Direito Eleitoral Sociedade, Política e Poder Coordenadores Ezilda Cláudia de Melo Organizadores José Flor de Medeiros Júnior Laryssa Mayara Alves de Almeida Vinícius Leão de Castro Yulgan Tenno
Direito Eleitoral: Sociedade, PolĂtica e Poder
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito LUCIANO DO NASCIMENTO SILVA Coordenador Acadêmico da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito MARIA CEZILENE ARAÚJO DE MORAIS Coordenador Acadêmico - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito NÁJILA MEDEIROS BEZERRA E YULGAN TENNO DE FARIAS Coordenadores-Adjuntos de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito
ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br
CONSELHO CIENTÍFICO Adilson Rodrigues Pires Adolpho José Ribeiro Adriana Maria Aureliano da Silva Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira André Karam Trindade Alana Ramos Araújo Bruno Cézar Cadê Carina Barbosa Gouvêa Carlos Aranguéz Sanchéz Cláudio Simão de Lucena Neto Daniel Ferreira de Lira Elionora Nazaré Cardoso Ely Jorge Trindade Ezilda Cláudia de Melo Felix Araújo Neto Fernanda Isabela Oliveira Freitas Gisele Padilha Cadé Glauber Salomão Leite Gustavo Rabay Guerra Herry Charriery da Costa Santos
Hipolito de Sousa Lucena Ignacio Berdugo Gómes de la Torre Javier Valls Prieto Jeremias de Cássio Carneiro de Melo José Flôr de Medeiros Júnior Karina Teresa da Silva Maciel Laryssa Mayara Alves de Almeida Luciano do Nascimento Silva Ludmila Douettes Albuquerque de Aráujo Marcelo Alves Pereira Eufrásio Marcelo Weick Pogliese Maria Cezilene Araújo de Morais Raymundo Juliano Rego Feitosa Rodrigo Araújo Reül Rômulo Rhemo Palitot Braga Samara Cristina Oliveira Coelho Suênia Oliveira Vasconcelos Talden Queiroz Farias Thamara Duarte Cunha Medeiros Valfredo de Andrade Aguiar Filho
EZILDA CLÁUDIA MELO COORDENADORA JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO ORGANIZADORES
DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER
1ª EDIÇÃO ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB
2014
©Copyright 2014 by Editor-chefe LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E LUCIANO NASCIMENTO SILVA Coordenação do Livro EZILDA CLÁUDIA MELO Organização do Livro JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Capa YULGAN TENNO DE FARIAS Editoração JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação JOSÉ FLOR DE MEDEIROS JÚNIOR LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores. Data de fechamento da edição: 10-11-2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
D597
Direito eleitoral: sociedade, política e poder/ Ezilda Melo (Coord.); Laryssa Mayara Alves de Almeida (Coord.). – Campina Grande: AREPB, 2014.
143 p.
ISBN 978-85-67494-04-3
Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.
1. Direito Eleitoral
I. Título.
CDU 342.82
O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural “A Barriguda”, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.
A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.
Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural.
Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.
Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br e confira E-Books gratuitos.
SUMÁRIO PREFÁCIO ............................................................................................................................... 9 O PARLAMENTARISMO PORTUGUÊS E O SEU DIREITO ELEITORAL: INSTITUIÇÕES, DESAFIOS E PERSPETIVAS ............................................................... 12 PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO: CASSAÇÃO OU EXTINÇÃO DO MANDATO? UMA VISÃO COMPARATIVA DE CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E DE REVALORIZAÇÃO DE PRINCÍPIOS .................................................................................................................... 37 A EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DE DEMOCRACIA À LUZ DA CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA ...................................................... 50 ELEIÇÕES NO BRASIL: DEUSES, CÉSARES E IGUALDADE DE OPORTUNIDADES ............................................................................................................... 60 A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO: A QUESTÃO PARTICIPAÇÃO X VOTO .......................................................................... 81 MEMÓRIA E VERDADE: DIREITOS ESSENCIAIS AO PROCESSO DE DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS ......................................................................................... 94 O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES: GARANTIA OU RESTRIÇÃO À LIBERDADE? ...................................................................................................................... 108 NECESSIDADE DE EXAME DA GRAVIDADE DA CONDUTA NAS REPRESENTAÇÕES POR DOAÇÃO ELEITORAL IRREGULAR ............................ 118
APRESENTAÇÃO A revista jurídica A Barriguda iniciou suas atividades em 2011 a partir dos esforços conjuntos de graduandos e professores do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Estadual da Paraíba. Desde o seu nascedouro, na Cidade de Campina Grande – Estado da Paraíba, vem reunindo em seu conselho científico pesquisadores de diferentes áreas e países comprometidos com o desenvolvimento do conhecimento humano em prol da Sociedade. Em 2014, com oito títulos registrados na Fundação Biblioteca Nacional, A Barriguda iniciou suas atividades como editora, disponibilizando aos seus leitores uma Biblioteca Virtual gratuita no site www.abarriguda.org.br/bibliotecavirtual que reúne as publicações de ebooks e edições especiais, com abordagens temáticas específicas do periódico científico, com ISSN 2236-6695. A presente produção intitulada Direito Eleitoral: Sociedade, Política e Poder reúne estudiosos de várias instituições de ensino superior brasileiras, os quais assinam cada capítulo desta obra coletiva, para apresentar olhares e reflexões inovadoras no âmbito das Ciências Jurídicas. Março de 2015. Laryssa Mayara Alves de Almeida e Vinícius Leão de Castro Campina Grande – PB
DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER
PREFÁCIO Esta edição traz sete estudos de direito e política – todos relevantes e instigantes, ainda que nem sempre presentes no cotidiano da reflexão e da prática profissional. A sociedade brasileira nunca se engajou para dar cor de verdade à sua representação democrática. Ainda não reagiu à simulação na gênese do direito eleitoral: a única norma de direito público cujo redator é o seu próprio destinatário. Ainda não reagiu ao fato de que o direito eleitoral é produto circunstancial e casuístico da maioria eventual que se componha na noite de votação no Congresso Nacional. Ainda não reagiu à seleção legislativa das hipóteses de inelegibilidade – fotograficamente escolhidas pela maioria eventual para afastar do pleito eleitoral personalidades e circunstâncias pré-determinadas. Esse quadro de aridez ética impõe ao Judiciário e ao Ministério Público eleitorais a tarefa hercúlea de compatibilizar as normas da legalidade, impessoalidade, publicidade, eficiência, legitimidade, de proteção à probidade administrativa e da moralidade para o exercício do mandato – todas fundamentais no texto da Constituição, com os casuísmos e circunstâncias da lei eleitoral. Se o capítulo da lei geral das eleições sobre as condutas vedadas aos agentes públicos em campanhas eleitorais – à primeira vista, pretende responder às normas constitucionais, sua longa lista de exceções e os curtos prazos de sua incidência – todavia, abrem avenida larga à sagacidade dos agentes comprometidos com o resultado. Põese aí o clássico e desafiador confronto entre a lógica ético-jurídica do Julgador (refém da ordem normativa) e a lógica do interesse no resultado aritmético dos candidatos, dos partidos políticos e dos seus financiadores (sequestradores da representação democrática). É esta gama de questões que a leitura da revista me trouxe à memória – a repisar fatos e perspectivas visitadas em quase quatro décadas de trabalho na Justiça Eleitoral. Os estudos versam sete temas. Um, homenageia a independência e harmonia dos poderes como compreendida pelo Supremo Tribunal Federal, porém cobra coerência de seus precedentes quanto aos efeitos da condenação criminal definitiva sobre os mandatos parlamentares – cassação ou extinção? Outro traz tema raro no discurso constitucional das liberdades políticas: a relação entre a Igreja e o Estado formalmente laico, reconhecendo àquela a capacidade de impedir aos seus CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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clérigos – no seu ordenamento jurídico interno, qualquer atividade político-partidária sob pena de suspensão das ordens. Um terceiro trabalho visita o tema crucial da memória histórica da política brasileira e, com argumento ético irretocável, desafia uma reflexão sobre a Lei da Anistia em face dos imperativos fundamentais da dignidade da cidadania em contraste com as razões de estado que à época de sua edição deram conformação jurídica ao acordo político possível de transição para a democracia. Um quarto estudo informa sobre o parlamentarismo português e seu sistema eleitoral e traz conclusão arguta - “todos os países estão mais ou menos descontentes com o seu sistema”, o que faz do direito comparado – em especial o português, um instrumento importante de interação cultural. Há também uma bem lançada pesquisa sobre ser a separação de poderes uma garantia ou uma restrição à liberdade. Postos os parâmetros do estado liberal burguês e sua transformação, questiona-se se o controle social pela via legislativa não tenderia mais a restringir do que ensejar o exercício da liberdade individual em face do estado. Por fim, dois outros estudos afirmam a insuficiência ou mesmo a ausência de uma sociedade civil ativa a efetivamente impor contraste à vontade estatal – sociedade em que o cidadão não seja “meramente pessoa no sentido jurídico”. Têm por insuficientes e formais os plebiscitos de 1993 e 2011 e o referendo de 2005 – há que se buscar outros meios de participação efetiva. Inaceitável para os autores que, em 2014, num universo de 142 milhões de eleitores registrados, trinta milhões não tenham comparecido às urnas. Contrasta-se a prática democrática brasileira com a Carta Democrática Interamericana, promulgada pela OEA em 2001, para concluir por sua carência e insuficiência porquanto limitada ao voto obrigatório sazonal, longe ainda da autodeterminação política. Aliás, acresço que a Carta foi inspiração do presidente Jimmy Carter – prêmio Nobel da Paz, que, em razão dela, criou um grupo “ad hoc” de ‘Amigos’ para guarda de sua eficácia e composto por ex-mandatários e ex-magistrados das Américas e do qual faço parte. A provocação erudita dos estudiosos autores – bem documentada nos fatos e rica nas fontes acadêmicas, põe em cheque muito do que se tem assentado na poeira dos precedentes judiciais e no desleixo dos procedimentos legislativos.
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É leitura que se impõe aos brasileiros interessados no seu futuro; àqueles cidadãos responsáveis que se dispõem à construção nunca acabada da democracia representativa substantiva.
TORQUATO JARDIM Advogado Ministro do Tribunal Superior Eleitoral (1992-96)
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O PARLAMENTARISMO PORTUGUÊS E O SEU DIREITO ELEITORAL: INSTITUIÇÕES, DESAFIOS E PERSPETIVAS1 Paulo Ferreira da Cunha2
SUMÁRIO: 1. Introdução: eleições, democracia e partidos em Portugal, hoje. 1.1 Direito Eleitoral e democracia. 1.2 Da atual questão partidária em Portugal. 2. Da eleição do parlamento em Portugal. 2.1 Composição, inelegibilidades e incompatibilidades. 2.2 Círculos eleitorais e representatividade. 2.3 Candidaturas partidárias e papel dos "independentes". 2.4 Assembleia da República, presidente e governo. 3. Propostas de alterações no sistema eleitoral. 3.1 Antiparlamentarismo. 3.2 Eleições primárias nos partidos? 3.3 Das candidaturas independentes ao grande chefe. 3.4 Reforço da cidadania e reinvenção dos partidos. 4. Conclusão.
1 INTRODUÇÃO: ELEIÇÕES, DEMOCRACIA E PARTIDOS EM PORTUGAL, HOJE
1.1 DIREITO ELEITORAL E DEMOCRACIA
Comecemos com a vox populi. Diz-se proverbialmente (e o que é proverbial pouco se discute, aceitando-se o tópico como um dogma: o que é, além do mais, muito pouco democrático) que a democracia é o melhor de todos os maus regimes. Contudo, a prática, a experiência (madre de todas as cousas, como já ensinava o clássico Esmeraldo de situ Orbis) mostra que é mesmo o melhor de todos, sem precisar de se comparar com regimes muito maus. Não é perfeito, mas é sem dúvida o melhor. No regime político democrático3 avultam as eleições e há até quem confunda democracia e regime de eleições, o que não é de modo nenhum rigorosa verdade. A partir de 1
O presente artigo repensa, atualiza, reorganiza e desenvolve algumas reflexões anteriores esparsas sobre esta matéria, especialmente em Direito Constitucional Anotado, Lisboa, Quid Juris, 2008, livro que se encontra presentemente esgotado, e Constituição & Política, Lisboa, Quid Juris, 2012, inter alia. 2 Catedrático e Diretor do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. 3 As confusões entre regime e sistema político são imensas. Optamos por dizer que regime é democracia ou ditadura, monarquia ou república, e sistema são desinências dentro dessas duas magnas divisões. Sobre a pulverização designatória, um interessante resumo de posições pode colher-se in LEITE PINTO, Ricardo / MATOS CORREIA, José de / ROBOREDO SEARA, Fernando — Ciência Política e Direito Constitucional. Teoria Geral do Estado e Formas de Governo, 3.ª ed. – revista e ampliada, Universidade Lusíada Editora, 2005, pp. 199-200.. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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um certo momento, mesmo ditaduras ferozes começaram a fazer simulacros de eleições. Portanto, as eleições não são pedra de toque absoluta de democracia. São um seu elemento, importantíssimo, são sua conditio sine qua non, mas há outros traços a ter necessariamente em consideração. E é muito importante que se trate de eleições verdadeiramente livres. Ao menos não fraudulentas. É certo que as eleições das ditaduras são facilmente reconhecíveis: limitações graves à existência e à atividade de verdadeiros e autônomos partidos políticos (com ideologia, princípios, e com eles consequentes), pressões (por vezes gravíssimas, que chegam ao assassinato pessoal ou de familiares e correlegionários) sobre os candidatos e sobre os eventuais eleitos, quando folcloricamente se permita alguma eleição oposicionista, porque as mais das vezes a eleição é ganha com uma percentagem altíssima (em geral, na casa de mais de 80%, ou 90%) pelo governo ou seus candidatos. Uma das características dos Direitos Fundamentais e Humanos é precisamente o de serem direitos contramajoritários4: permitindo a minorias terem os seus direitos, não na penumbra, mas à luz do dia, de cabeça levantada. Por isso é que, por exemplo, fazer referendos para decidir desses direitos é contrário aos grandes princípios. Sabe-se que, em geral, as minorias não são bem vistas (por preconceito) pelas maiorias, que raramente lhes dariam razão em referendo. O referendo é, assim, uma forma de votação muito ambígua: parecendo ser o suprassumo da democracia é também, em muitos casos, o lugar onde a demagogia e a confluência fortuita de contrários (uma vera coincidentia oppositorum) acaba por triunfar, quando, pelo contrário, por vezes se chegaria alternativamente a melhores soluções pela negociação entre representantes. A verdade é que, na escuridão da urna os votos não dialogam entre si, e as posições extremam-se. Por isso tantos pretendem derrubar constituições democráticas por referendos populistas. Aliás, as eleições e o princípio maioritário têm de ser inteligentemente integrados num clima geral de vivência democrática. A democracia eleitoral só funciona, só funcionará, como complemento e corolário da democracia civil e da democracia plena, numa sociedade ao mesmo tempo governada pelo Cf. uma boa explanação desta ideia in CASALMIGLIA, A. — Ensayo sobre Dworkin, prólogo à edição em língua castelhana de Taking rights seriously, trad. de Marta Guas 4
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rigor da representatividade e da representação (democracia representativa), pela dialética da explicitação de motivações e da procura de consensos (democracia deliberativa), e pela ação empenhada de cada cidadão na coisa pública (democracia participativa). Além disso, uma democracia plena não pode ser só política, mas cultural, social, e econômica (democracia social, lato sensu). Sabe-se, como é evidente, que democracias debilitadas no plano social não funcionam bem eleitoralmente. E, desde logo, a falta de alfabetização, cultura ou esclarecimento de certos eleitorados resultam em escolhas péssimas. A falta de estabilidade econômica e de tempo, e de inquitação cívica da esmagadora maioria dos cidadãos, em muitos países, fazem com que da sociedade civil não se elevem partidos e movimentos regeneradores, e a eleição seja quase sempre uma escolha entre males menores. "Mais do mesmo" é uma expressão recorrente nestes casos. Tal leva a uma democracia morboso, a que preferimos contudo chamar democracia crepuscular. Daí que em alguns países haja o voto obrigatório (se não o houvesse pergunta-se de quanto seria a abstenção) e noutros, como em Portugal, haja vozes autorizadas, como a do Prof. Freitas do Amaral, antigo Vice-Primeiro Ministro e antigo Presidente da Assembleia Geral da ONU, que o advogam. Realmente, quando não há consciência cívica suficiente, pode parecer que a obrigatoriedade do voto seria uma forma de a ir suprindo. Resta saber se o voto, assim, não seria de protesto pura e simplesmente, e sempre desinformado. Ou, talvez pior ainda, uma obrigação que se cumpre pela simples necessidade legal de ser cumprida, sem informação, sem intencionalidade. O voto é uma arma que infelizmente poucos sabem manejar... E do mesmo modo que muitos assinalam em muitas universidades do primeiro mundo um sentimento blasé de desinteresse de muitos estudantes, a par de um frenesim aturdido de professores em busca de popularidade, fama, ou simplesmente manutenção do emprego - num visível desequilíbrio - poderia também mal comparar-se a situação dos candidatos sem sono, usando mil artifícios e gastando milhões para tentar cativar um eleitorado descrente, cansado, indiferente.
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1.2 DA ATUAL QUESTÃO PARTIDÁRIA EM PORTUGAL A democracia portuguesa, que se reencontrou5 há quarenta anos (pela revolução de 25 de abril de 1974) não está de plena saúde, porque alguns não estão a cumprir o seu papel no contrato social. Em plena crise, muito agravada pelos pseudoremédios da dita austeridade (que patentemente só a agravaram), como é normal e vem sido corroborado por autoridades económico-financeiras independentes, eleva-se um coro reacionário e revanchista contra os partidos. A História repete-se. Eles seriam os culpados por tudo, e há quem reclame a volta do ditador Oliveira Salazar, ou de D. Sebastião, o mítico rei que viria numa manhã de nevoeiro (desde o séc. XVI que é esperado pelos saudosistas, mesmo fora de Portugal 6) um salvador de mão de ferro qualquer. É grave sintoma de falta de formação cívica e política. Mas também uma grande prova tristemente real contra os usufrutuários do regime (é a lei de bronze - ou de ferro - das oligarquias7) que vivem num ingénuo (ou não) otimismo e se recusam a considerar os déficits reais que existem: desde logo na qualidade da representação, ou da educação. Adoram estatísticas e comparações com países com sistemas com que não se pode comparar. Apesar, obviamente, de, tanto num como noutros dos domínios referidos se estar muito melhor que antes da revolução dos cravos, como seria de esperar. 5
Contudo, a democracia portuguesa é antiga, embora não sob a forma moderna, evidentemente. Cf., v.g., desde logo, CORTESÃO, Jaime — Os Fatores Democráticos na Formação de Portugal, 4.ª ed., Lisboa, Livros Horizonte, 1984. 6 BERCE, Yves-Marie — Le roi caché. Sauveurs et imposteurs. Mythes politiques populaires dans l'Europe moderne, Paris, Fayard, 1990; BESSELAAR, José van den — O Sebastianismo — História Sumária, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Potuguea, 1987; QUADROS, António — Poesia e Filosofia do Mito Sebastianista, I. O Sebastianismo em Portugal e no Brasil, Lisboa, Guimarães, 1982; II. Polémica, história e teoria do mito, Lisboa, Guimarães, 1983; SOUSA, Maria Leonor Machado de — D. Sebastião na Literatura Inglesa, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1985; AZEVEDO, J. Lúcio de — A Evolução do Sebastianismo, Lisboa, Livraria Clássica Edit., 1918. 7 MICHELS, Robert — Sociologia dos Partidos Políticos, trad. port., Brasília, Universidade de Brasília, 1982, máx. p. 23 “A Constituição de oligarquias no seio das múltiplas formas de democracia é um fenômeno orgânico e por conseqüencia uma tendência à qual sucumbe fatalmente toda organização, seja socialista ou mesmo anarquista. Haller já tinha observado que, sob toda forma de convivência social, a natureza cria por si mesma relações de dominação e de pendência. A supremacia dos chefes nos partidos democráticos revolucionários é um fato que deve ser levado em conta em qualquer situação histórica presente ou futura.". E não se trata apenas de chefes de partidos democráticos revolucionários. Há a criação de uma "classe política", com o tempo cada vez menos revolucionária, e que pode até perder o élan democrático. Sem prejuízo, evidentemente, de haver sempre revolucionários ou meramente democratas idealistas sempre fiéis aos seus ideais, e que não se acomodam. E no Portugal de hoje há alguns exemplos, infelizmente incompreendidos pela massa que calunia frequentemente esses veneráveis anciãos, apenas porque os inveja e com o único argumento de que estão velhos, e deveriam trocar a ágora pelas pantufas e pelos netos. É no que resulta a falta de consciência cívica. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Os partidos não se encontram acima de toda a suspeita, nem isentos de todas as culpas. É preciso ver a realidade de alguma degenerescência: muitos partidos por vezes se enquistam e não há a sensação de que estejam a ser suficientemente abertos e cabalmente democráticos. Algumas perguntas são pedra de toque: Há verdadeiro debate interno? As vozes discordantes, quando existam, têm meios de se fazer ouvir? São respeitadas? De onde partem as políticas: do topo ou da base? De onde parte a nomeação dos candidatos? Das bases ou de comitês, centrais ou locais? Há militância real? Há opiniões novas e possibilidade de discordar de vagas de fundo? Seria útil a transparência, com dados objetivos. A imagem que passa para a sociedade civil, mesmo para as pessoas informadas e cultas, é que os líderes supremos e em segundo lugar as máquinas burocráticas dominam os partidos, e que as propostas realmente políticas e as escolhas realmente políticas escasseiam, num quase unanimismo em que se permite uma desinência quase apenas clubística... Apesar de boas intenções de alguns (que não se negam), os líderes supremos e os aparelhos parecem dominar, e de eleição para eleição resulta uma mesmidade de caras apresentadas ao eleitorado que chega a cansar... e a desesperar. Alguns, decerto, excelentes profissionais já. Mas onde a renovação? E por vezes nem se recandidata a competência. Ora a renovação não se consegue simplesmente com panaceias, como a (natural) ascensão das juventudes partidárias, ou as flores-na-botoeira dos independentes, que tanto irritam militantes de base que dão o corpo ao manifesto e se veem assim ultrapassados por outsiders, criando até mau clima nas candidaturas. E em geral pouco trazendo de novo, cremos que nem sequer em votos. Há infelizmente pelo mundo fora líderes que estarão decerto persuadidos que o aparelhismo, com os seus múltiplos truques e fraudes, será uma doença incurável com que se teria sempre que conviver. E por isso não apenas não a atacam decisivamente (preferindo eventualmente paliativos), como até, em certos casos, parece irem alimentando a fera, decerto para que se não torne muito agressiva. Esta é normalmente uma política eticamente suicida, embora haja que reconhecer-se que o vírus em causa é útil em algumas circunstâncias na conquista do poder - interno e / ou externo. Mas fiar-se e apoiar-se nele acaba por ser fatal CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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para a boa política. Ao pensarem os partidos entregues a vivaços e videirinhos, intriguistas e corruptos (alguma comunicação social e forças políticas querem inculcar essas imagens) as gentes de bem fogem deles e estigmatizam-nos, contribuindo para o descrédito geral da democracia, que não pode existir sem organizações partidárias, chame-se-lhes o que se lhes chamar. Recordese que mesmo as ditaduras ferozmente antipartidárias têm os seus partidos únicos, ainda que se lhes chame outra coisa. O Estado Novo português chegou ao requinte de criar o seu partido único "União Nacional" por impulso ministerial, numa clara hibridação e conúbio entre partido e Estado. Os Estatutos da União Nacional são apresentados com fonte no na Secretaria-geral do Ministério do Interior, dando todo o caráter “orgânico” ao “partido”, e vêm significativamente a lume na véspera8 da publicação do projeto de Constituição de 1933. Para recordar as memórias históricas curtas, valerá certamente a pena deixar registado o art. 1.º dos referidos Estatutos. Algo como isto não pode deixar de ser o almejado pelos que querem acabar com os partidos: A União Nacional é uma associação sem carácter de partido e independente do Estado ((o que mal se compatibiliza com a referida génese)), destinada a assegurar, na ordem cívica, pela colaboração dos seus filiados, sem distinção de doutrina política ou de confissão religiosa, a realização e a defesa dos princípios consignados nestes estatutos, com pleno acatamento das instituições vigentes.
Do mesmo modo, a mensagem que os partidos lançam nem sempre é serena e séria, mas em muitos casos uma transposição mediática da clássica agitprop. Um clima instalado de agitação e propaganda cria caldo de cultura propício à eclosão de totalitarismo ou, no mínimo, a um apertado cerco ao pluralismo de opinião. Uma degeneração cancerígena é possível, num pano de fundo de colonização mental das massas acríticas, que poderão vir a apoiar um pseudosalvador, na verdade um medíocre voluntarioso erguido mediaticamente e ao serviço dos grandes interesses (sempre opacos aos olhos de um povo narcotizado e desesperado), ou pura e simplesmente um fanático louco, que a breve trecho, como a História tem dado abundantes exemplos, poderá mesmo mostrar os
RIBEIRO, Maria da Conceição Nunes de Oliveira – O Debate em torno do Projeto de Constituição do Estado Novo na Imprensa de Lisboa e Porto (1932-1933), in “Anuário Português de Direito Constitucional”, Coimbra, Coimbra Editora, II, 2002, p. 241. 8
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seus instintos criminosos9. Se ao nível micro- pululam os pequeninos tiranetes, estará a sociedade de novo preparada para grandes tiranias? Se não houver quem enfrente esses pesadelos, sim. Se não, não! Espera-se que não. Mas é sintomático que, nas vésperas da comemoração dos 40 anos do 25 de abril de 1974, data da revolução dos cravos, faltando pela terceira vez os militares que fizeram a revolução às rotineiras comemorações oficiais, em que, em 2014, se lhes negou explicitamente a palavra, nomes como Diogo Freitas do Amaral e Mário Soares (que se chegaram a defrontar em eleição presidencial) pareçam convergir num diagnóstico terrível do estado da democracia portuguesa. E o primeiro de algum modo apele à criação de novos partidos, enquanto o segundo espera que a renovação venha das eleições europeias de finais de maio de 2014, ou depois10...
2 DA ELEIÇÃO DO PARLAMENTO EM PORTUGAL
2.1 COMPOSIÇÃO, INELEGIBILIDADES E INCOMPATIBILIDADES
Em Portugal, o Parlamento é unicameral (as anteriores experiências, de Câmara dos Pares, Senado e Câmara Corporativa não provaram os seus especiais méritos: embora haja um hábito mediático de chamar senadores a políticos séniores, e alguns deles não parece desgostarem do título informal), chamando-se, por curiosa iniciativa de um constituinte então independente (o Professor catedrático da Faculdade de Direito de Coimbra, Doutor Carlos Alberto da Mota Pinto), ao que se diz inspirado num grito vindo das galerias, Assembleia da República. Pelo menos miticamente é uma origem popularíssima da designação para a Casa da Democracia. A Constituição explicita, como lhe cumpre, a composição desse órgão de soberania com dimensão parlamentar, que constitucionalmente tem – enquanto não prevalecerem novas 9
Tem passaso injustamente pouco apercebido o notável estudo, de análise e de sinal de alarme de RIEMEN, Rob — De eeuwige terugkeer van het fascisme, trad. port. de Maria Carvalho, O Eterno Retorno do Fascismo, trad. port., Lisboa, Bizâncio, 2012. V. ainda PAXTON, Robert O. — The Anatomy of Fascism, Vintage, Nova Iorque, 2004. 10 LOPES, Maria — Mário Soares quer governo derrubado; Freitas pede novo partido. Ed. online: http://www.publico.pt/politica/noticia/mario-soares-quer-governo-derrubado-freitas-pede-novopartido1633042http://www.publico.pt/politica/noticia/mario-soares-quer-governo-derrubado-freitas-pede-novopartido1633042. Consultado em 24 de abril de 2014. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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tendências revisionistas que sempre clamam por menos deputados, logo, por maior representação relativa dos partidos maiores e tendência para a eliminação parlamentar das minorias -, por enquanto, de cento e oitenta a duzentos e trinta membros (art. 148.º). Como um elemento que debilita o jogo democrático, os deputados são eleitos segundo leis eleitorais que estão excessivamente na dependência das maiorias, ou dos governos, desde o tempo da monarquia constitucional. Ao ponto de os resultados poderem ser previamente submetidos a uma engenharia (ou manipulação, diriam alguns), por via das leis eleitorais. Na monarquia constitucional tal era muito habitual, sobretudo pelo método de juntar ou separar freguesias urbanas e rurais. O mesmo terá ocorrido recentemente com uma alteração do mapa local (com inúmeras fusões), tendo a fusão de freguesias beneficiado largamente (e enquanto tal se mantiver) os partidos do governo atual, sem que as oposições visivelmente hajam suficientemente protestado, o que é pelo menos surpreendente. O benefício é visível nas eleições locais, autárquicas. Está ainda por estudar em que medida possa ter influência em resultados em que os círculos eleitorais não coincidem com as freguesias. A Constituição eximiu-se a determinar um rol fechado e total de inelegibidades (estas, em geral, no art. 50.º, 3) e incompatibilidades, remetendo para a lei eleitoral (art. 150.º) e para a lei em geral (art. 154.º, 2). Mas dela decorrem, ou da natureza das coisas, algumas incompatibilidades naturais, especificamente emergentes do princípio da separação dos poderes, ainda que a lei eleitoral nada dissesse. Contudo, ainda assim nesta sede se assinala a incompatibilidade resultante de se ser candidato por mais de um círculo eleitoral da mesma natureza (ressalvado o círculo nacional, quando exista), ou de o mesmo candidato figurar em mais de uma lista candidata (art. 151.º, 2). Além das incompatibilidades que implicam inelegibilidade, há que considerar incompatibilidades supervenientes. Como as que resultam de nomeação de um deputado para o Governo: a partir desse momento, não poderá exercer o mandato até à cessação de tais funções, sendo entretanto substituído na Assembleia da República (art. 154.º, 1). Note-se que, ao contrário de outras soluções, em Portugal os membros do governo não necessitam de ser (de ter sido eleitos previamente) deputados. Houve até há não muito tempo um episódio eloquente: um então poderoso Ministro de Estado e das Finanças (hoje diretor de assuntos orçamentais do Fundo Monetário Internacional) corrigiu uma deputada
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publicamente, no Parlamento, afirmando que não tinha sido eleito "coisíssima nenhuma"11. Os comentários e interpretações não se fizeram esperar. Por exemplo, um conhecido comentador, Pedro Mexia, teria considerado que o “'coisíssima nenhuma' demostra uma clara repugnância pelo escrutínio popular, pela ideia de ter sido eleito"12. Houve porém quem considerasse este comentário benevolente13. O que interessa não é o fait divers em si, e muito menos a questão pessoal e partidária: é o pano de fundo de tensão social e de mentalidades, que talvez não devesse estar em causa 40 anos depois de uma revolução democrática. A verdade é que há vantagens e desvantagens na exigência de eleição prévia de um futuro membro do governo. A favor da não necessidade da eleição milita a questão da preparação técnica. Mas (e agora estamos pensando muito além e fora do episódio relatado, como é óbvio, que é gota no ocenano de nomeações ao longo dos tempos) por vezes ocorre que algum distanciamento (e até enquistamento) dos tecnocratas precisaria de um banho termal de povo. O que uma eleição propiciaria, ao menos em parte. Por outro lado, é recorrente a crítica (muitas veze justa) da falta de preparação técnica (e até cultural: mas isso também afeta os tecnocratas frequentemente) de muitos dos que são populares no sufrágio. Contudo a questão da popularidade, em Portugal, com o sistema de voto em listas fechadas por chapa ou símbolo eleitoral (vota-se num partido, que previamente apresenta uma lista ordenada de candidatos, afixada no exterior da sala da assembleia de voto) é muito menos relevante. Há imensas figuras que jamais seriam eleitas se não fossem guindadas aos lugares pelos jogos palacianos internos nos partidos. O que também tem prós- e contras, evidentemente. Portanto, não é líquido que a submissão ao sufrágio, num sistema assim, dê qualquer contacto com a realidade do País ou com o Povo. Um candidato pode tranquilamente nem fazer campanha, fiando-se na dos seus colegas de lista e mais latamente de partido, e na capacidade persuasiva do símbolo, em grande medida clubístico (sobretudo os mais velhos, votam ainda por "amor à camisola", como se diz em Portugal). Quanto às referidas inelegibilidades, elas também são apresentadas constitucionalmente de forma muito vaga: rementendo para a lei, que, contudo, deve restringi-las ao necessário para garantir a liberdade de escolha dos eleitores e a isenção e independência do exercício dos respetivos cargos. 11
Gravação in: https://www.youtube.com/watch?v=GSdhT9yeFOg . Consultado em 24 de abril de 2014. Apud http://www.portais.ws/index.php?page=art_det&ida=40141. Consultado a 24 de abril de 2014. 13 Apud ibidem. 12
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2.2 CÍRCULOS ELEITORAIS E REPRESENTATIVIDADE
Hoje, a Constituição (art. 149.º, 1) dá abertura para a futura possível existência de círculos eleitorais uninominais (a par dos existentes, plurinominais, com número de deputados proporcional aos eleitores em cada círculo inscritos – art. 149.º, 2), que alguns creem ser panaceia para a sempre alegada “distância entre eleitos e eleitores”, ritualisticamente repetida, mas que não se conseguirá resolver de forma simples... E que em muitos casos é apenas álibi (como muitas reformas no macro- e no micropolítico) para a conhecida "dança das cadeiras". O nosso sistema não é ideal, não é perfeito. Mas há alternativas que claramente não serviriam: por exemplo, se os círculos eleitorais para as eleições parlamentares fossem reduzidos, deixando de ser distritais como agora, a representatividade, na riqueza do seu largo espectro, diminuiria muito. Se houvesse que ser eleito um único candidato por círculo eleitoral (ou mesmo que fossem poucos) apenas prejudicaria (em alguns casos anularia) a representação das minorias, e mesmo de minorias que podem ser muito vastas. Além disso, beneficiaria uma bipolarização partidária, assim artificialmente criada, tanto mais que os partidos que sempre têm sido maioritários, desde há 40 anos (PS - Partido Socialista, da Internacional Socialista e integrado no Partido Socialista Europeu, e PSD / PPD - Partido Social Democrata, anteriormente Partido Popular Democrático, integrado no Partido Popular Europeu) se reclamam de ideologias semelhantes (embora seja certo que, na prática, as suas histórias políticas e os seus aliados internacionais os afastem muito e os contradistingam)14. Entraríamos num sistema político novo, de centrão instalado, irremovível, num bloco central certamente imobilista, atirando para as margens do regime os mais inconformistas, à direita e à esquerda, certamente desesperando de uma solução alternativa, realmente alternativa, no seio do statu quo. Aliás, mesmo com o sistema atual, é o que já se teme, com um Partido Socialista que, para muitos (e mesmo muitos socialistas) não estará a 14
Para uma rápida abordagem do panorama partidário e ideológico português, cf. FERREIRA DA CUNHA, Paulo — O espectro Político-ideológico Português Contemporâneo: Tradições, Assimetrias e Paradoxos (1974-2006), in Pensamento, Experiência e Formas Políticas em Portugal e no Brasil (sécs. XIX e XX), Atas do VII Colóquio Antero de Quental, 11 a 16 de setembro de 2006, São João Del-Rei, Minas Gerais, Brasil, Universidade Federal de São João Del-Rei, UFSJ / Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, 2007, pp. 342-360. Ou Idem — Repensar a Política. Ciência & Ideologia, 2.ª ed., Coimbra, Almedina, 2007, p. 287 ss. Para as ideologias em geral, Ibidem, p. 225 ss. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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representar atualmente uma real alternativa de oposição ao presente governo do PSD e do CDS / PP (Centro Democrático Social - Partido Popular - Partido integrado, com o PSD, no Partido Popular Europeu) que, segundo o insuspeito Prof. Freitas do Amaral (que foi Presidente da União Europeia das Democracias Cristãs) é o mais direita desde a Revolução dos Cravos15. Apesar de muita vozearia em prol de alterações, aos longo dos anos, a Constituição mantém inalterado o princípio do sistema eleitoral proporcional (aliás limite material ou cláusula pétrea de revisão constitucional, art. 288.º, h), especificando-se a utilização da média mais alta de Hondt para a conversão dos votos em número de mandatos dos diferentes partidos votados (art. 149.º, 1). E podemos ver na Constituição uma vontade de impedir a nociva concentração de representação nos maiores partidos, com sacrifício das margens ou minorias partidárias (os pequenos partidos), por exemplo logo no art. 152.º, 1, segundo o qual a lei não pode exigir uma percentagem de votos nacional mínima como limite à conversão dos votos em mandatos. Esse teto ou barreira é uma das formas de afastar forças politicas por vezes importantes. Na Alemanha, por exemplo, o Partido Liberal (FDP) está muitas vezes em risco de o não franquear, e é uma das forças mais antigas, importantes e, na verdade, uma das mais representativas da sociedade alemã (com os sociais-democratas / socialistas democráticos do SPD, os democratas cristãos / sociais cristãos da CDU e do CSU, e mais recentemente, os Verdes). 2.3 CANDIDATURAS PARTIDÁRIAS E PAPEL DOS “INDEPENDENTES”
Outra das alegadas soluções mágicas para a alegada crise do Parlamento - crise essa que é, mais que uma realidade, um tópico antidemocrático e antiliberal muito comum no pensamento autoritário e conservador - seria o alargamento a independentes da capacidade de propositura de candidaturas. A própria expressão “independente” é reveladora de certos pressupostos de uma cultura antidemocrática, antiparlamentar e sobretudo antipartidária, que vigorou em Portugal durante 15
"Este é o 'Governo mais à direita dos últimos 40 anos', diz Freitas do Amaral", apud TSF, 21 de abril de 2014, ed. online: http://www.tsf.pt/PaginaInicial/Portugal/Interior.aspx?content_id=3822223. Consultado em 24 de abril de 2014. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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não muito longínquos 48 anos (de 1926 a 1974). Como se as pessoas que aderem a partidos (outra expressão perversa é “pertencentes a partidos”: como se os partidos democráticos pudessem possuir as pessoas) perdessem, ipso facto, a sua independência. O problema é que as direções partidárias pensam muitas vezes que tal ocorre e deve ocorrer. Desde logo com a imposição de disciplina de voto aos deputados. Pode haver quem perca a liberdade de espírito e se autolimite nos seus movimentos ao pertencer a uma organização qualquer, como um partido. Há infelizmente casos em que tal ocorre. Mas um partido ou uma organização qualquer que o obrigasse não seria compatível com a cultura democrática do Estado Constitucional em que queremos viver. Desde logo afirma a lei dos partidos (Lei Orgânica n.º 2/2003 de 22 de agosto): Artigo 23º - Disciplina Interna 1. A disciplina interna dos partidos políticos não pode afectar o exercício de direitos e o cumprimento de deveres prescritos na Constituição e na lei.
Não cremos que a emergência de independentes (no sentido de pessoas não filiadas em partidos) vá resolver nada (podendo até complicar as coisas), dadas as dificuldades de agenciamento de meios por tais grupos, no caso se serem mesmo independentes. Se dependerem do poder económico, ou se o representarem mesmo (probabilidade muito plausível), mais ou menos diretamente, a política cairá ainda mais no descrédito: onde estará, então, a tão alegada independência? Em todo o caso, o risco de aumento de candidatos populistas, prometendo “bacalhau a pataco” é maior em quem não tem o peso e a responsabilidade de uma ideologia, ou, no mínimo, a observação crítica institucional de companheiros de partido. É também de esperar a candidatura de personalidades mediáticas: locutores de televisão, artistas, etc.. Cremos que os exemplos estadunidenses de eleição de antigos artistas de cinema são esclarecedores a esse respeito. Para já, a Constituição reserva o monopólio das candidaturas nas eleições legislativas aos partidos políticos (art. 151.º, 1) abrindo a possibilidade de haver igualmente candidaturas independentes apenas para os órgãos das autarquias locais – art. 239.º, 4, in fine). Nada impediria que se abrisse a disputa eleitoral a grupos de cidadãos com um mínimo de assinaturas reconhecidas de apoiantes equivalentes a por exemplo metade do número de pessoas necessárias para a legalização de um partido. Seria uma prova de abertura democrática, e uma forma de matar o álibi antipartidário, que se enquista no argumento do CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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monopólio partidário. E poderia ser que algo de novo surgisse... Embora sejamos a tal propósito muito cético. Enquanto tal não ocorre (e pode ser que não ocorra tão cedo, porque, no fundo, os partidos terão quiçá algum receio de que o descontentamento os possa varrer o minimizar por essa via da cena parlamentar), fica à responsabilidade e livre alvedrio de cada partido ou coligação concorrente convidar ou aceitar para as suas listas cidadãos não filiados nesses partidos. A inclusão de independentes, assim como de militantes de outros partidos não concorrentes autonomamente ao ato eleitoral em causa (mas sem coligação formal com o partido de acolhimento) é assim possível, e tem sido utilizada, designadamente como tentativa de alargar o eleitorado para além dos normais eleitores, e contribuindo assim para o reforço da pluralidade de pontos de vista na Assembleia, quando ocorre (e tem sido o caso), que tais independentes ou membros de outros partidos ou associações políticas sejam eleitos. Há, assim, quatro principais situações possíveis, de iure constituto (art. 151.º, 1): a) a candidatura autónoma de um partido, b) a candidatura de uma coligação de partidos, c) a candidatura de partido ou coligação com inclusão de independentes, e a d) candidatura de partido ou coligação com participação de outro ou outros partidos ou associações políticas através de membros seus a título de independentes. Já não parece ser curial a simples participação de um membro de um partido nas listas de outro sem o conhecimento e a anuência do primeiro, tendo mesmo havido processos disciplinares partidários por tal facto, o que parece legítimo se se considerar, além da própria natureza das coisas, o lugar paralelo da lei dos partidos políticos (Lei Orgânica n.º 2/2003 de 22 de agosto), que afirma, no seu art. 21.º, 2, a incompatibilidade de pertença simultânea a dois partidos. Mas não é só uma questão legal: por que razão, em normalidade, alguém filiado num partido, sem o consentimento dos seus correlegionários, haveria de concorrer no limite contra esse mesmo partido? Outro caso se coloca também, agora em eleições autárquicas e presidenciais: um militante de um partido que concorra contra candidato(s) oficial(is) do partido, ainda que como independente. Cremos que é questão que deve ser considerada mais venial, e no caso de eleição presidencial totalmente possível (e já ocorreu). Porquanto a eleição do presidente da CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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República não deve ser partidarizada, e portanto (embora seja fragilizador para o partido e potencialmente desgastante e penalizador para as várias candidaturas) deve ser livre a candidatura de candidatos vários do mesmo partido. Ainda que o partido opte por um. Já nas eleições autárquicas, tem havido processos de expulsão de candidatos que concorrem contra o próprio partido, como independentes. Embora a sanção seja muito forte, afigura-se-nos que não é muito curial este procedimento. Mas são situações que devem ser consideradas caso e caso, e certamente por comissõe disciplinares nacionais, e não locais, para haver total isenção dos julgadores.
2.4 ASSEMBLEIA DA REPÚBLICA, PRESIDENTE E GOVERNO
A Assembleia da República é um órgão com múltiplas funções, como aliás é corrente nos tempos que correm: legislativo, de debate político e de fiscalização da atividade governativa. Esta fiscalização é tanto mais legítima e vital para a democracia quanto é da base do apoio parlamentar que resulta, por seu turno, a legitimidade governamental. Não elegemos diretamente o governo, mas sim aqueles (os deputados) que decidirão da sua manutenção em funções, depois de indigitado pelo Presidente da República, que para tal indigitação deve ter em conta os resultados eleitorais. Ou seja: não sendo o Governo eleito pela Assembleia, dela depende, contudo, a sua constituição (mesmo antes da revisão constitucional, e mesmo na experiência gorada dos governos de iniciativa presidencial: em que a Assembleia não aceitou governos que não tivessem real expressão partidária) e a sua manutenção em funções. Obviamente que também depende da nomeação presidencial do Primeiro-Ministro (mas tendo em conta os resultados eleitorais) e da confiança (ainda que eventualmente possa ser uma simples confiança passiva) do Presidente da República. Mas esta ligação do Presidente da República com o Governo por sua vez depende, em boa medida e na prática, da própria estabilidade e aceitação do Governo pelas forças parlamentares. Não apenas da existência de uma maioria, mas da capacidade dessa maioria dialogar e conseguir alguma legitimidade para além de si, junto mesmo das minorias. Apenas um Presidente excessivamente comprometido, dependente ou apoiante de uma maioria não terá em conta apelos das minorias. E não ouvirá o clamor das ruas, mesmo, em caso de graves CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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atropelos. O Presidente da República é garante do regular funcionamento das instituições democráticas, e deve demitir o Governo ou dissolver a Assembleia sempre que (o que será situação gravíssima e excecional) um governo, ainda que com legitimidade de título (apoiado por uma maioria parlamentar) haja perdido a sua legitimidade de exercício (por exemplo, por reiterada política anticonstitucional). Por menos, muito menos que o cenário hipotético que acabamos de referir, já se chamou o Povo a de novo pronunciar-se em eleições legislativas. Tal ocorreu com o Governo de Pedro Santana Lopes, que, tendo embora maioria no Parlamento, não conseguiu acolhimento ou acatamento quiçá mesmo da parte de membros do principal partido que o compunha e deveria em princípio apoiar. Tendo-se o próprio então Primeiro-ministro queixado dessa falta de apoio, e da forma como se teria maltratado o governo, qual bebé no berço 16, metáfora na altura muito difundida. Assim, o Presidente Jorge Sampaio decidiu pôr fim a esse Governo. Mas, sintomaticamente, foi à Assembleia da República que dissolveu e não ao governo que demitiu. Para permitir, certamente, uma renovação da decisão popular, e uma clarificação dos apoios, que tão confusos parecia estarem. Note-se que Pedro Santana Lopes fora levado à presidência do governo antes de mais por "indicação" do seu partido ao Presidente da República, na sequência da saída, para Presidente da Comissão Europeia, do então Primeiroministro, José Manuel Durão Barroso. Embora, no sistema eleitoral português, o Primeiro-ministro não seja eleito diretamente, é praxe constitucional (se é que não é mesmo um vero costume constitucional, para mais com a contraprova das reprovações parlamentares de governos de iniciativa presidencial, com Primeiros-ministros da confinça exclusiva do Presidente da República) que seja convidado o rosto que o partido mais votado apresentou ao eleitorado como seu "candidato (obviamente informal) a Primeiro-ministro", que quase invariavalmente (e invariavelmente para os grandes partidos) tem sido o Presidente ou o Secretário-geral (conforme seja a figura ativa mais importante no respetivo partido) do partido. Assim, Durão Barroso tinha tido esse fumus de legitimação pessoal (talvez até mais que simples fumus), mas a legitimidade de Santana Lopes 16
Só conseguimos localizar ecos dessas declarações, de 2004, in : "(...) ex-PM que usou em 2004 a imagem de um bebé no berço a ser atirado ao chão". Ed. online: http://sol.sapo.pt/inicio/Politica/Interior.aspx?content_id=74503 . Mais recentemente aludiu a "cicatrizes" e "facadas nas costas": «Tenho as costas cheias de cicatrizes das facadas que levei», ed. online: http://www.tsf.pt/paginainicial/interior.aspx?content_id=770230. Ambos consultados em 24 de abril de 2014. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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decorria sobretudo do seu importante lugar no Partido ganhador das eleições, e da decisão indigitadora do respetivo órgão diretivo. Esta situação não explicará a debilidade que subsequentemente se sentiu nesse governo, mas será este talvez um dado contextual a ter em conta na interpretação da situação, certamente. Sublinhe-se que, constitucionalmente, a decisão do então Presidente da República de escolher o n.º 2 do partido vencedor das eleições, para mais por ele indicado, se revelou prudente. Assim como nada haverá no plano constitucional a objetar à decisão de dissolução da Assembleia. Claro que, em casos como estes, de ação ou omissão presidenciais, muito se pode discutir, pró- e contra, no plano político e partidário, mas isso são outros contos, que aqui não cabem.
3 PROPOSTAS DE ALTERAÇÕES NO SISTEMA ELEITORAL
3.1 ANTIPARLAMENTARISMO
As propostas de revisão constitucional, ou mesmo de substituição (com golpe, evidentemente, com rutura) constitucional são em geral a aborrecidamente repetitivas e faltas de imaginação. As mesmas panaceias de sempre, algumas com velho currículo autoritário ou mesmo ditatorial renascem numa democracia que não soube acautelar-se de corrupções e gastos indevidos, e se encontra nas mãos dos credores, a braços com o garrote orçamental, pelo menos. O que aumenta o descontentamento, pois coloca na pobreza ou no seu limiar milhões de cidadãos. É assim fácil fazer da Constituição e dos representantes o bode expiatório. Incapazes de ver os enormes buracos financeiros de bancos que fizeram magicamente desaparecer verbas astronómicas, que dariam para pagar, por exemplo, vários anos de gastos na saúde, há opinadores vítimas de alienação e propaganda (não serão todos, mas certamente alguns) que acreditam que colocar o País no são se consegue com retoques cosméticos atacando precisamente pilares da democracia. Há quem pense, como aflorámos supra, que uma mudança constitucional fundamental seria a diminuição do número de deputados. Como se o que se gasta com eles fosse relevante.
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Houve já quem temesse que o passo seguinte viesse a ser a proposta de abolição das eleições, pelo dinheiro que consomem. Mas analisemos a proposta em si mesma. Depende, evidentemente, de que diminuição, para quantos... A diminuição do número de deputados na Assembleia da República pode não ser conseguida por via de revisão constitucional, mas simplesmente por lei ordinária. Com efeito, o art.º 148.º da Constituição em vigor já coloca um intervalo para o número de membros da Assembleia da República: prevendo que os deputados serão entre 180 e 230. Menos de 180 implicaria, isso sim, como é óbvio, revisão constitucional. Tal como mais de 230. E o curioso é que, com cerca de 10 milhões de habitantes, em termos percentuais face à sua população, Portugal é dos países com menos deputados, está abaixo da média17. Os que sempre gostam de se louvar no exemplo alheio esquecem-se deste pequeno grão na engrenagem do seu discurso. Desde, e de outros do género... Apesar de tudo, a diminuição do número dos deputados, pelo seu simbolismo (e a Constituição tem inegavelmente, além das demais, uma fulcral função simbólica18), mesmo por lei ordinária, aproxima-se, “perigosamente” daquelas matérias que poderíamos considerar materialmente constitucionais posto que formalmente ordinárias. Embora as consequências práticas de tal quiçá não sejam relevantes, porquanto, indicando a própria letra da Constituição a possibilidade de diminuição do número de deputados, não se nos afigura possível qualquer controlo da constitucionalidade no caso de diminuição, sendo forçada a invocação de que se trataria de norma constitucional “menos constitucional” (ou “inconstitucional”), categoria que, como é sabido, coloca não poucos problemas, mesmo para questões de outra natureza19.
Cf., v.g., CORREIA, Pedro — Portugal abaixo da média no número de deputados, in "Diário de Notícias", 22 de setembro de 2006, ed. online: http://www.dn.pt/inicio/interior.aspx?content_id=646404. Consultado em 24 de abril de 2014. 18 Cf., por todos, NEVES, Marcelo — A Constitucionalização Simbólica, São Paulo, Acadêmica, 1994. E os nossos estudos Mito e Constitucionalismo. Perspetiva Conceitual e Histórica, Coimbra, 1988, Separata do “Suplemento ao Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra“, vol. III, Coimbra, 1990 (tese de Mestrado); Constituição, Direito e Utopia. Do Jurídico-Constitucional nas Utopias Políticas, Coimbra, Faculdade de Direito de Coimbra, Studia Iuridica, Coimbra Editora, 1996 (tese de doutoramento); Teoria da Constituição, vol. I. Mitos, Memórias, Conceitos, Lisboa, Verbo, 2002; Traité de Droit Constitutionnel. Constitution universelle et mondialisation des valeurs fondamentales, Paris, Buenos Books International, 2010 (também com edição em e book); La Constitution naturelle, Paris, Buenos Books International, 2014. 19 Recorde-se sempre o clássico BACHOF, Otto — Normas Constitucionais Inconstitucionais?, trad. portuguesa de J. M. Cardoso da Costa, Atlantida, Coimbra, 1977. 17
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Constitucional é, pois, uma diminuição do número de deputados até ao limite mínimo de 180 (o que nos colocaria na situação de uma revisão meramente aparente: e não efetiva). A questão é se tal é conveniente, útil e justo. E se porventura o espírito da Constituição (também se lhe pode chamar o seu cerne, ou o seu programa, embora em rigor haja diferenças), pelo menos nos tempos que correm, atenta a constituição real de composição partidária (assim não seria se houvesse um claro bipartidarismo: e temos que pensar que a Constituição, se quiser durar, tem de prever, de olhar para o futuro), não ficaria um tanto ferido com a diminuição do número de deputados. A considerarmos este último argumento, até a só aparente revisão acabaria por ser uma forma de revisão real, efetiva, contudo não por via do processo de revisão normal... Embora sejam sempre muito temerárias estas vias hermenêuticas, por poderem abrir caminho a grande subjetivismo. Para os perigos de um "psicologismo", em sede de hermenêutica constitucional, e louvando-se já em Roberto Lyra Filho, alertou ainda recentemente Lenio Streck20. Sem entrarmos no cerne do problema concreto que levanta, não deixamos de nos preocupar sempre quando ao positivismo mecanicista21 se substitui algo que se abeire do direito livre. Se é o caso concreto ou não, são questões de avaliação casuística, evidentemente. Ou seja, voltando ao nosso caso: o intervalo de número de deputados permitido pela Constituição é constitucional, formalmente e materialmente, e neste último caso até na medida até em que prevê possibilidades futuras. Mas atualmente o mais consentâneo com o espírito pluralista da Constituição seria manter o número de representantes no Legislativo. Inclinamo-nos para essa perspetiva, que tem a vantagem teórica, aliás, de suscitar a questão de eventuais desconformidades constitucionais não absolutas no tempo, mas temporalmente localizadas... Analisemos um pouco o problema nos seus pressupostos políticos, sociológicos e sóciomentais. A retórica da diminuição dos deputados é, numa certa ordem de ideias, apenas o primeiro passo para diminuí-los radicalmente, ou seja, a zero. Há, obviamente, algumas
STRECK, Lenio Luiz — Eis porque abandonei o “neoconstitucionalismo”, in "Consultor Jurídico", 13 de março de 2014, ed. online: http://www.conjur.com.br/2014-mar13/senso-incomum-eis-porque-abandoneineoconstitucionalismo. Consultado a 23 de abril de 2014. Consultado em 24 de abril de 2014. 21 POUND, Roscoe — Mechanical Jurisprudence, “Columbia Law Review”, vol. VIII, 1908, p. 608. 20
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pessoas bem intencionadas nessa campanha. Talvez até a grande maioria dos que opinam no sentido da concentração o faça na melhor das intenções, desde logo de contenção de custos e de elevação do nível dos representantes. Como se num país desenvolvido não houvesse duas centenas e meia de valores... Há esse número e muito mais: assim conseguissem vencer as barreiras da mediocridade e as rasteiras de alguns dos políticos profissionais que se pretendem eternizar e aos seus nos lugares. Mas o que está por detrás daquela ideia de redução, de corte, como pano de fundo nãodito, é a mentalidade antiparlamentar, que entre nós tem raízes. E a que o salazarismocaetanismo deu grande força22. Como temos dito, isto não quer dizer que tudo esteja bem no mundo dos partidos que segregam os deputados. Pelo contrário. Há muita coisa mal, e o teste de conhecimentos de História que há anos se fez aos deputados de então foi a nosso ver um exemplo do que se deveria fazer: mas antes de os guindar às listas candidatas... A imagem de muitos deputados que responderam parece que não ficou lá muito bem... Infelizmente, esse argumento (falível, sensacionalista, mas apesar de tudo concreto, objetivo) não é muito invocado, antes se agitam teses perigosas e muitas erróneas e até caluniosas (como a da pretensa inoperosidade dos deputados). Pior ainda são as acusações de que a Casa da Democracia seria afetada pelas não incompatibilidades profissionais de alguns deputados, e de que se fariam negócios na mesma. Tudo teria, obviamente, que ser provado. Mas, em vez disso, paira a acusação, sem que se prove para um lado ou para o outro. O que é insalubre para a Democracia. Suspeições deste género não podem subsistir. A menos que se levem à conta de simples propagands política, ou "declarações não sérias". Mas precisamente isso é uma das coisas que a ética republicana não poderia, a nosso ver, tolerar: que se esgrimam acusações e argumentos graves sem consequências de qualquer tipo. De qualquer forma, muitos parecem não ter dúvidas de que pelo menos alguns dos eleitos não terão grande preparação. O teste de História seria como uma prova real. Mas outras haveria, designadamente certas declarações que têm sido criticadas. Mesmo descontando a paixão partidária...
22
Cf.., por todos, o nosso Dos direitos fundamentais e da representação política na Constituição portuguesa de 1933, in As Constituições Republicanas Portuguesas Direitos fundamentais e representação política (19112011), org. de Ana Maria Belchior, Lisboa, Mundos Sociais, 2013, p. 45 ss.. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Já Oliveira Martins deplorava que para qualquer pequeno emprego público seja preciso alcavalas de diplomas e nada se reclame para governar (lato sensu, claro):
Confunde-se hoje a soberania com o poder, a autoridade com o governo. Todo o cidadão é, sem dúvida, cabal, completa e igualmente, uma fonte de autoridade e um poço de soberania; mas que todo o cidadão seja também virtualmente um homem capaz de exercer os supremos cargos da república, eis aí um dos paradoxos que farão sem dúvida estalar de riso os nossos vindouros. Requerem-se montanhas de habilitações e atestados para o exercício da mais ridícula função: nada, absolutamente se requer, nem folha corrida, nem exame de instrução primária, para se ser deputado ou ministro23.
Essa confusão entre as habilitações do funcionário e as do político, e o nada se requerer para este último é que é o grande problema, aliado ao da Ética, da nossa República24. E contudo é preciso ter em conta que pode haver, e historicamente houve e há, em vários países, grandes políticos sem especiais habilitações literárias. Est modus in rebus. Tudo tem que ser ponderado e moderado pela prudentia. Infelizmente, nestas questões políticas, que deveriam ser muito mais prudenciais, há a tendência para recuperar sempre velhos mitos e utopias, e criar normas rígidas, que não convêm à mutabilidade dos reptos sempre surpreendentes.
3.2 ELEIÇÕES PRIMÁRIAS NOS PARTIDOS? Uma hipótese a considerar para uma pré-seleção partidária seriam as eleições primárias... Uns amam-nas, outros odeiam-nas. Cremos que seriam necessários mais estudos sobre os seus resultados, conforme as suas diferentes modalidades. E estudos que pudessem ser pensados em termos háneis, porque o que importa é saber se certas soluções serão adaptáveis a cada país. Há porém, a nosso ver, um grande perigo em instaurar eleições partidárias primárias para escolha de candidatos em alguns casos, como o português. Nomeadamente permitindo-se
MARTINS, Oliveira — O Descrédito da Política, “O Repórter”, Lisboa, 19-I1888, ano 1, n.º 19. Cf. os nossos livros Nova Teoria do Estado. Estado, República, Constituição, São Paulo, Malheiros, 2013, Prefácio de Paulo Bonavides, e Para uma Ética Republicana. Virtude(s) e Valor(es) da Republica, Lisboa, Coisas de Ler, 2010, Prefácio de Eduardo Bittar. 23 24
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qualquer tipo de caciquismo (v.g. por via do pagamento de quotas aos mais carenciados inscritos). E cremos que esse perigo seria agravado se meros “simpatizantes” pudessem votar – neste caso, com o risco adicional de eles poderem ser fornadas de infiltrados de grupos políticos, religiosos, ou económicos (ou outros) adversos ao partido de portas já não abertas, mas escancaradas... Quiçá um remédio para caciquismos internos com base económica fosse a solução, decerto não perfeita, mas sem grande alternativa visível, de tornar as quotas dos inscritos nos partidos contribuições meramente facultativas, já que os pedidos de isenção são sempre mais ou menos vexatórios. Não cremos que uma tal medida pudesse arruinar os cofres partidários. Mas não nos iludamos: ou muda a mentalidade nos partidos, ou os líderes nacionais deles se impõem a lógicas localistas, aparelhistas e corporativas internas (e naturalmente à "corte" que tenderá a rodeá-los), e veem com olhos de ver quem mandam para o Parlamento, ou então, com poucos ou muitos representantes, sempre teremos, atrás de vultos inegavelmente de admirar, muitos back benchers (ou até por vezes saltando para a ribalta) que deixam muito a desejar... Também de nada serve pensar-se que infiltrar voluntariamente as listas de independentes (sem partido) resolveria a questão. Isso acaba por criar apenas mal-estar interno e normalmente é vã a ilusão que um partido alarga a sua base de apoio com um ou outro nome, ainda que mediático. Nem sequer cremos que dê votos, a não ser os dos próprios. Por outro lado, é corrente que um independente eleito deputado acabe por se filiar nele.
3.3 DAS CANDIDATURAS INDEPENDENTES AO GRANDE CHEFE
Outra panaceia a que brevemente aludimos já é a possibilidade de candidaturas de listas independentes de partidos, não só, como hoje sucede, para eleições autárquicas, mas também nacionais. Outra esperança que cremos prometer mais do que iria dar, embora não nos opunhamos a que se faça a experiência. Pensamos, até por indícios que estão aí já, que a eleição de independentes só favoreceria caciquismos, ou figuras mediáticas, ou muito abastadas. Quem é conhecido? CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Quem pode pagar uma campanha eleitoral eficazmente? E na base de tudo: quem tem tempo para conseguir dedicar-se a uma tal empresa? O problema é que as pessoas, feridas, acossadas, contrariadas, verdadeiramente infelizes, arrimam-se a umas soluções miraculosas para irem levando a vida cinzenta e maçadora, por vezes trituradora25. Desilusão, uma vez mais: não há soluções miraculosas, como não há salvadores. Sim, porque o próximo passo seria aplaudir o grande líder, o grande chefe, etc., etc. E como os grandes salvadores têm pés de barro! A História no-lo conta abundantemente. Em variadíssimos países. Tudo sinais de menoridade política. É muito fácil a um Povo demitir-se e confiar no grande chefe, e depois, vista a fraude (e é muito curto o estado de graça real – depois é só medo de represálias), dizer mal dele. Mesmo dizer mal dele acaba por ir sendo solução. Mas triste solução essa.
3.4 REFORÇO DA CIDADANIA E REINVENÇÃO DOS PARTIDOS
Quando assumiremos nas mãos as nossas responsabilidades como pessoas e cidadãos? A questão da qualidade dos deputados não se resolve com a diminuição do seu número. Diríamos quase que pelo contrário. Há quem diga que excelentes deputados acabam por entrar (ou nem entrar) só depois dos aparelhómetros... (descontando as figuras de proa, que são “cabeças” e “pescoços” de lista). Ou seja, os melhores tecnicamente, culturalmente, etc. Têm sempre que dar o lugar aos dos aparelhos... Que, magnanimamente, os podem deixar entrar em lugar do final das listas. Seria interessante verificar a hipótese, e ver se quem fala e quem trabalha no Parlamento mais (e melhor) não serão os do princípio e os do fim das listas... É apenas uma hipótese de pesquisa. No caso de partidos pequenos, a qualidade sobe sempre, porque ficam só “cabeças” e “pescoços” de lista. Mas nos grandes, tinha que pensar-se seriamente numa regeneração
25
Num sentido semelhante, mas a propósito da sanha mão dura penal do homem comum: GIULIANI NETO, Ricardo — Pedaços de Reflexão Pública. Andanças pelo Torto do Direito e da Política, Porto Alegre, Verbo Jurídico, 2009, p. 60. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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partidária profunda, uma verdadeira reinvenção dos partidos26, na mais lídima fidelidade democrática, como é óbvio: sem subverter o seu essencial sentido e funções. Mas repensar os partidos é fundamental, e não apenas trocar as voltas às regras eleitorais, para que, tudo mudando, acabe por tudo permanecer na mesma. Até porque se sabe que a génese dos partidos não foi para um tempo como este27, e há desafios não só do mundo moderno como das próprias instituições atuais que não se sintonizam com alguns avatares. Não é nada fácil. Porque depende de pessoas, das suas mentalidades, da sua moral, dos seus comportamentos. E isso não se reforma por decreto. De novo, a tentação é dizer que é preciso mais educação. Educação profunda, e não mera instrução. Educação até do caráter. As tais pessoas “de um só parecer” de que falava Sá de Miranda28, faltam muito, por toda a parte, prevalecendo as gentes de corte, na capital ou “na aldeia” (para recordar Francisco Rodrigues Lobo)... A sem-cerimónia com que o antigo chefe se curva, servilmente, ante o novo, e bajula quando já o bajularam, sem que cuide que tal é falta de dignidade, a facilidade com que o empregado muda de opinião porque o patrão tem outra ideia, uma geral moral elástica, e a convicção de que, afinal, servilismo é só servilismo e vénias não passam de mesuras, podendo assim prodigalizar-se sem prejuízo próprio, são sinais de grave embotamento da alma. Mas voltemos ao nosso tema. A única possibilidade de diminuir o número de deputados e manter a “beleza da borboleta” parlamentar, na variedade das suas cores, para relembrar a comparação de Álvaro de Campos, seria encontrar uma engenharia compensatória, por via da lei eleitoral (no respeito pela Constituição), que permitisse que, mesmo com menos deputados, ainda assim, os partidos mais pequenos não perdessem a sua representatividade. Não esqueçamos nunca, porém, que o Parlamento abunda em comissões especializadas, não sendo raro que o mesmo deputado pertença a várias.
Colocando a questão, v.g., CAGGIANO, Monica Herman Salem — É possível reinventar o partido? O Partido Político no Século XXI, in Direito Constitucional, Estado de Direito e Democracia. Homenagam ao Prof. Manoel Gonçalves Ferreira Filho, coordenadores Carlos Bastide Horbach, Fernando Dias Menezes de Almeida, José Levi Mello do Amaral Júnior Roger Stiefelmann Leal, São Paulo, Quartier Latin, 2011, p. 539 ss., máx. p. 567 ss.. 27 Recordemos, por todos, a agudíssima reflexão do nosso saudoso Mestre português EHRHARDT SOARES, Rogério — Sentido e Limites da Função legislativa no Estado Contemporâneo, in A Feitura das Leis, coord. de Jorge Miranda e Marcelo Rebelo de Sousa, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1986, 2 vols, vol. II , p. 429 ss.. 28 SÁ DE MIRANDA — Carta I, XXIV: «Homem de um só parecer / Dum só rosto, uma só fé, / De antes quebrar que torcer, / Ele tudo pode ser, / Mas de corte, homem não é.» 26
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Com o exponencial crescimento da burocracia e dos dossiers para ler (aliás, a superabundância de documentação fornecida é um já consabido truque, a todos os níveis, para fazer passar medidas que só por sorte um ser humano teria ensejo de ter lido, para mais com prazos sempre "para ontem"29), uma diminuição do número dos parlamentares iria ainda tornar menos assídua a presença a todas as comissões, obrigar a mais acumulações (ou reduzir o número das comissões, o que talvez não seja fácil, dada a profusão temática que a complexidade hodierna gera naturalmente), tornar o tempo dos representantes do Povo mais escasso ainda. E a sua vida ainda mais infernal. Porque, na verdade, o deputado que queira estar presente e cumprir, no Parlamento e fora dele tem uma vida ocupadíssima e danada, ao contrário do que os mitos urbanos e mediáticos propagam. Na verdade, além de o estudo da documentação virtualmente lhe tomar o tempo todo, sem falar das discussões em comissões e a presença no plenário, é chamado para muitas coisas fora dele, desde logo pelo seu partido, onde também certamente mil punhais o esperam, à espera de deslize para futura substituição. Por tudo isto, não será que usar a possibilidade do art.º 148.º diminuindo o número de deputados, agora, é uma falta de atenção à realidade constitucional presente? Sem prejuízo de se louvar a Constituição por prever a hipótese para o futuro, não manietando o legislador e nem sequer o obrigando a uma revisão constitucional para se adaptar a novas circunstâncias, que podem ser de muito diverso tipo.
4 CONCLUSÃO
Quando se comparam empiricamente os sistemas eleitorais de vários países conclui-se um dado sociológico muito curioso: todos os países estão mais ou menos descontentes com o seu sistema, todos acham que os seus representantes, no mínimo, poderiam ser melhores, e todos alvitram (embora divergente e pluralmente) que um ou outro sistema de um ou outro país (normalmente aqueles face aos quais à complexo de inferioridade, ou então curiosidade exótica) seria muito melhor para o próprio, e que se deveria importar. Com mais ou menos retoques, normalmente pro domo da força política a que pertence ou com que simpatize o opinador. 29
Uma artimanha do género se poderá encontrar num dos episódios da série televisiva britânica Yes Prime Minister. Cf. LYNN, Jonathan / JAY, Antony — Yes Prime Minister, Londres,1986. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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A questão das alternativas dos sistemas eleitoriais parece assim resolver-se com mais direito comparado. E com o reconhecimento de que não há soluções estruturais perfeitas. Assim como a grande conclusão é sempre a de que o mais importante é o bom senso e esclarecimento populares, que permitam, seja qual for o sistema, eliminar nas urnas os candidatos corruptos e incompetentes e premiar com a eleição os honestos e competentes. Evidentemente que leis do tipo "Ficha Limpa" podem ajudar. Mas, como se sabe desde a mais velha história, "pensada lei, pensada malícia". É preciso, mais que terapêutica, e antes dela, profilaxia, medicina preventiva. Mas além destas precauções básicas, outra importantíssima há. Não basta ser reto e competente. É preciso ter tenacidade e outras virtudes sem as quais um político não leva a sua àvante. E é acima de tudo preciso que o seu programa, fundado numa ideologia, seja adequado ao país e à situação e, em geral, favorável à generalidade do Povo. São muitos predicados a avaliar em cada candidato. Mas a experiência, a História e a intuição podem ser de grande ajuda. Alguém disse que não se importaria muito de ser julgado por leis injustas se os juízes fossem justos30. É o que ocorre, mutatis mutandis, com as leis eleitorais e com os candidatos e o eleitorado: com um eleitorado esclarecido e bons candidatos, as leis eleitorais até podem ser más. Agora podem as leis ser excelentes, se o Povo está iludido ou desiludido, e se os candidatos não buscam servir, mas servir-se, tudo está perdido...
Cf. TELLES JUNIOR, Goffredo da Silva — Duas Palavras, in O que é a Filosofia do Direito, AA. VV., coord. de Eduardo Carlos Bianca Bittar, Barueri, SP, Manole, 2004, p. 29. No mesmo sentido, em geral, embora colocando exemplos nacionalmente mais concretos, PEREIRA MENAUT, Antonio-Carlos — El Ejemplo Constitucional de Inglaterra, Madrid, Universidad Complutense, 1992. 30
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PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO:
CASSAÇÃO
OU
EXTINÇÃO
DO
MANDATO?
UMA
VISÃO
COMPARATIVA DE CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA E DE REVALORIZAÇÃO DE PRINCÍPIOS Carina B. Gouvêa1 Lincoln A. Rodrigues2
Sumário: 1 Introdução. 2 A perda do mandato por cassação, o procedimento constitucional. 3 A perda do mandato por extinção, o procedimento constitucional. 4 Perda do mandato por condenação criminal transitada em julgado: controvérsias constitucionais cassação ou extinção do mandato? 5 Uma visão comparativa de democracia representativa – a corte constitucional decidindo de forma direta. 6 Caminhos para a uma construção democrática. 7 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
Dialogar com a possibilidade de perda do mandato parlamentar é trazer à tona o sentido de aplicação da Carta Constitucional e as possibilidades e procedimentos que poderão ensejar a perda de mandato. Além disso, há de ampliar as fronteiras para um olhar mais democrático sobre o que determina a Carta. O Supremo Tribunal Federal tem se deparado frequentemente com casos que envolvem a perda de mandato parlamentar e, consequentemente, um velho paradigma continua vivo: a perda de mandato por condenação criminal. Neste caso, qual o procedimento será considerado constitucional? A cassação ou a extinção do mandato, já que há previsibilidade constitucional nos dois artigos mencionados? O olhar precisa estar centrado na democracia e na força imperativa do poder popular.
1
Carina Barbosa Gouvêa, Doutoranda em Direito pela UNESA; Mestre em Direito pela UNESA; Pesquisadora Acadêmica do Grupo "Novas Perspectivas em Jurisdição Constitucional"; Professora da Pós Graduação em Direito Militar; Professora de Direito Constitucional, Direito Eleitoral e Internacional Penal; Pós Graduada em Direito do Estado e em Direito Militar, com MBA Executivo Empresarial em Gestão Pública e Responsabilidade Fiscal; Advogada; E-mail: carinagouvea25@gmail.com 2 Lincoln Almeida Rodrigues, Advogado; Especialista em Direito Constitucional pela Universidade Anhanguera – UNIDERP; Bacharel em Direito pela Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais; E-mail: lincolnrodrigues@hotmail.com CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Um caso paradigmático, envolveu o Senador Demóstenes Torres, alvo de um processo disciplinar aberto, por unanimidade, pelo Conselho de Ética e Disciplina do Senado Federal. Este processo, que poderia ensejar a perda de mandato, foi decorrente de representação do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), na qual o Senador foi acusado de ter quebrado o decoro parlamentar por ter mantido relações com o contraventor Carlos Cachoeira. A Carta Constitucional traz uma leitura que poderá gerar equívoco, quando afirma em seu artigo 55: “[...] que perderá o mandato o Deputado ou Senador que[ ...]”. Neste sentido, a leitura a ser feita é: “poderá perder o mandato o Deputado ou Senador que”. Esta segunda leitura é a que deve ser feita, porque a perda de mandato é consequência de procedimento próprio, que poderá ou não ensejar a perda do mandato. Assim, a carta confere procedimentos diferentes ao rol delimitado no art. 55, que prevê a possibilidade de perda de mandato.
2
A
PERDA
DO
MANDATO
POR
CASSAÇÃO,
O
PROCEDIMENTO
CONSTITUCIONAL
Neste sentido, por disposição do rol estabelecido no artigo 55, poderá perder o mandato aquele que infringir quaisquer das proibições estabelecidas no artigo 54, quais sejam: 1) Desde a expedição do diploma: - firmar ou manter contrato com empresa que exerça função pública, seja da administração direta ou indireta. O objetivo dentre outros é evitar o tráfico de influências. Comportando exceção ao contrato de adesão, pois neste caso, não existe possibilidade de “conchavos”; e - aceitar cargo, função ou emprego público remunerado. 2) Desde a posse: - não pode o deputado ou senador ser proprietário, controlador ou diretor de empresa que goze de favor decorrente de contrato com pessoa jurídica de direito público; - ocupar cargo ou função, inclusive de confianças nas entidades que exerçam função pública; e - advogar em causas que estejam ligadas as entidades que exerçam função pública e ser titular de mais de um cargo ou mandato público eletivo. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Poderá perder o mandato, também,
aqueles cujo procedimento for declarado
incompatível com o decoro parlamentar. Será considerada quebra de decoro, de acordo com a Carta, os enunciados determinados pelos respectivos Regimentos Internos, o abuso de prerrogativas e a percepção de vantagem indevida. Desta forma, as possibilidades da quebra de decoro são vislumbradas no Regimento Interno do Senado Federal, em seus artigos 32 e 33 e, no caso da Câmara dos Deputados, são elencadas no artigo 231, § 8º e 240. Também aquele deputado ou senador que sofrer condenação criminal transitada em julgado poderá perder o mandato. Nestes casos, ou seja, na infringência de quaisquer dos itens previstos nos artigos 54, de quebra de decoro parlamentar e/ou condenação criminal, os Deputados e Senadores poderão perder o mandato pelo procedimento de cassação. Neste procedimento, os parlamentares decidirão, por voto secreto e maioria absoluta, se o mesmo perderá ou não o mandato, assegurada ampla defesa. Natureza, portanto, constitutiva. Cabe, aqui, uma ressalva, passível de reflexão: poderá um parlamentar, condenado criminalmente atuar em nome deste povo constitucional? Ou, ainda, poderá o Senador Demóstenes não ser cassado por quebra de decoro parlamentar? Esta submissão da decisão de perda de mandato parlamentar à Casa Legislativa a qual pertence o Deputado ou Senador condenado criminalmente em decisão já transitada em julgado, não pode ser entendida como forma de diminuir a imperatividade das decisões emanadas pelo Poder Judiciário? Apesar da imperatividade da Carta Constitucional, há a real necessidade de reanalisar o preceito constitucional3. Pensemos que o voto é secreto e de maioria absoluta, o que é um grande avanço, pois angariar 42 votos no caso dos Senadores e 257 no caso dos Deputados não é tarefa fácil! Já se manifestou o decano da Corte, Ministro Celso de Mello, quanto ao voto secreto: “Não há, no regime democrático, a possibilidade de se preservar e se cultuar o mistério” e, ainda, “Não há razão para que se mantenha o sigilo de votações. Os ministros do STF, os juízes e magistrados votam (publicamente), proferindo decisões em questões delicadas, e, nem por isso, perdem sua independência, nem por isso se expõem a pressões indevidas”.
3
RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral. 13ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012, p. 83
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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER
3
A
PERDA
DO
MANDATO
POR
EXTINÇÃO,
O
PROCEDIMENTO
CONSTITUCIONAL
Já nos casos de não comparecimento à terça parte das sessões legislativas, perda ou suspensão dos direitos políticos e quando decretado pela justiça eleitoral, o procedimento para a perda de mandato é denominado de extinção. Neste caso, haverá declaração pela mesa diretora da respectiva casa, assegurada ampla defesa. Natureza, portanto, declaratória. Neste caso, a perda do mandato não está adstrita a vontade dos parlamentares, mas por determinação da Carta o presidente deverá declarar assegurada a ampla defesa, sendo esta medida mais rigorosa. Pensemos. Seria possível, caso haja decretação da Justiça eleitoral, que a mesa não declare a perda de mandato? O presente já ocorreu, no caso exemplificativo do Senador Expedito Júnior, em que, apesar da decretação feita pela Justiça Eleitoral, que havia cassado seu diploma por captação ilícita de sufrágio, a mesa do Senado simplesmente não declarou a perda de mandato. E mais uma vez, a Justiça cumprindo seu papel! O que significa assegurar ampla defesa? Que o Deputado ou Senador se valerá de peça de defesa contra decisão judicial? A Corte se manifestou no sentido de que “uma vez comunicada à Casa Legislativa, deve ser cumprida imediatamente, por ato de caráter meramente declaratório, sem que se possa cogitar da abertura de qualquer procedimento administrativo interno que vise a reapreciar, em juízo político, a decisão judicial”. Seria esta uma violação da harmonia e independência dos poderes, ou uma determinação constitucional?
4 PERDA DO MANDATO POR CONDENAÇÃO CRIMINAL TRANSITADA EM JULGADO: CONTROVERSIAS CONSTITUCIONAIS CASSAÇÃO OU EXTINÇÃO DO MANDATO?
A possibilidade de perda de mandato por condenação criminal encontra guarida em dois dispositivos constitucionais. Seja no art. 55 IV, cuja previsibilidade está na perda ou
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suspensão dos direitos políticos; como no VI, onde prevê a perda aquele que sofrer condenação criminal em sentença transitada em julgado. O artigo 15, inciso III da Constituição Federal de 1988, dispõe acerca da perda ou suspensão dos direitos políticos, onde uma das possibilidades para a perda é em virtude de sentença criminal condenatória transitada em julgado. Esta controvérsia pode ser considerada um conflito entre normas jurídicas constitucionais, pois duas normas que pertencem a um mesmo ordenamento jurídico e tratam de mesma matéria se contradizem. Isto é possível, de acordo com Dimoulis, pois o legislador pode “emitir duas ordens contraditórias para a mesma pessoa e o mesmo caso” e assim, “ambas serão formalmente válidas.”4 Com relação ao conflito entre normas, o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 179.502, em 1995, decidiu pela aplicação do “princípio da especialidade”, onde o entendimento de que a redação do art. 15, III da CRFB/88 é autoaplicável, considerando esta uma norma geral. Assim, os parlamentares encontram-se submetidos à disposição do art. 55, VI, §2º da CRFB/88 por ser esta de norma de caráter especial5. Neste sentido, o Tribunal Superior Eleitoral, sob o comando do Presidente Ministro Nelson Jobim destacou acerca desta questão nos seguintes termos: A norma inscrita no art. 55, §2º, da Carta Federal, enquanto preceito de direito singular, encerra uma importante garantia constitucional destinada a preservar, salvo deliberação em contrário da própria instituição parlamentar, a intangibilidade do mandato titularizado pelo membro do Congresso Nacional, impedindo, desse modo, que uma decisão emanada de outro (o Poder Judiciário) implique, como consequência virtual dela emergente, a suspensão dos direitos políticos e a própria perda do mandato parlamentar. Não se pode perder de perspectiva, na analise da norma inscrita no art. 55, §2º da Constituição Federal, que esse preceito acha-se vocacionado a dispensar efetiva tutela ao exercício do mandato parlamentar, inviabilizando qualquer ensaio de ingerência de outro poder na esfera de atuação institucional do Legislativo (JOBIM apud RAMAYANA, 2012, p. 84)
4
DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definição e conceitos básicos, norma jurídica. 3ª ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 201. 5 MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 813. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Na decisão acima, é possível vislumbrar o entendimento da Corte Eleitoral, no sentido de preservar a independência e autonomia dos poderes do Estado constante no artigo 55, parágrafo segundo da Carta brasileira. Poderia ser considerado esta uma construção democrática? De fato, permitir que a perda do mandato advinda de sentença criminal transitada em julgado seja processada pela via do procedimento de “cassação” não enseja uma deturpação do próprio sentido de representação popular? Poderá haver um parlamentar condenado, preso e ainda exercendo o mandato. No caso do procedimento de extinção de mandato, há um maior endurecimento, já que, condenado, haverá a perda de seus direitos políticos e nesta sequência, a perda do mandato eleitoral, sem possibilidade de escolha pelos pares. Não pretende afrontar a independência dos poderes, mas perceber o sentido constitucional a que necessita uma sociedade democrática. 5 UMA VISÃO COMPARATIVA DE DEMOCRACIA REPRESENTATIVA – A CORTE CONSTITUCIONAL DECIDINDO DE FORMA DIRETA
Dentre os países latino-americanos, apenas o Chile atribui ao Poder Judiciário a competência plena de julgar os parlamentares e atribuir aos mesmos a perda de seus mandatos, sem a necessidade de submeter a Casa Legislativa6. Esta perspectiva não está vocacionada a inviabilizar a atuação institucional do legislativo, mas de dar sentido as determinações constitucionais. Os artigos 58, 59 e 60 da Carta Constitucional chilena prevêm de forma sucessiva as incompatibilidades, os impedimentos e a possibilidade de perda de mandato eleitoral. Nestes casos, será por determinação da Carta a responsabilidade da Corte Constitucional, conforme art. 93, 14.º, pronunciar-se sobre as incompatibilidades, desincompatibilizações e causas de perda de mandato parlamentar, de forma direta. Citando um precedente, o Tribunal, em 2011, decretou a perda de mandato parlamentar da Senadora Ena Von Baer, pois, após ter sido Ministra de Estado, tomou posse no cargo de Senadora antes de completar 01 ano após a saída do Ministério que ocupava, o 6
FERNANDES e PONTES, 2006, p. 03 CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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que a tornou inabilitada para o exercício do mandato7, em razão da violação ao artigo 57 da Carta. A decisão confirmou que a história constitucional chilena enaltece a importância de uma forma de governo “republicana e democrática representativa”. Para tanto a modalidade eletiva é o princípio essencial de sua democracia representativa. O princípio democrático está configurado com o regra de organização dos poderes do Estado. Um princípio que tem um papel diretivo e informador do ordenamento jurídico e a respeito do qual devem desenhar as interpretações constitucionais que resultem contraditórias com os princípios e valores. Desta forma, frente as diversas interpretações possíveis do alcance da proteção constitucional de um direito fundamental, deve-se excluir a que admita o legislador no seu regular exercício, que na prática impossibilite a plenitude do valor consagrado e que sejam inconciliáveis com a sua prática de representatividade. Assim, “a democracia não pode ser separada do que a democracia deve ser”8. Portanto, a remoção do ideal democrático acaba ferindo gravemente a realidade do sistema político e é evidente que uma destas abordagens diz respeito à origem dos representantes. Este princípio é equivalente ao reconhecimento da soberania popular na fonte do poder democrático sob um parâmetro constitucional livre, eleições competitivas. Portanto, eles são democraticamente eleitos pelo povo de forma direta, sem a mediação das mesas de voto ou eleitores parlamentares. (Anuário de Direito Público Yearbook 2011, Universidad Diego Portales , 2011, p. 173) .
Neste sentido, a democracia é a competição pelo poder num contexto pluralista e “a nossa definição de democracia implica que não há tribunais ou autoridades que não são o resultado de processos democráticos no qual todos os cidadãos podem participar de forma eficaz”9. A Corte ainda refletiu sobre o alcance do princípio da separação de poderes e como ela se manifesta na nossa ordem constitucional fundamental. Para ela, doutrinariamente, este é um conceito jurídico que a ciência política delimitou como um princípio organizador, e é a aplicação mais plausível de regimes presidencialistas. 7
Tribunal Constitucional chileno. Julgamento do Rol nº 2087-11-INH. Disponível em: http://www.tribunalconstitucional.cl/wp/ver.php?id=2277. Acesso em: 06 de Out. de 2014. 8 SARTORI, Giovanni. Teoria da Democracia I. Debate contemporâneo. Rei: Argentina, 1988, p.26. 9 LINZ, Juan José. Os problemas da democracia e da diversidade de democracias. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p 228. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Para Ferrajoli10 é entendido como “independência funcional orgânica ( na formação de órgãos) e (no exercício de funções )”. Por sua vez, Geoffrey Marshall resume o alcance do conceito de separação de poderes , dizendo que “a frase aparentemente simples ‘separação de poderes’ reflete um conjunto de ideias que se sobrepõem e refletem mais de um núcleo, como por exemplo, ‘distribuição’, ‘diferenciação’, ‘isolamento’, ‘confronto’. Nem todos esses termos são sinônimos e as implicações de algumas delas são mutuamente inconsistentes.”11 A noção clássica de separação de poderes aponta para o que Loewentein 12 chama de corpos crivados de constitucionalismo de controles inter e intra-órgãos. Neste sentido, a ideia de Constituição democrática tem como um de seus elementos essenciais o mecanismo “que estabelece uma cooperação planejada dos diversos detentores de poder. Dispositivos e instituições, na forma de freios e contrapesos significa simultaneamente uma distribuição e, assim, limitar o exercício do poder político”. Um mecanismo de controle que também impede que os respectivos poderes, dentro de sua autonomia, com o fim de evitar que um deles, caso não atue, possa haver a resolução do impasse. Sob o impacto da ideologia democrática da soberania popular, o constitucionalismo alcançou o ponto em que o árbitro supremo nas disputas entre aqueles em conjunto poder foi incorporado ao eleitorado soberano. Deve-se, por óbvio, salvaguardar a “independência e dignidade da função parlamentar”. Neste sentido, está assentado na Corte chilena que este objetivo visa proteger o Parlamento contra qualquer pressão política, social e econômica, preservando a dignidade do cargo. A divisão de poderes reflete a dimensão institucional das garantias de liberdade política, com as reservas acima mencionadas, a independência do parlamento é a dimensão subjetiva necessária para que desempenhe a sua função com total liberdade, que é guardado pelo sistema de inelegibilidade e incompatibilidade prevista na Constituição do Chile. A divisão dos poderes, portanto, não será violada se guardar pertinência com as atribuições constitucionais.
10
FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Madri:Trotta, 2006, p. 98. MARSHALL, Geoffrey. Teoria da Constituição. Madrid:Calpe,1982, p. 136-137. 12 LOEWENSTEIN, Karl. Teoria da Constituição. 4ª ed. Barcelona, 1986 , p 153. 11
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6 CAMINHOS PARA A UMA CONSTRUÇÃO DEMOCRÁTICA
Uma democracia precisa, necessariamente, de formas mais autônomas de participação política. Neste sentido, as pessoas constitucionais devem agir como ator informal e formal, pouco a pouco pelas atividades e engajamentos. Os novos movimentos sociais são fatores preponderantes, nas ondas emancipatórias que trazem significação às lutas democráticas de participação. Mas seria este modelo adotado pela Carta de 1988 a ideal? Poderemos adotar um modelo cuja fiscalização do mandato parlamentar se desse de modo mais direto pelos eleitores que elegem estes parlamentares? Os modelos democráticos possuem algumas variações no que tange ao sistema de controle popular. Assim, a Carta colombiana possui um modelo que se adequa a uma forma “mais democrática de controle do mandato parlamentar”, assim denominado “revocatória de mandato”. Tal instituto foi regulamentado pela Lei 134/1994, onde o art. 6º 13 dispõe que os eleitores colombianos poderão, por meio de votação, retirar o mandato conferido ao eleito14. Tal revocatória se dá do seguinte modo: (...) exige, para a iniciativa, grupo de cidadãos em número não inferior a 40% dos votos obtidos pelo governante respectivo. Depois disso, a revocatória irá a voto popular, sendo o recall aprovado caso pelo menos 60% dos participantes votarem nesse sentido. Para surtir seus efeitos, deverão participar do pleito ao menos 60% dos votos registrados à época em que o mandatário foi eleito. (ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177)15
Apesar da Lei nº 134/1994, em seus artigos 6416 e 6917, exigir um quórum elevado, o modelo de controle do mandato não deixa de ser um importante instrumento democrático.18
13
Art. 6º Revocatória del mandato. La revocatória Del mandato es un derecho político, por médio del cual los ciudadanos dan por terminado el mandato que le han conferido a un gobernador o a un alcade. 14 ARAÚJO; FERNANDES; FEDALTO, 2012, p. 177 15 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177 16 ARTICULO 64. Revocatoria del mandato. Modificado por el art. 1º de la ley 741 de 2002. Previo el cumplimiento de los requisitos exigidos por esta ley para la presentacion e inscripción de iniciativas legislativas y normativas, um número de ciudadanos no inferior al 40% del total del votos válidos emitidos em la elección del respectivo mandatário, podrá solicitar ante la Registraduría del Estado Civil correspondente, la convocatoria a la votación para la revocatória del mandato de um gobernador o um alcalde. Solo podrán solicitar la revocatória quienes participaron en la cual se eligió al funcionário correspondiente. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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De 1994 a 2009, cem revocatórias de mandato foram propostas e nenhuma logrou êxito, de acordo com Araújo19. Isto não afasta a importância de tal medida como instrumento assegurado pela Constituição colombiana e que garante a participação popular direta dos cidadãos. Afinal de contas, se todo o poder emana do povo, a ele também deve atribuir o seu retorno. Os movimentos sociais emancipatórios, como se sabe, são aqueles que emergem da fragmentação da sociedade, podendo ser enxergados em mobilizações de toda ordem havidas no seu seio; lutas por reivindicações traduzidas em ações coletivas que denunciam a vontade popular. Constituem-se, assim, em instâncias organizativas conscientes que, no campo da prática social, vão externar novas formas de cidadania e democracia. No âmbito da autonomia e da liberdade, forjam conquistas sociais que refletirão a vontade comum, fazendo com que as obrigações a todos impostas ora sejam contrapostas ao sujeito Estado, ora sejam compartilhadas com o mesmo, trazendo reciprocidade e simetria no campo da implementação das políticas públicas que refletirão as reais necessidades sociais. Desta forma, o princípio da comunidade funda novas energias emancipatórias, traduzindo a participação horizontal na relação estatal, trazendo solidariedade e participação concreta da vontade geral. Vislumbra-se a cidadania coletiva como segmento de universalização e concretização dos direitos fundamentais. Vê-se, portanto, o nascimento da democracia moderna, no qual o homem não mais aparece como objeto, mas como sujeito do poder político.20 Muller21 traz a prática onde evidenciou-se que, no âmbito do Estado Democrático e social de direito, o “povo”, aqui compreendido na dimensão de pessoas constitucionais, se apresenta em diversos nexos e graus de operações legitimatórias. Nexos e graus estes que variam, dependendo do âmbito funcional, como ativo, instância de atribuição de tipo global, 17
ARTICULO 69. Aprobación de la revocatória. Modificado por el art. 1º de la ley 741 de 2002. Se considerará revocado el mandato para gobernadores y alcaldes, al ser ésta aprobada em la votación respectiva por um número de votos no inferior al sesenta por ciento (60%) de los ciudadanos que participen em la respectiva votación, siempre que el número de sufrágios no sea inferior al sesenta por ciento (60%) de la votacion registrada el dia em que se eligió al mandatário, y unicamente podrán sufragar quienes no hayan hecho em la jornada em la cual se eligió al respectivo gobernador o alcalde. 18 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 177 19 ARAÚJO, FERNANDES e FEDALTO, 2012, p. 178 20 AGAMBEN, Giorgio. Homem Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1 ed. Minas Gerais: UFMG, 2001, p.16. 21 MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 75. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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destinatários de padrões civilizatórios da cultura constitucional democrática que envolvem direitos e resistência ao Estado e direitos de prestações por parte do mesmo, assim no plano da realidade das pessoas constitucionais ativas, legitimantes, destinatários e participantes. Assim, demanda o Estado brasileiro novas formas de manifestações que compreendam um dinamismo carente atualmente em nossa sociedade, que acorde uma população adormecida, como é o caso da Petição Eletrônica22, subscrita pelos eleitores brasileiros e destinada ao Congresso Nacional. O objetivo, assim enunciado em seu artigo 1º, é de solicitar que os congressistas votem em caráter de urgência, com a finalidade de dar direito legal e constitucional aos eleitores brasileiros de poder iniciar processo de depuração e cassação, através de votação popular, de todo e qualquer político que foi eleito e que tenha qualquer desvio de conduta durante o período em que estiver exercendo função pública eletiva, seja no executivo ou legislativo.
7 CONCLUSÃO
A Corte Constitucional brasileira tem-se manifestado de forma a alterar os sentidos para a perda do mandato parlamentar no caso de condenação criminal transitada em julgado. Quais as razões que ensejam esta mudança de posicionamento? Recentemente, no caso da Ação Penal 470, o plenário da corte, por cinco votos a quatro, concluiu que os parlamentares acusados no esquema de compra de votos perderiam o mandato automaticamente quando fossem condenados, aqui utilizando o art. 55 IV e § 3º. Já no caso da Ação Penal 565, o senador Ivo Cassol foi condenado pelo crime de fraude a licitações, contudo, diferentemente da Ação Penal 470, o plenário da Corte deixou para a Casa Legislativa a decisão sobre a perda de mandato parlamentar, neste caso pela aplicação do art. 55, inciso VI e § 2º, ficando vencidos os ministros Marco Aurélio, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Joaquim Barbosa, que votavam pela perda imediata do mandato com o trânsito em julgado da condenação.
22
O sítio eletrônico fornece alojamento online gratuito para abaixo-assinados (petições públicas), pretendendo constituir um serviço público de qualidade a todos os cidadãos brasileiros. Disponível em < http://www.peticaopublica.com.br/default.aspx>. Acesso em 30 de maio de 2012. Vale a visita, pois além da petição informada, existem muitas outras relevantes à construção dos direitos em nosso território. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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E quais seriam as razões para a mudança de posição da Suprema Corte Constitucional? No caso do Senador Ivo Cassol, ao que parece, envolve a circunstância de que os crimes que foram atribuídos a ele são de natureza política, o que não acarretaria o efeito automático da perda de mandato. Mas isso acaba por ser premissa nesta inconstância de posicionamento, de autoridade da Corte? A questão é definir qual o sentido democrático e qual é o sentido da representação popular, neste caso primando absolutamente pelos valores e princípios democráticos, onde não se vislumbra um representante popular condenado por sentença criminal transitada em julgado. E qual o nosso papel? Esta é a pergunta fundamental! Mostra-se digna, a um país democrático, a manifestação popular que traduz o novo destinatário de sua vontade: do povo para o povo. REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. Homem Sacer: o poder soberano e a vida nua I. 1 ed. Minas Gerais: UFMG, 2001, p.16. ARAÚJO, Eduardo Borges, FERNANDES, João Marcos Silva e FEDALTO, Thayse. Instrumentos de democracia direta na América Latina: uma breve incursão no direito comparado. – 2012. Disponível em: <http://www.justicaeleitoral.jus.br/arquivos/tre-prparana-eleitoral-revista-2-artigo-5-araujo-fernandes-e-fedalt> Acessado em novembro de 2014. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do direito: definição e conceitos básicos, norma jurídica... / Dimitri Dimoulis. – 3. Ed. ver. Atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010. FERNANDES, Márcio Silva, PONTES, Roberto Carlos Martins. Competência para decidir sobre a perda do mandato parlamentar no Direito Comparado. – 2006. Disponível em: <http://bd.camara.gov.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/2222/competencia_decidir_perda_fer nandes.pdf?sequence=1> Acessado em novembro de 2014. FERRAJOLI, Luigi. Garantismo. Madri: Trotta, 2006, p. 98
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LINZ, Juan José. Os problemas da democracia e da diversidade de democracias. Madrid: Alianza Editorial, 1998, p 228. LOEWENSTEIN, Karl. Teoria da Constituição. 4ª ed. Barcelona, 1986, p 153. MARSHALL, Geoffrey. Teoria da Constituição. Madrid: Calpe, 1982, p. 136-137. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes, Inocêncio Martires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. – 4. Ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2009. MULLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p. 75. RAMAYANA, Marcos. Direito Eleitoral – 13ª Edição / Marcos Ramayana – Rio de Janeiro: Impetus, 2012. SARTORI, Giovanni. Teoria da Democracia I. Debate contemporâneo. Rei: Argentina, 1988, p.26. Tribunal Constitucional chileno. Julgamento do Rol nº 2087-11-INH. Disponível em: <http://www.tribunalconstitucional.cl/wp/ver.php?id=2277> Acesso em outubro de 2014.
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A EXPERIÊNCIA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA DE DEMOCRACIA À LUZ DA CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA Raoni Lacerda Vita1 Alcindo Gonçalves2
Sumário: 1 Introdução. 2 O que é Democracia? 3 A OEA e a Carta Democrática Interamericana. 4 A experiência democrática contemporânea brasileira. 5 Conclusão. Referência.
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho objetiva discorrer sobre o conceito histórico-evolutivo de democracia, com especial ênfase para a visão da Organização das Nações Unidas e da Organização dos Estados Americanos acerca do tema. Dentro dessa discussão, cumpre ser estudada a realidade brasileira contemporânea e verificada a adequação de tal experiência ao modelo proposto mundialmente. A importância de tal estudo se dá em virtude da contínua evolução do conceito jurídico em questão, devendo, ao mesmo tempo, as autoridades constituídas efetuar essa observação e adequar os modelos existentes às garantias mínimas necessárias ao contínuo desenvolvimento da humanidade.
2 O QUE É DEMOCRACIA?
Desde longínquos tempos, muito se discute em toda a literatura mundial a respeito da delimitação e do alcance do conceito de democracia. Temos, no entanto, como estável a ideia de que se trata de um regime que se origina no povo e por este é gerido direta ou indiretamente – isso até em razão da própria etimologia da palavra (demo, no grego, significa povo, e kratos, poder). Bacharel em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba – UFPB; Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhaguera-Uniderp; Mestrando em Direito Internacional pela Universidade Católica de Santos – UNISANTOS; Advogado. 2 Doutor em Ciência Política pela USP, professor e coordenador do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado e Doutorado – em Direito da UniSantos – Universidade Católica de Santos e coautor do livro Governança Global e Regimes Internacionais (Ed. Almedina). 1
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A partir do nível dessa participação popular, tem-se a divisão entre democracia direta e representativa. Na primeira, também chamada de pura, o povo tem interferência imediata e sem interlocutores em todas as decisões que afetem a comunidade. Tal sistema político possui como exemplo clássico a cidade-estado de Atenas, onde todos os cidadãos (com as severas restrições desta categoria à época) que desejassem participar formavam uma assembleia, em geral semanalmente, que definia através do voto igualitário os rumos sobre temas importantes. Considerando as óbvias e inerentes dificuldades do modelo direto, o desenvolvimento e crescimento das nações demandou a criação do sistema representativo, no qual os cidadãos elegem periodicamente mandatários que devem votar as matérias segundo o interesse daqueles. Bobbio3, por sua vez, faz alusão à democracia semidireta, que seria uma forma intermediária entre os dois regimes clássicos, na qual haveria um equilíbrio que permite uma participação popular mais efetiva, mesmo com a existência de representantes, assemelhada ao caso hodierno da Suíça. Segundo Bonavides4, esta é uma maneira de limitar a alienação política da vontade popular. Pelos preceitos da Organização das Nações Unidas, a comunidade internacional moderna deve preservar a democracia como forma de garantir diversas liberdades – de expressão, pensamento, consciência, religião, associação, assembleia, imprensa e informação. Isso porque, neste sistema, o povo possui mecanismos de controle para evitar que o soberano se exima de se submeter às leis do Estado de Direito. Além disso, mesmo sendo respeitada a vontade da maioria, a dignidade e os direitos fundamentais das minorias também são protegidos. A defesa da ONU pela democracia encontra amparo e serve como reforço ao princípio da autodeterminação dos povos, que é tido pelo Direito Internacional como a pedra de toque na relação entre as nações para fortalecer a paz universal – tanto assim que está previsto no artigo 1º da Carta das Nações Unidas como um dos seus objetivos.
3 4
BOBBIO. Estado, governo, sociedade. p. 459. BONAVIDES. Ciência política. p. 275. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Em linhas gerais, este princípio tem como uma de suas facetas a garantia da possibilidade do povo se autogovernar livremente e com segurança, sem intervenções externas. O imperativo democrático foi reforçado na Declaração da Conferência Mundial sobre Direitos Humanos de Viena (1993), na qual se defendeu que a sociedade deve ser fundada “no desejo livremente expresso dos povos em determinar os seus próprios sistemas políticos, econômicos, sociais e culturais e a sua participação plena em todos os aspectos das suas vidas” (§8º). Com isso, há uma ligação indissociável do sufrágio universal e igualitário como fundamento de validade da democracia, agregado à oportunidade aberta de candidatar-se aos cargos eletivos, além da institucionalização de mecanismos de controle dos governos. Desse modo, a democracia é tida como um direito fundamental da pessoa humana, prevista inclusive no art. 21 da Declaração Universal dos Direitos Humanos5 (1948) e reafirmada pela Resolução 1999/57 do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (Promotion of the right to democracy). Dentro de tal contexto, mas de modo mais aprofundado e específico, os países signatários da Organização dos Estados Americanos aprovaram, em 2001, a Carta Democrática Interamericana, cabendo-nos doravante analisar quais devem ser os reflexos de todo esse arcabouço nos ordenamentos jurídicos internos e na prática das nações, especialmente, para o presente estudo, no caso brasileiro.
3 A OEA E A CARTA DEMOCRÁTICA INTERAMERICANA
Para verificar a realidade brasileira sobre o tema em discussão, cumpre analisarmos o contexto histórico e social da Organização dos Estados Americanos. A OEA, quando de seus movimentos precursores de consolidação, cuidava mais de tentar criar uma ampla área de cooperação regional que defender princípios como o direito à
“Toda a pessoa tem o direito de tomar parte na direção dos negócios públicos do seu país, quer diretamente, quer por intermédio de representantes livremente escolhidos. Toda a pessoa tem direito de acesso, em condições de igualdade, às funções públicas do seu país. A vontade do povo é o fundamento da autoridade dos poderes públicos; e deve exprimir-se através de eleições honestas a realizar periodicamente por sufrágio universal e igual, com voto secreto ou segundo processo equivalente que salvaguarde a liberdade de voto”. 5
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democracia – até mesmo porque vários, senão a maioria, dos seus futuros signatários não adotavam esse modelo como base. A primazia econômica deste bloco é muito bem explicada por Mello6, que identificou características facilitadoras (além da proximidade física) para a união de quase toda a América, tais como a existência de uma hostilidade latente entre nações, o que ocasionou a formação de Ligas para fortalecimento e proteção mútuos, e o fato de serem quase todos esses países subdesenvolvidos e compostos por imigrantes. Neste compasso, após uma larga evolução de pactos e acordos multilaterais, e com o objetivo de consolidar essa identidade, firmou-se, na Conferência de Bogotá (1948), a Carta da OEA, cuja construção se deu já num momento de avanço democrático, sendo contemporânea da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de sorte que os seus artigos segundo, terceiro e nono consagraram:
Artigo 2. Para realizar os princípios em que se baseia e para cumprir com suas obrigações regionais, de acordo com a Carta das Nações Unidas, a Organização dos Estados Americanos estabelece como propósitos essenciais os seguintes: (...) b) Promover e consolidar a democracia representativa, respeitado o princípio da nãointervenção; Artigo 3. Os Estados americanos reafirmam os seguintes princípios: (...) d) A solidariedade dos Estados americanos e os altos fins a que ela visa requerem a organização política dos mesmos, com base no exercício efetivo da democracia representativa; Artigo 9. Um membro da Organização, cujo governo democraticamente constituído seja deposto pela força, poderá ser suspenso do exercício do direito de participação nas sessões da Assembléia Geral, da Reunião de Consulta, dos Conselhos da Organização e das Conferências Especializadas, bem como das comissões, grupos de trabalho e demais órgãos que tenham sido criados.
Vê-se, portanto, o compromisso inescusável da organização com os preceitos democráticos, cuja desobediência enseja inclusive a suspensão da participação de suas atividades dos países porventura descumpridores desta cláusula. Seguindo esse autointitulado desenvolvimento progressivo, após diversos novos pactos assinados, como o Compromisso de Santiago (1991), a Declaração de Nassau (1992) e 6
MELLO. Curso de direito internacional público. p. 27-28. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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de Manágua (1993), e levando em conta a redemocratização de vários países signatários, a Assembleia Geral da OEA aprovou a Carta Democrática Interamericana (Inter-American Democratic Charter) na sessão plenária realizada em 11 de setembro de 2001 em Lima, Peru. Numa leitura detida já das suas considerações iniciais, percebe-se tratar não de uma simples Resolução, mas de verdadeira atualização e aprofundamento da Carta da OEA, passando-se dali em diante a ser exigido dos países membros uma postura cada vez mais madura sobre as garantias democráticas, não bastando agora a mera previsão de sufrágio universal. Por essa ótica, e cingindo-se aqui à parte que mais interessa ao objeto do presente estudo (não desmerecendo os grandes avanços na preservação da institucionalidade democrática e das missões de observação eleitoral, que por si só dão ensejo a um trabalho próprio), a Carta Democrática traz uma posição firme no sentido de acrescentar uma nova dimensão às condições necessárias para o exercício pleno da democracia. Trata-se da exigência contida no artigo sexto, de participação efetiva do cidadão na tomada de decisões além da tradicional eleição periódica para escolha de representantes. Ao povo deveria, portanto, ser garantida a possibilidade de sair da posição passiva para se tornar verdadeiro ator nas transformações sociais: Artigo 6. A participação dos cidadãos nas decisões relativas a seu próprio desenvolvimento é um direito e uma responsabilidade. É também uma condição necessária para o exercício pleno e efetivo da democracia. Promover e fomentar diversas formas de participação fortalece a democracia.
Revela-se oportuno, para fixar o espírito que inspirou a confecção do multicitado documento, transcrever trecho da declaração do Embaixador Odeen Ishmael, da Guiana, na sessão do Conselho Permanente da OEA durante as discussões sobre a Carta Democrática Interamericana:
A nosso ver, os habitantes deste Hemisfério prosperarão sob a democracia que avançar progressivamente. Embora a democracia representativa por meio de eleições livres e eqüitativas seja louvável, não deve ser estática. Cumpre lembrar que se trata de um conceito existente na época da adoção da Carta da OEA. É essencial que progrida para tornar-se abrangente – não apenas representativa mas também consultiva e participativa. Com a democracia participativa estamos atribuindo poder às pessoas na base. É uma democracia que, além dos direitos civis e políticos, garante também os direitos sociais e culturais.
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O pai do movimento de independência da Guiana, o falecido Doutor Cheddi Jagan, resumiu essa qualificação da democracia ao falar na Cúpula de Desenvolvimento Sustentável, de Santa Cruz, Bolívia, em 7 de dezembro de 1996. Afirmou ele: "A democracia deve ter como objetivo ‘vida, liberdade e busca da felicidade’. Isso será conseguido quando abraçar não somente o aspecto representativo (cinco minutos de votação), mas também o consultivo e o participativo, especialmente no caso da mulher, e quando forem respeitados os direitos não apenas civis e políticos, mas também econômicos, sociais e culturais. Uma pessoa deve exercer o seu direito de voto, mas esse direito somente será exercido se houver o alimento necessário para a vida.
O atual projeto de Carta Democrática que estamos examinando também destaca a democracia representativa, como o fez a Carta da OEA. É, portanto, uma nova faceta da democracia, passando esta agora a ser não só representativa, mas também participativa. Como consequência desse novo status, devem os ordenamentos internos ser adaptados a fim de efetuar tal estímulo aos cidadãos, mas, sobretudo, comprometendo-se os governos a sair de sua condição estática e encarar essa realidade como uma obrigação de trazer o povo para o seio das discussões.
4 A EXPERIÊNCIA DEMOCRÁTICA CONTEMPORÂNEA BRASILEIRA
O Brasil, após um longo e tormentoso caminho, que passou por inúmeros avanços e retrocessos, encontra-se atualmente num período de razoável estabilidade na sua forma de governo e de Estado autointitulado democrático. Dos fundamentos da República Federativa do Brasil explicitados já no artigo 1º da Constituição Federal de 1988, destaca-se o célebre princípio de que “todo o poder emana do povo”. Aliás, o regime democrático aparenta ser tão caro à referida Carta Política que seu ferimento é elencado como a primeira das causas extremamente restritas de intervenção da União nos Estados e no Distrito Federal (art. 34, VII, a). No entanto, mesmo com esses destaques de caráter fundante do mencionado princípio, é muito tímida sua exploração prática ao longo dos 250 artigos da Constituição. Não há uma noção concreta, ou mesmo exemplificativa, de como deve se dar essa democracia no âmbito da participação popular no poder, senão mediante o voto para escolha de representantes e a possibilidade do cidadão se candidatar. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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No mais, existem algumas raras passagens nas quais se dá ao povo uma condição meramente passiva de sujeito receptor de benefícios. Contudo, na parte que mais interessa ao presente trabalho, temos apenas três pontos que se propõem a complementar e arrematar a democracia além-sufrágio, quais sejam os incisos contidos no artigo 14, que preveem o plebiscito, o referendo e a lei de iniciativa popular. Além de ser acanhado o número e a profundidade desses mecanismos que tendem a garantir a participação democrática, ainda assim eles sequer são utilizados ou fomentados na prática, como demonstra a experiência brasileira contemporânea. Com efeito, desde a promulgação da Constituição de 1988, apenas um plebiscito foi realizado em âmbito nacional (aliás, ainda assim porque previsto e com data marcada no próprio Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), no ano de 1993, quando foi definida a forma (república ou monarquia constitucional) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo) do país. Houve outro caso localizado de realização de plebiscito restrito aos eleitores do estado do Pará, no ano de 2011, para decidir sobre sua subdivisão em novos estados de Carajás e Tapajós, tendo sido negativa a resposta e mantendo-se unida tal população. No que tange ao referendo, também uma única experiência foi garantida aos cidadãos brasileiros, quando se opinou, em 23 de outubro de 2005, sobre o artigo 35 do Estatuto do Desarmamento, que proibia a comercialização de armas de fogo e munição em todo o território nacional, tendo a maioria dos eleitores respondido no sentido de permitir tal prática. Já quanto às leis de iniciativa popular, há somente quatro registros pós Constituição de 1988 de casos em que efetivamente foram aprovadas e se transformaram em lei, sendo o caso mais recente o da Lei Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135/2010). Tal número, contudo, é tão baixo que chega a ser inexpressivo quando observamos que desde a promulgação da Carta Magna até 05 de outubro de 2012, foram aprovadas mais de 157 mil normas federais no Brasil, dentre as quais 76 emendas constitucionais, 83 leis complementares e 4.981 leis ordinárias, segundo um estudo apresentado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Aliás, essa forma de participação é tão frágil que a Constituição prevê apenas a possibilidade de projeto de lei popular, sendo vedada a propositura de emenda constitucional CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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diretamente pelos cidadãos, ao mesmo tempo em que confere tal prerrogativa aos parlamentares, num nítido contrassenso principiológico. Esses são, portanto, os únicos elementos práticos do exercício democrático brasileiro contemporâneo pelo cidadão médio, além do ato de votar em candidatos que se apresentam em geral a cada dois anos para, na sua respectiva esfera, tentar representá-lo nos Poderes Executivo e Legislativo.
5 CONCLUSÃO
Vê-se, diante dos subsídios apresentados, que não há na experiência dita democrática brasileira uma prática efetiva deste princípio, mormente quando diversos itens polêmicos da própria Constituição Federal não foram sequer alvo de referendo até o momento atual. De igual modo, não se tem como falar em democracia, nos termos expostos pela Carta Democrática OEA, num país em que inexiste a utilização dos mecanismos mínimos previstos no seu ordenamento na tentativa de garantir alguma participação popular na tomada de decisões. A evolução do referido conceito simplesmente não foi acompanhada pela classe política do Brasil. Percebe-se que a realidade brasileira estancou no segundo dos “três modelos normativos de democracia” previstos por Habermas7, limitando-se a sustentar o direito ao voto como suficiente para o exercício da autodeterminação política, quando, em verdade, o terceiro modelo apresentado pelo sociólogo alemão vai muito além, chegando, através da “teoria do discurso”, a demonstrar resultados racionais satisfatórios diante da comunicação entre os indivíduos nas esferas particular e pública a fim de participarem do processo de efetiva criação do direito. Neste diapasão, é possível observar uma aproximação de tal proposta com o conceito de democracia participativa e consultiva apresentado pela Carta Democrática Interamericana, e que não é, repita-se, exercida no Brasil. Seguindo uma ótica de certo modo semelhante, a defesa de Dworkin8 tem muita propriedade, pois o povo precisa se manifestar sobre itens importantes da Constituição e
7 8
HABERMAS. Três modelos normativos de democracia. p. 39-53. DWORKIN. Constitucionalismo e Democracia. p. 2-11. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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também quanto a diversos temas de grande repercussão (aborto, maioridade penal, pena de morte, prisão perpétua, união de pessoas do mesmo sexo), e não relegar tais funções para o Poder Judiciário, como sói acontecer no Brasil, onde se observa a Corte Suprema reiteradamente decidindo sobre assuntos que a Carta Magna não prevê, ou em muitos casos apresentando uma interpretação que prostitui completamente a intenção do legislador constituinte. Esse ativismo é duplamente pernicioso nestas hipóteses, pois além de usurpar o poder legiferante, acaba por ser uma ação de pessoas não escolhidas pelo sufrágio e que solapam a democracia e a possibilidade de construção popular, agravando o modelo brasileiro falido de falsa representatividade, no qual os mandatários geralmente não levam às instâncias apropriadas o sentimento do povo, mas sim os seus interesses intrínsecos que entendem corretos sob sua ética particular. Na verdade, em decorrência do próprio espírito e texto da Carta Democrática Interamericana, à qual o Brasil deve obediência, os grandes temas devem ser submetidos com maior frequência à população, o que é possível até mesmo na formatação constitucional atual, bastando, para tanto, seu efetivo fomento pela classe política, bem como estudos logísticos que afastem os altos custos dessa mobilização, a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos, onde as consultas comumente são inseridas de maneira concentrada dentro dos pleitos ordinários, precedidas de um amplo debate com a sociedade – o que torna ainda mais legítima e interessante tal utilização. Esses apontamentos, por óbvio, não encerram as possibilidades de outros grandes avanços democráticos, como a adição do recall de mandatos eletivos dos políticos que não correspondam aos anseios neles depositados, mas, pelo contrário, tentam trazer a sociedade para dentro dos problemas, a fim de que esta contribua e agregue mais ideias objetivando a melhor solução para tais conflitos. REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1987. BONAVIDES, Paulo. Ciência política. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2003. DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e Democracia. Traduzido por Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philosophy, nº3:1, p. 2-11, em 1995. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Disponível em: <http://pt.scribd.com/doc/49642931/DWORKIN-Ronald-Constitucionalismoe-Democracia>. Acesso em: 02 de agosto de 2013. HABERMAS, Jürgen. Três modelos normativos de democracia. CEDEC. Lua Nova. Revista de Cultura e Política, nº 36, 1995. MELLO, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 10. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1994. vol. I. 714. ORGANIZAÇÃO das Nações Unidas. Carta das Nações Unidas. Disponível em: <http://www.fd.uc.pt/CI/CEE/pm/Tratados/carta-onu.htm>. Acesso em: 03 de agosto de 2013. ORGANIZAÇÃO dos Estados Americanos. Carta da Organização dos Estados Americanos. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 02 de agosto de 2013. _____________. Carta Democrática Interamericana. Disponível em: <http://www.oas.org>.
Acesso em: 02 de agosto de 2013. _____________. Declaração do Embaixador Odeen Ishmael, da Guiana, na sessão do
Conselho Permanente da OEA. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 03 de agosto de 2013. _____________. Declaração e Programa de Ação de Viena: Conferência Mundial sobre
Direitos Humanos. Disponível em: <http://www.oas.org>. Acesso em: 02 de agosto de 2013. INSTITUTO Brasileiro de Planejamento Tributário. Quantidade de Normas Editadas no Brasil: 24 anos da Constituição Federal de 1988. Disponível em: <https://ibpt.org.br/noticia/63/Em-23-anos-de-Constituicao-pais-edita-4-3-milhoes-denormas>. Acesso em: 04 de agosto de 2013.
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ELEIÇÕES
NO
BRASIL:
DEUSES,
CÉSARES
E
IGUALDADE
DE
OPORTUNIDADES
Rogério Magnus Varela Gonçalves 1
Sumário: 1. Introdução. 2. A inexistência de restrição aos religiosos na legislação eleitoral. 3. A possibilidade de restrições eleitorais impostas pelo grupamento religioso e a sua abrangência. 4. A não existência de uma legislação geral que discipline o fenômeno religioso no Brasil. 5. A desincompatibilização imposta aos ocupantes de cargos públicos ou privados de trabalho. 6. A igualdade de oportunidades na seara eleitoral. 7. Conclusão.
1
INTRODUÇÃO
O arcebispo do estado da Paraíba, Dom Aldo di Cillo Pagotto, uma vez iniciado o calendário eleitoral brasileiro do ano de 2014, divulgou um documento eclesiástico (Nota Normativa da Arquidiocese da Paraíba) no qual aborda três temas centrais, a saber: a filiação de Cléricos em partidos políticos; a participação dos religiosos como candidatos a cargos eletivos e a participação dos padres em atividades político-partidárias. O documento religioso em testilha afirma que os religiosos que desejarem disputar cargos eletivos serão suspensos do uso das Ordens na Circunscrição Eclesiástica da Arquidiocese da Paraíba. Igualmente, assevera que lhes é vedado o exercício do ministério plesbiterial e de quaisquer cargos eclesiásticos (ficando impedidos de celebrar os Sacramentos) e na hipótese de serem eleitos os padres continuariam suspensos do uso de Ordem e de quaisquer funções eclesiásticas enquanto durar o período do mandato para o qual tenham sido eleitos. É interessante registrar que a recomendação surge em um momento em que é crescente a participação de líderes religiosos na cena política, o que pode ser comprovado pela formação da chamada “bancada religiosa” no Congresso Nacional brasileiro.
1
Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Coimbra. Mestre em Direito Pela Universidade Federal da Paraíba. Docente do Centro Universitário de João Pessoa e da Fundação Escola Superior do Ministério Público da Paraíba (FESMIP/MP). Membro permanente do programa de pós-graduação (strictu sensu) do Centro Universitário de João Pessoa. Ex-Juiz do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba. Advogado. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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O presente estudo pretende analisar a referida iniciativa do líder religioso católico, fazendo-o do ponto de vista jurídico (e não eclesiástico) e com especial atenção ao primado constitucional da laicidade do Estado brasileiro, bem como tendo em conta a Lei da Separação entre o Estado e as Religiões (Decreto 119-A, de 1890). Para tanto será utilizado o discurso jurídico-constitucional e não o discurso teológicoconfessional. Com efeito, as questões que envolvem o Estado e a religião comportam, prioritariamente, duas abordagens discursivas: a teológico-confessional e a jurídicoconstitucional, eis que a ciência dogmática do direito2 não possui a exclusividade de tratamento do assunto. Como é natural, os cultores da teologia empregam uma linha argumentativa e linguística distinta daquela aplicada pelos juristas. As páginas seguintes serão dedicadas a uma abordagem de cunho predominantemente constitucional e eleitoral do fenômeno religioso. Longe de ser um menoscabo da visão religiosa da matéria, a opção é clara decorrência da formação acadêmica do autor. A primazia do olhar jurídico-constitucional ou, em outras palavras, a matriz constitucionalista do texto que ora se inicia não tem o intuito de apequenar a importância ou o relevo dos estudos de cariz teológico. Registre-se que o tema da interligação entre o poder político e o poder religioso volta a despertar o interesse social e jurídico, porquanto se vislumbra uma retomada de um diálogo mais constante e ameno entre o Estado e as religiões, superando-se a rigidez da secularização estrita3. Com efeito, autores, como Berger, falam da existência de um verdadeiro processo de
A expressão “ciência dogmática do direito” decorre de posição de concordância com o pensamento de Karl R. Popper. Segundo ele, muitas áreas de investigação humana, dentre as quais o direito, têm, indevidamente, se afirmado como verdadeira e pura ciência. Na verdade, o direito não é ciência pura, eis que não se pode aplicar aos estudos jurídicos a teoria da refutabilidade científica. Os cultores do direito caíram na tentação de se colocarem como cientistas, talvez acreditando que a admissão do contrário seria uma diminuição de sua importância. Longe disso. Ocorre apenas o fato de o mundo jurídico ser composto, predominantemente, de uma atividade de argumentação e de aplicação normativa. Logo, os operadores do direito mais se aproximam de artesãos do que propriamente de cientistas. Para esclarecimentos adicionais, são indicadas as seguintes obras básicas: POPPER. Karl R. A vida é aprendizagem: epistemologia evolutiva e sociedade aberta. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 2001; POPPER. Karl R. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 1999; POPPER. Karl R. O realismo e o objectivo da ciência. Tradução de Nuno Ferreira da Fonseca. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1997. Para outras leituras acerca do caráter não-cientificista do direito (teoria do ceticismo científico-jurídico), vide DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. pp. 32/33 (nota de rodapé 61). Nessa obra se encontrará uma listagem de mais de quinze autores que defendem a mesma linha de pensamento. 3 SCHLEGEL, Jean-Louis. « Revenir de la sécularisation ? ». In: Esprit. Números 4 e 5, 1986. pp. 9/23. 2
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dessecularização, demonstrado no ressurgimento (com maior força, peso e importância) da religião no espaço público4. O texto ora principiado, para além da questão de se respeitar a existência de espaços próprios para os Deuses e para os Césares, também irá analisar a questão do ponto de vista da igualdade de oportunidades entre os que disputam os cargos eletivos.
2 A INEXISTÊNCIA DE RESTRIÇÃO AOS RELIGIOSOS NA LEGISLAÇÃO ELEITORAL
A legislação eleitoral brasileira, ao estabelecer as restrições aos que disputam os cargos eletivos, não fez qualquer menção restritiva aos ministros de culto ou outros líderes religiosos. Entretanto, possui diversas limitações aos ocupantes de cargos, empregos ou funções públicas que resolverem disputar as eleições. Igualmente, limita o exercício da atividade política até mesmo em atividades privadas, quando os trabalhadores tiverem grande visibilidade social (radialistas, apresentadores de televisão, dentre outros). Tomemos por paradigma um radialista que se candidate a um cargo eletivo. Se o fundamento do afastamento de suas atividades radiofônicas é o de que seria desigual e a ele favorável ter contato com uma grande quantidade de ouvintes (algo que os seus concorrentes ao pleito não teriam), parece igualmente razoável que se estabeleça alguma restrição semelhante aos ministros de culto, eis que eles têm contato diário com centenas ou milhares de seguidores e tal fato tem a potencialidade de influenciar a seu favor no resultado das eleições. A ideia acima indicada tem por fito garantir uma igualdade material em face dos outros candidatos. Tal tema será tratado em tópico próprio, nomeadamente na perspectiva da busca pela igualdade de oportunidades entre os que disputam os cargos eletivos. Voltando os indivíduos que optaram pela vida religiosa e a sua interface com a seara eleitoral, parece que o Estado brasileiro agiu bem em não inibir a geral e completa participação política dos ministros de culto.
4
BERGER, Peter L. (organizador). The desecularization of the World: resurgent religion and world politics. Washington: Ethics and public policy center and Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1999. pp. 01/18. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Os religiosos não são subcidadãos ou cidadãos de segunda categoria. Tampouco detém uma participação ativa nas decisões estatais e institucionais da órbita eleitoral, como ocorre com os magistrados e promotores, que por esse fator estão inibidos do exercício da atividade político-partidária (ex vi dos artigos 95, inciso III e 128, § 5º, alínea “e”, da atual Constituição Federal). Logo, uma vez preenchendo os requisitos estabelecidos pela legislação constitucional (arts. 14 e 15 da vigente Lei Fundamental de 1988) e não estando enquadrados em qualquer hipótese de inelegibilidade prevista na Lei Complementar 64/90, forçoso que lhes seja atribuída a possibilidade do exercício ativo da vida político-partidária. Em uma visão prospectiva da legislação é que se poderia imaginar a elaboração de uma nova norma eleitoral que vedaria aos ministros de culto se candidatar aos cargos políticos na área de circunscrição em que exercem a sua atividade religiosa ou, de modo alternativo, e nas hipóteses de disputarem o pleito no local do exercício de seus afazeres religiosos que tenham que se desincompatibilizar de tais funções, tudo no afã de preservar o princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos. E que não se venha com o argumento de que tal restrição, de cunho eleitoral, teria o condão de macular o próprio princípio constitucional da liberdade religiosa. É que todos os direitos, mesmo os fundamentais, hão de conviver com restrições ou limitações. Não existe direito absoluto.
3 A POSSIBILIDADE DE RESTRIÇÕES ELEITORAIS IMPOSTAS PELO GRUPAMENTO RELIGIOSO E A SUA ABRANGÊNCIA
Indaga-se se é permitido ao grupamento religioso, a exemplo do que ocorreu com a recomendação firmada pelo Arcebispo Católico no estado da Paraíba, ter normativas internas (soft law) no sentido de restringir a atividade eleitoral de seus integrantes? A reposta requer uma breve paragem prévia no campo da “regulação” ou da “regulamentação” (para fins do presente estudo serão utilizadas com sinonímia as duas expressões), aqui compreendida como o tipo de regulação social que passa pelo canal do direito, produzida pelo Estado e atributo de sua soberania. Logo, existe inequívoca diferença
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de acepção com relação à regulação técnica, de natureza preponderantemente econômica, consolidada constitucionalmente5. O Brasil não possui uma lei que discipline o exercício da liberdade religiosa. Contudo, esse fato não pode ser considerado como completa ausência de balizas na manifestação dos sentimentos religiosos. Com efeito, a matéria persiste no campo dos poderes autorregulamentadores do campo religioso. Sendo assim, é oportuno fazer uma breve referência aos dois tipos mais destacados de regulação: a autorregulação e a heterorregulação. O ponto de partida, contudo, consiste na aceitação de “normas jurídicas de origem privada”, uma vez que está pacificada na doutrina a quebra do monopólio público da produção das normas jurídicas. Parte-se da ideia cada vez mais forte de que, além das normação jurídica pública (normas editadas por entidades públicas ou privadas no exercício de poderes públicos), também existe uma normação jurídica privada (um direito dos privados), composta pelo conjunto de normas jurídicas no exercício de um poder normativo privado6. Para Vital Moreira, o conceito de autorregulação está longe de ser unívoco. Apesar disso, pode-se afirmar que ela se consubstancia no sistema sobre o qual as regras são estabelecidas por aqueles a quem elas serão aplicadas, ou seja, a regulação levada a cabo pelos próprios interessados. O citado autor destaca três características da autorregulação, a saber: a) é uma forma de regulação e não ausência desta (a autorregulação é uma espécie do gênero regulação); b) trata-se de uma forma de regulação coletiva, na qual são impostas aos membros de determinada categoria certas regras de conduta (como não existe autorregulação individual, não se pode confundir tal instituto com os regramentos interna corporis de cada confissão
5
No mesmo sentido defendido no presente escrito, vide FEITOSA, Maria Luiza Pereira de Alencar Mayer. Paradigmas inconclusos: os contratos entre a autonomia privada, a regulação estatal e a globalização dos mercados. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 26/27. A autora salienta, contudo, que existem interações entre a regulação jurídica e a econômica. Para ela, a relação entre ambas vem destacada na crise do paradigma da exclusividade da lei e no abandono do dogma do monopólio dos instrumentos estatais na aplicação do direito. Enfatiza que o modelo da regulação jurídica estatal, acusado de sobrecarga, ineficiência e de perda de sua força vinculante, deveria ser substituído pela regulação social setorial, na concretização da fórmula “mais sociedade, menos Estado”. (p. 27). 6 GONÇALVES, Pedro. Entidades privadas com poderes públicos. Coimbra: Almedina, 2005. p. 695. Para o autor, é mais clara a permanência do monopólio ou da exclusividade do reconhecimento da juridicidade (a validação estatal das normas oriundas dos particulares), consistente na prerrogativa pública de conferir caráter jurídico a normas editadas por terceiros. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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religiosa); c) é uma forma de regulação não-estatal, podendo ser definida como uma regulação não pública (sentido administrativo do verbete). O doutrinador português destaca, em uma perspectiva mais econômica, que existe uma ligação estreita entre autorregulação e autorregulamentação. Esclarece que esta última é compreendida como a faculdade normativa das entidades dotadas de poder de autorregulação, constituindo-se na mais nobre dimensão desse instituto. Por fim, enfatiza que as relações entre a autorregulamentação privada (códigos de conduta, regras deontológicas e formas afins) e a regulamentação estatal (leis, regulamentos, etc.) podem ser de três ordens: preempção (a primeira dispensa a segunda); substituição (a primeira ocupa o lugar da segunda) e adição (a primeira incorpora elementos à segunda)7. O presente estudo reitera e recepciona a utilização das expressões “regulação” e “regulamentação” no contexto de normatividade jurídica. A regulação privada vem conquistando, nos últimos anos, maior destaque na paleta multiforme das fontes do direito. Observa-se que são cada vez mais usuais as manifestações normativas de agentes de produção privados, com progressiva importância como instâncias regulativas de interesses e litígios dos particulares8. A heterorregulamentação, por sua vez, é vislumbrada quando o Estado avoca a missão de, por meio de elaboração normativa, ordenar e conformar a vida em sociedade. A regulação jurídica estatal está intimamente atrelada ao conceito de juridificação, que se consubstancia no fato de uma determinada esfera da vida, até então juridicamente não regulada, passa a ser regulada juridicamente9. Existem, como é natural, supostas vantagens da autorregulamentação e da heterorregulamentação. Façamos uma breve listagem delas, visando uma tomada de posição. Como principais vantagens da autorregulamentação10, são apontadas as seguintes: a) os elaboradores do regramento são conhecedores da temática11 objeto da regulamentação; b) a 7
MOREIRA, Vital. Auto-regulação profissional e administração autónoma (A organização institucional do vinho do Porto): Volume I. Coimbra: tese de doutoramento policopiada, 1996. pp. 58/59 e 74/75. 8 CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 705. 9 MOREIRA, Vital. Op. cit. p. 123. 10 Sobre as vantagens e as desvantagens da autorregulação, vide FIDALGO, Joaquim Manuel Martins. O lugar da ética e da auto-regulação na identidade profissional dos jornalistas. Braga. Universidade do Minho. Tese de Doutoramento, 2007 (especial interesse pp. 449/489). Para o autor, a autorregulação seria, pelo menos em tese e no específico campo da mídia, o melhor caminho para se equilibrar a responsabilidade e a liberdade. Isto porque, ao conferir aos próprios protagonistas do processo midiático a responsabilidade de livremente estabelecerem os CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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autorregulamentação promove um processo de práticas e de sanções menos formais, o que teria o condão de diminuir o custo e o lapso temporal das decisões (inclusive as punitivas); c) há uma maior adesão dos interessados na temática regulamentada (no caso do estudo, a religiosa), eis que eles se sentiriam coparticipes da gênese e do dever de cumprimento do regramento. Em contraposição, poder-se-ia alegar que a heterorregulamentação possui a vantagem de evitar que pessoas diretamente interessadas na matéria e sem a necessária isenção de ânimo tivessem a legitimidade de elaborar uma legislação. É que nela se poderia favorecer o pensamento religioso dominante em detrimento daqueles que tivessem pouca ou nenhuma voz ativa no processo de elaboração das normativas atinentes ao campo religioso. Dessa forma, a heterorregulação teria a vantagem de transformar o Estado, como um terceiro teoricamente desinteressado em favorecer este ou aquele agrupamento religioso, em guardião das liberdades religiosas. Em qualquer caso, não se pode perder de vista a necessidade de estabelecer limites e impor responsabilizações para a hipótese de eventual descumprimento do dever de isenção estatal acerca das cláusulas da legislação religiosa. Uma vez constatado que o Estado não agiu com a imparcialidade que era suposto dele esperar, privilegiando uma religião em detrimento das demais ou olvidando a natureza constitucional laica da República Federativa do Brasil, emerge a natural possibilidade de se questionar a constitucionalidade da norma infraconstitucional. O presente estudo entende que, em vários núcleos temáticos (a regulamentação profissional, o mercado de capitais, dentre outros), deve-se estimular a autorregulamentação, até como forma de diluição da responsabilidade legiferante. Como se sabe, no plano do Poder Judiciário e especificamente da interpretação constitucional, vivencia-se uma sociedade aberta de intérpretes da constituição (Peter Häberle). Da mesma forma, até por questão de coerência, deve-se defender a maior participação dos indivíduos na formulação dos comandos normativos que irão disciplinar a vida em sociedade. Logo, em significativa parcela das relações sociais é de se incentivar a autorregulamentação.
limites de sua atuação profissional, evitar-se-ia a presença da mão externa estatal e da natural tentativa de o poder público cercear o direito fundamental de informação. 11 No específico aspecto da normação dos sentimentos religiosos, o fato de os elaboradores serem conhecedores da temática tem a potencialidade de fazer com que seja elaborada uma normatividade mais consentânea com a realidade do fenômeno religioso. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Contudo, no que diz respeito, especificamente, ao fator religioso, este trabalho se posiciona no sentido de prestigiar o Estado legislativo em detrimento do cidadão legislador. E assim entende como forma de evitar segregações religiosas e seus reflexos (violências religiosas e congêneres). Além disso, parece que a imaturidade e a intolerância social acerca da questão religiosa conferem maior legitimidade ao Estado para estabelecer os regramentos no campo específico dos sentimentos religiosos. Essa parece ser a melhor solução para o enfrentamento normativo da temática nos hodiernos dias. Já dentro de uma visão prospectiva, não se pode deixar de observar que, com o avanço da sociedade e com a sedimentação dos ideais de tolerância, liberdade e hospitalidade religiosas, o futuro pode permitir que se estabeleça uma co-regulamentação (em momento de transição), até que seja possível chegar-se a uma autorregulamentação. Esse processo decorre do agigantamento da normação privada no multiforme universo das fontes do direito. Para Gomes Canotilho, como salientado anteriormente, a cada dia que passa, vão surgindo manifestações normativas de agentes de produção privados, com progressiva importância, como instâncias regulativas de interesses e litígios dos particulares12. Tal fato se justifica porque, ao lado das normas jurídicas formais, provenientes do Parlamento, convivem outras diretivas comportamentais. Existe, pois, uma tendência no sentido da regulação autônoma dos interesses, tudo em decorrência da pluralidade de regimes jurídicos que caracterizam os dias atuais13. Ao fim, e tendo por base a ideia de quebra do monopólio do estado legislativo, pode-se concluir que é perfeitamente possível ao movimento religioso ter regras internas limitadoras da atividade eleitoral. Contudo, a abrangência e as consequências de se infringir estas recomendações se limitam ao próprio grupo religioso, não tendo o condão de servir de base para a decretação estatal de inelegibilidade. As condicionantes e as eventuais punições para os que não atenderem aos comandos internos das confissões religiosas serão circunscritas à associação religiosa e encontram
12
Acerca do gradativo processo de maior espaço concedido às normas privadas, vide CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 705. 13 Sobre a diversidade de regimes jurídicos e a queda do império da lei formal, vide ZIPPELIUS, Reinhold. Introdução ao estudo do direito. Tradução de Gercélia Batista de Oliveira Mendes. Belo Horizonte: Del Rey, 2006 (especial interesse pp. 99/12 e 35/39). No mesmo sentido, vide MONCADA, Luís S. Cabral de. Ensaio sobre a lei. Coimbra: Coimbra Editora, 2002. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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guarida na autoregulação que lhes é permitida para fins de disciplinamento dos seus assuntos interna corporis.
4 A NÃO EXISTÊNCIA DE UMA LEGISLAÇÃO GERAL QUE DISCIPLINE O FENÔMENO RELIGIOSO NO BRASIL
Nunca é demasiado lembrar, em reforço da importância da problemática investigada, que o direito tende a regulamentar as questões socialmente relevantes. Como se sabe, a religião ocupa lugar cimeiro no cotidiano das pessoas. Portanto, nada mais natural que se edificar, no território brasileiro, uma legislação específica para o tratamento do fenômeno religioso, como forma de superar a incômoda cegueira decorrente de não se saber, com a clareza devida, quais os direitos e os deveres ligados ao tema. O presente texto acompanha, nesse aspecto, a opinião de Suarez Pertierra, para quem não se devem fazer objeções em face da densificação normativa infraconstitucional das linhas centrais ditadas pela Constituição acerca do tratamento do fato religioso. Segundo esclarece, a liberdade religiosa pode exigir alguma norma específica que facilite aos indivíduos o seu exercício nas melhores condições de liberdade e de igualdade14. Assim, também é de se defender a ideia de que deve ser criado um direito especial para a liberdade religiosa, no ordenamento jurídico brasileiro. Como já ficou sobejamente registrado, este trabalho pretende indicar que contornos deve assumir a relação entre o poder político e o poder religioso. Busca também clarificar a atitude do Estado que se acredita mais recomendável para com o fenômeno religioso15. Nesta abordagem, a matriz dogmática resta inconteste. Mesmo sem ignorar importantes contributos filosóficos para o estabelecimento das ligações entre o poder político e o poder religioso, o trabalho se inclina a recomendar uma mudança na legislação eleitoral brasileira, especificamente no que diz respeito ao direito da religião. No caso do Brasil, é de se registrar que não obstante se trate da mais antiga forma de regulação social, a autorregulação não teve o condão de conferir à comunidade política, dentre SUÁREZ PERTIERRA, Gustavo. “La cuestión religiosa: vigencia de la Constitución, 25 años después”. In: Cuadernos Constitucionales de la Cátedra Fradrique Furió Ceriol. Nº 40, 2002. pp. 45/55 (especial interesse p. 52). 15 Acerca da delimitação do problema normativo fundamental, vide ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002. p. 13. 14
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dos preceitos da certeza e da segurança jurídicas, a listagem de seus direitos e deveres de cunho religioso. Noutras palavras, o presente estudo busca densificar o direito fundamental da liberdade religiosa prevista na Carta Magna de 1988. Objetivando afivelar a máscara de um positivismo reflexivo, sugere a elaboração de uma lei geral de liberdade religiosa para o Brasil e que nela seja inserido um dispositivo no sentido de determinar que os líderes religiosos não possam se candidatar a cargos eletivos nos locais em que exercem sua atividade eclesiástica. Como medida legislativa alternativa, e na hipótese de se aceitar que o ministro de culto se candidate no local onde exerce suas atividades religiosas, que seja ao menos exigida a desincompatibilização do exercício de suas tarefas eclesiásticas em prazos semelhantes aos exigidos dos que ocupam cargos privados de grande visibilidade social.
5 A DESINCOMPATIBILIZAÇÃO IMPOSTA AOS OCUPANTES DE CARGOS PÚBLICOS OU PRIVADOS DE TRABALHO
A legislação eleitoral demonstra preocupação com o exercício de cargos (privados e públicos) que possam desequilibrar a disputa eleitoral. Tanto isso é fato que é voz corrente que o objetivo da desincompatibilização é o de garantir maior lisura ao processo eleitoral, impossibilitando que o candidato se utilize da função, cargo ou emprego, de natureza pública ou privada, em benefício de sua candidatura, a fim de evitar a prática de abuso de poder político ou econômico e proteger a normalidade e legitimidade das eleições. A matéria da desincompatibilização para fins eleitorais e os seus respectivos prazos estão disciplinados no art. 1º da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990. Já a Resolução do Colendo Tribunal Superior Eleitoral de nº 23.405, em seu art. 27, inc. V, afirma que o formulário de requerimento de registro de candidatura (RRC) deverá ser apresentado acompanhado da prova de desincompatibilização (quando for o caso). Já se utilizou como exemplo, ao longo do presente texto, o caso de um radialista que se lança candidato a um cargo eletivo. A desincompatibilização a ele imposta tem lastro no fato de que ele terá grande contato com os eleitores, o que teria a potencialidade de desequilibrar a disputa eleitoral em seu favor.
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Se tal favorecimento poderia ocorrer com um radialista, com muito maior razão pode ser vislumbrado com o líder religioso e aqui com um agravante: o exercício da atividade de líder religioso é visto, por uma grande quantidade de cidadãos, como possuindo uma ligação com o divino. Logo, seria uma disputa eleitoral travada entre o profano e o divino. Muitos eleitores, que tenham forte pertença religiosa, também ficarão tentados a eleger um ministro de culto para fins de aumentar a representatividade política de sua igreja. A escolha no pleito eleitoral não seria pautada, necessariamente, em propostas de mudanças para a sociedade civil como um todo e sim em busca ou em prol de melhorias para aquela comunidade religiosa especificamente considerada. Por todos esses fatores, parece adequado que se estabeleça um prazo de desincompatibilização das lideranças religiosas que desejem se lançar como candidatos a cargos eletivos. O tratamento aqui sugerido aos líderes religiosos não destoa, por exemplo, do que a legislação eleitoral já dedica aos dirigentes sindicais, que devem se desincompatibilizar quatro meses antes do pleito. A recomendação religiosa aqui investigada mais parece uma espécie de desincompatibilização ética. Sim, se o direito estatal brasileiro não regulou o afastamento dos líderes religiosos das atividades eclesiásticas em locais em que se candidataram aos cargos políticos, é permitido às próprias organizações religiosas buscar a igualdade de oportunidades na seara eleitoral. Em suma, a desincompatibilização, seja para cargos públicos, seja para cargos da iniciativa privada, parece ter por fundamento o preceito da igualdade de oportunidades na seara eleitoral. É esse mesmo aspecto de igualdade material que precisa ser estendido, pelo legislador eleitoral, aos líderes religiosos. Sendo assim, forçoso tecer breves considerações acerca do cânone da simetria.
6 A IGUALDADE DE OPORTUNIDADES NA SEARA ELEITORAL
Não se pode fazer um estudo específico do primado da igualdade de oportunidades na seara eleitoral, sem que se lhe anteceda uma análise, mesmo que breve, do sentido genérico
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do cânone jurídico da igualdade16. Impõe-se, portanto, tecer considerações específicas acerca do preceito constitucional da simetria (lato sensu). Nesse contexto, lança-se um olhar geral para o primado da igualdade, desde já se antecipando que não era suficiente uma igualdade meramente jurídica (no sentido formal e clássico), exigindo-se, mais do que isso, uma isonomia fática (em sua acepção material), decorrente da moderna ideologia de igualdade de oportunidades17. Acerca da conquista do ideal de igualdade (sentido amplo), faz-se mister afirmar que foi (e ainda continua a ser em numerosos países) labiríntico e sinuoso o caminho percorrido para a sedimentação do ideal da igualdade entre os seres humanos. Com efeito, o conceito de igualdade sempre foi marcado por uma ideia cambiante18, visto que era seguidamente adaptável ao dinamismo das carências e das reivindicações sociais. Fazendo-se o acompanhamento histórico do sentido jurídico do princípio da igualdade, observa-se que a sociedade evoluiu desde um estágio em que se entendia como sendo natural a desigualdade, passando pela defesa da igualdade formal e alcançando a igualdade material (igualdade de oportunidades)19. Tributa-se aos estóicos e ao cristianismo a superação da ideia de desigualdade natural20. Os iluministas, por seu turno, chegaram a uma mais efetiva normatização do primado da igualdade. Com efeito, o advento das declarações de direitos dos finais do século XVIII (mormente a da Virgínia, de 12 de junho de 1776, e a dos Direitos do Homem e do Toma-se por base a abordagem metodológica proposta por WOITYCZEK, Krzysztof. “Les religions et le principe d’égalité”. In: Revue Europeenne de Droit Public. Vol. 17, n° 1, 2005. pp. 117/148. 17 Observando o quanto pode ser perversa a situação de igualdade de direito enquanto persiste uma discriminação de fato, Tove Stang Dahl desenvolve suas reflexões numa perspectiva de igualdade jurídica entre os homens e as mulheres, demonstrando o hiato entre esta previsão normativa e a realidade cotidiana. DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista. Tradução de Teresa Beleza e outras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. pp. 58/62. 18 Acerca da compreensão dinâmica do conceito de igualdade, vide GARRIDO GÓMEZ, María Isabel. “Los planos de vigencia de la igualdad material en el contexto de una comprensión compleja de la igualdad”. In: Derechos y Libertades. Nº 20, Época II, 2009. pp. 57/78 (especial interesse pp. 58/64). 19 Acerca da evolução histórica do sentido jurídico do princípio da igualdade, vide DRAY, Guilherme Machado. O princípio da igualdade no direito do trabalho: sua aplicabilidade no domínio específico da formação dos contratos individuais de trabalho. Coimbra: Almedina, 1999. pp. 18/99. 20 Acerca da importância do cristianismo e dos estóicos na sedimentação do ideal de igualdade, vide Ibidem. p. 23. Já para Jónatas Machado, ao tratar da igualdade e sua ligação com o pensamento judaico-cristão, assim se pronunciou: “A premissa judaico-cristã de igual dignidade de todos os homens e mulheres diante de Deus esteve na base de séculos de reflexão política e jurídica. Ela tem o seu fundamento na criação de todos os seres humanos, homens e mulheres, à imagem e semelhança de Deus. Ela é o fundamento dos direitos de liberdade individual e da autodeterminação coletiva, constituindo também uma limitação moral ao respectivo exercício”. Vide MACHADO, Jónatas Eduardo Mendes. Estado constitucional e neutralidade religiosa: entre o teísmo e o (neo)ateísmo. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2013 (especial interesse p. 48) 16
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Cidadão, de 26 de agosto de 1789), foi de suma relevância para a abolição de privilégios. Essas declarações propiciaram o florescimento do ideal, então revolucionário, de igualdade perante a lei, sendo induvidoso que influenciaram, fortemente, as modernas constituições que lhe seguiram21 e que passaram a constitucionalizar o preceito da igualdade. As repúblicas democráticas que se instalaram sob os ideais iluministas estabeleceram a igualdade como um dos seus preceitos mais caros. Como lembrava João Barbalho, ao comentar a primeira constituição republicana brasileira, a desigualdade, além de injusta e injurídica, é impolítica. Para o autor, não existe fundamento justificador para que uma organização política conceda mais direitos, mais garantias ou mais vantagens a uns do que a outros membros da mesma comunidade. Concluía ele que, de todas as formas de governo, é a república a mais própria para o domínio da igualdade, sendo mesmo a única verdadeiramente compatível com ela22. É inegável o fato de que a evolução social trouxe a constatação de que era insuficiente o ideal de uma igualdade formal, sendo premente a cotidiana aplicabilidade da igualdade material. Foi o refinamento da ideia e dos pensadores que fez decantar as teses do direito a um igual tratamento (equal treatment) e do direito a ser tratado como igual (treatment as an equal). Não obstante exista uma progressiva sedimentação do ideal ao direito do igual tratamento em face de todos os indivíduos e dos grupos sociais, há ainda quem teorize que o princípio jurídico da igualdade é ausente de qualquer conteúdo. Alguns chegam até a considerá-lo uma fórmula vazia (Leerformelcharakter)23, o que o tornaria ineficaz na pretendida missão de combater excessos praticados no exercício dos poderes públicos ou particulares e que afrontassem a simetria no tratamento. O verbete “igualdade” foi bem explicado no Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional, para o qual se remete o interessado em leitura complementar do tema. Dele se extrai a seguinte ideia das declarações e da igualdade formal: “Nessas declarações, a igualdade consagrada era a igualdade perante a lei (isonomia), ou seja, a garantia de um mesmo tratamento jurídico para todas as pessoas que se encontravam em uma situação determinada ou apresentavam características semelhantes, que era legitimada, à época, com fulcro no direito natural. Embora essa concepção fosse revolucionária, no dado momento histórico, ela não visava a estabelecer uma igualdade plena e efetiva entre os indivíduos em certos domínios, sob a ótica da justiça social (igualdade material); em vez disso, almejava a erradicação dos privilégios nobiliários e de classes, de maneira que as inegáveis diferenças pessoais pudessem emergir naturalmente, mas apenas em razão (e na proporção) das aptidões de cada um. Desse modo, ela apenas garantia a aplicação igualitária da lei” MENEZES, Paulo Lucena de. “Igualdade”. In: VVAA. Dicionário Brasileiro de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 175. 22 CARVALHO, João U. C. Constituição Federal brazileira: Comentários. Rio de Janeiro: Typographia da Companhia Litho-Typographia em Sapopemba, 1902. pp. 303/304. 23 WESTEN, Peter. “The empty idea of equality” In: Harvard Law Review, 1982. p. 537. 21
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Longe de aceitar a tese de que a igualdade seria uma fórmula sem qualquer préstimo jurídico, acredita-se que ela é uma fórmula carregada de múltiplos sentidos e significações24. Para tanto, foi necessário ultrapassar o pensamento liberal clássico (com as achegas de ideias sociais e democráticas, próprias do comunitarismo) de igualdade meramente jurídiconormativa, desconectada da intencionalidade da norma e apenas preocupada com a justiça da aplicação da lei. Com efeito, para que fosse possível dar maior valia jurídica à fórmula da igualdade, foi necessário buscar a igualdade jurídico-política, preocupada não apenas com o critério material de qualificação igual para efeitos de tratamento jurídico, mas também, de outra banda, com a própria intencionalidade da norma. Foi justamente esse entendimento alargado que propiciou uma maior confiança social e jurídica nas potencialidades do princípio da igualdade no combate às injustiças. Resta, portanto, perfeitamente compreensível a crescente invocação do preceito da igualdade quando se pretende promover a justiça. O princípio da igualdade não é vislumbrado em dimensão única. Ao contrário, existem três dimensões principais em torno das quais é analisado. A dimensão clássica liberal, a dimensão democrática e a dimensão social. A primeira se preocupa, fundamentalmente, com o tratamento normativo igualitário, sem que se permita qualquer beneplácito ou perseguição em relação a qualquer indivíduo (em face da lógica da impessoalidade estatal). A segunda não admite qualquer discriminação (aí se incluindo as discriminações positivas, que formam uma política de ação afirmativa) na vida social. Já a última defende a eliminação das desigualdades fáticas, buscando uma igualdade material e não apenas formal25. A tendência mundial é a busca pela igualdade de oportunidades. Com esse propósito, retoma-se o pensamento de Aristóteles, no sentido de que se deve tratar igualmente aqueles que são iguais e desigualmente os que são díspares, na exata proporção ou medida de suas desigualações. Nessa mesma trilha, evoca-se Rui Barbosa, para quem a regra da igualdade consistiria em aquinhoar desigualmente os desiguais na medida em que se desigualam. Segundo esclarecia, nessa desigualdade social, proporcional à desigualdade natural, é que se encontra a verdadeira lei da igualdade. Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com 24
A partir daqui, seguir-se-á o trajeto intelectivo pavimentado por GARCIA, Maria Glória F. P. D. Estudos sobre o princípio da igualdade. Coimbra: Almedina, 2005. pp. 29/73. 25 Para maiores desdobramentos sobre o princípio constitucional da igualdade, vide CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Volume I. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. pp. 336/337. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real. Arremata afirmando que os apetites humanos conceberam inverter a norma universal da criação, pretendendo que não se devia dar a cada um na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos, como se todos se equivalessem26. No campo das tendências hodiernas, parece incontornável afirmar que o princípio da igualdade (e uma igualdade mais ampla, com um olhar inclusivo e com o devido respeito pelas diferenças), no constitucionalismo ocidental, tem sido edificado ao patamar de um princípio constitucional fundamental. Nas palavras de Bruno Galindo, a “própria ideia de Estado democrático de direito é indissociável do princípio da igualdade”27. Na seara eleitoral brasileira, o legislador ouve por bem defender o princípio da igualdade de oportunidades entre os disputantes dos cargos eletivos. Com efeito, o preceito em análise foi alvo de expressa proteção no art. 73 da Lei nº 9.504/97 (a lei geral das eleições), que tem a seguinte redação:
Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária; II - usar materiais ou serviços, custeados pelos Governos ou Casas Legislativas, que excedam as prerrogativas consignadas nos regimentos e normas dos órgãos que integram; III - ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado; IV - fazer ou permitir uso promocional em favor de candidato, partido político ou coligação, de distribuição gratuita de bens e serviços de caráter social custeados ou subvencionados pelo Poder Público; V - nomear, contratar ou de qualquer forma admitir, demitir sem justa causa, suprimir ou readaptar vantagens ou por outros meios dificultar ou impedir o exercício funcional e, ainda, ex officio, remover, transferir ou exonerar servidor público, na circunscrição do pleito, nos três meses que o antecedem e até a posse dos eleitos, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados: a) a nomeação ou exoneração de cargos em comissão e designação ou dispensa de funções de confiança; 26
BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 2 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949. p. 21. GALINDO, Bruno. “Cidadania complexa e direito à diferença: repensando o princípio da igualdade no estado constitucional contemporâneo”. In FERRAZ, Carolina Valença; LEITE, Glauber Salomão; NEWTON, Paulla Christianne da Costa (org.). Cidadania plural e diversidade: a construção do princípio fundamental da igualdade nas diferenças. São Paulo: Editora Verbatim, 2012. pp. 19/31 (especial interesse p. 21). 27
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b) a nomeação para cargos do Poder Judiciário, do Ministério Público, dos Tribunais ou Conselhos de Contas e dos órgãos da Presidência da República; c) a nomeação dos aprovados em concursos públicos homologados até o início daquele prazo; d) a nomeação ou contratação necessária à instalação ou ao funcionamento inadiável de serviços públicos essenciais, com prévia e expressa autorização do Chefe do Poder Executivo; e) a transferência ou remoção ex officio de militares, policiais civis e de agentes penitenciários; VI - nos três meses que antecedem o pleito: a) realizar transferência voluntária de recursos da União aos Estados e Municípios, e dos Estados aos Municípios, sob pena de nulidade de pleno direito, ressalvados os recursos destinados a cumprir obrigação formal preexistente para execução de obra ou serviço em andamento e com cronograma prefixado, e os destinados a atender situações de emergência e de calamidade pública; b) com exceção da propaganda de produtos e serviços que tenham concorrência no mercado, autorizar publicidade institucional dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, salvo em caso de grave e urgente necessidade pública, assim reconhecida pela Justiça Eleitoral; c) fazer pronunciamento em cadeia de rádio e televisão, fora do horário eleitoral gratuito, salvo quando, a critério da Justiça Eleitoral, tratar-se de matéria urgente, relevante e característica das funções de governo; VII - realizar, em ano de eleição, antes do prazo fixado no inciso anterior, despesas com publicidade dos órgãos públicos federais, estaduais ou municipais, ou das respectivas entidades da administração indireta, que excedam a média dos gastos nos três últimos anos que antecedem o pleito ou do último ano imediatamente anterior à eleição. VIII - fazer, na circunscrição do pleito, revisão geral da remuneração dos servidores públicos que exceda a recomposição da perda de seu poder aquisitivo ao longo do ano da eleição, a partir do início do prazo estabelecido no art. 7º desta Lei e até a posse dos eleitos. § 1º Reputa-se agente público, para os efeitos deste artigo, quem exerce, ainda que transitoriamente ou sem remuneração, por eleição, nomeação, designação, contratação ou qualquer outra forma de investidura ou vínculo, mandato, cargo, emprego ou função nos órgãos ou entidades da administração pública direta, indireta, ou fundacional. § 2º A vedação do inciso I do caput não se aplica ao uso, em campanha, de transporte oficial pelo Presidente da República, obedecido o disposto no art. 76, nem ao uso, em campanha, pelos candidatos a reeleição de Presidente e Vice-Presidente da República, Governador e Vice-Governador de Estado e do Distrito Federal, Prefeito e Vice-Prefeito, de suas residências oficiais para realização de contatos, encontros e reuniões pertinentes à própria campanha, desde que não tenham caráter de ato público. § 3º As vedações do inciso VI do caput, alíneas b e c, aplicam-se apenas aos agentes públicos das esferas administrativas cujos cargos estejam em disputa na eleição. § 4º O descumprimento do disposto neste artigo acarretará a suspensão imediata da conduta vedada, quando for o caso, e sujeitará os responsáveis a multa no valor de cinco a cem mil UFIR. § 5o Nos casos de descumprimento do disposto nos incisos do caput e no § 10, sem prejuízo do disposto no § 4o, o candidato beneficiado, agente público ou não, ficará sujeito à cassação do registro ou do diploma. § 6º As multas de que trata este artigo serão duplicadas a cada reincidência. § 7º As condutas enumeradas no caput caracterizam, ainda, atos de improbidade administrativa, a que se refere o art. 11, inciso I, da Lei nº 8.429, de 2 de junho de
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1992, e sujeitam-se às disposições daquele diploma legal, em especial às cominações do art. 12, inciso III. § 8º Aplicam-se as sanções do § 4º aos agentes públicos responsáveis pelas condutas vedadas e aos partidos, coligações e candidatos que delas se beneficiarem. § 9º Na distribuição dos recursos do Fundo Partidário (Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995) oriundos da aplicação do disposto no § 4º, deverão ser excluídos os partidos beneficiados pelos atos que originaram as multas. § 10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa. § 11. Nos anos eleitorais, os programas sociais de que trata o § 10 não poderão ser executados por entidade nominalmente vinculada a candidato ou por esse mantida. § 12. A representação contra a não observância do disposto neste artigo observará o rito do art. 22 da Lei Complementar no 64, de 18 de maio de 1990, e poderá ser ajuizada até a data da diplomação. § 13. O prazo de recurso contra decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.
Ao analisar a listagem das condutas vedadas elencadas no art. 73 da Lei das Eleições parece evidente que diversas das hipóteses legais desequilibram o pleito eleitoral em menor escala ou dimensão do que a fala de um líder religioso a defender, mesmo que de modo subliminar, a sua candidatura a um cargo político. Logo, seria recomendável a vedação de que líderes religiosos pudessem se candidatar nos locais em que exercem suas atividades eclesiásticas ou ainda que tenham que se desincompatibilizar caso queiram se candidatar na localidade em que atuam como religiosos. Tal medida se impõe ante o poder (até mesmo psicológico, em face das teorias de programação, desprogramação e reprogramação dos adeptos) que a entidade religiosa exerce sobre os fiéis, transformando-os em entes fragilizados na relação estabelecida, o que poderia ser utilizado para propósitos eleitorais (desequilibrando a disputa e ferindo o princípio da igualdade de oportunidades entre os candidatos).
7 CONCLUSÃO
Ao cabo de todas as ponderações firmadas acima, permite-se formular as seguintes considerações:
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a) A recomendação do líder da Igreja de Roma para o estado da Paraíba parece ter levado em consideração a existência de espaços próprios (não, necessariamente, sem qualquer comunicação) para que o poder político e o poder religioso se constituam em um dos postulados do constitucionalismo dos dias presentes. b) Vislumbra-se que a nota normativa da arquidiocese da Paraíba parte da premissa de que a esfera política é autônoma da seara religiosa, de modo que o Estado e a religião devem ser separados, mantendo-se um distanciamento respeitoso.28 c) O atual modelo brasileiro de laicidade é o de uma “quase nenhuma laicidade”, na medida em que aceita, dentre outras distorções (e aqui listadas apenas as questões envolventes a seara eleitoral), as seguintes: permite que os líderes religiosos se candidatem a cargos eletivos, mesmo nos locais em que exercem suas funções eclesiásticas (o que parece ferir o princípio da igualdade de armas entre os disputantes das eleições), além de permitir a existência de partidos políticos com cartas programáticas assumidamente religiosas e com nome ou símbolos de identificação com conotações religiosas. d) A legislação eleitoral brasileira tem, de forma geral, mostrado preocupação no sentido de propiciar uma igualdade de oportunidades entre os candidatos aos cargos eletivos. e) Não existe, ainda, a restrição do estado legislativo no sentido de exigir uma desincompatibilização dos líderes religiosos de suas atividades eclesiásticas na hipótese de se candidatem aos postos políticos.
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AMARAL, Maria Lúcia. A forma da República: uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. p. 45. Para a doutrinadora portuguesa, existem nove postulados que são tributáveis ao constitucionalismo moderno (dentre os quais se insere a separação entre o Estado e as religiões): 1) o poder político exercido em uma determinada comunidade é proveniente da vontade dos seus integrantes e não de qualquer realidade que lhe seja transcendente; 2) a ordem jurídica fundamental da comunidade deve ser consubstanciada em uma constituição escrita, que venha a refletir a decisão soberana do elemento subjetivo do Estado; 3) a legitimidade dos poderes soberanos do Estado decorre da observância aos ditames constitucionais, eis que, quando exercidos em descompasso com a previsão supralegal, tornam-se ilegítimos e desacompanhados da razão; 4) a exigência de uma condicionante genérica para que alguém seja considerado pertencente à comunidade política, evitando-se que apenas pequenas castas sociais, religiosas, políticas ou econômicas possam desfrutar da cidadania; 5) os direitos fundamentais hão de possuir maior peso e importância do que os demais direitos que eventualmente com eles possam concorrer ou colidir, sendo que o poder político não deve descuidar da sua efetividade; 6) a separação entre o poder político e o religioso; 7) a diluição de responsabilidades dentro do poder político (evitando-se os absolutismos), devendo existir uma fragmentação das esferas de competência entre os poderes políticos legitimamente constituídos; 8) a supremacia da lei, a ser elaborada por um Parlamento escolhido por meio da vontade livre, espontânea e consciente dos cidadãos, eis que a ninguém é permitido deixar de cumprir os comandos normativos (decorrência do Estado de direito); 9) a primazia da vontade da maioria (decorrência do Estado democrático). CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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f) Diante da lacuna normativa diagnosticada o presente estudo defende que seja vedado ao líder religioso se candidatar na localidade em que exerce sua atividade eclesiástica e como medida legislativa alternativa, e na hipótese de se aceitar que o ministro de culto se candidate no local onde exerce suas atividades religiosas, que seja ao menos exigida a desincompatibilização do exercício de suas tarefas eclesiásticas em prazos semelhantes aos exigidos dos que ocupam cargos privados de grande visibilidade social. REFERÊNCIAS ADRAGÃO, Paulo Pulido. A liberdade religiosa e o Estado. Coimbra: Almedina, 2002. AMARAL, Maria Lúcia. A forma da República: uma introdução ao estudo do direito constitucional. Coimbra: Coimbra Editora, 2005. BARBOSA, Rui. Oração aos moços. 2 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1949. BERGER, Peter L. (organizador). The desecularization of the World: resurgent religion and world politics. Washington: Ethics and public policy center and Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1999. pp. 01/18. CANOTILHO, J. J. Gomes; MOREIRA, Vital. Constituição da República portuguesa anotada. Volume I. 1 ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; 4 ed. Coimbra: Coimbra Editora, 2007. CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição. 7 ed. Coimbra: Almedina, 2003. CARVALHO, João U. C. Constituição Federal brazileira: Comentários. Rio de Janeiro: Typographia da Companhia Litho-Typographia em Sapopemba, 1902. DAHL, Tove Stang. O direito das mulheres: uma introdução à teoria do direito feminista. Tradução de Teresa Beleza e outras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. 1993. DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 15 ed. São Paulo: Saraiva, 2003. DRAY, Guilherme Machado. O princípio da igualdade no direito do trabalho: sua aplicabilidade no domínio específico da formação dos contratos individuais de trabalho. Coimbra: Almedina, 1999.
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DIREITO ELEITORAL: SOCIEDADE, POLÍTICA E PODER
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A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO PROCESSO ELEITORAL BRASILEIRO: A QUESTÃO PARTICIPAÇÃO X VOTO José Flôr de Medeiros Júnior1 Laryssa Mayara Alves de Almeida2 “O Brasil não tem povo, tem público.” Lima Barreto
Sumário: 1 Introdução. 2 A ausência da prática cidadã no brasil contemporâneo. 3 Se todo o poder emana do povo onde está o povo? 4 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO
O brasileiro vem assistindo de algum tempo na seara eleitoral o debate sobre a obrigatoriedade, ou não, do voto. Necessário considerar que em consonância com o Art. 1º, Parágrafo Único, do texto constitucional está explícito que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição. Situação que vem do constituinte originário e tem, enquanto princípio constitucional, conceder ao cidadão brasileiro o direito de exercer o poder oriundo da prática cidadã. Não podemos deixar de expor que o voto no Brasil é um exercício obrigatório, um dever. E reside neste ponto um dos maiores problemas no âmbito eleitoral dentro do direito brasileiro e será dele que procuraremos traçar um diálogo com o elemento ausente na sociedade brasileira: o povo. Consideramos que não pode existir democracia sem a presença do povo, enquanto cidadão, como partícipe do processo eleitoral. Não é bastante a existência do povo. A participação deste com prática cidadã é um dos fundamentos da democracia. E neste sentido a democracia brasileira é afetada por uma situação de ordem cultural, social e histórica a refletir no terreno político contemporâneo. Esta vem a ser a presença de que a maioria do eleitorado é público e não povo. 1
Graduado em História pela UEPB, Especialista em História do Nordeste pela UEPB, Mestrado incompleto pela UFPB, Professor de Ética, Filosofia, Sociologia, Humanidades e Ciência Política na Faculdade Maurício de Nassau, graduando em Direito pela FACISA, consultor na Área de Educação e Ética Geral e Profissional. Email: jfmjmedeiros@gmail.com 2 Advogada. Especialista. Aluna Especial do Programa de Pós-Graduação em Ciências Jurídicas da UFPB. Email: laryssalmeida@gmail.com CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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A discussão não é nova em se tratando de ausência de participação política por parte da sociedade brasileira. Desde os primórdios da República, para não irmos até os textos legais do Império3 que excluíam a população como partícipe do conjunto de decisões do Estado, que a não participação do povo em seu próprio destino chama a atenção de escritores, juristas e sociólogos. O historiador José Murilo de Carvalho no texto Os Bestializados: Rio de Janeiro e a República que não foi, fez uma análise profunda do quanto à sociedade brasileira era, na realidade ainda é, apartada da prática cidadã. Com olhar voltado para o ano de 1890 no Rio de Janeiro o citado autor chamou a atenção de que “A exclusão de 80% da população do direito político do voto já é um indicador do pouco que significou o novo regime em termos de ampliação da participação” (CARVALHO, 1987, p. 85). Consideremos, entretanto, a existência de um quadro de exclusão das pessoas do exercício da prática cidadã. As pessoas eram, à época, impedidas, em sua maior parte, de discutir questões em relação à Res Publica. Pela legislação existente estavam, repito, excluídos os menores de 21 anos, as mulheres, os analfabetos, as praças de pré e os frades. 4 Existindo, portanto, uma exclusão legal não podemos, em tese, cobrar destas pessoas sua participação no mundo político. Por outro, ângulo devemos olhar para aqueles que tinham o direito à participação cidadã. E neste ponto chegamos ao fato de que “pelo critério da participação eleitoral, pode-se dizer que de fato não havia povo político no Rio de Janeiro.” (CARVALHO, 1987, p. 86). Tal fato, registrado na história e no conjunto legal existente à época, somente reforça o argumento de que, mesmo tendo o direito à participação a maior parte formava um público deixando as decisões a parcela menor a decidir em nome do povo. A prática cidadã não se constrói com leis ou decretos. A prática cidadã se constrói com a participação. E, sendo assim, vale registrar que a prática cidadã não pode ser reduzida ao ato de votar em um candidato de algum partido.
A Constituição de 1824 trazia em seu texto o voto censitário como condição de “participação” residia, portanto, a questão econômica. 4 CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo, Companhia das Letras, 1987. Pág. 85 3
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2 A AUSÊNCIA DA PRÁTICA CIDADÃ NO BRASIL CONTEMPORÂNEO O espaço compreendido pela denominação de República Velha (1891 – 1930) é conduzido pela Constituição de 1891 onde o caráter excludente em relação à participação na Res Publica tornava mais fácil entender o motivo do pequeno número de pessoas, não de cidadãos, a ter condições legais de exercer o direito de voto no Brasil. Menor, ainda, o número dos que participavam da vida do Estado5. O movimento de 1930 e a ascensão de Vargas retira o caráter democrático do Estado brasileiro e, paradoxalmente, aumenta o número de eleitores quando tal situação é posta para as mulheres. Dentro do pensamento político brasileiro o período, compreendido entre 1946 e 1964 é concebido como democrático. Este período recebeu ao longo do tempo diversas denominações, como "democracia controlada" (COHN APUD COSTA, 1968, p. 27) ou "democratização do Estado" (IANNI, APUD COSTA, 1985, p. 27). Importa neste diálogo tanto o substantivo democracia quanto os adjetivos a ela imputados. A importância dos adjetivos ao termo democracia reside na dissociação entre sociedade civil e Estado que as conceituações demonstram. Ou seja, o controle pela via democrática da participação política e, inclusive, da legalidade de partidos políticos, caso do PCB, colocado na ilegalidade em 1946, início do “intervalo democrático” entre a ditadura de Vargas e o Golpe Militar de 1964. O advento do Golpe Militar retirava dos poucos que participavam da vida política do Estado este direito. Entre 1964 e 1985 a ausência de participação política era clara como a presença dos militares no poder. Contrariando a situação de ausência de liberdade política imposta pelo Estado o aumento do número de eleitores crescia com o alistamento eleitoral. A obrigatoriedade do voto posta no Art. 7º do Código Eleitoral6.
5
Não estamos a considerar o ato de votar, puro e simples, como participação. Consideramos como participação na vida do Estado a ideia de ser dever do homem político ser o participe do conjunto de decisões dentro do, e no, Estado. É um dever a participação. 6 Estamos aqui a fazer referência ao Código Eleitoral de 1965, instituído pela Lei Nº 4.737 de julho de 1965 e não ao Código Eleitoral de 1932. O Código Eleitoral de 1932 considerava para fins de alistamento militar o cidadão maior de 21 anos, sem distinção de sexo. É neste sentido ampliado o direito de voto às mulheres ao tempo que trata como cidadão toda pessoa. Tal equívoco é mantido até os dias de hoje quando se confunde o ato de votar com o ato de participar. Importante ressaltar, ainda, que é o Código de 1932 que cria a Justiça Eleitoral no Brasil. Esta foi mantida pela Carta de 1934, extinta quando do Estado Novo e recriada por Decreto-Lei em 1945 e mantida com alterações nas Constituições seguintes. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Com o processo de redemocratização, que pôs término ao Regime Militar instaurado no Brasil em 1964, a nação brasileira assistia o crescimento de seu eleitorado junto a um processo de apatia participativa crescente. E não seria equívoco afirmarmos que a democracia brasileira estava, naquele momento, em sua menoridade7. Reside o problema de que ela não conseguiu atingir, ainda, a maioridade. Deter o direito de eleger e não participar do processo do debate, do diálogo, da Ágora, é ser um não cidadão. Não luta por si e prejudica os outros. Em entrevista publicada em 1985 o advogado, jurista, historiador e analista político Raymundo Faoro definiu bem como a sociedade brasileira “participa” da Res Publica ao afirmar que
Nós temos a tendência de não ler jornal, de não estudar os discursos, os escritos do político, de quem está no poder. A tendência que nós temos é achar que aquilo é realizado para efeito moralmente eleitoral, ocasional, não tendo maior significação. (FAORO, 2008, p. 37)
Aponta, assim, para o quanto ausente no cotidiano político e eleitoral está o “cidadão” brasileiro. A apatia do eleitor brasileiro, da sociedade brasileira, leva a reflexão da necessária discussão sobre o ser político brasileiro no sentido aristotélico do termo. Em sua obra Política o pensador grego afirma que “o homem é um animal político” (ARISTÓTELES, 2003, p. 14) e na definição posta é necessário perceber que o homem brasileiro procura distanciamento da prática cidadã, da participação na vida da Pólis. Novamente nos firmamos em Aristóteles ao escrever ser:
(...) evidente, portanto, que a cidade participa das coisas da natureza, que o homem é um animal político, por natureza, que deve viver em sociedade, e que aquele que, por instinto e não por inibição de qualquer circunstância, deixa de participar de uma cidade, é um ser vil ou superior ao homem. Esse indivíduo é merecedor, segundo Homero, da cruel censura de um sem-família, sem leis, sem lar. Pois ele tem sede de combates e, como as aves rapinantes, não é capaz de se submeter a nenhuma obediência. (ARISTÓTELES, 2003, p. 14)
E ainda:
7
Usamos, aqui, o pensamento kantiano a respeito de menoridade e maioridade. Segundo Foucault, em O Governo de si e dos outros, “estamos em estado de menoridade porque somos covardes e preguiçosos, e não podemos sair desse estado de menoridade, precisamente porque somos covardes e preguiçosos.” (FOUCAULT, Michel. O Governo de si e dos outros: curso no College de France. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo, Editora WMF Martins Fontes, 2010). CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Ora, o que não consegue viver em sociedade, ou que não necessita de nada porque se basta a si mesmo, não participa do Estado; é um bruto ou uma divindade. (ARISTÓTELES, 2003, p. 15)
Perfeita, e precisa, definição para a ausência da prática cidadã no processo eleitoral brasileiro onde o eleitor acredita que ao depositar sua confiança, fazer uso do poder do voto, é participar. É, também. Mas, na realidade, participar é ir ao ensinamento de Faoro, ao pensamento de Aristóteles. A prática cidadã é cotidiana e, portanto, não tem uma data fixada no calendário eleitoral, não. O ato de votar, sim, necessita de um planejamento dentro do processo de que é parte. O ato de votar deveria ser posto como a maioridade dentro da prática cidadã e não seu ponto de partida. Afinal, o homem que apenas exerce o direito de voto é aquele que não participa da vida do Estado. Reside distante do público e da coisa pública. E esta posição é prejudicial ao amadurecimento de qualquer democracia. A participação na, e da, vida do Estado é, por outro olhar, um problema ético quando esta se encontra ausente. Neste sentido é imperioso refletir sobre o exposto pelo filósofo brasileiro José Arthur Gianotti ao perguntar:
Por que a ética voltou a ser um dos temas mais trabalhados do pensamento filosófico contemporâneo? Nos anos 60 a política ocupava esse lugar e muitos cometeram o exagero de afirmar que tudo era político. (GIANOTTI, 1992, p. 239)
Enquanto que o Prof. Luis Alberto Barroso discutindo Kant afirmar que:
a ética, por sua vez, tem por objeto a vontade do homem, e prescreve leis destinadas a reger condutas. (...) Em lugar de apresentar um catálogo de virtudes específicas, uma lista do que fazer e do que não fazer, Kant concebeu uma fórmula, uma forma de determinar a ação ética. (BARROSO, 2013, p. 301 - 302)
Marx, Kant, Gianotti e Barroso não estão distantes em suas posições. É imperioso reaver o homem do local onde cometeu o pecado original. Na dialética marxista é necessário discutir o homem coisificado para compreender o processo que o coisificou e, somente assim, romper com a situação de apatia. Em Kant veremos a importância em discutir valor e preço. Afinal, as pessoas têm algo que não pode ser comercializado. A sua dignidade.
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A participação na vida do Estado é um valor e não um preço8. Não é uma coisa, um objeto. Diante desta constatação não existe equivalente à participação cidadã em um processo eleitoral e nem dela pode o cidadão se ausentar sob pena de não ser cidadão. A não participação na vida cotidiana como cidadão é um problema a ser abordado, também, no campo da ética. É neste sentido que Gianotti nos encaminha a olhar que a ética vem sendo (re)discutida e existe inquietação no mundo contemporâneo com os valores éticos. Estes são valores, por natureza, humanos. Recuperar o espaço ético é, em outras palavras, trazer à tona o homem e colocá-lo com chances de recuperar sua autonomia. No caso da ausência de participação cidadã no processo eleitoral brasileiro é fazer o homem ser cidadão. Ser presente nas discussões e debates inerentes à vida do Estado. E neste ponto concordamos com o Prof. Gianotti ao afirmar que:
(...) um ser humano está sempre participando de vários sistemas de normas, aceitando uns e rejeitando outros, de sorte que sua individualidade não se resume naquela encruzilhada de determinações de um certo jogo de linguagem, que faz do indivíduo o suporte de uma função social. Sua individualidade é diferente daquela do bispo ou da torre no jogo de xadrez, ou ainda daquela que lhe marca papéis e ações num sistema social. Tudo isso nos leva a distinguir o sujeito do agente. (GIANOTTI, 1992, p. 241)
Perceba que Gianotti utiliza o vocábulo participando em relação ao ser humano e o homem brasileiro ainda não conseguiu, em sua maior parte, atingir a denominação posta por Aristóteles9 e continua a se distanciar da maioridade no sentido kantiano10. Caso o homem brasileiro continue no processo de distanciamento da participação do processo político e sendo partícipe apenas do processo eleitoral através do ato de votar terminará como os vários primatas que foram subjugados pelo primata kubrickiano no filme 2001: Uma Odisséia no Espaço. É relevante mencionar que o primeiro primata kubrickiano a usar a osso passa a Nos referenciamos aqui em Kant e sua discussão sobre dignidade. (KANT, Immanuel – "Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos"; tradução de Leopoldo Holzbach – São Paulo: Martin Claret, 2004. 9 Ver referências ao homem como animal político na obra de Aristóteles neste texto. 10 Para Kant ““A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. (LEITE, Flamarion Tavares. 10 lições sobre Kant. 4ª Ed. Petropólis, Vozes, 2010) 8
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controlar o grupo. Isto significa, em outras palavras, o controle político de um grupo de macacos até então com a vivência ordenada pela convivência na proteção de uns aos outros. A invenção/inovação do osso trouxe consigo a disputa. Esta passou a ser entre grupos e depois dentro do próprio grupo. A área territorial onde residia o grupo passa a ser controlada para manutenção do mesmo e como forma de evitar que outros grupos concorrentes viessem a matar sua sede junto a única fonte com água existente na região. Fonte que atraia outros animais que terminavam sendo abatidos para servir de alimento e seus ossos, agora, reaproveitados. A não participação na vida do Estado é parte do processo de coisificação do homem e o abandono por este de sua (nunca existente) liberdade.
3 SE TODO O PODER EMANA DO POVO, ONDE ESTÁ O POVO?
A promulgação da Constituição de 1988 trouxe avanços políticos, sociais, econômicos, educacionais e culturais impensáveis para o momento em que foi redigida. Não podemos esquecer que o país estava saindo de mais um Regime Ditatorial com origem na crise do populismo no início dos anos 60 e culminando com o Golpe Militar de 31 de Março de 1964. Em seu Art. 1º, Parágrafo Único, o texto constitucional aponta para a origem do poder no Estado Brasileiro. Significando dizer que o poder de decisão não reside apenas naqueles a deter um assento no Parlamento, não. O poder pode, e deve, ser exercido de forma direta pelo povo, como afirma o próprio texto constitucional. Retornamos ao termo apatia e a ausência de prática cidadã para afirmar ser o homem brasileiro apenas uma pessoa e não um cidadão. Ao não fazer o exercício da cidadania o mesmo está deixando que outros pensem por ele e terminem agindo por si sem consulta prévia justificação feita de que receberam o voto do “povo” brasileiro. Em parte tal postura é correta. Afirmamos em parte pelo simples motivo de não estarmos enxergando onde reside o povo. Sim, onde está o povo? Não podemos considerar como povo apenas quem, para evitar uma sanção, utilizam do voto enquanto instrumento de defesa sem ter convivido com os poucos cidadãos existentes no Estado. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Um exemplo de tal situação vem a ser a última eleição presidencial onde quase 30 milhões de pessoas aptas a votar simplesmente não compareceram ao local de votação e aqui não estamos a contabilizar os votos brancos e nulos11. Quando os números consolidados do último pleito nacional foram apresentados no Plenário do TSE a discussão voto obrigatório x voto facultativo ganhou ainda mais força. Se considerarmos apenas os votos válidos ainda teríamos que analisar dentro deste universo as pessoas e os cidadãos separando-os por grupo. Se tal situação fosse possível criaríamos dois grupos tomando de empréstimo a frase de Lima Barreto 12 e alocando-os em POVO, como sendo o partícipe da vida do Estado, e PÚBLICO, como sendo o que vive a assistir os atos decisórios do Estado. De acordo com Dirley da Cunha Júnior, com quem estamos a concordar em posição teórica, em seu Curso de Direito Constitucional é nítido que:
A Constituição de 1988 consagra a Soberania Popular com Princípio Fundamental, ao destacar, no parágrafo único do art. 1º, que “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. Adota, assim, uma Democracia representativa, que combina representação e participação popular direta, tendendo para uma democracia participativa. Vejamos. Quando a Constituição afirma que o povo exerce o seu poder por meio de representantes eleitos, ela explicita a Democracia representativa; contudo, quando indica que o povo exerce o seu poder diretamente, ela exprime a Democracia direta. Da conjugação da Democracia representativa e Democracia direta temos um modelo misto de Democracia semidireta, que nada mais é senão uma Democracia representativa com alguns institutos ou mecanismos de participação direta do povo na formação da vontade política nacional. Da Democracia semidireta se desenvolve a chamada Democracia participativa. (CUNHA JR.,2013, p. 521)
11
De acordo com os números oficiais apresentados pelo TSE o quadro de ausência do eleitorado chega a ser preocupante em um país que tem o voto como obrigatório. Segundo o TSE “O ministro lembrou também que a chapa composta por Dilma Rousseff e Michel Temer recebeu 54.501.118 votos (51,64% dos votos válidos) e a chapa integrada por Aécio Neves e Aloysio Nunes Ferreira obteve 51.041.155 votos (48,36% dos votos válidos). Segundo outros dados apresentados no relatório consolidado do dia 27 de outubro, dos 142.822.046 eleitores aptos a votar, foram apurados 112.683.879 votos. Desse total, constam 105.542.273 votos válidos, 1.921.819 votos em branco e 5.219.787 votos nulos, e nenhum voto de seção anulado ou apurado em separado.” (Fonte: http://www.tse.jus.br/noticias-tse/2014/Dezembro/plenario-do-tse-proclama-resultado-definitivo-do-segundoturno-da-eleicao-presidencial) 12
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Percebe-se o espaço não ocupado (ausência de prática cidadã) pelo homem brasileiro. Não existe a falta de espaço legal para que haja cidadania, para que possamos atingir a maioridade13. No caso em tela o ausente é o povo ao não usufruir do espaço legal a ele concedido no texto constitucional adentrando, assim, em um processo de isolamento em relação às decisões por parte do Estado e caminhando para deixar de ser considerado homem político para ser apenas homem. A discrepância entre o homem, que deveria ser cidadão, e a prática cidadã cria um abismo a reforçar o poder estatal frente aos governados...dos outros. Acreditamos ser mais importante expor a crise existente na ausência de participação cidadã no processo eleitoral brasileiro que a discussão se é mais importante o voto facultativo que obrigatório.14 E neste caminho concordamos com o Professor Alex Muniz Barreto em seu texto Direito Constitucional Positivo ao afirmar que a cidadania:
Consubstancia-se na inafastabilidade da participação popular nas decisões políticas do Estado, mediante o sistema de democracia participativa. A intervenção e a colaboração dos cidadãos nos negócios públicos são imanentes ao regime democrático, sendo que este opera diretamente no ambiente social construído a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, onde o destinatário imediato dos direitos e da proteção normativa é o ser humano e não o Estado (antropocracia). (BARRETO, 2013, p. 195)
Percebe-se nas palavras do Professor Alex Muniz a importância da participação popular como elemento indissociável da democracia. Em outras palavras, a democracia brasileira somente poderá avançar e consolidar-se dentro de um processo participativo daqueles que ainda não chegaram à condição de cidadãos. São meramente pessoas no sentido jurídico do termo.
4
CONCLUSÃO
A democracia pressupõe a presença do povo, enquanto cidadão, como partícipe do processo eleitoral. Mas numa sociedade apartada da prática cidadã, como a brasileira, a
13
Aqui expressa no sentido kantiano do termo e discutido linhas acima. Sobre a discussão entre o voto facultativo e/ou obrigatório cremos ser de suma importância o embate entre as duas correntes: a que defende o voto obrigatório e a contrária. Lançaremos nossa exposição sobre o tema em breve. Antecipamos, entretanto, sermos contrário à obrigatoriedade do voto. 14
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obrigatoriedade do voto se transforma em um dever que a cada dois anos condiciona o cidadão brasileiro (ou sua caricatura) a um gesto simbólico de patriotismo. Ora, a prática cidadã não se constrói com leis ou decretos nem pode ser reduzida ao ato de votar em um candidato de algum partido. Tal fato, deixa claro que mesmo tendo o direito à participação a maior parte do povo brasileiro prefere deixar as decisões sob a responsabilidade de um pequeno grupo. E isso pode ser percebido em vários momentos na história, um deles é com o processo de redemocratização, no qual a nação brasileira assistiu ao crescimento de seu eleitorado junto a um processo de apatia participativa crescente. Logo, o direito de eleger e a não participação no cotidiano político e eleitoral é parte do processo de coisificação do homem e o abandono por este de sua (nunca existente) liberdade. A prática cidadã é cotidiana e, portanto, não pode ter uma data fixa no calendário eleitoral. A ausência do povo, ao não usufruir do espaço legal a ele concedido no texto constitucional, o isola em relação às decisões por parte do Estado e cria um abismo entre o homem, que deveria ser cidadão, e a prática cidadã, reforçando o poder estatal frente aos governados.
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SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª Ed. revista e ampliada. São Paulo, Companhia das Letras, 2003.P SPITZCOVSKY, Celso. Direito Eleitoral. São Paulo, Saraiva, 2008. THOMPSON, E.P. A Formação da Classe Operária Inglesa. Vol.I. A Árvore da Liberdade. Trad. Denise Bottman. 3ªEd.Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1987. _____________. Costumes em Comum: estudos sobre a cultura popular tradicional. Trad. Rosaura Eichemberg. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.
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MEMÓRIA
E
VERDADE:
DIREITOS
ESSENCIAIS
AO
PROCESSO
DE
DEMOCRATIZAÇÃO DO PAÍS Andrea Tourinho Pacheco de Miranda1 Ezilda Claudia de Melo2
SUMÁRIO: 1. A Hermenêutica e a Verdade: o Direito à memória e à verdade como direitos fundamentais. 2. Memória, verdade e justiça de transição. 3. As primeiras políticas públicas de justiça de transição no Brasil. 4. O trabalho da Comissão da Verdade no Brasil. 5. Conclusão. 6. Referências.
1 A HERMENÊUTICA E A VERDADE: O DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE COMO DIREITOS FUNDAMENTAIS.
Na Antiguidade Clássica, recorria-se a Hermes, o mensageiro dos Deuses, pela busca da verdade escondida. Hermes foi retratado por Homero (no livro "Odisseia") e Hesíodo (na obra "Os trabalhos e os dias") por suas habilidades e considerado benfeitor dos mortais, portador da boa sorte e também das fraudes. Autores clássicos também adornaram o mito com novos acontecimentos. Esquilo mostrou Hermes a ajudar Orestes a matar Clitemnestra sob uma identidade falsa e outros estratagemas, e disse também que ele era o deus das buscas, e daqueles que procuram coisas perdidas ou roubadas. Seu atributo característico era a ambiguidade, pois ao mesmo tempo que era mensageiro dos deuses, era também fiel mensageiro do mundo das trevas. Não é de se estranhar que a palavra "hermenêutica" encontre consentâneos nas palavras "hermeneuein" (interpretar), "hermeneia" (interpretação), "hermeios" (sacerdote do oráculo de Delfos) e "Hermes" (o mensageiro, na mitologia antiga ocidental). A verdade é em si ambígua, ou será que não a enxergamos?
1
Mestrado em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco (2006). Aluna do Doutorado em Direito da Universidade de Buenos Aires, Argentina( 2009). Aluna da Pós-Graduação do Curso Master Internacional em Segurança Pública da Universidade Estadual da Bahia em convênio com a Università degli Studi di Padova( 2013). Cursos de Extensão em Business Law,-Law School- Universidade da Califórnia em Los Angeles, Estados Unidos ( 1992-UCLA). Graduação em Direito pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atualmente é docente do curso de graduação em Direito da Faculdade Ruy Barbosa-Devry Brasil -Bahia. Ex Diretora da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Docente da Escola Superior da Defensoria Pública do Estado da Bahia. Pesquisadora CNPQ-Grupo TIPEMSE/UNEB. 2 Mestra em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Direito Público. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Ruy/Devry Brasil. E-mail: ezildamelo@gmail.com CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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A interpretação que se faz do mundo é uma atividade de compreensão. O jurista deve considerar o ordenamento jurídico dinamicamente, pois a interpretação é que mantém a vida da lei e das outras fontes do Direito. Interpretar um fato corretamente requer, antes de tudo, visão sobre nós mesmos. Quem somos? Sobre quais valores ético-morais temos nossa base fincada? O que queremos para o mundo? Somos pessoas boas? Tratamos bem nossos semelhantes? Cultivamos a semente do bem? Não nos apropriamos de nada que não nos pertence? Uma das maiores desobediências que podemos cometer ético-jurídica-filosóficapolítica-religiosa é o furto. Retirar algo de alguém. Algo que não nos pertence. O furto está nas origens das piores barbaridades: nas questões de vida, como no caso dos homicidas ou dos abortos; nas questões de bens, públicos ou privados, como no caso dos corruptos; nas questões pessoais, que envolvem o "furto" de sentimento e de emoção, como num caso de uma mãe não permitir que uma filha tenha laços com o pai, ocasionando a alienação parental, ou nas questões que envolvem o direito à memória e à verdade. O furto é abominável. Sendo assim, continuemos analisando as verdades no Direito. O que elas são? O que representam? Quem pode interpretá-las? Para TRAVERSO (2007, p.14), “a memória coletiva surge quando opera sobre o passado ema seleção e interpretação de acordo com as sensibilidade culturais, dilemas éticos e conveniências políticas”. Para responder a essa indagações precisamos falar um pouco mais sobre as verdades: muitas delas permanecerão ocultas até que um olho mágico consiga decifrar a mensagem. Nem todos conseguem alcançá-la. É assim em qualquer área. No Direito pesa sobre as vidas das pessoas, especialmente na hora de um julgamento judicial que tenta rastrear o passado, tal qual Sherlock Holmes, em busca de vestígios, pistas de momentos já vivenciados. Sendo assim, constata-se que o trabalho é frustrado desde o nascedouro, não desmerecendo a importância de provas que são colhidas para exemplificar parte da "verdade". No filme "Versões de um Crime", o grande questionamento é, justamente, o que é verdade. Poeticamente, ANDRADE (2003, p.50), esclarece que a verdade é sempre uma metade dela mesma, contida em sua parte de exatidão, complementada pela outra parte não anunciada:
A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.
Para tudo pode existir diferentes versões, mas só há uma verdade. Ela ocorreu. E o passado é quem viu. Então, que direito é esse? O termo direito, como diz MIAILLE (2005, p. 63), “é simultaneamente o conjunto de regras jurídicas que regem o comportamento dos homens em sociedade e o conhecimento que se pode ter dessas regras”. Mas ele é, em primeiro lugar, um conjunto de técnicas para reduzir os antagonismos, refletindo as incertezas dessa técnica de pacificação social. O direito é uma ciência, mas uma ciência aproximativa, apesar de tudo. O Direito à memória e à verdade podem ser vistos como essenciais, nesta perspectiva, porque sustentam a vontade da descoberta necessária de fatos passados que deixaram manchas na história do país. Resgatar esses fatos, dando a importância e a consecução de uma postura democrática é tornar esses direitos fundamentais ao cidadão. Nesta seara, as lições de BEZERRA (2012, p.58 -60), quando nos diz que: O mero reconhecimento da previsão legal, mesmo que constitucional, é insuficiente para uma realidade mais concreta dos direitos fundamentais (...). O maior desafio no campo dos direitos humanos e fundamentais é a distância que existe, porque a temos produzido entre o discurso que os afirma, a norma que os reconhece e seu cumprimento efetivo.
Portanto, torna-se necessário para o Estado Democrático Brasileiro, além de elucidar, proteger quem foi vítima de um dos momentos de maior repressão da nossa história. Tratar dessa problemática é percebera necessidade de um discurso que valorize a memória e a verdade como direitos humanos, e, portanto, como direitos fundamentais, trazidos na nossa carta de valores.
2 MEMÓRIA, VERDADE E JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO.
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KUNDERA (1984, p.02), ao falar sobre o eterno retorno nietzschiano, reflete sobre a efemeridade do existir e da fugacidade dos momentos, sejam eles, bons ou ruins, difíceis ou fáceis, alegres ou tristes:
O eterno retorno é uma ideia misteriosa, e Nietzsche, com essa ideia, colocou muitos filósofos em dificuldade: pensar que um dia tudo vai se repetir tal como foi vivido e que essa repetição ainda vai se repetir indefinidamente! O que significa esse mito insensato? (...) Digamos, portanto, que a ideia do eterno retorno designa uma perspectiva na qual as coisas não parecem ser como nós as conhecemos: elas nos parecem sem a circunstância atenuante de sua fugacidade. Essa circunstância atenuante nos impede, com efeito, de pronunciar qualquer veredicto. Como condenar o que é efêmero?
Insuportável seria o fardo metafísico do eterno retorno a um período de ditadura, tortura e violações de toda natureza aos direitos humanos. A ditadura, no Brasil, aconteceu uma única vez e trouxe muitos prejuízos. No entanto, a ditadura militar brasileira não foi um fato isolado na história da América Latina. Pelo contrário. Na mesma época, regimes semelhantes nasciam de rupturas na ordem constitucional de outros países, tendo as Forças Armadas assumido o poder em consonância com a lógica da Guerra Fria. Esse contexto histórico regional trouxe a generalização de regimes políticos repressivos em todos os países do Cone Sul, a exemplo: Brasil (1964), Argentina (1966 e 1976), Uruguai (1973), Chile (1973). A busca da verdade pelos familiares das pessoas que morreram na luta contra o regime militar é uma história longa e repleta de dificuldades. Muitas pedras no caminho, mas as conquistas são inerentes para quem tem o ideal de justiça como meta. Memória e verdade são princípios essenciais do direito positivo brasileiro, estes compreendidos desde o direito a preservação da identidade cultural dos povos até o direito á informação, essenciais para a formação do estado democrático de direito3. 3
No dia 31/05, juntamente com a Professora Andrea Tourinho apresentou-se no CONPEDI uma análise sobre os direitos à memória e à verdade, enquanto atividade que faz parte das discussões do Grupo de Pesquisa da Faculdade Ruy Barbosa, “Direito, Verdade e Justiça de Transição”, para tanto fez-se uma discussão sobre o que é memória, numa perspectiva histórica, e sobre o que é verdade numa abordagem filosófica-artísticahistórica.O hard case utilizado para discutir memória foi Marighella, numa perspectiva de construção de duas imagens sobre a mesma pessoa, em dois períodos distintos: na década de 60 inimigo número 01 da nação, hoje um grande representante dos direitos humanos,e a consolidação das políticas públicas sobre memória com a promessa do governo do Estado da Bahia em fazer um memorial para homenagear Marighella. E o outro estudo de caso, já no aspecto do que é verdade, baseou-se no que está acontecendo com o jornalista Emiliano José que responde a um processo de calúnia, por ter informado em um artigo publicado neste ano de 2013 o nome de um torturador. É verdade o que Emiliano José afirma no artigo ou ele tem que ter provas de tortura? Como diria o CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Procuramos, nesse trabalho, demonstrar a maneira pela qual o Brasil, marcado pelos abusos do período da ditadura militar, com acentuadas violações de direitos humanos busca alcançar o caminho para consolidar a democracia. Esse período de mudanças, em que se responsabiliza a criminalidade do passado ditatorial brasileiro é denominado de justiça de transição ou justiça transacional cuja importante tarefa tem sido a de estabelecer estratégias e mecanismos para enfrentar o legado de violência do passado e atribuir responsabilidades aos Estados, no presente. Sobre o conceito de justiça de transição nos valemos do conceito trazido por DIMOULIS (2006, p. 30), que diz tratar-se de “um processo de julgamentos, depurações e reparações que se realizam após a mudança de um regime jurídico para um outro”. Dessa maneira, a justiça de transição4, enquanto marco histórico das duas realidades políticas, a do passado e a do presente, além de exigir a efetividade do direito à memória e à verdade, deve iniciar a persecução de perpetradores das atrocidades do antigo regime, preservar o direito fundamental da verdade e desenvolver um conjunto de reparações para fortalecer as instituições democráticas a fim de garantir que violações de direitos humanos não se tornem práticas recorrentes no âmbito social. Dentre os quatro pilares que sustentam a justiça de transição, o Brasil só construiu a reparação, através da Lei 9.140, de 04 de dezembro de 1995, quando estabeleceu a indenização devida à família dos mortos e desaparecidos durante o regime militar. Não divulgou a verdade, visto que mantém os arquivos daquele período fechados, nem realizou a justiça desejada por todos, punindo os torturadores do regime de exceção. O Brasil, a partir do argumento de que não condenou nenhum dos violadores do regime militar, contribuiu para a impunidade. Por outro lado, o Chile levou a sério a justiça de transição, quando julgou Pinochet em 2005. A Argentina, por sua vez, iniciou seu processo de justiça de transição, julgando os generais do regime ditatorial, episódio que ficou popularmente conhecido como Nurembeg argentino.
Poeta Drummond de Andrade "A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez". Que a visão de Nietszche sobre a circularidade do tempo não seja uma verdade. Tudo passa tão rápido e parece ser perdoado por antecedência já nos disse Milan Kundera na abertura do livro "A insustentável leveza do ser”. 4 Em Dezembro de 2012, o grupo de pesquisa “Direito, Verdade e Justiça de Transição”, organizou a I Semana Jurídica de Direitos Humanos da Faculdade Ruy Barbosa, e contou com a participação de muitos estudiosos do tema e representantes da Comissão da Verdade da Bahia. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Vale salientar que não existe um consenso na doutrina internacional, nem um modelo único para o processo de justiça de transição, pois cada país tem seu processo peculiar para lidar com o legado de violência do passado totalitário e implementar mecanismos que garantam a efetividade do direito à memória e à verdade. A Comunidade Internacional, no entanto, menciona quatro obrigações comuns para os Estados, quais sejam: adotar medidas razoáveis para prevenir violações de direitos humanos; oferecer mecanismos e instrumentos que permitam a elucidação de situações de violência; dispor de um aparato legal que possibilite a responsabilização dos agentes que tenham praticado as violações e; garantir a reparação das vítimas, por meio de ações que visem à reparação material e simbólica. O Centro Internacional de Justiça de Transição (ICTJ), organização não governamental que oferece assistência a países os quais enfrentam um legado de violência dos direitos humanos, destaca, dentre os enfoques básicos de justiça de transição – memória, verdade e justiça –, algumas iniciativas importantes como estratégias, a saber: interposição de ações penais contra torturadores e violadores dos direitos humanos; instauração de comissões da verdade; instauração de programas de reparação em favor das vítimas e de familiares; acesso e abertura dos arquivos do período da repressão, além de reforma institucional. O ICTJ sinaliza que essas medidas não são exaustivas, já que cada país sabe a melhor forma de lidar com o seu passado violento e desenvolver estratégias para avançar no processo democrático. Os objetivos da justiça de transição giram em torno do reconhecimento do passado totalitário, e da condição humana, analisada por ARENDT (2007) para que se possa dar efetividade aos direitos fundamentais. Como bem assinala DIMOULIS (2010, p. 94) em relação aos pilares da justiça de transição:
Forma-se assim um triângulo de modelos de tratamento jurídico dos problemas transicionais: responsabilização (punição)- verdade (memória) - anistia (perdão). (...) os vários modelos possuem um elemento comum: se realiza uma reavaliação do passado, modificando julgamento e mudando a postura oficial perante acontecimentos e pessoas.
O Brasil adotou um modelo de justiça de transição que afasta o jus puniendi dos autores dos crimes, fundamentado na errônea interpretação da Lei 6.683/79 - Lei de Anistia,
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que não alcançou a responsabilização criminal dos torturadores do período ditatorial, não havendo, até a presente data, nenhuma condenação na justiça criminal. Os crimes perpetrados pelos violadores dos direitos humanos – sequestros, ocultação de cadáveres, torturas, homicídios, entre outros – não foram apreciados pela justiça criminal do Brasil. Tais crimes deveriam ser interpretados como delitos de lesa humanidade. Destarte, a responsabilização penal por esses atos é considerada essencial para que se possa realmente consolidar a democracia brasileira e realizarmos o nosso “nunca mais”. Mais de vinte anos se passaram e até o presente momento, não existe nenhuma condenação contra os agentes da repressão brasileira no período da ditadura militar. Algumas políticas públicas de transição no Brasil, no entanto, merecem considerações a saber: abertura de arquivos do período em alguns Estados brasileiros; a atuação da Comissão Especial de Mortos Desaparecidos (Lei 9.140/95), que tem um acervo importante sobre vítimas e sobre as atrocidades cometidas pelos torturadores e que deu origem a instauração da Comissão nacional da Verdade em 2012; o trabalho da Comissão de Anistia no âmbito do Ministério da Justiça (Lei 10.559/02), a publicação do livro Direito à Memória e à Verdade, lançado pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República em 2007, a criação do Centro de Referência das Lutas Políticas no Brasil, denominado Memórias Reveladas, institucionalizado pela Casa Civil da Presidência da República e implantado no Arquivo Nacional e a instituição do 3º Programa Nacional de Direito Humanos- PNDH pelo Decreto Presidencial nº 7.037/09 em 2009, e finalmente a instauração da Comissão Nacional da Verdade em 2012. A Comissão da Anistia do Ministério da Justiça lançou, em abril de 2008, a Caravana da Anistia, com o objetivo de percorrer todos os estados brasileiros para difundir o conhecimento histórico do passado ditatorial e julgar os pedidos de indenizações de perseguidos políticos, fomentando exposições e debates sobre o tema. Em outros países, como a Argentina, o período da ditadura militar foi bastante cruel, com indicadores de que aproximadamente 30 mil argentinos foram sequestrados e torturados pelos militares e várias crianças foram arrancadas de seus pais e entregues a famílias de militares ou a orfanatos. A sociedade argentina, por meio dos organismos de direitos humanos, partidos de esquerda e movimentos sociais, como Las Madres de La Plaza de Mayo, foi bastante atuante CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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para que se realizasse a justiça de transição na Argentina, enquanto movimento social para consolidação da democracia no país. As condenações dos militares argentinos ainda continuam sendo alvo de discussões da população sofrida. O ex-presidente Jorge Rafael Videla recebeu, em dezembro de 2010, sua segunda condenação à prisão perpétua e, no dia 23 de março de 2011, o General Luciano Benjamin Menéndez também foi condenado, pela segunda vez, à pena de prisão perpétua pela prática de crimes contra a humanidade. Em 2012, o movimento “Hijos” (H.I.J.O.S - Filhos e Filhas pela Identidade e a Justiça, Contra o Esquecimento e o Silêncio, na sigla em espanhol, que se traduz por FILHOS em Córdoba, teve seu reconhecimento quando um dos seus representantes foi escolhido com Secretário de Direitos Humanos da Argentina5.
3 AS PRIMEIRAS POLÍTICAS PÚBLICAS DE JUSTIÇA DE TRANSIÇÃO NO BRASIL
A justiça de transição no Brasil teve como pilar principal a reparação. As reparações são instrumentos de suma importância para a justiça de transição, e podem ser feitas por meio de benefícios financeiros, de assistência psicológica ou de outras medidas. As políticas públicas de memória e verdade no Brasil debruçaram-se para as violações de direitos humanos ocorridas durante os anos de 1964 a 1985, época da ditadura militar do país. Destarte, podemos dizer que a justiça de transição no Brasil, teve o ano de 1985 como período inicial, apesar de 1979, com a promulgação da Lei de Anistia (Lei 6.683/79), já possamos dizer que o Brasil deu seus primeiros passos no tocante a formação do Estado democrático. Apesar desta Lei, resultante dos movimentos sociais opositores a ditadura, ter sido marco no processo de abertura política, como reivindicação da anistia para os presos políticos, foi adotada com um texto ambíguo, que incluía aqueles delitos “conexos com os políticos”, tendo sido mal interpretada pelos tribunais de forma que, entre o rol dos delitos anistiáveis, se incluiria aqueles cometidos por funcionários da ditadura militar, para reprimir a opositores 5
Martín Fresneda, Secretário de Direitos Humanos é filho de desaparecidos, tendo sido, quando criança junto com seu irmão, testemunha do sequestro de seus pais durante a chamada “Noite das Gravatas” É advogado e em Córdoba, foi denunciante em vários dos processos pelos crimes cometidos pelo terrorismo de Estado. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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políticos, incluindo crimes de lesa humanidade como a tortura, o sequestro e desaparecimento forçado e execuções sumárias. Esta divergência de interpretação teve suas consequências no futuro, ou melhor, no presente, momento em que se questiona a constitucionalidade da referida lei. Assim, não podemos dizer que a Lei de Anistia brasileira6, apesar de ter sido desejada para ser “ampla, geral e irrestrita” pelas vítimas e familiares de militantes políticos, teve a sua completa eficácia. A falta de julgamento dos responsáveis pelas graves violações dos Direitos Humanos, diferente o Brasil dos outros países latino-americanos que também sofreram violações de Direitos Humanos no período ditatorial. O caso brasileiro se caracterizou pela ausência de juízos penais que condenaram os agentes da repressão7. Ademais, só no ano de 2012 foi que se instaurou a Comissão Nacional da Verdade Brasileira, embora já houvesse comissões que buscavam a reparação no País, como: a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) de 1995, a Comissão de Anistia do Ministério de Justiça de 2002, além do Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3). Antes da instauração da Comissão Nacional da Verdade, poderíamos dizer que o direito brasileiro, no tocante a reparação se resumiria num verdadeiro direito de anistia., entendido como um direito do militante político de ter sido declarado oficialmente anistiado político. Esta declaração do anistiado é considerada como um gesto oficial de pedidos de desculpa pelo Estado que reconhece que perseguiu politicamente um cidadão. Apesar de esse ato ser individual, há que se reconhecer que já houve um pedido de desculpas coletivo registrado pela Caravana da Anistia, como ocorreu quando “a Caravana da Anistia” realizou em junho de 2009, em praça pública do município de Santo Domingo de Araguaia/Pará, na presença de más de 600 habitantes da região. Essa atividade inaugurou o primeiro ato público de pedido de desculpas coletivo por parte do Estado brasileiro, aos campesinos perseguidos e torturados durante o período da repressão militar contra o movimento de resistência conhecido como a “Guerrilha do Araguaia”.·. O art. 1º de la Lei 6.683/79 d 22 de agosto de 1979, estabelece “É concedida anistia todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares (vetado) [...]”. Em 2010, o Supremo Tribunal Federal de Brasil reafirmou a constitucionalidade da interpretação da Lei de Anistia, a qual foi interpretada de maneira benéfica para os agentes da repressão, sendo estes absolvidos. Vide sentença do Supremo Tribunal Federal na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental No. 153, de 29 de abril de 2010, In: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Outro passo para a reparação, pode ser ilustrado no caso da família do jornalista Vladimir Herzog, morto em razão de torturas, nos porões do DOI-CODI, em 1975. A causa mortis na
certidão de óbito de Herzog foi modificada. Na certidão, revisada após
determinação da Justiça, passa a constar como causa da morte "lesões e maus tratos sofridos durante o interrogatório em dependência do 2º Exército (DOI-Codi)", que substitui formalmente a versão de "asfixia mecânica por enforcamento". Ainda no tocante as políticas públicas relativas a reparação, podemos destacar algumas políticas de nível federal que tem impacto local, como o Projeto Direito à Memória e à Verdade da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, que inclui a criação de monumentos e montagem de exposição em todo o Brasil, em parceria com algumas instituições como Prefeituras, universidades, centros de estudos e ONG.· Verifica-se a existência de algumas políticas públicas relacionadas com a memória e verdade, correspondente aos anos de 1990 e 1993. A primeira corresponde a Comissão Parlamentar de Inquérito da Câmara Municipal de São Paulo sobre a fossa comum de Perus, no Cemitério Dom Bosco, na Capital. A descoberta desta fossa comum com mais de 1000 corpos de opositores políticos, contribuiu para por em debate público o problema dos mortos e desaparecidos políticos. Vale salientar que esta Comissão de Investigação não emitiu de forma imediata nenhum informe concludente sobre a questão, até 2012. O ano de 1995 teve um marco para a justiça de transição do Brasil, a aprovação da lei 9.140, que reconheceu como mortas às pessoas desaparecidas em razão da sua participação em atividades políticas entre 1961 e 1979. A referida Lei dispunha de três importantes reconhecimentos: Firmou o reconhecimento expresso por parte do Estado brasileiro na responsabilidade sobre a morte e desaparecimento de opositores políticos da ditadura., listando 136 pessoas sequestradas a partir do Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos a partir de 1964 elaborado por organizações de familiares das vítimas;
4 O TRABALHO DA COMISSÃO DA VERDADE
As
Comissões da Verdade são instrumentos importantes para se garantir à
sociedade – como forma de resgate da cidadania – o direito a ter conhecimento dos motivos pelos quais esses crimes foram cometidos no passado, num regime distante do atual. A lei que a institui a Comissão Nacional da Verdade no Brasil, (Lei 12.528) foi instaurada oficialmente em 16 de maio de 2012, mediante iniciativa oficial, tendo como CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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objetivo investigar e registrar as violações ocorridas durante o período militar, com vistas a reparar as famílias dos militantes mortos ou desaparecidos. Sete membros compõem a Comissão Nacional da Verdade: José Carlos Dias (exministro da Justiça), Gilson Dipp (ministro do Superior Tribunal de Justiça), Rosa Maria Cardoso da Cunha (advogada), Cláudio Fonteles (ex-procurador-geral da República), Paulo Sérgio Pinheiro (diplomata), Maria Rita Kehl (psicanalista) e José Cavalcante Filho (jurista). Os critérios para a escolha dos membros se fundaram em alguns pontos principais, tais como pessoas "de reconhecida idoneidade e conduta ética, identificadas com a defesa da democracia e institucionalidade constitucional, bem como com o respeito aos direitos humanos". A coleta de provas da Comissão Nacional da verdade é realizada a partir do depoimento das vítimas, testemunhas, documentos, tendo ainda o dever de fazer com que a sociedade e os próprios violadores reconheçam as injustiças cometidas e peçam perdão. A comissão terá o direito de convocar vítimas ou acusados das violações para depoimentos, mesmo que a convocação não tenha caráter obrigatório, além de ter acesso a arquivos e documentos do poder público sobre o período, porém não tem o poder de punir ou recomendar que acusados que praticaram crimes durante a ditadura. A comissão deverá colaborar com as instâncias do poder público para a apuração de violação de direitos humanos, além de enviar aos órgãos públicos competentes dados que possam auxiliar na identificação de restos mortais de desaparecidos, podendo proceder a vistorias em locais considerados “sítios de tortura”, e além de identificá-los, devem apontar instituições e circunstâncias relacionadas à prática de violações de direitos humanos daquele período. A comissão, proposta em 2010, passou por diversas mudanças, principalmente para atender as queixas dosa gentes públicos repressores da época, substituindo alguns termos descritos no seu texto, como "repressão política", além de prevê o "exame" de violações de direitos humanos, diferente da versão de 2010, que previa a "apuração" dos fatos ocorridos durante o período de 1964 a 1985, englobará fatos que ocorreram entre os anos de 1946 e 1988.
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5 CONCLUSÃO
O tempo presente reflete sobre a verdade. Mas, é o futuro quem dirá o que se deve fazer. Só o tempo ganha. Não adianta travar lutas contra ele. As medidas estabelecidas pela Comissão de Justiça de Transição devem ser aplicadas, preferencialmente, de forma integrada, a fim de não comprometer a credibilidade do processo, buscando sempre o caminho para alcançar a democracia, desde que sejam levadas em consideração a prevalência dos direitos humanos e a obediência ao cumprimento de princípios fundamentais. Exemplo bem claro aconteceu em 05 de dezembro de 2011 com o anistiamento a Marighella. Quem foi Marighella na época da ditadura, senão um criminoso? Hoje, a história já apresenta nova versão sobre Marighella e em alguns círculos, chega-se a considera-lo um herói, como umm homem que lutou por um Brasil melhor. Em 1969 Marighella foi assassinado. E o que se contou foi outra versão. Nosso presente nos traz novas informações, muitas delas perdidas para sempre, porque tiraram tudo de Marighella, inclusive seus pertences pessoais, seus registros, suas fotos. Afastando-se um pouco mais de 40 anos do ocorrido, já se pode identificar/pensar as “verdades” a despeito do ocorrido. Sobre a verdade ainda temos muito a refletir, seja filosófica, poética ou juridicamente falando. No entanto, acredita-se que o direito de acesso à informação é determinante para a construção dos direitos e valores fundamentais da cidadania e da democracia participativa. Embora ainda haja muitas dificuldades enfrentadas pela justiça de transição no Brasil, a memória e a verdade não podem ser afastadas do conhecimento da nova geração, sobretudo para que as atrocidades do regime totalitário não voltem a se repetir. Mesmo sem a abertura dos arquivos da ditadura, no Brasil, em algumas regiões, como na Bahia, onde prevalece o silêncio, a Comissão da Verdade vem se firmando na luta pela democracia e no reconhecimento das violações dos direitos humanos, mas a verdade sobre um passado sofrido um dia será mostrada. Os remédios democráticos como o Habeas data e as ações de reparação podem confirmar que a luta existiu, que pessoas morreram porque acreditaram na possibilidade de um regime democrático em nosso país. À medida que os governos são surpreendidos com a memória revelada, estes podem conceder compensações financeiras às famílias. Embora tais reparações não possam trazer de CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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volta aqueles que um dia deram a vida pelo ideal de justiça, ao menos essas famílias podem ver os sonhos dos seus filhos concretizados no ideal democrático. Um grande avanço, sem dúvida, no Brasil é a entrada em vigor da Lei 12.527/2011. Temos muito caminho a percorrer.
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O PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES: GARANTIA OU RESTRIÇÃO À LIBERDADE? Vinícius Leão de Castro1
Sumário: 1 Introdução. 2 Uma teoria jurídico-política do Estado Liberal. 2.1 A separação de poderes montesquiana. 3 A relativização de um princípio: os federalistas. 4 Liberalismo: conexões entre sociedade, indivíduo e Estado. 5 Separação de poderes: o poder e os novos poderes. 5.1 Uma garantia ou uma restrição? 6 Conclusão. Referências.
1 INTRODUÇÃO O princípio da separação de poderes2 atravessou o passar do tempo e chegou aos dias atuais revestido de aspectos provenientes dos acontecimentos históricos que lhes são pertinentes, todavia as transformações que ressignificaram a sociedade impuseram uma nova abordagem ao estudo deste instituto, que levasse em consideração o aparecimento de novos poderes3, que contrabalançam influências na clássica separação tríade. Dessa maneira, observar como este princípio se apresenta a partir da associação entre Estado, sociedade e indivíduo na evolução do liberalismo, enquanto uma teoria jurídicopolítica é demonstrar o conflito entre a feição programática da liberdade e uma contínua redução no espaço de decisão individual pelo fortalecimento dos novos poderes, que sem sombra de dúvidas é a grande proposta deste trabalho. Para isso, desenvolver questionamentos desta natureza é propor uma análise interdisciplinar de um princípio fundamental do Direito Constitucional à luz da observação das intersecções entre os fenômenos sociais e do seu respectivo comportamento diante das modificações que atualmente se apresentam. Desse modo, fundamenta-se a pesquisa em
1
Pesquisador nas áreas de Teoria do Estado, Poder Constituinte, Teorias da Democracia e Decisão Judicial. Email: viniciusleaocastro@gmail.com 2 O vocábulo separação sofreu uma flexibilização ao passo que se refere a uma distinção entre as formas pelas quais o poder é exercido, que se limitam através de dispositivos que freiam ou obrigam o seu exercício e não a uma separação rígida e absoluta. 3 Entende-se por relações de poder oriundas de instituições e organizações que modificaram-se com base nas novas práticas sociais, as quais emergiram nos últimos tempos. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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autores clássicos e seus comentadores como aporte para a continuação de um estudo crítico a respeito do Estado Constitucional de Direito e da liberdade. Nesse sentido, parte-se de um breve esboço da construção cognitiva elaborada por Thomas Hobbes, John Locke e Montesquieu de maneira que se evidencie a formação do Estado Liberal pari passu aos fatos históricos que ensejaram aquelas observações ao mesmo tempo em que se trazem as ideias que inspiraram a fundação dos Estados Unidos da América e a percepção que os estudiosos contemporâneos têm deste arcabouço para que seja possível discutir a separação de poderes como garantia e restrição da liberdade.
2 UMA TEORIA JURÍDICO-POLÍTICA DO ESTADO LIBERAL
O Estado Liberal é uma construção teórica elaborada a partir do rompimento com os pensamentos que atribuíam a fatores alheios ao ser humano a organização política e jurídica da sociedade ao mesmo tempo em que se constatou a necessidade de uma instituição que regulasse as relações sociais perante um novo arcabouço que se estruturava em meio a emergência de novas práticas econômicas, por isso, delimitou-se este estudo a partir do pensamento de Hobbes, Locke, Montesquieu e dos Federalistas em associação com os acontecimentos históricos que respaldaram essas mudanças. Em primeiro lugar, Thomas Hobbes contraria a defesa do zoon politikón para defender um Estado forte com proteção aos indivíduos através da renúncia a um rol de direitos e garantia da defesa da vida. Para o autor, na inexistência de lei previamente estabelecida o soberano poderia agir “de acordo com o que considerasse mais condizente para estimular os homens a servirem o Estado ou afastá-los de qualquer ato contrário ao mesmo” (HOBBES, 2009, p.132), justificando que os incômodos pertinentes ao poder absoluto eram bem mais convenientes do que aqueles relativos à guerra civil e ao estado de natureza. Hobbes (2009) atesta que a liberdade dos súditos está, somente, naquelas coisas permitidas pelo soberano ao regular suas ações, ou seja, no silêncio das leis está a possibilidade de ação das pessoas. A Revolução Gloriosa de 1688 e o Bill of Rigths foram pontos culminantes que permitiram, por intermédio de um amálgama entre nobreza e burguesia, a hegemonia do parlamento sobre a coroa. É nesse contexto que a defesa da agenda política dos whigs por CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Locke se insere, com a proposta da redução dos poderes da instituição estatal para que houvesse espaço para o desenvolvimento do capitalismo e garantias da livre iniciativa e da propriedade. Na obra Segundo Tratado sobre o Governo Civil, o consentimento da população origina o poder político, nesse caso, distinto do hobbesiano, já que a sociedade governar-se-á “mediante leis estabelecidas, promulgadas e conhecidas do povo, e não por meio de decretos extemporâneos” (LOCKE, 2009, p.86), assim, o estabelecimento do Estado é a aceitação em ceder a capacidade legislativa em benefício da comunidade, por isso o legislativo situa-se como poder supremo na sociedade e o império de um direito positivo regulado pelo direito natural como garantia da liberdade. Logo, percebe-se no Estado hobbesiano os indícios do Estado Liberal, os quais se consolidam com Locke, ambos, guardadas as suas especificidades, estabelecendo a liberdade como objeto último da sociedade. O primeiro ao defender a existência de um espaço de autodomínio pré-determinado pelas leis enquanto moduladoras para garantir segurança e liberdade individuais e o segundo ao considerar um dos objetivos do Estado a preservação da liberdade, protegida pelo direito natural e pelas leis civis. O acontecimento de 1688 marcou o fim das pretensões absolutistas e o início das ideias em torno do enfraquecimento do Estado que ganharam corpo com o Iluminismo e consolidou-se na Revolução de 1789, refletindo o mito burguês de liberdade irrestrita a toda a população e a realidade de um Estado guardião da propriedade privada e da liberdade de iniciativa. A queda do regime absolutista consolidou o projeto de Estado da burguesia, ou seja, o Estado Liberal, como uma teoria jurídico-política que se tornou cânone do direito constitucional, juntamente com o princípio da separação de poderes, enquanto um instituto de limitação constitucional da autoridade, inscrito em todos os diplomas constitucionais modernos.
2.1 A SEPARAÇÃO DE PODERES MONTESQUIANA
Destarte, apareceu o pensamento de Montesquieu em Cartas Persas, no qual tratava dos costumes e da organização política francesa, criticava Luís XIV e revelava indícios da CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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separação de poderes4, e Do Espírito das Leis, após a sua viagem à Inglaterra a 1730, na qual conheceu o pensamento lockiano por meio das ideias difundidas pelo Visconde de Bolingbroke, no qual define o seu princípio mais famoso. A separação de poderes, nesse sentido, origina-se da confluência histórica da política prática, das disputas entre grupos humanos, e da reflexão sobre essa prática tendo em vista aperfeiçoá-la ou modificá-la, como uma solução política à disputa entre os interesses e os poderes, regulando a participação da sociedade e limitando ou justificando o poder do Estado (GROHMANN, 2001). A influência de Locke fica ainda mais evidente quando Montesquieu (2009b) sustenta que liberdade significa ser governado por suas leis, fazer tudo aquilo que elas facultam. Para ele, essa liberdade se encontra nos governos moderados, sem concentração e abuso de poder, em que a lei se obriga a ampliar a independência individual dos cidadãos ao liberá-los do medo e atuar como barreira de contenção frente à violência, o que é possível apenas quando o poder reprime o poder5. Observando a Constituição da Inglaterra, o autor revelou a existência de três poderes distintos, mas complementares, condenou o acúmulo e assegurou que nos grandes Estados o poder deve ser exercido por representação. Montesquieu é o ponto alto na evolução da teoria da separação de poderes, enxergando que um equilíbrio entre as forças sociais6 só seria possível com a divisão do Estado em poderes com competências bem delimitadas. Desse modo, esta moderação é condição essencial para a existência da liberdade em um esquema de limitação recíproca das competências, assim, ao passo que a teoria se definiu como garantidora de uma liberdade negativa ela se tornou um dos pilares do constitucionalismo moderno.
“Infeliz do rei que só tem uma cabeça! Se na aparência reúne em si todo o poder, é para indicar ao primeiro ambicioso o lugar onde há de achar todo inteiro” (MONTESQUIEU, 2009a, p.152). 5 Segundo Weffort (1997) as forças sociais devem ter poderes independentes e capazes de se contrapor, pois quando isso não acontece, elas cercearão a liberdade. 6 “A ‘separação de poderes’ não passa da divisão ponderada do poder entre potências determinadas: o rei, a nobreza e o ‘povo’.” (ALTHUSSER apud. GRAU, 2005, p.234). 3
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3 A RELATIVIZAÇÃO DE UM PRINCÍPIO: OS FEDERALISTAS
Como resultado da Convenção Constitucional, na Filadélfia, para ratificar a Constituição estadunidense, nasceu O Federalista, um interlúdio entre o Estado unitário e a Confederação, ampliando a participação popular no que diz respeito ao controle dos governantes, afastando, em tese, a corrupção e a ineficácia, além de propor em bases concretas a possibilidade de uma limitação recíproca entre os poderes por meio da relativização da rigidez do princípio consolidado por Montesquieu. Os autores apresentam um ponto de vista diferenciado daquele defendido por Locke em relação à supremacia do legislativo ao declarar que a preponderância deste se dará por seus poderes constitucionais serem mais extensos e menos suscetíveis de ser circunscritos em limites certos, e por ser o único que pode achar o caminho para o bolso do povo (HAMILTON et. al., 2003). A essência da separação montesquiana é mantida nesta obra, pois a reunião dos três poderes em um só indivíduo forma a tirania, a junção de dois destes extingue a liberdade do Estado, então, haverá necessariamente, uma ligação que dê a cada um deles o direito constitucional de fiscalizar os outros, ou seja, a proposta do check and balances. Ademais, dissertam que os representantes de um poder não podem influenciar na nomeação dos membros dos outros poderes, para que se mantenha a independência no desempenho das suas funções. Deste contexto, surge “a ideia de Estado Mínimo perante a autonomia privada, ao serviço de cuja ‘minimização’ estaria o princípio da separação dos poderes, entendido como sistema de freios e contrapesos intra-estaduais” (PIRRAÇA, 1989, p. 148). Logo, é o sentido da relativização que se confirmou na atualidade com competências originárias de um poder presentes em outro e surgindo um diálogo com novas formas de poder, presentes na sociedade, provenientes das relações de poder que são indissociáveis da mesma, reconhecendo, portanto, que existem influências que não foram detalhadas pelos autores clássicos durante a construção de uma separação dos poderes de caráter rígido, mas que existem desde sempre.
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4 LIBERALISMO: CONEXÕES ENTRE SOCIEDADE, INDIVÍDUO E ESTADO
1688, 1776 e 1789 prepararam o arcabouço teórico para uma nova modalidade de Estado, a qual comungava com a ideologia burguesa na medida em que serviu para a concretização de uma nova ordem político-social, desse modo, o princípio da separação de poderes inseriu-se como elemento fundamental. Esta transformação aconteceu a partir do estabelecimento de um Direito positivo que regulasse as ações do Estado e a utilização do poder político para a defesa dos interesses da burguesia ao mesmo tempo em que a própria instituição estatal se transformava por intermédio desse novo discurso de verdade que se contrapunha ao absolutismo, no campo político, e ao mercantilismo, na economia. O Estado Liberal surge, dessa forma, como um esforço cognitivo que pretendia analisar a sociedade em sua totalidade, isto é, produzir um conhecimento que se originava em um novo modelo de racionalidade através do qual se torna possível saber que é a verdade em oposição ao que é falso. O individualismo é crucial enquanto componente do liberalismo, isto é, quando o indivíduo se projeta como valor supremo, quando suas regras pessoais movem sua existência pretendendo unicamente a satisfação pessoal e as necessidades individuais frente à sociedade e ao Estado. Assim, é cabível dizer que o projeto liberal dependia de uma nova concepção de indivíduo, a qual se adequasse aos propósitos de acumulação da burguesia. Dessa maneira, se torna possível uma associação entre a noção de sujeito e ego, pelo fato de “antes do ego”, quando o homem ainda não se enxergava como “eu”, como ser individual, o Estado era fortemente controlador. Já no ego moderno projeta-se o “eu” cartesiano (cogito ergo sum), ao mesmo tempo em que, Locke escreve o Segundo Tratado sobre o Governo Civil e, na Inglaterra, se proclama o Instrument of Government e a Revolução Gloriosa estabelece o Bill of Rigths. Do mesmo modo, consolida-se o liberalismo e começa a se materializar o individualismo atual que se corporifica com o eu contemporâneo (lacaniano) vislumbrando uma sociedade cada vez mais individualista, com relações mais líquidas, e uma diminuição do alcance do Estado com as funções regulatórias. Destarte, comprova-se a relação entre sociedade, indivíduo (ressignificação do sujeito) e Estado e a delimitação do período anterior ao ego pelo ego moderno e a ressignificação CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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deste pelo ego contemporâneo, em uma ênfase das experiências individuais mediante a comprovação da realidade, da qual se aprende que o aparecimento do Estado Liberal, como uma teoria jurídico-política foi possível por meio de uma conexão entre a própria instituição estatal, a sociedade e o indivíduo, os quais ressignificaram-se para, em seguida, fundamentar o estabelecimento de uma nova ordem.
5 SEPARAÇÃO DE PODERES: O PODER E OS NOVOS PODERES
Tomando por base que poder é algo fluído que perpassa toda a sociedade e através das práticas presentes nela se difunde em meio aos indivíduos contraria-se a concepção de que ele pode ser repartido e entende-se por separação, a divisão de competências na organização política do Estado. Paralelamente, os “novos poderes”, podem ser vistos como agrupamentos de relações de poder que se exteriorizam através de instituições e exercem influência na agenda do Estado. De acordo com Paulo Bonavides (2000) pode se falar em poder partidário e poder “politizado” que se metamorfoseiam em grupos de interesse e pressão e o Quarto Poder, além destes vislumbram-se novas organizações sociais que a partir da Internet alcançam efeitos globais e decisivos na produção de verdades. O poder partidário é aquele em que a bancada de um partido específico que compôs uma coligação com um candidato vitorioso que exige em troca dos votos que “transferiu”, cargos, recursos para o seu “reduto eleitoral” e a aprovação de suas proposições, em um cenário de democracia de coalização. Alguns empresários que enxergam vantagens na eleição de um político formam um grupo de interesse, dessa forma, após a contribuição e a vitória daquele candidato se transformam em um grupo de pressão, pois passam a cobrar as benesses decorrentes daquele primeiro apoio, criando, portanto, um “poder politizado”. O quarto poder é a imprensa, os meios de comunicação em massa, empregados com o objetivo de modificar a opinião que se tem sobre determinado tema, afastando as pessoas de uma realidade social e política distinta dos interesses que a patrocinam. Em relação às outras organizações sociais, o WikiLeaks é um exemplo que por meio de contribuições anônimas divulga uma percepção diferenciada sobre a mesma realidade, isto é, um novo discurso.
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Os desdobramentos são notórios, como, por exemplo, o prejuízo aos interesses dos eleitores que escolheram seus representantes, baseados em suas propostas, posto que o norte destes consubstancia-se nas aspirações daqueles que o financiaram e em suas próprias e a formação de uma opinião pública inepta, fora isso se acrescenta que um poder político independente não existe, ele sempre depende de quem o momento histórico favorece como classe dominante, independentemente da forma de governo.
5.1 UMA GARANTIA OU UMA RESTRIÇÃO?
Com o estabelecimento do liberalismo clássico, o conceito de liberdade se abrevia para o uso e garantia da propriedade privada e para a permissão das atuações dentro das leis, recebendo a garantia de que o Estado atuará conforme os postulados do direito natural e, por conseguinte, a liberdade individual estará garantida. Mas, na verdade, liberdade deve ser enxergada para além deste cenário, de modo que concretize uma escolha e uma ação conscientes, sem obstáculos impostos por nenhuma força externa, o que aponta para uma liberdade parcial, restrita por direitos e princípios. Nesse ínterim, os novos poderes são forças sociais que estão em permanente conflito com a tripartição clássica, e nela estão inseridos, por isso, é insuficiente afirmar que o princípio da separação de poderes garante a liberdade dos seres humanos em um Estado Constitucional de Direito. O prejuízo ao interesse dos eleitores destrói a eficácia do voto, porquanto o pressuposto do cumprimento do projeto político inicial o fundamenta, a confusão entre forças sociais e representantes populares que concretiza a ineficácia em meio a verdades que são convenientes apenas para um dos jogadores são elementos que corroboram esta restrição.
6 CONCLUSÃO
O princípio da separação de poderes facilitou a instalação da sociedade burguesa, materializando-a no Estado Liberal. O controle exercido pelo Estado determinou a tônica das relações sociais e reforçou o individualismo. Atualmente, a separação de poderes está relativizada não apenas por uma concepção que atravessa a definição de competências, mas CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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pela aceitação de que existem relações de poder em todos os níveis e estas contrabalançam uma separação que essencialmente é impossível. Desse modo, o que se deve pretender é a ampliação da participação popular a partir da fiscalização dos representantes, observando a prestação de contas e os gastos públicos, assistindo
as
sessões
legislativas,
integrando
associações
e
Organizações
Não-
Governamentais (ONGs) voltadas a esses aspectos e, em última instância, protestando pacificamente. Perceber a liberdade para além da inexistência de influências externas, mas como reação as relações de poder presentes na sociedade é o cenário que permitirá enxergar a transição entre uma restrição a uma garantia. Os elementos descritos como fundamentais à concretização de uma restrição limitam, portanto, o poder de transformação presente em cada ser humano a fim de que seja perceptível aos olhos cegos garantia de direitos e uma liberdade plena, que incorpora a própria restrição, afinal o que é liberdade se não um discurso firmado por aqueles que estão autorizados a dizer o que é verdadeiro ou falso.
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NECESSIDADE
DE
EXAME
DA
GRAVIDADE
DA
CONDUTA
NAS
REPRESENTAÇÕES POR DOAÇÃO ELEITORAL IRREGULAR Lincoln Mendes Lima116 Antônio Sérgio Meira Barreto117 Sumário: 1 Introdução: Considerações sobre o financiamento das campanhas eleitorais. 2 Fontes de recursos e limite legal para realização de doações eleitorais. 2.1 Fontes vedadas. 2.2 Fontes permitidas e seus limites. 3 Representação por doação eleitoral acima do limite. 4 Necessidade de exame da gravidade para declaração de inelegibilidade. 5 Conclusão. Referências.
1
INTRODUÇÃO:
CONSIDERAÇÕES
SOBRE
O
FINANCIAMENTO
DAS
CAMPANHAS ELEITORAIS
O financiamento das campanhas eleitorais é tema de grande preocupação dentre os estudiosos e aplicadores do Direito, porquanto se trata dos “recursos materiais empregados pelos candidatos com vistas à captação dos votos dos eleitores”, sendo “impensável a realização de campanha eleitoral sem dispêndio de recursos, ainda que pouco vultosos” (GOMES, 2011, p. 284). Historicamente, o que se tem observado é uma crescente evolução, majoração do dispêndio de recursos financeiros nas campanhas eleitorais, principalmente com profissionais de marketing político, agências de publicidade, transportes, impressos. Ao lado do aumento de gastos legalmente autorizados, também podemos identificar, inclusive em nossa história recente, a massiva arrecadação de recursos sem contabilização (denominado caixa dois), e a realização de gastos vedados pela legislação eleitoral. Olivar Coneglian (2014), analisando o quadro da arrecadação de fundos e dos gastos em uma campanha eleitoral, de modo interessante, estabelece que “a questão do dinheiro [...] se situa em três vertentes: a) a vertente ideal; b) a vertente real; c) a vertente formal” e segue comentando sobre cada uma delas:
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Advogado. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduação em andamento em nível de especialização em Direito Público pela Faculdade de Direito Damásio de Jesus. E-mail: lincoln.adv@hotmail.com. 117 Advogado. Graduado em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa. Licenciado em Letras pela Universidade Federal da Paraíba. Pós-graduado em Direito Administrativo pela Universidade Católica de Pernambuco. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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A vertente ideal é aquela que se estabelece no campo de lei a ser feita (de lege ferenda) e dis respeito àquilo que seria ideal em matéria de arrecadação de fundos e gastos de campanha. Ela fica para os sonhadores, para os idealistas, mas se afasta dos legisladores que tiveram ao seu dispor um arsenal de projetos de lei, porém temeram estabelecer regras claras sobre esse assunto. Há muito tempo o Congresso discute a implantação do financiamento de campanha, mas nunca chega a ponto ideal. [...] A vertente real é aquela que se situa no campo da prática e diz respeito à arrecadação real e aos gastos reais de um partido, durante o processo eleitoral. Ela fica para os coordenadores financeiros de campanha, com seus livros verdadeiros e os secretos, com as caixinhas, com as chantagens de candidatos, com a abordagem a empresários, banqueiros, empreiteiros. Trata-se de um mundo de segredos profundos e eternos, inatingível à grande parcela dos coordenadores de campanha. Envolve contratos simulados, notas fiscais irreais, declarações falsas. É bom que se diga: essa vertente não é de um partido, ou de outro, mas pertence a todos os partidos, em grau maior ou menor. A vertente formal é aquela que se situa dentro dos comitês financeiros dos partidos e que retrata a arrecadação explícita de recursos e os gastos declaráveis à Justiça Eleitoral. Ela se traduz nos formulários que os partidos fornecem à Justiça Eleitoral, tudo bem pautadinho, tudo bem feito do ponto de vista contábil. Os partidos preenchem esses formulários e fingem que eles refletem os gastos, e a Justiça Eleitoral os recebe e, desde que estejam formalmente perfeitos, declara bem prestadas as contas.
O conflito entre a real e a formal é constante. Isto porque, a legislação nacional adotou o sistema misto de financiamento das campanhas eleitorais, consubstanciado pela presença de dinheiro público, direcionado a formação do Fundo Partidário e ao custeio dos horários eleitorais gratuitos para fins de propaganda, e de recursos oriundos da iniciativa privada, representadas pelas doações de pessoas físicas e jurídicas. Além do mais, qual seria o verdadeiro escopo por trás de expressivas doações realizadas pelas pessoas físicas e jurídicas, senão a expectativa de retorno que pode ser proporcionado pelo eleito. Carlos Eduardo de Oliveira Lula anota:
Para a sociologia jurídica, os problemas relativos à relação entre as doações feitas em campanha e os recursos públicos repassados futuramente à iniciativa privada para a consecução das obras e investimentos da administração é campo fertilíssimo, e que, se estudado a fundo, revela, não raramente, espúrias e nefastas confabulações. As doações das empresas seguem antes uma lógica econômica que ideológica. Com efeito, os que ‘doam’ permanentemente às campanhas eleitorais quase sempre ‘cobram’ do futuro administrador público um preço muito mais alto que o valor doado. [...] (LULA, 2014, p. 617).
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Na mesma linha, José Jairo Gomes assevera que “ninguém (sobretudo as pessoas, físicas ou jurídicas, que doam expressivos recursos) contribui financeiramente para uma campanha sem esperar retorno do agraciado, caso seja eleito” (GOMES, 2011)118. Nesse contexto, mesmo de modo insatisfatório, com a finalidade de evitar a influência perniciosa do dinheiro nas eleições, o legislador criou diversas regras minudentes que disciplinam a arrecadação, os gastos e a prestação de contas, prevendo formas de arrecadação, fontes vedadas, limite de gastos, despesas permitidas e proibidas tanto para o candidato como para o partido, limites de doação, responsabilidades (RODRIGUES; JORGE, 2014). José Jairo Gomes (2011) explica que
[...] o terreno econômico é onde mais se cogita do uso abusivo de poder nas eleições, o que acarreta grave desequilíbrio da disputa. Por isso, o legislador intervém, fazendo-o com o fito de conferir equilíbrio ao certame. Quer-se impedir que a riqueza dos mais abastados interfira de forma decisiva no resultado das eleições. Com isso também se cumpre o princípio constitucional da isonomia, pois, se todos são iguais perante a lei, justo não seria que houvesse grande diferença de oportunidades para a ocupação de cargos públicos.
Não à toa que foram alçados como valores caros à sociedade brasileira, dignos de proteção na Constituição Federal, disciplinados no § 9º do art. 14, a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, a normalidade e a legitimidade das eleições. Vejase:
Art. 14. [...] § 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para exercício de mandato considerada vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Demais disso, a Constituição não tratou especificamente do financiamento das campanhas eleitorais, porém proibiu, em seu art. 17, que os partidos políticos possam receber recursos de entidades ou governos estrangeiros, além de exigir a prestação de contas à Justiça Eleitoral. O referido autor continua sua análise expressando que “sob o aspecto ético, o único ‘retorno’ que se poderia esperar do mandatário público assenta-se na própria representação democrática ou promoção de ideais políticosociais de seus apoiadores; [...] No entanto, condena-se o desvio do sentido da representação. Para muitos, a doação de campanha constitui verdadeiro investimento, do qual se espera retorno econômico-financeiro. A experiência tem mostrado que aí reside um dos focos (existem outros!) relevantes da corrupção endêmica que assola o País”. 118
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Como expressão da proteção à legitimidade e à normalidade do pleito, encontramos um sistema intrincado e bastante instrumental previsto pela Lei nº 9.504/97, a partir do art. 17 a 32, e do art. 79 a 81, que foram sensivelmente alterados pelas leis nº 11.300/2006, 12.034/2009 e, por último, pela Lei nº 12.891/2013, bem assim, pela Lei Complementar nº 64/90, principalmente pelas alterações trazidas pela Lei Complementar nº 135/2010, passando a punir com maior rigor os candidatos condenados por abuso de poder econômico, como os responsáveis por doações ilegais. A Lei das Eleições (LE), Lei nº 9.504/97, prescreve as regras para as doações de pessoas físicas e jurídicas nos arts. 23 e 81, estabelecendo que se ultrapassados os limites legalmente impostos os doadores estarão sujeitos a pena de multa, proibição de contratar com o poder público. No art. 30-A da LE, encontramos a possibilidade de promoção de investigação judicial eleitoral contra o candidato pela realização de arrecadação e/ou gastos ilícitos na campanha eleitoral, sujeitando-os ao cancelamento do registro ou perda do diploma, bem assim, tornarse-ão inelegíveis por oito anos em decorrência do disposto na alínea j do inciso I do art. 1º da Lei das Inelegibilidades (LI), Lei Complementar nº 64/90. Tanto o doador pessoa física como os dirigentes das pessoas jurídicas, além das penalidades de multa, estarão ainda sujeitos a inelegibilidade de oito anos, disposta na alínea p do inciso I do art. 1º da Lei das Inelegibilidades (LI), Lei Complementar nº 64/90. O referido dispositivo da Lei de Inelegibilidades exige que para a imposição de inelegibilidade, a representação que vise a apurar se a doação é irregular ou não siga o rito disposto no art. 22 da mesma lei. O mesmo ocorrendo em relação ao procedimento da representação para o reconhecimento do ilícito previsto no art. 30-A, por força do disposto no seu § 1º. Entretanto, no ponto particular das doações ilícitas, diante de apenas existir, na Lei das Eleições, previsão expressa no §4º do art. 81, de obediência do rito do art. 22 da LI, parte da doutrina defende que o procedimento da ação de investigação judicial eleitoral (AIJE) deve ser seguido apenas para o caso de doações realizadas por pessoas jurídicas, dispensando tratamento diferenciado para as pessoas físicas, que poderia seguir o iter processual disciplinado no art. 96 da LE, que ainda assim, o doador estaria sujeito a inelegibilidade. Estaria?
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Assim, diz-se que a aplicação da inelegibilidade é efeito secundário da sentença, bastando a condenação a multa para que seja o doador ou dirigente de pessoa jurídica considerado inelegível. Pode o doador ser considerado inelegível sem que o processo tenha tramitado segundo o procedimento descrito no art. 22 da LI, mesmo havendo previsão legal que exige o rito? De outra banda, importante anotar que a doutrina é divergente em todos os aspectos enfocados, assim como, também não explica totalmente em que medida o rito do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 deve ser obedecido, ou quais fases do procedimento devem ser respeitadas. Se alguma fase for suprimida será possível se falar em inelegibilidade? Onde se encerra o rito do art. 22 da LC nº 64/90? A sentença condenatória da representação por doação eleitoral ilícita deve declarar a inelegibilidade? Cabível a aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade? Se sim, qual o alcance? A gravidade da conduta pode ou deve influenciar na futura declaração de inelegibilidade? Sobre esta última pergunta, observamos na jurisprudência e na doutrina um tratamento diferenciado entre o dispensado ao doador e o concedido ao donatário quanto à verificação da gravidade da conduta para declaração de inelegibilidade, pois, ao candidato beneficiado pela doação ilícita é dada a oportunidade de somente ser punido e tornar-se inelegível se a conduta for grave o suficiente para macular o pleito, aplicando a proporcionalidade e razoabilidade em seu grau máximo de eficiência. Em relação ao doador, privilégio de igual envergadura lhe tem sido negado. Posto que, de modo objetivo, é punido por ultrapassar o limite por menor valor que o seja, bem assim, não lhe é possibilitado o exame da gravidade de sua conduta para afastar a inelegibilidade de oito anos. Devemos então estender o alcance do exame da gravidade para o doador?
2 FONTES DE RECURSOS E LIMITE LEGAL PARA REALIZAÇÃO DE DOAÇÕES ELEITORAIS
2.1 Fontes vedadas
Pelo art. 17, II da Constituição Federal, nenhum partido pode receber recursos de governo ou entidade estrangeira. Como forma de obedecer ao mandamento constitucional,
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bem como, evitar o uso de recursos públicos para fins particulares (LULA, 2014), pela Lei das Eleições, segundo o art. 24,
É vedado, a partido e candidato, receber direta ou indiretamente doação em dinheiro ou estimável em dinheiro, inclusive por meio de publicidade de qualquer espécie, procedente de: I - entidade ou governo estrangeiro; II - órgão da administração pública direta e indireta ou fundação mantida com recursos provenientes do Poder Público; III - concessionário ou permissionário de serviço público; IV - entidade de direito privado que receba, na condição de beneficiária, contribuição compulsória em virtude de disposição legal; V - entidade de utilidade pública; VI - entidade de classe ou sindical; VII - pessoa jurídica sem fins lucrativos que receba recursos do exterior. VIII - entidades beneficentes e religiosas; IX - entidades esportivas; X - organizações não-governamentais que recebam recursos públicos; XI - organizações da sociedade civil de interesse público. Parágrafo único. Não se incluem nas vedações de que trata este artigo as cooperativas cujos cooperados não sejam concessionários ou permissionários de serviços públicos, desde que não estejam sendo beneficiadas com recursos públicos, observado o disposto no art. 81.
Some-se a estas, a vedação do recebimento de recursos provenientes de cartórios de serviços notariais e de registro, que foram prescritos a partir da Resolução do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) nº 22.715/2008. Nestas fontes, o partido e o candidato não podem beber, atingindo a proibição tanto doações em dinheiro como quaisquer outras que tenham valor econômico, recebimentos indiretos, inclusive por publicidade de qualquer espécie (CONEGLIAN, 2014). Nestas hipóteses, em que não há justificativas para seu recebimento, presume-se de forma absoluta em desfavor do partido ou candidato beneficiado a captação ilícita de recursos, abuso de poder econômico, impondo-se a rejeição das contas de campanha, a incidência do art. 30-A da Lei nº 9.504/97, com a consequente cassação do diploma ou do registro, quando for o caso (RODRIGUES; JORGE, 2014).
2.2 Fontes permitidas e seus limites
A campanha eleitoral pode ser abastecida por recursos como dinheiro, bens e serviços estimados em dinheiro, possuindo como receitas lícitas os recursos próprios, doações de pessoas físicas ou jurídicas, doações de outros candidatos, comitês financeiros ou partidos, CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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repasses originários do Fundo Partidário e, por último, receitas decorrentes da comercialização de bens e realização de eventos. Rodrigues e Jorge (2014) expõem:
Todo e qualquer objeto que agregue valor à uma campanha eleitoral e puder ser estimado em dinheiro pode ser objeto de doação. Excluídas as fontes vedadas do art. 24 da Lei 9.504/1997, poderá ser doado às campanhas eleitorais o dinheiro em espécie, títulos de crédito, prestação de serviços (locutores, editores e vídeo, cartazes, publicidades de todo gênero etc.), bens móveis e imóveis (v.g. gasolina, carros, casas, galpões etc.) etc (grifo nosso).
Insta-nos, inicialmente, citar o art. 19 da Resolução TSE nº 23.406/2013:
Art. 19. Os recursos destinados às campanhas eleitorais, respeitados os limites previstos nesta Resolução, somente serão admitidos quando provenientes de: I – recursos próprios dos candidatos; II – doações financeiras ou estimáveis em dinheiro, de pessoas físicas ou de pessoas jurídicas; III – doações de partidos políticos, comitês financeiros ou de outros candidatos; IV – recursos próprios dos partidos políticos, desde que identificada a sua origem; V – recursos provenientes do Fundo de Assistência Financeira aos Partidos Políticos (Fundo Partidário), de que trata o art. 38 da Lei nº 9.096/95; VI – receitas decorrentes da: a) comercialização de bens e/ou serviços realizada diretamente pelo candidato, comitê financeiro ou pelo partido; b) promoção de eventos realizados diretamente pelos candidatos, comitês financeiros ou pelo partido; c) aplicação financeira dos recursos de campanha.
O candidato é considerado de maneira autônoma possuindo personalidade distinta de sua pessoa física, para fins jurídico-eleitorais (GOMES, 2011; RODRIGUES; JORGE, 2014). Os recursos próprios, como se observa da própria denominação, tratam-se de ‘doações’ feitas pelo próprio candidato a sua campanha, cujo limite é o valor máximo de gastos fixados pelo seu partido, o que está disposto no art. 23, §1º, II da Lei nº 9.504/97, in verbis:
Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. §1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas: [...] II - no caso em que o candidato utilize recursos próprios, ao valor máximo de gastos estabelecido pelo seu partido, na forma desta Lei. (grifo nosso).
Interessante inovação trouxe a citada Resolução TSE nº 23.406/2013, ao estabelecer no parágrafo único do indigitado art. 19 que CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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a utilização de recursos próprios dos candidatos é limitada a 50% do patrimônio informado à Receita Federal do Brasil na Declaração de Imposto de Renda da Pessoa Física referente ao exercício anterior ao pleito (arts. 548 e 549 do Código Civil)119.
Em se tratando de doações realizadas em dinheiro ou estimáveis em dinheiro por pessoas físicas, disciplina o art. 23, §1º, inc. I que devem estar limitadas a 10% (dez por cento) dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior ao da eleição. Porém, às doações estimáveis em dinheiro aplica-se, como limitador, o valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais), conforme disposto no §7º do mesmo artigo.
Art. 23. Pessoas físicas poderão fazer doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro para campanhas eleitorais, obedecido o disposto nesta Lei. §1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas: I - no caso de pessoa física, a dez por cento dos rendimentos brutos auferidos no ano anterior à eleição; [...] § 7º O limite previsto no inciso I do § 1º não se aplica a doações estimáveis em dinheiro relativas à utilização de bens móveis ou imóveis de propriedade do doador, desde que o valor da doação não ultrapasse R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) (grifo nosso).
Origem das maiores somas pecuniárias e, por isso, as mais polêmicas, às pessoas jurídicas é imposto o limite de 2% (dois por cento) do faturamento bruto do ano anterior ao pleito, conforme reza o art. 81, § 1º da LE, pouco importando se a doação é feita a um ou mais candidatos (GOMES, 2011).
Art. 81. As doações e contribuições de pessoas jurídicas para campanhas eleitorais poderão ser feitas a partir do registro dos comitês financeiros dos partidos ou coligações. § 1º As doações e contribuições de que trata este artigo ficam limitadas a dois por cento do faturamento bruto do ano anterior à eleição. (grifo nosso).
Por expressa disposição do art. 44, III, da Lei nº 9.096/95 - Lei dos Partidos Políticos (LPP) é permitido às agremiações partidárias empregar recursos provenientes do Fundo Partidário nas campanhas eleitorais, que estão sujeitos apenas aos limites de gastos imposto para os candidatos beneficiários dos repasses. 119
Importante salientar que a decisão do Tribunal Superior Eleitoral fundou-se nos arts. 548 e 549 do Código Civil Brasileiro, pelos quais “é nula a doação de todos os bens sem reserva de parte, ou renda suficiente para a subsistência do doador”, assim também o é “a doação quanto à parte que exceder à de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento”. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Art. 44. Os recursos oriundos do Fundo Partidário serão aplicados: [...] III - no alistamento e campanhas eleitorais;
Do mesmo modo, os partidos ainda podem repassar/doar aos seus candidatos recursos de origem diversa do Fundo Partidário. Isto porque os recursos do grêmio podem ter gênese em outras fontes como doações de pessoas privadas e comercialização de produtos no mercado, permitido pelo §5º do art. 39.
Art. 39. Ressalvado o disposto no art. 31, o partido político pode receber doações de pessoas físicas e jurídicas para constituição de seus fundos. [...] § 5o Em ano eleitoral, os partidos políticos poderão aplicar ou distribuir pelas diversas eleições os recursos financeiros recebidos de pessoas físicas e jurídicas, observando-se o disposto no § 1º do art. 23, no art. 24 e no § 1o do art. 81 da Lei no 9.504, de 30 de setembro de 1997, e os critérios definidos pelos respectivos órgãos de direção e pelas normas estatutárias.
Permitida, ainda, que sejam realizadas doações de valores ou bens por comitês financeiros de outros partidos, ligados pela existência de uma coligação em torno de um objetivo comum, que não encontra limite especificamente fixado em Lei, mas que possui o limite natural o valor do teto fixado para os gastos de cada cargo em disputa (RODRIGUES; JORGE, 2014). Através da comercialização de bens e pela realização de eventos, prevista no art. 26, IX da LE, forma-se uma das mais relevantes e costumeiras fontes de recursos para uma campanha eleitoral, cujo limite é o estabelecido para doações. Por último, a que penso menos útil à campanhas eleitorais, a receita decorrente de aplicações financeiras, porquanto o intervalo temporal em que se desenvolve a campanha não é capaz de satisfazer, através da percepção de rendimentos, a velocidade/necessidade dos gastos eleitorais. Para o estudo em apreço, nos interessa discutir os casos de transgressão pela transposição dos limites impostos na legislação pelos doadores pessoas físicas e jurídicas.
3 REPRESENTAÇÃO POR DOAÇÃO ELEITORAL ACIMA DO LIMITE
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Conforme visto, a teor do § 3º do Art. 23 da Lei das Eleições, “a doação de quantia acima dos limites fixados neste artigo sujeita o infrator ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso”, para os casos de pessoa física, e, para os casos que envolvam pessoa jurídica, aplica-se o disposto no § 2º do art. 81, pelo qual, “a doação de quantia acima do limite fixado neste artigo sujeita a pessoa jurídica ao pagamento de multa no valor de cinco a dez vezes a quantia em excesso”. A pessoa jurídica estará sujeita ainda às penalidades descritas no § 3º do art. 81 da Lei nº 9.505/97, quais sejam, a “proibição de participar de licitações públicas e de celebrar contratos com o Poder Público pelo período de cinco anos”. A fim de que se promova a punição pecuniária aos infratores, viabilize o equilíbrio na disputa eleitoral, evite o financiamento à margem da lei e atenue a influência do poder econômico sobre as eleições, surge como instrumento e meio adequado a representação eleitoral por doação acima do limite legal (ESMERALDO, 2012). Acontece que, junto com as inovações trazidas pela Lei da Ficha Limpa – Lei Complementar nº 135/2010, que promoveu alterações na Lei Complementar nº 64/90, aumentando o lapso temporal de restrição da capacidade eleitoral passiva, bem assim, criando novas hipóteses de inelegibilidade etc, dentre as quais, a que nos interessa, disposta na alínea p do inciso I do art. 1º.
Art. 1º São inelegíveis: I - para qualquer cargo: [...] p) a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações eleitorais tidas por ilegais por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, pelo prazo de 8 (oito) anos após a decisão, observando-se o procedimento previsto no art. 22;
De acordo com a parte final do citado dispositivo legal, serão considerados inelegíveis, “a pessoa física e os dirigentes de pessoas jurídicas responsáveis por doações ilegais”, somente se o processo adotar o rito disposto no art. 22 da mesma lei. Inexistem dúvidas sobre qual rito processual seguir para a imputação de multa às pessoas jurídicas, bem assim, para que seus dirigentes sejam considerados inelegíveis, tendo em conta que o § 4º do art. 81 da LE impor o seguimento do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 o que se coaduna com a redação da alínea p do inciso I do art. 1º da LI.
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Art. 81. [...] § 4o As representações propostas objetivando a aplicação das sanções previstas nos §§ 2o e 3o observarão o rito previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64, de 18 de maio de 1990, e o prazo de recurso contra as decisões proferidas com base neste artigo será de 3 (três) dias, a contar da data da publicação do julgamento no Diário Oficial.
No caso de apuração de suposta ilegalidade cometida pela pessoa física em sua doação, é onde nasce o primeiro problema que enfrentamos, pois alguns autores entendem que basta seguir o rito sumário eleitoral descrito no art. 96, para as representações em geral, tanto para imposição de multa como para a declaração de inelegibilidade, ante o silêncio do legislador no art. 23.
Art. 96. Salvo disposições específicas em contrário desta Lei, as reclamações ou representações relativas ao seu descumprimento podem ser feitas por qualquer partido político, coligação ou candidato, e devem dirigir-se: I - aos Juízes Eleitorais, nas eleições municipais; II - aos Tribunais Regionais Eleitorais, nas eleições federais, estaduais e distritais; III - ao Tribunal Superior Eleitoral, na eleição presidencial. § 1º As reclamações e representações devem relatar fatos, indicando provas, indícios e circunstâncias. § 2º Nas eleições municipais, quando a circunscrição abranger mais de uma Zona Eleitoral, o Tribunal Regional designará um Juiz para apreciar as reclamações ou representações. § 3º Os Tribunais Eleitorais designarão três juízes auxiliares para a apreciação das reclamações ou representações que lhes forem dirigidas. § 4º Os recursos contra as decisões dos juízes auxiliares serão julgados pelo Plenário do Tribunal. § 5º Recebida a reclamação ou representação, a Justiça Eleitoral notificará imediatamente o reclamado ou representado para, querendo, apresentar defesa em quarenta e oito horas. § 6º (Revogado pela Lei nº 9.840, de 1999) § 7º Transcorrido o prazo previsto no § 5º, apresentada ou não a defesa, o órgão competente da Justiça Eleitoral decidirá e fará publicar a decisão em vinte e quatro horas. § 8º Quando cabível recurso contra a decisão, este deverá ser apresentado no prazo de vinte e quatro horas da publicação da decisão em cartório ou sessão, assegurado ao recorrido o oferecimento de contra-razões, em igual prazo, a contar da sua notificação. § 9º Os Tribunais julgarão o recurso no prazo de quarenta e oito horas. § 10. Não sendo o feito julgado nos prazos fixados, o pedido pode ser dirigido ao órgão superior, devendo a decisão ocorrer de acordo com o rito definido neste artigo.
Pedro Paulo Grubits Gonçalves de Oliveira (2014, p.82) aduz que [...] a ressalva do final da alínea – observar o procedimento do art. 22, que trata da Ação de Investigação Judicial Eleitoral (AIJE) – serve apenas quando houver condenação de pessoas jurídicas [...], visando identificar judicialmente a responsabilidade pessoal de seus dirigentes, para incidência da inelegibilidade. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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Tratando-se de pessoa física, a sentença condenatória é suficiente para delimitar a responsabilidade para incidência da inelegibilidade.
Esse também parece ser o entendimento de José Jairo Gomes (2011, p. 194):
A cláusula final do dispositivo em apreço enseja a interpretação de que a inelegibilidade não surge automaticamente da decisão que multar o doador; não se trata, pois, de efeito secundário da sentença. Ela deve resultar de decisão autônoma, em processo que tenha observado o rito do art. 22 da LC nº 64/90. Isso, porém, só faz sentido quando o doador for pessoa jurídica. É que aí o réu na ação por doação irregular será a pessoa jurídica, enquanto a inelegibilidade afetará os dirigentes desta; por óbvio, isso não acontece na hipótese de doação irregular feita por pessoa física. [...] (grifo nosso)
No Tribunal Superior Eleitoral havia se firmado o entendimento pela impossibilidade de extensão do preceito do § 4º do art. 81 da LE para os processos que envolvessem doadores pessoas físicas, nos seguintes termos:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. EXCESSO. LIMITE DE DOAÇÃO. PESSOA FÍSICA. REPRESENTAÇÃO. ELEIÇÕES 2006. PEDIDO. EXTENSÃO. RITO. PESSOA JURÍDICA (ARTIGO 81, § 4º, DA LEI Nº 9.504/97). IMPOSSIBILIDADE. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EXTEMPORÂNEOS. PRAZO DE 24 HORAS PARA AJUIZAMENTO (ARTIGO 96, § 8º, DA LEI DAS ELEIÇÕES). INTEMPESTIVIDADE REFLEXA DO RECURSO ESPECIAL. DESPROVIMENTO. 1. A Lei nº 12.034/2009, ao estabelecer o rito previsto no artigo 22 da LC nº 64/90 para o processamento das representações por excesso de doação, assim o fez tão somente em relação a pessoas jurídicas, não havendo falar em extensão, por analogia, ou ainda sob o argumento de isonomia, do preceito inserto no § 4º do artigo 81 da Lei das Eleições também para pessoas físicas. 2. O artigo 23 da Lei nº 9.504/97, que trata de doações a candidatos feitas por pessoas físicas, não prevê expressamente o rito processual a ser adotado para a apuração do ilícito de doação acima do limite legal, razão pela qual, na ausência de disposição específica em contrário, o procedimento a ser observado para a aplicação da multa prevista no § 3º do citado dispositivo é o do artigo 96 do mesmo diploma, e não o do artigo 22 da LC nº 64/90. [...] (TSE, AgR-REspe nº 124656 - Maceió/AL. Acórdão de 08/03/2012. Relator(a) Min. GILSON LANGARO DIPP. Publicação: DJE, Tomo 73, Data 19/04/2012, Página 40) (grifo nosso)
Tal assertiva somente pode ser considerada correta se estivermos a tratar exclusivamente de multa, conforme, inclusive aduzido por Coneglian (2014, p. 192), que “tal multa é aplicada pela Justiça Eleitoral, através do devido processo legal” e que esse procedimento para aplicação da multa é disposto no art. 96. Sobre a situação retratada, Marcelo Abelha Rodrigues e Flávio Cheim Jorge comentam: CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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No tocante ao rito processual a ser seguido para as ações condenatórias por doação à campanhas eleitorais feitas por pessoas físicas e jurídicas acima do limite legal, a lei das eleições cometeu um lapso legislativo, pois previu o procedimento do art. 22 da LC 64/1990 (rito ordinário eleitoral) para as demandas que envolvam doação de pessoas jurídica, mas silenciou acerca do procedimento a ser seguido quando se tratar de representação proposta por pessoa física. Até poderia ser argumentado que as sanções feitas à pessoa jurídica são mais severas do que a sanção à pessoa física, pois contra a primeira não há apenas a condenação ao pagamento de quantia, mas também sanções restritivas de direito que poderão levar a extinção da pessoa jurídica, e, que por isso o rito ordinário eleitoral seria o adequado. Mas nos parece que este argumento é idôneo para sustentar a incidência do rito ordinário eleitoral para as pessoas jurídicas, mas não para impedir ou afastar este mesmo rito das representações contra as pessoas físicas, mormente quando há silêncio do legislador, como neste caso. [...] [...] mesmo havendo posição do TSE a este respeito, pensamos que o ordenamento jurídico eleitoral prevê sim a possibilidade de que as representações contra as pessoas físicas sejam processadas pelo rito do art. 22 da LC 64/1990. Para tanto, o caminho exegético está no art. 1º, I, p, da LC 64/1990. [...]
Como visto a doutrina é vacilante quanto à escolha do procedimento adequado à representação, mesmo diante do encerramento do assunto, desde 2011, através da Resolução nº 23.367, pelo Tribunal Superior Eleitoral, que pacificou a matéria dispondo, em seu art. 21 (posteriormente repetido nas resoluções que tratam da matéria para às eleições que sobrevieram), que “as representações que visarem à apuração das hipóteses previstas nos arts. 23, 30-A, 41-A, 73, 74, 75, 77 e 81 da Lei nº 9.504/97 observarão o rito estabelecido pelo art. 22 da Lei Complementar nº 64/90” (PELEJA JÚNIOR; BATISTA, 2014, p. 289/290). Portanto, com a finalidade de atender de maneira mais eficaz aos fins de proteção a legitimidade e normalidade dos pleitos, bem como, as garantias do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, tanto para as pessoas físicas quanto para as jurídicas sempre deve ser adotado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90120, mesmo que se trate apenas da aplicação de multa.
4 NECESSIDADE DE EXAME DA GRAVIDADE PARA DECLARAÇÃO DE INELEGIBILIDADE
Mister relembrar a problemática traçada alhures sobre o fato de que a doutrina não explica totalmente em que medida o rito do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90 deve ser 120
Seguem essa linha: LULA (2014, passim), ESMERALDO (2012, passim), RODRIGUES; JORGE (2014, passim). CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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obedecido, onde se encerra, se a sentença condenatória da representação por doação eleitoral ilícita deve declarar a inelegibilidade, qual o alcance de aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade, fazendo com que a gravidade da conduta possa influenciar na futura declaração de inelegibilidade. Pois bem. Definido está que é aplicável o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90, mas qual o alcance, a natureza de sua aplicação, apenas instrumental e burocrático ou verdadeira ação de investigação judicial eleitoral? O procedimento do art. 22 da LI está assim prescrito:
Art. 22. Qualquer partido político, coligação, candidato ou Ministério Público Eleitoral poderá representar à Justiça Eleitoral, diretamente ao Corregedor-Geral ou Regional, relatando fatos e indicando provas, indícios e circunstâncias e pedir abertura de investigação judicial para apurar uso indevido, desvio ou abuso do poder econômico ou do poder de autoridade, ou utilização indevida de veículos ou meios de comunicação social, em benefício de candidato ou de partido político, obedecido o seguinte rito: I - o Corregedor, que terá as mesmas atribuições do Relator em processos judiciais, ao despachar a inicial, adotará as seguintes providências: a) ordenará que se notifique o representado do conteúdo da petição, entregando-selhe a segunda via apresentada pelo representante com as cópias dos documentos, a fim de que, no prazo de 5 (cinco) dias, ofereça ampla defesa, juntada de documentos e rol de testemunhas, se cabível; b) determinará que se suspenda o ato que deu motivo à representação, quando for relevante o fundamento e do ato impugnado puder resultar a ineficiência da medida, caso seja julgada procedente; c) indeferirá desde logo a inicial, quando não for caso de representação ou lhe faltar algum requisito desta lei complementar; II - no caso do Corregedor indeferir a reclamação ou representação, ou retardar-lhe a solução, poderá o interessado renová-la perante o Tribunal, que resolverá dentro de 24 (vinte e quatro) horas; III - o interessado, quando for atendido ou ocorrer demora, poderá levar o fato ao conhecimento do Tribunal Superior Eleitoral, a fim de que sejam tomadas as providências necessárias; IV - feita a notificação, a Secretaria do Tribunal juntará aos autos cópia autêntica do ofício endereçado ao representado, bem como a prova da entrega ou da sua recusa em aceitá-la ou dar recibo; V - findo o prazo da notificação, com ou sem defesa, abrir-se-á prazo de 5 (cinco) dias para inquirição, em uma só assentada, de testemunhas arroladas pelo representante e pelo representado, até o máximo de 6 (seis) para cada um, as quais comparecerão independentemente de intimação; VI - nos 3 (três) dias subseqüentes, o Corregedor procederá a todas as diligências que determinar, ex officio ou a requerimento das partes; VII - no prazo da alínea anterior, o Corregedor poderá ouvir terceiros, referidos pelas partes, ou testemunhas, como conhecedores dos fatos e circunstâncias que possam influir na decisão do feito; VIII - quando qualquer documento necessário à formação da prova se achar em poder de terceiro, inclusive estabelecimento de crédito, oficial ou privado, o Corregedor poderá, ainda, no mesmo prazo, ordenar o respectivo depósito ou requisitar cópias;
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IX - se o terceiro, sem justa causa, não exibir o documento, ou não comparecer a juízo, o Juiz poderá expedir contra ele mandado de prisão e instaurar processo s por crime de desobediência; X - encerrado o prazo da dilação probatória, as partes, inclusive o Ministério Público, poderão apresentar alegações no prazo comum de 2 (dois) dias; XI - terminado o prazo para alegações, os autos serão conclusos ao Corregedor, no dia imediato, para apresentação de relatório conclusivo sobre o que houver sido apurado; XII - o relatório do Corregedor, que será assentado em 3 (três) dias, e os autos da representação serão encaminhados ao Tribunal competente, no dia imediato, com pedido de inclusão incontinenti do feito em pauta, para julgamento na primeira sessão subseqüente; XIII - no Tribunal, o Procurador-Geral ou Regional Eleitoral terá vista dos autos por 48 (quarenta e oito) horas, para se pronunciar sobre as imputações e conclusões do Relatório; XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; XV - (Revogado pela Lei Complementar nº 135, de 2010) XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam. Parágrafo único. O recurso contra a diplomação, interposto pelo representante, não impede a atuação do Ministério Público no mesmo sentido.
Importa dizer que quando não observado o aludido art. 22, não existe possibilidade de inelegibilidade, consoante já decidiu o Tribunal Superior Eleitoral em processos de registro de candidatura sob a relatoria dos Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro, nos indicados leading cases: Recurso Especial Eleitoral nº 694-57.2010.6.02.0000 (Classe 32), oriundo de Maceió (AL) e Recurso Ordinário nº 1485-84.2010.6.25.0000 (Classe 37), oriundo de Aracaju (SE). In verbis:
REGISTRO - INELEGIBILIDADE - SUPERVENIENTE. Cumpre à Justiça Eleitoral, enquanto não cessada a jurisdição relativamente ao registro de candidato, levar em conta fato superveniente - inteligência do § 10 do artigo 11 da Lei nº 9.504/1997. INELEGIBILIDADE - DOAÇÃO ILÍCITA - PROCEDIMENTO - DECISÃO PRECLUSÃO MAIOR. A teor do disposto na alínea p do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/1990, que a ilustrada maioria entende aplicável às eleições de 2010 - entendimento em relação ao qual continuo a guardar reservas -, A INELEGIBILIDADE RESULTANTE DE DOAÇÕES ELEITORAIS TIDAS POR ILEGAIS PRESSUPÕE A OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ARTIGO 22 DA CITADA LEI COMPLEMENTAR e o trânsito em julgado da decisão. (TSE, RESPE nº 694-57, Acórdão de 16/11/2010,
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Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 16/11/2010) (grifo nosso) RECURSO ORDINÁRIO. REGISTRO DE CANDIDATURA. DEPUTADO ESTADUAL. INELEGIBILIDADE. ART. 1º, I, p, DA LC Nº 64/90. DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL. REQUISITO. OBSERVÂNCIA DO PROCEDIMENTO PREVISTO NO ART. 22. DESPROVIMENTO. 1. NOS TERMOS DA ALÍNEA P DO INCISO I DO ART. 1º DA LC Nº 64/90, PARA A INCIDÊNCIA DA CAUSA DE INELEGIBILIDADE NELE PREVISTA, É NECESSÁRIA NÃO APENAS A CONDENAÇÃO POR DOAÇÃO ELEITORAL TIDA POR IRREGULAR, MAS, TAMBÉM, QUE O PROCEDIMENTO OBSERVADO NA RESPECTIVA AÇÃO TENHA SIDO O PREVISTO NO ART. 22 DA LC Nº 64/90. 2. Recurso ordinário desprovido. (Recurso Ordinário nº 148584, Acórdão de 28/10/2010, Relator(a) Min. MARCELO HENRIQUES RIBEIRO DE OLIVEIRA, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 28/10/2010) (grifo nosso)
Colhe-se do voto condutor do Ministro Marcelo Ribeiro nos autos do Recurso Ordinário nº 1485-84/SE o seguinte:
[...] o dispositivo em análise, recentemente incluído pela LC nº 135/2010, ERIGIU COMO CONDIÇÃO PARA A INCIDÊNCIA DA HIPÓTESE DE INELEGIBILIDADE NELE ELENCADA NÃO APENAS A CONDENAÇÃO POR DOAÇÃO ELEITORAL TIDA POR ILEGAL - POR DECISÃO TRANSITADA EM JULGADO OU PROFERIDA POR ÓRGÃO COLEGIADO DA JUSTIÇA ELEITORAL MAS, TAMBÉM, QUE O PROCEDIMENTO OBSERVADO NA RESPECTIVA AÇÃO TENHA SIDO O PREVISTO NO ART. 22 DA LC Nº 64/90. [...] Essa é, a meu ver, a interpretação mais lógica que se infere do dispositivo em análise, e também a mais consentânea com os corolários do devido processo legal, uma vez que o procedimento previsto no art. 22 da LC n° 64/90 oportuniza ao representado defesa bem mais ampla que a do rito do art. 96 da Lei nº 9.504/97. Registre-se, ainda, que as decisões limitativas de direitos devem ser interpretadas estritamente, não podendo prevalecer, por esse motivo, o argumento do recorrente no sentido de que, para a incidência da causa de inelegibilidade em exame, é suficiente a condenação judicial que reconheça a doação como irregular, ao argumento de que "a questão do rito é meramente pano de fundo [...]" (fl.194). Efetivamente, restrições civis de tamanha envergadura, como a exclusão do processo eleitoral por oito anos em virtude do reconhecimento de causa de inelegibilidade, não devem originar-se de condenações proferidas em procedimento sumário, em observância, inclusive, ao princípio da adequação processual, decorrente da cláusula do devido processo legal, segundo o qual a construção do rito processual a ser seguido deve corresponder às peculiaridades do objeto do processo, sobretudo à natureza do direito material discutido [...] (grifos nossos).
Logo, como bem disseram os Ministros Marco Aurélio e Marcelo Ribeiro, dois são os requisitos indispensáveis para a inelegibilidade, a saber: o trânsito em julgado ou a condenação colegiada e a estrita observância ao procedimento do artigo 22 da Lei Complementar nº 64/90.
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No mesmo sentido e, mais recentemente, o Tribunal Superior Eleitoral confirmou decisão do Tribunal Regional Eleitoral da Paraíba que, em sede de ação de Querela Nullitatis anulou sentença de representação por doação eleitoral irregular, ante o malferimento do rito do art. 22 da LI.
ELEIÇÕES 2012. RECURSOS ESPECIAIS. QUERELA NULLITATIS INSANABILIS. CABIMENTO. DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL. OFERECIMENTO. PRAZO. ALEGAÇÕES FINAIS. REPRESENTADO. AUSÊNCIA. NOTIFICAÇÃO. SENTENÇA. DEVIDO PROCESSO LEGAL. VIOLAÇÃO. SÚMULA Nº 283/STF. INCIDÊNCIA. DESPROVIMENTO. 1. É de rigor a impugnação a cada um dos fundamentos autônomos adotados pela Corte Regional, sob pena de subsistirem as suas conclusões. Súmula nº 283/STF. In casu, não foi atacado o fundamento segundo o qual o próprio MPE, autor da representação, pugnou pela sua improcedência e, portanto, renunciou ao direito sobre o qual se fundava a ação. 2. "A relativização da coisa julgada é admissível, ao menos em tese, apenas nas situações em que se evidencia colisão entre direitos fundamentais, fazendo-se uma ponderação dos bens envolvidos, com vistas a resolver o conflito e buscar a prevalência daquele direito que represente a proteção a um bem jurídico maior. Precedentes." (REspe nº 9679-04, Rel. Min. Nancy Andrighi, de 8.5.2012). 3. Na espécie, é plenamente cabível a relativização da coisa julgada, haja vista que, conforme delineado na moldura fática do acórdão regional, o processo alusivo à doação acima do limite legal, cuja sentença se busca tornar inexistente, porquanto eivada de vício transrescisório, não tramitou dentro da normalidade, em virtude da violação aos princípios do devido processo legal e da ampla defesa, os quais possuem envergadura constitucional. 4. Recursos a que se nega provimento. (TSE, REspe - Recurso Especial Eleitoral n 27081 - Esperança/PB. Acórdão de 24/06/2014. Relator(a) Min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO. Publicação: DJE, Tomo 159, Data 27/08/2014, Página 55-56).
Em seu voto, a Ministra Luciana Lóssio deixou claro que a não abertura da fase de alegações, previsto no art. 22, X da Lei Complementar nº 64/90, para o representado é vicio insanável e que macula a sentença, considerada inexistente. Entrementes, os precedentes acima citados dizem respeito à natureza instrumental do procedimento, relacionados às fases e seus respectivos prazos, mas não aos requisitos e consequências advindos com a adoção do rito. Esse último aspecto serve prioritariamente para definir o alcance da sentença condenatória por doação ilícita, especialmente no que tange à declaração de inelegibilidade, tida pela maior parte da doutrina e pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral como efeito secundário ou anexo da sentença, de automática incidência.
ELEIÇÕES 2012. RECURSO ESPECIAL ELEITORAL. REGISTRO DE CANDIDATURA. CANDIDATO A VEREADOR. INELEGIBILIDADE DO ART. CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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1º, INCISO I, ALÍNEA p, DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/1990. DECISÃO COLEGIADA QUE APLICOU MULTA POR DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL SUSPENSA POR LIMINAR DE MINISTRO DO TSE. INELEGIBILIDADE SUSPENSA CONSEQUENTEMENTE. INCIDÊNCIA DO ART. 26-C DA LEI COMPLEMENTAR Nº 64/1990. PROVIMENTO DO RECURSO. 1. A inelegibilidade do art. 1º, inciso I, alínea p, da Lei Complementar nº 64/1990 não é sanção imposta na decisão judicial que condena o doador a pagar multa por doação acima do limite legal (art. 23 da Lei nº 9.504/1997), mas possível efeito secundário da condenação, verificável se e quando o cidadão se apresentar como postulante a determinado cargo eletivo, desde que presentes os requisitos exigidos. [...] (TSE, REspe nº 22991 - Palmas/TO. Acórdão de 22/05/2014. Relator(a) Min. GILMAR FERREIRA MENDES. Publicação: DJE, Tomo 142, Data 04/08/2014, Página 54/55) (grifo nosso).
Para Elmana Viana, em linha de afinidade com o Tribunal Superior Eleitoral, o reconhecimento da inelegibilidade “não se trata de sanção a ser imposta na decisão, mas de consequência da condenação e apuração da responsabilidade pela doação ilegal (ESMERALDO, 2012)”. Peleja Júnior e Batista (2014) asseveram que [...] a inelegibilidade cominada pela Lei Complementar 64/90, em seu art. 1º, I, ‘p’, é medida que sempre se imporá, quer a pessoa física, que aos dirigentes da pessoa jurídica, não cabendo ao intérprete optar ou não por aplica-la, por se tratar de inelegibilidade imposta por Lei.
Também concordam Rodrigues e Jorge (2014, p. 367/368):
Tem-se efeito secundário da condenação por doação acima do valor legal, tanto para a pessoa jurídica, quanto para a pessoa física, a hipótese de inelegibilidade descrita no art. 1º, I, p [...]. Segundo pensamos, esta sanção constitui efeito anexo da sentença condenatória fixada na ação por doação acima do valor legal.
Em sentido oposto, José Jairo Gomes (2011, p. 194), mesmo de modo superficial, afirma que a inelegibilidade não decorre automaticamente da imposição de multa ao doador, que “não se trata, pois de efeito secundário da sentença. Ela deve resultar de decisão autônoma, em processo jurisdicional que tenha observado o rito do art. 22 da LC nº 64/90”. Qual seria o processo autônomo capaz de reconhecer a inelegibilidade? A Ação de Investigação Judicial Eleitoral. Nessa linha, a qual nos filiamos, Olivar Coneglian explica:
[...] se a interpretação for de que, condenado o doador a pagar a multa, pode ser-lhe também imposta a inelegibilidade, então essa imposição depende de fundamentação CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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e não é automática, funcionando como efeito secundário da condenação. Não sendo automática, e devendo ser fundamentada, pode não ser aplicada, se a gravidade da conduta do agente não levar a tanto. [...] Como, em tese, a conduta ilícita da doação pode levar à decretação da inelegibilidade, a referência ao art. 22 da LC 64/90 deixa de ser apenas escolha de um rito já existente, para se tornar verdadeiramente uma ‘investigação judicial eleitoral’, em toda sua carga e com todas as suas consequências (CONEGLIAN, 2014).
Da interpretação do texto legal, vê-se que ao julgar procedente a demanda, isto é, decidir pela aplicação da multa, caberá ao julgador, ainda, declarar a inelegibilidade do infrator e de quantos hajam contribuído para o ilícito, inclusive, o candidato. Para tanto, exige-se o exame da gravidade das circunstâncias que caracterizam o ato ilícito, que nada mais é do que pura aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade. Explicam Peleja Júnior e Batista (2014, p. 128) que “o princípio da razoabilidade ou proporcionalidade objetiva verificar a justa medida entre a adequação e a necessidade, entre meios e fins”, fundamentados na lição de Gilmar Mendes (apud PELEJA JÚNIOR; BATISTA, 2014, loc. cit.), segundo a qual,
os meios utilizados pelo legislador devem ser adequados e necessários à consecução dos fins visados. O meio é adequado se, com a sua utilização, o evento pretendido pode ser alcançado; é necessário se o legislador não dispõe de outro meio eficaz, menos restritivo aos direitos fundamentais.
Vejamos a redação dos incisos, XIV e XVI do art. 22 da Lei Complementar nº 64/90:
Art. 22. [...] XIV – julgada procedente a representação, ainda que após a proclamação dos eleitos, o Tribunal declarará a inelegibilidade do representado e de quantos hajam contribuído para a prática do ato, cominando-lhes sanção de inelegibilidade para as eleições a se realizarem nos 8 (oito) anos subsequentes à eleição em que se verificou, além da cassação do registro ou diploma do candidato diretamente beneficiado pela interferência do poder econômico ou pelo desvio ou abuso do poder de autoridade ou dos meios de comunicação, determinando a remessa dos autos ao Ministério Público Eleitoral, para instauração de processo disciplinar, se for o caso, e de ação penal, ordenando quaisquer outras providências que a espécie comportar; [...] XVI – para a configuração do ato abusivo, não será considerada a potencialidade de o fato alterar o resultado da eleição, mas apenas a gravidade das circunstâncias que o caracterizam.
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A exegese sobre a norma parte exatamente da exigência imposta na alínea p do inciso I do art. 1º da Lei das Inelegibilidades, quanto ao seguimento do procedimento do art. 22 da mesma Lei, que somente se encerra e pode ser considerado cumprido com a expedição do decreto condenatório, que possui como requisito, após o julgamento procedente, a declaração de inelegibilidade, levando-se em consideração a gravidade da conduta. Sabe-se que os dispositivos tratam do abuso de poder, mas entendemos que podem e devem ser aplicados às representações pela doação eleitoral irregular, porque, de modo semelhante à ação de investigação judicial eleitoral, visa-se “impedir o abuso do poder econômico e proteger a igualdade entre os candidatos e a higidez das campanhas eleitorais. Busca-se, com essa norma, assegurar a legitimidade, transparência e moralidade da disputa eleitoral [...]” (ESMERALDO, 2012). E isto é totalmente possível, porquanto aceitável nas representações com fundamento nos arts. 30-A, 41-A e 73 e ss, da Lei das Eleições, cujo julgamento procedente com imposição de inelegibilidade decorre do exame da proporcionalidade e da razoabilidade sobre a conduta típica, como exigido pela alínea j do inciso I do art. 1º da LI.
Art. 1º São inelegíveis: I - para qualquer cargo: [...] j) os que forem condenados, em decisão transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado da Justiça Eleitoral, por corrupção eleitoral, por captação ilícita de sufrágio, por doação, captação ou gastos ilícitos de recursos de campanha ou por conduta vedada aos agentes públicos em campanhas eleitorais que impliquem cassação do registro ou do diploma, pelo prazo de 8 (oito) anos a contar da eleição;
Sobre a hipótese de inelegibilidade acima, vale trazer os comentários de José Jairo Gomes e de Rodrigo López Zílio, respectivamente:
Só há geração de inelegibilidade se houver efetiva cassação de registro ou de diploma. E, ainda, se os fatos forem graves. A aplicação isolada de multa não acarreta inelegibilidade. Atende-se com isso ao princípio constitucional de proporcionalidade, pois se se entender como adequada tão só a aplicação de multa, a conduta considerada certamente terá pouca gravidade. Nesse caso, a lesão ao bem jurídico não é de tal gravidade que justifique a privação da cidadania passiva [...] (GOMES, 2011, 176) (grifo nosso). [...] Deve-se ponderar que somente quando a sanção originária das representações específicas (arts. 30-a, 41-a, 73, 74, 75 ou 77 da lei nº 9.504) veicular cassação do registro ou do diploma é que é possível perquirir da inelegibilidade octonal. Neste diapasão não incide a inelegibilidade sob comento quando a representação por conduta vedada prevista no art. 73 da lei nº CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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6.504/97, com base no princípio da proprocionalidade, aplicar apenas a sanção de multa [...] (ZÍLIO, 2012, 203) (grifo nosso).
Observemos que para o candidato, flagrado pelo recebimento de doação eleitoral ilícita ou que tenha executado gastos irregulares na campanha, é garantido o exame da gravidade, por aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade, a fim de que se afaste a punição de cassação de registro ou diploma e, consequentemente, a inelegibilidade.
ELEIÇÕES 2010. RECURSO ORDINÁRIO. REPRESENTAÇÃO. ART. 30-A DA LEI N. 9.504/97. CAPTAÇÃO OU GASTO ILÍCITO DE RECURSOS. DEPUTADO ESTADUAL. DOAÇÃO DE FONTE VEDADA. CONCESSIONÁRIA. ART. 24, III, DA LEI Nº 9.504/97. NÃO CARACTERIZAÇÃO. PESSOA JURÍDICA QUE É MERA ACIONISTA DA EMPRESA QUE EFETIVAMENTE CONTRATOU COM O PODER PÚBLICO. DOAÇÃO QUE REPRESENTA APENAS 5,4% DO TOTAL DOS RECURSOS ARRECADADOS. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. PRECEDENTES. PROVIMENTO. 1. In casu, embora tenha sido a empresa doadora que participou do processo licitatório para a exploração de serviço público, temse que, antes mesmo da assinatura do contrato, transferiu para subsidiária todos os direitos e obrigações da concessão, não figurando, portanto, como contratada, o que afasta a vedação do art. 24, III, da Lei nº 9.504/97, cuja interpretação é estrita. 2. Ademais, a doação questionada representa apenas 5,4% do total de recursos financeiros de campanha arrecadados, atraindo, assim, a incidência dos princípios constitucionais da proporcionalidade e da razoabilidade, os quais recomendam não seja aplicada a grave sanção de cassação do diploma. 3. Recurso ordinário provido. (TSE, RO nº 581 - Goiânia/GO. Acórdão de 05/08/2014. Relator(a) Min. LUCIANA CHRISTINA GUIMARÃES LÓSSIO. Publicação: DJE, Tomo 154, Data 20/08/2014, Página 71) (grifo nosso).
Nos casos que apurem doações eleitorais em excesso, o Colendo TSE e diversos autores têm aceitado a aplicação do princípio da proporcionalidade e da razoabilidade apenas em relação à fixação do quantum da multa e, em alguns casos, também para as penalidades impostas às pessoas jurídicas de proibição de participar de licitações e de celebrar contratos com o poder público. Sobre esse particular, assim tem entendido o Tribunal Superior Eleitoral, quando se trata de doação por pessoa física:
AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. DOAÇÃO ACIMA DO LIMITE LEGAL. PESSOA FÍSICA. AUSÊNCIA DE IMPUGNAÇÃO ESPECÍFICA. PRAZO DE 180 DIAS, CONTADOS A PARTIR DA DIPLOMAÇÃO. LICITUDE DA PROVA. AUSÊNCIA DE PREQUESTIONAMENTO. REEXAME. VIOLAÇÃO AO ART. 150, IV, DA CF. AFASTADA. PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE E DA
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RAZOABILIDADE. MULTA INFERIOR AO MÍNIMO LEGAL. IMPOSSIBILIDADE. DESPROVIMENTO. [...] 5. A jurisprudência desta Corte firmou-se pela impossibilidade de aplicação da sanção em valor inferior ao mínimo legal, estando a aplicação dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade adstrita aos limites mínimo e máximo estabelecidos em lei. [...] (TSE, AgR-REspe nº 54915 - Cuiabá/MT. Acórdão de 27/03/2014. Relator(a) Min. JOSÉ ANTÔNIO DIAS TOFFOLI. Publicação: DJE, Tomo 86, Data 12/05/2014, Página 476) (grifo nosso).
Nos casos de doações realizadas por pessoas jurídicas:
DOAÇÃO - SANÇÕES - ARTIGO 81, PARÁGRAFOS 2º E 3º, DA LEI Nº 9.504/1997 - AUSÊNCIA DE CUMULATIVIDADE OBRIGATÓRIA. As sanções previstas no artigo 81 da Lei nº 9.504/1997 não são cumulativas, podendo haver a aplicação apenas de multa, considerados os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. Precedente: Agravo Regimental no Recurso Especial Eleitoral nº 32841, Relator Ministro Castro Meira. (TSE, AgR-REspe nº 62406 - Arapiraca/AL. Acórdão de 22/10/2013. Relator(a) Min. MARCO AURÉLIO MENDES DE FARIAS MELLO. Publicação: DJE, Tomo 230, Data 3/12/2013, Página 30) (grifo nosso).
Rodrigues e Jorge (2014, p. 367), aceitam a aplicação do juízo de proporcionalidade e de razoabilidade apenas para a sanção pecuniária121, nos seguintes termos:
Quando se tratar de doador pessoa física, a sanção prevista pelo legislador é de multa, podendo variar entre 5 a 10 vezes a quantia doada em excesso. O preciso quantum poderá ser o máximo [...], o mínimo [...], ou ainda um outro valor que esteja entre o mínimo e o máximo dependendo do juízo de proporcionalidade e razoabilidade segundo o cotejo de elementos da causa como dolo, culpa etc. [...] [...] De outra parte, quando o doador é uma pessoa jurídica, a sanção – também determinada pelo legislador – constitui a imposição multa e as obrigações de não fazer. Aqui concessa maxima venia, o entendimento que vem sido sufragado pelo TSE, as sanções são cumulativas, sendo expressa a vontade do legislador nesse sentido. Enfim, análise sob o viés da proporcionalidade e razoabilidade, como no caso anterior de pessoas físicas, só deve ser feito para a aferição do valor da multa e desde que entre os limites máximo e mínimo fixados pela lei. [...]
Imaginemos a seguinte situação. Uma determinada empresa doa para um candidato a quantia de R$ 100.000,00 (cem mil reais), mas, na verdade, só poderia ter doado R$ 99.000,00 (noventa e nove mil), ou seja, com excesso de R$ 1.000,00 (mil reais). Julgando-se procedente a representação eleitoral, aplicando-se o princípio da proporcionalidade e da razoabilidade nos moldes atualmente definidos pelo TSE, ser-lhe-ia 121
Em contraponto, concordando in totum com a posição adotada pelo egrégio TSE: LULA (2014, p. 641), PELEJA JÚNIOR; BATISTA (2014, p. 285 et seq) e ESMERALDO (2012, p. 223). CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO - REVISTA A BARRIGUDA
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imposta multa no valor mínimo de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), mas seus dirigentes responsáveis pela doação considerada irregular estar-se-iam inelegíveis, caso pretendessem disputar alguma eleição. Como visto anteriormente, o mesmo não ocorreria com o candidato beneficiário pela doação irregular, porque, para ele, o TSE entende ser possível, pela aplicação da proporcionalidade afastar a cassação de registro e a inelegibilidade que decorria da condenação. Veja-se que a irregularidade comentada se deu em apenas 1% (um por cento) e, no caso paradigma, o TSE deixou de punir um candidato porque a irregularidade perfez o montante aproximado de 5% (cinco por cento). O quanto mais grave e prejudicial ao pleito é a realização de uma doação que ultrapasse em ínfimos 1% (um por cento) o limite legal, por pessoa física ou jurídica, do que o recebimento da mesma doação irregular pelo candidato? Parece-nos ser possível ao candidato manter a inaceitável prática de “caixa dois” desde que em parâmetros razoáveis de até 5% (cinco por cento), mas à pessoa física e jurídica deve ser imposto maior rigor. Não penso ser esse o entendimento que mereça prevalecer. Entre nós, pensamos ser necessário evoluir a jurisprudência para aceitar que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade sejam aplicados com maior alcance nas representações por doações eleitorais acima do valor legal, promovendo o exame da gravidade da conduta do doador, em cumprimento ao disposto no art. 22, XIV e XVI, sob pena, inclusive, de nulidade do processo. Afinal, seguir o procedimento previsto no indigitado artigo, não se resume ao cumprimento das fases e prazos para apresentação de defesa, realização da audiência para inquirição das testemunhas, promoção de diligências, apresentação de alegações finais. Seguir o rito, nesse caso, é também fundamentar a sentença condenatória de modo fundamentado, conferindo eficácia máxima aos preceitos de proporcionalidade e razoabilidade, para além da quantificação da sanção pecuniária, promovendo exame da gravidade da conduta ilícita do doador, a fim de afastar ou declarar-lhe a inelegibilidade, que futuramente poderá ser incurso em processo de registro de candidatura.
5 CONCLUSÃO
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A presença em massa de capital privado nas campanhas eleitorais deve ser tratada com bastante atenção pelo legislador eleitoral, que, inclusive previu a possibilidade da temporariedade através de recursos originados de pessoas jurídicas, no art. 79 da Lei das Eleições, a fim de garantir sempre a proteção à probidade administrativa, à moralidade para o exercício do mandato, à normalidade e legitimidade das eleições, emanada na Constituição Federal contra o abuso de poder político e econômico. Como mecanismo de atenuação à influência do capital sobre os pleitos, a consideração das fontes vedadas e a imposição de limites às doações realizadas por pessoas físicas e jurídicas podem funcionar de modo eficaz, mas é necessário aperfeiçoamento dos sistemas de controle e sancionamento. As alterações legislativas e de posicionamento dos tribunais passaram a punir com maior rigor tanto os candidatos condenados por abuso de poder econômico, como os responsáveis por doações ilegais. Mas não basta punir por punir ou penalizar em excesso, marginalizando preceitos fundamentais que somente podem sofrer restrições se não houver outro meio eficaz. Verificamos divergência jurisprudencial e doutrinária quanto ao procedimento a ser adotado para averiguação da doação irregular e aplicação de sua correspondente punição, apesar de já pacificado pelo próprio TSE que deva ser utilizado o procedimento previsto no art. 22 da Lei Complementar nº 64/90. Assim, com o fito de garantir verdadeira proteção à legitimidade e à normalidade das eleições, valores caros ao Estado Democrático de Direito, pensamos que o procedimento prescrito no art. 22 da LI, para ser considerado atendido em sua totalidade, culminando na declaração de inelegibilidade do doador, deve examinar a gravidade da conduta, em estreita homenagem ao devido processo legal, a ampla defesa e o contraditório, a proporcionalidade e a razoabilidade entre a conduta ilícita e o a sanção a ser imposta. Isto, também, para haver harmonização entre o tratamento dispensado aos candidatos, destinatários das doações, que se processados com fundamento no art. 30-A da LE, ante a realização de arrecadação e/ou gastos ilícitos na campanha eleitoral, somente se sujeitarão ao cancelamento do registro ou perda do diploma e tornar-se-ão inelegíveis se a conduta for grave o suficiente para macular o pleito.
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Neste diapasão, reforça-se que enxergamos como cabível a aplicação dos princípios da proporcionalidade e razoabilidade em seu grau máximo de eficiência, para que a gravidade da conduta deva influenciar na futura declaração de inelegibilidade.
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