muito com os trabalhos que fiz no ano passado, e resolvi dar um stop agora para reavaliar minha vida, minha carreira e planos. Ao contrário do que invejosos, cujos nomes não vou citar, estão dizendo, tem pintado, sim, oportunidades. Estou estudando algumas propostas de projetos novos, e... é isso.” FUTURO “Mudanças. É isto que espero para o futuro. Já comecei mudando minha foto na rede social; meu astrólogo me aconselhou a mudar a cor de meu cabelo, de acordo com a con-

junção dos astros; e estou querendo mudar de apartamento. Aliás, você não sabe de algum lugar, assim, com aluguel mais em conta?” MÍDIA “Não tenho nada contra a mídia. Com meu trabalho, sou sobre visada por ela, coisa e tal. Mas, não faria televisão.” Enquanto eu pagava os medicamentos tarja preta que, provavelmente, causam alucinações, coma e cefaléias, a Revolução pedia duas embalagens de camisinhas de bolso e um tubo de drops extra forte ao balconista da farmácia. Ostentando um corpinho bem trabalhado, vestida com um shortinho prateado e uma camiseta da banda Rage Against the Machine, com as mangas cortadas, a Revolução, para encerrar, mandou dizer que vai chegar tarde em casa hoje.

Metamafagafismotropia

Nova política prevê juros A criatura subiu no telhado e uivou para a lua. Os vizinhos atiraram sapatos, pedras, balas, rezas, santos. A polícia e os bombeiros foram chamados. Chegaram, usaram o holofote: era o ser apaixonado. O médico de doido foi chamado. Veio o padre, o advogado, o iluminado da rua de baixo, o vendedor que a todos convence, o pai e a mãe, o candidato a vereador: não descia. O ser apaixonado passou sete noites sob a lua e sete dias sob o sol. No oitavo dia, assegurados por uma emenda constitucional aprovada em caráter de urgência em uma sessão extraordinária, demoliram a casa. Dos escombros floresceu uma rosa. Abriu-se um inquérito, escreveu-se um livro, fez-se um filme.


Fixação na Frase Oral

Bem fez Joaquim Aureliano Costa de Camargo Filho que, em pleno novembro, fantasiou-se de Rei Nu, a esperar pelo carnaval.

Agrépio Savatto, sobre a irritante irrealidade do Nocturno esquecido em Dó menor, de Schwallzer.


Literância

Com o C de F. nas mãos C, o terceiro romance de F. chegou às livrarias nesta semana e não poderíamos deixar de relevar a nossos leitores as primeiras impressões de tão aguardada obra. Depois de A, o romance de estreia, e o surpreendente B, havia a expectativa de que o terceiro romance de F. presenteasse seus leitores com uma generosa espanhola. Mas, foi apenas um rápido papai e mamãe, cinco minutos antes da novela. Assim eu poderia resumir toda a crítica. O principal problema de C é a subestimada ortodoxia. A ortodoxia da escrita de F. parece não transparecer as páginas. Mas, está lá: a presença soturna da regra milimétrica de se

contar a história com mais fatos do que se pode encontrar na ingrata memória destes leitores torpes que não se apartam de seus amarfanhados jornais; o ar contido com que lhe sorri os capitulares; a polida saudação dos pontos e vírgulas. A mais perniciosa ortodoxia é a que não se percebe em um primeiro ou segundo olhar. Mas, só quando é tarde demais, e já somos surpreendidos com a audiência para a separação de bens e o pedido de pensão para as crianças. Especula-se que o insistente hábito de F. usar chapéu não permita que suas ideias respirem, enchendo de bolor os labirínticos adjetivos que pululam de seus livros.

Invenção da Verdade

Sob o sol, os que caem O diverso tirano que arquivamos em memórias tardas semeia brilho sobre as nuvens que vencem o sopro, mas não nos deteremos a maldizer-lhe a traição íntima, antes, teremos pelo fio da espada a sua vida para a trégua dos que se oprimiu. Da sua coroa onde se colore a variedade das pedrarias arrecadaremos o metal para os olhos dos novos e para a língua dos que clamam. O fino ser que a matéria arrefeceu trará desdita a palavra para a nova lei, trará na letra o escarlate do sangue dos que tombaram nas novas terras, este intervalo banhar nas regras saturnais. E haverá os profissionais da fé e os que não tomarão isto por verdadeiro. E haverá os que disputarão o pão, mas as

palavras não cobrirão a sua existência, visto só existir a história oficial. E assim se estabelecerá o reino onde antes existiu a rusga dos que desejaram sem desprendimento.


Editatorial

As compotas da vovó Devir rescendiam a um indelicado cianeto “A arte está morta”, afirma o injurioso ator dos mercados culturais. Os cortes estão à venda em um balcão refrigerado, com plaquinhas que indicam seu valor simbólico. Ainda ontem, comemos um pastel desta substância. E hoje estamos fadados a celebrar eternamente a sua sombra, que não declinou um só milímetro, apesar de inexistir o corpo contra a luz, apesar de inexistir até mesmo a luz. Este vazio que nomeamos, mantemos aquecido e embalamos até cair no sono. A arte está morta, afirma o crítico academizado de mãos impolutas. A arte está morta, afirma o mercador de portas estreitas e senhas binárias. A arte está morta, afirma a criança cianótica do mainstream acéfalo. Corremos nas estradas como o eco inabalável desta certeza.

Este Indigesto foi produzido com o trabalho escravo de crianças chinesas e árvores nativas derrubadas na Amazônia.


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