2ª Edição - DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS

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DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS


CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br

CONSELHO CIENTÍFICO Adriano Marteleto Godinho Adolpho José Ribeiro Alana Ramos Araújo Chirlaine Cristine Gonçalves Esther Maria Barros de Albuquerque Gisele Padilha Cadé Gustavo Rabay Guerra José Flôr de Medeiros Júnior João Peixoto Neto Laryssa Mayara Alves de Almeida Luciano do Nascimento Silva Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho Marconi do Ó Catão Maria Cezilene Araújo de Morais Raymundo Juliano Rego Feitosa Renato José Ramalho Alves Rômulo Rhemo Palitot Braga Ronivaldo de Oliveira Bastos Uberlandia Islândia Barbosa Dantas Vinícius Leão de Castro


EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA COORDENADORES

LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO ORGANIZADORES

DIREITO E SAÚDE: TRATAMENTO JURÍDICO DA REALIDADE DA SAÚDE NO BRASIL E OUTROS DIÁLOGOS

2ª EDIÇÃO

ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB

2015


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Coordenação do Livro EDUARDO SÉRGIO SOARES SOUSA E GUSTAVO RABAY GUERRA Organização do Livro LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA, RENATO JOSÉ RAMALHO ALVES E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Capa PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA Editoração LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.

Data de fechamento da edição: 10-12-2015

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D597

Direito e saúde: tratamento jurídico da realidade da saúde no Brasil e outros diálogos / Eduardo Sérgio Soares Sousa, Gustavo Rabay Guerra, coordenadores ; Laryssa Mayara Alves de Almeida, Phillipe Giovane Rocha Martins da Silva, Renato José Ramalho Alves, Vinícius Leão de Castro, organizadores. – 2. ed. - Campina Grande: AREPB, 2016. 148 p. ISBN 978-85-67494-14-2 1. Direito e saúde. I. Título. CDU 341.64

Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.


O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural ―A Barriguda‖, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.

A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.

Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural.

Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.

Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br e confira E-Books gratuitos.


SUMÁRIO PREFÁCIO

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Rodrigo Nóbrega Farias

1. EL DELITO DE MALA PRAXIS MÉDICA EN ARGENTINA

11

Roman de Antoni

2. ATIVISMO

JUDICIAL:

CAUSAS

E

CONSEQUÊNCIAS

A

PARTIR

DE

SENTENCIADOS PELA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS

CASOS 25

Adolpho José Ribeiro

3. ACIDENTES DE TRABALHO COM MATERIAL BIOLÓGICO NO AMBIENTE HOSPITALAR 53 Esther Maria Barros de Albuquerque, Isabella Barros Almeida, Laryssa Mayara Alves de Almeida e Vinícius Leão de Castro 4. iA SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DA JUSTIÇA: APROXIMAÇÕES ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO

63

Igor Diniz da Mota Silveira

5. BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS: O DESAFIO DESENVOLVIMENTISTA

91

Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho

6. EL DERECHO A LA SALUD EN LAS CÁRCELES: CUANDO LA DISCRIMINACIÓN PUEDE INCURRIR EN UN AGRAVANTE DE LA PENA

113

Irene Victoria Massimino

7. SAÚDE E LIBERDADE

125

Genival Veloso de França

8. A RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE MÉDICOS CUBANOS ATRAVÉS DO PROGRAMA ―MAIS MÉDICOS‖

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Caroline Helena Limeira Pimentel Perrusi, Antônio Sérgio Meira Barreto, Igor de Lucena Mascarenhas e Lincoln Mendes Lima


PREFÁCIO Atualmente, alguns dos temas mais relevantes a serem discutidos pela comunidade acadêmica versam sobre as relações entre o Direito e a Saúde. Isto porque, principalmente com a Constituição de 1988, a saúde foi alçada ao mais elevado patamar do ordenamento jurídico brasileiro, em especial, por estar diretamente vinculada ao direito à vida e ao princípio da dignidade da pessoa humana. Por isso, é com imensa alegria que recebo o convite para prefaciar esta obra, fruto de calorosos debates interdisciplinares, em um dos mais destacados eventos acadêmicos realizados nos últimos tempos: a I Conferência Brasileira de Direito e Saúde. No primeiro capítulo, o advogado argentino, Roman de Antoni, trata sobre a mala praxis na área da saúde e como o tema é regido no ordenamento jurídico da Argentina. São analisadas, de forma clara e objetiva, as situações suscetíveis de gerar a mala práxis e as circunstâncias capazes de afastar a responsabilidade do profissional de saúde. No segundo capítulo, Adolpho José Ribeiro, doutorando pela Universidade de Coimbra, aborda um dos temas mais palpitantes no contexto da comunidade jurídica na atualidade: o ativismo judicial. Após realizar uma densa abordagem teórica, o trabalho enfoca, principalmente, em precedentes da Suprema Corte dos Estados Unidos, nos quais se verifica uma postura proativa do Poder Judiciário, avançando sobre questões pertinentes a políticas públicas. Ao final, o estudo aponta possíveis soluções sobre os problemas causados pelo ativismo judicial. Por meio de uma abordagem interdisciplinar, no terceiro capítulo, Esther Maria Barros de Albuquerque, doutoranda em Engenharia de Processos pela UFCG, Isabella Barros Almeida, mestranda em Ciências Odontológicas pela UFPB, Laryssa Mayara Alves de Almeida, advogada, e Vinícius Leão de Castro, mestrando em Direito pela UFPB, analisam os acidentes de trabalho com material biológico no ambiente hospitalar, versando sobre suas consequências e possíveis medidas preventivas. No quarto capítulo, o acadêmico Igor Diniz da Mota Silveira faz uma análise da saúde sob a perspectiva das teorias da justiça. Para tanto, estabelece conexões entre as correntes teóricas impulsionadas pelas ideias de Jeremy Waldron, John Rawls, Norman Daniels e Ronald Dworkin. 9


A obra traz, no capítulo quinto, sob autoria de Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho, doutorando em Direito pela UFPB, um interessante estudo sobre o contexto das políticas públicas no campo da Bioética, sugerindo, ao final, reflexões acerca dos desafios da comunidade global impostos por questões envolvendo meio ambiente e energia, agropecuária e controle biológico e defesa nacional. No sexto capítulo, a argentina Irene Victoria Massimino, mestre em Direito pela Universidade de Londres e pela Universidade de Indiana, trata sobre o direito à saúde nas prisões. Inicialmente, o trabalho traz uma abordagem do tema sob o aspecto do ordenamento jurídico internacional e, em seguida, versa sobre a hipótese da violação ao direito à saúde como um agravante da pena dos presos. Genival Veloso França, um dos maiores expoentes da Medicina Legal em nosso país, trata, no sétimo capítulo, das relações entre Saúde e Liberdade. O autor, com formação na área do Direito e da Saúde, professor aposentado da UFPB, apresenta discussões sobre como preservar a liberdade numa proposta democrática e plural em favor da saúde. No oitavo e último capítulo, Igor de Lucena Mascarenhas, mestrando em Direito pela UFPB, e acadêmicos de Direito Caroline Helena Limeira Pimentel Perrusi, Antônio Sérgio Meira Barreto e Lincoln Mendes Lima, analisam o controverso Programa ―Mais Médicos‖, instituído pelo governo federal, desde 2013. Por meio de tais trabalhos, o livro se mostra como uma importantíssima contribuição acadêmica sobre relevantes questões que permeiam a seara do Direito e da Saúde, englobando estudos de pesquisadores nacionais e estrangeiros, elaborados de forma interdisciplinar e com a analiticidade necessária para se tornar indispensável a todos aqueles que almejam se aprofundar no tema.

Rodrigo Nóbrega Farias Doutor em Direito das Cidades pela UERJ

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EL DELITO DE MALA PRAXIS MÉDICA EN ARGENTINA CRIME OF MEDICAL NEGLIGENCE IN ARGENTINA Roman de Antoni1 Sumário: 1 Significado de la Mala Praxis médica. 2 Requisitos para su existencia. 3 Cuestiones generales de derecho en la Argentina. 4 La Mala Praxis en la Legislación Civil y Penal de Argentina. 5 Actualidad Legislativa. El proyecto de Unificación. 6 Situaciones susceptibles de generar mala praxis médica. 7 Situaciones susceptibles de liberar de responsabilidad al médico. 8 Consecuencias en Argentina. Conclusión. Referencias.

Antes de comenzar a explayarme sobre el tema que versará el presente artículo corresponde expresar algunas palabras sobre lo que implica el derecho a la salud en la República Argentina. En ese sentido, cabe decir que el derecho a la salud es uno de los derechos humanos fundamentales para los ciudadanos, el mismo está garantizado por la Constitución Nacional en su artículo 42°. A su vez, es necesario remarcar que el Estado Nacional es quien define políticas públicas que son desarrolladas y aplicadas por el Ministerio de Salud de la Nación, siendo el Consejo Federal de Salud, el organismo encargado de coordinar tales políticas con todas las provincias. Ahora bien, sentadas estas consideraciones preliminares, pasaré profundizar sobre la temática que convoca al presente.

I-

Significado de la Mala Praxis médica

Existe la denominada ―Mala praxis‖ en el área de la salud, cuando se provoca un daño en el cuerpo o en la salud de la persona humana, sea este daño parcial o total, limitado en el tiempo o permanente, como consecuencias de un accionar profesional realizado con imprudencia o negligencia, impericia en su profesión o arte de curar o por inobservancia de los reglamentos o deberes a su cargo con apartamiento de la normativa legal aplicable.

II-

Requisitos para su existencia

En primer lugar debe existir un daño constatable en el cuerpo, entendido como organismo, o en la salud, extendiéndose el concepto tanto a la salud física como a la mental, siendo ésta comprensiva de todas las afecciones y trastornos de orden psiquiátrico, 1

Advogado; Mestrando em Direitos Humanos e Democratização na América Latina e Caribe pelo Centro Internacional de Estudos Políticos da Universidade Nacional de San Martín (Argentina).

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psicológico, laborales, individuales y de relación, con incidencia en las demás personas. La amplitud del concepto, abarca no solo el daño directo al individuo, sino que por extensión, se proyecta inclusive sobre prácticamente la totalidad de las actividades del afectado. En segundo lugar, el daño causado debe necesariamente originarse en un acto imprudente o negligente o fruto de la impericia o por el apartamiento de las normas y deberes a cargo del causante del daño o apartamiento de la normativa vigente aplicable. De acuerdo a la normativa del art. 902 del Código Civil, la calidad de profesional de la salud en el agente involucrado en el daño, agrava cualquiera de las conductas negativas descriptas. Los supuestos son los siguientes: a) Imprudencia: La imprudencia es entendida como falta de tacto, de mesura, de la cautela, precaución, discernimiento y buen juicio debidos, por parte del profesional de la salud.-b) Negligencia: Es entendida como la falta de cuidado y abandono de las pautas de tratamiento, asepsia y seguimiento del paciente, que están indicadas y forman parte de los estudios en las profesiones de la salud. c) Impericia: está genéricamente determinada por la insuficiencia de conocimientos para la atención del caso, que se presumen y se consideran adquiridos, por la obtención del título profesional y el ejercicio de la profesión.-d) Inobservancia de los Reglamentos y/o Apartamiento de la Normativa Legal Aplicable: el ejercicio de la Medicina, la Odontología y las actividades de colaboración profesional de la salud.

III- Cuestiones generales de derecho en la Argentina

El principio general establece que quien invoca la producción del daño debe probar la efectiva responsabilidad de los agentes de la salud intervinientes en la producción del daño. Esta condición deriva del principio general del derecho vigente, establece a cargo de quien invoca un daño y un perjuicio, la obligación de probarlo y acreditarlo. Sin perjuicio de ello, existen pautas de conducta profesional que deben ser siempre adoptadas por dichos profesionales, para procurar su mejor defensa ante la acusación. De tal manera y para responder ante las acusaciones de imprudencia, impericia o negligencia, los agentes de la salud deben llevar a cabo, entre otros elementos importantes, una clara, completa y secuenciada Historia Clínica, la que debe contener además las pertinentes observaciones de quien las redacta. Otro elemento hábil en la defensa del agente de la salud, será el previo consentimiento informado del paciente y/o sus responsables, acerca de las conductas terapéuticas que se vayan implementando, así como la razón que las aconseja. El consentimiento informado por escrito, es legalmente exigible en todos los casos de trasplantes 12


de órganos y es siempre, en todos los juicios derivados de "mala praxis", un antecedente evaluado por los jueces.

IV.- La Mala Praxis en la Legislación Civil y Penal de Argentina

El Código Civil Argentino contempla la responsabilidad emergente de la mala praxis y la obligatoriedad de su resarcimiento económico (arts. 1073 a 1090 del Código Civil) y/o de la prestación asistencial reparadora, encuadrándola dentro de los Títulos de las Obligaciones, de los Hechos Jurídicos y de las Obligaciones que nacen de hechos ilícitos que no son delitos, esto último especialmente, a través de los artículos 1109 y 1113 del Código Civil. En particular, el art. 902 del Código Civil nos dice: "Cuanto mayor sea el deber de obrar con prudencia y pleno conocimiento, mayor será la obligación que resulte de la consecuencia posible de los hechos‖. El art. 903 dice: "Las consecuencias inmediatas de los hechos libres, son imputables al autor de los hechos.". El art. 904: "Las consecuencias mediatas son también imputables al autor del hecho, cuando las hubiere previsto, y cuando empleando la debida atención y conocimiento de la cosa, haya podido preverlas". El art. 905: "Las consecuencias puramente casuales no son imputables al autor del hecho, sino cuando debieron resultar, según

las

miras

que

tuvo

al

ejecutar

el

hecho."

Si bien, como fuera dicho al comienzo de este capítulo, un principio general del derecho y la legislación subsecuente, indica tanto a los Jueces como a los particulares, que quien demanda por un daño debe probar no solo la magnitud del daño, sino también que dicho daño es una consecuencia natural del accionar mal práctico, ello no resulta ni es considerado siempre así por parte de la Doctrina Jurídica. El Código Penal, por su parte, tipifica la mala praxis de modo específico, a través de los delitos de homicidio culposo (art.84 CP) y de lesiones culposas (art.94 CP), figuras por las cuales se sanciona a quienes resulten declarados culpables, con penas de prisión y de inhabilitación especial para el ejercicio de la profesión o de la actividad que por su ejercicio, haya sido generadora de la muerte o de la lesión. Curiosamente, y a la par, inequitativamente, estas normas engloban actualmente en sus tipos delictivo, tanto a las acciones derivadas de los actos de los profesionales de la Salud, como, por ejemplo, a los conductores de automotores lanzados en una "picada" por las avenidas. Más aún, gravando la situación preexistente, el 29 de Septiembre del año 1999, el Congreso de la Nación sancionó, para su promulgación por el Poder Ejecutivo el 26 de Octubre del mismo año, la Ley 25.189 que incrementó la pena por muerte culposa, a un mínimo de prisión por seis meses y a un máximo de cinco años e 13


inhabilitación especial de entre cinco y diez años, así como para el caso de lesiones culposas determinó la pena de prisión entre un mínimo de tres meses a un máximo de tres años o multa e inhabilitación especial por uno a cuatro años. Ante una situación legal tan desmedida que equipara penas referidas a situaciones, conductas y personas tan disímiles, como las atinentes y llevadas a cabo por un profesional de la salud en un caso hipotético y por un temerario conductor de vehículos en otro caso, determinó la inmediata actividad de la Asociación Médica Argentina qué, por un parte, dirigió una nota informativa y para la procura de toma de decisiones, a las diferentes Asociaciones Médicas, Universidades Nacionales y médicos en general y, por otra parte, previo a que la ley 25.189 fuese sancionada y promulgada inclusive, dirigió notas tanto al Congreso Nacional como al por entonces Presidente de la Nación, advirtiéndoles de las consecuencias públicas y sociales, que la sanción y promulgación de dicha ley traería aparejado, al no diferenciar personas ni conductas, equiparando profesionales con los conductores de automóviles y "picadas" de automóviles con el sacrificado obrar asistencial del médico. En ese sentido, la Asociación Médica Argentina ha propuesto una clara diferenciación de las conductas y un rigor mucho más atenuado y con diferentes requisitos en las consideraciones legales, respecto de los profesionales de la salud. En ese entonces, si bien dicho organismo no pudo detener o retrasar la sanción y promulgación de la ley 25.189, fue sin embargo oído, leído y atendido el reclamo presentado por la Asociación Médica Argentina, al punto que el Poder Ejecutivo Nacional, también con fecha 26 de Octubre del año 1999, envió al Congreso Nacional el Mensaje Nº 1.226, conteniendo un proyecto de ley para contemplar específicamente la modificación de la tipificación penal para los profesionales de la Salud. El Poder Ejecutivo de la Nación, en respuesta a la nota que al efecto le había elevado la Asociación Médica Argentina, envió a su vez al Congreso Nacional, una nota con copia del proyecto legislativo propuesto. Si bien dicho proyecto enviado al Congreso por el entonces Gobierno Nacional, no satisface las justas expectativas de los médicos profesionales de la salud, en orden a la morigeración y correcta adecuación de la conducta profesional en dicho ámbito, a pautas y normas específicas al área de la salud, podemos al menos constatar, que los esfuerzos en dicho sentido no han caído "en saco roto" y siguen siendo motivo de atención.

V.-Actualidad Legislativa. El proyecto de Unificación

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A pesar de la intervención de la Asociación Médica Argentina y un vasto nucleamiento de Sociedades y Asociaciones vinculadas con las profesiones para la Salud, se encuentra actualmente en el Congreso Nacional, un proyecto de Ley que modifica tanto al Código Civil como al Código Penal en lo atinente a la Responsabilidad Legal de los profesionales, en la órbita de la "mala praxis". Entre las distintas modificaciones, se disminuye de diez a dos años el plazo de prescripción para iniciar la acción civil de responsabilidad, se establecen topes dinerarios para el reclamo dinerario, evitando de tal suerte condenas que sean absolutamente impagables. Se reducen las penas establecidas por el art. 84 del Código Penal (muerte por "mala praxis") y por el art. 94 (lesiones derivadas de la "mala praxis"). El art. 1734 del mencionado proyecto de unificación estatuye: «Excepto disposición legal, la carga de la prueba de los factores de atribución y de las circunstancias eximentes corresponde a quien lo alega». Pero, a renglón seguido, el art. 1735 establece que «no obstante el juez puede distribuir la carga de la prueba de la culpa o de haber actuado con la diligencia debida, ponderando cuál de las partes está en mejor situación para aportarla. Si el juez lo considera pertinente, durante el proceso comunicará a las partes que aplicará este criterio, de modo de permitir a los litigantes ofrecer y producir los elementos de convicción que hagan a su defensa». Es decir que en este último artículo se consagra la aplicación de la doctrina de la carga probatoria dinámica en materia de responsabilidad subjetiva, facultándose al juez a crear una presunción de culpabilidad en contra del demandado, sobre la base de considerar que este pudiese encontrarse en mejor situación probatoria a ese respecto. Consecuentemente, de resultar convertido dicho proyecto en ley, quedará consolidada una inversión sistemática de la mencionada carga probatoria cuando se demande por mala praxis a los profesionales de la medicina y de la abogacía, dado que los jueces ameritarán invariablemente que estos se encontrarán dentro del proceso en una situación de supremacía fáctica, técnica y jurídica, en relación al aporte de las pruebas inherentes al factor subjetivo implicado en el caso. Ahora bien, para ver cuáles son las razones de esta situación descripta corresponde analizar qué situaciones producen este tipo de denuncias.

VI.-Situaciones susceptibles de generar mala praxis médica

1.- La falta de información adecuada: esto es lo que se denomina consentimiento informado (es un derecho del paciente a recibir información adecuada y un deber del médico de brindar dicha información), que significa que el médico debe informarle de manera prolija 15


y pormenorizada los riesgos y complicaciones que entraña una determinada práctica médica, la técnica médica que se va a emplear, las posibilidades de curación y cuáles serán los cuidados a tener en cuenta para el período post-operatorio. Por un lado el médico debe informar correctamente y por el otro el paciente debe dar su consentimiento pleno, es decir, con voluntad jurídica completa que incluye el discernimiento, la intención y la libertad, firmando el respectivo instrumento, ya que debe dejarse constancia por escrito de todo lo informado por el médico y consentido por el paciente. Si el paciente no da su consentimiento el médico no puede practicar la operación (salvo los casos de urgencia en que el mismo no puede ser requerido), ya que si lo hace estaría incurriendo en el delito de lesiones. La falta o erróneo consentimiento informado genera responsabilidad precontractual del médico porque todavía no comenzó la prestación de servicios profesionales. Merece destacarse la polémica que se desató en una oportunidad con los testigos de Jehová, quienes por razones religiosas, no aceptan transfusiones sanguíneas, resolviendo la Justicia Argentina en un fallo ejemplar donde se exalta el derecho a la libertad como derecho fundamental del ser humano que: "una persona enferma, pero con discernimiento, no puede ser obligada coactivamente a una terapia que repugna sus creencias religiosas, si esa negativa no implica riesgos para terceros, sino únicamente para la propia vida o la propia salud" (Cám. Fed. Comodoro Rivadavia-Chubut, Argentina, 15-06-89, "Bahamondez, Marcelo", ED 134-297). También por supuesto la solución judicial se aplica a cualquier persona que por el motivo que invoque y siempre que su voluntad sea sana, se niegue a realizase una operación o a recibir un determinado tratamiento médico. Caso: se trataba de una cirugía estética de abdomen practicada en una persona morena que, por las propias características de su piel, provocó cicatrices hipertróficas y queloides (en las que la herida no logra cerrarse por completo y queda una protuberancia o sobrepiel), frecuentes en personas de este color. El tribunal entendió que el médico faltó a su deber de informar a la paciente de estos riesgos (CNCiv, Sala I, Argentina, 30-03-90, "P.D.C. c. Morrone", LL 1991-A-142). 2.- La prescripción imperita o errónea de drogas o medicamentos a personas alérgicas o sin informar los efectos colaterales o contraindicaciones: hay prospectos de medicamentos (donde se indica la formula del medicamento; acción terapéutica; forma de tomarlo; acciones colaterales y precauciones) que dicen claramente que "Debe suministrarse con precaución en pacientes con antecedentes de hipersensibilidad a los analgésicos", o por ejemplo los casos de personas a quienes se les suministra penicilina sin previamente preguntar el médico si toleran dicha droga. También nos preguntamos qué responsabilidad le cabe a los médicos psiquiatras que recetan medicamentos antidepresivos y ansiolíticos que provocan 16


somnolencia, fatiga, temblores, visión borrosa, euforia, confusión; sin advertir al paciente sobre los efectos colaterales o contraindicaciones que los prospectos indican como por ejemplo que no los pueden ingerir quienes conduzcan automóviles ya que provocan una disminución de los reflejos necesarios a la hora de la conducción vehicular. ¿Qué ocurre si ese paciente sufre un accidente de tránsito causado por esos efectos colaterales que no fueron informados por el médico?, podemos hacer responsable al médico?, o el prospecto debe ser leído por el paciente y ¿No es responsabilidad del médico informar? Informar sobre las acciones y efectos de un medicamento ¿No forma parte del consentimiento informado?. Por nuestra parte creemos que es el médico, quien posee los conocimientos de la ciencia médica, el que debe informar adecuadamente al paciente. Caso de deber de información del psiquiatra: En España un niño menor de edad que padecía una esquizofrenia paranoide salió de su casa portando el arma de su padre y en la vía pública disparó contra tres hermanos menores de edad causándoles la muerte y lesiones a otra persona. El Tribunal Supremo Español dictaminó que no hay responsabilidad de los padres del menor causante del daño que no procedieron a la incapacitación de su hijo que padecía una esquizofrenia paranoide al no haber sido informados por el médico psiquiatra que lo estaba tratando, de la clase de enfermedad que padecía su hijo ni se les aconsejó su internación a un centro idóneo. Agregando el tribunal que: "De existir alguna responsabilidad sería del facultativo (psiquiatra) que no comunicó la clase de enfermedad que padecía el menor, ni tampoco aconsejó su ingreso en el centro psiquiátrico, no compartiendo esta Sala el criterio de que el médico no estaba obligado a informar, sobre la base de una lectura literal de la Ley de Sanidad. Si en algún caso hay obligación de informar es en el supuesto de las enfermedades psiquiátricas, por la propia idiosincrasia de tales enfermedades, los riesgos que conlleva, y la necesidad de ayuda que tales enfermos requieren, nada de lo cual puede hacerse, si quien puede, no informa" (STS, Sala 1ra., España, 05-03-97). Lo que ocurre es que el psiquiatra no había sido demandado. Otro caso es el de la aplicación errónea de un antiséptico de carácter tóxico. Dijo el tribunal: "En los informes médicos mencionados se hace hincapié en el carácter tóxico del antiséptico aplicado por error, por tratarse de un compuesto mercurial, que incluso en bajas concentraciones, afecta a los tejidos nerviosos alcanzados, a los que se denomina como infraorbitario, segunda rama del trigémino, nervio facial y glosofaríngeo, pero no se ha formulado objeción alguna ni en estos dictámenes ni en la demanda, con el desarrollo de la operación de cirugía efectuada, haciendo hincapié sólo en la inyección indicada y en la falta de la biopsia del material extraído durante la operación. No puede pretenderse del cirujano jefe que verifique el cumplimiento de cada integrante del equipo, más allá de lo que queda al 17


alcance de sus sentidos o de la previsión o el cuidado que el caso requiere. Así, han señalado en forma coincidente, que la instrumentadora debe estar en condiciones de poder identificar el específico que solicita el cirujano, que el aspecto físico del Trimerosal y de la Xylocaína son similares y que no es habitual que el cirujano compruebe químicamente las drogas requeridas. No puede, entonces, requerirse que el cirujano efectúe una verificación que está fuera de sus posibilidades, de modo que no puede atribuírsele culpa en su proceder, que genere su responsabilidad en los términos del art. 512 del Cód. Civil. En lo atinente a la instrumentadora, que como se vio, reconoció el error corregido, era dependiente del Sanatorio, resulta indudable la responsabilidad de la empleadora, por la culpa de sus dependientes, como lo dispone el art. 1113 del Cód. Civil. La afirmación de Omint S.A. reconoce que aportó a la actora todo el aparato médico-asistencial requerido, torna procedente la responsabilidad de la prepaga. Corresponde resarcir a la actora por los perjuicios ocasionados por lo inyectado erróneamente" (CNCiv., Sala C, Argentina, 02-06-05, "V. De A., M. C. c. Ries Centeno, Carlos María y otros s. daños y perjuicios"). 3.- Actuar sin atender a su propia especialidad: no efectuar consultas cuando el problema médico supera los conocimientos o no derivar al paciente a otro centro de salud cuando no se cuenta con la tecnología requerida para el tipo de práctica: y esto vale para cualquier profesión. Suelen darse estos casos cuando se trata de médicos residentes (recién recibidos que no tienen especialidad) que cumplen guardias, en las que deben atender cuestiones médicas diversas. Ha dicho la jurisprudencia que: "la circunstancia de que el médico que intervino quirúrgicamente a la actora carezca de título habilitante para ejercer la especialidad en cuestión y sólo sea un médico residente, configura un hecho generador de una presunción judicial contraria al médico" (CNCiv., Sala D, Argentina, 28-02-96, "G., F.M. c. Centro Médico Lacroze y otros", LL 1996-D-451, con nota de Roberto Vázquez Ferreyra). Casos: una médica que ingresó al hospital en el servicio de otorrinolaringología y a los pocos meses operó a una persona de una hernia inguinal, produciéndole el atrofiamiento de un testículo (CNCiv., Sala D, Argentina, 09-08-89, "F.R., M. c. Hospital Ramos Mejía", LL 1990-E-417; JA 1990-II-69); o la médica de guardia de un hospital, que no es traumatóloga, que atiende a un niño accidentado por una fractura expuesta, después de algunas horas del accidente, no efectúa el cepillado de rigor, produciéndose una gangrena que concluye con la extirpación del miembro (CNCiv., Sala F, Argentina, 27-04-90, "Muñoz Aranda c. Municipio de Gral. Sarmiento", ED 139-131; JA 1991-I-90). También otro caso donde se le amputó una pierna a una persona, tras sufrir un accidente de tránsito, por no obtener el tratamiento adecuado en tiempo oportuno (CNCiv., Sala F, Argentina, 28-06-05, "Villalba, Alejandro 18


Raúl c. Hospital Municipal de Vicente López Prof. B. Houssay y otros s. cobro de sumas de dinero", Diario Judicial, edición on line, Buenos Aires, 17 de Agosto de 2005. 4.- No efectuar seguimiento adecuado del paciente al que se ha operado: debemos aclarar que el médico tiene 3 deberes que comprenden 3 etapas: diagnóstico, tratamiento y atenciones y cuidados. Por otra parte, debemos distinguir entre el alta médica y el alta sanatorial. En ese sentido el alta médica lleva consigo el alta sanatorial, pero no a la inversa, es decir, puede ocurrir que el médico le conceda al paciente el alta sanatorial pero le indique que debe tomar ciertas precauciones, continuar con el tratamiento indicado y cumplir con controles médicos periódicos (es lo que se denomina tratamiento ambulatorio). (Caso: mala praxis. Fractura de pierna durante un partido de futbol. falta de seguimiento del paciente. responsabilidad del medico, de la clinica y del club donde jugaba al fútbol el damnificado. cncom., sala c, argentina, diciembre de 2004, "c., j. j. c. p., c. s. sumario", Diario Judicial, edición on line, Buenos Aires, 28 de Marzo de 2005. 5.- Errores sobre la identidad de los pacientes o de los órganos o miembros a operar: ocurre a veces que la masificación de casos que existen en los hospitales, hace que un médico opere a una persona por error, ya sea por ejemplo intervenir quirúrgicamente a una persona de apéndice cuando en realidad debía operar a otra; o el caso del traumatólogo que realizó una operación de artroscopia de rodilla izquierda de un paciente, cuando en realidad debía haber operado la rodilla derecha. 6.- Tratamiento no recomendado para la afección y publicidad engañosa: La Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil condenó a un odontólogo por los daños sufridos por una paciente a quien aplicó un tratamiento no recomendado para su afección. Entre otras cuestiones, el tribunal tuvo en cuenta que el profesional incurrió en publicidad engañosa, promocionando sus tratamientos en un programa televisivo donde fueron presentados como "soluciones mágicas". "Si bien es cierto que en los supuestos de cirugía estética, quien se somete a la misma, lo hace buscando un fin concreto, careciendo de patología, ello no quiere decir que se garantice su resultado, pues también los factores endógenos y exógenos juegan un papel determinante, no perdiendo la medicina por ello su carácter de ciencia axiológica relativa. Sin embargo, en los supuestos de cirugía voluntaria o de satisfacción, si no se informa al cliente de tales eventualidades y se le indica, a través de publicidad engañosa y promocional, que se va a obtener el resultado buscado, la obligación se hace de resultado, por una información inadecuada que ha viciado el consentimiento, pero no porque tal cirugía lleve implícita su obtención.En principio, si bien las profesiones liberales están excluidas del marco protectorio de la ley de consumidor de argentina (Ley N° 24240) en virtud de lo 19


establecido por el art. 2, no ocurre lo mismo con la publicidad que se haga del ofrecimiento de los servicios profesionales. La realización de publicidad importa una suerte de sometimiento voluntario del profesional al régimen protectorio especial de los consumidores, aunque para involucrarlo en el marco de la ley 24240 deben quedar excluidos los mensajes de carácter meramente informativos. Será necesaria una publicidad relativa a características especiales de la prestación, que puedan además ser diferenciadas de las comunes a la actividad. Todo ello deberá ser ponderado en última instancia por la autoridad de aplicación y, en su caso, por el juez. Por otra parte, los profesionales se desempeñan en áreas de conocimiento donde la información a los consumidores es particularmente escasa. De ahí que en función de la particular debilidad en que se encuentran los contratantes de estos servicios (sumado a la "autoridad" que en cada materia le asiste al profesional el hecho de contar con un título y una matrícula), éstos no cuentan con otra alternativa que depositar su confianza en el prestador. Y otro aspecto de gran trascendencia es que la asimetría informativa y la confianza pueden llevar a que los propios profesionales provoquen lo que se denomina "inducción de la demanda", que se traduce en un obrar del profesional tendiente a inducir artificialmente al requerimiento de sus propios servicios, con la única meta de aumentar su volumen de trabajo y, por ende, sus ingresos..." (CNCiv., Sala G, 13-03-07, "Degleue, Cynthia L. c. Tobolsky, Ángel").

VII- Situaciones susceptibles de liberar de responsabilidad al médico

1.- Imposibilidad de cumplimiento de la labor medical (obligación de cumplimiento imposible): cuando el médico no puede cumplir con su labor profesional por circunstancias ajenas a su conducta. Son las llamadas obligaciones de cumplimiento imposible en las que la obligación se extingue para ambas partes sin originar responsabilidad en ninguna de ellas. Caso: de un transplante de órgano que sufriese indefinida postergación, por no presentarse el material biológico adecuado en términos de histocompatibilidad; o que finalmente ocasiona la muerte del paciente porque el órgano no llegó en tiempo oportuno. En España ha dicho el Tribunal Supremo que para que surja la responsabilidad del médico, "debe tratarse de una culpa incontestable (que el médico no pueda contestar o contrarrestar) o patente, que revele desconocimiento de los deberes que deriven del estado de la ciencia médica, por lo que no se puede exigir al facultativo que venza dificultades que pueden ser equiparables a la imposibilidad. Ha de quedar patente, en suma, la conducta negligente o culpable del médico para que pueda condenársele". 20


2.- Caso fortuito: es aquel acontecimiento imprevisto o que previsto no ha podido evitarse. Y como la ciencia médica no es una ciencia exacta, muchos son los hechos médicos que, previstos, no pueden evitarse, ya que no todos organismos humanos tienen la misma resistencia o reaccionan de igual manera ante determinadas circunstancias, por ej.: el desencadenamiento de un shock quirúrgico durante una delicada operación; el sangrado profuso durante una intervención cruenta (violenta o sangrienta); etc. Así por ejemplo en España el art. 141.1 de la Ley 30/1992 de Régimen Jurídico de las Administraciones Públicas, prescribe que: "No serán indemnizables los daños que se deriven de hechos o circunstancias que no se hubieran podido prever o evitar según el estado de los conocimientos de la ciencia o de la técnica existentes al momento de la producción de aquellos, todo ello sin perjuicio de las prestaciones asistenciales o económicas que las leyes puedan establecer para estos casos". Es decir, el damnificado no tiene derecho a reclamar una indemnización (por una acción de responsabilidad civil), pero sí obtendrá una ayuda económica que le brindará el Estado (a través del sistema de la seguridad social) para ayudarle a sobrellevar el daño sufrido. 3.- Incumplimiento de la obligación recíproca: tanto el médico como el paciente asumen obligaciones recíprocas como consecuencia del contrato de prestación de servicios médico-asistenciales. Así por ejemplo para que un diagnóstico resulte certero, además por supuesto de los análisis (para una operación el examen prequirúrgico) que debe indicar el médico, es necesario que el paciente preste su más amplia colaboración, sin reservas ni ocultamientos. La "anamnesis" (relato pormenorizado y respuestas del paciente al interrogatorio dirigido por el médico) debe ser completa y sin retaceos. Ej: el caso de que el paciente oculte al médico alguna enfermedad padecida con anterioridad que pueda ser determinante saber de caras a una intervención quirúrgica o a la iniciación de un nuevo tratamiento. 4.- Abandono del tratamiento por parte del paciente: es la defensa que más invocan los profesionales de la salud. A propósito, hay que disinguir, como se dijo que una cosa era el alta médica y otra muy distinta el alta sanatorial. Es decir, que a un paciente le den el alta sanatorial no significa que no deba seguir el tratamiento y cuidados indicados en su hogar. Si existe abandono del tratamiento por parte del paciente, este incurre en su responsabilidad. 5.- Iatrogenia inculpable (riesgo terapéutico): la iatrogenia o error es el daño accidental, estadísticamente previsible, pero fácticamente inevitable, que conllevan en proporciones variables las prácticas y tratamientos médicos. La llamamos inculpable porque no ha mediado culpa del médico.

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6.- Estado de necesidad: es un instituto de raigambre penal que luego pasó al derecho civil. Es una causal de justificación que borra la antijuridicidad de la conducta. La ley dice que, en determinadas circunstancias donde existen conflictos de intereses en juego, es lícito proteger un interés de mayor valor, en detrimento del de menor valor. Las condiciones para que se configure el estado de necesidad y libere de responsabilidad al médico son: 1.- que el estado de necesidad no se haya producido por culpa del médico (Caso: Mala praxis en operación de by pass: Una mujer que sufrió la amputación de parte de su pierna derecha luego de una operación de by pass deberá ser indemnizada en más de 100 mil pesos. La medida la ordenó la Cámara Civil y Comercial de San Isidro al considerar que no se hicieron los controles intraoperatorios necesarios, ni los postoperatorios prescriptos por la ciencia médica para ese tipo de intervenciones; aclarando el fallo "que la irremediabilidad de la mutilación -al margen de su eficacia para salvar la vida-, tuvo por presupuestos necesarios las sucesivas y erróneas acciones médicas y quirúrgicas vistas, que no pueden resultar cohonestadas ante la displicencia en la elaboración de la(s) historia(s) y antecedentes clínicos de una paciente cuya salud estuvo comprometida desde un principio, sin que ello pudiera pasar desapercibido para el sanatorio demandado ni para el médico". CCivil y Com. San Isidro-Buenos Aires, Argentina, Sala II, 16-12-04, "S., S. c. S. S. L. y otro s. daños y perjuicios (causa 93.069)", Diario

Judicial,

edición

on

line,

Buenos

Aires,

18

de

Enero

de

2005,

http://www.diariojudicial.com/nota.asp?IDNoticia=24210#); 2.- que no se pueda evitar el riesgo de ninguna otra manera que no sea causando el perjuicio; 3.- que ese riesgo sea inevitable, inminente y actual; 4.- que el daño inferido sea menor que el que se pretende impedir. Ejemplo: el cirujano que ante el desarrollo de una gangrena, o ante la imposibilidad de reconstruir un miembro destrozado en un accidente, decide la amputación del mismo para evitar que la infección se extienda a otras partes del cuerpo y provoque la muerte del paciente. 7.- Error científico: es aquel error en que puede incurrir el médico como ser humano falible. Se da cuando el médico opta por una determinada técnica, teoría o tratamiento de la ciencia médica actualizada, que produce un daño al paciente. Tiene que haber razones científicas para errar, ya que el médico no puede alegar su propia ignorancia en la materia al haber utilizado por ejemplo una técnica vieja o dejada de usar para tratar al paciente.

VIII- Consecuencias en Argentina

Según la Asociación Civil de Actividades Médicas (ACAMI), cada año ingresan en los juzgados alrededor de 1.500 demandas, por presunta mala praxis, en todo el país; con la 22


particularidad que el 60% se concentra en Capital y en Gran Buenos Aires. En los registros de esta asociación –que agrupa a instituciones como el Hospital Italiano, el Británico, el Austral, Cemic, Fleni y la Fundación Favaloro, entre muchas otras–, consta que actualmente uno de cada cinco médicos ha recibido una demanda. Asimismo, el monto total de dinero gastado en juicios, durante 2012, llegó a unos $ 3.700 millones de pesos, es decir alrededor de 500 millones de dólares, por ese entonces.Pero estas cifras vienen aumentando en el último lustro. Según voceros de esa entidad, los costos generados por temas jurídicos pasaron, en los dos últimos años del 2 al 4% del gasto total en salud del país ―Eso significa un aumento del 100% del año 2010 a hoy‖.Las especialidades más demandadas ante los jueces – traumatología, obstetricia, cirugía general y anestesiología– se suma el hecho de que ahora los juicios incluyen no sólo al médico que realizó la práctica, sino también a técnicos, enfermeras, jefes de servicio y a las propias clínicas. Lo cierto es que no todos esos juicios terminan con una sentencia: menos de un tercio de las demandas prospera en la Justicia. Y de esas, entre 5 y 8% acaba en condena. El resto se suele cerrar con acuerdos, explican en ACAMI.Esos convenios también elevan los costos ya que pasan a engrosar las facturas de los seguros individuales e institucionales, honorarios de abogados y –sobre todo– hay un incremento de lo que se conoce como ―medicina defensiva‖, que suele traducirse en hechos como pedir estudios redundantes o innecesarios para el diagnóstico y tratamiento, que los médicos solicitan para –justamente– cubrirse ante eventuales futuras acusaciones. Según la entidad, las causas de este aumento de juicios son tres: la primera es la creciente presión de los abogados (denominados en argentina como ―Caranchos‖) y la ―industria‖ del juicio. La segunda, la falta de adopción, por parte de médicos y hospitales, de normas y guías clínicas actualizadas y la falta de exigencias para que los médicos se capaciten y recertifiquen periódicamente al ejercer sus especialidades.

IX-

Conclusión

Como síntesis de éste trabajo cabe decir que las denuncias de mala praxis en Argentina son un fenómeno que devienen en constante crecimiento. A partir de la experiencias en nuestro país se recomienda nuestros países hermanos, a los abogados que cuando les toque defender a un médico, que aporten todas las pruebas de que disponen, de manera de que el médico asuma una conducta procesal activa de colaboración con el paciente y con el tribunal, ya que su pasividad procesal puede jugar en su contra. Y, a los médicos, que 23


tomen conciencia de que la historia clínica llevada en debida forma es el instrumento probatorio idóneo para demostrar su comportamiento diligente en el acto médico objeto del juicio; ya que como bien se ha dicho "la historia clínica es como la presunción de la contabilidad para el comerciante, si la lleva en orden no juega en su contra, pero si es deficiente o incompleta, juega inmediatamente en su contra". Finalmente, decir que en la República Argentina resulta necesario profundizar el debate con respecto a las implementaciones del nuevo código que se sancione, para que ni los médicos, ni los pacientes se vean perjudicados por la nueva legislación a implementarse.

REFERENCIAS

BUERES, Alberto J. "Responsabilidad civil de los médicos. Derecho de daños en la actividad médica. Lineamientos doctrinales y jurisprudenciales", José Luis Desalma/Editor, 2º edición actualizada, Buenos Aires, Argentina, 1994. GUTIÉRREZ, Hernán; Iraola, Lidia Nora ―Apuntes Sobre la Responsabilidad Médica Legal y la Mala Praxis‖, en portal de la Asociación Médica Argentina, Buenos Aires, Argentina S/F. PIROTTA, Diego Martín, ―Responsabilidad Médica: situaciones susceptibles de generar mala praxis y de liberar de responsabilidad. Análisis de casos paradigmáticos‖. Texto de la disertación brindada en el marco de las III Jornadas Interprovinciales de Responsabilidad Civil del Médico en homenaje al Profesor Dr. Félix A. Trigo Represas, realizadas en el Aula Magna de la Facultad de Ciencias Económicas de la Universidad Nacional del Nordeste, Resistencia –Chaco-, Argentina, 2007. RAMOS, Santiago José, ―Ley 26.529: Derechos del paciente en relación a los profesionales e instituciones médicas‖. Publicación: www.saij.jus.gov.ar, 2009 RODRÍGUEZ LÓPEZ, Pedro, ―Responsabilidad médica y hospitalaria‖, S.A. BOSCH, Buenos Aires Argentina, 2004. TRIGO REPRESAS, Félix A.; López Mesa, Marcelo J. "Tratado de la Responsabilidad Civil. Cuantificación del daño". La Ley, Buenos Aires, Argentina, 2006.

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ATIVISMO JUDICIAL: CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS A PARTIR DE CASOS SENTENCIADOS PELA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS Adolpho José Ribeiro 1 Sumário: 1 Introdução. 2 Ativismo Judicial: origens e significação terminológica. 3 Case Studies: momentos de identificação do ativismo judicial na Suprema Corte dos Estados Unidos. 4 Causas do Avanço do Poder Judicial. 4.1 Causas do Passado. 4.2 Causas do Presente. 5 Consequências de uma Atuação Judicial Ativista. 6 Possíveis Soluções? Perspectivas? 7 Conclusão. Referências.

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INTRODUÇÃO Escrever sobre a atuação da justiça constitucional, na tentativa de demonstrar os

possíveis benefícios de seu ativismo, analisando alguns casos concretos de momento e defendendo seus efeitos, com um entendimento que não muito se distancia de um finalismo maquiavélico, consiste na postura de uma parte da doutrina dos dias de hoje. Há, ainda, aqueles que, aliando-se a essa conduta de busca cega pelos resultados, demonstram não ter conhecimentos da origem e das razões iniciais que cominaram no ativismo judicial, ignorando fatos relevantes à introdução da temática. Evidenciam, com efeito, estarem alheios à perspectiva tridimensional do direito cujo conhecimento é essencial à visualização mais completa da questão, em razão da existência das complexas demandas da atual sociedade pluralista que, cada vez mais esclarecida, clama pela solução dos seus problemas, não mais solucionáveis pela mera interpretação semântica do texto legal. Outros, por sua vez, tratam do tema como se estivessem numa espécie de desfile jurídico-acadêmico, onde demonstrar os seus sólidos conhecimentos sobre a dogmática constitucional parece ser mais importante que investigar o problema, para, apontando caminhos de possíveis soluções, servir a humanidade. Distinta corrente doutrinária, por seu turno, parece preocupar-se mais em desconstruir totalmente a dogmática jurídico-constitucional e construir suas próprias teorias – para aparentemente assumir status de novos protagonistas intelectuais – que, de fato, contribuir para melhoria da realidade das pessoas. Seguramente, pode-se dizer que o único consenso existente entre os escritores da doutrina do ativismo judicial é que não há consenso. Vê-se que os juristas não se entendem. 1

Doutorando em Direito Público e mestre em Ciências Jurídico-Políticas (com menção em Direito Constitucional) pela Universidade de Coimbra. Professor de Direito Constitucional e Ciência Política no Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ). Coordenador do Grupo de Pesquisa Ativismo Judicial e Corrupção (GuPAC).

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Por isso, já que aqui, como se observa, passa-se por ambiente de controvérsia acadêmica, é necessário evidenciar que não é metodologicamente adequado tratar de um tema dessa magnitude sem se buscar uma noção de seu objeto de estudo, e, também, sem se abordar, pelo menos sucintamente, os seus momentos2 de manifestação e os marcantes casos que deram origem ao fenômeno do ativismo judicial, já que neles se percebe especificidades fáticojurídicas demonstrativas de que ―proposições gerais (nem sempre) decidem casos concretos‖ 3 (tradução livre). Longe de se ter, neste momento, a argúcia de se resolver todos os problemas decorrentes de uma atuação judicial além de suas competências – expressamente positivadas nas constituições ocidentais analíticas – ou de se intentar, de imediato, resolver as possíveis consequências negativas provocadas pela autocontenção dos juízes constitucionais, propõe-se elencar, da maneira mais epistemológica possível, as prováveis causas do ―ativismo‖ desses juízes. Propõe-se, através de uma linguagem simples e direta, apontar possíveis caminhos a ser temporariamente seguidos, a fim de que, em um futuro talvez distante, alcance-se a virtude da fraternidade humana aliada à concepção da tridimensionalidade do direito, tão necessárias para lidar com um tema dessa relevância, para, em seguida, poder-se indicar soluções mais plausíveis à problemática em questão. 2

ATIVISMO JUDICIAL: ORIGENS E SIGNIFICAÇÃO TERMINOLÓGICA Atribui-se à jurisprudência estadunidense a origem do fenômeno referido de ativismo

judicial pela doutrina. Não por motivo de menor importância, o investigador por excelência é induzido a encetar a investigação pela doutrina e pela jurisprudência daqueles que, no mínimo por razões geográficas, de identidade nacional e de facilidade linguística, possam, com mais proximidade e maior fidelidade, escrever sobre o ativismo judicial e comentar inúmeros julgamentos atinentes à matéria, embora, como se sabe, não somente os autores norteamericanos o façam, e, por isso, não haverá aqui limitações no sentido de se analisar somente aquela doutrina. 2

Como destaca Castanheira Neves, ―(...) a intencionalidade prática não tem sentido com abstracção e sem o reconhecimento da historicidade que lhe é culturalmente constitutiva, como hoje ignoravelmente sabemos.‖ NEVES, A. Castanheira. O Jurisprudencialismo – proposta de uma reconstituição crítica do sentido do direito. Revista de Legislação e de Jurisprudência. Ano. 138. n. 3956. Maio-Junho. 2009. p. 243. 3 A frase foi originalmente dita pelo Justice Holmes, em 1905, em sua dissidência no caso Lochner v. New York. Eis a sua afirmação original: ―General proposition do not decide concrete cases‖.HOLMES, Oliver Wendell. Lochner v. New York. Holmes Dissenting Opinion. Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct/html/historics/USSC_CR_0198_0045_ZD1.html. Acesso em: dez. 12.

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Malgrado ter as suas origens marcadas na práxis jurisprudencial norte-americana, ao que se indica após a decisão do caso Dred Scott v. Sandford, em meados do século XIX, como mais adiante se terá a oportunidade de observar, a expressão ―ativismo judicial‖ só foi utilizada pela primeira vez em 19474, quando Arthur Schlesinger Jr. traçou o perfil profissional dos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos. Apesar disso, o criador da terminologia não conseguiu defini-la.5 Desde então, valendo-se de uma linguagem ampla, a doutrina tem se utilizado do termo para descrever uma vasta variedade de condutas dos juízes, muitas vezes até contraditórias, quando estes, por exemplo: a. Impõem suas preferências políticas ou mesmo orientam resultados prédeterminados, para, por trás de uma decisão mascarada de argumentos supostamente jurídicos, defender interesses de terceiros;6 b. Implementam políticas públicas, utilizando-se do judicial review;7 c. Impõem suas crenças, valores pessoais, morais ou ideológicos, de modo parcial, por trás de seus argumentos jurídicos;8 4

Kmiec identifica que ―Arthur Schlesinger Jr. introduziu o termo ‗ativismo judicial‘ para o público num artigo da revista Fortune,em janeiro de 1947. O artigo de Schlesinger perfilou todos os nove juízes da Suprema Corte à época e explicou as alianças e divisões entre eles. Taxou os juízes Black, Douglas, Murphy, e Rutlege como os ‗Ativistas Judiciais‘ e os juízes Frankfurter, Jackson, e Burton como os ‗Campeões de auto-contensão‘. O juíz Reed e chefe de justiça Vinson compreendiam um grupo do meio.‖ (Tradução livre) ―Arthur Schlesinger Jr. introduced the term ‗judicial activism‘ to the public in a Fortune magazine article in January 1947.Schlesinger's article profiled all nine Supreme Court justices on the Court at that time and explained the alliances and divisions among them. The article characterized Justices Black, Douglas, Murphy, and Rutlege as the ‗Judicial Activists‘ and Justices Frankfurter, Jackson, and Burton as the ‗Champions of Self Restraint.‘ Justice Reed and Chief Justice Vinson comprised a middle group.‖ KMIEC, Keenan D. The Origin and Current Meanings of ―Judicial Activism‖. California Law Review. v. 92. n. 5. october. 2004. p. 1446. 5 Segundo Kmiec, o termo ―ativismo judicial não teve estabelecidas (ou concorridas) definições quando Schlesinger o utilizou.‖ (Tradução livre) ―‗Judicial activism‘ had no established (or competing) definitions when Schlesinger used it. Nevertheless, to the modem eye, the ambiguity in Schlesinger's article is frustrating.‖ Ibidem, p. 1449-50. 6 Como se entendeu ter acontecido na decisão do caso Bush v. Gore. SEGAL, Jeffrey A.; SPAETH, Harold J. The Supreme Court and the Attitudinal Model Revisited. Cambridge: Cambridge University Press, 2002. p. 176. 7 Lawrence Baum entende que há ativismo judicial quando ―(...) uma corte faz significantes mudanças nas políticas públicas, especialmente em políticas que os outros poderes tem estabelecido. Uma forma de ativismo envolve o uso do judicial review pela Corte, este poder para derrubaratos de outros formuladores de políticas porque eles violam a Constituição.‖ (Tradução livre) ―(…) a court makes significant changes in public policy, especially in policies that the other branches have established. One form of activism involves the Court‘s use of judicial review, its power to overturn acts of other policymakers because they violate the Constitution.‖ BAUM, Lawrence. The Supreme Court. 10. ed. Washington: CQ Press, 2010. p. 162-3. 8 Como identifica Canotilho: ―Este ‗deslizar‘ não explicitado da retórica argumentativa dos tribunais constitucionais no sentido de um discurso moral realizador-concretizador de valores pode, segundo alguns, transformar os tribunais em instâncias autoritário-decisórias transportadoras de uma compreensão paternalista e moralizante da jurisdição constitucional.‖ CANOTILHO, J. J. Gomes. Jurisdição Constitucional e

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d. Invadem a esfera de competência dos outros poderes;9 e. Abandonam suas funções de legisladores negativos 10 e criam11, deliberadamente e ilimitadamente12, novos dispositivos legais, passando, por isso, a atuar como legisladores positivos; f. Ignoram ou desrespeitam precedentes;13 g. Interpretam além do texto expresso na Constituição, ultrapassando certos limites14 da competência judicial, desenvolvendo seu conteúdo por trás de argumentos escondidos na cortina de fumaça da norma, mas geralmente muito convincentes do ponto de vista finalístico;15 h. Ignoram a vontade da maioria constituinte e, assim, desrespeitam a Constituição;16

Intranqüilidade Discursiva. In: MIRANDA, Jorge (Org.). Perspectivas Constitucionais: Nos 20 anos da Constituição de 1976. v. 1. Coimbra: Coimbra Editora, 1996. p. 879. 9 Segundo Elival da Silva Ramos, ―(...) por ativismo judicial deve-se entender o exercício da função jurisdicional para além dos limites impostos pelo próprio ordenamento que incumbe, institucionalmente, ao Poder Judiciário fazer atuar, resolvendo litígios de feições subjetivas (conflito de interesse) e controvérsias jurídicas de natureza objetiva (conflitos normativos). Há, como visto, uma sinalização claramente negativa no tocante às práticas ativistas, por importarem na desnaturação da atividade típica do Poder Judiciário, em detrimento dos demais Poderes.‖ RAMOS, Elival da Silva. Ativismo Judicial: Parâmetros Dogmáticos. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 129. 10 KELSEN, Hans. A Garantia Jurisdicional da Constituição: A Justiça Constitucional. Trad. Jean François Cleaver. Revista Direito Público. n. 1. Jul-Ago-Set. 2003. p. 109. 11 Deve-se ter atenção, pois, como ensina Benedita Urbano, ―(...) nem toda a criação de direito pelos juízes é considerada ‗activista‘. Como se verá mais adiante, a criação judicial de direito comporta vários graus, nem todos eles questionados ou questionáveis.‖ URBANO, Maria Benedita. ―Criação Judicial‖ e ―Activismo Judicial‖: As Duas Faces de uma Mesma Função? In: Tribunal Constitucional: 35° Aniversário da Constituição de 1976. v. 2. Coimbra: Coimbra Editora/ Wolters Kluwer, 2012. p. 8. 12 Nas palavras de Cappelletti, ―o verdadeiro problema é (...) o do grau de criatividade e dos modos, limites e aceitabilidade da criação do direito por obra dos tribunais judiciários.‖ CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Trad. Carlos Alberto Alvaro de Oliveira.Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1999. p. 21. 13 DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 451. 14 Como adverte Karl Larentz, ‖o desenvolvimento judicial do Direito precisa de uma fundamentação levada a cabo metodicamente se se quiser que o seu resultado haja de justificar-se como ‗Direito‘, no sentido da ordem jurídica vigente. Precisa de uma justificação, porque sem ela os tribunais só usurpariam de facto um poder que não lhes compete. Por isso têm entre si uma estreita relação as questões relativas aos limites da competência dos tribunais nos termos da Constituição em ordem a desenvolver o Direito ultrapassando os limites da verdadeira interpretação e, inclusivamente, da integração de lacunas imanentes à lei, e a questão relativa à possibilidade de fundamentação de um tal desenvolvimento do Direito.‖ LARENTZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Trad. José Lamego. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997. p. 524. 15 FALLON, Richard. A Constructivist Coherence Theory of Constitutional Interpretation. Harvard Law Review. v. 100. n. 6. april. 1987. p. 1189-90. 16 Na concepção de Dworkin: ―O ativismo é uma forma virulenta de pragmatismo jurídico. Um juiz ativista ignoraria o texto da Constituição, a história de sua promulgação, as decisões anteriores da Suprema Corte que buscaram interpretá-la e as duradouras tradições de nossa cultura política. O ativista ignoraria tudo isso para impor a outros poderes do Estado seu próprio ponto de vista sobre o que a justiça exige. O direito como integridade condena o ativismo e qualquer prática de jurisdição constitucional que lhe esteja próxima. Insiste em

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i. Transformam-se em julgadores tirânicos, arbitrários, usurpando funções dos outros poderes e, consequentemente, põem a democracia em crise potencial; 17 j. Julgam muitos processos ou ouvem bastante os indivíduos antes de tomar suas decisões, em razão de serem aqueles profissionais muito ativos e preocupados com a imagem da justiça perante a opinião pública e com os resultados decorrentes do proferimento de suas sentenças.18 O fato é que, na exposição da doutrina, várias dessas posturas acabam se conjugando ou até mesmo se excluindo, gerando a imprecisão que se viu. Constata-se, pois, até os dias de hoje, não haver um consenso na definição do que seja ativismo judicial. 19 Por isso, um estudo minucioso do tema demanda a análise de casos concretos onde esse fenômeno possivelmente se manifesta, para que se possa identificar quais os comportamentos e fundamentos adotados pelos juízes naquelas decisões. 3

CASE STUDIES: MOMENTOS DE IDENTIFICAÇÃO DO ATIVISMO

JUDICIAL NA SUPREMA CORTE DOS ESTADOS UNIDOS20 A Suprema Corte dos Estados Unidos já demonstrava um inovador 21 alargamento de seus poderes após a prolação da sentença do conhecido caso Marbury v. Madison22, em 1803.

que os juízes apliquem a Constituição por meio da interpretação, e não por fiat,querendo com isso dizer que suas decisões devem ajustar-se à prática constitucional, e não ignorá-la.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 13. p. 451-2. 17 Mark Levin afirma que: ―A Constituição dos Estados Unidos tem sido descrita como ‗o mais admirável trabalho já realizado em um dado momento pelo cérebro e o desígnio do homem.‘ Mas a Constituição pode cumprir somente se for fielmente interpretada por aqueles responsáveis por sua aplicação no nosso sistema jurídico. Quando o judiciário federal usurpa a autoridade dos poderes legislativo e executivo, e quando juízes substituem o que atualmente a Constituição diz pelos seus preconceitos pessoais e preferências políticas, eles criam uma crise potencial para nossa república democrática.‖ (Tradução livre) ―The Constitution of the United States has been described as ‗the most wonderful work ever struck off at a given time by the brain and purpose of man.‘ But the Constitution can fulfill that promise only if it is a faithfully interpreted by those responsible for its application to our legal system. When the federal judiciary usurps the authority of the legislative and executive branches, and when judges substitute their personal prejudices and policy preferences for what the Constitution actually says, it creates a potential crisis for our democratic republic.‖ LEVIN, Mark. Men in Black. How the Supreme Court is Destroying America.Washington: Regnery Publishing, 2008. p. 209. 18 Há de se acreditar na bondade dos homens, sob pena de se viver eternamente recluso dentro de si mesmo, em constante perigo mental de ataque à própria felicidade. 19 Para Dworkin, o uso da terminologia ―ativismo judicial‖ é, sob certos aspectos, desorientadora. DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 215. 20 A doutrina que se segue foi inspirada na ideia das fases do ativismo judicial da Suprema Corte dos Estados Unidos, exposta, originariamente, por URBANO, Maria Benedita. Curso de Justiça Constitucional. Evolução Histórica e Modelos de Controlo da Constitucionalidade. Coimbra: Almedina, 2012. p. 91-5. 21 Há quem defenda que a práxis do judicial review acontecia antes mesmo da prolação da sentença do caso Marbury v. Madison e, até mesmo, antes da promulgação da Constituição norte-americana de 1788, quando, por exemplo, os juízes das colônias decidiam de acordo com a Law of the Land. Nesse sentido, vide HUC, Aziz Z. When was Judicial Self-restraint? California Law Review. v. 100. n. 3. june. 2012. p. 583. Contudo, é pacífico na doutrina que o controle judicial de constitucionalidade das normas tem origem somente com a decisão do caso.

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Em nome do tribunal, o Justice Marshall23 não mais atuou como mero ―boca da lei‖ 24, mas argumentou que as decisões políticas não mais se poderiam sobrepor à Constituição, consagrando o ato mais tarde conhecido como o marco inicial do controle judicial de constitucionalidade das normas. Ante o instável momento político vivido no país, em 1857, o Chief Justice Taney proferiu uma sentença amplamente controversa. Trata-se da decisão do caso Dred Scott v. Sandford25 que, por não tomar os afro-descendentes residentes nos Estados Unidos como cidadãos estadunidenses, manteve um ser humano em situação de escravo, declarando a inconstitucionalidade do pró-abolicionista MissouryCompromiseAct, de 1820, pois este, segundo a Corte, violaria e negaria a garantia do due process of law, prevista na Vª Emenda, aos proprietários escravistas. Em razão das devastadoras consequências provocadas pela decisão deste caso, a doutrina a referencia como uma das decisões judiciais mais desastrosas da história da Suprema Corte dos Estados Unidos.26 Com a prolação da sentença Lochner v. New York, em 1905, a Suprema Corte novamente proferiu uma decisão bastante polêmica. Os juízes, em nome da liberdade de contratação estabelecida pela cláusula do due process of law, da XIVª Emenda, rejeitaram o argumento de proteção da saúde de trabalhadores de uma padaria e declararam a invalidade de uma lei do estado de Nova Iorque que delimitava as cargas horárias semanais e diárias daquelas pessoas.27 Dalí em diante, iniciava-se era Lochner, predominantemente marcada por

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PAULSEN, Michael Stokes. The Irrepressive Myth of Marbury. Michigan Law Review. v. 101. august. 2003. p. 2706 e ss. Sob uma perspective crítica, considerando o momento político do caso vide ALSTYNE, William W. Van. A Critical Guide to Marbury v. Madison. Duke Law Journal. n. 1. january. 1969. p. 1 e ss. 23 Conforme a interpretação de Dworkin sobre o caso, verifica-se que ―(...) Marshal decidiu que os tribunais em geral, e a Suprema Corte em última instância, têm o poder de decidir pelo governo como um todo o que a Constituição pretende dizer, e de declarar inválidos os atos de outros órgãos públicos sempre que excederem os poderes que lhes são outorgados pela Constituição, corretamente entendida. Sua decisão foi aceita, pelo menos nessa forma abstrata, e a prática constitucional subseqüente consolidou-se firmemente em torno dela. Nenhuma interpretação se ajustaria a essa prática se ela negasse os poderes que Marshal lhe atribuiu. Mesmo os que acham que ele cometeu um erro admitem que quase dois séculos de prática colocaram sua posição para além de qualquer contestação enquanto proposição jurídica, e agora as batalhas constitucionais são travadas no terreno por ela definido. A questão crucial agora não é saber que poder tem a Corte Suprema, mas como deve ser exercido seu vasto poder.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 13. p. 427. 24 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat, baron de la Brède et de. De l’Esprit des lois. v. 1. Paris: Gallimard, 1995. p. 337. 25

SCHWARZ, Frederic D. 1857 The Dred Scott Decision. American Heritage. v. 58. n. 1. feb-mar. 2007. p. 72. Para maiores detalhes vide GREENBERG, Ethan. Dred Scott and the Dangers of a Political Court. Lanhan: Lexington Books, 2009. 26 Esse é o entendimento de SUNSTEIN, Cass R. One Case at a Time.Judicial Minimalist on the Supreme Court. London: Harvard University Press, 1999. p. 59. 27 O caso é mais detalhadamente descrito por BERNSTEIN, David E. Rehabilitating Lochner: Defending individual rights against progressive reform. Chicago: University of Chicago Press, 2011. p. 23 e ss.

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decisões favoráveis ao liberalismo econômico e contrárias à consolidação da legislação social.28 Para se ter conhecimento da tendência jurisprudencial da era Lochner, é possível fazer referência a vários julgados importantes, mas para não se incorrer em cansativas repetições de casos semelhantes, já que esses tiveram prolatadas decisões ativistas de mesma essência – contrárias aos direitos sociais e favoráveis aos direitos econômicos –, como se vai perceber mais adiante, dá-se atenção a dois dos mais marcantes deles: Coppage v. Kansas29, de1915, no qual, em defesa da liberdade de contratação, decidiu-se pela invalidação da lei do estado do Kansas, que proibia a celebração dos denominados ―yellow dog contracts‖, contratos de trabalho com cláusulas impeditivas da união sindical dos trabalhadores; e Adkins v. Children's Hospital30, de 1923, em que a lei fixadora de um salário mínimo para as mulheres e crianças foi julgada inválida, pois, segundo a Suprema Corte, em favor da liberdade de contratação, o empregador não deveria ser compelido pelo Estado a pagar além daquilo que possivelmente valeria o serviço de uma ―pessoa indigente‖31. Sob o argumento intransigente32 de defesa da liberdade de contratação, na era Lochner foram invalidadas massivas legislações de proteção social. Com a prolação da sentença do 28

Para aprofundar os conhecimentos sobre a Era Lochner vide SUNSTEIN, Cass R. Lochner‘s Legacy. Columbia Law Review. v. 87. n. 5. 1987. 29 Nesse sentido vide SANDEL, Michael J.Democracy's Discontent: America in Search of a Public Philosophy. Cambridge: Harvard University Press, 1998. p. 195. 30 Para maiores informações vide SCHULTZ, David A. Encyclopedia of the United States Constitution. New York: Facts on File, 2009. p. 11-2. 31 A expressão é citada por Cass Sustein quando analisa o teor da decisão do caso. SUNSTEIN. Op. Cit, nota 28. p. 876. 32 Claro que essa defesa da liberdade de contratação foi realizada porque ―as disposições estruturais da Constituição foram projetados em parte para proteger a propriedade privada e a liberdade, da incursão do governo. O surgimento do Estado moderno administrativo (foi) baseado em uma percepção que a ação agressiva do governo, repudiando o common law, tornou-se necessária. (Contudo, hoje em dia) Uma das tarefas mais importantes da teoria constitucional moderna é implementar os propósitos originais das disposições estruturais em um momento quando concepções tradicionais de governo limitado foram repudiadas.‖ (Tradução livre) ―The structural provisions of the Constitution were designed partly to protect private property and liberty from government incursion. The rise of the modern administrative state (was) based largely on a perception that aggressive governmental action, repudiating the common law, (had) become necessary. One of the most important tasks of modern constitutional theory is to implement the original purposes of the structural provisions in a time when traditional conceptions of limited government have been repudiated.‖ SUNSTEIN. Op. Cit, nota 28. p. 902. Atenção! As palavras acima escritas entre parêntesis foram modificadas por razão de adequação discursiva. Apesar de ser fundamentado na defesa dos cidadãos frente às intervenções arbitrárias do Estado na vida privada, o ativismo judicial da Suprema Corte estadunidense provocou, em tempos lochnerianos, consequências com polêmicas repercussões na sociedade norte-americana: proibiu a união dos trabalhadores em sindicatos, impedido-os de se articular para reivindicar novos direitos; proibiu a estipulação de um salário mínimo, impedindo os trabalhadores de terem uma melhor condição econômica para o sustento de suas famílias; e dentre outras ações, permitiu a exploração de cargas horárias excessivas de trabalho dos empregados em geral, inclusive de mulheres e crianças; por isso, a Suprema Corte adotou argumentos intransigentes em defesa da liberdade de contratação, e não há dúvidas de que seus resultados foram desastrosos.

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caso West Coast Hotel Co v. Parrish33, em 1937, pôs-se fim a essa era. Os juízes passaram a adotar uma postura deferente34 em relação ao legislador ordinário. A Suprema Corte reviu seu entendimento sobre o precedente Adkins e ratificou a constitucionalidade da lei de estabelecimento do salário mínimo feminino no estado de Washington. O Chief Justice Hughes argumentou que a Constituição permitia uma restrição na liberdade de contratação entre empregador e empregado desde que, pela defesa do interesse público, fossem protegidas a saúde, a segurança e o bem-estar dos grupos

vulneráveis, tal como entendeu ter ocorrido na prolação da sentença do caso Muller v. Oregon35, em 1908. A postura de auto-contenção dos juízes constitucionais estadunidenses em relação ao legislador ordinário, entretanto, perdurou somente até a década de cinquenta quando, sob um posicionamento ativista mais liberal adotado pela Corte, foi posta em causa a doutrina do ―separate but equal‖36 que, por aproximadamente seis décadas, forneceu suporte jurídico para a manutenção da segregação racial no sul dos Estados Unidos após a decisão do caso Plessy v. Fergusson37, em 1896. 33

Para uma interpretação mais detalhada sobre o caso, vide DUCAT, Craig R. Constitutional Interpretation. v. 1. 10. ed. Boston: Wadsworth, 2012. p. 461-3. 34 É interessante perceber os bastidores da modificação do entendimento dos juízes da Corte a partir de 1937: ―Chamado a designar oito membros da Corte Suprema, entre 1937 e 1943, o presidente Roosevelt escolherá naturalmente os homens que ele estima, por sua vez hostis ao governo dos juízes e favoráveis aos princípios essenciais da filosofia do New Deal. Ele preferirá os homens de ação que têm participado do seu combate‖. (Tradução livre) ―Appelé à désigner huit membres de la Cours Suprême, entre 1937 et 1943, le président Roosevelt choisira naturellement des hommes qu‘il estime à la fois hostiles au gouvernement des juges et favorables aux príncipes essentiels de la philosophie du New Deal. Il préférera des hommes d‘action qui ont participé à son combat.‖ PINTO, Roger. États-Unis. La fin du gouvernement des juges. Revue du Droit Publique et de la Science Politiqueen France et a l’Étranger. v. 66. 1950. p. 439. Os Estados Unidos ainda passavam pelas consequências da conhecida crise econômica de 1929, e com isso o presidente Roosevelt enxergou a necessidade de se adotar medidas de proteção aos atos do Congresso para a recuperação do país. Insta salientar que, a partir da decisão do caso West Coast, essa postura de deferência adotada pelos os juízes em relação ao legislador ordinário representa a consagração da presunção de constitucionalidade da lei – antes da apreciação judicial de sua constitucionalidade –, que foi inaugurada na decisão do caso United States v. Carolene Products Co, em 1938. ZOLLER, Elizabeth. Splendeus et Misères du Constitutionnalisme. Les enseignements de l‘expérience américaine. Revue du Droit Public et de la Science Politique em France et a l’Étranger. v. 110. jan-fév. 1994. p. 167. 35 Argumentou-se que as estruturas físicas biologicamente inferiores e a sua aptidão à maternidade punham a mulher em condição de óbvia desvantagem na luta pela sobrevivência em relação ao homem, e para não se pôr em risco a saúde e segurança de sua prole e, consequentemente, o futuro da vida humana, necessitar-se-ia imporlhe uma menor carga horária de trabalho, pelo que foi decidido que as mulheres não trabalhariam mais de dez horas nas lavanderias. Diferentemente do ocorrido em seus precedentes jurisprudenciais do início da era Lochner, neste caso, a Corte Suprema dos Estados Unidos adotou uma postura de deferência em relação ao legislador, especificamente em relação à legislação social do estado de Oregon. Para maiores detalhes sobre o caso, sobre o momento político que ele se passou e suas repercussões positivas e críticas, inclusive ante os movimentos de luta pela igualdade entre os sexos, vide FRIESEN, Jennifer; COLLINS, Ronald K.D. Looking Back on Muller v. Oregon. American Bar Association Journal. v. 69. 1983. p. 472-7. Pode-se conferir aindaROEDIGER, David R; FONER, Philip S. Our Own Time: a History of American Labor and the Working Day. Westport: Greenwood Press, 1989. p. 174. 36 Para aprofundar sobre conteúdo da doutrina do ―separate but equal‖ vide GROVES, Harry E. Separate but Equal. The Doctrine of Plessy v. Ferguson. Phylon. v. 12. n. 1. 1951. p. 66-72. 37 Pode-se ver detalhadamente o caso sob uma perspectiva histórico-legal em DAVIS, Thomas J. Plessy v. Ferguson. Santa Barbara: Greenwood Press, 2012.

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Mudando radicalmente seu posicionamento desde a prolação do precedente Plessy, a Suprema Corte, em 1954, sentenciou Brown v. Board of Education of Topeka38, o mais emblemático caso decidido sob a presidência do justice Warren. Constatou-se que as instalações utilizadas por pessoas de pele negra tinham qualidade inferior àquelas existentes nas escolas frequentadas pelos brancos, e, aliada a essa questão, os juízes acolheram uma pesquisa39 psicológica que concluiu que a segregação fazia as crianças negras se sentirem inferiorizadas em relação às crianças brancas. Concluiu-se que esse sentimento de inferioridade provocava danos psíquicos potencialmente prejudiciais ao aprendizado e ao desenvolvimento pessoal dos menores, o que, segundo a pesquisa, colocava-os em situação de desvantagem perante os brancos. Sob a presidência de Warren, a Corte decidiu que a segregação racial nas escolas públicas violava a cláusula da equal protection, da XIVª Emenda, declarando a inconstitucionalidade40 da lei do estado do Kansas. A jurisprudência do caso Brown é extremamente atraente e tentadora para se defender uma postura mais pró-ativa dos juízes e, em razão de ter consolidado conquistas até então inovadoras para aquele tempo, sobretudo em se tratando de igualdade racial, essa decisão da Warren Court ganha uma maior empatia da opinião pública dos tempos atuais. Todavia, aos olhos do jurista criterioso não está totalmente imune a críticas41 e continua sendo uma sentença resultante de uma postura judicial ativista.

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Para conhecer mais profundamente o caso vide ANDERSON, Wayne. Brown v. Board of Education: The Case Against School Segregation. New York: The Rosen Publishing Group, 2004. 39 Para se ter acesso ao conteúdo da pesquisa e suas conclusões vide KERSTING, Karen. Brown Contributor Clark Reflects Back. Monitor on Psychology. Cover: 50 Years Post-Brow. v. 35. n. 8. september. 2004. p. 58-60. Ver também BENJAMIN JR, Ludy T. A Brief History of Modern Psychology. New Jersey: Blackwell Publishing, 2006. p.193-5. 40 O grande problema jurídico-constitucional que daqui brota é que, segundo asseveram Laurence Tribe e Michael Dorf, a Constituição Federal dos Estados Unidos ―(...) não contém nenhuma Equal protection Clause aplicável ao governo federal; a 14ª Emenda só se aplica aos Estados.‖ TRIBE, Laurence H.; DORF, Michael. Hermenêutica Constitucional. Trad. Amarílis de Souza Birchal. Belo Horizonte: Del Rey, 2007. p. 156. 41 Segundo John Hart Ely, ―(...) a Warren Court foi agressiva em impor os seus ideais de liberdade e igualdade.‖ (Tradução livre) ―the Warren Court was aggressive in enforcing its ideals of liberty and equality.‖ ELY, John Hart. The Wages of a Crying Wolf: A Comment on Roe v. Wade. Yale Law Journal. v. 82. n. 5. 1973. p. 943. Dentre as mais severas críticas, destaca-se a acusação de Philip Kurland, no sentido de que em muitas de suas decisões os juízes da Warren Court adotaram de uma postura dissimulada: ―Os Ministros pode reescrever a história em apoio das suas conclusões. Essa revisão não muda os fatos; é apenas uma atitude dissimulada que proporciona críticas da Corte - mesmo estas críticas amigáveis - com um clube grande, com o que ritmá-lo. Nem faz história intelectual dar respostas, por isso só faz evidente que a ‗igualdade‘ como ‗liberdade‘ é um conceito multifacetado. E as decisões da Suprema Corte suportam esta conclusão, embora as próprias decisões estejam sujeitas a análises conflitantes.‖ (Tradução livre) ―The Justices may rewrite history in support of their conclusions. Such revision does not change the facts; it is only a disingenuous gesture that provides the Court‘s critics – even its friendly critics –with a large club with which to beat it. Nor does intellectual history provide answers, for it only makes apparent that ‗equality‘ like ‗liberty‘is a multifaceted concept. And the decisions of the Supreme Court support this conclusion, although the decisions themselves are subject to conflicting

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Tanto o resultado quando os argumentos42 utilizados pela Burger Court para a prolação da sentença do caso Roe v. Wade43, em 1973, motivaram acalorados debates sobre a legalização do aborto nas democracias ocidentais, dividindo opiniões ainda nos dias de hoje. Invocando o direito à privacidade da cláusula do due of process, da XIVª Emenda, os juízes, no tocante a continuidade ou interrupção da gravidez, entenderam que: o Estado não poderia decidir pela mulher; a limitação do direito a privacidade das mulheres, neste âmbito, somente poderia ser fundamentada se a saúde delas, enquanto interesse do Estado, estivesse em risco; a saúde da mulher, segundo conhecimentos médicos comprovados, não seria prejudicada se a interrupção gestação ocorresse até três meses após a concepção; a vida potencial do feto somente constrangeria o interesse do Estado pela ―viabilidade‖; todos esses argumentos estavam protegidos pela Constituição.44 Não somente nesses dois últimos pontos, mas principalmente neles, a decisão não deixou de receber críticas.45 A predominante postura de autocontenção adotada pela Suprema Corte dos Estados Unidos desde 1986 não foi suficiente para que, em alguns momentos desse período, os juízes da Rehnquist Court deixassem de adotar uma postura ativista. O ápice desse ativismo é ilustrado pela decisão do caso Bush v. Gore, em 2000, quando a Corte argumentou46 que analyses.‖ KURLAND, Philip B. Foreword. Equal in Origin and Equal in Title to the Legislative and Executive Branches of the Government. Harvard Law Review. v. 78. n. 1. 1964. p. 144. 42 Como constata John Hart Ely, ―o que é assustador sobre Roe é que este super protegido direito não é o que se pode concluir da linguagem da Constituição (...).‖ (Tradução livre) ―What is frightening about Roe is that this super-protected right is not inferable from the language of the Constitution (...).‖ Ibidem. 935. 43 Para se ter maiores detalhes sobre o caso, sob diferentes perspectivas e com comentários de 11 diferentes constitucionalistas norte-americanos, conferir BALKIN, Jack M. (Ed.). What Roe v. Wade Should Have Said: The Nation‘s Top Legal Experts Rewrite America‘s Most Controversial Decision. New York: New YorkUniversity Press, 2005. 44 Sobre esses argumentos, levantados pelos juízes da Corte Suprema dos Estados Unidos, vide TRIBE, Laurence H. The Supreme Court, 1972 Term. Foreword: Toward a Model of Roles in the Due Process of Life and Law. Harvard Law Review. v. 87. n. 1. november. 1973. p. 3-4. 45 Em comentários sobre a decisão de Roe v. Wade, John Hart Ely constata que a ―(...) viabilidade que é constitucionalmente perigosa: a defesa da Corte parece errar uma definição por um silogismo.‖ (Tradução livre) ―(…) viability that is constitutionally critical: the Court‘s defense seems to mistake a definition for a syllogism.‖ ELY. Op. Cit, nota 41. p. 924. Laurence Tribe desconfiou que ―(...) atrás de sua própria cortina de fumaça verbal, o substantivo julgamento em que se assenta é longe de ser encontrado.‖ (Tradução livre) ―(…) behind its own verbal smokescreen, the substantive judgment on which it rests is nowhere to be found.‖ Ibidem. p. 7. 46

Cf. Os fundamentos materiais do argumento de violação da equal protection clause, expostos na decisão percuriam: ―(...) o cidadão cuja votação não foi lida por uma máquina porque ele deixou de votar em um candidato de forma legível por uma máquina pode ainda ter seu voto contado em uma recontagem manual; por outro lado, o cidadão que marca dois candidatos de um modo discernível pela máquina não vai ter a mesma oportunidade de ter seu voto contado, mesmo se um exame manual da cédula revelasse o indício necessário de intenção. Além disso, o cidadão que marca dois candidatos, dos quais apenas um é perceptível pela máquina, terá seu voto contado mesmo que devesse ter sido lido como um voto inválido.‖ (Tradução livre) ―(…) the citizen whose ballot was not read by a machine because he failed to vote for a candidate in a way readable by a machine may still have his vote counted in a manual recount; on the other hand, the citizen who marks two candidates in a

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haveria violação da cláusula da equal protection, da XIVª Emenda, e, consequentemente, da Constituição, se a recontagem dos votos para as eleições presidenciais do país fosse refeita manualmente na Flórida, tal como previsto por lei estadual, e o Tribunal Supremo daquele estado havia decidido. Conforme os precedentes do caso Bush, quando aplicada na regra ―one-person-onevote‖, a cláusula da equal protection tinha o objetivo de combater a parcialidade de tratamento e a discriminação no peso dos votos dos indivíduos identificados em razão da cor da pele, da opção política, ou do lugar de sua residência, por exemplo. 47 Contudo, a Corte Suprema foi acusada de ter cometido três graves violações ao direito norte-americano: de ter distorcido o conteúdo da cláusula da equal protection; de ter ignorado os precedentes; e de ter violado a Constituição. Pode-se dizer que as eleições presidenciais daquele ano foram definidas não pelos votos do povo, mas pelos votos da maioria dos juízes. Não raras foram as críticas de que a Corte havia tomado, no mínimo, uma decisão equivocada ou, de forma mais incisiva, uma decisão prolatada para favorecer uma conspiração48 política49, o que manchou a sua credibilidade e imagem perante a opinião pública.

way discernable by the machine will not have the same opportunity to have his vote count, even if a manual examination of the ballot would reveal the requisite indicia of intent. Furthermore, the citizen who marks two candidates, only one of which is discernable by the machine, will have his vote counted even though it should have been read as an invalid ballot.‖ UNITED STATES OF AMERICA. Supreme Court. George w. Bush, et al., petitioners v. Albert Gore, Jr., et al. On writ of certiorari to the Florida supreme court. Disponível em: http://www.law.cornell.edu/supct /html/00-949.ZPC.html. Acesso em: jan. 13. 47 Nas palavras do Justice John Paul Stevens: ―A Cláusula de Proteção Igualitária requer que os estados governem imparcialmente, e tem uma força particular na proteção do direito de voto. Deve haver uma justificação neutra para regras ou práticas que discriminam a favor ou contra indivíduos com base em características identificáveis – incluindo grupos de indivíduos que são definidos por raça, por filiação política, ou por sua residência em um determinado local. A Regra uma pessoa um voto, por exemplo, proíbe os Estados de dar maior peso aos votos em áreas rurais do que votos em cidades densamente povoadas.‖ (Tradução livre) ―The Equal Protection Clause requires states to govern impartially, and has particular force in protecting the right to vote. There must be a neutral justification for rules or practices that discriminate for or against individuals on the basis of identifiable characteristics – including groups of individuals that are defined by race, by political affiliation, or by their residence in a particular location. The One-Person-One-Vote Rule, for example, prohibits States from giving greater weight to votes in rural areas than to votes in densely populated cities.‖ STEVENS, John Paul. Bush v. Gore and the Equal Protection Clause. The American Law Institute 89th Meeting. 2012. Disponível em: http://www.supremecourt.gov/publicinfo/speeches/ali%20speech.pdf. Acesso em: jan. 13. 48 Laurence Tribe visualiza um grave erro no voto majoritário dos juízes da Suprema Corte, na decisão, sugerindo que qualquer crítico não beneficiado com a sua prolação não deixaria de vê-la como uma sentença com resultados políticos pré-orientados. Em suas palavras: ―(...) a questão se eu vejo os erros da Corte cometidos em Bush v Gore como sui generis, sou constrangido a replicar, não, não sui generis do ponto de vista de um observador e crítico; mas sim, talvez sui generis a partir da perspectiva de um participante e virtual coconspirador.‖ (Tradução livre) ―(...) the question whether I see the errors the Court committed in Bush v. Gore as sui generis, I am constrained to reply, no, not sui generis from the perspective of an observer and critic; but yes, perhaps sui generis from the perspective of a participant and virtual co-conspirator.‖ TRIBE, Laurence H.

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Tomando-se em cômputo a quantidade de decisões ativistas prolatadas pelos juízes da Suprema Corte dos Estados Unidos, há quem50 considere a Rehnquist Court mais pró-ativa que a Warren Court, mas o fato é que, em um longo período, por ter rompido com o padrão de autorestrição dos juízes, como se viu a partir da prolação do caso Brown, a primeira era decisória ficou marcada por abrir as portas para o ativismo judicial liberal. Desde a nomeação de John Roberts como Chief Justice, em 2005, a Suprema Corte norte-americana tem adotado uma postura mais autocontida em relação à Rehnquist Court. Até o presente momento, tanto aquele ativismo judicial agressivo aos direitos sociais da era Lochner quanto aquele ativismo extrator de direito das zonas de fumaça da Constituição não têm, ao menos tão claramente, se manifestado.

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CAUSAS DO AVANÇO DO PODER JUDICIAL

4.1

CAUSAS DO PASSADO

Logo no início do século XIX, o judicial review abriu portas para que fossem conquistados inúmeros direitos pelas minorias no século seguinte. O controle difuso de constitucionalidade, em sua forma original, representou o início da modificação do comportamento do juiz, dantes mero repetidor da literalidade legal e hoje com papel mais ativo e decisivo na criação do direito. Em 1803, apesar de Marshall ter inovado, sua decisão não é comumente referenciada como ativista, malgrado se possa concebê-la como causa mediata de avanço do poder judicial. Verificou-se que a decisão do caso Dred Scott marcou o início do ativismo judicial nos Estados Unidos. A manutenção da escravidão nos estados do sul do país levanta sérias dúvidas sobre se os juízes da Suprema Corte não cederam às pressões dos proprietários escravistas e se, por isso, orientaram politicamente o resultado do julgamento, independentemente de se ter fundamentado a decisão na defesa da cláusula do due process of law, da Vª Emenda.

Comment EROG .V HSUB and Its Disguises: Freeing Bush v. Gore from Its Hall of Mirrors. Harvard Law Review. v. 115. n. 1. november. 2001.p. 302. 49 Conforme identificam Segal e Spaeth, ―(...) em Bush v. Gore pode-se dizer com certeza que nunca em sua história uma maioria da Corte se comportou de uma maneira tão descarada política partidária.‖―(…) in Bush v. Gore one may accurately say that never in its history has a majority of the Court behaved in such a blatant politically partisan fashion.‖ SEGAL; SPAETH. Op. cit, nota 06. p. 171. 50 ZIETLOW, Rebecca E. The Judicial Restraint of the Warren Court (and Why it Matters). OhioState Law Journal. v. 69. n. 2. 2008. p. 59-60.

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Após o proferimento da sentença do caso Lochner,os juízes da Corte foram acusados 51 de defender os interesses econômicos da elite em detrimento das massas populares de trabalhadores, não obstante tivessem fundamentado juridicamente a decisão na liberdade de contratação, estabelecida pela cláusula do due processo of law, da XIVª Emenda. Seja em decorrência dos casos Dred Scott ou Lochner52, ao que se indica, a causa originária do avanço do ativismo judicial está relacionada à pressão de natureza política, malgrado não figure isoladamente como possível motivo de crescimento do fenômeno. Depois da era Lochner, como se viu, mais precisamente durante o governo Roosevelt, a Suprema Corte permaneceu autocontida em relação à promulgação da legislação social do New Deal.53 No entanto, aliada aos efeitos da necessidade de efetivação dessa legislação, a crescente afirmação dos direitos individuais do período pósguerra e o crescimento econômico dos Estados Unidos deram causa a uma nova postura ativista de característica liberal, adotada pela Warren Court54, que, em 1954, esteve presente na decisão do caso Brown. Na Alemanha e na Itália, o positivismo55 demonstrou que a segurança jurídica, antes assegurada por uma constituição escrita, também poderia ser usada como maquiagem à

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Conforme as constatações de Benedita Urbano, ―este hallmark case de 1905 ficaria conhecido pois, na sua sequência, e pela primeira vez, abertamente se criticaram e mesmo acusaram alguns Justices da Supreme Court de terem seguido uma agenda política e, por isso mesmo, de terem atuado de forma parcial.‖ URBANO. Op. Cit, nota 20. p. 92. 52 Na era Lochner, subsistiram predominantemente as pressões de natureza político-econômicas. 53 Como assevera Roger Pinto, ―a campanha dirigida por Franklin Roosevelt e os apoiadores do New Deal exibiu, pela primeira vez, em seus aspectos, o papel político do juiz, à opinião pública. Os ataques mais violentos foram conduzidos contra este precedido de governo hipócrita, que mascara o exercício de um poder político verdadeiro, irresponsável e oculto, sobre a cobertura de uma serena e objetiva aplicação da lei. A imoralidade desta camuflagem, contrária ao espírito da democracia americana, é denunciada para o ambiente.‖ (Tradução livre) ―La campagne dirigée par Franklin Roosevelt et les partisans du New Deal exposa, por la première fois, dans lous ses aspects, le rôle politique du juge, à l‘opinion publique. Les attaques les plus violentes furent menées contre ce procédé de gouvernement hypocrite, qui masque l‘exercice d‘un pouvoir politique véritable, irresponsable et occulte, sous le couvert d‘une sereine et objective application de la loi. L‘immoralité de ce camouflage, contraire à l‘esprit de la démocratie américaine, est dénoncé à l‘envi. ‖ PINTO. Op. Cit, nota 34. p. 838. 54

Com comentários contemporâneos ao proferimento das decisões da Warren Court, Philip Kurland enfatizou que: ―O engrandecimento do poder judicial tem sido de uma mais ondulante característica. Tal como nossa recente prosperidade econômica, contudo, a mais recente expansão da autoridade judicial tem tido uma vida mais longa que o usual e mostra não imediatamente provável recessão. Pelo menos não há indicações de autorestrição.‖ (Tradução livre) ―The aggrandizement of judicial power has been of a more undulating character. Like our recent economic prosperity, however, the most recent expansion of judicial authority has had a longer life than usual and shows no immediate likelihood of recession. At least there are no indications of selfrestraint.‖ KURLAND. Op. Cit, nota 41. p. 144. 55 Nas palavras de Karl Loewenstein: ―Se originalmente o documento formalizado serviu para limitar o exercício do poder político por causa da liberdade dos destinatários do poder, hoje a existência de uma constituição escrita já não implica ipso facto a garantia de dividido e, assim, poder limitado. Mais e mais o dispositivo da

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concentração de poder e à implantação de regimes autoritários, como foi ilustrado pelos regimes nazi-fascistas. A crise do modelo positivista56 alcançava seu ápice, gerando, no ocidente, uma ―revolta contra o formalismo‖57 jurídico, ensejando, por isso, uma atuação mais criativa do juízes. A reconstrução das áreas destruídas pela guerra, embora tenha demandado muitos gastos no passado, trouxe consigo o progresso econômico e o desenvolvimento social – identificado na estruturação do welfare state58–para a Europa, fazendo o papel59 dos juízes ser

constituição escrita é conscientemente usado para disfarçar autoritários e totalitários sistemas políticos. Em muitos casos a constituição escrita não é senão uma camuflagem convenientemente enganosa para a instalação do poder concentrado de um único detentor de poder. A Constituição se tornou despojada de seu telos intrínseco de institucionalizar o exercício compartilhado do poder político. Há pouco conforto no fato de que a democracia constitucional, na derrota, obteve uma vitória pirríquia: nenhum sistema político de hoje pode permitir desprezar abertamente a ideologia democrática que todo o poder emana do povo e que o seu exercício só é legítimo se em conformidade com sua vontade. Intelectualmente, pelo menos, o mundo civilizado tem se graduado a partir de autoritarismo.‖ (Tradução livre) ―If originally the formalized document served to limit the exercise of political power for the sake of the liberty of the power addressees, today the existence of a written constitution no longer ipso facto implies the guaranty of shared and, thereby, limited power. More and more the device of the written constitution is consciously used to disguise authoritarian and totalitarian political systems. In many cases the written constitution is nothing but a conveniently deceptive camouflage for the installation of the concentrated power of a single power holder. The constitution has become denuded of its intrinsic telos of institutionalizing the shared exercise of political power. There is little comfort in the fact that constitutional democracy, in defeat, scored a Pyrrhic victory: no political system of today can afford to flout openly the democratic ideology that all power emanates from the people and that its exercise is legitimate only if in conformity with their will. Intellectually, at least, the civilized world has graduated from authoritarianism.‖ LOEWENSTEIN, Karl. Political Power and the Governmental Process. 2. ed. Chicago: Chicago University Press, 1965. p. 144-5. 56 Como identificou Thomas Kuhn: ―(...) se um dia o positivismo jurídico mostrou-se como arsenal imprescindível na luta contra o autoritarismo, o absolutismo e a intransigência clerical, o desdobramento das relações econômicas e sociais na tradição ocidental fez com que a tradição positivista se esgotasse na própria seiva.‖ KUHN, Thomas S. A Estrutura das Revoluções Científicas. São Paulo: Perspectiva, 1996. p. 67. 57 A expressão pertence a Morton White. WHITE, Morton G. apud CAPPELLETTI. Op. Cit, nota 12. p. 31. 58 Atualmente em crise, como se sabe. 59 Nas palavras de Cappelletti, ―(...) quando a legislação social cria por si mesma direitos subjetivos, cuida-se mais de direitos sociais do que meramente individuais. Tipicamente, os direitos sociais pedem para sua execução a intervenção ativa do estado, frequentemente prolongada no tempo. Diversamente dos direitos tradicionais, para cuja proteção requer-se apenas que o estado não permita sua violação, os direitos sociais – como o direito à assistência médica e social, à habitação, ao trabalho – não podem ser simplesmente ‗atribuídos‘ ao indivíduo. Exigem eles, ao contrário, permanente ação do estado, com vistas a financiar subsídios, remover barreiras sociais e econômicas, para, enfim, promover a realização dos programas sociais, fundamentos desses direitos e das expectativas por eles legitimadas. É evidente que, nessas novas éreas do fenômeno jurídico, importantíssimas implicações impõem-se aos juízes. Em face de legislação social que se limita, frequentemente, a definir a finalidade e os princípios gerais, e diante de direitos sociais essencialmente dirigidos a gradual transformação do presente e formação do futuro, os juízes de determinado país bem poderiam assumir – e muitas vezes, de fato, têm assumido – a posição de negar o caráter preceptivo, ou ‗self-executing‘, de tais leis ou direitos [p. 42] programáticos. Sobre isso aprendemos alguma coisa na Itália, especialmente entre 1948 e 1956, ou seja, nos anos entre a entrada em vigor da Constituição e a criação da Corte Constitucional. Mais cedo ou mais tarde, no entanto, como confirmou a

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modificado não somente na Itália, mas especialmente nesse país, onde o ativismo judicial está presente até os dias de hoje. Em outros países, designadamente no Brasil, os juízes se deparam com a eficácia limitada das normas constitucionais que versam sobre os direitos sociais. Por outro lado, o legislador, legitimado democraticamente a complementar o conteúdo dessas normas para propiciar-lhes eficácia, não atua como deveria. O juiz, suprindo as deficiências da carente atuação legislativa, passa a ser aplicador da Constituição na concretização de seus programas, dando causa a um ativismo direcionado à efetivação de políticas públicas que, sob uma visão estritamente dogmática, devem ser implementadas pelo poder Executivo. O auge da criação jurisprudencial de efetivação dos direitos individuais, nos Estados Unidos, foi alcançado no período de atuação da Burger Court quando os juízes decidiram Roe v. Wade, em 1973. Mais recentemente, a decisão do caso Bush sugeriu uma nova modificação de causa do avanço do ativismo judicial: a Corte Suprema foi novamente acusada de ter préorientado o resultado da decisão em favor dos interesses políticos de campanha do então presidente eleito, George W. Bush.

4.2

CAUSAS DO PRESENTE A falta de concretização60 de políticas públicas, pelo poder Executivo, e o desinteresse

do poder Legislativo, no papel de positivar normas impopulares61 e polêmicas, cominam, tanto em matéria de direitos sociais quando de direitos individuais, na falta de efetividade da Constituição – podem provocar, inclusive, omissões62 inconstitucionais –, gerando descrédito experiência italiana e de outros países, os juízes (...) (serão tentados) a dar a própria contribuição à tentativa do estado de tornar efetivos tais programas (...).‖ CAPPELLETTI. Op. Cit, nota 12. p. 41-2. 60 Canotilho ensina que: ―Dentro do arsenal metódico-metodológico várias categorias dogmáticas servem hoje para abrir aos juízes os interstícios da política dos direitos e dos valores. Uma dessas categorias é, desde logo, a concretização dos direitos. A concretização exprime uma tendência incontornável para o alargamento do espaço de discricionaridade das magistraturas no dizer o direito em nome da necessidade de assegurar a justa realização da constituição.‖ CANOTILHO, J. J. Gomes. Um Olhar Jurídico-Constitucional sobre a Judiciarização da Política e a Politicização da Justiça. Tópicos Para uma Intervenção Sobre o Poder Judiciário. Disponível em: http://www.stj.pt/ficheiros/coloquios/jspp_gomes canotilho.pdf. Acesso em: jan. 13. 61 Como identifica Dworkin: ―Os legisladores que foram eleitos, e precisam ser reeleitos, por uma maioria política tendem mais a tomar o partido de tal maioria em qualquer discussão séria sobre os direitos de uma minoria contrária; se se opuserem com excessiva firmeza aos desejos da maioria, esta irá substituí-los por aqueles que não se opõem. Por esse motivo, os legisladores parecem menos inclinados a tomar decisões bem fundadas sobre os direitos das minorias do que as autoridades que são menos vulneráveis nesse sentido. Os juízes têm seus próprios interesses ideológicos e pessoais no resultado dos casos, e também podem ser tirânicos. A priori, porém, não há motivo para considerá-los teóricos políticos menos competentes do que os legisladores estaduais ou os procuradores gerais.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 13. p. 448-9. 62 Segundo Canotilho, ―o âmbito da discricionariedade legislativa vê-se permanentemente confrontado ou com a hipótese de omissões inconstitucionais ou com situações que embora ainda constitucionais podem evoluir, em

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do povo nos poderes que elegeram para representá-lo. Somados a esses fatores, alguns outros motivos podem impulsionar uma postura mais ativista dos juízes: a. A inacessibilidade dos poderes políticos frente às necessidades do povo;63 b. Os desvios de finalidade entre o objetivo inicial de proposição da lei e o conteúdo de sua aprovação;64 c. A má gestão, decorrente da precária implementação de políticas públicas pelo poder Executivo;65 c. Os escândalos de corrupção envolvendo os poderes eminentemente políticos, a exemplo do caso do Mensalão, julgado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro;66 d. A visível falta de credibilidade da população esclarecida nos meios de comunicação de áudiovisibilidade majoritária, que, em razão de não terem independência econômica, comumente noticiam o que interessa a quem os paga, influenciando as pessoas não

virtude da ‗escandalosa‘ inércia legislativa, para verdadeiras inconstitucionalidades por omissão (omissão violadora de direitos fundamentais).‖ CANOTILHO, J. J. Gomes. Constituição Dirigente e Vinculação do Legislador. Contributo para a Compreensão das Normas Constitucionais Programáticas. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2001. p. 379-80. 63 Nas palavras de Canotilho: ―Partindo da verificação de que os poderes políticos competentes para a dinamização de políticas públicas de solidariedade e de socialidade permanecem indiferentes ou actuam em manifesta desconformidade com os princípios de justiça, constitucionalmente plasmados, a magistratura judicial assume a sua accountability e a sua responsiveness para com os pobres ousando proferir sentenças de inequívoca conformação político-social.‖ CANOTILHO, J. J. Gomes. O Direito dos Pobres no Activismo Judiciário. In: ______ et al. Direitos Fundamentais Sociais. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 35. 64 Como constata Carlos Maximiliano: ―Em uma das forjas da lei, no Parlamento, composto, em regra, de duas Câmaras, fundem-se opiniões múltiplas, o conjunto resulta de frações de idéias, amalgamadas; cada representante do povo aceita por um motivo pessoal a inclusão de palavra ou frase, visando a um objetivo particular a que o mesmo se presta; há o acordo aparente, resultado de profundas contradições. Bastas vezes a redação final resulta imprecisa, ambígua, revelando-se o produto da inelutável necessidade de transigir com exigências pequeninas a fim de conseguir a passagem da idéia principal. Se descerem a exumar o pensamento do legislador, perder-se-ão em um barato de dúvidas maiores ainda e mais inextrincáveis do que as resultantes do contexto. Os motivos que induziram alguém a propor a lei, podem não ser os mesmos que levaram outros a aceitá-la.‖ MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 8. ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1965. p. 35. 65 Canotilho constata que, ―a terceira categoria politicamente suspeita de converter os juízes em legisladores políticos é a que diz respeito à concretização do princípio da competência orçamental em sede de realização de direitos. Este último tópico conduz-nos a outro [p. 6] dos aspectos da liminar que nos foi endereçada: a das relações entre o poder político e o poder judiciário no campo das políticas públicas de direitos. Sejam-nos, porém, permitidas algumas considerações sobre a pretensa deriva do activismo judiciário. É indiscutível que as relações entre a magistratura e o sistema político não são os mesmos nos sistemas em que existe controlo da constitucionalidade da lei (sobretudo fiscalização abstracta concentrada) e nos sistemas em que continua a valer a insindicabilidade judicial das leis.‖ CANOTILHO. Op. Cit, nota 60. 66 Videa mais extensa ação penal já julgada pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro. Ac. de 17.12.12 na AP. nº 470/MG, rel. Min. Joaquim Barbosa, que decidiu o caso do Mensalão, um dos maiores escândalos de corrupção já descobertos no Brasil.

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esclarecidas a votar nos candidatos favoráveis à obtenção dos seus próprios interesses e não naqueles que visam suprir as necessidades do povo; e. O descrédito da classe média face ao duvidoso esclarecimento político da população carente, já que esta, principalmente pela falta de acesso a educação de qualidade e em razão das suas más condições econômicas, não raras vezes, cede às pressões dos maus candidatos, vendendo seu voto em troca de favores – tais como, dentre outros, o recebimento de cestas básicas para o seu sustento alimentar –, ocasionando uma participação política viciada, que comina na eleição de representantes corruptos – fato bastante comum nos países em desenvolvimento como o Brasil;67 f. A linguagem68 indeterminada, vaga, de conteúdo polissêmico das cláusulas abertas69 do texto da Constituição e dos precedentes70; g. A ponderação de interesses, de direitos e bens constitucionais aparentemente conflitantes, pelos juízes;71

5

CONSEQUÊNCIAS DE UMA ATUAÇÃO JUDICIAL ATIVISTA As acusações de terem agido com parcialidade, na cortina de fumaça da Constituição,

ocultando suas reais intenções, orientando resultados e favorecendo grupos políticos e 67

Como se observa na vasta jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral brasileiro: Ac. de 14.11.13, noAgRREspe nº 399403104, rel. Min. Dias Toffoli; Ac. de 1.12.2011, no AgR-REspe nº 815659, rel. Min. Nancy Andrighi; Ac. de 1º.6.2010, no AgR-REspe nº 35.932, rel. Min. Aldir Passarinho Junior; Ac. de 18.2.2010, no AgR-REspe nº 35.692, rel. Min. Felix Fischer. 68 TRIBE; DORF. Op. Cit, nota 40. p. 13. 69 Como ensina H. L. A. Hart: ―Seja qual for o processo escolhido, precedente ou legislação, para a comunicação de padrões de comportamento, estes, não obstante a facilidade com que actuam sobre a grande massa de casos correntes, revelar-se-ão com indeterminados em certo ponto em que a sua aplicação esteja em questão; possuirão aquilo que foi designado como textura aberta. Até aqui, apresentámos tal, no caso da legislação, como um aspecto geral da linguagem humana; a incerteza na linha de fronteira é o preço que deve ser pago pelo uso de termos classificatórios gerais em qualquer forma de comunicação que respeite a questões de facto. (...) É, contudo, importante apreciar por que razão, posta de parte esta dependência da linguagem tal como efectivamente ocorre, com as suas características de textura aberta, não devemos acarinhar, mesmo como um ideal, a concepção de uma regra tão detalhada, que a questão sobre se se aplicaria ou não a um caso particular estivesse sempre resolvida antecipadamente e nunca envolvesse, no ponto de aplicação efectiva, uma escolha nova entre alternativas abertas. (...) os legisladores humanos não podem ter tal conhecimento de todas as possíveis combinações de circunstâncias que o futuro pode trazer. Esta incapacidade de antecipar acarreta consigo uma relativa indeterminação de finalidade.‖ HART, H. L. A. O Conceito de Direito. Trad. A. Ribeiro Mendes. 6. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2011. p. 52. 70

Nos países que adotam a doutrina do stare decisis. Nas palavras de Canotilho: ―Outra categoria é a da ponderação ou balanceamento de bens e direitos. Não é por acaso que alguns autores vêem no chamado Estado ponderador (assim W. Leisner, Der Abwägungsstaat, Berlin, 1997) um dos cavalos de Tróia da erosão da juridicidade estatal. As relações funcionais e competenciais entre o poder legislativo e o poder judiciário deslocam-se estreitando a margem de conformação política de quem ao fazer política deve fazer o balanceamento justo em caso de conflito de bens, e alargando o espaço discricionário de quem, não fazendo política, é agora o ponderador, em termos definitivos, da solução de conflitos de direitos e bens.‖ CANOTILHO. Op. Cit, nota 60. 71

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econômicos foram, nos casos relatados, as principais críticas levantadas contra o ativismo adotado pela Suprema Corte dos Estados Unidos. A formação de uma imagem manchada e desprestigiada perante a opinião pública apareceu como resultado imediato dessa atuação judicial, entretanto este é apenas um dos fatores que podem emergir como consequência do ativismo judicial. Por isso, ainda que seja ingrata a tarefa de apontar todas as consequências de uma atuação judicial ativista, em razão de muitas destas ainda sequer terem se manifestado, expõe-se, aqui, pelo menos algumas delas: a. O desrespeito às escolhas políticas da maioria e à liberdade de conformação do legislador, podendo gerar um problema de falta legitimidade democrática de atuação dos juízes;72 b. A dificuldade de se limitar73 os poderes dos juízes quando interpretam as zonas de fumaça da Constituição, sob o argumento de estarem efetivando direitos ou ponderando interesses; c. O risco potencial de se destruir74 o sistema político democrático, e de ser instaurado um governo tirânico75 de juízes;76 72

Cf. RIBEIRO, Adolpho J. As Estruturas Funcionais Públicas e a Atuação do Poder Judiciário: uma Análise sobre as Origens dos Três Poderes e os Limites da Justiça Constitucional Contemporânea. (Dissertação apresentada como requisito à obtenção do grau de mestre em Ciências Jurídico-Políticas, pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra). 2012. p. 69 e ss. 73

Nas palavras de Laurence Tribe e Michael Dorf: ―A autoridade da Constituição, sua exigência por obediência, e a força que nós lhe damos para atuar sobre nossa lei e nossas vidas, poderia perder legitimidade se ela fosse realmente apenas um espelho para refletir as idéias e ideais dos leitores. Voltando às intenções originais dos moldadores – mesmo se fosse possível capturá-las em laboratório, engarrafá-las e observá-las em microscópio – não conseguiríamos determinar uma interpretação satisfatória da Constituição, e ainda, vendo pelo outro lado do espectro, por ser insatisfatória devemos rejeitar a idéia de uma Constituição indefinidamente maleável e vazia. Temos que encontrar princípios de interpretação que possam ancorar a Constituição em uma realidade externa mais segura e determinada. E essa tarefa não é simples. Um problema básico é que o texto deixa em si mesmo um espaço grande demais para o exercício da imaginação. Considerar simplesmente o preâmbulo, que fala de conceitos como ‗Justiça‘ e ‗Bênçãos da Liberdade‘. Não é difícil, com esses termos conceituais tão fluidos e tão plásticos, formar um argumento lingüisticamente plausível para suportar algumas conclusões incorretas. Talvez se pudesse impor uma norma de que é impróprio fazer referência ao preâmbulo do argumento constitucional usando a teoria de ser apenas uma introdução, um prefácio, e não parte do texto da Constituição promulgada. E mesmo que alguém inventasse uma norma dessas, que aparentemente não tenha nenhum suporte na própria Constituição, seria difícil entender que o restante do documento – sendo estruturado com uma linguagem viva que trata de ‗liberdade‘, ‗devido processo legal‘, ‗proteção contra buscas e apreensões arbitrárias‘, e termos semelhantes –, apesar de não ser indefinidamente maleável e vazio, fosse capaz de suportar significados com fins opostos na essência dos espectros legais, políticos ou ideológicos.‖ TRIBE; DORF. Op. Cit, nota 40. p. 12-3. 74

Marie-France Toinet destaca que: ―Os juízes, em fins políticos que estão, sabem até não onde ir muito longe sob pena de destruir um sistema político, de fato bastante frágil, cujo eles são partes envolvidas e pela sobrevida tem obrigação de velar.‖ (Tradução livre) ―Les juges, en fins politiques qu‘ils sont, savent jusqu‘où ne pas aller trop loin sous peine de détruire un système politique, de fat assez fragile, dont ils sont parties prenantes et à la survie duquel ils ont l‘obligation de veiller.‖ TOINET, Marie-France. Puissance et faiblesses de la Cour suprême. Pouvoirs. Revue Française d‘Études Constitutionnelles et Politiques. n. 59. novembre. 1991. p. 17.

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d. O risco de as decisões dos juízes ativistas, aliadas à má gestão e aos escândalos de corrupção, majoritariamente deflagrados entre os membros dos poderes eminentemente políticos, pelo menos segundo o que mais corriqueiramente se apura, impulsionarem futuras crises econômicas em países emergentes – em especial no Brasil, que, em matéria de direitos sociais, tem um poder Judiciário intensamente ativista; e. O risco dessas sentenças judiciais ativistas, aliada a outros fatores, contribuírem com o esgotamento dos recursos77 orçamentários destinados à efetivação políticas públicas, pelo poder Executivo, que é legitimado democraticamente pela Constituição a efetivá-las, principalmente nos países afetados pela atual crise econômica mundial; 78

75

Dworkin reconhece que o ativismo judicial pode levar à tirania. DWORKIN. Op. Cit, nota 19. p. 225.

76

Karl Loewenstein ressalta que ―(...) a operação de controles intra-orgânica dentro da função judicial merece breve menção. Não menos homem do que Montesquieu fala do poder judicial como 'a potência de julgar como terrível entre os homens‘. A grande independência do judiciário, pilar do governo constitucional, carrega consigo o perigo de seu abuso. Independente e sujeitos somente à lei, os juízes estão além do controle de qualquer outro detentor do poder, seja o governo, o parlamento, ou o eleitorado, e deve ser impermeável mesmo em relação à influência da opinião pública. Contudo os juízes são humanos e, como os outros mortais, expostos às tentações do poder ilimitado. Por isso a imperativa necessidade pelas técnicas de auto-contenção construídas [p. 183] dentro da função judicial para proteger o individual ante o tribunal de justiça contra o capricho do ramo.‖ (Tradução livre) ―Finally, the operation of intra-organ controls within the judicial function deserves brief mention. No less a man than Montesquieu speaks of the judicial power as ‗la puissance de juger si terrible parmi les homes.‘The very independence of the judiciary, mainstay of constitutional government, carries with it the danger of its abuse. Independent and subject only to the law, judges are beyond the control of any other power holders, be it the government, the parliament, or the electorate, and should be impervious even to the influence of public opinion. Yet judges are human and, as other mortals, exposed to the temptations of unlimited power. Hence the imperative need for techniques of self-restraint built [p. 183] into the judicial function to protect the individual before the bar of justice against the caprice of the bench.‖ LOEWENSTEIN. Op. Cit, nota 55. p. 1823. Segundo H. L. A. Hart: ―É, claro, possível que, atrás do escudo das regras que tornam as decisões judiciais definitivas e dotadas de autoridade, os juízes pudessem entre si combinar rejeitar as regras existentes e deixar mesmo de considerar as mais claras Leis do Parlamento como impondo quaisquer limites às suas decisões. Se a maioria das suas determinações se revestisse deste carácter e fosse aceite, isto equivaleria a uma transformação do sistema (...). Mas a possibilidade constante de tais transformações não mostra que o sistema seja agora o que seria se a transformação tivesse lugar. Nenhumas regras podem ser garantidas contra a sua violação ou repúdio; porque nunca é psicológica ou fisicamente impossível aos seres humanos violá-las ou repudiá-las; e se bastantes pessoas fizerem tal durante tempo bastante, então as regras deixarão de existir.‖ HART, H. L. A. Op. Cit, nota 69. p. 159-60. 77

Cass Sunstein alerta que os ―juízes não são (deixe-nos repetir o ponto) treinados como filósofos, e juízes que fazem teoreticamente ambiciosos argumentos podem bem cometer erros bastante dispendiosos, especialmente em casos constitucionais, onde seus argumentos são (pelo menos teoreticamente) finais.‖ (Tradução livre) ―Judges are not (let us repeat the point) trained as philosophers, and judges who make theoretically ambitious arguments may well make mistakes that are quite costly, especially in constitutional cases, where their arguments are (at least theoretically!) final.‖ SUNSTEIN. Op. Cit, nota 26. p. 256. 78 Há que se ter muita cautela, pois ―se deixarmos as decisões de princípio exigidas pela Constituição a cargo dos juízes, e não do povo, (...) correremos o risco de que os juízes venham a fazer as escolhas erradas.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 19. p. 232.

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f. A dificuldade de se responsabilizar79 uma possível atuação judicial ativista pressionada a beneficiar os lobbies e grupos de interesse, em razão de quase sempre essas decisões estarem maquiadas por argumentos jurídicos; 6

POSSÍVEIS SOLUÇÕES? PERSPECTIVAS? Em relação às escolhas políticas da maioria, está-se diante de um problema dogmático

de formação da estrutura da democracia. Contudo, atualmente, o juiz não mais é aquele autômato, mas tem decisivo papel de criador do direito, de real aplicador da norma constitucional. Por isso, se almejar ser integrada à realidade material, a interpretação constitucional não será feita somente pelos intérpretes formalmente legitimados 80 a realizá-la, mas também será realizada pela participação anterior de uma pluralidade 81 de intérpretes numa sociedade livre82 e aberta83. Diante de um processo judicial infraconstitucional, o juiz se depara com partes defendendo interesses contrapostos e, por isso, à luz da ordem jurídica constituída, terá de decidir, na maioria das suas sentenças, contrariamente a uma delas e em favor da outra, sentenciando direitos e obrigações de ambas em busca da tão almejada justiça. Nos processos de inconstitucionalidade abstrata, julgados, portanto, no âmbito das Cortes Supremas 84 e nos Tribunais Constitucionais, a busca pela justiça, embora seja feita pela jurisdição de mais alto grau na esfera estatal, não terá início e finalidade diferentes em relação aos casos decididos no âmbito da jurisdição infraconstitucional. O mesmo acontece no processo de aprendizagem entre o juiz e os intérpretes constitucionais não legitimados pela Constituição, de modo que as possíveis divergências de interesses e de necessidades, inclusive ideológicas e morais, 79

Como geralmente dá a última palavra em termos de decisão, a ―(...) Suprema Corte (é) o braço governamental que menos deve explicações.‖ TRIBE; DORF. Op. Cit, nota 40. p. 93. 80 Aqui, em especial, reporta-se ao legislador e ao juiz constitucional. 81 Häberle destaca que ―(...) cidadãos e grupos, órgãos estatais, o sistema público e a opinião pública (...) representam forças produtivas de interpretação (interpretatorische Produktivkräfte); eles são intérpretes constitucionais em sentido lato, atuando nitidamente, pelo menos, como pré-intérpretes (Vorinterpreten). Subsiste sempre a responsabilidade da jurisdição constitucional, que fornece, em geral, a última palavra sobre a interpretação (com a ressalva da força normatizadora do voto minoritário). Se se quiser, tem-se aqui uma democratização da interpretação constitucional. Isso significa que a teoria da interpretação deve ser garantida sob a influência da teoria democrática. Portanto, é impensável uma interpretação da Constituição sem o cidadão ativo e sem as potências públicas mencionadas.‖ HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: Contribuição para a Interpretação Pluralista e ―Procedimental‖ da Constituição. Trad. Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997. p. 14. 82 Claro que a palavra ―livre‖ é abstrata, indeterminada, mas aqui a exposição feita é de outra natureza. 83 Conforme explica Häberle, ―a sociedade é livre e aberta na medida que se amplia o círculo dos intérpretes da Constituição em sentido lato.‖ HÄBERLE. Op. Cit, nota 81. p. 40. 84 Especificamente nos tribunais supremos com função de justiça constitucional.

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surgem, em qualquer âmbito interpretativo, como corriqueiros pontos de diálogo entre a pluralidade dos envolvidos. O consenso pressupõe uma anterior discordância ou um debate de ideias conflitantes entre indivíduos, de maneira que, por terem sido vencidas pela decisão majoritária e em respeito ao compromisso firmado para a realização do bem comum, as minorias abrem mão seus interesses. Nesse cenário, o bom juiz terá o cuidado de enxergar as necessidades dos grupos minoritários, para que nem todas as vontades da maioria, sobretudo aquelas decorrentes de suas interpretações85 supostamente constitucionais – mas que por trás da cortina de fumaça da Constituição escondem interesses e finalismos, muitas vezes, com características autoritárias –, influenciem, decisivamente, a tomada da sua decisão final em detrimento da essência democrática e a favor dos defeitos 86 democratistas que, sob uma ótica puramente formal, levam tudo de vencido. Aliás, é para proteger a pluralidade social e os direitos das minorias que a constitucionalização87 dos direitos fundamentais insurge contra a força dos poderes excessivos, e porventura intolerantes88, da maioria. 85

Rosenfeld destaca que: ―Na medida em que a interpretação da lei não é puramente mecânica, a manutenção da democracia dentro do quadro do Estado de Direito depende em parte do exercício da função do juiz, que aparece como uma função de clara tendência antidemocrática. No mais, se o juiz ordinário não permanece suficientemente fiel à democracia porque ao curso de sua interpretação da lei ele arrisca produzir uma lacuna entre esta última e a vontade do legislador, o juiz constitucional supõe adotar, ou menos ‗implantar‘, posições anti-majoritárias – como, por exemplo, quando deve proteger os direitos fundamentais do indivíduo contra as usurpações resultantes da vontade da maioria – dentro do exercício de sua função legítima.‖ (Tradução livre) ―Dans la mesure ou l‘interprétation de la loi n‘est pas purement mécanique, le maintien de la démocratie dans le cadre de l‘État de droit dépend en partie de l‘exercice de la fonction du juge, qui paraît comme une fonction à nette tendance antidémocratique. De plus, si le juge ordinaire ne reste pas suffisamment fidèle à la démocratie parce qu‘au cours de son interprétation de la loi il risque de produire un écart entre cette dernière et la vonlo nté du législateur, le juge constitutionnel est censé adopter, ou du moins ‗ implanter‘, des positions antimajoritaires – comme, par exemple, lorsqu‘il doit protéger les droits fondamentaux de l‘individu contre des empiètements issus de la volonté de la majorité – dans l‘exercice de sa fonction légitime.‖ ROSENFELD, Michel. Possibilite de la démocratie et déconstruction du Droit. In: ROUSSEAU, Dominique. La Démocratie Continue. Paris: L.G.D.J. – Bruylant, 1995. p. 104. 86 Sobre os defeitos da democracia e a atuação da justiça constitucional, vide PIRES, Francisco Lucas. Legitimidade da Justiça Constitucional e Princípio da Maioria. In: Legitimidade e Legitimação da Justiça Constitucional: Colóquio do 10° Aniversário do Tribunal Constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 1995. p. 170. 87 Nas palavras de Dworkin: ―A Constituição (...) destina-se a proteger os cidadãos (ou grupos de cidadãos) contra certas decisões que a maioria pode querer tomar, mesmo quando essa maioria age visando o que considera ser o interesse geral ou comum.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 19. p. 208-9. 88 Na visão de Kaufmann: ―Por isso, já não é aí admissível exercer uma tolerância meramente ‗prática‘, mantendo a intolerância ‗dogmática‘. Aqui chega a ‗intolerância dogmática‘ literalmente ‗ao fim‘, aqui ela é simplesmente ‗intolerância prática‘. Quem seja apenas indiferente, sem opinião, tenta lidar com a complexidade refugiando-se num ‗relativismo Absoluto‘ e, em consequência, todas as opiniões têm igual valor e são, portanto, indiferentes. Ele não discute as opiniões dos outros, pois elas não lhe interessam e não o fazem reagir. Ele isola-se. O intolerante, pelo contrário, é intranquilizado pelas opiniões dos outros. Ele não pode assimilar a complexidade, porque não tem abertura

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Em relação à contração de poder, cabe fazer uma indagação: É possível que haja riscos de instauração de uma tirania89 do poder Judiciário se não se buscar criar limites à sua atuação e à sua interpretação das zonas de fumaça da Constituição, em seu excessivo protagonismo? Evidentemente que é possível, mas, atualmente, as pessoas vivem numa sociedade global multicultural e complexa, em que o engessamento normativolegal não mais resolve seus problemas. E isso não constitui novidade dos dias de hoje: em um passado não muito distante, o formalismo demonstrou ser ineficaz na contenção do poder arbitrário.90 Diante da análise empírica da vida política, verifica-se que os poderes eminentemente políticos demonstram ser ineficientes na efetivação de uma boa gestão de políticas públicas, especialmente em benefício das minorias e das camadas sociais menos abastadas, e, ao mesmo tempo, demonstram-se ser, com empírica frequência universal, não dificilmente corruptíveis. Por isso, hoje há uma tendência de se conferir mais tolerância à ampliação dos poderes dos juízes constitucionais. Então, pergunta-se: Por que não ir à luta? Por que não arriscar superar paradigmas, já que nesse contexto atual aquela segurança jurídica de outrora já não faz assim tanto sentido? Certamente, o processo de inclusão dos intérpretes plurais envolve riscos de politização da justiça. Nesse cenário, o bom juiz se utilizará da tolerância 91 para incluir as para a pluralidade social! Ele não possui a tolerância perante a ambiguidade de forma a suportar a multiplicidade de questões e valores, as obscuridades das situações de decisão, os riscos da vida no mundo actual. A sua opinião formada não é apenas uma antecipação provisória, não é um pré-juízo, mas um juízo previamente definido que ele não está disposto a pôr à prova, a complementar ou a rever tendo em conta as posições dos outros. Ele recusa novas informações, na medida em que não as possa integrar no seu cicatrizado sistema. Ele basicamente, não aprende para além disso. Ele erige, no meio do grande mundo aberto, o seu pequeno mundo fechado. Mas ele vê e sente que está excluído da diversidade e que não dispõe de mecanismos para lidar com o mundo complexo. Isso inquieta-o e torna-o inseguro. E por força desta insegurança e inquietude ele reage agressivamente: faz tudo para que os outros abandonem a sua posição, pois não a suporta e muito menos a pode assimilar. ‖ KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3.ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2009. p.503. 89 Segundo Dworkin, ―o direito como integridade é sensível às tradições e à cultura política de uma nação, e, portanto, também a uma concepção de equidade que convém a uma Constituição. A alternativa ao passivismo não é um ativismo tosco, atrelado apenas ao senso de justiça de um juiz, mas um julgamento muito mais apurado e discriminatório, caso por caso, que dá lugar a muitas virtudes políticas mas, ao contrário tanto do ativismo quando do passivismo, não cede espaço algum à tirania.‖ DWORKIN. Op. Cit, nota 13.p. 452. 90 Kaufmann adverte que: ―Na sociedade pluralista de risco, o homem é cada vez mais confrontado com questões complexas e sem uma solução linear. Não é possível libertar o mundo de todos os riscos e também não se pode saber seguramente quais os riscos que devem ser assumidos em vista do futuro, e quais não devem, em circunstância alguma, ser corridos. O fundamentalismo e a mentalidade de tudo ou nada não são aí bom auxílio. Essas soluções fáceis e lineares não são de adoptar, pelo menos em democracia (em ditadura é mais fácil que as pessoas as tenham, pois aí nada têm a dizer). Nós temos de passar pelo caminho difícil e arriscado da tolerância e do compromisso.‖ KAUFMANN. Op. Cit, nota 88.p. 505-6. 91 Como ensina Arthur Kaufmann, a tolerância ―pressupõe uma ampla liberdade de espírito e a capacidade de formar uma opinião segura. Ela exige a capacidade de comunicar e sobretudo a virtude de saber ouvir, de ser capaz de aceitar o outro e de o ter em consideração. E ela exige a força para poder começar sempre de novo e

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pessoas num ambiente de aprendizado e não obrigatoriamente influenciará ou será influenciado, mas, através do diálogo, poderá minimizar o problema dogmático da separação estrita dos poderes, incluindo as pessoas a proferir decisões mais democráticas em relação ao que originalmente se faria. A comunicação entre as partes, da mesma maneira, pressupõe a oitiva e a fiscalização recíprocas para que, sobre o juiz, o mau político não obtenha sucesso em exercer suas pressões interesseiras. É importante ressaltar que o problema também envolve uma maior reflexão sobre outros fatores, tais como: a viabilidade econômica de efetivação dos direitos sociais; a implantação de um sistema de responsabilidade eficaz para expurgar os maus juízes dos bancos do poder Judiciário; além da necessidade de se estudar os modos de nomeação dos juízes, principalmente daqueles que ocupam as Cortes Supremas e os Tribunais Constitucionais, onde o ativismo judicial se mostra ser mais incisivo. Contudo, não por questões de menor importância doutrinária, mas por necessidade metodológica de delimitação temática, esses aspectos serão discutidos em outra oportunidade. 7

CONCLUSÃO

O ativismo judicial pode trazer mais consequências além daquelas observadas, mas, em razão de nem todas terem sido ainda demonstradas, só o futuro dirá se trarão mais malefícios ou benefícios para os indivíduos. Os projetos de constituição, por sua vez, já não mais integram apenas as estruturas políticas dos Estados de outrora, todavia, hoje, agregam as pessoas como componentes de uma nova realidade pública, envolvendo todos os partícipes, legitimados ou não, no seu processo de interpretação. Com fundamento na fraternidade e na tridimensionalidade do direito, é hora de se começar a repensar o modus operandi dos poderes eminentemente políticos. É necessário refletir mais profundamente sobre dogmática de atuação da Justiça Constitucional, sob pena de se pôr em xeque a decência de quem trabalha seriamente pela melhoria da qualidade de vida das pessoas e, ao mesmo tempo, de se minar as esperanças daqueles que acreditam no aperfeiçoamento da esfera pública através da participação popular democrática.

deixar-se instruir por novas situações e novas informações. (...). O rápido aumento da complexidade real exige esta tolerância (...). As idéias que aqui se invocam sobre o princípio da tolerância deverão ter tornado claro que a tolerância não é um perigo para a verdade e que, pelo contrário, promove a verdade.‖ KAUFMANN. Op. Cit, nota 88. p. 5045.

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ACIDENTES DE TRABALHO COM MATERIAL BIOLÓGICO NO AMBIENTE HOSPITALAR Esther Maria Barros de Albuquerque 1 Isabella Barros Almeida 2 Laryssa Mayara Alves de Almeida3 Vinícius Leão de Castro4 Sumário: 1 Introdução. 2 Referencial teórico. 2.1 Agentes ambientais. 2.2 A Enfermagem no meio hospitalar. 3 Metodologia. 3.1 Tipo de pesquisa. 3.2 Análise dos dados. 4 Resultado. 4.1 Prevalência e fatores predisponentes dos acidentes de trabalhos com material biológico na saúde. 4.2 Complicações. 4.3 Medidas preventivas. 5 Conclusão. Referências

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INTRODUÇÃO A Previdência Social na resolução lei no 6.367, de 19 de outubro de 1976no artigo 2o

define acidente de trabalho (AT) como sendo ―aquele que ocorrer pelo exercício do trabalho a serviço da empresa, provocando lesão corporal ou perturbação funcional que cause a morte, ou perda, ou redução, permanente ou temporária, da capacidade para o trabalho‖. A preocupação com a questão da saúde dos trabalhadores hospitalares no Brasil iniciou-se na década de 70, quando pesquisadores da Universidade de São Paulo enfocaram a saúde ocupacional em trabalhadores hospitalares (BENATTI; NISHIDE, 2000). Para Ruiz, Barboza e Soler (2004), as estatísticas mostram que os acidentes de trabalho no setor industrial estão relativamente diminuendo, entretanto na saúde especificamente âmbito hospitalar os acidentes estão aumentando, fazendo necessário intervenções mais rigorosas afim de minimizar tais ocorrências. Os profissionais de saúde, em especial os de enfermagem estão mais vulneráveis a acidentes com material biológico numa maior frequência, gerando consequências a curto é médio prazo, sendo necessário e de fundamental importância seu registro nas equipes

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Possui graduação em Ciências Biológicas pela UEPB. Especialista em Desenvolvimento e Meio Ambiente pela Furne/Unipê. Mestre em Engenharia Agrícola pela UFCG. Atualmente é doutoranda em Engenharia de Processos pela UFCG. Tem experiência na área de Botânica, com ênfase em Fisiologia Vegetal. E-mail: esther_barros@hotmail.com 2 Enfermeira pela Faculdade de Ciências Médicas de Campina Grande - FCM. Especialista em Enfermagem do Trabalho pela Faculdade Integrada de Patos - FIP e Mestranda em Ciências Odontológicas pela UFPB. E-mail: bela.barrosalmeida@gmail.com 3 Advogada. Especialista em Direito. Pesquisadora nas áreas de Processo constitucional; Direitos e Garantias fundamentais e Remédios Constitucionais. E-mail: laryssalmeida@gmail.com 4 Pesquisador nas áreas de Teoria do Estado; Poder Constituinte; Teorias da Democracia e Decisão Judicial. Email: viniciusleaocastro@gmail.com

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existentes nas unidades hospitalares como a Medicina do Trabalho e a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar (CAIXETA; BRANCO, 2005). Foi diagnosticado em pesquisa realizada num hospital da rede de prevenção de acidentes do trabalho (REPAT), que as estratégias preventivas de AT com material biológico, não devem estar focadas apenas na prevenção de acidentes, ver-se a necessidade da melhoria da qualidade de vida no trabalho, fazendo necessário reformulações destas estratégias focando principalmente na educação em saúde e na promoção á saúde ocupacional. (MARZIALE; SILVA; HAAS;ROBAZZI,2007) O profissional de saúde de forma geral tem ligação direta ou indireta com o paciente/cliente, dedicando toda sua atenção ao mesmo, esquecendo muitas vezes do perigo com os riscos aos quais estão exposto ao prestar este cuidado. Estudo realizados por Oliveira e Murofuse (2001, p.114) revelam que ―os trabalhadores de saúde conhecem riscos à sua saúde de uma forma genérica‖. Onde o conhecimento do trabalhador é oriundo de sua prática cotidiana e não da existência de um serviço de saúde ocupacional na instituição. Desta forma objetiva-se com este trabalho caracterizar os acidentes de trabalho com material biológico no ambiente hospitalar.

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REFERENCIAL TEÓRICO

2.1 Agentes Ambientais Para que se possa estabelecer uma relação entre o ambiente laboral e os possíveis danos à saúde dos trabalhadores, torna-se necessário e de relevância o estudo ambiente de trabalho, levantando assim condições ambientais de trabalho. Os agentes ambientais são classificados em cinco grupos: físicos, químicos biológicos, ergonômicos e acidentais. Entretanto esse estudo vamos nos deter apenas ao biológico (MORAIS, 2008). A Norma Regulamentadora (NR) 32 tem por objetivo por proteger a segurança e saúde dos trabalhadores dos serviços de saúde. No seu item 32.2 afirma que: Considera-se risco biológico a probabilidade da exposição ocupacional a agentes biológicos; considerando agentes biológicos os microrganismos, geneticamente modificados ou não; as culturas de células; os parasitas; as toxinas e os príons (BRASIL, 2011, P.1).

Na Resolução no 1, de 1988, do conselho Nacional de Saúde, capítulo X, art.64, classifica os microrganismos em quatro grupos: 54


Microorganismos que representam escasso risco para GRUPO DE RISCO I

o indivíduo e para a comunidade;

Microorganismos que representam risco moderado para o indivíduo e limitado para a comunidade;

GRUPO DE RISCO II

Microrganismos que representam risco elevado para o indivíduo e limitado para a comunidade;

GRUPO DE RISCO III

Microorganismos que representam risco elevado para GRUPO DE RISCO IV

o indivíduo e para a comunidade

Morais (2008) ainda diz que pode-se considerar para o grupo I microrganismos que não são considerados como agentes causais de doenças ao homem e não constituem risco para o meio ambiente, entretanto o grupo III pode causar enfermidades graves ao homem como por exemplo o HIV devido a algum acidente por perfuro cortante. A equipe de saúde em especial a enfermagem esta sujeita a exposição de acidente biológicos principalmente com materiais biológicos seja por fluidos, ou material contaminados.

2.2 A enfermagem no meio hospitalar

Para Mozachi (2009), o hospital tem por finalidade promover cuidados a doentes e oferecer abrigo a viajantes peregrinos. Sabe-se que de maneira geral, é reconhecido como um ambiente insalubre, penoso e perigoso para os que ali trabalham. Em uma pesquisa desenvolvida numa unidade de terapia intensiva (UTI), observou-se que os profissionais de enfermagem possuem as maiores cargas horarias de trabalho tornando os mesmos insatisfeitos com a profissão (PERREIRA; PUENO, 1997). Com tudo a equipe de enfermagem é quem lida diretamente com o usuário e o presta maior tempo de atendimento. Uma profissão exposta a ambientes de trabalho intensamente insalubres, fazendo com que qualidade de vida do profissional seja precária. 55


Desta forma os trabalhadores de enfermagem, ao prestarem seus atendimentos ao paciente, estão expostos a inúmeros riscos ocupacionais causados por diferentes fatores em especial e em destaque os acidentes biológicos, que podem ocasionar doenças ocupacionais e acidentes de trabalho. A enfermagem esta sujeita a acidente com material perfuro cortantes sendo necessário elaborar programas de educação, treinar os profissionais tendo uma supervisão contínua e sistemática nas modificações de rotinas de trabalho, tornando um hábito a prática das precauções de segurança (MARIZIALI; RODRIGUES, 2002). Os acidentes biológicos são um risco aos profissionais por possibilita a transmissão de patógenos como o vírus da hepatite B (HBV), vírus da hepatite C (HCV) e vírus da imunodeficiência humana (HIV). Podendo interferir fisicamente e emocionalmente a vida do trabalhador além de ter repercussões

negativas em suas relações familiares e sociais

(MARZIALE; RODRIGUES, 2002; MARZIALE, 2003)

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METODOLOGIA

3.1 Tipo de Pesquisa

O presente estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, do tipo bibliográfica, baseou-se nos procedimentos metodológicos clássicos descritos por Gil (1999) e Minayo (2006). Foi realizado um levantamento em bancos de dados ―on line”, a partir da base de dados LILACS (Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde) e SciELO (“Scientific Electronic Library Online”). Utilizou-se ainda, os seguintes descritores: ―Risco‖, ―Acidente Biológico‖ e ―Hospital‖. A pesquisa foi realizada no período de Agosto de 2013 a Setembro de 2013, incluído, somente, textos publicados em periódicos nacionais, independente do método de pesquisa utilizado.

3.2 Análise dos dados

Os artigos foram lidos, posteriormente identificou-se os núcleos de sentido, sendo possível selecionar o material e extrair do mesmo temas de interesse nesta pesquisa e interpretá-los a partir do objetivo proposto.

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Foram encontrados 10 referências no LILACS e 03 no SciELO. Porém, os trabalhos selecionados e analisados no presente estudo reuniram 5 documentos, que apresentaram características iguais ás do universo da pesquisa, conforme pode ser observado na Quadro 1. Trabalhou-se com um percentual superior a 30% dos trabalhos totais, visto que este percentual em pesquisa qualitativa constitui uma amostragem representativa capaz de traduzir resultados do universo da pesquisa.

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RESULTADOS

Quadro 1. Trabalhos pesquisados segundo os autores, título e ano de publicação. AUTORES TÍTULO Acidente de trabalho, com material biológico, em profissionais de saúde de CAIXETA, R.B.; BRANCO, A.B. hospitais públicos do Distrito Federal, Brasil, 2002/2003

Acidentes com material biológico entre GUILARDE, A.O.; OLIVEIRA, A.M.; profissionais de hospital universitário TASSARA, M.; OLIVEIRA, B.; em Goiânia. ANDRADE, S.S Investigação de acidentes biológicos CÂMARA, P.F.; LIRA, C.; JUNIOR, entre profissionais da equipe multidisciplinar de um hospital B.A.S.;VILELLA, T.A.S.;

ANO

2005

2010

2011

HINRICHSEN, S.L. Atendimento e seguimento clínico PIMENTA, F.R.; FERREIRA, M.D.; especializado de profissionais de GIR, E.; HAYASHIDA, M.; enfermagem acidentados com material CANINI,S.R.S. biológico

2012

Acidente com material biológico no TIPPLE, A.F.V.; SILVA, E.A.C.; atendimento pré-hospitalar móvel: TALES, S.A.; MENDONÇA, K.M.; realidade para trabalhadores da saúde e SAUZA, A.C.S.; MELO, D.S. não saúde

2013

Fonte: Dados da Pesquisa. 2013

4.1 Prevalência e fatores predisponentes dos acidentes de trabalhos com material biológico na saúde

Foi observado nos textos analisados que a equipe de enfermagem é a categoria de profissionais na saúde mais acometida por esse tipo de acidente, tendo uma maior incidência 57


entre os técnicos (TIPPLE, 2013; PIMENTA, 2012; CÂMARA, 2011) provavelmente por lidarem diretamente e constantemente com os pacientes. Verificou-se ainda a existência de duas possibilidade de acidentes: por fluidos (mucosa) e por perfuro cortantes (percutânea), tendo como maiores índices os acidentes por perfuro cortantes seja com agulha ou outros objetos do meio hospitalar (CAIXETA,2005; GUILARDE, 2010). Os principais motivos relatados pelos profissionais para a ocorrência dos acidentes de trabalho estão relacionado as trabalho condições de trabalho por possuírem um carga horaria elevada de trabalho e descarte de materiais perfuro cortantes em locais inadequados ou superlotados além de mas condições para limpeza dos materiais. Soma-se a essas o comportamento dos funcionários que mencionam atividades frequentes com agulhas, muitas vezes sem o uso de EPI; o reencape de agulhas e em alguns casos a inexperiência do profissional(TIPPLE, 2013; PIMENTA, 2012; CAIXETA, 2005; GUILARDE, 2010; CÂMARA, 2011). Portanto, os resultados deste estudo, quanto a prevalência e fatores predisponentes dos acidentes de trabalhos com material biológico na saúde, caracterizou que a ocorrência desse tipo está relacionada ás condições de trabalho.

4.2 Complicações

A enfermagem é uma das profissões na saúde que mais podem gerar danos aos seus trabalhadores, visto que colocam seus profissionais constantemente em exposição a riscos em especial os biológicos. Resultando danos para os trabalhadores e para a instituição. Quanto ao material biológico, referem-se a exposição do trabalhador a sangue e/ou fluidos orgânicos no ambiente de trabalho, tais como, ferimentos perfurantes por agulha ou objetos cortantes contaminados, mucosa ou contato

com sangue e/ou outros fluidos e

secreções potencialmente contaminadas (GUILARDE, 2010). As agulhas constituem uma das principais fontes de transmissão ocupacional de infecções sanguíneas. Viu-se que a possibilidade de contaminação pelo vírus da AIDS (HIV), hepatite B e C são grandes sendo as maiores preocupações dos acidentados (GUILARDE, 2010; CAIXETA, 2005; TIPPLE, 2013). Pimenta (2012) em seu estudo verificou que mesmo diante da possibilidade de infecção pelo HIV, HCV e HBV, cerca de 30,0% dos profissionais acidentados não procuraram

58


atendimento no ambulatório especializado com a alegação de baixo risco do acidente e sorologia do paciente-fonte negativa

4.3 Medidas Preventivas

Foi constatado por Pimenta (2012) que, quanto maior o número de treinamentos recebidos pelos profissionais de enfermagem, menor foi o número de exposições. Os equipamentos de proteção tanto individual quanto coletivo são fundamentais para o desenvolvimento das atividades profissionais, garantindo padrões mínimos de segurança. A implantação de um programa de educação continuada possibilita aos profissionais uma visa ampliada sobre a prevenção de acidentes envolvendo material biológico potencialmente infectante (CAMARA, 2011; CAIXETA, 2005) Tipple (2013) relata em seu estudo que ainda existem profissionais que afirmam nunca ter recebido orientações sobre medidas de biossegurança tais como: uso de equipamentos de proteção (luvas, máscara e óculos protetores), descarte de perfuro cortantes em local adequado, não reencape de agulhas, uso do uniforme completo (com as mangas até o punho) e imunização para hepatite B e tétano. Estas medidas são essenciais para a redução significativa de acidentes de trabalho durante a realização de procedimentos. É necessário a implementação de uma educação continuada para que as equipes adotem rigorosamente as medidas preventivas e, consequentemente, seja reduzido o número de acidentes com material biológico no ambiente hospitalar (GUILARDE, 2010). As condutas pós-exposição ocupacionais estabelecidas pelo Ministério da Saúde consistem em procurar imediatamente pelo atendimento clínico, no ambulatório especializado para atendê-los, assim como notificar ao Serviço Especializado em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMT) do hospital, para emissão da Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT). (PIMENTA, 2012) As medidas de prevenção esta intimamente ligada a higiene e segurança do trabalho. Desta forma cabe aos profissionais de enfermagem terem conhecimentos sobre algumas legislação fundamentais como o próprio código de ética (Resolução do Conselho Federal de Enfermagem – COFEN no 311/2007) e das normas regulamentadoras, para se embasarem nas suas condutas e ações no seu ambiente de trabalho. Brasil (1999) ainda aborda a Norma regulamentadora (NR 5) sobre a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes (CIPA), onde a mesma tem por atribuição identificar os riscos do processo de trabalho, e elaborar o mapa de riscos, com a participação do maior número de 59


trabalhadores. Isto possibilita a identificação da real situação de segurança e saúde do trabalho, uma vez que leva em cona a avaliação dos próprios funcionários (OLIVEIRA; CASTRO, 2009). No presente estudo, chega-se á conclusão que os acidentes de trabalho com material biológico podem ser evitados ou minimizados com a utilização de medidas padrão de prevenção ou de biossegurança do trabalho. Lembrando sempre que a importância da educação em saúde é uma ferramenta fundamental para a contribuição desse processo. 5

CONCLUSÃO A enfermagem é uma profissão que estar sujeita a diversas formas de contaminação

decorrentes de sua atividade laboral, expondo seu profissional a potenciais riscos os quais causam acidentes de trabalho, onde sua maioria podem ser evitados. Ficou evidenciada a necessidade de educação continuada; de medidas de prevenção aos profissionais da saúde para os acidentes relacionados ao trabalho com material biológico, evitando muitas vezes complicações futuras como a detecção do vírus HIV. A partir da analise dos textos pode-se concluir que a ocorrência de acidentes de trabalho com material biológico é mais frequente na equipe de saúde em especial na enfermagem, estando relacionada principalmente á manipulação de perfuro cortantes e pelas condições de trabalho. Por fim, diante da frequência de ocorrência de acidentes de trabalho ocasionados por material perfuro cortantes, desta pesquisa tenta proporcionar

melhorias na saúde do

trabalhador, tendo a ainda a necessidades de novas pesquisa neste ramo.

REFERÊNCIAS

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<http://portal.mte.gov.br/data/files/8A7C812D311909DC0131678641482340/nr_05.pdf>.Ace sso em: 12 set, 2012. ________LEI No 6.367, DE 19 DE OUTUBRO DE 1976.Vide decreto nº 3.048, de 1999. Dispõe sobre o seguro de acidentes do trabalho a cargo do INPS e dá outras providência. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6367.htm>. Acesso em: 03 set 2013. ________Resolução conama nº 1, de 13 de junho de 1988 Publicada no DOU, de 15 de junho de 1988. Dispõe sobre o Cadastro Técnico Federal de atividades e instrumentos de defesa ambiental. Disponível em: <http://portal2.tcu.gov.br/portal/pls/portal/docs/2054776.PDF> Acesso em: 03 de ago 2013. CAIXETA, R.B.; BRANCO, A.B. Acidente de trabalho, com material biológico, em profissionais de saúde de hospitais públicos do Distrito Federal, Brasil, 2002/2003. Cad. Saúde Pública, v. 21, n. 3, p. 737-746, mai-jun, 2005. CÂMARA, P.F.; LIRA, C.; SANTOS, B.J.; VILELLA, T.A.S.; HINRICHSEN, S.L.; Investigação de acidentes biológicos entre profissionais da equipe multidisciplinar de um hospital. Rev. enferm. UERJ, v. 19, n. 4, p. 583-6, 2011. GIL, a.c. Métodos e técnicas de pesquisa social. 5a ed. São Paulo: Atlas; 1999. GUILARDE, A.O.; OLIVEIRA, A.M.; TASSARA, M.; OLIVEIRA, B.; ANDRADE, S.S. Acidentes com material biológico entre profissionais de hospital universitário em Goiânia. Rev de patologia tropical, v. 39, n. 2, p. 131-136, abr.-jun. 2010. MINAYO, M.C,S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 9a ed. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2006. MARZIALE, M.H.P.; SILVA, E.J.; HAAS, V.J.; ROBAZZI, M.L.C.C. Acidentes com material biológico em hospital da Rede de Prevenção de Acidentes do Trabalho – REPAT. Rev Brasileira de Saúde Ocupacional,v.32, n. 115, p. 109-119, 2007. MARZIALE, M. H. P.; RODRIGUES, C. M. A produção científica sobre os acidentes de trabalho com material perfurocortante entre trabalhadores de enfermagem. Revista LatinoAmericana de Enfermagem, v. 10, p. 571-577, 2002. MARZIALE, M. H. P. et al. Subnotificação de acidentes de trabalho com material perfurocortante entre trabalhadores de enfermagem brasileiros. Revista Brasileira de Enfermagem, v. 56, n. 2, p. 164-168, mar./abr. 2003. MORAIS, M.V.G. Sistematização da assistência de enfermagem em saúde do trabalhador. São Paulo: Látria, 2008. MOZACHI, NELSON. O hospital: Manual do ambiente hospitalar. 3. Ed. Curitiba: Os Autores, 2009. OLIVEIRA, Z.G.; CASTRO, P. Acidentes de trabalho com perfurocortantes em atividade de enfermagemuma revisão bibliográfica. Disponível em:<http://www.cpgls.ucg.br/ArquivosUpload/1/File/CPGLS/IV%20MOSTRA/SADE/SAU 61


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A SAÚDE SOB A PERSPECTIVA DAS TEORIAS DE JUSTIÇA: APROXIMAÇÕES ENTRE O CONCRETO E O ABSTRATO Igor Diniz da Mota Silveira 1 Sumário: 1 Introdução. 2 O Entrelaçamento entre os Direitos Socioeconômicos e as Teorias de Justiça em Jeremy Waldron. 2.1 Intuições sobre Justiça e Autoevidência do Direito à Saúde. 2.2 Os Direitos Socioeconômicos entre a Crítica e a Exaltação. 2.3 A Rejeição Moderna às Teorias Alocativas. 2.4 Mundo Ideal x Mundo Real: o surgimento dos direitos socioeconômicos a partir das Teorias de Justiça. 3 A Teoria de Justiça de Rawls. 3.1 O desenvolvimento da Teoria Rawlsiana. 3.2 Viabilidade da Leitura dos Direitos Socioeconômicos sob a Perspectiva da Posição Original. 3.3 Saúde como Justiça: a vaguez da Teoria de Justiça de Rawls. 4 Teoria de Justiça de Daniels: a extensão da teoria rawlsiana aplicada à saúde. 4.1 A Importância Moral da Saúde para Preservação das Oportunidades. 4.2 A incorporação da saúde na lista de bens primários de Rawls. 4.3 Determinantes Sociais, Desigualdades e Escassez de Recursos. 5. Justiça e Saúde na visão de Ronald Dworkin. 5.1 A Concepção Liberal Existencialista em Ronald Dworkin: o ponto intermediário entre bem-estar social e laissez-faire. 5.2 A Moeda da Igualdade em Dworkin: igualdade de recursos. 5.3 O Leilão Hipotético. 5.4 Justiça e Saúde: princípio do seguro prudente. 5.5 Críticas ao Seguro Hipotético. 6. Conclusão. Referências.

1

INTRODUÇÃO Estabelecer conexões entre as teorias de justiça e a questão da saúde é fundamental

para que, a partir de uma abordagem ideal e abstrata, possam-se solucionar as demandas e necessidades práticas na área da saúde, visto que as teorias de direitos não consideram de tal forma o impacto desses direitos na estrutura da sociedade e perspectiva de vida dos indivíduos. A primeira parte do artigo dedica-se, primordialmente, à análise das considerações de Jeremy Waldron sobre a necessidade de entrelaçamento entre os direitos socioeconômicos e as teorias de justiça. Posteriormente, o artigo divide-se na abordagem da questão da assistência médica em teorias de justiça de três importantes filósofos: Rawls, Daniels e Dworkin. Assim, discute-se a vagueza da teoria rawlsiana no tocante à saúde, a extensão de sua teoria por Daniels, ao incluir à lista de bens primários a saúde, e a hipótese do seguro hipotético e aplicação no mundo prático do princípio do seguro prudente por Ronald Dworkin.

2

O ENTRELAÇAMENTO ENTRE OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS E AS

TEORIAS DE JUSTIÇA EM JEREMY WALDRON

1

Graduando de Direito pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB.

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Em artigo intitulado ―Socioeconomic Rights and Theories of Justice‖, Waldron busca encontrar a relação entre os direitos socioeconômicos e as teorias da justiça, escolhendo como paradigma de análise a teoria rawlsiana, que possibilita inúmeros pontos de acesso para argumentos sobre esses direitos, em virtude de sua complexidade. Dessa forma, procura um encaixe necessário entre, por exemplo, o direito à saúde, defendido sempre num esquema ―line-item way‖, ou seja, de forma isolada, peremptória, autoevidente, e as teorias de justiça, que operam num nível de abstração muito mais elevado, estabelecendo princípios gerais que estruturam a base da sociedade, permitindo um estudo das demandas e princípios com os quais esse direito compete. (WALDRON, 2010). Portanto, é através de uma teoria de justiça que se deve promover a alocação dos recursos escassos, demandados pelos direitos socioeconômicos, e daqueles recursos que já estão designados para outras finalidades, através de uma justificação que não é possível apenas com uma teoria de direitos. Esta, por sua vez, é importante para explicar o porquê cada direito é importante, mas insuficiente para tratar sobre conflitos entre direitos ou entre demandas que aspiram serem tratadas como direito num contexto distributivo. (WALDRON, 2010). As teorias de justiça pecam por deixar a elaboração de julgamentos mais aprofundados sobre políticas públicas para um estágio sempre subsequente, presos à estrutura principal da teoria e justificados, muitas vezes, de forma superficial. Como se verá adiante, no tópico referente à Rawls, isso se torna evidente nos comentários do filósofo acerca das provisões estatais de bem-estar e o que ele chama de ―social minimum‖. Assim, fundamental é o entrelaçamento entre os dois campos, a fim de se obter respostas para os conflitos que vivemos em sociedade, elaboradas dentro num espectro amplo de abordagem.

2.1

INTUIÇÕES SOBRE JUSTIÇA E AUTOEVIDÊNCIA DO DIREITO À SAÚDE

As teorias de justiça são motivadas, dirigidas e até mesmo delimitadas por nossas intuições sobre justiça, ou, de forma mais precisa e técnica, juízos pré-teóricos sobre assuntos que a justiça lida. Waldron (2010, p.6) preconiza: ―(…) we may find a given theoretical position plausible or implausible (intuitively plausible or implausible as we say) because of its consonance or dissonance with one or more of these considered judgments.‖ Tais juízos podem ter o status de ―preceitos de justiça‖, ou seja, verdades do senso comum enraizadas na cultura de dada sociedade, e até mesmo entre os filósofos. Assim, os direitos socioeconômicos também encontram apoio em vários desses juízos e preceitos. 64


(WALDRON, 2010, p.7). Muitos acreditam, por exemplo, que uma criança em situação clínica emergencial, numa sociedade economicamente próspera, cujos pais não dispõem de recursos financeiros para tratá-la, deve receber algum tipo de auxílio estatal, que detém a responsabilidade de providenciar essa ajuda. No mesmo diapasão, muitos rejeitariam quaisquer teorias de justiça que negassem essa providência estatal nesses casos de necessidade. Esses juízos ponderados sobre provisões para custear necessidades devem ser reconciliadas com outros juízos ponderados que parecem apontar para uma direção oposta. Como exemplo, muitos mantêm a visão, pré-teórica, que cada pessoa é dona dos frutos do seu labor, e não iriam encarar com bons olhos uma teoria da justiça que sustentasse que esses frutos fossem postos à disposição, contra sua vontade, para satisfazer as necessidades de outras pessoas. (WALDRON, 2010, p.7). Assim, nossas convicções sobre a saúde são vistas por nós como óbvias, de forma que não exige uma elaboração filosófica mais requintada. Pelo fato de os direitos socioeconômicos clamarem por necessidades diretas e urgentes, não é difícil realizar uma retórica capaz de apoiá-los. (WALDRON, 2010, p.3). No campo doutrinário e jurisprudencial, a defesa do direito à saúde é permeada por um senso comum teórico, pois se tornou mecânico classificá-lo como corolário do direito à vida, sendo, portando, prioritário e o bem máximo a ser protegido. Esse absolutismo a priori pode ser visto na postura de Sarlet (2007): Não há duvida alguma de que a saúde é um direito humano fundamental, aliás fundamentalíssimo, tão fundamental que mesmo em países nos quais não está previsto expressamente na Constituição, chegou a haver um reconhecimento da saúde como um direito fundamental não escrito (implícito), tal como ocorreu na Alemanha e em outros lugares. Na verdade, parece elementar que uma ordem jurídica constitucional que protege o direito à vida e assegura o direito à integridade física e corporal, evidentemente, também protege a saúde, já que onde esta não existe e não é assegurada, resta esvaziada a proteção prevista para a vida e integridade física (SARLET, 2007, p.3).

É dessa forma que, na lição de Warat (1982, p. 49), aliena-se o conhecimento científico em sua expressão material, reduzindo as significações a conceitos, colocando fora de dúvidas e fora da política, a fala da ciência. Canotilho (2004, p.100), por sua vez, afirma que: ―paira sobre a dogmática e a teoria jurídica dos direitos econômicos, sociais e culturais a carga metodológica da vaguidez, indeterminação e impressionismo que a teoria da ciência vem apelidando, em termos caricaturais, sob a designação de ‗fuzzismo‘ ou ‗metodologia fuzzy.‖ Complementa, ainda, afirmando que os juristas não sabem do que estão a falar quando 65


abordam os problemas complexos dos direitos econômicos, sociais e culturais, razão pela qual essa problemática foi deslocada para as teorias de justiça, argumentação e econômicas do direito. (CANOTILHO, 2004, p.98). Assim, ao relacionar esse direito com a justiça, torna-se aparente que nem tudo aquilo que parece autoevidente para um indivíduo ou sociedade pode permanecer conciso, ou ao menos de forma inalterada.

2.2

OS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS ENTRE A CRÍTICA E A EXALTAÇÃO

Aqueles que atacam os direitos socioeconômicos clamam prioridade para estrutura de mercado e direitos de propriedade, pela responsabilidade sobre as próprias decisões e pelo merecimento, rejeitando o privilégio promovido pelas provisões de bem-estar aos ―preguiçosos‖. Segundo Waldron (2010): These attacks cannot be dismissed; they require (and, in my view, they can be given) an answer. But they are not adequately answered just by saying that the case for welfare provision is urgent and should command a very high place in the order of moral priorities. Even if one can defend the claim that socioeconomic rights are important, the nature of their priority over other concerns is not self-evident. There are all sorts of priorities in this area of moral and political life, and we need to develop an articulate account of what kind of priority we are talking about (WALDRON, 2010, p.3).

Além disso, afirmam que eles devem ser rejeitados por violarem o princípio lógico ―ought implies can‖. Ou seja, se os Estados não possuem recursos suficientes para promover assistência médica para toda a massa de cidadãos, por exemplo, não faz sentido atribuir às provisões econômicas uma questão de direitos humanos universais. (WALDRON, 2010, p.9). A escassez de recursos indica que deve haver um balanceamento e delimitação de prioridades com relação a essas demandas, não a rejeição imediatista dos direitos socioeconômicos. ―There is no reason to suppose that there are not enough resources in the world to feed or house or provide basic medical care to everybody in it, as (for example) Articles 11 and 12 of ICESCR require.‖(WALDRON, 2010, p.9). Por outro lado, os direitos socioeconômicos são defendidos contra as críticas mais óbvias, e seus defensores ou minimizam a questão da propriedade, merecimento e outras prioridades fiscais, ou tentam demonstrar que esses aspectos são bem menos importantes do que os direitos pelos quais clamam. (WALDRON, 2010, p.9).

66


Nozick, autor do livro Anarquia, Estado e Utopia, acredita que as demandas baseadas em necessidade ocupam um papel superficial numa teoria de justiça. Assim, os direitos socioeconômicos (se existirem) existem apenas nos interstícios da propriedade. Segundo o autor (NOZICK, 1999, p.160): ‗Things come into the world already attached to people having entitlements over them. The trouble with socioeconomic rights, on this account, is that they ‗treat objects as if they appeared from nowhere, out of nothing‘. Entretanto, afirma Waldron (2010, p.11) que Nozick, assim como John Locke, acredita que a aquisição inicial de direitos de propriedade não deve ser conduzida de modo a ser indiferente à situação dos indivíduos necessitados que podem ser prejudicados pelos direitos em questão. Segundo Nozick (1999, p.178): ―A process normally giving rise to a permanent bequeathable property right in a particular thing will not do so if the position of others no longer at liberty to use the thing is thereby worsened.‖

2.3

A REJEIÇÃO MODERNA ÀS TEORIAS ALOCATIVAS As teorias alocativas são aquelas que aspiram produzir princípios tais como: ―para

cada um de acordo com suas necessidades‖ ou ―para cada um de acordo com seu merecimento‖. Entretanto, os teóricos modernos, como Rawls e Nozick, cada vez mais rejeitam esse posicionamento. (WALDRON, 2010, p.13). Para este, as teorias alocativas tratam os bens como se eles simplesmente estivessem ali, aguardando distribuição, como se o processo pelo qual foram produzidos não fosse relevante. De acordo com o filósofo (NOZICK, 1999): To think that the task of distributive justice is to fill in the blank in ―to each according to his ____‖ is to be predisposed to search for a pattern; and the separate treatment of ―from each according to his ___‖ treats production and distribution as two separate and independent issues. On an entitlement view these are not two separate questions. (NOZICK, 1999, p.159-160) .

Segundo Waldron (2010, p.13), faz parte da rejeição ao que ele chama de ―princípios padronizados‖, ou seja, princípios que tentam padrão na distribuição de bens em decorrência de necessidade ou merecimento. Para entendermos sua crítica, faz-se importante explicar que, para Nozick (1999, p.160), quem quer que crie algo, é o legítimo dono. Rawls (2008, p.94) também entende que uma teoria da justiça não deve ser limitada à questão da alocação de recursos distributivos, ou seja, quem ganha o que, quando e como.

67


Esse posicionamento, entretanto, parece ser o defendido pelo STF (SL 47-AgR/PE)na concretização do artigo 196 da Constituição: Em razão da inexistência de suportes financeiros suficientes para a satisfação de todas as necessidades sociais, enfatiza-se que a formulação das políticas sociais e econômicas voltadas à implementação dos direitos sociais implicaria, invariavelmente, escolhas alocativas. Essas escolhas seguiriam critérios de justiça distributiva (o quanto disponibilizar e a quem atender), configurando-se como típicas opções políticas, as quais pressupõem ‗escolhas trágicas‘, pautadas por critérios de macrojustiça.

De acordo com o liberal igualitário (RAWLS, 2008, p.94): ―Se perguntarmos de forma abstrata se u distribuição de um dado estoque de coisas para indivíduos concretos com desejos e preferências conhecidas é melhor que uma outra, simplesmente não haverá resposta para essa pergunta.‖Como será analisado no tópico relativo a Rawls, seu princípio da diferença não deve ser interpretado como se ao grupo menos favorecido fosse entregue uma certa parcela dos recursos. O que ele impõe é que, quando se está avaliando e reformando a estrutura de regras que compõem a estrutura institucional de uma economia, devemos nos orientar de modo a privilegiar o grupo menos favorecido. Waldron observa no princípio da diferença uma razão de fundo semelhante às provisões de bem-estar, mas que, em razão de sua abstração, é incapaz de gerá-las por si só: The Difference Principle certainly reveals a spirit congenial to something like welfare provision inasmuch as it requires particular attention to the plight of the worst-off members of society. On the other hand, it also suggests that it might be possible to justify great inequalities, which on some accounts it is the task of socioeconomic rights to mitigate. In general the Difference Principle is too abstract to generate, by itself, any particular case for welfare provision. It is a principle governing the most abstract distributive implications of the basic structure, and it deals with them holistically, without regard to particular institutional arrangements or sources of advantage or disadvantage. If the Difference Principle provides the basis of a case for socioeconomic rights, it does so in the context of its further detailed elaboration.(WALDRON, 2010, p.14)

2.4

MUNDO IDEAL X MUNDO REAL: O SURGIMENTO DOS DIREITOS

SOCIOECONÔMICOS A PARTIR DAS TEORIAS DE JUSTIÇA

Relacionando Hayek e Rawls, Waldron (2010, p.15) imagina uma situação em as instituições da economia produzem uma distribuição de riqueza D1, que, entretanto, é julgada 68


inferior a uma distribuição D2, nos termos do princípio da diferença. Deve-se, então, imediatamente interferir e realocar a riqueza a fim de transformar D1 em D2? Segundo Waldron, a resposta em ambos seria ―não‖. Entretanto, enquanto para Hayek o assunto termina aí, Rawls abordaria uma outra questão: podemos alterar a estrutura institucional, de modo a torná-la mais suscetível a render distribuições, no futuro, como D2 ao invés de D1? A resposta para isso também pode ser "não", porque a mudança proposta pode ser incompatível com as virtudes institucionais, como a publicidade, estabilidade e do Estado de Direito. Ainda assim - e é isso que Hayek passa desapercebido - a resposta não é necessariamente "não." Se a mudança é possível e se a estrutura institucional resultante for viável, somos obrigados por uma questão de justiça a implementá-lo, pois o princípio da diferença obriga-nos a organizar (e , se necessário, reorganizar ) nossas instituições para que as desigualdades sociais e econômicas sejam direcionadas para o maior benefício dos menos favorecidos; O propósito de tal digressão é de demonstrar que, em uma teoria de justiça como a de Rawls, não há garantia de que os direitos socioeconômicos irão emergir de forma familiar, como uma garantia legal ou constitucional. As an abstract matter we can say, with the drafters of Article 25 of the UDHR, that everyone has ‗the right to a standard of living adequate for the health and wellbeing of himself and his family.‘ But that may not necessarily emerge as a specific legal or constitutional guarantee: a just society may not have a rule to that effect, nor even any particular agency charged with administering this standard. There may be a variety of provisions and arrangements, ranging from tax-breaks to educational opportunities to rent control (or its abolition) to unemployment insurance schemes— all of which taken together may represent the best (and genuinely the best) that can be done in an institutional framework to honor the underlying claim for the individuals in whose behalf it can be made.(WALDRON, 2010, p.16)

A teoria de justiça de Rawls pode ser descrita como irrealista, visto que nenhum de nós foi posto na posição original sob um véu de ignorância para decidirmos sobre quais princípios escolheríamos para governar as estruturas básicas de nossa sociedade. Reforçando a ideia de transcendentalismo das teorias de justiça, nenhum de nós também recebeu uma distribuição igualitária de recursos, nem a maioria de nós teve a oportunidade de fazer um seguro num mercado justo contra a falta de talento, habilidade ou quaisquer formas de azar (seguro hipotético de Dworkin). Estamos presos no mundo real, e é esse mundo em que as pessoas sofrem desemprego, privações e insegurança, nas quais as crianças tem fome e não tem a livre opção de decidir Segundo o autor (WALDRON, 2010, p.24): ―In general, theories of justice do not seem to be 69


designed for the real world. But the socioeconomic rights that people talk about are. They are designed exactly to operate in a real world that does not answer to ideal models of the philosophers. O direito à assistência médica, por exemplo, garantido no artigo 25, I da Declaração de Direitos Humanos foi positivado no intuito de ser aplicado nas situações do mundo real, independentemente se essas situações são ou não adequadamente governadas pelas estruturas da melhor teoria de justiça. Embora seja verdade que algumas demandas dos direitos socioeconômicos possam ser utópicas, assumindo-se que o que esses direitos requerem pode ser feito, a consequência lógica é que eles devem ser realizados, sem a necessidade de espera por uma teoria de justiça para subsidiar sua aplicação. Por outro lado,a ideia de que os direitos socioeconômicos deve ter esta aplicação imediata no mundo real não significa que eles podem ser totalmente considerados sem levar em conta as teorias da justiça. A maioria dos teóricos da justiça defende sua ênfase na teoria ideal por acreditar que ela ilumina e proporciona a melhor base para abordar questões práticas, de uma teoria não-ideal, uma vez que os direitos socioeconômicos não possuem a capacidade que uma teoria de justiça tem de avaliar o impacto na rede da estrutura básica ao compreender a totalidade dos aspectos referentes às perspectivas de vida dos indivíduos. (WALDRON, 2010, p.25). Para o autor, não está claro que os tribunais de justiça são o lugar correto para resolver as demandas entre esses direitos, que possuem, além da dimensão interpretativa, uma dimensão orçamentária. Assim, seria uma pena se as cortes fossem vistas como o único meio de reivindicá-las.Caso assumíssemos que é importante que essas demandas sejam também perseguidas num contexto político, então a justificativa para a elaboração de demandas socioeconômicas no contexto de uma teoria de justiçaé evidente. (WALDRON, 2010, p.28). A linguagem dos direitos sociais e econômicos se expressa exigindo reivindicações morais, apresentando o caso de cada indivíduo peremptoriamente, como se não se admitisse recusa, equilíbrio, compromisso. Uma teoria geral de justiça, por outro lado, leva em consideração demandas urgentes de todos os tipos. Gera, portanto, suas conclusões com base em tal consideração, passando a tratá-las como absolutas. Teorias de direitos, por outro lado, apresentam esse absolutismo de forma precipitada, num estágio anterior às considerações sobre as demais demandas concorrentes. Para Waldron (2010, p.29), é melhor adiar os debates sobre os direitos socioeconômicos até que consideremos como as diversas demandas socioeconômicas se saem numa teoria de justiça. Assim, não nega que o direito à assistência médica, por exemplo, 70


possa ser justificado. O que ele enfatiza é que pode ser elaborado um caso mais forte e convincente sobre esses direitos caso sejam validados a partir de uma teoria que permita que outras reivindicações, demandas e considerações morais façam seus melhores ataques contra eles.Assim, assume sua posição (WALDRON, 2010, p.30): ―Theorizing about justice offers just such a context. For that reason, I think it is better to let socioeconomic rights emerge from a theory of justice than to try to defend them, line by line, on their own merits.‖

3

A TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

3.1

O DESENVOLVIMENTO DA TEORIA RAWLSIANA

A teoria de justiça de Rawls foi construída com base num modelo teórico de ideias, como a posição original e o véu de ignorância, abrangendo concepções meta-éticas como o equilíbrio reflexivo, e relacionando nossos juízos ponderados sobre justiça a partir de uma construção filosófica. Seu conceito pode ser definido por aquilo que expõe e defende princípios gerais que governam a estrutura básica da sociedade tendo em vista os impactos sob as perspectivas de vida e o gozo de bens primários pelos indivíduos. (RAWLS, 2008). Tais princípios, escolhidos por pessoas racionais e livres na posição original, encobertas pelo véu de ignorância que as impedem de terem conhecimento sobre suas próprias características, habilidades, renda, são dois: Primeiro: cada pessoa deve ter um direito igual ao mais abrangente sistema de liberdades básicas iguais que seja compatível com um sistema semelhante de liberdades para as outras. Segundo: as desigualdades sociais e econômicas devem ser ordenadas de tal modo que sejam ao mesmo tempo (a) consideradas como vantajosas para todos dentro dos limites do razoável, e (b) vinculadas a posições e cargos acessíveis a todos.(RAWLS, 2008, p.64)

Segundo Vita (2008b, p.XXIII), a concepção de justiça dada por esses princípios é justificada através da articulação de três componentes: ao primeiro princípio, conjuga-se o componente das liberdades e direitos fundamentais; ao segundo, conjugam-se o de igualdade equitativa de oportunidades e o do princípio de diferença ou critério maximin de justiça social, para o qual somente deve-se admitir a desigualdade econômica que favorecer ao terço mais pobre da sociedade.

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Há entre esses princípios uma ordenação serial, ou seja, uma complementaridade circular entre os direitos, impedindo-os de se tornarem mutuamente substituíveis. (RAWLS, 2008, p.65).Desta feita, o primeiro princípio tem prioridade sobre o segundo – as liberdades fundamentais protegidas pelo primeiro princípio não podem ser violadas em favorecimento, justificadas ou compensadas por maiores vantagens sociais e econômicas – e a parte (b) do segundo princípio tem prioridade sobre a parte (a), garantindo que condições de igualdade equitativa de oportunidades sejam asseguradas a todos. Segundo Rawls (2005), esse primeiro princípio de justiça só pode ser precedido por outro que prescreva a satisfação das necessidades básicas dos cidadãos, desde que tais necessidade sejam essenciais para que os cidadãos entendam e exerçam seus direitos e liberdades.

3.2

VIABILIDADE DA LEITURA DOS DIREITOS SOCIOECONÔMICOS SOB A

PERSPECTIVA DA POSIÇÃO ORIGINAL Analisando a teoria de Rawls, Waldron entende que ela não é hostil à ideia de ―welfare provision‖, mas que os princípios decorrentes dos direitos socioeconômicos, a primeira vista, não se fundamentam diretamente dosdois princípios básicos de justiça como equidade, levantando a seguinte hipótese: Why is this? The most plausible explanation is that socioeconomic rights or principles embodying socioeconomic rights are usually formulated at the wrong level of generality or abstraction to be included among the most fundamental principles of a theory such as Rawls‘s. But then we should ask: what is the relationship between abstract principles of justice and these somewhat less abstract principles requiring welfare provision?‖(WALDRON, 2010, p.1)

Seria, entretanto, viável uma leitura dos princípios que emergem dos direitos socioeconômicos, e em especial, do direito à saúde, sob a perspectiva da posição original de Rawls a partir de um aprofundamento? Como já dito, essa perspectiva imagina pessoas tomando decisões sobre importantes aspectos estruturais de sua sociedade sob um véu de ignorância, através do qual eles desconhecem seus interesses particulares que poderiam direcionar suas decisões para promover seu próprio bem-estar. One might imagine a Rawlsian response to the effect that a non-allocative theory simply doesn‘t generate principles of that sort in this direct way. Rawls might say

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that if justice requires welfare payments, for example, then that will emerge in the course of the detailed elaboration of what is implied as a matter of public policy by the very abstract propositions that are the subject-matter of decision in the original position.(WALDRON, 2010, p.17)

Entretanto, o autor argumenta que sob a forma que a teoria de justiça rawlsiana foi concebida, essa resposta não está correta. (WALDRON, 2010, p.17). O primeiro princípio da concepção de justiça como equidade de Ralws contém o componente das liberdades e direitos fundamentais, como já explanado. De acordo com Ralws, esses princípios são extraídos diretamente da ideia da posição originária. Então, questiona-se: se é um meio apropriado para argumentar a favor de direitos como liberdade religiosa, por que não seria para argumentar a favor dos direitos socioeconômicos, e, portanto, do direito à saúde? A teoria de Rawls apresenta o que geralmente as teorias de direitos contém, o que Waldron chama de ―list-like aspects‖: ―É essencial observar que é possível determinar uma lista dessas liberdades.‖.(RAWLS, 2008, p.65).Em Political Liberalism, o autor afirma (RAWLS, 2005, p.292): ―Note, however, that if we can find a list of liberties which (…) leads the parties in the original position to agree to these principles rather than to the other principles available to them, then what we may call ‗the initial aim‘ of justice as fairness is achieved.‖ Prossegue, ainda, afirmando que a lista pode ser elaborada considerando quais liberdades são condições sociais essenciais para um desenvolvimento adequado e para o completo exercício da personalidade moral sobre uma vida completa. Assim, se o igualitário liberal incluiu na sua teoria de justiça uma lista de direitos civis e políticos, o que impede que se faça o mesmo com os direitos socioeconômicos? Those who believe in such rights defend them by arguing that they indeed represent ‗essential social conditions for the adequate development and full exercise … of moral personality.‘ And, as we shall see in a moment, there might well be a direct original-position argument to be made in their favor. If all this is true, then the listness of socioeconomic rights—the fact that they are not theorized holistically in the way that theories of justice normally theorize things— need not be an obstacle, at least if we accept the general outlines of Rawls‘s methodology in this regard and buy into his rejection of the criticism (which is more or less a version of the criticism with which I began this chapter) that the use of such a list of rights in a theory of justice is a disreputable ‗makeshift‘. (WALDRON, 2010, p.18)

Por outro lado, Waldron assevera que é possível que haja razões específicas para não tratar os direitos socioeconômicos dessa forma. Haja vista, como exemplo, a negativa de Rawls em incluir o valor da liberdade sob o manto do primeiro princípio.

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A incapacidade de beneficiar-se dos próprios direitos e oportunidades, como consequência da pobreza e da ignorância, e da falta de meios em geral, é às vezes incluída entre as restrições que definem a liberdade. Essa, porém, não será minha posição; em vez disso, quero pensar que essas coisas afetam o valor da liberdade. (RAWLS, 2008, p.221)

Rawls não acreditava que uma sociedade poderia orgulhar-se em oferecer aos seus cidadãos mais pobres direitos civis e políticos, neste sentido restrito, sem prestar atenção à sua condição material.O princípio da diferença (difference principle) expressa a opinião de Rawls de que qualquer indivíduo coberto pelo véu da ignorância, ao escolher princípios para governar a estrutura básica da sociedade em que ele vive, insistiria num princípio que assegurasse que desigualdades sociais e econômicas fossem reguladas em proveito, a priori, do grupo menos favorecido. (RAWLS, 2008, p.89-96).

3.3

SAÚDE COMO JUSTIÇA: A VAGUEZ DA TEORIA DE JUSTIÇA DE RAWLS

Não constitui objeto de estudo de Rawls uma teoria sobre a saúde em uma sociedade justa. Temas como esse devem ser tratados apenas em estágios posteriores, quando os indivíduos que deles participam já possuem informações precisas e explícitas sobre questões sociais e econômicas de sua sociedade. Portanto, não é algo que deva ser abordado no âmbito da posição original. Além disso, nem a saúde, nem outros bens considerados fundamentais, tanto pelo nosso ordenamento jurídico, quanto pela Declaração de Direitos Humanos, comoalimentação, educação, moradias figuram, explicitamente, na lista de bens sociais primários do autor. Estes constituem um meio objetivo de julgamentos sobre justiça; são a base das expectativas das pessoas, que dependem de fatos gerais sobre necessidades e aptidões humanas, suas fases e requisitos normais de cuidados, relações de interdependência social e uma concepção normativa de pessoa). Segundo Rawls (2008, p.66): ―Outros bens primários como a saúde (...) são bens naturais; embora a sua posse seja influenciada pela estrutura básica, eles não estão sob seu controle de forma tão direta.‖ De acordo com De Mario (2013, p.35-39): ―Autores como Amartya Sem (1992;2009) e Martha Nussbaum (2006) focam-se na saúde, dentre outros bens sociais, para mostrar que o acordo ralwsiano e a métrica de bens primários são insuficientes por não garantir às pessoas a realização de suas necessidades.‖ Como Rawls considera como participantes da posição original apenas aqueles mental e fisicamente aptos, as pessoas acometidas por deficiências

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e/ou doenças que lhes impeçam de agir socialmente como os demais da sociedade por requererem atenção especial estariam excluídas. Ainda segundo a autora (DE MARIO, 2013, p.35): ―Por outro lado, Norman Daniels (2008) afirma pensar a saúde dentro da perspectiva de justiça como equidade é possível, desde que não seja feito a partir da lista de bens primários, pois esse bem estaria contido nas exigências dos princípios de justiça celebrados na posição original.‖ Sendo a estrutura básica o objeto primário da justiça como equidade, por exercer influência sobre a vida das pessoas, inevitavelmente a sociedade terá que se apoiar em algumas desigualdades para ser bem ordenada e planejada. Tais desigualdades tratadas pela justiça como equidade são aquelas que afetam as perspectivas de vida dos cidadãos, determinadas pelo índice de bens primários. Três tipos de contingência são capazes de afetálas:: classe social de origem; talentos e as oportunidades que têm de desenvolvê-los; (3) sua boa ou má sorte ao longo da vida. (RAWLS, 2003, p.78). Os problemas provenientes de questões sociais e de desigualdades serão decididos tomando o segundo princípio – o princípio de diferença e o da igualdade equitativa de oportunidades – como referência. A saúde, portanto, pode ser reconhecida como um fator de contingência, ao possibilitar a afetação das expectativas de vida e, portanto ser desencadeador de desigualdade. Entretanto, os menos favorecidos não devem ser definidos pela sua ausência, pois esta não é um bem primário.

4

TEORIA DE JUSTIÇA DE DANIELS: A EXTENSÃO DA TEORIA

RAWLSIANA APLICADA À SAÚDE

4.1

A IMPORTÂNCIA MORAL DA SAÚDE

PARA PRESERVAÇÃO DAS

OPORTUNIDADES

Daniels assume que a importância moral que a assistência médica possui, para os propósitos da justiça, ao prevenir e tratar doenças e deficiências com efetivos serviços assistenciais, deriva da forma com a qual a proteção da organização funcional normal do organismo contribui para proteção das oportunidades. Mantendo nas pessoas o funcionamento normal, a assistência médica preserva nelas a possibilidade de participar na vida política, social e econômica da sociedade.

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By maintaining normal functioning, health care protects and individual‘s fair share of the normal range of opportunities reasonable people would choose in a given society. (…) Individual‘s fair shares of that societal normal opportunity range are the plans of life it would be reasonable for them to choose were they not ill or disabled and were their talents and skills suitably protected against mis- or underdevelopment as a result of unfair social practices and the consequences of socio-economic inequalities.‖(DANIELS, 2001, p.2)

Essa ideia de proteção do leque normal de oportunidades, ou seja, planos de vida que seriam razoáveis que as pessoas desejassem para si, também depende das características de uma dada sociedade, de sua história, das condições materiais de bem estar, de seu desenvolvimento tecnológico e sua cultura, sendo essencial na construção da sua teoria. Sua relação com a assistência médica sugere que o princípio de justiça distributiva apropriado para regular o sistema de atendimento medico é um princípio que protege a igualdade de oportunidades.Assim, afirma (DANIELS, 2001, p.2): ―Disease and disability, by impairing normal functioning, restrict the range of opportunities open to individuals.‖ Dessa forma, De Mario (2013, p.59) afirma que para Daniels, a saúde é uma questão de justiça porque―uma sociedade que não garante aos seus cidadãos condições de saúde, mais precisamente, de uma vida saudável, será invariavelmente injusta, pois não assegurará a todos as mesmas condições e oportunidades para realizarem de suas vidas algo valoroso (...).‖ A assistência médica se distingue de outras necessidades básicas do ser humano que também preservam o funcionamento normal do organismo, como alimentação, moradia, justamente pelo fato de que necessidades médicas são mais desigualmente distribuídas e podem ser catastroficamente caras, sendo objeto de seguro privado ou social. (DANIELS, 2001, p.3-4). Nesse sentido, a perspectiva de Danielsapoia a previsão de assistência médica universal, a fim de respeitar o princípio da igualdade equitativa de oportunidades. The account supports the provision of universal access to appropriate health care – including traditional public health and preventive measures – through public or mixed public and private insurance schemes. Health care aimed at protecting fair equality of opportunity should not be distributed according to ability to pay and the burden of payment should not fall disproportionately on the ill. (DANIELS, 2001, p.4)

Ao justificar a importância moral especial da saúde, busca contextualizá-la dentro teoria de justiça de Rawls, evitando aquilo que Waldron constata na argumentação em prol dos direitos socioeconômicos: sua autoevidência, cuja importância moral é presumida a priori, sem levar em consideração outras demandas e direitos.

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4.2

A INCORPORAÇÃO DA SAÚDE NA LISTA DE BENS PRIMÁRIOS DE RAWLS Segundo Daniels (2001, p.2): ―Any theory of justice that supports a principle assuring

equal opportunity (or giving priority to improving the opportunities of those who have the least opportunity) could thus be extended to health care.‖ Essa afirmação já estabelece os contornos para uma extensão da teoria de Rawls. Esta, já discutida, determina que devemos medir nossos níveis de bem-estar através de medidas de acesso público, ou seja, uma lista de bens primários que incluem direitos e liberdade, poder, oportunidade, renda, riqueza e as bases sociais de respeito. Sua extensão da teoria de Rawls recai sobre o princípio de Igualdade Equitativa de Oportunidades, através da incorporação do status de saúde ao índice de bens primários, em virtude dos seus efeitos sobre a oportunidade, já que pessoas com índices iguais não terão as mesmas chances de desenvolver suas vidas com a mesma qualidade se tiverem necessidades em saúde diferenciadas. ―Since opportunity is included in the index of primary social goods, the effects of health inequalities are thereby included as well.‖ (DANIELS, 2008, p. 94). Modifica, portanto, o conceito de oportunidade de Rawls. Para Daniels a extensão da lista de bens primários não significa uma violência à teoria de Rawls, desde que movamos nosso foco da posição original para os estágios constitucional e legislativo, momentos nos quais os bens primários podem ser debatidos e estendidos de diversas formas. Assim, incluir instituições que garantam serviços de saúde dentre as instituições básicas responsáveis por garantir iguais oportunidades satisfaria integralmente a principal preocupação de Rawls: reduzir arbitrariedades em virtude do nascimento e pela posição de cada um na sociedade, moralmente inaceitáveis (loteria natural e social). (DE MARIO, 2013, p.62). Para adequar a abordagem da saúde como um bem primário à justiça como equidade, o autor assinala que, para decidir sobre os princípios e normas dos sistemas de saúde, é preciso que tenhamos conhecimento sobre fatos acerca da sociedade e dos indivíduos, ou seja, é preciso que o véu da ignorância presente no primário estágio da justiça seja retirado. Essas decisões precisam ser tomadas não considerando os gostos e as preferências das pessoas, mas sim, como pontua Rawls, levando em conta que o que se tem são pessoas livres para elaborar e revisar seus planos de vida. Consequentemente, essas pessoas têm interesse em que as condições para tal sejam garantidas e mantidas ao longo de suas vidas. (DE MARIO, 2013, p.63)

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A justa parcela dos indivíduos do leque normal de oportunidades é definida com relação aos talentos e habilidades que estes teriam de acordo com um funcionamento normal. Além disso, essa parcela inclui tudo aquilo que os indivíduos selecionariam de maneira razoável, não somente o que eles de fato podem selecionar. Manter o funcionamento normal através do acesso a bens e serviços de saúde tem um efeito particular e limitado sobre as parcelas individuais do leque normal. Isso permite aos indivíduos desfrutarem da parcela a que têm acesso, através de seus talentos e habilidades, neste leque considerando que esse acesso não é restringido por outras desvantagens sociais. Esse fato não sugere que devemos eliminar ou nivelar diferenças naturais que funcionam como um delimitador da porção do leque normal ao qual os diferentes indivíduos terão acesso. Entretanto, quando diferenças entre talento e habilidades são resultado de patologias, e não de uma variação normal, devemos empreender, de acordo com nossos recursos, esforços para corrigir os efeitos da loteria natural‟.‖ (DANIELS, 2011, p.45)

4.3

DETERMINANTES SOCIAIS, DESIGUALDADES E ESCASSEZ DE RECURSOS

A fim de se assegurar justiça no campo da saúde, é necessário mais do que o simples tratamento médico, visto que ela é concretizada não apenas com a prevenção e tratamento, mas com também com uma extensão maior de ações, através da experiência acumulada nas condições sociais ao curso da vida de cada indivíduo. Segundo Daniels, os princípios de justiça de Rawls regulam os determinantes sociais da saúde: Rawls‘s principles of justice thus turn out to regulate the key social determinants of health. One principle assures equal basic liberties, and specifically provides for guaranteeing effective rights of political participation. The fair equality opportunity principle assures access to high quality public education, early childhood interventions, including day care, aimed at eliminating class or race disadvantages, and universal coverage for appropriate health care. Rawls ―Difference Principle‖ permits inequalities in income only if the inequalities work (e.g., through incentives) to make those who are worst off as well off as possible. (…) It would therefore flatten socioeconomic inequalities in a robust way, assuring far more than a ‗decent minimum‘ (Cohen 1989).‖ (…) The implication is that we should view health inequalities that derive from social determinants as unjust unless the determinants are distributed in conformity with these robust principles.(DANIELS, 2001, p.9)

Afirma, além disso, que, por mais que a assistência médica seja importante, não é o único bem social relevante. Assim, as sociedades devem decidir quais necessidades devem ter prioridade e quando os recursos são bem gastos. Would be much simpler if people could agree on principles of distributive justice that would determine how to set fair limits to health care. (…) I shall develop the

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following argument: 1) We have no consensus on principled solutions to a family of morally controversial rationing problems, and general principles of justice for health and health care fail to give specific guidance about them; 2) In the absence of such a consensus, we should rely on a fair process for arriving at solutions to these problem and for establishing the legitimacy of such decisions; 3) A fair process that addresses issues of legitimacy will have to meet several constraints that I shall refer to as ‗accountability for reasonableness‘. (DANIELS, 2001, p.10)

5. JUSTIÇA E SAÚDE NA VISÃO DE RONALD DWORKIN

5.1

A CONCEPÇÃO LIBERAL EXISTENCIALISTA EM RONALD DWORKIN: O

PONTO INTERMEDIÁRIO ENTRE BEM-ESTAR SOCIAL E LAISSEZ-FAIRE

Dworkin não adere à concepção estrita do conceito de igualdade distributiva, ou seja, a igualdade absoluta na distribuição das riquezas sociais, visto que tal atitude relevaria a responsabilidade que as pessoas têm sobre suas próprias decisões livres. Como ilustração, Ferraz (2007, p.1) cita a fábula da formiga trabalhadora, que, em virtude do seu empenho, conserva mantimentos para sobreviver ao inverno, e da cigarra indolente, que opta por cantarolar durante o verão, morrendo de fome no inverno. Seria justa a transferência dos recursos da formiga para a cigarra que optara livremente por não trabalhar?

The person who worked or saved in order that he would have enough resources for a rainy day is not treated with equal dignity if he is required to subsidize the person who did not work or save despite being conscious of what the consequences of that would be and despite having had the opportunity to do so.(WALDRON, 2010, p.23)

No mesmo diapasão, para Dworkin, imunizar as pessoas das consequências de suas próprias escolhas livres seria contrário ao princípio da igual consideração e respeito. Este princípio, ao contrário do que possa parecer, não requer que o governo garanta que todos tenham igual riqueza, ou oportunidades iguais, ou o suficiente para satisfação das necessidades mínimas.

Como consequência da aplicação do princípio ético da

responsabilidade, as desigualdades materiais não atribuíveis às escolhas dos indivíduos, por estarem relacionadas a circunstâncias fora de seu controle, não são justificadas. São, portanto, moralmente arbitrárias, requisitando alguma forma de correção. A distinção entre escolha e circunstância é não só familiar,mas fundamentalem ética de primeira pessoa.[…] Não podemos planejar ou julgar nossasvidas senão pela distinção entre aquilo sobre o que devemos assumirresponsabilidade, porque o escolhemos, e aquilo sobre o que não devemosporque estava além de nosso controle. (DWORKIN, 2010, p. 455)

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Em sua obra, o filósofo ouriço busca, através da síntese de duas teorias adversárias (bem-estar social e laissez-faire), introduzir uma teoria da igualdade liberal. Segundo Montarroyos (2013, p.90), o livro ―A virtude soberana‖ traz como solução uma releitura liberal existencialista sobre a teoria econômica da igualdade distributiva, maximizando a constitucionalidade no dia a dia dos indivíduos, fugindo das vicissitudes do bem-estar social e do laissez-faire. O objetivo do autor, portanto, é o aperfeiçoamento do processo de inclusão comunitária, apartir da criação de um ambiente ético-liberal motivador e atraente. Promove, por conseguinte, a combinação do princípio da igualdade com o princípio da liberdade, mediados pelo princípio da responsabilidade existencialista, público e privada, além da inclusão de valores como democracia, fraternidade, tolerância e comunidade. Há, portanto, no autor, uma espécie de ―dosimetria‖ entre o bem estar social da política (máximo de intervenção) e o laissez-faire do mercado (com zero-grau de intervenção da comunidade). (MONTARROYOS, 2013, p. 116). Por um lado, Dworkin encontra no primeiro modelo alguns pontos que devem ser rechaçados: O modelo do bem-estar social produziria injustiça no decorrer da metodologia distributiva, uma vez que não deixaria livre os beneficiários para formularem seus desejos utilitaristas, ou seja, desestimularia o desejo de maximizar o existencialismo individual, pois as pessoas seriam enquadradas nos padrões de felicidade e de justiça social projetados pelo distribuidor paternalista, que consideraria nessa perspectiva que o estilo de vida de um beneficiário pode ser inferior ou superior ao de outro cidadão, usando para isso uma métrica burocrática, tecnicista, matemática, metafísica ou materialista, que não coincide com a filosofia existencialistahumanista reinvidicada pelo autor Ronald Dworkin. (MONTARROYOS, 2013, p.115-116)

Por outro lado, Dworkin critica os defensores do modelo do laissez-faire, pois os igualitários partidários de tal corrente argumentam que o respeito ao princípio da igual consideração e respeito estaria satisfeito quando não houvesse interferência na vida de ninguém, a fim de que o destino das pessoas dependesse de forma exclusiva de suas próprias habilidades, iniciativas e sortes. Nesse caso, há uma defesa da autonomia pessoal máxima fundada no extremo da liberdade, desprezando, no entanto, a responsabilidade coletiva, a comunidade e a igualdade formal. (MONTARROYOS, 2013, p.101) A pretensão de Dworkin, portanto, é autor criar é uma terceira argumentação ou alternativa epistemológica que seja capaz de entrelaçar esses dois modelos teóricos, que, apesar da popularidade, são extremistas. 80


5.2

A MOEDA DA IGUALDADE EM DWORKIN: IGUALDADE DE RECURSOS Qual seria, então, a dimensão em que a concepção de igualdade liberal-existencialista

em Dworkin é concebida? Como bem aponta Sen, todas as teorias políticas que passaram pelo teste do tempo defendem (ainda que não de modo explícito) a igualdade em algum ‗espaço‘ específico (‗the space of equality‘), e isso implica necessariamente desigualdade em outros espaços. Proponentes do igualitarismo não podem portanto simplesmente se dizer igualitários, devem apontar em que dimensão (isto é, espaço) uma sociedade de iguais busca a igualdade entre as pessoas, ou seja, devem indicar qual a ‗moeda da justiça igualitária‘, na expressão de Cohen, e justificar as desigualdades que necessariamente resultarão dessa escolha, em outros espaços.(FERRAZ, 2007, p.246)

Para Dworkin, há dois espaços em que a igualdade pode ser concretizada: igualdade de bem-estar e igualdade de recursos. A primeira sugere que o nível de bem-estar que cada indivíduo alcança com a mesma quantidade de recursos materiais pode variar em virtude das capacidades que cada um possui para convertê-los em bem-estar (capabilities para Amartya Sen). Portanto, variando-se a capacidade de cada um na conversão dos recursos (em virtude de enfermidades, deficiências físicas e mentais), o nível de bem-estar que os indivíduos alcançam com a mesma quantidade dos mesmos também varia significativamente. Segundo Ferraz (2007, p.247): ―A teoria da igualdade de bem-estar parece captar a intuição de que a sociedade deve conferir recursos adicionais a essas pessoas para compensar as deficiências.‖ Dworkin rejeita essa primeira ―moeda de igualdade‖ em virtude de vários fatores: indefinição de um nível máximo de compensação, haja vista que certas deficiências nunca permitirão uma igualdade de bem-estar, por mais recursos transferidos pela sociedade; o problema dos gostos dispendiosos; subjetividade do conceito; dificuldade de comparação dos níveis de bem-estar entre pessoas para efeito de equalização. (FERRAZ, 2007, p.247). Dessa forma, para o filósofo, a ‗moeda da justiça igualitária‘ deve ser os recursos com os quais as pessoas alcançam o bem estar: a igualdade de recursos. Não se trata, evidentemente, ao contrário do que a denominação parece sugerir, de uma divisão igualitária estrita de recursos. Essa é a teoria da igualdade da ―velha esquerda‖ que Dworkin repudia, pois viola a ideia central do igualitarismo liberal (...). Além disso, ignoraria por completo a intuição de que certas pessoas, por conta de deficiências e enfermidades, tenham direito a mais recursos para compensar seu déficit na capacidade de atingir o bem-estar (capability), A igualdade de recursos

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requer uma distribuição sensível às escolhas que as pessoas realizam, porém insensível às circunstâncias.Ou seja, parte-se da posição fundamental de que, ausentes as diferenças imputáveis às escolhas das pessoas,a distribuição de recursos em uma sociedade em princípio deve ser igual. (FERRAZ, 2007, p.247-248)

Assim como Rawls utiliza o artifício da posição original para deliberar sobre princípios que devem reger a estrutura básica da sociedade, Dworkin, para demonstrar a adoção da igualdade de recursos, utiliza-se de uma situação hipotética na qual os indivíduos devem decidir, como se fosse a primeira vez, regras justas de convivência social: o leilão hipotético.

5.3

O LEILÃO HIPOTÉTICO

Dworkin supõe a seguinte situação: um grupo de náufragos, numa ilha deserta, deve decidir sobre a divisão dos recursos encontrados no território, respeitando o princípio da igualdade. Ao invés de conferir uma parte igual de cada recurso existente na ilha a cada indivíduo, o autor afirma que a forma mais igualitária de distribuição dos recursos seria a realização de um leilão (mercado em condições ideais), em que todos os náufragos participariam com poder paritário de aquisição (na situação hipotética, o mesmo número de conchas), sendo cada recurso entregue a quem oferecesse o melhor lance. Ao fim, os náufragos possuirão um conjunto de recursos diferentes uns dos outros, adequado às preferências de cada um. Dworkin considerou que a oferta dos produtos a serem leiloados não pode ser viciada a fim de atender um ou outro tipo social ou étnico de pessoa. O responsável pela divisão dos produtos disputados no leilão deve atacar dois focos distintos: a arbitrariedade e a possível injustiça. O chamado ―envy teste‖, ou teste da cobiça, determina, finalmente, se a distribuição pode ser considerada igualitária: ninguém pode preferir a cesta de recursos de outro ao final do leilão. (DWORKIN, 2005, p. 82). Assim, a aplicação desse mecanismo possibilita a manutenção do respeito ao princípio da escolha, sensível às preferências entre as pessoas, e da responsabilidade, permitindo que cada um arque com os custos de suas decisões. Entretanto, Dworkin (2005, p.454) ressalta o chamado ―problema estratégico‖, ou seja, a dificuldade de atribuição das desigualdades materiais à escolha ou à circunstância. O desafio do igualitarismo liberal é, desse modo, encontrar ummecanismo que permita a aplicação de sua idéia central sem a necessidadede verificar, pessoa a

82


pessoa, que parte de suas riquezas materiaisé decorrente de escolhas e que parte é decorrente de circunstâncias.Tal mecanismo deve ser capaz também de estabelecer quecompensação é adequada quando há impossibilidade de eliminartodas as diferenças de bem-estar decorrentes das circunstâncias,como no caso das incapacidades físicas graves. (FERRAZ, 2007, p. 454)

Aplicar o princípio da diferença rawlsiano para solucionar o dilema seria violar o critério escolha-circunstância, visto que não há distinção se os ocupantes da posição menos favorecida da sociedade estão lá em virtude de circunstâncias ou escolhas. Nesse sentido, Waldron (2010, p.22): ―(...) neither the argument for the Difference Principle nor the Rawlsian social minimum argument (...) seems to pay any attention to the question of a person‘s own responsibility for his or her membership in the worst-off group.‖ Não é possível, portanto, equalizar todas as desigualdades materiais atribuíveis às circunstâncias. Todavia, é possível equalizar as oportunidades que as pessoas têm para se proteger dos riscos de possuir menos recursos por razões circunstanciais, imaginando-se que proteção contra esse risco, na forma de seguro, pessoas de prudência normal teriam provavelmente adquirido se tivessem tido a oportunidade de fazê-lo em igualdade de condições: a ideia do seguro hipotético. (DWORKIN, 2005, p.108). Para o filósofo, o momento adequado para a satisfação do teste de cobiça, de acordo com o princípio de igual consideração e respeito, seria ex ante: antes do impacto das transações e da sorte. Um governo comprometido com a igualdade ex post aproximaria os cidadãos que carecem de habilidades de mercado para o mesmo nível econômico daqueles com maiores habilidades, e recuperaria aqueles que ficaram doentes ou sofreram desvantagens com a posição que teriam ocupado. Por outro lado, um governo comprometido com a igualdade ex ante, responde diferentemente a essas problemáticas: impõe que os cidadãos respondam essas contingências na mesma posição, ou seja, que eles tenham a mesma oportunidade de comprar seguro contra falta de talento produtivo ou má sorte. (DWORKIN, 2011, p.358). A igualdade inicial do leilão permanece enquanto durar o acontecimento do próprio leilão. Após o seu fim, prevalece entre os indivíduos o livre comércio, sendo a igualdade de recursos rompida. É em virtude disso que Dworkin idealiza o seguro hipotético, a medida para redistribuir na sociedade os recursos entre os que ganham e os que perdem no jogo desigual do mercado. O filósofo recomenda, portanto, um modelo de impostos e benefícios na estrutura desse mercado hipotético de seguros: o prêmio dá a medida do que deve ser arrecadado por meio de impostos, enquanto a cobertura é o limite que deve ser gasto com a redistribuição na forma de benefícios. (FERRAZ, 2007, p.250). 83


5.4

JUSTIÇA E SAÚDE: PRINCÍPIO DO SEGURO PRUDENTE

Em Justice for Hedgehogs, Dworkin afirma, categoricamente, que as teorias de justiça distributiva são artificiais, baseando-se em fantasias: contratos fictícios, negociações entre pessoas com amnésia, citando como exemplos a posição original de Rawls e sua própria hipótese de leilão hipotético numa ilha deserta. Entretanto, afirma que esse tipo de artificialidade é inevitável caso se queira afastar a política como árbitro final da justiça. Em virtude da complexa e profunda injustiça na economia, é difícil definir o que a justiça demanda sem tais exercícios contrafactuais. (DWORKIN, 2011, p.352). O autor acredita na interdependência entre teoria política e a controvérsia prática, visto que acredita ser essencial que a filosofia política responda à política, pois só assim haveria a probabilidade

de

alcançar a

forma correta

(MONTARROYOS, 2013, p. 102).

para

ajudar a

sociedade de

fato.

Portanto, de um lado tem-se a igualdade, valor

transcendente da comunidade política; do outro, encontra-se a realidade do cotidiano que se perde no pragmatismo, na cobiça e no oportunismo derivados da liberdade dos governos, pessoas, mercados. A partir da conciliação entre essas duas dimensões, ideal e real, através da igualdade liberal, encara a relação entre justiça e saúde, discutida no capítulo 8 do livro ―A virtude soberana‖. A sua abordagem teórica de justiça em saúde integra a assistência médica na competição com os outros bens escassos a serem redistribuídos, ao invés de conceder-lhe um status moral especial, isolando a saúde e a assistência médica, como Daniels o faz. Questiona o autor quanto se deve gastar, coletivamente, a fim de proporcionar serviços de saúde a todos que respeitem o princípio da igualdade. (DWORKIN, 2005). Para responder ao questionamento, há duas respostas possíveis, sendo necessário, primeiramente, retomar a noção da igualdade de bem-estar, aplicada no contexto da saúde: deve-se gastar o que for necessário para restabelecer a saúde das pessoas, custe o que custar? Trata-se do que Dworkin chama de ―princípio do resgate‖, considerado pelo filósofo como inverossímil e capaz de levar a sociedade à falência, se levado ao extremo. É composto por duas partes: a primeira sustenta que a vida e a saúde são bens primeiros e não devem ser sacrificados em função de outros; a segunda impede que se negue atendimento médico a qualquer pessoa, por uma questão de igualdade. (DWORKIN, 2005, p. 335). A assistência médica, portanto, deveria ser distribuída de acordo com a necessidade do paciente.

84


Esse princípio é o adotado pelo STF (SL 47-AgR/PE) na concretização do direito à saúde no Brasil: ―Em relação aos direitos sociais, é preciso levar em consideração que a prestação devida pelo Estado varia de acordo com a necessidade específica de cada cidadão. Assim, (...) no caso de um direito social como a saúde, (...) deve dispor de valores variáveis em função das necessidades individuais de cada cidadão.‖

Críticas podem ser dirigidas ao princípio do resgate por ele não discutir quanto se deve gastar com outros setores sociais concorrentes com a saúde. É uma ―caixa preta‖, um mistério sobre

quanto

a

comunidade

realmente

(MONTARROYOS, 2013, p.106).

gastaria

com

outros

serviços

públicos.

A defesa do igualitarismo, nesses termos, deve ser

repensada cuidadosamente, pois temos hoje formas caríssimas de assistência.Por isso, a saúde e a vida não podem mais ser discutidas sem se levar em conta os seus verdadeiros custos econômicos. A fim de se debater a justiça ideal, há que se buscar uma contribuição até certo ponto do princípio do resgate. (DWORKIN, 2005). A mensagem idealista desse princípio é importante, pois afirma que não podemos racionar a saúde usando a lógica do dinheiro. (MONTARROYOS, 2013, p.106) Como antítese à realização plena de tal princípio, custosa e paternalista, surgiram os defensores da liberdade plena do mercado de assistência médica, de forma a eliminar qualquer vantagem e subsídio para o cidadão, que deveria, nesse caso, usufruir do plano que ele viesse a escolher: o laissez-faire. Dworkin faz ressalvas a esse posicionamento citando o exemplo dos Estados Unidos, em que nem todos tem salário suficiente para entrar nesse mercado e nem sabem calcular ou avaliar o valor de um tratamento médico ou os riscos de saúde específicos. (DWORKIN, 2005). Dessa forma, o filósofo toma proveito de uma ideia contida no cerne do laissez-faire: a distribuição justa seria aquela em que as pessoas criam para si mediante suas escolhas individuais. Entretanto, é fundamental para o filósofo que essas pessoas sejam bem informadas e que, primordialmente, o sistema econômico e a distribuição da riqueza da comunidade na qual tais escolhas são feitas sejam justos. Assim, ao definir o princípio do seguro prudente, supõe que a distribuição de recursos foi a mais equitativa possível. Em segundo lugar, supõe que os indivíduos têm conhecimento sobre toda a informação mais recente sobre o custo e os efeitos secundários dos procedimentos médicos particulares. Por fim, supõe que ninguém, inclusive as companhias de 85


seguro, obteve informações disponíveis sobre a probabilidade de que um indivíduo contraia algum tipo de enfermidade específica ou sofra um determinado tipo de acidente. (DWORKIN, 2005, p.338). Portanto, enquanto o princípio do resgate direciona para o máximo estatal, o princípio do seguro prudente aponta para zero-estatal, desde que, frize-se, esteja-se diante de um contexto justo e bem ordenado, supostamente existente nesse modelo fictício. Se é certo que a maioria das pessoas estaria dispostas a comprar certo nível de cobertura médica em um mercado livre e justo, então, é a desigualdade de nossa sociedade a razão pela qual muitos dos indivíduos não possuem seguros. (DWORKIN, 2005, p.342). Assim, aplicado o princípio do seguro prudente na prática, tem-se que uma comunidade deve gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da comunidade em questão, de prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros competitivo em igualdade de condições. O mecanismo do seguro hipotético justifica a redistribuição de recursos sem a necessidade de presunções questionáveis sobre as causas das desigualdades materiais entre as pessoas, como ocorre com o ―princípio da diferença‖ de Rawls. Caso o seguro estivesse disponível em condições de igualdade, todos o teriam adquirido para a cobertura dos riscos de não possuir recursos para levar uma boa vida. Qual seria, portanto, o limite mínimo justo de redistribuição nos casos de desigualdades materiais decorrentes de circunstâncias, em que é impossível eliminar as diferenças sem levar a sociedade à falência? Para o filósofo ouriço, o mecanismo do seguro não elimina as tais desigualdades, mas minimiza-as, proporcionando uma resposta realista e justa à questão, pois torna as pessoas iguais em face do risco. Dworkin propôs claramente que juntássemos o principio do resgate com o princípio do seguro prudente, e, nesse momento, ao entrar no domínio da discussão socioológica, sua proposta experimenta enormes turbulências ambientais, causando críticas decepcionantes, como aquela apontada brilhantemente pelo professor Ferraz e outros analistas. Conforme notamos anteriormente, a solução da igualdade de recursos implicaria uma série de características mistas que, no final, deixariam estranhamente uma grande faixa de pessoas em estado subótimo do ponto de vista não só econômico, ou político, mas também no aspecto existencialista, pois, efetivamente, muitos cidadãos não teriam recursos econômicos para maximizar as suas preferências e suas responsabilidades existenciais no plano da saúde individual. (MONTARROYOS, 2013, p.111)

5.5

CRÍTICAS AO SEGURO HIPOTÉTICO

86


Qual seria, no modelo de seguro hipotético proposto por Dworkin, a situação daqueles que escolhessem não adquiri-lo caso fosse disponível no mundo real? Seria moralmente justificável negar-lhes cuidados de emergência na hipótese do risco se concretizar? Para o filósofo, mesmo que a disponibilidade de tal seguro em condições justas no mercado ideal seja improvável, caso ele existisse, haveria bons motivos para impor o seguro como obrigatório, a fim de proteger tanto o indivíduo de escolhas equivocadas, quanto a sociedade dos custos com os quais teria de arcar em decorrência dessas escolhas. (DWORKIN, 2005, p.114-115). Entretanto, para Ferraz (2007): Ou Dworkin admite que o ideal da igualdade não é ‗soberano‘ em todas as situações, ou tem que aceitar a crítica de que sua teoria, levada às últimas consequências, de fato recusaria qualquer compensação para aqueles que não tivessem adquirido o seguro mesmo tendo a oportunidade de fazê-lo. Na primeira hipótese, que entendo mais adequada, estaria abdicando porém de sua autodefinição como pensadorouriço, na famosa classificação de Isaiah Berlin. (FERRAZ, 2007, p.253)

A afimação de que o filósofo recusaria qualquer compensação àqueles que não tivessem adquirido o seguro não se coaduna com a totalidade da teoria propugnada por Dworkin: Na verdade, deve ser garantido o mínimo existencial da parte do Estado; e nesse contexto, ainda, o monitoramento de um órgão democrático especializado no tema da saúde seria fundamental para estabelecer padrões legítimos de serviços públicos na comunidade. Além disso, a maioria e as minorias deveriam participar na definição de prioridades de atendimento; também a liberdade de escolha estaria disponível para quem desejasse comprar planos complementares além do básico que teria sido estipulado pelo Governo, via Conselho Nacional de Saúde; e esse complemento não seria subsidiado pelo poder público. Além do mais, no dia a dia da igualdade de recursos, seria totalmente aceitável, segundo ele, que a intervenção do governo, às vezes, acontecesse com a intenção de garantir as circunstancias nas quais deveriam ocorrer as escolhas individuais, ao mesmo tempo, incentivando o cidadão a assumir a responsabilidade direta sobre o destino de sua própria vida pessoal. (MONTARROYOS, 2013, p.111)

Dessa forma, para que a comunidade assegure a igualdade de recursos, deve oferecer o mínimo existencial, propiciando a mesma quantidade de recursos assistenciais públicos na base, que pode ser, ou não, maximizado pela liberdade de escolha e responsabilidade de cada um na sociedade, uma vez que o filósofo admite a possibilidade de que aquelas pessoas dispostas a gastar mais em atendimento especial realizem o pagamento através de um seguro complementar.

6

CONCLUSÃO

87


As lições trazidas por Jeromy Waldron são de extrema valia para o esclarecimento da importância das teorias de justiça para a análise dos direitos socioeconômicos. A partir de sua análise, verifica-se a insuficiência das teorias de direitos para a justificação moral desses direitos, e no tocante a decisões sobre conflitos que envolvam outras reivindicações. Além disso, demonstra que a urgência de tais demandas é óbvia por vivermos em um mundo real e desigual, entretanto, os impactos trazidos por sua efetivação nas perspectivas de vida dos indivíduos, e também da sociedade como um todo, só são considerados a partir de um mundo ideal, abstrato. A teoria de Rawls é importante para definir os princípios básicos de justiça que regem a estrutura da sociedade, mas insuficiente, de forma proposital, para questões como políticas públicas. Assim, verifica-se a importância da teoria de Daniels, ao ampliar o conceito de oportunidades de Rawls, e assim, incluir a saúde na lista de bens primários, elaborando uma justificativa moral plausível para a assistência médica universal. Entretanto, apesar de tentar fornecer uma distinção, não fica claro o porquê de outras demandas não serem inclusas nessa lista, como a alimentação, que também é distribuída desigualmente e, num contexto mais amplo, também pode ser extremamente custosa para quem recebe salários mínimos. Por fim, a teoria de Ronald Dworkin é a que parece melhor se adequar às exigências da igualdade, por também dar relevante importância à responsabilidade decorrente de escolhas livres. Através de sua teoria, é possível uma alternativa à aplicação extremada do princípio do resgate, pois seu liberalismo existencialista não busca a satisfação das necessidades dos indivíduos e, por conseguinte, de uma igualdade ex post, que ignora os gostos dispendiosos, mas sim, proporciona a ideia de uma igualdade ex ante, através da hipótese do leilão hipotético. Como não vivemos nesse mercado ideal, não existe uma distribuição justa dos recursos, motivo pelo qual existem tantas desigualdades. Por conseguinte, defende a hipótese do seguro hipotético no campo da saúde: a comunidade deve gastar coletivamente em saúde a cobertura que pessoas médias da comunidade em questão, de prudência normal, teriam contratado num mercado de seguros competitivo em igualdade de condições, assegurando àqueles que desejarem um seguro complementar. Garante, assim, a proteção do ideal de igualdade e da liberdade, uma posição intermediária entre o laissez-faire e o ―welfare state‖ e do individualismo e comunitarismo.

REFERÊNCIAS

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BIOÉTICA E POLÍTICAS PÚBLICAS: O DESAFIO DESENVOLVIMENTISTA Luis Carlos dos Santos Lima Sobrinho 1 Sumário:1 Introdução. 2 Desenvolvimento. 2.1 Políticas públicas bioéticas em ciência e tecnologia. 2.2 Políticas públicas bioéticas em meio ambiente e energia. 2.3 Políticas públicas bioéticas em agropecuária e controle biológico. 2.4 Políticas públicas bioéticas em saúde. 2.5 Políticas públicas bioéticas em biossegurança e defesa nacional. Conclusões. Referências.

1

Doutorando em Ciências Jurídicas vinculado ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal da Paraíba (desde 2014), Mestre em Administração pela Universidade Federal da Paraíba (2007), Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera (2010), Master Business Administration em Gestão de Negócios pela Fundação Getúlio Vargas (2004), Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2004) e Bacharel em Administração pela Universidade Federal da Paraíba (2003). Atualmente atua como Professor Assistente da Universidade Federal da Paraíba, Pesquisador do Laboratório Internacional de Investigação em Transjuridicidade – LABIRINT e Consultor Jurídico membro da Comissão de Direito Sanitário e Biodireito da OAB/PB, com experiência nas áreas de Administração Pública e Privada e Direito Público, em diversas especialidades.

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1 INTRODUÇÃO

Diante da acelerada evolução dos meios de produção e da infra-estrutura em tecnologias da informação, verifica-se uma realidade de constantes mudanças caracterizada pela instabilidade e incerteza quanto ao futuro das nações, processo este marcado por intensos dilemas morais no seio da chamada ―era da informação‖. Questiona-se então o papel dos Estados enquanto provedores do bem-estar geral da coletividade diante do avanço da ciência e da tecnologia, tendo em vista a recorrente ineficiência na condução de suas principais políticas públicas, em especial no que tange a áreas estratégicas como saúde, meio ambiente, alimentação e segurança. Nessa linha, o presente estudo qualitativo e exploratório se justifica por focar o contexto das políticas públicas no campo da Bioética, valendo-se de uma abordagem multidisciplinar que tem como principais objetivos analisar os principais marcos históricos na condução de ações governamentais e intergovernamentais relacionadas a essa ciência e sugerir medidas de reflexão acerca do futuro da comunidade global diante dos desafios impostos pelos novos tempos, o que se faz na sequência.

2 DESENVOLVIMENTO

Compreendendo as políticas públicas como programas de ação governamentais destinados a alcançar objetivos previamente determinados, é possível distingui-las da política propriamente dita, que se materializa no debate acerca das questões fundamentais de interesse da sociedade, travadas no seio da sociedade politicamente organizada, que é o Estado em si. Nesse sentido, pode-se dizer que o estudo das políticas públicas situa-se, antes de mais nada, tanto no campo das ciências políticas, por incluir o debate político e suas peculiaridades, quanto no campo da teoria geral do Estado, uma vez que as idéias discutidas materializam-se em ações estratégicas a serem desenvolvidas por órgãos e entidades componentes da estrutura jurídico-administrativa estatal. Bucci (2006, p. 19) comenta sobre importante distinção no campo de estudo ora em análise, referindo-se às políticas de Estado e às políticas de governo: A política pública tem um componente de ação estratégica, isto é, incorpora elementos sobre a ação necessária e possível naquele momento determinado, naquele conjunto constitucional e projeta-os para o futuro mais próximo. No entanto, há políticas cujo horizonte temporal é medido em décadas – são as chamadas

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―políticas de Estado‖ – e há outras que se realizam como partes de um programa maior, são as ditas ―políticas de governo‖.

No campo do controle judicial, é possível que uma política pública seja julgada inconstitucional por desatender aos ditames constitucionais de um Estado, ainda que os atos ou normas que as estruturam não sejam considerados inconstitucionais, uma vez que o juízo de validade de uma política não se confunde com o juízo de validade das normas e atos que a compõem. Afora a discussão acima proposta, o fato é que as políticas públicas possuem previsão constitucional e infraconstitucional, permeando os sistemas jurídico-constitucionais da maioria dos Estados modernos, em especial aqueles regidos por Cartas Políticas dogmáticas de caráter dirigente ou programático, fazendo-se necessário, segundo Junges (1995), estudar suas principais vertentes no contexto interdisciplinar peculiar à ciência Bioética a fim de superar os principais desafios impostos pela modernidade. 2.1 POLÍTICAS PÚBLICAS BIOÉTICAS EM CIÊNCIA E TECNOLOGIA

Sabe-se que o período de transição do Século XX para o Século XXI foi marcado pela acelerada evolução tecnológica e científica e pela mudança dos paradigmas sociais, o que acarretou o acirramento dos debates quanto aos limites éticos decorrentes desse processo de desenvolvimento econômico e social. Nesse contexto, a Bioética visa a compreender os sentimentos de euforia e medo que emanam da sociedade global, dada a publicização em escala global dos supostos avanços científicos alcançados. O sentimento de proteção do ser humano passa a ser a principal preocupação dessa área do conhecimento humano, envolvendo conceitos como autonomia, dignidade, justiça e equidade. Considerando a existência de diversas ciências que estudam o fenômeno humano, a exemplo da Antropologia, da Sociologia e da Filosofia, não há que se falar em uma visão bioética dissociada de uma realidade gnosiológica de cunho integrativo. Logo, o argumento de que o cientista hodierno pode exercer plenamente seu potencial intelectual sem preocuparse com o comprometimento social não se sustenta, uma vez que se teria apenas um pequeno recorte de determinado problema, não a compreensão do todo. Segundo Silva (2009, p. 149):

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Se houve um tempo em que muitos pesquisadores acreditavam que sua firme determinação de fazer o bem, sua integridade de caráter e seu rigor científico eram suficientes para assegurar a eticidade das suas pesquisas, nos dias de hoje essa concepção já não é mais objeto de consenso.

Em virtude das novas tecnologias biológicas, a exemplo dos procedimentos de clonagem, mapeamento do genoma humano e manipulação de células-tronco embrionárias, não raras vezes se forma verdadeiro paradoxo entre os valores morais dos agentes sociais e a posição dos agentes socioeconômicos, que passam a pressionar aqueles a fim de ajustar a escala de valores vigente aos seus interesses econômico-financeiros. A biotecnologia é conceituada pela primeira vez no art. 2º da Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (1992, p. 2), significando ―... qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos, organismos vivos ou seus derivados para fabricar ou modificar produtos ou processos para utilização específica‖. Em caráter complementar, os recursos biológicos ―... compreendem recursos genéticos, organismos ou parte destes, populações ou qualquer outro componente biótico de ecossistemas, de real ou potencial utilidade ou valor para a humanidade‖. Fontinele Júnior (2007) comenta que ―a biotecnologia desponta como um novo paradigma científico para o saber e o fazer, porém, tal paradigma amplia sobremaneira o poder humano de atuação, aumentando, com isso, a probabilidade do surgimento de riscos ligados a suas práticas‖. Questão curiosa diz respeito ao compartilhamento ou transferência de conhecimentos biotecnológicos e distribuição de seus benefícios, com vistas ao desenvolvimento das nações. A Convenção sobre Diversidade Biológica das Nações Unidas (2014, p. 9), realizada em 1992, dispôs em seus arts. 16 a 19 que: Art. 16. Cada Parte Contratante, reconhecendo que a tecnologia inclui a biotecnologia, e que tanto o acesso à tecnologia quanto sua transferência entre Partes Contratantes são elementos essenciais para a realização dos objetivos desta Convenção, comprometem-se, sujeito ao disposto neste artigo, a permitir e/ou facilitar a outras Partes Contratantes acesso a tecnologias que sejam pertinentes à conservação e utilização sustentável da diversidade biológica ou que utilizem recursos genéticos e não causem dano sensível ao meio ambiente, assim como a transferência dessas tecnologias. Art. 17. As Partes Contratantes devem proporcionar o intercâmbio de informações, de todas as fontes disponíveis do público, pertinentes à conservação e à utilização sustentável da diversidade biológica, levando em conta as necessidades especiais dos países em desenvolvimento.

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Art. 18. As Partes Contratantes devem promover a cooperação técnica e científica internacional no campo da conservação e utilização sustentável da diversidade biológica, caso necessário, por meio de instituições nacionais e internacionais competentes. Art. 19. Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso, para permitir a participação efetiva, em atividades de pesquisa biotecnológica, das Partes Contratantes, especialmente países em desenvolvimento, que provêem os recursos genéticos para essa pesquisa, e se possível nessas Partes Contratantes.

Valenzuela (2007) refere-se à biopolítica como importante meio de consecução dos ideais desenvolvimentistas em áreas estratégicas da vida humana. A Bioética passa, então, a impor à humanidade a responsabilidade por sua própria identidade e pela compreensão do que seria ou não ―humano‖, trespassando os conhecidos princípios da autonomia, beneficência, não maleficência e justiça e preservando a vida humana em sua plenitude, de modo que a visão meramente utilitarista deste modelo ético seja efetivamente superada. Aborda-se a seguir as principais aplicações bioéticas no campo das políticas públicas. 2.2 POLÍTICAS PÚBLICAS BIOÉTICAS EM MEIO AMBIENTE E ENERGIA Diante do argumento de que a humanidade vive uma severa crise ambiental, marcada pela degradação da natureza e pela escassez dos recursos naturais indispensáveis a sua subsistência, surgiram movimentos a respeito da necessidade de harmonia entre o homem e o meio-ambiente. Doutrinariamente, o conceito de ―ecologia profunda‖ foi dado por Arne Naess em 1973, filósofo norueguês que se inclui na tradição de pensamento ecológico-filosófico de Henry Thoreau e de Aldo Leopold, na sua ―ética da terra‖. Tal teoria surgia na tentativa de superação do paradigma de dominação da natureza pelo homem, que teria de se harmonizar com o meio em que vive. Dentre as principais idéias presentes no discurso ético-ambiental da ecologia profunda, destacam-se as seguintes: harmonia com a natureza, valor intrínseco da natureza, igualdade entre as diferentes espécies, objetivos materiais a serviço de objetivos de autorealização, recursos limitados do planeta, tecnologia apropriada e ciência não dominante, uso do necessário e manutenção de reciclagem, criação de biomas e reconhecimento das minorias.

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Em consequência das discussões acerca do papel dos Estados na preservação do meio-ambiente, editou-se em 1972, no âmbito das Nações Unidas, a Declaração sobre o Ambiente Humano (2014), cujas conclusões primárias seguem abaixo transcritas: Chegou-se a um momento da história em que devemos orientar nossos atos em todo o mundo atentando com maior solicitude para as conseqüências que eles possam trazer para o meio. Por ignorância ou indiferença podemos causar danos imensos e irreparáveis ao meio terráqueo, do qual dependem a nossa vida e o nosso bem-estar. Pelo contrário, com um conhecimento mais profundo e uma ação mais prudente podemos conseguir para nós e para nossa posteridade melhores condições de vida em um meio mais consentâneo com as necessidades do homem. As perspectivas de elevar a qualidade do meio e de criar uma vida satisfatória são grandes. O que se necessita é, a um tempo, entusiasmo e serenidade de ânimo; trabalho árduo, mas sistemático. Para chegar à plenitude de sua liberdade dentro da natureza, o homem deve aplicar seus conhecimentos para forjar, em harmonia com ela, um meio melhor. A defesa e a melhoria do meio humano para as gerações presentes e futuras converteram-se em um objetivo imperioso para a humanidade e deverão ser perseguidas ao mesmo tempo em que o são as metas fundamentais já estabelecidas da paz e do desenvolvimento econômico e social em todo o mundo e em conformidade com ambas (...). Para chegar a essa meta será mister que cidadãos e comunidade, empresas e instituições em todos os planos, aceitem as responsabilidades que lhes incumbem, e que todos participem eqüitativamente do labor comum. Homens de toda a condição e organizações de índoles diversas plasmarão, com aportes de seus próprios valores e a soma de sua atividade, o meio ambiente do futuro. Competirá às administrações locais e nacionais, dentro de suas respectivas jurisdições, a maior parte da responsabilidade no que se refere à promulgação de normas e à aplicação de medidas de âmbito geral sobre o meio. Também será necessária a cooperação internacional, com vistas a mobilizar recursos que ajudem os países em desenvolvimento a cumprir a parcela que lhes cabe dentro de sua alçada. E há um número cada vez maior de problemas relativos ao meio que, por seu alcance regional ou mundial, ou ainda, por repercutirem em âmbito internacional comum, requeiram uma ampla colaboração entre as nações e adoção de medidas pelas organizações internacionais em proveito de todos. A Conferência apela aos governos e aos povos que reúnam seus esforços para preservar e melhorar o meio humano em benefício do homem de sua posteridade.

A consequência foi a criação do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente – PNEUMA, visando a conscientizar os Estados quanto à urgência de se adotar um novo posicionamento diante das questões ambientais. Esse novo pensar sobre o meio ambiente uniu países industrializados e em desenvolvimento em torno de um objetivo comum, desencadeando uma série de Conferências Mundiais sobre temas como alimentação, moradia, população, direitos humanos e biodiversidade, dentre outros. De acordo com Sequinel (2002), uma avaliação dos dez anos pós-Estocolmo aconteceu sob a supervisão do PNEUMA, em Nairóbi, emergindo daí o clamor para a formação de uma Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, implementada em 1983. Passados quatro anos, os resultados dessa Comissão deram origem ao Relatório Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brundtland, cuja principal

95


recomendação era a realização de uma conferência mundial que direcionasse as questões do meio ambiente e do desenvolvimento ali levantadas. Após a publicação do Relatório Brundtland, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu realizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento no Rio de Janeiro, em 1992. Essa Conferência, também conhecida como ―Cúpula da Terra‖ ou Eco-92, tratou especialmente da gestão ambientalmente saudável da biotecnologia na Agenda 21 (2014), preconizando que: A proteção ambiental é um componente integrante do desenvolvimento sustentável. O meio ambiente está ameaçado em todos os seus componentes bióticos e abióticos: animais, plantas, micróbios e ecossistemas e diversidade biológica; água, solo e ar, que formam os componentes físicos de habitats e ecossistemas, e todas as interações entre os componentes da biodiversidade e seus manter habitats e ecossistemas. Com o aumento contínuo no uso de recursos químicos, energia e não-renováveis por uma população global em expansão, os problemas ambientais correlatos também irão aumentar. Apesar de ter aumentado os esforços para evitar o acúmulo de resíduos e para promover a reciclagem, a quantidade de danos ambientais causados pelo excesso de consumo, as quantidades de resíduos gerados e o grau de utilização insustentável da terra aparentemente continuará a crescer. (...) A necessidade de um capital genético variado de vegetais, animais e germoplasma microbiano para o desenvolvimento sustentável está bem estabelecida. A biotecnologia é uma das muitas ferramentas que podem desempenhar um papel importante no apoio à reabilitação de ecossistemas e paisagens degradados. Isso pode ser feito através do desenvolvimento de novas técnicas de reflorestamento e florestamento, de conservação de germoplasma e cultivo de novas variedades vegetais. A biotecnologia também pode contribuir para o estudo dos efeitos exercidos sobre os demais organismos e sobre outros organismos pelos organismos introduzidos nos ecossistemas.

A título de políticas públicas futuras, os países signatários deveriam: adotar processos de produção e utilização otimizada dos recursos naturais por meio de reciclagem da biomassa, recuperação da energia e minimização da geração de resíduos; promover o uso de biotecnologias, com ênfase na bioremediação do solo e da água, tratamento de resíduos, conservação do solo, reflorestamento e reabilitação dos solos; e aplicar as biotecnologias para proteger a integridade ambiental, com vistas à segurança ecológica a longo prazo. Especificamente, as ações podem ser traduzidas da seguinte forma: desenvolver alternativas ambientalmente saudáveis e melhorias para os processos de produção; desenvolver aplicações que minimizem a necessidade de insumos químicos sintéticos insustentáveis e maximizem o uso de produtos ambientalmente adequados, inclusive produtos naturais; desenvolver processos que reduzam a geração de resíduos e façam uso de materiais biodegradáveis; desenvolver processos para recuperar e fornecer fontes de energia renováveis, 96


alimentos para animais e matérias-primas provenientes da reciclagem de resíduos orgânicos e biomassa; desenvolver processos para remover poluentes do meio ambiente; desenvolver processos para aumentar a disponibilidade de materiais de plantio para uso no florestamento e reflorestamento e para melhorar o rendimento sustentável das florestas; desenvolver aplicações que aumentem a disponibilidade de material de plantio para a reabilitação e conservação dos solos; promover o uso de manejo integrado de pragas com base na utilização criteriosa de biocontrole de agentes; promover o uso adequado de fertilizantes biológicos no âmbito dos programas nacionais de fertilizantes; promover o uso de biotecnologias relevantes para conservação e estudo científico da diversidade biológica e para o uso sustentável dos recursos naturais; desenvolver tecnologias facilmente aplicáveis para o tratamento de esgoto e resíduos orgânicos; desenvolver novas tecnologias para a seleção rápida dos organismos com propriedades biológicas úteis; e promover novas biotecnologias para extração sustentável de recursos minerais. De acordo com Zamudio (2003), tais disposições poderiam resumir-se na conservação da diversidade biológica, na utilização sustentável de seus componentes e na participação justa e equitativa nos benefícios gerados pela utilização dos recursos biológicos, o que importava na identificação dos beneficiários legítimos da proteção dos conhecimentos tradicionais, no registro do direito de exploração e na sua valoração econômica, acarretando a transferência de tecnologia tradicional com base no consentimento informado prévio. Nesse sentido, mais de 160 governos assinaram a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (2014) na Eco-92, cujo objetivo era ―evitar interferências antropogênicas perigosas no sistema climático‖ a fim de proteger as fontes alimentares, os ecossistemas e o desenvolvimento social. Também se estabeleceu uma meta para que os países industrializados mantivessem suas emissões de gases estufa em 2000 nos níveis de 1990, sob a égide do ―princípio de responsabilidade comum e diferenciada‖, significando que todos os países têm a responsabilidade de proteger o clima, em especial os desenvolvidos. Em 1997, quando a Sessão Especial da Assembléia Geral das Nações Unidas, conhecida como Rio+5, foi realizada para revisar a implementação da Agenda 21, uma série de lacunas foram identificadas, particularmente no que se refere às dificuldades para se alcançar a eqüidade social e reduzir os níveis de pobreza. No mesmo ano elabora-se o Protocolo de Kyoto (2014), um novo componente da Convenção que contém, pela primeira vez, um ―acordo vinculante‖ que compromete os países do Norte a reduzir suas emissões. Em 2002, discutiu-se a questão ambiental no âmbito da Cúpula Mundial de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2014), também intitulada Rio+10, com 97


vistas à definição de um plano de ação global, capaz de conciliar as necessidades legítimas de desenvolvimento econômico e social da humanidade com a obrigação de manter o planeta habitável para as gerações futuras. Questões recentes têm suscitado a discussão em torno do uso de energia limpa pelos Estados, como a eólica e a solar, mas parece que o caminho percorrido gradual e lentamente pela maioria dos governos contemporâneos leva à utilização de similares aos derivados de petróleo, como a nafta e o diesel. É o caso de biocombustíveis como o bioetanol e o biodiesel. O bioetanol consiste em um álcool resultante da fermentação de culturas como milho, cana-de-açúcar, biomassa de celulose e derivados de fontes não-alimentares como árvores e gramíneas, também está sendo desenvolvido como matéria-prima para produção de etanol, comumente utilizado como combustível ou aditivo para aumentar a octanagem e melhorar as emissões dos veículos. Brasil e Estados Unidos são os maiores produtores e consumidores desses produtos. Já o biodiesel é feito a partir de óleos vegetais, gorduras animais ou reciclados, com aplicação principal a título de combustível para veículos também direcionada à redução da emissão de partículas, monóxido de carbono e hidrocarbonetos na atmosfera, bastante utilizado na Europa. No Brasil, foram desenvolvidas ações de preservação ambiental baseadas nos diversos acordos e tratados internacionais do qual o país é signatário, a exemplo da Política Nacional do Meio Ambiente, da Política Nacional sobre Mudança no Clima, da Política Nacional de Recursos Hídricos e da Política Nacional de Resíduos Sólidos, dentre outros. Em que pesem as iniciativas empreendidas, percebe-se que ainda não há consenso quanto à responsabilidade dos Estados no trato da questão ambiental, imperando um grande sentimento de frustração quanto à definição de políticas públicas destinadas à resolução dos principais problemas ambientais que assolam a humanidade, em especial a preservação de biomas como a selva amazônica, o combate à biopirataria, a diminuição dos efeitos do aquecimento global, a geração de energia limpa e o desenvolvimento sustentável das nações.

2.3 POLÍTICAS PÚBLICAS BIOÉTICAS EM AGROPECUÁRIA E CONTROLE BIOLÓGICO Burnquist (2014) comenta que, nos últimos anos, a biotecnologia tem contribuído para o desenvolvimento de plantas mais resistentes e melhor adaptadas às diversidades ambientais e para o aprimoramento genético animal, em especial no que tange a geração de 98


métodos específicos e sensíveis de diagnóstico de patologias, novas vacinas, clonagem de animais de interesse pecuário, emprego de marcadores moleculares em programas de melhoramento genético, desenvolvimento de plantas transgênicas e de biopesticidas, dentre outros. Os recentes avanços da genética molecular, principalmente no que se refere ao seqüenciamento de genomas, abrem novas perspectivas expandidas pela bioinformática, que tendem a disponibilizar mais genes e seqüências regulatórias a serem incorporados ao agronegócio. Objetivando o aumento da sustentabilidade na agricultura e a preservação dos recursos naturais e dos agroecossistemas, a bioética desenvolve pesquisas para o controle biológico de insetos-praga e fitopatógenos, como bactérias para uso na agricultura e na saúde humana, fungos para controle de fitopatógenos e plantas daninhas, além de insetos vetores de doenças nos animais e no homem, além de reduzir o uso de defensivos agrícolas empregados no manejo integrado de pragas. Brustolin (2010) conclui que a aplicação de biotecnologia na área agropecuária destina-se então a proporcionar novas adequações aos setores industriais e comerciais, com o fito de fomentar políticas públicas direcionadas especialmente ao combate à fome e à miséria. As pesquisas envolvem estudos das interações entre os seres vivos no meio ambiente e identificação e uso de inimigos naturais e antagonistas, tais como predadores, parasitóides e microrganismos específicos para controlar os insetos-alvo, a exemplo de hiperparasitismo, antibiose e competição. De acordo com o Centro Nacional de Recursos Genéticos e Biotecnologia – CENARGEN da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária – EMBRAPA (2014), as principais linhas de pesquisa da bioética no campo da agropecuária e do controle biológico são:

a)

ecologia e biossegurança: estudos sobre controle biológico conservativo e

avaliação de impacto ecológico de inimigos naturais e organismos geneticamente modificados sobre espécies não-alvo e serviços do agroecossistema, além de avaliação a campo de agentes de controle biológico e estudos ecológicos das interações insetos-praga; b)

semioquímicos: análise da biologia, ecologia e comunicação de insetos para

uso na agricultura visando à detecção e ao monitoramento de pragas agrícolas, seja

99


com o uso de substâncias atraentes ou repelentes ao próprio herbívoro ou por meio do manejo de seus inimigos naturais; c)

genética molecular de microorganismos e de invertebrados: pesquisas quanto à

biologia molecular de fungos, bactérias e vírus com aplicação de ferramentas de bioinformática na identificação taxonômica de microrganismos e invertebrados, emprego de metodologias de transformação de fungos filamentosos e uso de baculovírus como vetor de expressão gênica; d)

controle microbiano de fitopatógenos, pragas agrícolas e insetos vetores de

doenças: isolamento, identificação, caracterização, conservação e avaliação de fungos, bactérias e vírus com potencial de uso como agentes de controle biológico; e)

cultivo de microrganismos: cultivo de agentes de controle biológico, produção

de metabólitos e produção de produtos de biocontrole; f)

coleções de culturas microbianas: proteção do patrimônio genético de

microrganismos que possuam potencial de utilização como agentes em controle biológico de insetos-praga, doenças agrícolas e insetos vetores de doenças; g)

conservação in situ: envolve estudos de ecologia para o manejo da vegetação

nativa e dos recursos genéticos associados e para a indicação de áreas prioritárias para conservação; h)

conservação de sementes: objetiva conservar sementes em câmaras frias para

que permaneçam viáveis por até cem anos, tudo a fim de garantir a variabilidade genética para a alimentação e para agricultura; i)

conservação in vitro e criopreservação: destina-se a preservar espécies vegetais

em coleções de germoplasma in vitro ou em um criobanco, em condições de crescimento lento; j)

preservação de espécies animais: a conservação é feita in situ em núcleos de e

ex situ com o armazenamento de sêmen, embriões e ovócitos, formando um banco de material genético;

Cabe destacar a figura dos alimentos transgênicos e de espécies animais clonadas ou geneticamente modificadas, que supostamente poderiam reduzir o problema da fome mundial, visto que aumentariam a produtividade de variadas culturas. Ocorre que estudos como o do ganhador do Prêmio Nobel de Economia, Amartya Sen, sustentam que o problema da fome no mundo hoje não é ligado à escassez ou à baixa produção de alimentos, mas sim à sua injusta

100


distribuição em função da baixa renda das populações pobres, o que se contrapõe à utilização da biotecnologia agropecuária na consecução daqueles objetivos. É o caso de se rever programas de colaboração internacional como o Fundo Internacional de Desenvolvimento Agrícola e o Fundo Global de Combate à Fome, à Pobreza e à Extrema Pobreza, além de programas estatais como os atualmente adotados pelo Brasil, traduzidos nas Políticas Nacionais de Alimentação e de Segurança Nutricional, no Fundo Nacional de Combate à Pobreza e nos Programas Fome Zero e Bolsa Família, em virtude do caráter eleitoreiro de boa partes das aludidas políticas públicas, por meio das quais se formam contingentes de miseráveis eternamente dependentes do Estado. Como resultado do empreendimento de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da agropecuária e do controle biológico, espera-se minimizar os impactos negativos causados pelo uso de pesticidas químicos, melhorar o manejo das doenças de plantas e promover aumento de produtividade, reduzir a dependência de agroquímicos e recuperar as condições ambientais ideais, englobando espécies de interesse para a produção animal, agronegócio do leite, indústrias de alimentos e agroenergia, o que deve ser acompanhado da capacitação da mão-de-obra e da geração de emprego e renda.

2.4 POLÍTICAS PÚBLICAS BIOÉTICAS EM SAÚDE

Para Silva (2009), Bioética e Epidemiologia são disciplinas de convivência multidisciplinar que atuam constantemente nas áreas de pesquisas de procedimentos e determinantes de agravos em saúde e políticas e serviços de saúde pública. No primeiro caso, os agravos ocasionadores de danos e mortes aos seres humanos surgem devido a fatores biológicos intrínsecos, genética individual, interação com fatores de risco e dependem até mesmo das relações socioculturais desenvolvidas pelos indivíduos. Já no segundo caso, as ações do governo e das instituições de saúde estão sujeitas à dinâmica dessas inter-relações e se expressam por meio das políticas públicas em saúde. Nesse sentido, as políticas de saúde devem trazer respostas que incorporem a dimensão bioética às necessidades sociais, considerando as prioridades e urgências que lhe são comuns. O critério comumente utilizado é o da equidade no empreendimento das medidas de promoção, proteção e recuperação da saúde, perpassando dilemas morais como autonomia da vontade versus manutenção do bem-estar e agregando princípios como solidariedade, responsabilidade, gratuidade, vinculação, cobertura das necessidades e intervencionismo.

101


Importante destacar o conceito dado em 1946 pela Constituição da Organização Mundial de Saúde – OMS (2014, p. 1), que define saúde como ―um estado de completo bemestar físico, mental e social e não apenas a ausência da afecção ou doença‖. Em termos de políticas públicas, tal conceito é conexo a outros preceitos, destacando-se os seguintes: Os resultados conseguidos por cada Estado na promoção e proteção da saúde são de valor para todos; a saúde de todos os povos é essencial para conseguir a paz e a segurança e depende da mais estreita cooperação dos indivíduos e dos Estados; o desigual desenvolvimento em diferentes países no que respeita à promoção de saúde e combate às doenças, especialmente contagiosas, constitui um perigo comum; a extensão a todos os povos dos benefícios dos conhecimentos médicos, psicológicos e afins é essencial para atingir o mais elevado grau de saúde; e os Governos têm responsabilidade pela saúde dos seus povos, a qual só pode ser assumida pelo estabelecimento de medidas sanitárias e sociais adequadas.

Em 1948, as Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura – UNESCO (2014) editaram a Declaração Universal dos Direitos do Homem, prevendo em seu art. 22 que: Art. 22. Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade.

Percebe-se que no período de pós-guerra ecoava o clamor pela preservação da raça humana, apesar das diferenças entre os povos. Não obstante, no ano de 1997, a Declaração Universal sobre o Genoma Humano e os Direitos Humanos da UNESCO (2014) incorporava em seus arts. 5º e 9º novos princípios como a confidencialidade, o consentimento informado e o respeito à dignidade humana, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais, reforçados em 2003 por meio da Declaração Internacional sobre os Dados Genéticos Humanos, adotada pela UNESCO (2014), em especial no seu Art. 8º, veja-se: Art. 5º. (...) pesquisa sem perspectiva de benefício direto à saúde apenas poderá ser efetuada em caráter excepcional, com máxima restrição, expondo-se o indivíduo a risco e incômodo mínimos e quando essa pesquisa vise contribuir para o benefício à saúde de outros indivíduos na mesma faixa de idade ou com a mesma condição genética, sujeita às determinações da legislação e desde que tal pesquisa seja compatível com a proteção dos direitos humanos do indivíduo. (...) Art. 9º. Visando a proteção de direitos humanos e liberdades fundamentais, limitações aos princípios do consentimento e da confidencialidade somente poderão

102


ser determinadas pela legislação, por razões consideradas imperativas no âmbito do direito internacional público e da legislação internacional sobre direitos humanos. (...) Art. 8º. O consentimento prévio, livre, informado e expresso, sem tentativa de persuasão por ganho pecuniário ou outra vantagem pessoal, deverá ser obtido para fins de recolha de dados genéticos humanos, de dados proteômicos humanos ou de amostras biológicas, quer ela seja efetuada por métodos invasivos ou não-invasivos, bem como para fins do seu ulterior tratamento, utilização e conservação, independentemente de estes serem realizados por instituições públicas ou privadas. Só deverão ser estipuladas restrições o princípio do consentimento por razões imperativas impostas pelo direito interno em conformidade com o direito internacional relativo aos direitos humanos.

Especificamente, políticas públicas de cunho bioético em saúde foram inseridas em 2005 na Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos da UNESCO (2014), dispondo em seus arts. 1º, 2º alíneas ―a‖ e ―b‖, 14 e 20 o que se segue: Art. 1º. A presente Declaração trata das questões de ética suscitadas pela medicina, pelas ciências da vida e pelas tecnologias que lhes estão associadas, aplicadas aos seres humanos, tendo em conta as suas dimensões social, jurídica e ambiental. A presente Declaração é dirigida aos Estados. Permite também, na medida apropriada e pertinente, orientar as decisões ou práticas de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas. Art. 2º. A presente Declaração tem os seguintes objetivos: a) proporcionar um enquadramento universal de princípios e procedimentos que orientem os Estados na formulação da sua legislação, das suas políticas ou de outros instrumentos em matéria de bioética; b) orientar as ações de indivíduos, grupos, comunidades, instituições e empresas, públicas e privadas; (...) Art. 14. A promoção da saúde e do desenvolvimento social em benefício dos respectivos povos é um objetivo fundamental dos governos que envolve todos os setores da sociedade. (...) Art. 20. Será conveniente promover uma gestão apropriada e uma avaliação adequada dos riscos relativos à medicina, às ciências da vida e às tecnologias que lhes estão associadas.

Ante o exposto, faz-se necessário analisar alguns dos principais temas de natureza bioética que servem de base para a formulação de políticas públicas em saúde, quais sejam: 103


a)

mapeamento do genoma humano: tendo o Projeto Genoma Humano como

precursor, tal manipulação consistiu num esforço internacional para o mapeamento do genoma humano e a identificação de todos os nucleótidos que o compõem. Dentre suas principais aplicações, destacam-se o desenvolvimento de fármacos mais potentes e de vacinas genéticas que funcionam pela administração de trechos do material genético do patógeno, o que pode auxiliar no diagnóstico e cura de doenças como cancro, obesidade, diabetes, doenças auto-imunes e hipertensão. Os críticos do projeto, no entanto, alertavam para o perigo do uso indevido das informações genéticas e para a criação de uma cultura eugenética, na qual se idealizam seres humanos perfeitos; b)

clonagem: consiste em um mecanismo comum de propagação da espécie em

plantas ou bactérias. Os clones são compreendidos como uma população de moléculas, células ou organismos que se originaram de uma única célula e que são idênticas à célula original e entre elas. Ressaltem-se os dilemas éticos acerca da identidade dos sujeitos objeto da clonagem humana e dos direitos fundamentais envolvidos no procedimento, uma vez que as experiências em animais mostram problemas de saúde como placentas anormais, gigantismo, defeitos cardíacos, problemas pulmonares e imunológicos, falha na produção de leucócitos e defeitos musculares, dentre outros; c)

reprodução assistida: no campo do planejamento familiar, a inseminação

artificial heteróloga é a técnica de reprodução assistida que envolve a doação de gametas de terceiro anônimo estranho ao casal, seja por impossibilidade biológica do homem ou da mulher quanto à reprodução. O caso em análise envolve discussões como o conflito entre o direito ao conhecimento da ascendência genética por parte do ser gerado e o direito à intimidade do seu pai biológico e doador do material genético, um problema que envolve os chamados direitos fundamentais de quarta geração e uma nova discussão a respeito do Direito de Família; d)

manipulação de células-tronco: as células-tronco possuem capacidade de auto-

replicação, o que implica em gerar uma cópia idêntica de si mesma com potencial de diferenciar-se em vários tecidos, podendo ser obtidas por meio de clonagem terapêutica e a partir do corpo humano ou de embriões descartados para fins de reprodutivos. A principal vantagem da manipulação de células-tronco embrionárias é a fabricação de células pluripotentes, capazes de produzir qualquer tecido em 104


laboratório, supostamente permitindo o tratamento de doenças cardíacas, cânceres e de doenças neurológicas como Alzheimer e Parkinson, além da reconstituição de medula óssea e de tecidos queimados ou destruídos com menor risco de rejeição. Ocorre que, no caso de doenças genéticas, o doador não poderá ser o paciente, uma vez que todas as suas células têm o mesmo defeito genético. Acrescente-se o debate acirrado acerca da origem da vida e da possibilidade de manipulação dessas células; e)

transplantes de órgãos: com a combinação das técnicas de clonagem

terapêutica e de manipulação de células-tronco embrionárias, seria possível desenvolver órgãos em laboratório a fim de suprir a carência de doadores em bancos de órgãos, além de os riscos de rejeição poderem diminuir com a utilização de material genético compatível com a do transplantado; f)

envelhecimento: a

descoberta

de

mutações genéticas associadas ao

envelhecimento biológico em humanos pode permitir o tratamento genético das predisposições ao desenvolvimento de problemas de saúde em determinado momento da vida dos indivíduos, o que implicaria no aumento da sua expectativa de vida; g)

manipulação genética em atletas: como afirma Vargas (2009), os benefícios

pretendidos no melhoramento da estrutura físico-molecular e no condicionamento físico dos atletas devem respeitar os limites impostos pela própria prática esportiva, na medida em que a busca pela quebra de recordes e conquista de medalhas não pode se basear em doping genético.

O Brasil destaca-se por ter empreendido ao longo dos últimos anos a Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação em Saúde, a Política Nacional de Saúde Bucal, a Política Nacional sobre Drogas e a Política Nacional de Gênero no contexto do Sistema Único de Saúde – SUS, em que pese a precariedade da rede pública de serviços oferecidos à população. Segundo Marques (1996), apesar da necessidade patente de formulação de políticas públicas na área de saúde, fruto da transição epidemiológica decorrente do envelhecimento da população, do aumento das doenças crônico-degenerativas, da resistência de várias doenças infecto-contagiosas e do surgimento de novos males, é fato que a escassez de recursos frente a necessidades e demandas cada vez maiores tem se tornado um problema de difícil equacionamento para praticamente todos os sistemas públicos de saúde existentes. Com base em Bergel e Minyersky (2003), conclui-se que o custo econômico, social e psicológico do sonho da medicina moderna nem sempre é sustentável diante da realidade 105


social que se apresenta, o que interfere significativamente nas políticas de saúde dos Estados, uma vez que o objetivo é a justa distribuição, ao mesmo tempo universal e integral, de bens fundamentais para as diferentes parcelas da sociedade.

2.5

POLÍTICAS

PÚBLICAS

BIOÉTICAS

EM

BIOSSEGURANÇA E

DEFESA

NACIONAL

A atividade de segurança nacional consiste no empreendimento de estratégias econômicas, militares, políticas e diplomáticas visando à segurança dos Estados e à preservação dos valores defendidos pela sociedade. O aparato de segurança nacional depende em grande parte de uma combinação de práticas de gestão e capacidade técnica, tomando por base sistemas internos de educação e de comunicação que podem proporcionar diferenciais competitivos em relação a outros Estados, determinando, assim, seu sucesso ou fracasso. Em países como o Brasil, emergem ações menos pretensiosas que em outros Estados mais desenvolvidos, materializadas na Política Nacional de Defesa, na Política Nacional de Mobilização e na Estratégia Nacional de Defesa. Ocorre que, atualmente, incidem questões mais abrangentes como a biossegurança, que consiste no conjunto de técnicas e procedimentos que visam a evitar ou controlar os riscos provocados pelo uso de agentes químicos, físicos e biológicos à biodiversidade. De acordo com Clemente (2004), surgia então a necessidade de os Estados tratarem a questão da biossegurança em função de ameaças como guerras biológicas e bioterrorismo. Apesar de a questão parecer recente, tal preocupação remonta ao ano de 1925, quando se elaborou o Protocolo para a Proibição do Uso na Guerra de Gases Asfixiantes, Venenosos e outros e de Métodos Bacteriológicos de Guerra, comumente intitulado Protocolo de Genebra (2014), declarando preambularmente que; A utilização na guerra de gases asfixiantes, tóxicos ou outros e de todos os líquidos análogos, materiais ou equipamentos foi condenada pela justiça e pela opinião geral do mundo civilizado, a proibição de tal uso foi declarada em tratados dos quais a maioria dos poderes do mundo são Partes e a fim de que esta proibição seja universalmente aceita como uma parte do Direito Internacional, ligando tanto a consciência e a prática das nações.

Reafirmando tais ideais, editou-se em 1972 a Convenção sobre a Proibição do Desenvolvimento, Produção e Armazenamento de Armas Bacteriológicas (Biológicas) e

106


Tóxicas e sobre sua Destruição, mais conhecida como a Convenção de Armas Biológicas – BWC (2014), dispondo em seus arts. 1º, 4º e 10º, inciso I o que se segue: Art. 1º. Cada Estado Parte na presente Convenção se compromete a nunca, em qualquer circunstância, desenvolver, produzir, estocar ou adquirir ou manter: microbiológicos, outros agentes biológicos ou toxinas, independentemente da sua origem ou método de produção, de tipos e em quantidades que não justificados para profilaxia, proteção ou outros fins pacíficos; armas, equipamentos ou vetores destinados a esse uso agentes ou toxinas para fins hostis ou em conflitos armados. Art. 4º. Cada Estado Parte da presente Convenção, de acordo com seus processos constitucionais, tomará as medidas necessárias para proibir e impedir o desenvolvimento, produção, armazenamento, aquisição ou retenção dos agentes, toxinas, armas, equipamentos e vetores especificados no artigo I da Convenção, no território desse Estado, sob a sua jurisdição ou sob seu controle em qualquer lugar. (...) Art. 10º. (omissis) I – Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a facilitar e têm o direito de participar do mais amplo intercâmbio possível de equipamentos, materiais e informação científica e tecnológica para o uso de bacteriológicos (biológicos) e toxinas para fins pacíficos. Partes da Convenção em posição de fazê-lo devem também cooperar na individualmente ou em conjunto com outros Estados ou organizações internacionais para o desenvolvimento e aplicação do conhecimento científico no campo da bacteriologia (Biologia) para prevenção de doenças ou para outros fins pacíficos.

Em se tratando da exploração dos recursos biológicos para fins pacíficos, existe regulamentação da atividade na maioria dos Estados desenvolvidos ou em desenvolvimento. É o caso do Brasil, que propôs a Lei nº 11.105/05 ou Lei de Biossegurança (2014), cujo propósito consta do seu art. 1º, caput, acompanhado da vedação dos arts. 6º, inciso VI e 10º, parágrafo único, referentes ao procedimento de acompanhamento da liberação de material biológico por parte da Comissão Técnica Nacional de Biossegurança – CNTBio. Seguem abaixo transcritos os dispositivos legais em comento: Art. 1º. Esta Lei estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização sobre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte, a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pesquisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e o descarte de organismos geneticamente modificados – OGM e seus derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde humana, animal e vegetal, e a observância do princípio da precaução para a proteção do meio ambiente. (...)

107


Art. 6º. Fica proibido: VI – liberação no meio ambiente de OGM ou seus derivados, no âmbito de atividades de pesquisa, sem a decisão técnica favorável da CTNBio e, nos casos de liberação comercial, sem o parecer técnico favorável da CTNBio, ou sem o licenciamento do órgão ou entidade ambiental responsável, quando a CTNBio considerar a atividade como potencialmente causadora de degradação ambiental, ou sem a aprovação do Conselho Nacional de Biossegurança – CNBS, quando o processo tenha sido por ele avocado, na forma desta Lei e de sua regulamentação. (...) Art. 10. (omissis) Parágrafo único. A CTNBio deverá acompanhar o desenvolvimento e o progresso técnico e científico nas áreas de biossegurança, biotecnologia, bioética e afins, com o objetivo de aumentar sua capacitação para a proteção da saúde humana, dos animais e das plantas e do meio ambiente.

Em que pesem os esforços para regulamentar a biossegurança no âmbito das nações, o fato é que o risco da utilização de armas químicas e biológicas em guerras e em atentados terroristas continua eminente, considerando o triste histórico de liberação dos gases tóxicos sarin e tabun pelo Iraque no Irã na década de 80 e de urânio empobrecido na guerra da Bósnia em 1995, além do envio de correspondências contaminadas com antraz por terroristas a autoridades estadunidenses e a redes jornalísticas em vários pontos do globo no ano de 2001. Passa-se às conclusões do presente trabalho. CONCLUSÃO Discutindo-se o papel dos Estados no mundo moderno, seja ele o de regulador ou de interventor, é fato que a comunidade global demanda uma reformulação das políticas públicas atualmente empreendidas, tendo em vista a manutenção do equilíbrio político, econômicofinanceiro, social e ambiental das nações. Em relação ao desenvolvimento da Bioética como ciência autônoma, também subsiste a necessidade de os Estados compreenderem seu caráter interdisciplinar, a fim de melhor gerir seus recursos na condução de estratégias destinadas ao atendimento das necessidades mais urgentes da sociedade contemporânea. É o caso de áreas cruciais como ciência e tecnologia, uma vez que o não compartilhamento e a não difusão do conhecimento gerado com políticas públicas de pesquisa e desenvolvimento por parte dos Estados mais desenvolvidos faz com que o abismo entre os

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povos se torne cada vez maior, agravando a situação de pobreza e marginalização da maioria dos Estados periféricos e aumentando os riscos de uma submissão ainda maior. Nesse sentido, também não se justifica o argumento de desenvolvimento a qualquer custo, sobrepujando-se questões éticas inerentes aos seres humanos e ao meio-ambiente, pelo que se faz necessário respeitar os limites impostos pela própria natureza, desencadeando, assim, um processo racional e motivado segundo o qual cada indivíduo tem sua importância peculiar. A saúde passa, então, a demandar um maior número de técnicas destinadas à melhoria das condições de vida das pessoas. Contudo, não devem as biotecnologias se prestar a simplesmente atender a interesses egoísticos e narcisistas financiados por uma mentalidade que valoriza mais o ter do que o ser, mas sim fazer com que o incremento na qualidade de vida seja o ―carro chefe‖ de uma sociedade consciente e equilibrada. A garantia desse futuro certamente passa pela solução de problemas como a fome, o que justifica o implemento de políticas públicas destinadas ao melhoramento genético de raças e culturas, desde que, pelos mesmos argumentos há pouco expostos, a medida se justifique por questões éticas fundamentais. Finalmente, a defesa dos interesses nacionais não deve atentar contra a manutenção da paz e da harmonia no âmbito internacional, fazendo-se necessário rever o papel dos Estados na condução de suas principais políticas públicas de defesa e segurança nacional e estimular a cooperação mútua e a paz em escala global. É o que se espera de um mundo em constante transformação que, comumente, se abstém em preocupar-se com as gerações futuras e com a própria condição humana.

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EL DERECHO A LA SALUD EN LAS CÁRCELES: CUANDO LA DISCRIMINACIÓN PUEDE INCURRIR EN UN AGRAVANTE DE LA PENA Irene Victoria Massimino 1 Sumário: 1 El Derecho a la Salud en el Ordenamiento Jurídico Internacional. 2 El derecho a la salud en las cárceles. 3 Violación del derecho a la salud como agravante de la pena. 4 Conclusiones y recomendaciones. Referencias.

1

EL

DERECHO

A

LA

SALUD

EN

EL

ORDENAMIENTO

JURÍDICO

INTERNACIONAL

El Derecho a la salud es una parte esencial del conjunto de derechos humanos reconocidos en el ordenamiento jurídico internacional actual. Sin embargo, su incorporación dentro del grupo de los denominados derechos económicos, sociales y culturales ha traído algunas dificultades para determinar su definición y cumplimiento. Es por ello que, a los efectos de este trabajo, considero esencial dilucidar algunas cuestiones que permitirán al lector tener un conocimiento más exhaustivo del presente derecho. El derecho a la salud se proclamó por primera vez en 1946 con la Constitución de la Organización Mundial de la Salud (OMS) cuyo preámbulo define a la salud como ―un estado de completo bienestar físico, mental y social, y no solamente la ausencia de afecciones y enfermedades;‖ incorporando también por primera vez el concepto del ―goce del grado máximo de salud que se pueda lograr‖como un derecho fundamental de todo ser humano por igual, sin importar su condición particular (2000). El derecho a la salud se encuentra actualmente incorporado en el Artículo 25 inciso 1 de la Declaración Universal de Derechos Humanos (DUDH); en el Artículo 12 del Pacto Internacional de Derechos Económicos, Sociales y Culturales (PIDESC);implícitamente en los Artículos 5 y 26 de la Convención Americana de Derechos Humanos (CADH) sobre el derecho a la integridad personal y al desarrollo progresivo de los derechos económicos, sociales y culturales; en el Artículo 10 del Protocolo Adicional a la Convención Americana de Derechos Económicos, Sociales y Culturales ―Protocolo de San Salvador;‖en el Artículo 11 1

La autora es miembro de la Mesa Nacional y Comisión Directiva de la Asociación Pensamiento Penal; abogada de la Universidad Nacional de La Plata (Argentina); Master en Derechos Humanos de la Universidad de Londres (Reino Unido); Master en Leyes de la Universidad de Indiana (Estados Unidos); docente e investigadora de la Facultad de Derecho de la Universidad de Buenos Aires (Argentina) y Profesora Asociada de la Facultad de Derecho de la Universidad Nacional de Lomas de Zamora (Argentina).

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de la Carta Social Europea Revisada (CSE), e indirectamente en sus Artículos 3 y 4 sobre prohibición de la tortura y prohibición de la esclavitud y de trabajo forzado, respectivamente. 2 Está claro, entonces, que el derecho a la salud está ampliamente reconocido como un derecho fundamental para el respeto a la dignidad humana, máximo atributo del hombre objeto de protección del ordenamiento jurídico de derechos humanos, y para el goce y disfrute de otros derechos esenciales. Pero a pesar de su extensa inclusión legal, su significado y alcance ha tenido varios problemas interpretativos. Según la OMS y la Oficina del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos (OHCHR) es común asociar el derecho a la salud simplemente con el acceso a la atenciónde la salud y la construcción de hospitales y otros centros sanitarios (2008). Sin embargo, este derecho implica un conjunto mucho más amplio de factores determinantes de aquello que implica una vida sana. Es por ello, que el Comité de Derechos Económicos, Sociales y Culturales, encargado de interpretar el contenido y alcance de los derechos incorporados al PIDESC y de efectuar su seguimiento, estableció en su Observación General número 14 el significado del concepto ―derecho al disfrute del más alto nivel posible de salud,‖ estipulado en el artículo previamente citado (2000). Así pues el Comité incorporó los siguientes factores determinantes: agua potable y condiciones sanitarias adecuadas; alimentos aptos para el consumo; nutrición y vivienda adecuadas; condiciones de trabajo y un medio ambiente salubres; educación e información sobre cuestiones relacionadas con la salud, e igualdad de género (Ibíd.). Asimismo, el Comité estableció que el derecho a la salud comprende ciertas libertades como el derecho a no ser sometido a tratamiento médico sin consentimiento y a no ser sometido a tortura u otros tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes; así como al ejercicio de un conjunto de derechos tales como el derecho a un sistema de protección de la salud que brinde a todos iguales oportunidades para disfrutar del más alto nivel posible de salud; el derecho a la prevención y el tratamiento de las enfermedades, y la lucha contra ellas; el acceso a medicamentos esenciales; la salud materna, infantil y reproductiva; el acceso igual y oportuno a los servicios de salud básicos; el acceso a la educación y la información sobre cuestiones relacionadas con la salud (Ibíd.).

2

Otros tratados internacionales de derechos humanos en los que se reconoce el derecho a la salud: Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las Formas de Discriminación Racial de 1965, artículo 5 e) iv); Convención sobre la eliminación de todas las formas de discriminación contra la mujer de1979, artículos 11 1) f), 12 y 14 2) b); Convención sobre los Derechos del Niño de 1989, artículo 24; Convención internacional sobre la protección de los derechos de todos los trabajadores migratorios y de sus familiares de 1990, artículos 28, 43 e) y 45 c) y Convención sobre los derechos de las personas con discapacidad de 2006, artículo 25.

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Cabe destacar también que, frente a la problemática de la efectiva realización de los derechos económicos, sociales y culturales –dentro de los que se encuentra el derecho a la salud- y su progresividad,3 el Comité manifestó en la misma Observación General número 14 cuáles son las obligaciones básicas del Estado frente a este derecho. Allí determinó que el cumplimiento mínimo del derecho a la salud implica garantizar el derecho de acceso a los centros, bienes y servicios de salud sobre una base no discriminatoria, en especial por lo que respecta a los grupos vulnerables o marginados; asegurar el acceso a una alimentación esencial mínima que sea nutritiva, adecuada y segura y garantice que nadie padezca hambre; garantizar el acceso a un hogar, una vivienda y unas condiciones sanitarias básicos, así como a un suministro adecuado de agua limpia potable; facilitar medicamentos esenciales, según las definiciones periódicas que figuran en el Programa de Acción sobre Medicamentos Esenciales de la OMS; velar por una distribución equitativa de todas las instalaciones, bienes y servicios de salud; adoptar y aplicar, sobre la base de las pruebas epidemiológicas, una estrategia y un plan de acción nacionales de salud pública para hacer frente a las preocupaciones en materia de salud de toda la población; la estrategia y el plan de acción deberán ser elaborados, y periódicamente revisados, sobre la base de un proceso participativo y transparente; esa estrategia y ese plan deberán prever métodos, como el derecho a indicadores y bases de referencia de la salud que permitan vigilar estrechamente los progresos realizados; el proceso mediante el cual se concibe la estrategia y el plan de acción, así como el contenido de ambos, deberá prestar especial atención a todos los grupos vulnerables o marginados (Comité DESCONU, 2000). En conclusión, el derecho a la salud está ampliamente reconocido por los instrumentos internacionales de derechos humanos, jurídicamente vinculantes o de soft-law, y explicado su alcance y extensión a través de los organismos internacionales establecidos con esos fines. A pesar de ello, este derecho no ha sido caracterizado por su cumplimiento efectivo e igualitario, ni siquiera en cuanto a las obligaciones básicas, incurriendo los Estados en una violación constante de la normativa ratificada. Un ejemplo de ello lo constituye la deficiencia en la garantía del goce del derecho a la salud en las cárceles.

2 EL DERECHO A LA SALUD EN LAS CÁRCELES

3

Para más información sobre la efectiva realización de los DESC y su progresividad, léase la Observación General número 3 del Comité del PIDESC sobre ―La índole de las obligaciones de los Estados Partes (párrafo 1 del artículo 2 del Pacto) en http://www1.umn.edu/humanrts/gencomm/Sepcomm3.htm

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La aplicación, garantía y goce del derecho a la salud, al igual que de todos los derechos humanos, está regida y supeditada por el principio de no discriminación, que es un principio de carácter imperativo y rector del sistema internacional de derechos humanos explícitamente incorporado en todos los tratados internacionales de la materia. Y en lo que refiere al objeto del presente trabajo, se encuentra establecido en el Principio número 9 de los Principios Básicos para el tratamiento de los reclusos que dispone, de manera clara y precisa, lo siguiente: ―Los reclusos tendrán acceso a los servicios de salud de que disponga el país, sin discriminación por su condición jurídica‖ (1990). Se entiende por discriminación, en este caso,a cualquier distinción, exclusión o restricción de carácter peyorativo que efectúe el Estado, hecha por alguna causa que caracterice y diferencie a una persona o grupo de personas, y cuyo efecto seadificultar o impedir el reconocimiento, goce o ejercicio de los derechos humanos y las libertades fundamentales (OMS y OHCHR, 2000).Esta discriminación incurre automáticamente en una ausencia de protección hacia estas personas o grupos, dentro de los que comúnmente hallamos a las mujeres, los homosexuales y demás miembros de la comunidad LGTBi, los miembros de comunidades religiosas, los extranjeros, y los privados de libertad, entre muchos otros. Esta discriminación provoca una jerarquización de los grupos sociales, ubicando a quienes son discriminados en escalones inferiores, y produciendo así unamarginación de éstos y ocasionando, en general, desigualdades estructurales en la sociedad. Asimismo, esta situación hace que los grupos discriminados seanmás vulnerables a la pobreza y la mala salud (OMS, OHCHR, 2000). Un claro ejemplo de ello lo constituyen las minorías étnicas, los pueblos indígenas y los afrodescendientes, quienes tienen un menor acceso a los servicios de salud, reciben menos información sanitaria y es probable que no dispongan de una vivienda adecuada y agua potable, registrando así una tasa de mortalidad más elevada, problemas de malnutrición y enfermedades crónicas (Ibíd.). Otro ejemplo claro de un grupo socialmente excluido, marginado y discriminado son quienes se encuentran bajo el régimen jurídico de la privación de libertad. Este grupo tiene la vulnerabilidad propia que implica el encierro y el hecho de encontrarse bajo la autoridad del y sujeción al Estado, situación que conlleva de por sí la restricción de muchos derechos cuyo ejercicio es imposible de efectivizar plenamente (USIDA y CELS, 2002). La Comisión Interamericana de Derechos Humanos (Comisión) ha reconocido esta circunstancia, afirmando que ―[h]ay circunstancias especiales, como el encarcelamiento…que, aunque no suspenden el derecho, inevitablemente afectan su ejercicio y no permiten que se disfrute plenamente de él‖ (1996, pág. 97). Esta situación de vulnerabilidad propia del encierro y su 116


consecuente limitación de derechos no construiría en si misma una violación al principio de no discriminación, pero sí lo sería cualquier otra circunstancia que exceda esa limitación. Es decir, no se pueden restringir los derechos de quienes se encuentran privados de libertad más allá de lo que requiera su situación de encarcelamiento, comprendido entre ellos el derecho a la salud del que gozan las personas en libertad (A.G. ONU, 2009). En consecuencia, la no discriminación y la igualdad significan también que los Estados deben distinguir y reconocer las diferencias de los distintos grupos sociales para satisfacer las necesidades específicasque éstos requierendebido a las dificultades especiales que pueden afrontar en relación al derecho a la salud las personas privadas de libertad, como es la elección de un centro sanitario, un médico determinado, una alimentación que responda a la idiosincrasia o necesidades propias del individuo, etc., limitaciones claras que se dan en la situación de encierro. El ComitéDESC ha establecido claramente que es injustificable la falta de protección legal o de hecho de los miembros vulnerables de la sociedad contra la discriminación en el sector de la salud. Incluso en situaciones de limitación grave de recursos, es preciso proteger a los miembros vulnerables de la sociedad (A.G. ONU, 2009.). En el caso particular del derecho a la salud, por ejemplo, la especial relación que el Estado entabla con la persona privada de su libertad, antes que permitir algún tipo de restricción adicionalsobre los derechos de ésta, genera al Estado una carga adicional de deberes dirigidos a cumplir, de un modo determinado, con la garantía y el respeto de los derechos fundamentales (USIDA y CELS, 2002). Cuando el Estado priva de su libertad a una persona, no lo hace limitadamente a la libertad ambulatoria sino que frustra con ello las posibilidades que dicha persona pueda tener como eventual usuaria del sistema de salud para procurarse atención, asistencia y prevención; todo elloa pesar de la legitimidad que tiene el encierro y la relación Estado-privado de libertad (Ibíd.). A su vez, sin poder justificar su incumplimiento por el menor reconocimiento del derecho a la salud como consecuencia del encierro, el Estado compromete, a través de él, su responsabilidad por la merma en el acceso a los servicios de salud que sufre el detenido (Ibíd.). La detención sólo faculta al Estado a limitar la libertad ambulatoria sin afectar otros derechos y por ello, al restringir la libertad, el Estado asume una posición de garante en virtud de la cual debe compensar los efectos lesivos sobre la salud y demás derechos vulnerados, que pudieran haberse evitado de no haber mediado la detención (Ibíd.). Sin embargo, la realidad fáctica demuestra lo contrario en relación a las personas privadas de libertad. Ellas son frecuentemente objeto de vulneraciones de sus derechos humanos que sobrepasan las restricciones necesarias a su encierro y, frente a esta 117


circunstancia, la realidad también demuestra que el Estado no cumple con su deber de garante de derechos y su función de compensar aquellos que son inevitablemente vulnerados (A.G. ONU, 2009).Así, en lo que refiere al derecho a la salud, las personas privadas de libertad en las Américas sufren hacinamiento y sobrepoblación; falta de condiciones mínimas de higiene;deficiencias en las condiciones de reclusión, tanto físicas, como relativas a lafalta de provisión de servicios básicos (agua y alimentos, entre otros);altos índices de violencia carcelaria y la falta de control efectivo de lasautoridades;empleo de la tortura y otros tratos y penas crueles e inhumanos;uso excesivo de la fuerza por parte de los cuerpos de seguridad en loscentros

penales;ausencia

de

medidas

efectivas

para

la

protección

de

gruposvulnerables;deficiencias en el acceso a la atención de la salud y centros médicos; falta de prevención de enfermedades, entre otros problemas que afectan directa o indirectamente el pleno goce del derecho a la salud en todos sus aspectos. La Comisión Interamericana de Derechos Humanos (la Comisión) en su informe sobre los derechos humanos de las personas privadas de libertad en las Américas de 2011, consideró que existen dos factores fundamentales que constituyen la base de las deficiencias en las condiciones de salud de los centros de privación de libertad de la región: 1) la falta de medidas preventivas;4 y 2) la sobrepoblación y el hacinamiento5. Y consideró que el tratamiento efectivo de estos dos problemas implicaría un uso mucho más racional y eficiente de los servicios de salud disponibles (Ibíd.). Asimismo, conforme a lo interpretado por el Comité DESC de la ONU en relación a la operatividad y cumplimiento progresivo de los derechos económicos, sociales y culturales, la Comisión subrayó que independientemente de las dificultades económicas que pudiera 4

Con respecto a la falta de medidas preventivas, La Comisión manifestó ―que debe darse atención prioritaria a las condiciones estructurales, sanitarias y de higiene de los centros de privación de libertad; que estos establecimientos cuenten con suficientes entradas de aire y luz natural; que se provea a los reclusos alimentos y agua potable en cantidad y calidad suficientes; que se realicen exámenes médicos iniciales adecuados a los reclusos; y que se dé tratamiento adecuado a aquellos que ingresan con enfermedades contagiosas. Asimismo que se haga énfasis en la implementación de programas de educación y promoción en salud; capacitación del personal; inmunización, prevención y tratamiento de las enfermedades infecciosas, endémicas y de otras índoles; y en la distribución de condones y lubricantes, entre otras medidas similares. Incluso, las condiciones mismas de las celdas destinadas al aislamiento de reclusos como castigo disciplinario deben ser evaluadas por las autoridades médicas, como medida para prevenir alteraciones psicofísicas e incluso la ocurrencia de suicidios en esos calabozos‖ (CIDH, pág. 210, 2011). 5 La Comisión, en el informe antes mencionado, también subrayó que el hacinamiento ―afecta gravemente el mantenimiento de las condiciones de salud de las personas privadas de libertad, lo que genera, entre otras cosas: la sobresaturación de los servicios de salud; la propagación de enfermedades contagiosas de todo tipo; la imposibilidad de contar con espacios para tratar adecuadamente a aquellos internos que necesitan tratamiento especial; y, como se ha dicho, incrementa fricciones y disputas entre los presos que muchas veces dejan como resultado heridos graves e incluso muertos‖ (CIDH, pág. 210, 2011).

118


atravesar un Estado en un momento determinado, el hecho de privar de libertad a una persona implica el deber irrenunciable de proveer siempre atenciónmédica adecuada (2011). Queda entonces también claro que existen obligaciones básicas para el cumplimiento del derecho a la salud por parte del Estado, que no pueden ser ignoradas por problemas de índole económico. Siguiendo esta línea de pensamiento la Corte Interamericana de Derechos Humanos (la Corte) se ha manifestado en varios casos, expresando que las situaciones que constituyen una afectación del derecho a la salud, no se corresponden con el respeto a la dignidad de la persona. Así, en el Caso García Asto y Ramírez Rojas vs Perú de 2005,la Corte señaló, al igual que lo había hecho anteriormente, que La detención en condiciones de hacinamiento, el aislamiento en celda reducida, con falta de ventilación y luz natural, sin cama para el reposo ni condiciones adecuadas de higiene […] constituyen una violación a la integridad personal. Asimismo, como responsable de los establecimientos de detención, el Estado debe garantizar a los reclusos la existencia de condiciones que respeten sus derechos fundamentales y una vida digna.‖

En dicha sentencia, también manifestó que ―la falta de atención médica adecuada no satisface los requisitos materiales mínimos de un tratamiento digno conforme a la condición de ser humano en el sentido del artículo 5 de la Convención Americana (CorteIDH, 2005). Esta exposición deja en claro que el derecho a la salud es un derecho fundamental necesario no solo para el respeto de la dignidad de la persona, sino para el ejercicio pleno de otros derechos humanos. Derecho que debe ser, además, objeto de goce de todas las personas por igual sin importar sus características personales o la circunstancia particular permanente o momentánea en la que se encuentren, como es la privación de la libertad ambulatoria. Pero también la realidad demuestra lo contrario, que el Estado no garantiza el derecho a la salud de quienes se encuentran bajo su esfera de cuidado, atentando contra los derechos fundamental y, en consecuencia, contra la dignidad de las personas privadas de libertad. 3 VIOLACIÓN DEL DERECHO A LA SALUD COMO AGRAVANTE DE LA PENA

Las sanciones penales son una expresión de la potestad punitiva del Estado que implican, dependiendo del ordenamiento jurídico interno, un menoscabo, privación o alteración de los derechos de las personas, como consecuencia de una conducta ilícita –delito, derivando generalmente en la privación de la libertad conforme la gravedad de este último (OHCHR Colombia, 2006). 119


Sin embargo, la pena tiene limitaciones propias establecidas en el derecho internacional de los derechos humanos, además de aquellas que existieran en las legislaciones internas del Estado, que tienen como finalidad disminuir el máximo posible la injerencia del encierro sobre la dignidad de la persona. El artículo 5 de la CADH, por ejemplo, establece que ―[l]as penas privativas de la libertad tendrán como finalidad esencial la reforma y la readaptación social de los condenados‖ debiendo estos ser tratados con ―el respeto debido a la dignidad inherente al ser humano‖ (1969). En este mismo sentido se pronuncia el Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos (PIDCP) en su artículo 10 al establecer que ―[t]oda persona privada de libertad será tratada humanamente y con el respeto debido a la dignidad inherente al ser humano‖ y ―[e]l régimen penitenciario consistirá en un tratamiento cuya finalidad esencial será la reforma y la readaptación social de los penados‖ (1966). La mayoría de las leyes internas de los Estados americanos siguen esta línea sobre las finalidades resocializadoras de la pena establecidas en la normativa internacional. Es por ello, que las lesiones, sufrimientos, daños a la salud o perjuicios sufridos por una persona privada de libertad pueden llegar a constituir una forma de pena cruel e inhumana cuando, debido a las condiciones de encierro descriptas en el subtítulo precedente, exista un deterioro de la integridad física, psíquica y moral, estrictamente prohibido por el mencionado artículo 5 inciso 2 del artículo CADH. Dichas situaciones son contrarias a la finalidad establecida para las penas privativas de la libertad, como establece el inciso 6 del citado artículo, es decir, ―la reforma y la readaptación social de los condenados,‖ convirtiéndose en un castigo y, otras veces, en una pena capital (OHCHR – ONU Colombia, Pág. 55, 2006). El Tribunal Europeo de Derechos Humanos (TEDH) ha determinado en reiterados fallos la violación del artículo 3–prohibición de la tortura- del Convenio Europeo para la Protección de Derechos Humanos y las Libertades Fundamentales en lo que refiere al acceso a la salud en las cárceles. En el Caso Aleksanyan v. Russia, cuya sentencia fue emitida en el año 2009, el Tribunal consideró que por la falta de cuidado suficiente en la salud del solicitante privado de libertad, al menos hasta su traslado a un hospital externo, se había quebrantado su dignidad y ocasionado penurias particularmente graves, que causaron un sufrimiento que excedió al inevitablemente asociado con una pena de prisión y sus enfermedades, por lo que dicha falta de cuidado había ascendido a un trato inhumano y degradante, en violación del mencionado artículo 3. La Corte Interamericana –siguiendo estos criterios delTEDH– estableció, a partir del Caso Neira Alegría y otros vs Perú, que ―toda persona privada de libertad tiene derecho a vivir en condiciones de detención compatibles con su dignidad personal y el Estado debe 120


garantizarle el derecho a la vida y a la integridad personal. En consecuencia, el Estado, como responsable de los establecimientos de detención, es el garante de estos derechos de los detenidos‖(CorteIDH, párr. 60, 1996). Queda claro que el derecho a la salud implica entonces mucho mas que la prevención de enfermedades y la asistencia médica, sino que constituye un derecho en sentido amplio, abarcativo de una serie de derechos sobre los que se constituye en condición sine qua non, como por ejemplo: derecho a una vida sana y a la integridad personal en todos sus sentidos – físico, psíquico y moral- entre otros. La violación del derecho a la salud de quienes se encuentran en una situación de encierro legalmente constituida, implica un agravamiento en las condiciones de detención y en consecuencia un agravante de la pena, que sustituye su finalidad rehabilitadora por una finalidad puramente de castigo o, inclusive, por la pena de muerte, si la circunstancia derivara en la pérdida material de la vida.

4 CONCLUSIONES Y RECOMENDACIONES

Lejos de demostrar con estadísticas la realidad que apremia a los privados de libertad frente al goce del derecho a la salud, queda claro mediante la presente exposición, que el deber ser establecido en la norma, no condice con el ser, es decir, los hechos que refleja la realidad carcelaria de la mayoría de los países de América Latina. Frente al grave incumplimiento de la garantía y respeto del derecho a la salud, establecido tanto por la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, como por la Corte de dicho sistema y el Tribunal Europeo en la materia, dentro del sistema carcelario y por parte del Estado, podemos afirmar que las penas privativas de libertad se agravan seriamente pudiendo convertirse en torturas, tratos y penas crueles e inhumanos e inclusive en una pena de muerte. Como he establecido a lo largo de este trabajo, la pena privativa de libertad no puede implicar intromisión alguna en el disfrute del derecho a la salud, derecho que a su vez importa y es condición necesaria para el disfrute de otros derechos humanos intrínsecos a la dignidad inherente a la persona. En consecuencia, es necesaria una respuesta inmediata creando soluciones viables en su aplicación práctica. Para ello, es necesario manifestar que el cumplimiento de este deber del Estado dentro del sistema carcelario no recae únicamente en el personal de salud y la administración penitenciaria, sino también en aquellas autoridades responsables de efectuar

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las políticas públicas al respecto y de la justicia penal encargada de aplicar penas que garanticen y respeten los derechos fundamentales. Asimismo, la ausencia de una administración confiable, creíble y certera en la función judicial y de las fuerzas de seguridad, así como la insuficiencia de los recursos y la percepción generalizada de una falta de independencia, de politización y de corrupción en las instituciones judiciales, policiales y penitenciarias, ha tenido un impacto significativo en el disfrute de los derechos humanos, afectando y vulnerando aun más a la gran mayoría de la población penal. Por ello, para garantizar y respetar el derecho a la salud en los contextos de encierro es necesario que el Estado de cumplimiento, entre otras, a las siguientes recomendaciones, que no son más que una reelaboración de aquello solicitado por los organismos internacionales, las organizaciones no gubernamentales y los individuos generalmente involucrados en situaciones de privación de libertad: - Cumplir con lo establecido en la normativa internacional firmada y ratificada, y muchas veces incorporada con jerarquía constitucional en el ordenamiento jurídico interno. - Respetar las obligaciones mínimas (básicas) en referencia a los derechos económicos, sociales y culturales, reconociendo a su vez la autonomía de éstos frente al grupo de derechos civiles y políticos para concretar su progresiva efectividad. - Reglamentar el derecho a la salud en las cárceles de manera específica, teniendo en cuenta el contexto de encierro en el que se debe desarrollar y las limitaciones propias que este ocasiona. - Solucionar de manera inminente los problemas carcelarios graves referentes al hacinamiento y la sobrepoblación, que interfieren directamente en el cumplimiento del derecho a la salud y otros derechos fundamentales. - Adoptar medidas concretas destinadas a solucionar las deficiencias estructurales de las cárceles para cubrir necesidades más básicas -provisión de alimentos, agua potable e higiene-. - Diseñarpolíticas de salud pública inclusivas de quienes se encuentran en situación de encierro y asignar los recursos necesarios para implementarlas. - Tomar en consideración las circunstancias negativas y violatorias de los derechos humanos en contextos de encierro, al momento de aplicar o evaluar las penas a establecer, tarea que corresponde principalmente a quienes ejercen la función judicial y se encuentran encargados de impartir justicia. - Disminuir el uso de la prisión preventiva y aumentar el uso de medidas alternativas a la prisión, para –además de respetar el principio de inocencia- evitar el hacinamiento, la

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sobrepoblación carcelaria y otros impactos negativos sobre la salud de los privados de libertad. La pena privativa de libertad debe implicar solamente la privación de la libertad ambulatoria y afectar en un mínimo posible otros derechos fundamentales, especialmente el derecho a la salud cuyo respeto y garantía implica, repito, el cumplimiento de una serie de derechos hoy considerados de carácter imperativo, como la integridad física, psíquica y moral.

REFERENCIAS

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Casos - CIDH, Informe 38/96 caso 10.506, ―X e Y‖, Argentina, 15 de octubre de 1996, párr. 97. - Corte Interamericana de Derechos Humanos, 1995. CasoNeira Alegría y otros vs Perú. Sentencia del 19 de septiembre de 1996. - Tribunal Europeo de Derechos Humanos, 2009. ECHR 2009/7 Caso Aleksanyan v. Russia, del 22 diciembrede 2008, no. 46468/06.

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SAÚDE E LIBERDADE1 Genival Veloso de França2 Sumário: 1 Introdução. 2 Saúde e liberdade. 3 Como discutir a saúde. 4 Intimidade genética. 5 Conclusões

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INTRODUÇÃO Vivemos sob a égide de uma Constituição que determina ao Estado o respeito à

dignidade da pessoa humana, tendo como normas a promoção do bem comum, a garantia da integridade física e moral do cidadão e a proteção incondicional do direito à vida e à saúde. Seu fim precípuo é a criação de meios e condições para que as pessoas sejam protegidas em todos os seus valores e que elas possam desenvolver plenamente todas as suas aptidões e ocupar o lugar destinado a cada um de nós. A saúde como fenômeno social exige uma intervenção política. A partir do momento em que foi fácil entender que a saúde das populações depende mais de suas necessidades básicas do que da assistência médica propriamente dita, e que toda doença tem na sua origem ou nas suas conseqüências uma causa social, daí em diante impõe-se ocupar outros espaços. O conceito de assistência à saúde, entendido ainda por alguns como sinônimo de prática médica curativa, ou como simples organização dos serviços prestados em atendimento, não pode mais ser aceito. Mas, como um conjunto de políticas sociais complementares que não passa exclusivamente pela prática assistencial. O conceito moderno de saúde transcende a uma dimensão política, fruto de uma composição dos níveis e das condições de vida que vão além da organização sanitária. Resumindo: são as condições objetivas de existência que necessita uma população ou a forma concreta de vida social, excluída da prática medicalizadora da saúde. É muito mais uma questão de forma de vida. A própria definição de saúde, adotada pela Organização Mundial da Saúde, no preâmbulo de sua Constituição, em 26 de julho de 1946, como ―um completo bem-estar físico, mental e social‖ – muito mais um conceito de felicidade - torna-se, nos dias de agora, irreal, utópico, impossível de ser alcançado e de difícil operacionalidade. Pelo menos a OMS 1

Resumo de palestra proferida durante a I Conferência Brasileira de Direito e Saúde, UFPB, João Pessoa, 24 de maio de 2014.O autor trata da saúde e da liberdade como valores imprescindíveis nos dias atuais conquistados pelas democracias dentro dos chamados direitos individuais, tendo como fundamento o respeito à liberdades das pessoas. Dentro deste contexto estabelece uma relação entre a autonomia do paciente e os direitos consagrados aos profissionais de saúde. Unitermos: Autonomia e saúde. Saúde e direitos humanos. Políticas de saúde e dignidade humana. 2 Membro da Academia Nacional de Medicina Legal

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reconheceu que a saúde não depende apenas de medicamentos e de leitos hospitalares. Qualquer que seja a metodologia em busca deste estado, não se deve ignorar a necessidade da luta permanente em favor do equilíbrio do homem com o seu meio ambiente. Depende muito mais, portanto, de como as pessoas se alimentam, se divertem e como moram e trabalham. Em suma: depende do seu nível de vida. Desta forma, a conquista e a preservação da saúde impõem políticas em favor da vida social e não há como o Estado deixar de ser responsável por este bem da população. A caridade facultativa em favor dos pobres, além de humilhante, é um ato aleatório que não alcança os interesses da coletividade. Este modelo não deixou de comprometer a área da saúde e da assistência médica, alterando em pouco tempo os padrões da política de saúde e da organização dos serviços. Para reverter todo esse quadro faz-se necessário uma ampla reformulação das relações políticas ao nível do Estado e da sociedade, fomentando a descentralização do poder e reabilitando o indivíduo na sua cidadania e na sua personalidade. Outro conceito que deve ser revisto é o de cidadania. Não pode ele se prender apenas ao aspecto jurídico-civil, senão, também, às garantias dos direitos sociais, corolário de uma efetiva prática democrática. Espera-se que passo a passo a humanidade vá construindo um ideário onde fique evidente a importância da valorização da pessoa e o reconhecimento irrecusável dos direitos humanos. Não adianta todo esse encantamento com o progresso da técnica e da ciência se não for em favor do homem. Se não, esse progresso será uma coisa pobre e mesquinha.

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SAÚDE E LIBERDADE A saúde e as liberdades individuais representam, num estado democrático de direito, os

bens mais fundamentais. A saúde como um bem irrevogável e indispensável que cabe ao Estado sua garantia e os meios de organização. E a liberdade como um ganho consagrador da cidadania e da luta dos povos. Tão íntima é esta relação entre a saúde e a liberdade que não se pode admitir qualquer proposta em favor da melhoria das condições de vida e de saúde das pessoas sem se respeitar a autonomia delas, mesmo quando elas não estão dispostas a se submeterem a certas condutas que venham considerar como de riscos, a exemplos das praticas abusivas e invasivas da biotecnologia. Assim, não seria exagero admitir-se que ela tanto pode ser uma forma de proposta vantajosa como uma ameaça à liberdade individual. 126


O ideal será sempre se encontrar um modelo onde se conciliem a liberdade do profissional ou do gestor de saúde com o uso individual da liberdade, pois só assim será mais fácil a correção das distorções da natureza para a busca do bem-estar individual e coletivo. Por isso, o certo é encontrar um caminho onde se procure minimizar o sofrimento e o dano por meios assistenciais à saúde sem o risco dos limites da liberdade individual capaz de ameaçar nosso sentido crítico através de um paternalismo secular de proteção. Não há como existir ainda a chamada ―superioridade de juízo‖. Muitos são os países que vivem hoje protegidos das epidemias e das catástrofes das doenças curáveis e evitáveis em face da organização dos serviços de saúde e aos níveis de vida da população. Muitas são as comunidades que hoje estão livres da morte prematura e das patologias incapacitantes. A luta em favor da saúde e do bem-estar é uma obrigação moral que se deve impor ao poder público. Deve-se isto a uma política que prioriza a saúde como uma preocupação de caráter publico e de interesse social, respaldada por recursos substanciais capazes de garantir todo este projeto. É neste instante que a sociedade livre e organizada pode e deve contribuir. Não é apenas com a exigência do chamado ―consentimento livre e esclarecido‖, pois este documento por si próprio não é bastante para assegurar uma relação mais respeitosa nem suficiente para isentar possíveis culpas. Com isso pode-se criar uma ―medicina contratual‖ de bases falsas. Entender também que consentimento livre e esclarecido, operacionalizado no princípio da autonomia e da beneficência, não diz apenas um fato do interesse médico mas antes de tudo uma questão político-social própria das sociedades organizadas. Todo cidadão tem o direito de saber sua verdade e participar ativamente das decisões que dizem respeito a sua vida social e, portanto, das decisões médicas e sanitárias que afetam sua vida e sua saúde. Ainda: estas informações devem ser passadas ao paciente numa linguagem que o permita o devido esclarecimento. Em suma: toda intervenção médica, para ser legítima, necessita do consentimento; o consentimento precisa de clareza na informação. Não se pode mais aceitar o modelo paternalista de relação no qual somente cabia dar informação ao paciente e pedir seu consentimento quando isto representasse uma forma imprescindível de se ter um bom resultado através da sua colaboração na realização de um procedimento médico. Está claro que tal conduta não responde mais aos interesses da realidade atual. Em contrapartida, esta mesma autonomia que permite ao paciente o direito de informação sobre dados, lhe dá a prerrogativa de limitar o conhecimento destas verdades não permitindo que as demais pessoas delas tenham conhecimento, principalmente quando se 127


tratar de seus dados genéticos. Do mesmo modo tem o indivíduo o ―direito de não saber‖, ele próprio, quando ao seu entendimento isto lhe traria perturbações de ordem psíquica capaz de perturbar suas emoções, a exemplo de doenças futuras ou incuráveis, principalmente quando tais exames foram impostos por interesses de terceiros. Por outro lado não é demasiado dizer que o Estado tem o direito de conscientizar os indivíduos no sentido de se conduzir de uma forma moderada e cuidadosa capaz de ter uma vida saudável, através de estratégias de uma política sanitária. Isto não quer dizer que se reduzam os espaços individuais através de práticas puritanas. Se não levarmos em conta esta autonomia das pessoas qualquer conceito que se tenha de saúde é ambíguo e fica difícil para o poder público impor regras sanitárias, simplesmente porque tanto a saúde como a doença exigem explicações. 3

COMO DISCUTIR A SAÚDE Eis uma pergunta que se impõe: como evitar as forma impositivas de discutir a saúde?

Ou melhor, como preservar a liberdade numa proposta democrática e plural em favor da saúde? É claro que não existem regras prontas e acabadas para se aplicar programas dentro de uma política de saúde. As verdadeiras obrigações do Estado para com os indivíduos, no que diz respeito à saúde, é uma questão muito complexa e está apenas no inicio de uma longa discussão. Por isso mesmo, não existe uma definição mais precisa capaz de apontar uma solução mais consensual. Muitas dessas obrigações, portanto, muito confusas, tanto pelo caráter intimo da autonomia individual, como pela inexistência de um instituto jurídico que, nesse particular, defina e proteja tais deveres. No instante em que a sociedade decidir de vez quais as suas obrigações para proteger cada uma das pessoas, com certeza vai existir uma definição de limites da conduta delas, limites estes que não seriam impostos se ela não estivesse, por exemplo, em situação de risco. Desse modo, a sociedade pode exigir de cada um de nós uma obrigação a partir de certos cuidados. Assim como não temos o direito de prejudicar as outras pessoas, temos a obrigação de não nos prejudicar, pelos mesmos princípios éticos devido a todos. A tendência atual dos que representam os sistemas de saúde é falar sempre dos interesses de saúde da comunidade, sem discriminação, sem limitação de qualquer natureza. A dúvida está num fato só: saber se, nos casos em que a sociedade permite o aborto, os fetos são ou não considerados pacientes. 128


Vejamos o seguinte exemplo: Quais as opções legais capazes de influenciar o comportamento de uma mulher durante a gravidez, no propósito de favorecer o bem-estar do feto? Pode-se dizer que as propostas variam desde a concordância voluntária através da educação e do acesso aos serviços pré-natais até as sanções e pressões sobre a gestante. Sabemos que a aquiescência espontânea é a mais fundamentada das políticas, porque respeita os direitos das liberdades civis e a privacidade da mulher e ainda porque é a mais possível de ser efetivada. Uma postura que deve estar sempre presente no papel do médico é estimular o tratamento voluntário. No entanto, sempre existirão aqueles que não concordam ou que não alcançam o valor de uma conduta adequada e terminarão por contribuir para os danos que afetarão a saúde da gestante e do filho que vai nascer. Deveria o Estado ir além da educação e punir o comportamento maternal irresponsável, impondo sanções civis ou criminais quando venha a ocorrer um dano real ao indivíduo? Deveria o Estado prevenir o dano antes que ele ocorra, punindo e obrigando-a ao tratamento? Tudo faz crer que não. Na verdade quem sofre e adoece é o indivíduo, mas é no coletivo onde se repercutem os conflitos. Dentre os direitos sociais a saúde se apresenta como um direito essencial da personalidade, pré-requisito básico de qualquer estado democrático de direito que tem como projeto o alcance da cidadania. Por isto a saúde não pode ficar circunscrita apenas aos seus aspectos psicofísicos, mas que deve se estender aos limites de sua liberdade existencial. Dentro desta premissa o chamado ―consentimento livre e esclarecido‖ não deve ficar apenas entendido como regra na relação médico-paciente, mas no respeito à vontade do paciente onde o direito à saúde é um direito fundamental de cada homem e de cada mulher. Esta é uma forma de devolver ao individuo sua própria soberania. Na esteira deste raciocínio cabe a pergunta: se o indivíduo tem assegurada sua plena autonomia como direito fundamental assegurado, pode ele, por exemplo, vender seus próprios órgãos para transplante? É claro que a aceitação deste tipo de comércio deixaria evidente a situação de penúria de alguém que lhe restou como oportunidade o comércio de seus próprios órgãos. Isto não pode ser aplicado aos casos de doação de determinados órgãos ou tecidos onde prevalece a solidariedade e o altruísmo, estes sim reconhecidas e aceitos dentro do ideário das liberdades humanas. Dentro destas liberdades devem constar uma série de direitos que poderiam ser chamados de ―biodireitos‖, como o direito de procriar ou não procriar, direito de não ver seu 129


patrimônio genético manipulado a não no seu interesse terapêutico, direito de saber a verdade sobre seus diagnósticos e prognóstico, direito ao ambiente saudável e o direito de morrer com dignidade ante as práticas distanásicas, entre outros. Enfim, todos os direitos que se concentrem dentro de uma área que vise o bem-estar e a proteção da saúde. No que se refere à proteção da saúde há uma intricada rede de implicações entre os direitos e as obrigações do médico ou do gestor de saúde em relação aos usuários de um sistema sanitário capazes de modular a forma de atuar de cada um dos seus agentes. Neste contexto, a liberdade do médico deve ser solidária e compreensiva, dentro de uma compreensão política e social que tenha como objetivo principal a saúde pública e sua eficácia assistencial. O primeiro dos direitos dos médicos provém das leis que lhe outorgam o exercício da profissão com liberdade, desde que devidamente habilitado legal e profissionalmente pelos órgãos competentes. Outros direitos estão assegurados no Código de Ética Médica dos Conselhos de Medicina do Brasil, constantes do seu Capítulo II, intitulado ―Direitos dos Médicos”. Estes direitos lhe são conferidos sem nenhuma predisposição corporativista, mas dentro de um projeto de condições necessárias para que ele possa exercer a medicina, na legalidade e na licitude que se fazem imprescindíveis na suas atividades profissionais. Daí a liberdade do médico indicar procedimento que achar mais adequado dentro das normas reconhecidas e aceitas pela comunidade científica, a liberdade parta apontar falhas nos regulamentos e normas das instituições em que trabalhe, a liberdade de se recusar exercer sua profissão em instituições publicas ou privadas que não disponham das condições mínimas de trabalho e que possam trazer danos aos pacientes, a liberdade de internar seu paciente em hospitais onde não pertença o seu corpo clínico e o direito de realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência. 4

INTIMIDADE GENÉTICA Um dos grandes desafios do futuro será a capacidade de se conhecer, através da

chamada ―medicina preditiva‖, certas informações advindas da seqüência do genoma onde a capacidade de prevenir, tratar e curar doenças poderá se transformar numa oportunidade de discriminar pessoas portadoras de certas debilidades. Se estas oportunidades diagnósticas forem no sentido de beneficiar o indivíduo, não há o que censurar. No entanto, estas medidas preditivas podem ser no sentido de excluir ou selecionar qualidades por meio de dados 130


históricos e familiares, como nos interesses das companhias de seguro, isto pode ter um impacto negativo na vida e nos interesses das pessoas. Não será nenhuma surpresa se amanhã não se crie uma legislação onde se proíba a invasão do código genético com o fim de discriminar o indivíduo, deixando-o assim sem nenhuma garantia no que diz respeito a sua constituição genética. Hoje já se sabe que a presença de certo alelo tem uma probabilidade maior de desenvolver a doença de Alzheimer e logo mais teremos certamente informações sobre determinados fatores genéticos responsáveis pelas doenças psiquiátricas. Isto, com certeza, terá um impacto médico de maior significação a partir das possibilidades de tratamento e cura. Por outro lado, também, poderá trazer conseqüências muito sérias capazes de promover implicações de ordem psíquicas, sociais e éticas. O mais grave nisto tudo é que as enfermidades ditas poligenéticas ou multifatoriais podem ou não se desenvolver, ficando o indivíduo discriminado apenas pela ameaça de risco que ele corre de contraí-las. O primeiro risco que corremos é o de natureza científica pois não temos ainda o conhecimento bastante para determinadas posições de natureza genética, o que pode redundar em medidas precipitadas que no mínimo trarão ainda mais discriminação, mesmo que isso não passe de um fator de risco. Outro fato é que existe um conjunto de doenças que poderão ser diagnosticadas num futuro bem próximo, todavia não se contará tão cedo com soluções exatas e eficazes, principalmente no que concerne a um sistema público de saúde. Muitas serão as oportunidades em que o único tratamento será à base de medidas eugênicas através do aborto. Some-se a isso a possibilidade de conhecimento preditivo de doenças graves e sem tratamento criar no indivíduo perturbações de ordem psíquicas ou fazer com que ele tome medidas radicais como por exemplo a de não ter filhos, desagregar a família e sofrer prejuízos econômicos. Isto não quer dizer, é claro, que se deva abrir mão dos meios que impulsionem a medicina preditiva, mas que se busquem mecanismos que diminuam seus efeitos negativos e discriminadores. Fica evidente que, mesmo existindo um futuro promissor advindo destas conquistas, seria injusto não se apontar relevantes conflitos de interesses os mais variados que possam comprometer os direitos humanos fundamentais. Necessário se faz encontrar um modelo racional onde as coisas se equilibrem: de um lado o interesse da ciência e de outro o respeito à dignidade humana.

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É sabido que num estado democrático de direito não existe nenhum prerrogativa individual que possa ter proteção absoluta, principalmente quando se admite também a proteção dos direitos fundamentais de terceiros. Isto, quando reconhecido, impõe limites ao princípio da autonomia. Assim, por exemplo, quando a vida e a saúde de terceiros estão seriamente ameaçadas pela negativa de informações individuais, a quebra do direito da intimidade justifica-se baseada no princípio do estado de necessidade de terceiros. Este dever de solidariedade pública só estaria motivado quando diante de uma situação excepcional e plenamente justificada. Sempre que houver um conflito entre um interesse coletivo e um interesse privado deve-se agir com prudência e ponderação, tendo em conta sempre da possibilidade do uso de medidas menos graves. Deve-se entender também que existem limites na intromissão da intimidade individual. Acreditamos que a questão não está se devemos ou não devemos investir na medicina preditiva, pois notáveis serão suas contribuições como forma de prever soluções para as melhorias de vida e de saúde da coletividade. Mas, esta mesma predição pode expor o indivíduo, comprometendo sua confidencialidade e expondo-o a medidas discriminadoras e situações de desigualdades. Desta forma cabe ampliar e adequar cada vez mais o sistema de proteção da autonomia e da privacidade, abominando certos modelos cobrados pelos aparelhos de repressão e das empresas seguradoras, a exemplo do chamado banco de dados genéticos.

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CONCLUSÕES

A consciência de que a vida humana necessita de uma imperiosa proteção criando essa série de regras que vai se ajustando mais e mais com cada agressão sofrida. Não é apenas criando-se dispositivos legais que vamos conseguir aquelas metas. Mas na forma como podemos estabelecer regras mais fraternas de convivência. Este sim será o melhor caminho. Tudo isso terá como fundamento a idéia de que a vida de todo ser humano é ornada de especial dignidade e que isto deve ser colocado de forma clara em defesa da proteção das necessidades e da sobrevivência de cada um. Os direitos fundamentais e irrecusáveis da pessoa humana devem ser definidos por um conjunto de normas que possibilite a cada um ter condições de desenvolver suas aptidões e suas possibilidades em paz e liberdade.

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A RESPONSABILIDADE SUBSIDIÁRIA DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: TERCEIRIZAÇÃO DE SERVIÇOS DE MÉDICOS CUBANOS ATRAVÉS DO PROGRAMA “MAIS MÉDICOS”

Caroline Helena Limeira Pimentel Perrusi1 Antônio Sérgio Meira Barreto2 Igor de Lucena Mascarenhas3 Lincoln Mendes Lima4 Sumário: 1. Introdução. 2. Desenvolvimento. 3. Conclusão. Referências.

1.

INTRODUÇÃO

No intuito de fortalecer a prestação de serviços na atenção básica em saúde no País e reduzir a carência de médicos, principalmente nas regiões mais sofridas pelas desigualdades na área da saúde, muitos incentivos são discutidos, dentre eles, o recentemente criado e muito polêmico, Projeto Mais Médicos para o Brasil, instituído pelo governo federal no âmbito do Programa Mais Médicos. Por este, criou-se a possibilidade de prestação de serviços médicos de estrangeiros no país, diante da ausência de disponibilidade de brasileiros haja vista a expressa prioridade assegurada a estes na Medida Provisória, já convertida em lei, que instituiu o Programa. Um dos motivos expostos para fundamentar o Projeto da Medida Provisória foi promover a troca de conhecimentos e experiências entre profissionais da saúde brasileiros e médicos formados em instituições estrangeiras, permuta que não pontuou as consequências jurídicas, sociais e econômicas. Neste sentido, a Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde (OPAS/OMS) e o Ministério da Saúde do Brasil formalizaram o Acordo de Cooperação Técnica para ampliar o acesso da população brasileira à atenção básica em saúde, assinado em 21 de agosto de 2013, o qual implementou o ―Programa Mais Médicos‖. As cláusulas estabelecidas estão dispostas no terceiro termo de ajuste ao 80°.

Graduada em direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduada em Prática Judicante pela Universidade Estadual da Paraíba. E-mail: carolhlpimentel@gmail.com. 2 Graduado em direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Licenciado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Católica de Pernambuco. Email: meirabarreto@uol.com.br. 3 Graduado em direito pelo Centro Universitário de João Pessoa.E-mail: igormascar@gmail.com. 4 Graduado em direito pela Universidade Federal da Paraíba. 1

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(octogésimo) termo de cooperação técnica para o desenvolvimento de ações vinculadas ao projeto ―ampliação do acesso da população brasileira à atenção básica em saúde‖. Esta composição atraiu a prestação de serviços médicos de várias nacionalidades, mas, os cubanos em grande quantidade a qual chegou, de início, a aproximadamente 4.000 (quatro mil) ―médicos para as vagas que não foram escolhidas por brasileiros na seleção individual e um investimento de mais de 500 (quinhentos) milhões de reais (PAN AMERICAN HEALTH ORGANIZATION, 2013). Acordos realizados entre o governo cubano e outros países tiveram consequências desastrosas e instigaram a pesquisa do tema. Visível a boa intenção do governo federal brasileiro, mas importante ponderá-la com os possíveis riscos econômicos para o país em decorrência de omissões nas normas, instrumentos contratuais formalizados e condutas do Governo Brasileiro. No que tange a natureza jurídica da contratação, esta não foi pré-estabelecida mas, segundo o ordenamento jurídico brasileiro, os médicos cubanos não poderão ser servidores efetivos ou instituídos em cargos em comissão, tão pouco serão contratados como empregados públicos de forma a garantir-lhes a emissão e assinatura de Carteira de Trabalho e Previdência Social - CTPS para estrangeiros com estada legal no País, com brechas normativas quanto aos direitos resguardados aos profissionais médicos terceirizados. Como se assim não bastasse, o termo acima descrito demonstra fragilidade da situação do Brasil por permitir que o governo cubano realize a intermediação do pagamento eis que o governo brasileiro paga uma quantia diretamente ao profissional e uma parcela maior transfere para a OPAS para que os médicos cubanos recebam a outra parte do pagamento mediante pagamento do seu próprio governo. Neste aspecto, importante analisar se a Administração Pública do Brasil poderá ser responsabilizada por verbas trabalhistas pleiteadas pelos médicos cubanos quando da ausência de repasse de valores aos profissionais pelo governo daquele país, ainda que subsidiariamente.

2. DESENVOLVIMENTO O Programa denominado Mais Médicos foi apresentado à população como uma solução imediata para a melhoria do atendimento aos usuários do Sistema Único de Saúde (S.U.S.). O Governo Federal instituiu o programa em questão através da Medida 135


Provisória 621/2013, publicada em Julho do corrente ano, prorrogada por 60 (sessenta) dias por meio do ato do Presidente da Mesa do Congresso Nacional nº. 50, em 26 de Agosto de 2013, com a promessa de garantia de mais saúde para a população do Brasil e encaminhamento de médicos para regiões do país onde há escassez e ausência de profissionais. Diante de sua natureza de programa governamental, possui duração indeterminada. A Medida Provisória 621/2013 exigia exclusividade na prestação do serviço e tal fato deve estar registrado na carteira profissional do médico intercambista, considerando-o autônomo com a remuneração realizada mediante bolsas e ajuda de custo, sem mais especificações de direitos ou obrigações sociais. Nos termos do artigo 62 da Constituição Federal, quando trata do processo legislativo, o Presidente da República poderá adotar medidas provisórias, as quais terão força de lei, em casos de relevância e urgência, requisitos que devem ser interpretados conjugadamente. Considerando o enquadramento no tema dentre os casos permitidos legalmente, muitos questionamentos surgiram após a publicação da norma supracitada. O primeiro artigo da norma em referência esclarece a principal finalidade do programa: ―formar recursos humanos‖. Versa sobre os objetivos, ações, funcionamento dos cursos de Medicina, além de instituir, no âmbito do Programa Mais Médicos, o Projeto Mais Médicos para o Brasil, disponibilizado para dois grupos (espécies) integrantes da categoria (gênero) formada por graduados no curso de Medicina, quais sejam: médicos formados por instituição de ensino brasileira ou com diplomas devidamente revalidados no Brasil, denominados de médicos participantes; médicos com graduação oferecida por instituição de ensino superior estrangeira através de ―intercâmbio médico internacional‖, os quais podem ser chamados de médicos intercambistas, aos quais se limitará este estudo, especificamente no que se refere aos profissionais cubanos. Para estes, os requisitos para participar do projeto restringem-se a apresentação de ―diploma expedido por instituição de educação superior estrangeira‖, ―habilitação para o exercício da medicina no país de sua formação‖ e ―possuir conhecimentos de língua estrangeira‖. A medida provisória em questão já foi convertida em lei, qual seja a Lei n°. 12.871/2013, e dispõe que haverá prioridade para os médicos formados em instituições de ensino superior brasileiras ou com diploma revalidado no país. Em não sendo suficientes, seguem-se os médicos brasileiros formados em instituições estrangeiras 136


com habilitação para o exercício da medicina no exterior e, por fim, médicos estrangeiros com habilitação para o exercício da medicina no exterior, objetos deste estudo, especificamente oriundos de Cuba. Diante da ordem de prioridade acima descrita, clarividente que apenas é possível contratar médicos cubanos quando os brasileiros não se habilitam para trabalhar nas regiões especificadas. Na prática, os Municípios se inscrevem no Projeto para requerer sua adesão, solicitando ao Ministério da Saúde, a quem compete o poder de decisão, a quantidade de médicos necessária para a prestação do serviço. Em Abril de 2013 foi assinado pela União, através do Ministério da Saúde e da Fundação Nacional de Saúde, de um lado, e, Organização Pan-americana da Saúde (O.P.A.S.) e Organização Mundial da Saúde (O.M.S.), de outro lado, um termo de cooperação técnica para o desenvolvimento de ações vinculadas ao Projeto pretendendo ―acesso da população brasileira à atenção básica em saúde‖. Através deste documento, o Ministério da Saúde tornou-se responsável pela disponibilização de recursos orçamentários e financeiros, sem quantificá-los, mas esclarecendo que 5% (cinco por cento) seria destinado ao ―reembolso dos custos indiretos decorrentes da cooperação técnica‖. Sendo o valor indeterminado e imprescindível para a solução do caso, as pessoas acima mencionadas, no terceiro termo de ajuste do acordo supramencioando, definiram que a organização receberá o valor de R$ 510.957.307,00 (quinhentos e dez milhões e novecentos e cinquenta e sete mil e trezentos e sete reais), de sorte que apenas R$ 24.331.301,00 (vinte e quatro milhões e trezentos e trinta e um mil e trezentos e um reais), equivalentes ao percentual citado acima. Destaca-se que a referida composição formou-se antes do lançamento do programa governamental, ou seja, em momento prévio as inscrições pelos entes federativos. Neste contexto, restou definido um montante financeiro mesmo diante da falta de conhecimento acerca da quantidade de profissionais que seria necessário (ainda inexistente qualquer cadastramento), porém pré-estabeleceu-se o número de profissionais cubanos. Caracterizando-se como uma contratação de serviços pelo tomador a uma pessoa jurídica externa que intermedeia seus profissionais para realizar as atividades, nítida a terceirização de serviços, entendida como:

137


[...] o fenômeno pelo qual se dissocia a relação econômica de trabalho da relação justrabalhista que lhe seria correspondente. Por tal fenômeno inserese o trabalhador no processo produtivo do tomador de serviços sem que se estendam a este os laços justrabalhistas, que se preservam fixados com uma entidade interveniente. A terceirização provoca uma relação trilateral em face da contratação de força de trabalho no mercado capitalista[...]. (DELGADO, 2011)

Na prática, vislumbra-se uma relação trilateral: o prestador de serviços, o intermediário e a tomadora de serviços. No caso, o médico cubano, Cuba e o Brasil, respectivamente. Mesmo sem a revalidação do diploma, exigida através da Lei n°. 3.268/57 e da Portaria do MEC n°. 278/2011, pelo Decreto n°. 8040/2013, o médico intercambista seria inscrito no Conselho Regional de Medicina (C.R.M.) que jurisdicionar a área em que o profissional desenvolverá suas atividades mediante registro provisório. Esse dever do CRM/PB foi alterado pelo art. 16, § 3º da lei nº 12.871/2013, pois, atualmente, cabe ao Ministério da Saúde emitir registro único para cada médico participante. Essa mudança legislativa decorreu da resistência e negativas em razão da apresentação de discriminação positiva em favor dos médicos formados no exterior integrantes do Projeto, enquanto que os médicos que pretendem exercer a medicina de forma livre devem se submeter a todas as formalidades exigidas como: tradução juramentada, revalidação por universidade pública federal e certificação por representação diplomática brasileira do diploma, além do certificado de proficiência em língua estrangeira (Celpe-bras) em nível intermediário superior, para nos estrangeiros. Cumpre esclarecer que o Supremo Tribunal Federal (S.T.F.) já entendeu pela relevância da matéria e de usa importância para a garantia da ordem social e a segurança jurídica, estando em tramitação neste órgão de cúpula do Poder Judiciário as Ações Diretas de Inconstitucionalidade (A.D.I.s) n°. 5.035, proposta pela Associação Médica Brasileira (A.M.B), e a n°. 5.037, pela Confederação Nacional dos Trabalhadores Universitários Regulamentados (C.N.T.U.). Ultrapassados os formalismos discutidos nos dispositivos legais, também há o questionamento acerca das condições trabalhistas decorrentes da contratação dos profissionais estrangeiros, os intercambistas, analisando se estão de acordo com as normas internas e internacionais de proteção aos direitos dos trabalhadores. Indiscutível a necessidade da população brasileira quanto à prestação de saúde bem como a recepção de auxílio de países vizinhos, mas não se pode considerar uma questão econômico-social imediata isoladamente. 138


Anteriormente, a contratação pelo serviço público podia ser feita de duas maneiras: pelo regime celetista ou pelo estatutário: aquele regido pela Consolidação das Leis do Trabalho (C.L.T.), com todas as garantias trabalhistas definidas, e este pelo estatuto do órgão público. Nos dias atuais, por força da liminar proferida na ADI-MC 2135/DF, encontra-se vigente a redação original do caput do art. 39 da Constituição Federal de 1988 que versa sobre a instituição de regime jurídico único e, como regra, apenas podem ser considerados estatutários os classificados e aprovados em concurso público, nos exatos termos do artigo 37 constitucional. Neste contexto, os médicos estrangeiros não podem ser considerados estatutários além de não poderem ser celetistas em virtude da norma constitucional que define que admissão pelo Poder Público exige regime jurídico único. Ainda que não bastasse, a contratação de médicos estrangeiros como servidores públicos também esbarra no artigo 5o da Lei n°. 8.112/90, a qual expõe que, dentre os requisitos básicos para investidura em cargo público encontra-se a nacionalidade brasileira. Neste contexto, tem-se que os referidos profissionais se encontram em situação ―sui generis‖, razão pela qual necessário o estudo da natureza jurídica deste vínculo e, consequentemente, de análise de direitos trabalhistas que lhe devem ser garantidos, especificamente as do artigo 7°. da C.F., não podendo deixar de frisar que o ente público não pode ser comparado ao privado de tal sorte que quando da aplicação dos direitos trabalhistas não se podem deixar de lado os princípios do Direito Administrativo, ainda que o contrato seja firmado por tempo determinado para atender a necessidade temporária de excepcional interesse público. Destaque-se que a Lei nº 12.871 faz uma ressalva expressa quanto a inexistência de vínculo empregatício decorrente das atividades desempenhadas no âmbito do Programa, apesar do nítido caráter trabalhista da relação firmada. Sabe-se que a vinculação dos servidores públicos pode ser efetiva, comissionada ou temporária, esta última como uma excepcionalidade de vínculo com a administração pública, e sua gênese está consubstanciada no inciso IX do art. 37 da Constituição Federal. No caso dos médicos cubanos, estes trabalharão no Brasil em decorrência de um programa de governo, o que importa em precariedade e enquadramento na terceira

139


hipótese, e, portanto sujeito ao seu término a qualquer momento, implicando no fim do repasse do incentivo financeiro. De toda sorte, para que haja a contratação de profissional para prestar serviço de excepcional interesse público, necessária a participação em processo seletivo, o que não importa necessariamente em concurso público, podendo ser um recrutamento simplificado, assunto não abordado pelo referido Programa. As normas discutidas esclarecem que os médicos participantes estarão submetidos à legislação brasileira quanto às suas responsabilidades civis e penais, mas foram omissas por não mencionar acerca de seus direitos sociais. ―A história comprova alegações dos profissionais médicos de Cuba que prestaram serviços em outros países (BAND, 2011), como por exemplo, na Venezuela‖ (O ESTADO DE SÃO PAULO, 2013), ―e se consideraram escravizados em virtude da qualidade de trabalho e ausência de contraprestação (FOLHA DE SÃO PAULO, 2013). Mas esta situação não pode ser aceita no Brasil‖. Ora, a Constituição Federal, especificamente em seu artigo 7º. , dispõe acerca dos direitos sociais garantidos aos trabalhadores urbanos e rurais e, apesar de não tratar expressamente, o ordenamento jurídico brasileiro define que todos os benefícios a que os brasileiros estão sujeitos também devem se estender aos imigrantes. Importante ressaltar que, ainda que em busca do desenvolvimento econômico, ―não se pode permitir que diante de tantas conquistas trabalhistas a ordem econômica permita a redução dos direitos fundamentais, ocasionando um retrocesso, noção transformada em princípio proibitivo‖. (SARLET, 2010) A norma que versa sobre a matéria, no que se refere a direitos e proibições de cunho social, restringe-se a vedar o exercício da medicina fora das atividades do Projeto Mais Médicos para o Brasil, limitando a sua atuação como uma forma de contrato com dedicação exclusiva, consoante expresso no § 4°. do art. 7°. do Decreto n°. 8.040/2013, esclarecendo que a carteira profissional do médico intercambista deverá conter mensagem expressa quanto a tal proibição. A lei, especificamente em seu artigo 20, explicita que o médico participante será considerado autônomo, isto é, contribuinte individual obrigatório do Regime Geral de Previdência Social (R.G.P.S.), estando explícito a inexistência de vínculo empregatício (artigo 11 da M.P. n°. 621/2013) com a remuneração realizada mediante bolsas (a depender da atividade desempenhada, sendo o intercambista considerado médico participante conforme acima esclarecido) com a concessão de ajuda de custo, 140


modalidade de auxílio que visa custear despesas, no caso específico com a instalação do profissional estrangeiro no Brasil, possibilitando custeio de gastos com deslocamento, cujos pagamentos não restaram delimitados e ficarão a critério de atos dos Ministros de Estado do Planejamento, Orçamento e Gestão, da Educação e da Saúde. Muito genérica a norma no que tange aos direitos sociais dos médicos cubanos e, em se tratando de uma terceirização de serviços, importante delimitar os direitos dos trabalhadores para se estudar as responsabilidades pelos pagamentos destes. Na ausência de uma legislação que regulamente a terceirização, o T.S.T. (Tribunal Superior do Trabalho) foi construindo ao longo dos anos sua posição sobre a matéria por meio de suas súmulas de jurisprudência, a qual foi consolidada na súmula 331. Segue a sua transcrição: CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. LEGALIDADE I - A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formandose o vínculo diretamente com o tomador dos serviços, salvo no caso de trabalho temporário (Lei nº 6.019, de 03.01.1974). II - A contratação irregular de trabalhador, mediante empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os órgãos da Administração Pública direta, indireta ou fundacional (art. 37, II, da CF/1988). III - Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei nº 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. IV - O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador dos serviços quanto àquelas obrigações, desde que haja participado da relação processual e conste também do título executivo judicial. V - Os entes integrantes da Administração Pública direta e indireta respondem subsidiariamente, nas mesmas condições do item IV, caso evidenciada a sua conduta culposa no cumprimento das obrigações da Lei n.º 8.666, de 21.06.1993, especialmente na fiscalização do cumprimento das obrigações contratuais e legais da prestadora de serviço como empregadora. A aludida responsabilidade não decorre de mero inadimplemento das obrigações trabalhistas assumidas pela empresa regularmente contratada. VI – A responsabilidade subsidiária do tomador de serviços abrange todas as verbas decorrentes da condenação referentes ao período da prestação laboral.

Em

contrapartida,

o

Supremo Tribunal

Federal

(S.T.F.)

declarou

a

constitucionalidade do artigo 71, §1º., da Lei nº. 8.666/93 (Lei de Licitações), que prevê que a inadimplência das empresas contratadas, com referência aos encargos trabalhistas não transfere à Administração Pública a responsabilidade por seu pagamento, especificamente no julgamento da ADC nº. 16, ajuizada pelo Governador do Distrito Federal em face do teor da Súmula nº. 331, item IV do T.S.T., que responsabiliza

141


subsidiariamente a administração pública direta e indireta pelos débitos trabalhistas quando da contratação de empresas terceirizadas. Esta responsabilização é considerada secundária haja vista apenas ocorrer quando verificada culpa in vigilando, ―podendo esta ser entendida como a simples culpa decorrente da obrigação de vigiar mas esta não ocorre em virtude de falta de fiscalização ou mesmo atenção. Esta culpa deve ser devidamente comprovada, ou seja, não pode ser presumida.‖ (CASSAR, 2010). Assim, compete ao devedor pagar suas dívidas, responsabilidade que, no caso ora discutido, recai, ainda que parcialmente, sobre o governo Cubano. Se existe o dever de fiscalizar pelo contratante, Brasil, e esta diligência não foi cumprida, justa a sua responsabilidade pelo débito em virtude de que foi o tomador do serviço e não pode se locupletar. Porém, não retira a obrigação do intermediador pelo adimplemento, a quem deve recair a primeira cobrança eis que remunerado pelo serviço. Logo, pode-se entender que responsabilidade subsidiária apenas será aplicada quando do não exaurimento da obrigação pelo devedor, dito principal. Esta última expressão é utilizada pois, a partir do inadimplemento, haverá a dívida originária que, se não for paga, tornará outra pessoa responsável, o devedor secundário. Assim, havendo o exaurimento ou impossibilidade de pagamento por parte daquele principal, responde o devedor subsidiário. A jurisprudência

majoritária

estabelece

que

o

ente

público

possui

responsabilidade subsidiária pelos créditos que o trabalhador terceirizado faz jus quando omisso o ente público contratante. Neste sentido, seguem as palavras de Roberta Ludwig Ribeiro: Atualmente, ainda há a possibilidade de responsabilização da administração pública de forma subsidiária, todavia, para que essa responsabilidade não incida não basta o simples inadimplemento por parte da contratada, devendo ficar demonstrada a culpa culpa in vigilando da administração pública, por ausência ou negligência na fiscalização. (RIBEIRO, 2012)

Neste contexto, o ordenamento jurídico defende que o empregador responde pelos danos que seu empregado causar ao terceiro, o que pode ser devidamente aplicvcel ao tomador de serviços e médicos. A necessidade de haver um estudo prévio baseia-se nas informações publicadas no sentido de que a remuneração de um médico cubano que participa do Programa Mais Médicos será de aproximadamente R$ 10.000,00 (dez mil reais) ou cerca de US$ 142


4.000,00 (quatro mil dólares), porém 85% (oitenta e cinco por cento) desse valor vai para o governo cubano o qual, teoricamente, oferece educação gratuita e, para os médicos o restante é pago diretamente já que atua como um ―caça-talentos‖ encontrando os postos de trabalho e gerenciando a contratação. Inevitável a comparação com países capitalistas como o Brasil no qual os profissionais pagam impostos por todos os serviços e necessidades sociais básicas fornecidas, além de uma taxa para o intermediador. O contexto histórico, baseando-se em Programas formalizados entre Cuba e outros países, remonta ao pagamento dos salários pagos às famílias dos profissionais que ficam em Cuba, com bônus por estarem no exterior, e o adicional é pago a eles no país onde estão. No mais, hoje, os cubanos defendem o interesse em trabalhar mediante péssimas condições estruturais sob argumentos ideológicos, pois a cultura regional baseia-se em serviço voluntário e auxílio aos necessitados. Porém, pensamento e interesses são mutáveis, englobando também a formação ideológica, de forma que plenamente possível uma reparação financeira decorrente de inadimplemento de verbas trabalhistas ser postulada pelos profissionais no futuro. É imperioso entender que as partes integrantes das relações sociais e econômicas devem agir conjuntamente tendo em vista a dependência mútua para a promoção do desenvolvimento, cientes de que ―a positivação de normas e a constitucionalização dos Direitos Econômicos Sociais são de extrema relevância histórica e social, para que os direitos não sejam desrespeitados e sim efetivados de forma eficiente e racional‖.(TEIXEIRA, 2011) Enfim, para um efetivo desenvolvimento econômico, é fundamental analisar os princípios constitucionais basilares para a conservação do Estado Democrático Social de Direito ―que impõe deveres tanto sociais como econômicos que necessitam ser sopesados com base na proporcionalidade exigida pelo ordenamento jurídico pátrio.‖ (BARROS,2000) Portanto,

para

que

não

haja

prejuízos

financeiros

decorrentes

de

responsabilização subsidiária mesmo após a devida quitação de valores contratuais a Cuba com consequências sociais, seja pela sociedade que será a principal beneficiária do serviço ou pelos próprios médicos graduados em instituições de ensino reconhecidas no Brasil, imprescindível o monitoramento dos repasses daquele governo porém as

143


normas que regulamentam o projeto em discussão não discutiu como se daria esta observação. Os representantes do Brasil, ao assinar o documento como disposto, não se preocuparam em expressar o direito deste país em monitorar o repasse de valores pagos como contraprestação dos serviços médicos prestados a sua população. Tal garantia deveria ter sido enunciada, pois o país poderá ser responsabilizado pela omissão do dever de fiscalizar imposto pelo ordenamento jurídico pátrio nas contratações para a prestação de serviços públicos. Em caso de descumprimento desta obrigação, nasce a culpa in vigilando em decorrência de conduta omissiva do principal responsável pelo pagamento de verbas trabalhistas, ou seja, mesmo o Brasil tendo remunerado o trabalho dos médicos cubanos que prestam serviços terceirizados no país, pode ser condenado judicialmente a pagar valores equivalentes aos direitos dos obreiros quando Cuba, mesmo tendo recebido a devida contraprestação, não cumprir com suas obrigações de repasse, tendo em vista o instituto da responsabilidade subsidiária empregado nas normas sociais brasileiras. Em havendo o monitoramento do repasse financeiro pelo Brasil, ou seja, a devida fiscalização das verbas pagas por este, municiado de contratos, relatórios acerca do número exato de médicos e os seus respectivos registros em cada cidade deste país, com o intervalo de tempo trabalhado devidamente consignado, descabido o pedido de condenação subsidiária. Desta forma, com o devido acompanhamento, o país conseguirá cumprir o seu mister de fiscalizar tal contratação e não incidir em obrigação de pagar verbas trabalhistas em decorrência da responsabilidade subsidiária adotada após ter repassado o valor equivalente ao contrato, mediante o controle de recibos de cada um dos profissionais e seus familiares, se for o caso.

3. CONCLUSÃO

Após a devida análise acerca de qual a natureza jurídica do vínculo entre as pessoas jurídicas de direito público interno e médico cubano e enfatizada a garantia dos direitos trabalhistas garantidos ao estrangeiro diante do ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, os direitos constitucionalmente garantidos, no mínimo, restou demonstrada uma fragilidade do termo de cooperação técnica no que tange possibilidade de monitoramento do repasse de valores pelo Brasil. 144


Sem observar a forma de execução do Projeto pelo governo cubano e diante da ausência de acompanhamento do repasse de valores, o Brasil pode ser responsabilizado em decorrência da culpa in vigilando adquirida por simples omissão. Diante das normas não serem expressas quanto a possibilidade de realizar tal fiscalização e da dificuldade possivelmente encontrada em razão do sistema político cubano, o Brasil precisará torcer pelo exaurimento da obrigação do pagador principal, Cuba, para que não seja obrigado a adimplir quaisquer valores em decorrência de um contrato de trabalho pelo qual já pagou. Averiguar a possibilidade de aplicação do instituto da responsabilidade subsidiária quando da inadimplência de verbas trabalhistas decorrentes da terceirização de serviços e seus possíveis riscos econômicos para o país é imprescindível para o sucesso do referido programa de governo, especificamente o Projeto Mais Médicos para Brasil, pois o pagamento em duplicidade pode ocasionar prejuízos econômicos de grande vulto, capazes de, após a análise da viabilidade financeira, provocar a rescisão do Termo de Cooperação ora discutido.

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148


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