ANAIS DA I ARTICULAÇÃO UNIVERSITÁRIA DE DIREITOS HUMANOS
COMISSÃO CIENTÍFICA Admilson Leite de Almeida Júnior Ana Carla Gomes de Abrantes Eduardo Jorge Pereira de Oliveira Eduardo Pordeus Silva Herry Charriery da Costa Santos
Iranilton Trajano da Silva Jardel de Freitas Soares Maria de Lourdes Mesquita Reginaldo Pereira França Júnior
1º EDIÇÃO
REVISTA CIENTÍFICA
ANAIS DA I ARTICULAÇÃO UNIVERSITÁRIA EM DIREITOS HUMANOS
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE Editor-chefe da Associação da Revista Eletrônica a Barriguda - AREPB
ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br
CONSELHO EDITORIAL Adilson Rodrigues Pires André Karam Trindade Alessandra Correia Lima Macedo Franca Alexandre Coutinho Pagliarini Arali da Silva Oliveira Bartira Macedo de Miranda Santos Belinda Pereira da Cunha Carina Barbosa Gouvêa Carlos Aranguéz Sanchéz Dyego da Costa Santos Elionora Nazaré Cardoso Fabiana Faxina Gisela Bester Glauber Salomão Leite Gustavo Rabay Guerra Ignacio Berdugo Gómes de la Torre Jaime José da Silveira Barros Neto Javier Valls Prieto, Universidad de Granada José Ernesto Pimentel Filho Juliana Gomes de Brito Ludmila Albuquerque Douettes Araújo Lusia Pereira Ribeiro Marcelo Alves Pereira Eufrasio Marcelo Weick Pogliese Marcílio Toscano Franca Filho Olard Hasani Paulo Jorge Fonseca Ferreira da Cunha Raymundo Juliano Rego Feitosa Ricardo Maurício Freire Soares Talden Queiroz Farias Valfredo de Andrade Aguiar Vincenzo Carbone
DIRETÓRIO ACADÊMICO ANTÔNIO MARIZ ORGANIZAÇÃO
ADMILSON LEITE DE ALMEIDA JUNIOR ANA CARLA GOMES DE ABRANTES EDUARDO JORGE PEREIRA DE OLIVEIRA EDUARDO PORDEUS SILVA HERRY CHARRIERY DA COSTA SANTOS IRANILTON TRAJANO DA SILVA JARDEL DE FREITAS SOARES MARIA DE LOURDES MESQUITA REGINALDO PEREIRA FRANÇA JUNIOR COMISSÃO CIENTÍFICA
ANAIS DA I ARTICULAÇÃO UNIVERSITÁRIA DE DIREITOS HUMANOS
1ª EDIÇÃO
ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB
2018
©Copyright 2018 by
Organização do Livro DIRETÓRIO ACADÊMICO ANTÔNIO MARIZ Comissão Científica ADMILSON LEITE DE ALMEIDA JUNIOR ANA CARLA GOMES DE ABRANTES EDUARDO JORGE PEREIRA DE OLIVEIRA EDUARDO PORDEUS SILVA HERRY CHARRIERY DA COSTA SANTOS IRANILTON TRAJANO DA SILVA JARDEL DE FREITAS SOARES MARIA DE LOURDES MESQUITA REGINALDO PEREIRA FRANÇA JUNIOR Capa ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE Editoração ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação ESTHER MARIA BARROS DE ALBUQUERQUE LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Data de fechamento da edição: 06-07-2018
A994a
Mariz, Diretório Acadêmico Antônio. Anais da I articulação universitária de direitos humanos. 1ed. / Coordenação, Kelvin Wesley de Azevedo. Organizadores, Admilson Leite de Almeida Júnior, Ana Carla Gomes de Abrantes, Eduardo Jorge Pereira de Oliveira, Eduardo Pordeus Silva, Herry Charriery da Costa Santos, Iranilton Trajano da Silva, Jardel de Freitas Soares, Maria de Lourdes Mesquita, Reginaldo Pereira França Júnior. – Campina Grande: AREPB, 2018. 187 f. ISBN 978-85-67494-30-2 1. Movimentos Sociais. 2. Direitos Reprodutivos. 3. Direitos Humanos. I. Mariz, Diretório Acadêmico Antônio. II. Título. CDU 34
O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.
Ficha Catalográfica Elaborada pela Direção Geral da Revista Eletrônica A Barriguda - AREPB Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.
O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural “A Barriguda”, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito.
A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais.
Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural.
Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.
Acesse a Biblioteca do site www.abarriguda.org.br
APRESENTAÇÃO Este livro reúne os resumos expandidos produzidos pelos pesquisadores e pesquisadoras participantes da I Articulação Universitária de Direitos Humanos, com tema: A Criminalização dos Movimentos Sociais, realizada nos dias 14 e 15 de Junho de 2018, na Universidade Federal de Campina Grande, em Sousa – PB. O evento foi pensado como uma oportunidade para estreitar as relações entre alunos(as) e professores(as) do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal de Campina Grande e de outras instituições de ensino superior, seja na participação como pesquisador(a), ouvinte, ou até mesmo como debatedores das mesas redondas, palestrantes e avaliadores dos grupos de trabalho, sendo esse último idealizado de modo a incentivar a pesquisa e produção científica na academia, contribuindo com a difusão do conhecimento. Além disso, queremos destacar que foi imprescindível a atuação coletiva na organização deste evento, que contou com a participação de alunos(as) e professores(as) dos cursos de Direito e Serviço Social, união fundamental para que tudo deixasse de ser apenas um sonho por parte dos idealizadores e saísse do papel, tornando-se algo concreto. Além de uma comissão organizadora geral, foram constituídas outras cinco comissões, formadas por estudantes e professores, responsáveis pelo controle de inscrições, formação dos grupos de trabalho, avaliação dos resumos expandidos, pela divulgação e comunicação, infraestrutura e patrocínio, bem como pelo controle de frequência e emissão de certificados. Foram realizadas inúmeras reuniões das comissões para o planejamento e a execução de diversas tarefas. Contudo, entre tantas atividades, uma fundamental foi a definição dos eixos temáticos e a composição dos grupos de trabalho, que deveriam permitir o diálogo entre estudantes e professores vinculados às diferentes linhas de pesquisa dos programas de graduação e pós graduação, evitando-se a formação de grupos que reunissem somente trabalhos específicos de um único campo disciplinar.
Sendo assim, queremos registrar que no livro os resumos expandidos estão reunidos de acordo com os grupos temáticos, que são: GT 1 – Movimentos Sociais e a Legislação Brasileira, GT 2 – Direitos Reprodutivos e GT 3 – Direitos Humanos sob a perspectiva do Direito Penal. Embora todos os trabalhos apresentados sejam de alunos(as) do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais da Universidade Federal de Campina Grande, o evento é aberto a toda a comunidade acadêmica e a sociedade em geral, reforçando os laços entre o ensino, a pesquisa e a extensão, que são os pilares estruturantes do processo de produção de conhecimento na academia. Que as pesquisas aqui reunidas possam trazer inúmeros frutos, ideias e ações para cada um de vocês. Preparamos tudo com o carinho, zelo e empenho que merecem. Estamos orgulhosos da proporção que tudo tomou e gratos pela confiança de cada um que buscou participar. Esperamos que tenhamos conseguido corresponder às expectativas de cada um(a). Um forte abraço!
KELVIN WESLEY DE AZEVEDO COORDENADOR CIENTÍFICO
SUMÁRIO GRUPOS DE TRABALHO I - Movimentos Sociais e a Legislação BrasileiraErro! definido.0
Indicador
não
1 - Ciberativismo e movimentos sociais: o enfrentamento à violação dos direitos humanos na internet.......................................................................................................................................... 101 2 - Reforma Trabalhista: a inconstitucionalidade do fim da contribuição sindical obrigatória e o desmantelamento dos movimentos sindicais ................................................................................. 190 3 - O protagonismo de grupos vulnerabilizados no legislativo: as cotas partidárias como um instrumento de agravo da situação da mulher na política ................................................................. 28 4 - As contribuições da literatura para o dimensionamento do princípio da vedação ao retrocesso social e o aperfeiçoamento do direito à memória e à verdade ........................................................ 367 5 - Lei de migração brasileira: análise jurídiica à luz da constituição federal de 1988 ....................... 456 6 - Movimento negro: abordagem sociojurídica do contexto protetivo das garantias fundamentais das crianças e adolescentes na comunidade remanescente quilombo do livramento ..................... 523 7 - A criminalização dos movimentos sociais como herança da ditadura militar no brasil ................ 612 8 - Identidade de gênero: demonização ou desinformação em projeto de lei municipal de sousa, pb. ...................................................................................................................................................... 690 9 - O histórico do movimento LGBT e a “cura gay” no brasil ........................................................... 756
GRUPOS DE TRABALHO II - Direitos Reprodutivos ................................................................ 84 1 - Planejamento familiar como direito fundamental...................................................................... 855 2 - O direito à informação frente à omissão estatal quanto a violência obstétrica ........................... 922 3 - Garantia de planejamento para famílias homoparentais: apontamentos a cerca dos direitos reprodutivos dos homossexuais ....................................................................................................1011 4 - A problemática do aborto do ponto de vista legal e a mendacidade da legisção ........................................ 1100
GRUPOS DE TRABALHO III - Direitos Humanos sob a Perspectiva do Direito PenalErro! Indicador não definido.17 1 - A ineficácia do poder estatal frente ao sistema penitenciário potiguar: um estudo acerca das violações aos direitos humanos no presídio de alcaçuz ............................................................... 12019 2 - Princípio da presunção de inocência: impasse entre a dignidade da pessoa humana e a prisão antes do trânsito em julgado ........................................................................................................ 1298 3 - Encarcerados e ultrajados: uma análise jurídica sobre a responsabilidade civil do estado no direito brasileiro e o dever de indenizar os presidiários submetidos a condições degradantes ..................1376 4 - Análise dos princípios do direito penal e processual penal sob uma pespectiva constitucional dos direitos humanos ......................................................................................................................... 1454 5 - Contribuições da adi 4.275 para a ressignificação do conceito de mulher no direito brasileiro e abrangência da lei nº 13.104/2015 ................................................................................................ 1543 6 - A importância da garantia dos direitos humanos ao policial militar em serviço em face da ineficiência do estado no cumprimento da tutela do direito penal brasileiro ................................ 1632 7 - Direitos humanos s~o “direitos dos manos”? An|lise face { referência aos direitos humanos no acervo monográfico do ccjs como aspecto de inclusão penal ..................................................... 17069
8 - A inconsitucionalidade do mandado de busca e apreensĂŁo coletivo frente Ă garantia fundamental da inviolabilidade do lar ............................................................................................................. 18079
GRUPOS DE TRABALHOS I (GT I)
MOVIMENTOS SOCIAIS E A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA
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1 CIBERATIVISMO E MOVIMENTOS SOCIAIS: O ENFRENTAMENTO À VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS NA INTERNET RAFAELA ROCHA ARNAUD¹ EMÍLIA PARANHOS SANTOS MARCELINO²
RESUMO: O ciberativismo consiste em um conjunto de práticas utilizadas em defesa de causas de cunho político e social, tendo os movimentos sociais como maiores protagonistas de sua expansão. O presente trabalho pretende tratar acerca da importância dos movimentos sociais no enfrentamento à violação de direitos humanos na internet, prática essa cada vez mais recorrente nas redes sociais e disfarçada pelos seus autores como um direito à liberdade de expressão. Para realizar este trabalho, utilizou-se a revisão de literatura como metodologia, através da pesquisa qualitativa, além do método dedutivo e das técnicas de pesquisas bibliográfica e documental. Através do estudo, pôde-se perceber que o ciberativismo tem sido de grande importância para o enfrentamento à violação dos direitos humanos, mas que ainda há um longo caminho a ser trilhado. Conclui-se, assim, a relevância desse estudo, pois agrega dois grandes temas da atualidade: direitos humanos e movimentos sociais na internet.
Palavras-chave: Ciberativismo. Dever ético. Movimentos Sociais. Direitos Humanos.
INTRODUÇÃO
A internet é um instrumento de grande importância na atualidade, haja vista sua utilização na comunicação, exposição de notícias e mobilizações sociais. O ciberespaço ainda é um assunto recente para o ser humano que, através da rede mundial de computadores, aumentou a dimensão de comunicação e criou a realidade de uma vida virtual. Para além do mundo real, as mobilizações sociais ganharam espaço na virtualidade através do ciberativismo, o qual consiste em um conjunto de práticas que visam enfrentar a disseminação de discursos de ódio e qualquer espécie de afronta aos direitos humanos. ~ 11 ~
O que motivou a realização deste trabalho foi o crescimento notório de ciberativistas na internet que buscam, através dos debates políticos, questionar atitudes e discursos preconceituosos e intolerantes presentes na sociedade civil, seja no mundo físico ou virtual. Dado o crescimento tecnológico nos últimos anos, a comunicação está cada vez mais rápida entre os usuários, de modo que o anonimato é capaz de gerar uma série de atitudes criminosas no ciberespaço, distanciando a ética do conjunto de práticas presente nas redes sociais. A importância desse trabalho circunda na esfera dos direitos humanos e ciberativismo, uma vez que são definidos como temas atuais e de grande relevância. Isso, porque as práticas realizadas no mundo virtual são cada vez mais corriqueiras, todavia, pouco tratadas no ambiente acadêmico, tendo em vista a dificuldade que encontramos em buscar trabalhos sobre o referido tema. O objetivo da pesquisa é analisar a importância do ciberativismo como ferramenta de combate aos discursos de ódio e violação aos direitos humanos disseminados no mundo virtual e evidenciar o surgimento e expansão dos movimentos sociais na rede mundial de computadores, como forma de agregar os diferentes setores da sociedade em busca de lutas e direitos iguais para todos.
Desenvolvimento I. Ciberespaço e o dever ético dos usuários
Antes de tratar acerca do ciberativismo e da sua influência nos movimentos sociais do Brasil, é importante entender o que é o ciberespaço, como ele surgiu e qual o dever ético dos seus usuários. Para isso, utilizaremos o conceito de Pierre Lévy (2005, p. 17):
O ciberespaço (que também chamarei de ‘rede’) é o novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo.
O ciberespaço está, pois, além de uma dimensão física, onde os seres humanos são capazes de se comunicar facilmente e onde quer que estejam através de um único ~ 12 ~
instrumento: a internet. De acordo com Kolb, Esterbauer e Ruckenbauer (2001), a internet surgiu em 1983 e foi fruto da pesquisa militar norte-americana. Alguns anos depois, em 1991, a internet ganhou uma maior proporção, continuou a ser desenvolvida pelos cientistas e foi utilizada na Guerra do Golfo para fins de segurança dos Estados Unidos na guerra contra o Iraque. Hoje, todavia, a internet não está sendo utilizada apenas para funções de segurança, mas, principalmente, para a comunicação dos seres humanos entre si. Nesse sentido, cabe tratar sobre o dever ético que deve existir no espaço virtual, tendo em vista que – por trás das telas dos computadores e smartphones – existem pessoas que amam, falam, se angustiam e que continuam essencialmente seres humanos, como ressalta Nalini (2016). Nalini (2016), tendo em vista algumas recomendações realizadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, aponta cinco focos a serem seguidos pelos usuários, quais sejam: precaução, privacidade, segurança, respeito e orientação. A precaução é o primeiro objetivo a ser considerado, tendo em vista a grandiosidade do ciberespaço e a velocidade na qual as notícias se propagam; a privacidade é outro ponto importante, pois – devido ao anonimato existente na internet – dados, senhas e informações pessoais se tornam cada vez mais frágeis; o terceiro ponto é a segurança que deve ser zelada pelos usuários, evitando expor suas localizações ou fotos e vídeos da vida intíma em redes sociais públicas; o respeito, por sua vez, é um item essencial a todos, pois através dele, os usuários respeitariam a individualidade e os direitos do próximo; por fim, tem-se a orientação que deve ser repassada pelos pais e educadores desde cedo, como forma de preservar todos os pontos anteriores. Reunidas, tais recomendações – de acordo com Nalini (2016) – formam a chamada postura ética virtual formada por regras triviais que são, na maioria das vezes, esquecidas quando nos conectamos ao ciberespaço.
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II. Liberdade de expressão ou discurso de ódio?
Por não ser um espaço territorializado, o ciberespaço abarca seres humanos de diferentes idades, raças, gêneros, ideias, nacionalidades, convicções, religiões e culturas. As diferenças acabam por gerar conflitos nas redes sociais, de forma que o respeito, a ética e as boas regras de convivência deixam de existir, dando espaço à intolerância e aos discursos de ódio disseminados por alguns usuários. Em uma análise conceitual, o discurso de ódio poderia ser definido como a utilizaç~o de palavras “que tendem a insultar, intimidar ou assediar pessoas em virtude de sua raça, cor, etnicidade, nacionalidade, sexo ou religi~o”, podendo ser também considerado como a “capacidade de instigar violência, ódio ou discriminaç~o contra tais pessoas” (BRUGGER, 2007, p. 151). A opinião pessoal e a violação aos direitos humanos são separadas, pois, por uma linha tênue entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio, de modo que a opinião do indivíduo deixa de ser um direito garantido quando atinge a integridade moral do próximo, gerando o desrespeito a dois dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil que encontram-se elencados no art. 3º, incisos I e IV que são respectivamente: “construir uma sociedade livre, justa e solid|ria” e “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminaç~o” (BRASIL, 1988). As dificuldades encontradas no ciberespaço dizem respeito ao anonimato das pessoas inseridas nas redes sociais que, por não ter seu nome e rosto facilmente identificados, sentem-se no direito de compartilhar discursos que cultuam o racismo, a homofobia, a xenofobia, o machismo, entre outras formas de preconceito e discriminação. Segundo pesquisa realizada pelo projeto Comunica que Muda, presente no Dossiê “Intolerâncias Visíveis e Invisíveis no Mundo Digital” (2016), entre abril e junho do ano de 2016, 84% das postagens sobre racismo, posicionamento político e homofobia apresentam uma abordagem negativa do assunto, geralmente relacionada às diversas formas de discriminação. As pessoas com deficiência também são vítimas dos discursos de ódio presentes nas redes sociais, tendo em vista que – das 40.801 ~ 14 ~
mensagens captadas pela pesquisa – 93,4% são de cunho negativo (COMUNICA QUE MUDA, 2016). Dos 27 estados do Brasil, a pesquisa supracitada apontou o Rio de Janeiro como o estado com maior número de citações intolerantes, enquanto São Paulo e Minas Gerais ocupam o segundo e terceiro lugar do ranking citado na pesquisa do Projeto Comunica que Muda (2016). É possível concluir, através da pesquisa, que o Brasil reflete no ciberespaço um país de pessoas intolerantes, traduzindo-se como um país tradicionalista, conservador e preconceituoso. A seguir, é possível conferir dados retirados do dossiê “Intoler}ncias visíveis e invisíveis no mundo digital” produzido pelo projeto supracitado:
QUADRO I – Temas mencionados na internet e respectivos percentuais de menções negativas
Fonte: Dossiê “Intoler}ncias visíveis e invisíveis no mundo digital” do projeto Comunica que Muda (2016). Reiterando os dados acerca das menções negativas, faz-se importante citar o relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Senado Federal sobre o Assassinato de Jovens – cujo relator foi Lindbergh Farias – que dispõe que a cada 23 ~ 15 ~
minutos, um jovem negro é assassinado no país (BRASIL, 2016). Além disso, conforme pesquisa disposta no 9° Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2015) – o qual foi realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública – a cada 11 minutos, uma mulher é estuprada em nosso país. Tais dados apenas ratificam a situação de intolerância na qual os brasileiros convivem diariamente, seja na internet através do ciberbullying ou no mundo físico, onde assassinatos e estupros consistem em situações corriqueiras.
III. A inserção dos movimentos sociais na rede e o surgimento do ciberativismo
Com a expansão da rede mundial de computadores, os movimentos sociais também ganharam uma maior visibilidade, fazendo surgir o ciberativismo que, segundo afirma Silveira (2010, p. 31), pode ser definido como “um conjunto de práticas em defesa de causas políticas, socioambientais, sociotecnológicas e culturais, realizadas nas redes cibernéticas, principalmente na Internet.”. O ciberativismo surgiu em meados de 1990, sendo protagonizado pelo Movimento Zapatista que, com consenso na doutrina, é considerado o marco inicial do ativismo na rede mundial de computadores. Os benefícios trazidos pela internet são muitos, em especial, para os movimentos sociais, haja vista a facilidade da comunicação e o maior número de pessoas que são atingidas pelas mobilizações. Como exemplo de movimentos sociais que aconteceram através do ciberativismo, podemos citar a Primavera Árabe (2011) e os protestos contra o valor das passagens de ônibus no Brasil (2013). Além de mobilizações realizadas por grandes massas, vale ressaltar os discursos realizados pela paquistanesa Malala Yousafzai que, aos 17 anos de idade, foi capaz de agregar milhares de pessoas à sua luta pelos direitos das mulheres, tendo como principal fonte de divulgação o uso da internet. Podemos, por fim, citar a mobilização social ocorrida, no ano de 2018, em solidariedade à luta protagonizada pela socióloga, feminista, militante dos direitos humanos e vereadora do Rio de Janeiro: Marielle Franco. Assassinada em 14 de março de 2018, a morte de Marielle encontra-se até o momento impune e sem respostas. No entanto, diversos movimentos utilizaram-se das redes sociais para mostrar indignação ~ 16 ~
e repúdio à morte da ex-vereadora, demonstrando assim mais um exemplo de ciberativismo. O ambiente virtual foi também utilizado, recentemente, para propagar informações – verdadeiras e falsas – acerca de um movimento social realizado por caminheiros e entidades autônomas que protestavam, principalmente, pelo reajuste do valor dos fretes e o preço dos combustíveis.
IV. Regulamentação legal no Brasil
Até o ano de 2012, não existia no Brasil regulamentação legal específica quanto aos cibercrimes (práticas criminosas realizadas no contexto online). Em 30 de novembro de 2012, sancionou-se a lei nº 12.737 – também conhecida como Lei Carolina Dieckmann – que dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos, quais sejam: invasão de dispositivo informático; interrupção ou perturbação de serviço telegráfico, telefônico, informático, telemático ou de informação de utilidade pública e falsificação de documento particular. Posteriormente, em 23 de abril de 2014, sancionou-se a lei nº 12.965, conhecida também como Marco Civil da Internet ou Constituição da Internet. A referida lei tem como objetivo principal estabelecer princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil, regulando as comunicações privadas, a atuação do poder público e a responsabilidade por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. É necessária, ainda, uma maior quantidade de políticas públicas na internet com a finalidade de garantir e colocar em prática os direitos previstos na Constituição Federal de 1988, Declaração Universal dos Direitos Humanos e nas leis supracitadas. Além disso, a prática do dever ético é de suma importância para que a convivência possa ser saudável entre os seres humanos, tanto no espaço físico como no espaço virtual.
Metodologia
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Este trabalho permeia-se na pesquisa social, nos parâmetros do método qualitativo delineado por Chizzotti (2005), a qual afirma que novos temas e problemas originários de classe, gênero, etnia, raça, culturas trazem novas questões teóricas e metodológicas aos estudos qualitativos. Relaciona-se, assim, a pesquisa social com o tema da expansão do ciberativismo bem como das violações aos direitos humanos nas redes sociais. A metodologia utilizada neste artigo consiste na revisão de literatura, tendo como objetivo analisar o ciberativismo com base em livros, artigos de periódicos, teses e documentos oficiais, especialmente, a Constituição Federal (1988), a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e as leis nº 12.737 de 2012 e 12.965 de 2014. Utilizou-se o método dedutivo, buscando entender o conceito de ciberespaço e quais os deveres éticos a serem praticados pelos usuários para, posteriormente, tratar acerca das violações dos direitos humanos, ciberativismo, movimentos sociais e regulamentação legal presente no Brasil. Por fim, empregaram-se as seguintes técnicas de pesquisa: bibliográfica, dado que o artigo foi realizado a partir do levantamento de referências teóricas, como livros e artigos e documental, tendo em vista as referências de revistas e documentos oficiais para o respaldo da pesquisa sobre o ciberativismo e a violação de direitos humanos.
Conclusões O desenvolvimento do presente trabalho possibilitou uma análise profunda sobre o ciberativismo no Brasil, pois busca entender o que é ciberespaço, como ocorrem as violações de direitos na internet e qual a importância dos movimentos sociais como forma de combate aos discursos de ódio propagados na internet por diversas pessoas. A partir da pesquisa realizada, pôde-se concluir que o ciberativismo ainda é uma prática bastante recente, tendo surgido em meados dos anos 90 e ganhando força, principalmente, a partir de 2010. Além disso, a pesquisa possibilitou um conhecimento mais aprofundado sobre a presença dos movimentos sociais na
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internet e as violações de direitos, mostrando que o Brasil pode ser considerado um país intolerante e preconceituoso. Os discursos de ódio, regados por racismo, machismo, homofobia, xenofobia, entre outras formas de preconceito, estão bastante presentes nas redes sociais – mesmo com a grande repercussão de movimentos sociais que buscam enfrentar tais ultrajes. Dessa forma, é necessário que se ofereça, além das regulamentações legais, uma educação basilar sobre o dever ético aos seres humanos que, antes de se tornarem usuários de internet, são pessoas que devem ser educadas de acordo com a ética e a moral. Portanto, faz-se essencial que o poder público tome providências em relação ao oferecimento de políticas públicas com a finalidade de assegurar os direitos e garantias proferidos pela Constituição Federal, Declaração Universal dos Direitos Humanos bem como pelas leis ordinárias supracitadas no referido trabalho.
Referências
9° ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo: Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2015. Disponível em: <http://www.forumseguranca.org.br/storage/9_anuario_2015.retificado_.pdf>. Acesso em: 08 jun. 2018. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988. 292 p. BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil. Brasília. 2014. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm>. Acesso em: 08 de jun. de 2018. BRASIL. Lei n° 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei n° 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 30 de Nov. 2012. BRASIL. Senado Federal. Comissão Parlamentar de Inquérito. Relatório final da CPI Assassinato de Jovens. Brasília. 2016. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/vejaa-integra-do-relatorio-da-cpi-do-assassinato-de-jovens. Acesso em: 11 nov. 2013. BRUGGER, Winfried. Proibição ou proteção do discurso do ódio?: algumas observações sobre o direito alemão e o americano. Direito Público, Porto Alegre, ano 4, n.15, p.117-136, jan./mar. 2007. CHIZZOTTI, Antonio. Pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais. Petrópolis: Vozes, 2006. DE ALCÂNTARA, Lívia Moreira. Ciberativismo e movimentos sociais: mapeando discussões. Aurora. Revista de Arte, Mídia e Política, v. 8, n. 23, p. 73-97, 2016. KOLB, Anton; ESTERBAUER, Reinhold; RUCKENBAUER, Hans-walter. Ciberética: responsabilidade em um mundo interligado pela rede digital. São Paulo: Loyola, 2001. LÉVY, Pierre. Cibercultura, traduzido por Carlos Irineu da Costa. 2ª ed., 5ª reimpressão. São Paulo: Editora 34, 2005. MUDA, Projeto Comunica Que (Org.). Dossiê Intolerâncias Visíveis e Invisíveis no Mundo Digital. São Paulo: Nova/SB, 2016. Disponível em: <http://www.comunicaquemuda.com.br/dossie/intolerancia-nasredes/>. Acesso em: 07 jun. 2018. ~ 19 ~
NALINI, José Renato. Ética Geral e Profissional. 13. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. SILVEIRA, Sergio Amadeu da. Ciberativismo, cultura hacker e o individualismo colaborativo. Revista USP, São Paulo, v.1, 2010, p. 28-39.
2 REFORMA TRABALHISTA: A INCONSTITUCIONALIDADE DO FIM DA CONTRIBUIÇÃO SINDICAL OBRIGATÓRIA E O DESMANTELAMENTO DOS MOVIMENTOS SINDICAIS
TALYSON MONTEIRO ALVES1 SARAH RAÉLYDA ALMEIDA FREIRE SANTOS2
RESUMO: Discussões acerca da reforma trabalhista (lei 13.467/2017) têm sido corriqueiras no âmbito nacional, especialmente, no que toca aos supostos vícios de legalidade, porém, tais discussões se limitam ao senso comum e não se difundem, com clareza, os processos sociais que incentivaram a aprovação dessa lei, nem as consequências dela frente ao movimento sindical. Posto isso, este resumo pretende explanar o assunto abordando o tema em suas principais questões, tanto no que concerne “{ nova guinada do conservadorismo”, quanto os reflexos na legislaç~o brasileira. Para realizar esse trabalho foi utilizado o método de pesquisa dedutivo e o tipo de pesquisa bibliográfica e documental. Palavras-Chave: Conservadorismo Brasileiro. Reforma Constitucional. Contribuição Sindical. Movimentos Sindicais.
Trabalhista.
Direito
Introdução
Historicamente os movimentos sociais sindicalistas uniram-se à esquerda política para fomentar os debates de uma pauta progressista acerca da efetivação das garantias trabalhistas. Todavia, a retomada do conservadorismo brasileiro tem reacendido os debates quanto a construção jurídica-social dos modelos de 1 2
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande ~ 20 ~
participação da política brasileira e a consequente influência disso no ordenamento jurídico pátrio. Neste contexto, o presente artigo traz como objetivo geral aprofundar as discussões em torno da reforma trabalhista e suas implicações para com a desarticulação movimentos sindicais, promovendo, para tanto, uma reflexão no que concerne a influência do pensamento conservador e os seus reflexos na legislação pátria. Já os objetivos específicos visam demonstrar a direta relação entre a inconstitucionalidade
do
fim
da
contribuição
sindical
obrigatória
e
o
desmantelamento dos movimentos sindicais. Quanto aos procedimentos metodológicos, almejando alcançar os objetivos propostos, adotou-se como método de pesquisa o dedutivo e o tipo de pesquisa bibliográfica e documental. O desenvolvimento do trabalho divide-se em três tópicos em que se busca, respectivamente, fazer um breve recorte histórico do surgimento dos movimentos sociais, elucidar os novos paradigmas do conservadorismo brasileiro e a marginalização dos movimentos esquerdistas e, por fim, tratar do reflexo da marginalização e sucateamento da política sindical promovida pela onda conservadora através da análise de dispositivos da reforma trabalhista.
Desenvolvimento I. Breve reflexão acerca dos movimentos sociais sindicalistas
Os movimentos sociais compreendem as ações coletivas realizadas por grupos determinados e que buscam obter, através da luta política, mudanças na sociedade que sanem as preocupações sociais. A revolução industrial no século XVIII foi o acontecimento percursor que fez surgir os primeiros movimentos sindicalistas, estes que, incialmente, se opunham à exploração excessiva e desumana da força de trabalho nas fábricas experimentadas nesse período. Acerca disso, leciona Rainer Gonçalves Sousa:
A baixa remuneração para o trabalho repetitivo das fábricas obrigava que famílias inteiras integrassem o ambiente fabril. Por um salário ainda menor, mulheres e crianças eram submetidas às mesmas tarefas dos homens ~ 21 ~
adultos. Ao mesmo tempo, as condições de trabalho oferecidas nas fábricas eram precárias (MUNDO EDUCAÇÃO, 2011, sp).
Posto isso, o desenvolvimento de uma consciência coletiva de interesses fez surgir os movimentos de classe, de modo que, as experiências da luta de classe no século XVIII se disseminaram pelo mundo e instigaram movimentos semelhantes em outros países. Posteriormente, conforme aduz Maria da Glória Gohn (1997), a globalização da economia promoveu uma nova configuração dos movimentos sociais em que estes, necessitando cada vez mais de verbas para existir, buscam parcerias com o setor público e privado. Contudo, as instituições financiadoras modificaram suas pretensões e deixaram de subsidiar tais movimentos, passando a oferecer, apenas, suporte técnico. Neste cenário, a articulação diária e as ações nas ruas, bem como a militância, decresceram. O movimento sindicalista fez surgir o sindicato, este que é uma organização de representação centralizada e segmentada que defende os interesses da classe trabalhista representada. Além dos sindicatos dos trabalhadores, há também os sindicatos patronais, que defendem os interesses dos patrões. As lutas sociais fazem parte da história brasileira, sendo traçada pela oposição do Estado em ceder garantias mínimas aos cidadãos para constituir direitos à sua condição. Historicamente, devido a capacidade politizadora dos sindicatos, esses movimentos estiveram entre o limiar da legalidade nos governos democrático e da ilegalidade imposta nos períodos ditatoriais. Os movimentos sindicais brasileiros, em sua maioria movimentos de esquerda, foram relevantes para a conquistas de diversos direitos. A mais significativa foi a Consolidação das Leis Trabalhistas, que atribuiu ao sindicato um papel fundamental para a efetivação dos direitos trabalhistas. A relevância dos movimentos sindicais no brasil evidencia-se com a relação entre as ações destes e o enfraquecimento do governo ditatorial (1964-1985). Com a promulgação da Constituição de 1988 os sindicatos voltaram à legalidade (art. 8º, CF).
II A retomada do conservadorismo brasileiro e a marginalização dos movimentos esquerdistas ~ 22 ~
O advento do capitalismo efetivou na burguesia uma consciência revolucionária que, a priori, desenvolveu o papel de questionar os modelos explicativos de cunho social, religioso e dogmático da sociedade pré-capitalista. Posteriormente, para Santos (2017) a conjuntura revolucionária dos anos de 1848 fez surgir, também, o protagonismo do proletariado que, com anseios humanísticos e universais, confronta os ideais burgueses. Neste sentido, a formação de um pensamento conservador moderno tem fundamento na sociedade de classes. O processo de democratização vivido, em especial, na América Latina (AZEVEDO, 2005) demonstra que o conservadorismo trouxe uma noç~o de uma “nova guinada à direita”. Os países latinos que, por sua vez, instalaram governos “mais { esquerda” no pós-processo, ainda sofrem com os reflexos da inexistência de uma transição no período de exceção. No Brasil, a redistribuição social ocorrida nos pós-processo de democratização trouxe uma classe média integrada que se identifica com os que estão acima dela e, de acordo com Boaventura de Souza Santos (FOLHA, 2015, sp), “os que est~o acima s~o os que sempre olharam com suspeita os governos progressistas. Além de tudo, esses governos traziam uma nova classe política feita de gente de baixo que a gente de cima […] olha com desprezo e até com repugn}ncia”. No Brasil, demonstra-se que o conservadorismo moral e político aparece como “o novo e a mudança”. O desejo por democracia e narrativas de clamor { naç~o, faz com que as ideias conservadoras se propaguem na política brasileira. A professora Maria Lúcia Barroco (2008, p.174) traz que “a moral adquire, no conservadorismo, um sentido moralizador [...]. É assim que se apresentam sob diferentes enfoques e tendências, objetivando a restauração da ordem e da autoridade, do papel da família, dos valores morais e dos costumes tradicionais”. No entendimento de Mauro Iasi (2015), esse conservadorismo, que se entrelaça na política brasileira de direita, sempre esteve presente, como expressão da própria luta de classes, do desejo de manutenção do status quo da sociabilidade burguesa como referência, em favor das classes dominantes. De acordo com Maria Lúcia Barroco (2008, p. 172),
[...] o conservadorismo fundamenta-se na valorização do passado, da tradição, da autoridade baseada na hierarquia e na ordem [...]. Para Burke, a história é a experiência trazida do passado e legitimada no presente pelas tradições [...]. Segundo Nisbet, uma das marcas do pensamento conservador é sua oposição ao racionalismo e sua valorização da experiência e do preconceito.
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Deste modo, o conservadorismo brasileiro cultiva em relação aos movimentos sindicais ideias enraizadas no preconceito e repulsa devido a “ameaça” da ruptura das tradicionais hierarquias, pondo-os assim em oposição, uma vez que, seus princípios não somente divergem mas também visam anular as forças que sustentam suas lutas. Nesta abordagem, a direita conservadora se apropria das “políticas públicas”, mitigando as lutas emancipatórias das classes mais baixas, produzindo, no pretexto do “pluralismo” dos processos participativos, numa suposta busca pela integração, resultados em que detêm o controle sobre as ações desenvolvidas. Esse fenômeno são as cidadanias tuteladas, geradas nos processos de modernização conservadora. Troca-se identidades políticas construídas e tecidas em longas jornadas de lutas, por políticas de identidades tecidas em gabinetes burocratizados. Portanto, decorrido essa questão, é vista uma tentativa da retomada do conservadorismo em contornar a força dos movimentos esquerdistas e marginalizar suas atuações, evidenciando os movimentos no âmbito sindical, dando ênfase ao processo de desmantelamento como reflexo da reforma trabalhista.
III. O fim da contribuição sindical obrigatória e o desmantelamento da força sindical
Em 1964, no Brasil, houve uma tentativa falha do governo em extinguir a contribuição sindical. No governo Collor, encaminhou-se ao Congresso Nacional projeto de lei nesse sentido, que não se concretizou. Da mesma forma, Fernando Henrique Cardoso anunciou proposta semelhante, mas também não foi efetivada. A sistemática sindical diposta na Constituição de 1988 está fundamentada no tripé composto pela: a unicidade sindical, a representatividade compulsória e a contribuição sindical, conforme o art. 8º da CF: Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte: […] II – é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial, que será definida pelos trabalhadores ou empregadores interessados, não podendo ser inferior à área de um Município. III – ao sindicato cabe a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria, inclusive em questões judiciais ou administrativas; IV – a assembleia geral fixará a contribuição que, em se tratando de categoria profissional, será descontada em folha, para custeio do sistema
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confederativo, da representação sindical respectiva, independentemente da contribuição prevista em lei.
Faz necessário reconhecer que a modificação de uma dessas bases pode desestabilizar toda a sistemática sindical. Não é concebível que a mudança de um dos pilares aconteça isoladamente, pois, “a reforma preserva uma das fontes de fragmentação e impede os sindicatos de buscar formas de organização mais eficazes para defender os direitos dos trabalhadores e resistir { ofensiva patronal” (GALVÃO, 2017, sp). É importante frisar que o modelo constitucional sindical brasileiro deve ser visto em sua totalidade, ademais, mesmo que a representação compulsória e a unicidade sindical por classe não sejam tidas como aspectos positivos de um modelo sindical, é importante reconhecer que sua função histórica é significativa, em especial no século XX, cujas atribuições foram úteis na defesa dos interesses trabalhistas (PEREIRA, 2017). De acordo com o que dispõe o art. 611 da CLT, um dos principais efeitos da imperiosidade da representação é efeito erga omnes dos acordos que resultam de negociações coletivas (PEREIRA, 2017). A natureza da referida contribuição é pacificada tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. Posto isso, Martins (2015), aduz que existem cinco tipos tributários, conforme prever os arts. 145, 148, e 149 da CF, a saber: impostos, taxas, contribuição de melhoria, empréstimos compulsórios e contribuições especiais. Ainda elucida que: A contribuição especial no interesse das categorias profissionais ou econômicas, como instrumento de sua atuação nas respectivas áreas, tem como nítido, claro e cristalino objetivo garantir a atuação de categorias profissionais e econômicas em defesa dos interesses próprios destes grupos, ofertando, pois, a Constituição, imposição tributária que lhes garanta recursos para que possam existir e atuar (MARTINS, 2015, p. 93).
Assim, o STF ressalta os atributos do regime sindical brasileiro e a relação mútua entre contribuição sindical obrigatória e a unicidade sindical que delas emerge:
[…] A relatividade da liberdade sindical como efetivamente concretizada na Lei Fundamental deriva sobretudo da preservação de duas marcas características do modelo corporativista resistente: a unicidade (art. 8º, II) e a contribuição sindical de natureza tributária (art. 8º, IV, in fine), que só com ~ 25 ~
a unicidade poderia subsistir. […] Em síntese: se a inequívoca manutenção do regime tributário da contribuição sindical (arts. 8º, IV, e 149) é que dá, na Constituição, as dimensões reais da muito relativa liberdade sindical afirmada, não se pode tomar isoladamente a afirmação desta, no caput do art. 8º e tentar negar o que, no inciso IV, in fine, está patente e há de ser levado em conta para reduzir o alcance efetivo da proclamação retórica da liberdade do sindicato (RE 180745 SP, Relator SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, DJ 08-05-1998, p. 721-722).
A retomada do conservadorismo instituiu o “combate” aos movimentos sindicais, com vistas a enfraquecer os atos promovidos por eles. Assim, os adeptos conservadores iniciaram uma política que disseminou a ideia de marginalização sindical, culminando no processo de desmantelamento do movimento, no qual, a promulgação da reforma trabalhista concretizou a ideia conservadora através da desconstitucionalização, de forma substancial, da contribuição sindical, principal fonte de manutenção das instituições sindicalistas, que passou a ser facultativa, nos termos dos artigos 578 e 579 da Consolidação das Leis Trabalhistas. Nesse sentido, houve uma afronta ao modelo sindical estabelecido pela Constituição de 1988, visto que a mitigação da contribuição sindical obrigatória sem o estabelecimento de novas regras viáveis à manutenção dos sindicatos, sob a ótica da inconstitucionalidade material, faz sucumbir o regime sindical, este reconhecido como direito fundamental social, pois, ao manter-se a unicidade sindical e a obrigação de representação de toda a categoria, incluindo não-associados, e inexistindo uma fonte de custeio obrigatória, a atuação do próprio regime sindical fica inviabilizada, principalmente, no que tange a defesa dos direitos individuais e coletivos, a presença inescusável nas negociações coletivas, a propositura de ações coletivas e ações diretas perante o Judiciário e a denúncia de ilegalidades em face do Tribunal de Contas da União. Por fim, é necessário esclarecer que a mudança da natureza jurídica da contribuição sindical, de tributo obrigatório para contribuição facultativa, revela a renúncia fiscal pela União. No entanto, o art. 113 ADCT mostra uma inconstitucionalidade formal na alteração, visto que a contribuição sindical obrigatória tem disposição específica em lei e não foi realizado estudo de estimativa de impacto orçamentário e financeiro.
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Metodologia
Este trabalho utilizou-se do método de abordagem dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica e documental, tendo como fontes primárias: as legislações, periódicos e doutrinas jurídicas, ainda foi utilizado fontes secundárias: resumos, artigos e comentários. Conclusões
O processo de desmantelamento dos movimentos sindicais é reflexo da própria política brasileira que se atrela ao conservadorismo presente no grupo de direita, também perceptível na prática do próprio governo ao cooperar para o enfraquecimento das forças sindicais através da promulgação da reforma trabalhista, que dispôs em legislação acerca do fim da contribuição obrigatória. Desta forma, a reforma trabalhista debilitou a manutenção dos sindicatos devido ao corte da contribuição, tendo suas ações para confrontar o próprio governo sem apoio financeiro para custear seus movimentos. Tal diretriz que proporciona o declínio da contribuição sindical gera controvérsia acerca de sua constitucionalidade, sendo apresentado no presente trabalho convicções doutrinárias e até jurisprudências dos Tribunais Superiores que se firmam no entendimento da garantia deste direito. Por fim, o ressurgimento clamoroso da ideologia conversadora põe em risco a importante função desempenhada pelos sindicatos em prol da classe trabalhadora, que historicamente sempre foi desfavorecida. O apoio do governo tornou-se a peça chave para a propagação de uma política concentrada no conservadorismo, que mesmo afrontando disposição constitucional, efetiva a desestabilização dos movimentos sindicais. Na verdade, a força sindical ainda causa receio aos que estão no poder e aos que desejam um dia alcançar tal patamar, tentando assim, frear os atos que em período passado já enfraqueceu o governo ditatorial e tem ímpeto para confrontar qualquer outro.
Referências
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AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Criminalidade e justiça penal na América Latina. Revista Sociologias. Porto Alegre: Sociologias, nº 13 , ano 7, jan/jun 2005, p. 212-241. BARROCO, Maria Lúcia Silva. Ética: fundamentos sócio-históricos. 3 ed. São Paulo: Cortez, 2008. BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituição.htm>. Acesso em: 05 de jun. de 2018. GALVÃO, Andrea (Coord). Movimento sindical e negociação coletiva. Texto para discussão nº 5. CESIT, UNICAMP, 2017. Disponível em: http://www.cesit.net.br/apresentacao-dos-textos-dediscussao-doprojeto-de-pesquisa-subsidios-para-a-discussao-sobre-a-reformatrabalhista-no-brasil/ acesso em 25.05.2018). IASI, Mauro. De onde vem o conservadorismo? Disponível em: <http:// blogdaboitempo.com.br/2015/04/15/de-onde-vem-o-conservadorismo/>. Acesso em: 04 jun 2018. GOHN, Maria da Glória. Teoria dos movimentos sociais: Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo: Loyola, 1997. MARTINS, Ives Gandra da Silva, in Revista TST, Brasília, vol. 81, n. 2, abr/jun 2015, p. 91. PEREIRA NETO, João Batista. O sistema brasileiro de unicidade sindical e compulsoriedade de representação. São Paulo: LTR, 2017, p. 60-61. SANTOS, Boaventura de Souza. Classe média é ingrata e não será leal a outros governos, diz sociólogo. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/ poder/2015/08/1675611-classe-media-eingrata-e-nao-sera-leal-a-outros-governos-diz-sociologo.shtml>. Acesso em: 04 jun 2018. SANTOS, Josiane Soares. Neoconservadorismo pós-moderno e serviço social brasileiro. 1 ed. São Paulo: Cortez, 2007. SOUSA, Rainer Gonçalves. Formação da classe operária. Revolução industrial. Disponível em: <https://mundoeducacao.bol.uol.com.br/historiageral/formacao-classe-operaria.htm>. Acesso em: 04 jun 2018. STF. Recurso Extraordinário:180745-8 SP. Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Primeira Turma. DJ 08-05-1998. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=AC&docID=225529>. Acesso em: 05 de jun. de 2018.
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3 O PROTAGONISMO DE GRUPOS VULNERABILIZADOS NO LEGISLATIVO: AS COTAS PARTIDÁRIAS COMO UM INSTRUMENTO DE AGRAVO DA SITUAÇÃO DA MULHER NA POLÍTICA
NYCOLE MAIA PEREIRA BEATRIZ VICTÓRIA ALBUQUERQUE DE ALMEIDA
RESUMO: O presente resumo visa demonstrar, em um estudo bibliográfico, a singela representatividade da mulher no cenário político brasileiro, em especial no âmbito do Poder Legislativo. Através da perspectiva de que atualmente não há uma concreta inserção feminina, criando a situação de uso da imagem da mulher para suprir as cotas partidárias. Com enfoque nas candidaturas laranja, que eclodiram principalmente nas últimas eleições. A frágil influência dentro do legislativo, a necessidade de renovação, e as consequências para a sociedade brasileira no cenário da política feminina. Palavras-chave: Mulheres. Minorias. Política. Poder Legislativo. Candidatura.
Introdução
Conhecida como Lei dos Partidos Políticos, a Lei nº 9.096/95 foi introduzida em um contexto pouco conturbado do cenário brasileiro. Fernando Henrique Cardoso, Presidente da República, atuava à frente do que seria o seu primeiro ano de mandato. Atualizações como a privatização, abertura do mercado, reeleição para cargos
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executivos, novos estabelecimentos para as eleições municipais, entre outros artigos, conferiram bastante relevância ao momento vivido para a política eleitoral. A questão da mulher na política iniciou com a Constituição de 1934, que inseriu a participação feminina no sufrágio, as mulheres passaram de espectadoras a deliberativas, participantes da estrutura do Estado. Em passos lentos, a mulher foi conquistando seu lugar e concorrendo a cargos eletivos, e pôde, dessa forma, dar início - em tese - a uma participação política. No entanto, em decorrência de diversos fatores históricos, como também no machismo arraigado na sociedade e nos espaços de disputa política, ainda hoje tal representatividade reluta por espaço nos mais diversos órgãos, e com especial ênfase no âmbito do Poder Legislativo. Um dos problemas identificados para consolidação das candidaturas femininas é a falta de interesse dos partidos de lançar concorrentes que realmente tenham chances de ganhar, em detrimento tanto do esforço dirigido, como do financiamento partidário, onde os mesmos ainda não veem na mulher uma efetiva representante dos interesses demandados. O modelo da democracia que valoriza a representação já se mostrou insuficiente para a transformação que se propõe a uma sociedade contemporânea. É preciso reconhecer que mesmo com a conquista de uma representação no Poder Legislativo, faz-se necessário ir além. Portanto, presente resumo busca analisar de qual maneira é possível prosseguir com a luta pela aquisição desse espaço e demonstrar que mudanças significativas e estruturantes requerem a transformação de mecanismos de percepção das mulheres por elas mesmas – reforçando sua autonomia – e pelos homens.
Desenvolvimento
No Brasil, a Lei nº 9.504/1997 institui um elemento que é hoje conhecido como cotas partidárias, que exige o registro de 30% de mulheres nas candidaturas do partido, porém não garante uma campanha eleitoral. Nas últimas eleições, por exemplo, um total de 16.131 candidatos não recebeu sequer um voto, entre eles 14.417 mulheres registradas como candidatas terminaram a eleição com votação zerada, a maioria para o cargo de vereadora, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). ~ 30 ~
Em entrevista dada ao Jornal UOL, o ex-ministro deste Tribunal, Henrique Neves, atribuiu o elevado número de mulheres que não receberam votos às chamadas “candidaturas laranja”, nas quais o partido registra as candidatas apenas para preencher a cota obrigatória na nova legislação. Tal problema também pode ser atribuído à falta de fiscalização da campanha eleitoral, que nesses casos é inexistente (OGLOBO,2013). A legislação deixou de regulamentar a obrigatoriedade de campanha para os candidatos registrados, dando abertura a tal situação, onde diversas candidatas são convocadas poucos meses antes do registro, e o partido não se empenha na propagação de sua proposta para uma efetiva e justa campanha em detrimento dos demais candidatos. É importante ressaltar a condição das mulheres como uma minoria, que se encontra em situação de hipossuficiência em relação a outros segmentos, não significando que são numericamente menores. As minorias estão hoje com baixa representatividade no Legislativo, em decorrência de diversos fatores, entre eles a própria lógica sistemática e eleitoral onde falta pretensão de representar todos os grupos, respeitando sempre a vontade dos mais ricos e, por conseguinte, dominantes. Nas casas do Congresso e do Senado Federal, é possível notar a incongruência destes segmentos com os demais, em desconformidade numérica com a realidade da população. De acordo com dados do Senado, em 2013, dos 81 senadores brasileiros, apenas oito são mulheres e dois se declaram negros ou pardos. Na Câmara, dos 513 deputados, 46 são do sexo feminino, 43 são afrodescendentes e um é assumidamente homossexual. Apenas cerca de 10% das cadeiras do Legislativo estão ocupadas por mulheres Tais números demonstram a discrepância entre os grupos sociais que detém o poder e aqueles que, por questões históricas e políticas, são colocados em posição de inferioridade. Também é necessário analisar além do termo quantitativo da representação da mulher na política, mas pensar no papel que elas exercem e as condições para que cheguem aos cargos eletivos. Descendendo de uma sociedade política misógina – caracterizada pela repulsa, ódio e medo de mulheres - e que não assume a perspectiva senão dos próprios detentores do poder, homens brancos, de classe alta que afirmam-se como
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heterossexuais, a mulher só é representada por ela mesma. Segundo Rocha (1996, p. 87): Não se toma a expressão minoria no sentido quantitativo, senão que no de qualificação jurídica dos grupos contemplados ou aceitos com um cabedal menor de direitos, efetivamente assegurados, que outros que detém o poder [...] em termos de direitos efetivamente havidos e respeitados numa sociedade, a minoria na prática dos direitos nem sempre significa menor número de pessoas.
Ainda mais restrita, é a definiç~o de Lopes (2008, p. 20): “Todo grupo humano, cujos membros tenham direitos limitados ou negados apenas pelo fato de pertencerem a esse conjunto, deve ser considerado um grupo minoritário.” As alternativas para efetivar os mandatos femininos em geral não tem muita eficácia em decorrência da própria estrutura social que age como um impedimento, seja de caráter econômico, histórico, político, entre outros. As mulheres têm que afrontar as barreiras de desconfiança sobre a competência, coragem, determinação e capacidade de liderança para os espaços e as funções públicas. Também não são estimuladas, financiadas e destacadas quando se dedicam à vida política nos partidos.
I. O financiamento eleitoral privado para candidatas
Após a reforma política de 2017, foram previstas para o ano de 2018 novas regras de financiamento de campanha, que regulamentam a distribuição do fundo eleitoral partidário de acordo com a proporção de candidatos. Tais regras afetam diretamente a participação das mulheres, tendo em vista que o aumento para 30% ainda não garante uma efetiva e justa campanha em relação aos seus concorrentes. A exigência de mulheres como candidatas ainda é demasiadamente vaga, problema este identificado na própria conjuntura partidária, que procura a candidatura feminina com o prazo já próximo de extinguir-se, apenas para cumprimento das regras de registro. A professora de Ciência Política da Universidade de Brasília (Unb), Flávia Biroli (2017), defende que é preciso cobrar do TSE mecanismos para fiscalizar e punir os partidos nesses casos. Ela defende que as cotas também sejam usadas para garantir o financiamento das campanhas das mulheres: “Para aumentar o número de mulheres eleitas, é preciso no mínimo que os 30% de ~ 32 ~
cotas tenham validade também para a distribuiç~o do fundo partid|rio” (BIROLI, 2010, p.668). O financiamento eleitoral necessita de uma lapidação no sentido de que tais recursos sejam efetivamente utilizados nas campanhas para evitar as candidaturas laranjas que decorrem da falta de fiscalização. O Fundo Especial de Financiamento de Campanha (FEFC), novidade oriunda da lei 13.487/2017, traz um suporte de R$780.883.356,00 destinados à campanha feminina, que servirão de instrumento para inserir mais efetivamente a mulher na política. Como exemplo desta situação, a vendedora Franciny Bittencourt relata a falta de apoio do partido após o registro da candidatura, em depoimento para o jornal Gazeta do Povo, 2017: Não tive nenhuma ajuda do partido para arcar com as despesas, com gasolina para conseguir percorrer mais localidades para divulgar o meu nome. Recebi ajuda com santinho e material de campanha igual para todos os candidatos. Mas não tive apoio do partido nem no meu bairro. Pela decepção com o partido e a política, não tenho mais vontade de me candidatar. É uma pena que as pessoas que querem fazer diferente não tenham poder para isso.
É incongruente a dimensão apresentada pelos dados, levando em consideração que a destinação de verbas é feita e mesmo assim não obtém igualdade no investimento do partidário para tal. A legislação tratou de prever também os casos de autofinanciamento. As correntes que não tenham essa condição contarão apenas com o dinheiro público para campanhas, além dos financiamentos pessoais.
II. A ineficiência da lei de cotas na elegibilidade de mulheres
Tendo-se em vista a conjuntura social, política e econômica presente no território brasileiro, é possível perceber o desequilíbrio em relação às viabilidades entre os sexos, sendo o machismo extremamente presente em diversos espaços na sociedade. Não diferente, ele se encontra no ambiente político do país, nos Poderes Executivo, Judiciário, e em especial, no âmbito do Legislativo. Buscando a efetiva participação das mulheres na vida política e partidária brasileira, a Lei nº 9.504/97 estabelece que todo partido político ou coligação deverá ~ 33 ~
apresentar no mínimo 30% e no máximo 70% no registro de candidatos de cada sexo. Entretanto, um artifício que deveria ser utilizado para acarretar uma maior participação eletiva das mulheres no âmbito político, proporciona mais um impasse para as mesmas. Isto se dá em decorrência de uma exclusiva necessidade de mascarar o que está prescrito em lei com as candidaturas laranja de mulheres. Por conta da legislação, quando o período eleitoral se aproxima, é comum presenciar o esforço de lideranças partidárias na investida de campanhas para atrair mulheres dispostas a se candidatar. Assim, elas s~o candidatadas para “cumprir tabela” e acabam sem quitação eleitoral, em razão da não prestação de contas e do abandono da agremiação partidária, outro fator sintomático de que as candidaturas foram lançadas de forma fictícia tão somente para atender à exigência legal. A professora de Ciência Política da Universidade Estadual de Maringá, Carla Almeida (2017), afirma que a Lei de Cotas provocou um aumento na candidatura de mulheres, mas é ineficiente em relação à elegibilidade da categoria. Tal afirmação se concretiza observando que de 52% da população sendo mulheres no Brasil, existe apenas uma representatividade de 10% em cargos legislativos. Para a professora Carla, o incentivo por política deve ser socialmente construído, permitindo que as mulheres comecem a ver a política como um espaço que é possível de ser ocupado por elas, rompendo os conceitos machistas e limitadores de sua atuação, ainda arraigados a sociedade. Evidencia-se que essa obrigação imposta não alcançou os resultados esperados pela Justiça Eleitoral. Com a recorrente presença de candidaturas femininas laranjas, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) deu início a um julgamento o qual passou a aceitar a Ação de Impugnação de Mandato Eletivo (AIME) em vários tipos de fraudes como, por exemplo, a falsificação de assinatura em pedido de registro de candidatura ou fraude em ata de convenção para escolha da lista de suplentes da senatoria. O referido Tribunal passou a admitir o combate à fraude como ação judicial eleitoral, o que traz a confortável convicção de que se trata de uma evolução jurisprudencial irreversível. Contudo, a revolução que está ocorrendo na justiça permitiria uma maior participação das mulheres em cargos legislativos de maneira muito lenta. Uma demonstração do efeito da Lei de Cotas é o aumento em apenas ~ 34 ~
três pontos percentuais a participação das mulheres na Câmara e no Senado (de 7% em 1997 para 9,9% em 2015), conforme aponta pesquisa da União Interparlamentar (2016). Com isso, o Brasil ocupa a 116ª posição no ranking de representação feminina no Legislativo, atrás de países que restringem e violam direitos de mulheres como Arábia Saudita, Somália e Jordânia.
Metodologia
No processo de desenvolvimento deste trabalho, se teve como foco dados relativos à legislação vigente, à ineficiência das normas que regulam a candidatura feminina e os fatos que corroboram com tal situação. Com isso, esta pesquisa se debruçou sobre a lacuna dos movimentos sociais no Brasil, com especial ênfase para o contexto de atual crise no sistema legislativo e na representatividade de demandas sociais. Para tal, o método descritivo bibliográfico foi utilizado, dentro do âmbito de pesquisas sociais, tendo como base a análise de projetos de lei, artigos e documentos relacionados ao tema ora em comento. Dentro da pesquisa social, que detém um objeto essencialmente qualitativo, fazendo aproximação entre os instrumentos legais e as demandas dos grupos que estão em posição de hipossuficiência, como é o caso da mulher.
Conclusões
Finaliza-se o presente trabalho que tem como principal objetivo realizar uma análise do movimento social feminino e o seu envolvimento com a situação política do país, destacando o conflito com a crescente necessidade de representação da mulher. Atrela-se a esse encalço a ausência de incentivo e fundos financeiros para uma participação mais efetiva das mulheres no âmbito legislativo nacional e os resultados ~ 35 ~
que seguem a ser os mesmos, uma escassa representatividade feminina nos mais altos cargos jurídicos. Pode–se então concluir que o envolvimento feminino na politica não é satisfatório, pois estas que são maioria na população brasileira se deparam em seu dia a dia com dificuldades oriundas de um período em que a submissão ao gênero masculino lhes é imposta. Este fato dificultou o envolvimento delas tanto nas atividades sociais a exemplo do mercado de trabalho, como também na vida política de seus países, estados, cidades, bairros e comunidades.
Referências
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RODAS, Sérgio. Cotas para mulheres no Legislativo aumentam igualdade na política sem violar a CF. Disponível em: <www.conjur.com.br/2016-jun-05/cotas-mulheres-legislativo-aumentam-igualdadepolitica >. Acesso em: 6 jun. 2018 SETA, Isabel. As mulheres são descartadas da política. Disponível em: <www.exame.abril.com.br/brasil/as-mulheres-sao-descartadas-da-politica-dizem-autoras-de-livro >. Acesso em: 6 jun. 2018 VIEIRA, Anderson. Participação de mulheres e minorias poderá ser tema de reforma política. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2013/07/18/participacao-de-mulheres-e-minoriaspodera-ser-tema-da-reforma-politica>. Acesso em: 6 jun. 2018.
4 AS CONTRIBUIÇÕES DA LITERATURA PARA O DIMENSIONAMENTO DO PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E O APERFEIÇOAMENTO DO DIREITO À MEMÓRIA E À VERDADE Matheus Víctor Sousa Soares3 Thalia Ferreira Cirilo²
RESUMO: O presente trabalho busca evidenciar os entrelaces entre o direito à memória, o direito à verdade dele decorrente e a forma como este espectro jurídico influencia na consolidação do princípio da vedação ao retrocesso sob a luz de uma abordagem enraizada na Constituição de 1988. Para tanto, arma-se da literatura, não apenas como expressão artística ou mesmo como mero artifício argumentativo, mas como efetivo recurso probatório, verdadeira testemunha, apta a conceder a oportunidade para que aqueles que não vivenciaram dado momento histórico caótico de privações à liberdade individual de vislumbrar, com maior detalhamento, cenas cruéis das quais não se pode permitir repetição. O princípio da vedação ao retrocesso social não apenas encontra respaldo no Texto Maior, como também representa um imperativo moral que precisa também ser incorporado na vivência diária, de modo a
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Graduado em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Pós-Graduando em Direito de Família e Sucessões, pesquisador na área dos Direitos Culturais com ênfase no estudo dos Direitos Autorais ² Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG); pesquisadora, pelo Programa Institucional de Voluntários de Iniciação Científica (PIVIC), do Projeto “Estado Democrático de Direito: uma análise hermenêutica” ~ 37 ~
coibir qualquer tentativa de que extremos políticos em seus embates possam diluir os direitos alcançados até então às custas de intensa mobilização social. Palavras-chave: Direito à memória. Direito à verdade. Retrocesso Social. Direito e Literatura.
Introdução
Não é necessário um requintado exercício hermenêutico para se concluir que, na Constituição de 1988, que recebe meritoriamente a alcunha de cidadã, fica evidente o compromisso uníssono dos constituintes em entregar uma carta apta a evitar principalmente a retomada dos “velhos h|bitos” legados pelo regime ditatorial anterior. Desse modo, inexiste qualquer exagero ao se considerar o período pós 1988 como a inauguração da etapa de redemocratização do Brasil. Cabe, de antemão, o esclarecimento: por “velhos h|bitos”, deve ser entendido o ranço das liberdades tolhidas, desde a manifestação de pensamento conduzida continuamente à aprovação de um oficial das forças estatais, até a diminuição das possibilidades de fuga da situação política e econômica do país. Contudo, é preciso considerar a densidade principiológica do princípio da vedação ao retrocesso social, o que se faz mediante a utilização de obras literárias concebidas durante e após notórios períodos de aprisionamento físico e intelectual nos quais o Estado se viu destituído de suas funções primordiais. As interseções entre direito e literatura emergem como uma forma mais branda de conduzir debates outrora marcados por estigmas dos mais diversos que, nodoando discussões, costumavam repelir até mesmo as soluções mais aclaradas, ainda que estas fossem embasadas na solidez do ordenamento jurídico. A exemplo de tais discussões, podem-se destacar: a questão da controvérsia doutrinária e jurisprudencial acerca do início da vida e, claro, a possibilidade de sua interrupção por exercício da vontade através de métodos abortivos; a legalização de certas substâncias para fins medicinais; a questão a apresentação de obras psicografadas em juízo.
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A literatura, quando se admite limitada unicamente pela mente do artista, pode ser compreendida como ferramenta hermenêutica de grande valor, uma vez que permite a construção precisa de tipos históricos, a reconstituição de fatos ocorridos passados com a nitidez necessária para que se possa ter a exata dimensão de seus impactos e, por conseguinte, a formação de uma segura opinião sobre atos de crueldade cometidos sob a égide de normas ou princípios que não devem ser retomados, sob pena de se experimentar, como há de se reiterar ao longo deste estudo, os grilhões do retrocesso social.
DESENVOLVIMENTO I. O princípio da vedação ao retrocesso social e a sistemática constitucional
Precipuamente, para que os fins almejados deste estudo sejam alcançados, faz-se urgente evidenciar a localização da vedação ao retrocesso social e sua ingerência no contexto da Constituição Federal.4 Necessário tal exercício para que se possa operar no sentido de estabelecer seguramente os parâmetros para a atuação dos movimentos sociais que buscam a efetivação dos fundamentais direitos à memória e à verdade real. Funda-se a fortaleza deste princípio na irreversibilidade dos direitos sociais implementados como forma de garantir a igualdade por meio da edificação de estruturas jurídicas aptas não apenas a dar existência, mas também efetividade aos direitos sociais. Optou-se, cabe mencionar, neste estudo, pela omissão de comentários mais profundos acerca das cláusulas pétreas, vez que resta inconteste que estas são a mais pura manifestação normativa do princípio da vedação ao retrocesso. Centra-se, assim, a investigação em como esse princípio se comporta quando mais
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A análise que se segue necessidade de certa prudência e exige um moderado grau de abstração em razão de se tratar de um princípio tido por grande parte da doutrina como implícito. Não se nega, porém, sua existência nos moldes investigados pela doutrina estrangeira e assimilados pelos juristas pátrios. ~ 39 ~
especializado, isto é, quando se comporta como barreira para evitar a mitigação inconsequente em direitos sociais elencados na Constituição Federal. Não se ignora, entretanto, que conquistas sociais várias foram alcançadas especialmente na última década, mas ao mesmo que se pode comemorar tais avanços, é preciso permanecer alerta sempre elaborando meios de impedir que estes sucumbam eticamente (CANOTILHO, 2003) diante das engrenagens de uma máquina pública a cada dia mais corrompida pelos que por ela deviam zelar. A missão de cada agente, direta ou indiretamente ligado às ações do Estado, deve ser a de luzir o trajeto rumo à solidez do robusto princípio da vedação ao retrocesso social, haja vista a tendência moderna – e oportuna – de se investir em um Estado garantidor do bem-estar social, uma vez que, nas palavras de Ulysses Guimar~es, “a moral é o cerne da p|tria”, bem como que a “República suja pela corrupção impune, tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam”. Isto posto, tem-se quem a vedação ao retrocesso é corolário de um sistema ético-jurídico assinalado pela contínua busca de aprimoramento não apenas do Estado, mas do indivíduo que o compõe e o estrutura conforme a ideia central contida no conceito de democracia, qual seja, a participação, em regra, irrestrita dos membros beneficiados por políticas públicas nos mais diversos setores, de sorte que é preciso Barroso (2001, p.158) ao afirmar que:
O princípio da proibição do retrocesso decorre justamente do princípio do Estado Democrático e Social de Direito, do princípio da dignidade da pessoa humana, do princípio da máxima eficácia e efetividade das normas definidoras dos direitos fundamentais, do princípio da proteção da confiança e da própria noção do mínimo existencial.
Em linhas gerais, portanto, pode-se dizer que o princípio da vedação ao retrocesso representa uma das balizas no controle dos Poderes, ao se considerar que proíbe a chamada “evoluç~o reacion|ria”, que pode ser assimilada como sendo a tentativa de derrocada dos avanços obtidos no campo das liberdades e demais direitos assegurados no âmbito da dignidade humana, eis o porquê de para o Ministro Barroso ser este princípio a mais pura expressão das concepções basilares do constitucionalismo moderno. ~ 40 ~
Sapientemente, observa Canotilho (2003, p. 339) que: A ideia aqui expressa também tem sido designada como proibiç~o de “contrarevoluç~o social” ou da “evoluç~o reaccion|ria”. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex.: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional e um direito subjetivo. A “proibiç~o de retrocesso social” nada pode fazer contra as recessões e crises econômicas (reversibilidade fáctica), mas o princípio em análise limita a reversibilidade dos direitos adquiridos (ex.: segurança social, subsídio de desemprego, prestações de saúde), em clara violação do princípio da proteção da confiança e da segurança dos cidadãos no âmbito econômico, social e cultural e do núcleo essencial da existência mínima inerente ao respeito pela dignidade da pessoa humana (...) A violação do núcleo essencial efectivado justifica a sanção de inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada “justiça social” (grifo nosso).
Como não existe menção expressa ao princípio da vedação ao retrocesso – ainda que patente sua extensão por todo o texto normativo – é possível apenas constar os vestígios de sua presença nas intenções do legislador constatáveis ainda nos artigos iniciais do documento de 1988. Saliente-se que trata-se de princípio implícito, porém se no artigo 1º são fundamentos do Estado Democrático de Direito a soberania, a cidadania, a dignidade humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político e considerando igualmente que todo poder emana do povo, é possível, quando feita a exegese do art. 3º, II da Constituição Federal, inferir que permitir que o Executivo, Legislativo ou mesmo o Judiciário atentem contra direitos alcançados após reivindicação aguda, feriria a garantia do desenvolvimento nacional. Diz Almeida (2007, p. 122), observando com lucidez as potencialidades deste princípio que: O conteúdo impeditivo deste princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais. Funciona até mesmo como forma de mensuração para o controle de inconstitucionalidade em abstrato, favorecendo e fortalecendo o arcabouço de assistência social do Estado e as organizações envolvidas no processo. Além do mais, o princípio da reserva de justiça da Constituição imprime a vontade do titular do Poder Constituinte, este legítimo quando seja depositário dos valores inspiradores do conteúdo normativo da Carta Magna. O poder constitucional é limitado aos valores-base em que fora sedimentado.
Com a mesma intensidade, demonstrando a exata dimensão do princípio da vedação ao retrocesso, Silva (2006, p. 252) opina no sentido de que:
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Os direitos sociais, como dimensão dos direitos fundamentais do homem, são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais (grifo nosso).
Desta forma, não poderia este princípio passar desapercebido diante do atribulado momento político vivido no Brasil em que se digladiam forças que se autodenominam como esquerda e direita rememorando, ainda que linguisticamente, os “velhos h|bitos” mencionados anteriormente o que por si só j| basta para que seja disparado um alerta para que juristas, constitucionalistas ou não, retomem seus estudos com o objetivo de enfatizar a persistência do princípio da vedação ao retrocesso e toda a sua carga significativa extraída principalmente dos horrores do regime ditatorial do qual não se pode esquecer. Coerente, necessária e difícil é a missão dos que buscam à verdade a fim de resgatar a memória.
II. Direito e literatura: a reconstituição da memória e a anunciação da verdade
Em expansão, a análise das contribuições da Literatura ao Direito ao longo da história encontra papel de destaque nos trabalhos científicos brasileiros, uma vez que tal exercício articulado permite um tratamento mais ameno da dogmática jurídica. Apesar de inconteste valor propedêutico de uma abordagem voltada à substituição do clássico discurso jurídico pela cadência dos literatos, é ainda tímido o avanço no Brasil dessa forma de pensar o Direito em suas mais diversas manifestações (TRINDADE;GUBERT, 2008) Considerando o pensamento de Reale (2003) o Direito, uma vez que possui uma tridimensionalidade ôntica, está intrinsecamente localizado nos domínios da cultura, conceito que deve ser visto de maneira ampla, como sendo resultado de fenômenos antropológicos dos mais diversos. Nesse interim, entretanto, não se descuida de como a literatura pode ajudar na criação de um panorama favorável à compreensão ampla do passado, a aceitação do presente e as projeções para um futuro onde seja mitigada qualquer possibilidade de retomada de um Estado desvirtuado de sua função. Assevera Bueno (2011, p.10) que: ~ 42 ~
A literatura é um instrumento promissor, provavelmente mais do que a filosofia, quando temos em perspectiva um processo de autorreferenciação. Essa autorreferenciação deriva do processo de reconstrução de nós próprios a partir de nossa ocupação em reconstruir nossos léxicos, algo que repetidamente se faz necessário porque vivemos em situação de contingência, vale dizer, transitoriedade ou historicidade (grifo nosso).
Trata-se de perceber a historicidade dos direitos sociais e, por conseguinte, garantir maior segurança ao ordenamento jurídico brasileiro no sentido de blindá-los da malícia dos que pretendem, aproveitando momentos de fragilidade política ou econômica, podar estes direitos duramente conquistados. O poder constitutivo da linguagem é o que dota o segmento Direito e Literatura de relevância, vez que propicia utilizar parâmetros estéticos para analisar em maior profundidade dilemas práticos. No especial caso das contribuições ao princípio da vedação ao retrocesso, temse que, por exemplo, conhecendo os pormenores cotidianos dos que viveram o regime de 1964 e não apenas o conteúdo sociológico das relações de poder em voga no período, é possível por intermédio de uma apurada reflexão, guiada ou não, oferecer elementos aptos a provocar reações empáticas poderosas o suficiente para despertar a preocupação com a manutenção dos direitos sociais quando ameaçados. É significativo o título “Ainda Estou Aqui” do romance de Marcelo Rubens Paiva, onde é possível perceber claramente a redução imposta pelas autoridades às liberdades individuais, bem como a violência cometida deliberadamente contra todos os opositores e críticos, dos mais acautelados, aos mais ferrenhos, à situação política de recolhimento. A impossibilidade de apagar o ocorrido, pois, conduz a uma única certeza: que o esquecimento compulsório de fatos históricos pode levar, seguramente, a sua repetição e, com isso, oferecer perigo aos avanços sociais, o que seria claramente, diante do exposto, uma rude violação ao princípio da vedação ao retrocesso, de forma que somente o exercício do Direito à Memória e a Verdade podem funcionar como engrenagens do princípio maior implícito no Texto Constitucional (DANTAS, 2010). O fundamento desses direitos pode ser extraído do art. 216 da Constituição Federal que estabelece que a memória dos diferentes grupos que formam a sociedade
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brasileira faz parte do patrimônio cultural. A importância de rememorar é explicitada por Tavares e Agra (2009, p.71):
Essa necessidade de prestar contas ao passado torna-se imperiosa como forma de pacificar a sociedade, permitindo que ela possa evoluir sem a constante recordação das feridas abertas no passado. Normalmente, ela tem início com a instalação de uma Comissão de Verdade e Reconciliação, cujo objetivo principal é desvendar acontecimentos ocorridos no passado, restaurando a verdade dos fatos, indenizar aqueles que sofreram perseguições em virtude de suas convicções políticas e punir os que atentaram contra a dignidade da pessoa humana.
Nesse espírito, é crucial perceber que o direito à memória e à verdade real, além de possuírem titularidade difusa, são transgeracionais e que, subjetivos, dependem especialmente de uma atuação coletiva, ponto em que ganha destaque a urgência de coalisão entre movimentos sociais e Poder Público para atingir esse fim. Empregar a literatura como pedra angular de políticas públicas no sentido de resgatar a memória e reescrever a história com as tintas da verdade real é algo que pode ser concretizado mediante o esforço interdisciplinar, a começar pelo segmento Direito e Literatura, o qual encontra-se, como mencionado, em desenvolvimento. À rigor, é impossível invocar o passado, mas doutra banda é plenamente realizável sua visualização por meio das palavras, dado o poder imagético da linguagem que deve ser apreciado como forma de, conhecendo a verdade, impedir o retrocesso e oportunizar que gerações futuras possam aprender – e não somente se arrepender – dos erros cometidos.
Metodologia
A fim de obter êxito na exposição do princípio da vedação ao retrocesso e a questão do Direito e Literatura, utilizou-se, quanto ao método, o hipotético dedutivo. Partindo de afirmações, ora consideradas hipóteses, pretendeu-se conduzir um aprofundamento da temática. No tocante aos métodos de procedimento, ao apreciar a abrangência da matéria, foi crucial partir de uma abordagem histórico-evolutiva, ainda que sucinta. Como técnica de pesquisa, optou-se pela documentação indireta, com análise pormenorizada de aspectos controversos da questão, além da leitura doutrinária. Igualmente foram utilizados artigos científicos. ~ 44 ~
Conclusões
Não existem óbices para que a Literatura possa ser utilizada como ferramenta para a compreensão do Direito. No tocante ao princípio da vedação ao retrocesso, é patente sua composição pura: há a necessidade de resgate à memória ao mesmo tempo que esta deve sempre ser norteada pela busca da verdade real. A imaginação do artista em conjunto com o levantamento documental dos fatos em geral cumpre bem a função de agente de construção da identidade nacional o que, por sua vez, realiza efetivamente o programa constitucional marcado pelo respeito à dignidade humana.
Referências ALMEIDA, Dayse Coelho de. A fundamentalidade dos direitos sociais e o princípio da proibição de retrocesso. In: Inclusão Social, Brasília, v. 2, n. 1, p. 118-124, out. 2006-mar. 2007 BARROSO, Luís Roberto. O direito constitucional e a efetividade de suas normas. 5. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2001 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm> Acesso em: 07 de junho de 2018. ______. Discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988. Diário da Assembleia Nacional Constituinte: Brasília, DF, 5 out.1988. Disponível em: <http://imagem.camara.gov.br/Imagem/d/pdf/308anc05out1988.pdf#page=3> Acesso em 07 jun.2018 BUENO, Roberto. O papel da literatura na reconstrução das subjetividades. Revista em tempo, [S.l.], v. 10, p. 9-24, dec. 2011. Disponível em: <http://revista.univem.edu.br/emtempo/article/view/289>. Acesso em: 07 jun. 2018 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. Coimbra: Almedina, 2003 DANTAS, Fabiana Santos. Direito fundamental à memória. Curitiba: Juruá, 2010 REALE, Miguel. Teoria tridimensional do direito. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2003 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006 SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006 TAVARES, André; AGRA, Walber. Justiça Reparadora no Brasil. In: SOARES, Inês; KISHI, Sandra (Coord.). Memória e verdade: a justiça de transição no estado democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009. TRINDADE, Andre Karam; GUBERT, Roberta Magalhães. Direito e Literatura: aproximações e perspectivas para se repensar o direito. In: TRINDADE, Andre Karam et al (org.). Direito e literatura: reflexões teóricas. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2008, p.11-66
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5 LEI DE MIGRAÇÃO BRASILEIRA: ANÁLISE JURÍDIICA À LUZ DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Rayane Myrelle Ferreira Barbosa Audenise Ferreira de Lima Monnizia Pereira Nóbrega
RESUMO: O presente trabalho se deu pela recente edição da nova lei migratória no ordenamento jurídico brasileiro que engloba tanto direitos como deveres para os imigrantes, sendo, pois, de suma importância abordar sobre: o seu conteúdo, do princípio constitucional da dignidade humana frente aos impactos que a crise venezuelana reflete no país, tendo em vista que são países fronteiriços. Os dados extraídos para desenvolver o raciocínio apresentado foram obtidos por meio de uma pesquisa qualitativa, por meio do qual se buscou pelo uso da pesquisa documental para compreender os desdobramentos sobre o tema e sua contribuição social; pela realização de estudos bibliográficos em sites e livros brasileiros relevantes sobre o tema, como forma de acumular informações. Sendo, o resultado obtido por meio desse estudo, a crítica social por ingerência de políticas públicas, uma vez que a soma da crise venezuelana com a estrutura desorganizada do Governo em acolher os imigrantes, influencia diretamente na vida dos brasileiros.
Palavras-chave: Dignidade humana. Políticas públicas. Imigrantes.
Introdução ~ 46 ~
A Lei nº. 13.445/2017, conhecida como a Lei de Migração, é apontada por ser inovadora e uma evolução se comparada ao Estatuto do Estrangeiro, criado em 1980, sob o regime da ditadura militar. Assim, com o advento da nova legislação, o imigrante deixou de ser visto como ameaça à segurança nacional, uma vez que em seu texto legal observa-se a preocupação com os direitos humanos. A nova lei migratória, originou-se em detrimento da carência social contemporânea e de políticas públicas inoperantes, justificando, assim, a reformulação do Estatuto do Estrangeiro para que medidas sociais mais condizentes com a Constituição Federal fossem adotadas pelo Governo, em benefício dos estrangeiros de qualquer nacionalidade, refugiados ou não. Contudo, diante da realidade em que o país se encontra questiona-se: qual o grau de influência da atuação da Lei de Migração para a qualidade de vida do estrangeiro, residente ou não, no Brasil e do impacto na sociedade nacional? há efetiva aplicação do princípio jurídicoconstitucional fundamental da dignidade da pessoa humana para ambas as partes? Qual a postura social manifestada a respeito da recente entrada de venezuelanos no país?
Desenvolvimento I. Análise jurídica da lei de migração (lei nº 13.445/2017)
A Lei de Migração, foi produzida mediante Projeto de Lei do Senado (PLS 288/2013), sancionada pelo Presidente Michel Themer, com vetos (Decreto nº. 9.199/2017), surge como mudança de paradigma decorrente das necessidades sociais, tendo em vista que certos preceitos constitucionais e humanos devem ser incontestavelmente respeitados, a exemplo, dos direitos humanos e da dignidade da pessoa humana, e para tanto, o legislador decidiu inovar em matéria de lei ao revogar a Lei nº. 6.815/80, ou também conhecida como, Estatuto do Estrangeiro (CAVALCANTE, 2018). A Lei de Migração tem por finalidade essencial a proteção do imigrante e do visitante, uma vez que passaram a ser vistos como sujeitos de direitos. Assim, a lei mencionada define os direitos e deveres do imigrante e do visitante no território ~ 47 ~
nacional; regula a entrada e a permanência de estrangeiros; e determina normas de proteção do brasileiro no exterior (CAVALCANTE, 2017). Cumpre destacar, que a lei em estudo, de acordo com Cavalcante (2017) possui aplicabilidade subsidiária, uma vez que seu objetivo não é entrar em conflito com legislação específica que trate de normas internas e internacionais específicas sobre refugiados, asilados, agentes e pessoal diplomático ou consular, funcionários de organização internacional e seus familiares, conforme dispõe o art. 2º, da Lei nº. 13.445/2017. Já em seu art. 1º, o diploma legal em análise, traz conceitos importantes sobre os sujeitos a quem é destinada, a exemplo, imigrante, emigrante, residente fronteiriço, visitante e apátrida. Dessa forma, imigrante é a pessoa que possui outra nacionalidade ou é apátrida que trabalha ou reside temporariamente ou definitivamente no Brasil; o emigrante corresponde ao brasileiro que passa a residir temporária ou definitivamente no exterior; o residente fronteiriço trata-se do nacional de país limítrofe ou apátrida que reside em município fronteiriço de país vizinho; o visitante consiste no nacional de outro país ou apátrida que destina-se ao Brasil para estadas de curta duração, isto é, sem aqui residir temporária ou definitivamente; e, por fim, o apátrida, pessoa que não é considerada nacional de nenhum Estado ou assim identificada pelo Estado brasileiro (CAVALCANTE, 2017). O art. 3º da Lei de Migração, trata dos princípios e das garantias voltado a norteara a atuação estatal face a proteção de direitos, sendo alguns destes: o da universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos; do repúdio e prevenção à xenofobia, ao racismo e a quaisquer formas de discriminação; da não criminalização da migração; da promoção de entrada regular e de regularização documental; da acolhida humanitária; da garantia do direito à reunião familiar; da igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante e a seus familiares; do acesso igualitário e livre do migrante a serviços, programas e benefícios sociais, bens públicos, educação, assistência jurídica integral pública, trabalho, moradia, serviço bancário e seguridade social. Diante do exposto, cumpre questionar se os preceitos presentes na Lei de Migração estão sendo devidamente observados ante Constituição Federal de 1988 e a realidade em que o país se encontra. ~ 48 ~
I.II. A dignidade humana face a constituição federal de 1988
O princípio da dignidade da pessoa humana, atualmente, juntamente com outros princípios, compõe o denominado núcleo essencial da Constituição Federal, estando presente em seu corpo legal no art. 1º, III, CF/88 (SARLET, 2012), sendo este alvo de muitas controvérsias, apesar disso, o presente trabalho se pauta no entendimento de que o princípio em comento deve ser protegido e efetivado, não levando em consideração, por ora, a complexidade e ambiguidade de sua expressão (WEYNE, 2013). Segundo Sarlet (2012), “é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não o contrário, já que o ser humano constitui finalidade precípua, e não meio da atividade estatal”, e de fato, o princípio da dignidade da pessoa humana deve ser compreendido como qualidade inerente a pessoa humana, logo, não pode ser dada pelo ordenamento jurídico, mas sim, respeitada e protegida pelo Estado através da devida observância a preceitos constitucionais, medidas públicas que efetivem o seu importante valor e que correspondam com as necessidades contemporâneas da sociedade.
I.III. Análise jurídica-social a lei de migração face à ordem constitucional brasileira
No que diz respeito a realidade vivenciada pelos venezuelanos, até então, a conclusão que se tem é que o problema tende a aumentar cada vez mais, pelo menos não é possível vislumbrar soluções em curto prazo. Fato este, gera tensão não só para a Venezuela, mas para os países vizinhos, como: a Colômbia e o Brasil (CORREIO, 2018). Com base nas informações do Fundo Monetário Internacional (FMI), a estimativa inflacionária para a Venezuela em 2018 pode chegar a 13.000%, o que significa uma grande perda do poder aquisitivo venezuelano, e piora ainda mais, tendo em vista a clara e repetida violação dos direitos humanos contra estes cidadãos (CORREIO, 2018).
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O número de imigrantes que chegam ao Brasil aumenta consideravelmente a cada dia, onde, segundo as informações obtidas pela Polícia Federal de Boa Vista, capital do Estado Roraima, em 2018, nos primeiros 45 dias do ano, recebeu formalmente a solicitação de abrigo de 18 mil venezuelanos, fato alarmante, ainda mais se comparado ao do ano de 2017, onde 17,8 mil solicitações formais de abrigos foram concedidas durante todo o ano (OGLOBO, 2018). Algumas das consequências resultantes dessa problemática são: o colapso da saúde pública, a repulsa por partes de alguns brasileiros aos venezuelanos pela falta de assistência satisfatória pelas autoridades políticas, aumento da criminalidade, a exploração trabalhista, dentre outros (CORREIO, 2018). O Comitê Brasileiro pela Paz na Venezuela é composto por movimentos populares que se uniram com o fim de se solidarizarem pela causa venezuelana, tais como o MST, o Movimento de Pequenos Agricultores, centrais sindicais, como a CUT, a Intersindical e a CTB, assim como partidos, coletivos de juventude e de comunicação popular.
Metodologia
A presente pesquisa tem caráter qualitativo, por meio do qual se buscou pelo uso da pesquisa documental, analisar da Lei de Migração face o princípio constitucional da dignidade da pessoa humana e da recente problemática que o Brasil enfrenta como reflexo da crise venezuelana. Os dados necessários para desenvolver o raciocínio apresentado foram obtidos por meio da realização de estudos bibliográficos em artigos e livros brasileiros relevantes sobre o tema, com a intensão de realizar uma pesquisa que permitisse a intimidade com o objeto de estudo, e ao mesmo tempo, contribuir com a sociedade.
Conclusões
É válido admitir, a alteração do conteúdo da lei conhecida atualmente como Lei de Migração desempenha para o ordenamento jurídico brasileiro, e principalmente, para os indivíduos a quem é destinada, estrangeiros de qualquer ~ 50 ~
nacionalidade localizados em território nacional e aos brasileiros, papel muito importante. Porém, é lógica a compreensão de que não basta a edição de uma lei que se refira a bens constitucionalmente tutelados sem que haja o devido planejamento e implementação estatal de políticas públicas que garantam o bem estar da população, sendo imprescindível um olhar humano das autoridades políticas, uma vez que possuem o dever de velar prioritariamente pelas demandas sociais. Diante do posicionamento do Estado de forma precária e incoerente com os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal de 1988, que movimentos sociais brasileiros, a exemplo, do Comitê Brasileiro pela Paz na Venezuela, a Articulação de Movimentos Populares da ALBA Brasil e outras entidades aderem de forma solidária a luta pelo povo venezuelano. É evidente a manifestação ativa da sociedade brasileira, ainda que minoritária, no sentido de que não se trata apenas da efetivação da Lei de Migração ou da defesa pela dignidade humana dos imigrantes venezuelanos que se refugiam no Brasil em busca de uma qualidade de vida, mas também do impacto que a população nacional, principalmente das pessoas que residem no Estado de Roraima, isto é, próximo à fronteira entre Brasil e Venezuela, que são mais afetadas. O número de estrangeiros, em especial os venezuelanos, que chegam ao Brasil tende a aumentar cada vez mais, diante de tal realidade as autoridades competentes devem se posicionar de forma mais célere e eficaz, tendo em vista que as medidas adotas atualmente não são suficientes para amenizar a superconcentração de pessoas em uma determinada região, bem como, a outros riscos que essas pessoas correm ao chegar no Brasil, a exemplo: da fome; da precária assistência médica, bem mais saturada do que já é, uma vez que o número da demanda só tende a aumentar; exploração trabalhista, pois são vistos como concorrentes e para obter alimento se sujeitam a qualquer condição de trabalho; aumento da criminalidade; e outros. Portanto, trata-se de uma atividade em conjunto, o que é muito difícil no Brasil, mas os movimentos sociais participativos, ainda que minoritários, contribuem para que outras entidades e bem-feitores acolham a causa, bem como, impulsionar a atuação do Estado. Não se trata apenas de números de pessoas, mas sim de vidas, de vidas que precisam de cuidado e hospitalidade e, para tanto, precisam ter os seus direitos básicos preservados para que possam viver dignamente. ~ 51 ~
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm Brasil, Lei Nº. 13.445, de 24 de maio de 2017. Lei de Migração. Brasília, DF, maio 2017. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/L13445.htm Acesso em: 05 de Maio de 2018. BRASIL, Senado Federal. Nova Lei de Migração é sancionada com vetos. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2017/05/25/nova-lei-de-migracao-e-sancionada-comvetos Acesso em: 05 de Maio de 2018. CAVALCANTE, Márcio André Lopes. Lei de Migração (Lei 13.445/2017). Disponível em: https://dizerodireitodotnet.files.wordpress.com/2017/09/lei-de-migrac3a7c3a3o-resumo.pdf Acesso em: 05 de Maio de 2018. CORREIO. Reflexos da tragédia venezuelana no Brasil. Disponível em: http://correio.rac.com.br/_conteudo/2018/04/opiniao_quinta_feira/546392-reflexos-da-tragediavenezuelana-no-brasil.html Acesso em: 06 de Maio de 2018. ENRICONI, Louise. A nova lei de migração. Disponível em: http://www.politize.com.br/nova-lei-demigracao/ Acesso em: 05 de Maio de 2018. O GLOBO. Crise humanitária venezuelana já afeta o continente. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/crise-humanitaria-venezuelana-ja-afeta-continente-22406678 Acesso em: 07 de Maio de 2018. MELLO, Patrícia Campos. Lei de Migração entra em vigor, mas é alvo de críticas. https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/11/1936866-lei-de-migracao-entra-em-vigor-masregulamentacao-e-alvo-de-criticas.shtml Acesso em: 05 de Maio de 2018. MST – Movimento dos Trabalhadores sem Terra. Movimentos populares no Brasil lançam chamado de solidariedade com a Venezuela. Disponível em: http://www.mst.org.br/2017/08/11/movimentospopulares-do-brasil-lancam-chamado-de-solidariedade-com-a-venezuela.html Acesso em: 05 de Maio de 2018. JORNAL NACIONAL. Entra em vigor Lei de Migração que dá mais direitos a estrangeiros. Disponível em: http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/entra-em-vigor-lei-de-migracao-que-da-maisdireitos-estrangeiros.html Acesso em: 05 de Maio de 2018. SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. 9. ed. rev. atual. – Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed. 2012. WEYNE, Bruno Cunha. O princípio da dignidade humana: reflexões a partir da filosofia de Kant – São Paulo: Saraiva, 2013.
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6 MOVIMENTO NEGRO: ABORDAGEM SOCIOJURÍDICA DO CONTEXTO PROTETIVO DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS DAS CRIANÇAS E ADOLESCENTES NA COMUNIDADE REMANESCENTE QUILOMBO DO LIVRAMENTO
ANDERSON DIEGO MARINHO DA SILVA5 EMÍLIA PARANHOS SANTOS MARCELINO6
RESUMO: O presente trabalho propõe discutir sobre a aplicação dos princípios da proteção integral e do melhor interesse do menor dentro da comunidade remanescente Quilombo do Livramento, situada no município de São José de Princesa-PB, estabelecendo um comparativo-normativo entre as políticas desenvolvidas e a (in)eficácia no tocante aos menores. Procura ainda conciliar a progressão social em confronto com a realidade etnocultural brasileira voltada aos remanescentes Quilombolas do Livramento; procurando discutir a colisão cultural em detrimento das manifestações constitucionais acerca da dignidade humana, em respeito a autonomia cultural e a resistência sociojurídica, tendo em vistas as imposições laborativas precoces às custas da educação, e de outras garantias básicas. Palavras-chave: Movimento negro. Quilombo. Criança e adolescente.
5
Graduando em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande- UFCG, CCJS. Mestre em Direito e Desenvolvimento Sustentável e professora da Universidade Federal de Campina Grande. 6
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Introdução
A cultura é o marco definidor de expressão da sociedade em todas as suas guerras, descobertas, láureas e estórias. É a forma de tornar modernos os esforços de um povo valorizando suas lutas. A importância da cultura se perfaz em cada traço progressista, onde as resistências de outrora foram/são capazes de modificar o contexto social, jurídico e econômico para que, a valorização da história, seja levada a cabo quando da constante evolução da sociedade e do sistema jurídico. Não muito diferente se encontra a história ríspida, orgulhosa e batalhadora das classes etnorraciais no Brasil. Sob a ótica de ideais expansionistas, pudemos fazer a ‘história’, sem glórias, {s custas da inobservância dos preceitos de todo um povo, de princípios, crenças, e cultura, ligados a impossibilidade de resistência econômica, consumando a subordinação aflitiva, onde a trilha da coroa em terras, se fazia em estradas de sangue negro, sob a totalidade de um preconceito que perpassa gerações. Não obstante toda a evolução da sociedade, as liberdades dispostas pela trajetória de evolução cultural, chega-se a uma época onde a consciência de raça, dentre outras minorias é aparente, nítida e infelizmente não respeitada no mínimo merecido. A luta de raças muito se assemelha ao Movimento Quilombola no Brasil. A resistência sempre foi a inspiração constante deste movimento. As políticas públicas são escassas. A inclusão do povo negro no mercado tem começado a ser percebida lentamente, há, dentre outros aspectos, a (in) eficácia das políticas inclusivas no sistema organizacional, fragilidade de manutenção dos fins políticos, sociais, e a constante inobservância da necessidade de integração das pessoas antes refugiadas, agora, socialmente isoladas, informatização, etc. O que nos faz questionar até onde existe uma preocupação real com os direitos das pessoas que, culturalmente possuem raízes de um o histórico opressor oriundo da progressão da soberania estatal, com toda a influência, constitucional e internacional em relação a livre manifestação e participação nos rumos sociais, tem sido cada vez mais esquecidos. O fato é ainda mais preocupante quando percebemos que as crianças e adolescentes, responsáveis pela perpetuidade cultural, “o futuro do amanh~”, encontram-se em um contexto de esquecimento social e jurídico, sem políticas ~ 54 ~
inclusivas, sem garantismo algum, escanteados em meio a um sistema cada vez mais oportunista.
I. DA PROTEÇÃO INTEGRAL E DO MELHOR INTERESSE
Introduziu-se a Doutrina da Proteção Integral no ordenamento jurídico brasileiro através do artigo 227 da Constituição Federal, que declarou ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar, à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O melhor interesse da criança, como princípio geral, não se encontra expresso na Constituição ou no Estatuto da Criança e do Adolescente, sustentando a doutrina especializada ser ele inerente à doutrina da proteção integral (CF, art. 227,caput, e ECA, art. 1º), da qual decorre o princípio do melhor interesse como critério hermenêutico e como cláusula genérica que inspira os direitos fundamentais assegurados pela Constituição às crianças e adolescentes. Diante desse panorama, a operacionalização do princípio pressupõe uma reflexão sobre os demais valores do ordenamento, bem como uma ampla exposição do argumento que justifique sua aplicação, de modo a manter a coerência do sistema e assegurar o controle racional da decisão.
II. Quilombo: Aspectos Informadores
É comum rememorarmos que o contexto de surgimento dos Quilombos como refúgios do povo negro encontra-se intimamente ligado à época da escravidão. Sob essa ótica, cerceia a coragem da fuga, mesmo cientes de todas as consequências senhoriais em razão daquela, ao crivo da constante dubiedade entre liberdade, conquistada, e resistência, assumida. Não havia paridade no contexto que fosse suficiente à luta, a alternativa era o isolamento. Ilka Boaventura Leite (2000, p. 333) menciona: ~ 55 ~
O quilombo constitui questão relevante desde os primeiros focos de resistência dos africanos ao escravismo colonial, reaparece no Brasil/república com a Frente Negra Brasileira (1930/40) e retorna à cena política no final dos anos 70, durante a redemocratização do país. Trata-se, portanto, de uma questão persistente, tendo na atualidade importante dimensão na luta dos afro-descendentes.
O quilombo, que abrasileirado possui, dentre outros e tantos significados o de estabelecimento peculiar onde as pessoas de uma mesma cultura podiam rememorar e se expressar sem nenhuma limitação de outrem, é o marco definidor da persistência de classe, e de outras tantas expressões. No contexto de refúgio, as famílias que por aquela região se formavam necessitavam laborar para subsistir. A agricultura, a instrumentalização de engenhos, o comércio entre outras atividades braçais foram, durante muito tempo, principalmente no contexto de solidificação, suficientes a satisfação das necessidades primarias na comunidade quilombo do livramento. Nas palavras de Janine (2000, p. 2): “A historiografia brasileira tem indicado que os quilombolas permaneceram em contato com as vilas e as freguesias mais próximas, pois, assim, poderiam comercializar seus produtos e obter informações”. Não é incomum imaginar que o favorecimento geográfico não pudesse evidenciar a necessidade colaboração laborativa de menores que, sem nenhuma condição mínima de acesso se quer a sociedade, quanto mais às políticas de então. O perigo reside no comodismo. O culturalismo de base evidencia a resistência a participação/ integração do povo refugiado com os demais. Posto claro concluir que o contexto social remonta a coragem em transgredir todo o contexto de exploração de raça que se constituía, e principalmente, a forma, como os menores escravos eram tratados, e desde já, destinados a seguir na trajetória de servidão e exploração, tendo, bem antes, das leis (tanto do ventre livre, como da áurea) o contingenciamento suficiente para, dentro de seus pares, e longe de toda e qualquer forma de aculturação externa (branca) crescer como manda suas origens.
III. O LIVRAMENTO: O REFÚGIO E O SACRIFÍCIO DOS DIREITOS DAS CRIANÇAS
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Livramento foi o nome originalmente atribuído ao local em que os negros refugiados das regiões circunvizinhas, limítrofes entre a paraíba, o Pernambuco e o Ceará, puderam se abrigar e estabelecer os primeiros passos à restituição da sua cultura. Localizado no Planalto da Borborema, na divisa entre os estados da Paraíba e de Pernambuco, próxima a um dos pontos culminantes do Nordeste, o Pico do Papagaio, com 1.360 metros de altitude, a 14 km da cidade de Triunfo (sertão de Pernambuco) e 19 km do município paraibano, Princesa Isabel. A altitude local concede vista favorável para alguns municípios paraibanos, a citar São José de Princesa, ao qual, geograficamente encontra-se pertencente. Segundo Dona Rosa - Maria Rosa dos Santos, 80 anos - (in MENESES, 2015), identificada na comunidade como a historiadora do lugar, o quilombo nasceu do livramento da escravidão que alguns negros fugidos alcançaram naquele alto de serra, e por terem conquistado a liberdade, batizaram-no de Livramento. O acesso era extremamente difícil, e a vista panorâmica fazia do lugar um local estratégico para o refúgio. Sobreviveram alimentando-se de plantas, principalmente do catolé, e de animais que conseguissem capturar. Dona Chicola Francisca Patrício, 80 anos - (in MENESES, 2015) descendente dos mais antigos moradores, afirma que seus ascendentes não contaram como chegaram porque tinham medo de ser descobertos. O firmamento da comunidade começou a se dar com o trabalho agropasteoreiro.
Nessa
oportunidade
todos
os
membros
da
família,
independentemente de sua condição física ou da origem, haviam por cuidar em contribuir para a sobrevivência, que, inclusive, era superior a qualquer garantia e direitos que se pudesse imaginar. Tal cultura hoje é ainda fortemente presente, seja criança ou adolescente, trabalhar na terra é estágio que a grande maioria deles tem que passar. É forma de nutrir na geração atual do quilombo como se deu o processo de consolidação. O risco é como falar em direitos, preservar as garantias mínimas sendo que o lar se constitui em refúgio. Existe pois uma relativização extrema em se garantir o mínimo constitucional, em especial, as garantias referentes ao melhor interesse do menor, quando a cultura é ~ 57 ~
tão mais forte, digo, é melhor recebida do que qualquer outro mandamento, se não o da experiência. Não é incomum perceber cenas em que as garantias que instrumentalizam o ECA, encontram-se diariamente sendo afligidas, não respeitadas. É o que se extrai da prática costumeira em que, tanto o cachimbo quanto o álcool, por serem sempre portados pelos mais velhos, os jovens, e principalmente, as crianças acabam por experimentar desde muito cedo, e acabam tornando-se usuários rotineiros, o que, além de repercutir na saúde, e principalmente na expectativa de vida, afetando diretamente na preservação da cultura quilombola, acaba por reduzir a eficácia do ordenamento jurídico, quer da constituição, ou das leis extravagantes, em que proíbe a comercialização de bebidas e cigarros para menores. Nesse sentido determina o ECA, em seu artigo 243, acerca da utilização, digo, proibição da comercialização de produtos alcoólicos para menores:
Art. 243. Vender, fornecer, servir, ministrar ou entregar, ainda que gratuitamente, de qualquer forma, a criança ou a adolescente, bebida alcoólica ou, sem justa causa, outros produtos cujos componentes possam causar dependência física ou psíquica: (Redação dada pela Lei nº 13.106, de 2015) Pena - detenção de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e multa, se o fato não constitui crime mais grave. (Redação dada pela Lei nº 13.106, de 2015).
A cultura acaba por oprimir garantias mínimas, e o Estado, como atua nesses casos? Há de se falar na soberania? Isso porque, não havendo um controle na utilização imoderada de substancias lesivas ao estado de pessoa em desenvolvimento, há, a presunção de inercia das políticas de saúde e conscientização dentro das comunidades quilombolas, sedimentadas pela impossibilidade geográfica e justificadas, erroneamente, pelo acesso. No entanto, deve-se remontar que a soberania do Estado não está condicionada a fronteiras, e, os seres humanos, nas áreas mais contingentes do território, devem ser alcançados pelas intervenções públicas, devem ter os direitos sociais, fundamentais, e os característicos as suas condições respeitados independentemente da forma de gerenciamento em que devem se dar as políticas para efetivarem-se no contexto desejado. A omissão é uma das armas mais corrosivas a cultura quilombola. ~ 58 ~
Pois bem, os fatos atentatórios aos princípios da condição peculiar da criança e do adolescente em desenvolvimento são ainda mais nítidos quando, a taxa de maternidade
na
adolescência
consegue
superar,
em
termos
práticos,
a
comercialização de álcool entre os pares, entre eles. É cada vez mais comum que as meninas, até, no máximo, os 16 anos de idade, estejam casadas, e já tenham, pelo menos um filho, ou em processo de gestação. Pasmem! É ainda mais estarrecedor quando, ultrapassado esse parâmetro de idade, socialmente convencionado entre eles, que a menina passa a ser “mal vista” pelos olhos dos rapazes, e da comunidade em geral, repercutindo, inclusive, até na forma como os pais educam seus filhos, como, se a formação familiar estivesse indo de encontro aos princípios sociais estabelecidos. É, inclusive, uma questão de saúde pública. A gestação precoce, principalmente na primeira infância, afora os reflexos jurídicos e econômicos, como a forma de sustento da família, ficando a mercê dos programas sociais, já que, não existe muita a expectativa de trabalho dentro da comunidade. Nem todos conseguem sobrevier da agricultura familiar, até por questões agronômicas. O problema toma maior gravidade quando podem ser percebidos a insuficiência fisiológica em antecipar as fases de desenvolvimento dos sistemas de reprodução na infância/adolescência. A facilidade em relação aos óbitos maternos, não se observa uma redução significativa nos últimos anos, havendo apenas uma variação entre 13% a 16% (RNPI, 2015). Trata-se de mais um desafio para o gestor público. Quanto mais jovem, mais tardiamente as adolescentes identificam a gravidez e mais tardiamente procuram os serviços de saúde. O aborto também acontece mais tardiamente, gerando mais riscos e complicações. Em 2011, 15% de todas as mortes maternas foram das adolescentes abaixo dos 19 anos. De todas as mortes relacionadas ao aborto, 17% foram de jovens entre 10 e 19 anos (RNPI, 2015). Este é um assunto sensível para a sociedade por suscitar aspectos éticos, morais e religiosos. O aborto realizado em condições inseguras é uma importante causa de morte de mulheres no Brasil. Porém, é importante observar que “[...] a decisão pelo aborto surge quando não há apoio familiar ou do parceiro e, muitas querem esconder o fato de seus familiares por medo ou vergonha” (ANDALAFI, 2010). ~ 59 ~
Metodologia
Para adoção dos posicionamentos abordados durante a construção do presente trabalho, realizou-se, por meio de pesquisa de campo, in loco, através de diálogos com alguns dos representantes e moradores da comunidade, consolidando assim o grupo de informações, dados, necessários para os aprontamentos construídos. Bem como a realização de pesquisa de cunho bibliográfico para o fornecimento de conceitos relevantes para a estruturação da temática, ainda muito incipiente no ambiente acadêmico e jurídico.
Conclusões
O relativismo que encontra presente os direitos dos menores nas comunidades quilombolas, o receio de desnaturalização dos costumes, o receio pelo sacrifício das origens às custas da globalização, que caminha a passos curtos, no tocante a inserção nas comunidades quilombolas, ainda não possuem firmamento jurídico. Por mais que as políticas públicas sejam estabelecidas em um padrão médio de necessidades presumidas, as características das crianças e dos adolescentes são peculiares a cada região em que se localizam, o que dificulta, demasiadamente a forma como o (in) sucesso das ações afirmativas podem se expressar no seio de refúgio. No Quilombo do livramento o que há são grandes indícios em que o Estado é ineficiente em prestar e garantir todos os direitos, ainda que mínimos, conforme se precisam e sedimentam os princípios norteadores do presente. Falta estrutura de saúde básica, falta educação com formação profissional e atenta aos regramentos etnoculturais, falta respeito pela preservação história e pelas lutas. O livramento não é roteio turístico, não é rota se não de cultura, de marcas de dor, de herança da historia em que se solidifica todo o nosso país em seu ‘descobrimento’. É preciso que o direito das crianças e dos adolescentes, que s~o os genes do heroísmo que surgiu lá em Palmares, possam contaminar as gerações futuras. E se, o Estado não consegue garantir o mínimo para que não haja nenhuma ~ 60 ~
diferenciação entre crianças brancas e afrodescendentes, estabelecendo políticas eficazes a umas e insuficientes pra outras, como falar que a cultura não será superior ao imperialismo normativo?
Referências
ANDALAFT. C.C.M; NETO. J A. Gravidez e adolescência. Rio de Janeiro: Editora Revinter, 2010. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil, 1988. Presidência da República. Acesso em: 04 de junho de 2018. _____. ECA (1990). Estatuto da Criança de do Adolescente. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: Acesso em: 04 de junho de 2018 IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Censo Demográfico, 2010. LEITE, Ilka Boaventura. Os Quilombos no Brasil: questões conceituais e normativas, Florianópolis, Etnográfica, Vol. IV (2), 2000, pp. 333-354, MENESES, Janine Primo Carvalho. Livramento, um Quilombo entre fronteiras: Cadernos Imbondeiro. João Pessoa, v. 4, n.1, out.2015 REDE NACIONAL DA PRIMEIRA INFÂNCIA (RNPI). Secretaria Executiva do instituto da infância. Fortaleza, nov. 2015, Acesso em: 04 de junho de 2018.
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7 A CRIMINALIZAÇÃO DOS MOVIMENTOS SOCIAIS COMO HERANÇA DA DITADURA MILITAR NO BRASIL BERNARDINO JERÔNIMO DE ALMEIDA JÚNIOR7 RAFAELA AZEVEDO DOS SANTOS FELIX8
RESUMO: Este resumo expandido tem como objetivo principal fazer uma análise da criminalização dos movimentos sociais sob a égide da Ditadura Militar no Brasil, mostrando como o Estado Totalitário da época buscou atribuir a quem reivindicava por seus direitos o car|ter de “vil~o”, numa tentativa de obter apoio dos demais civis e também como forma de legitimar o seu poder. É analisado como tal criminalização permanece presente na atualidade, sendo um reflexo do período do regime militar, na forma, por vezes, injusta e desproporcional que o Estado responde às manifestações sociais. O presente resumo, ainda, busca mostrar que, embora a Constituição Federal de 1988 tenha trago disposições com o intuito de ir contra essa criminalização, isto não foi suficiente, sendo visível nos dias de hoje transgressões aos direitos sociais. Palavras-chave: Ditadura militar. Criminalização. Movimentos Sociais.
Introdução
7
Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS), Unidade Acadêmica de Direito (UAD), 5º período; 8 Universidade Federal de Campina Grande (UFCG), Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS), Unidade Acadêmica de Direito (UAD), 5º período. ~ 62 ~
A história de todos os países é marcada por lutas. No Brasil não seria diferente. Fazendo uma ligeira retrospectiva, desde a Insurreição Pernambucana, em 1645, até o impeachment do ex-presidente Fernando Collor, em 1992, percebe-se que há, em nosso país, uma manifestação de movimentos sociais na hora de travar lutas e embates contra governos autoritários e a favor da liberdade e democracia. O foco do presente trabalho são os movimentos sociais que surgiram na segunda metade do século XX, os quais se fortaleceram a partir da década de 70, mediante uma assídua oposição ao regime militar vigente na época. Esse período obscuro que assolou o nosso país, foi também marcado pela consolidação dos movimentos sociais, haja vista terem, os estudantes, uma compreensão da situação em que viviam. Esse fato foi propiciado graças ao estabelecimento de cursos de Ciências Sociais, através da reforma pedagógica ocorrida na época, e que estimulava o pensamento crítico. Soma-se a isso a aversão dos outros cidadãos ao regime ditatorial. Eis que é formado um grupo de oposição organizada. Para frear a crescente onda de manifestações e descontentamento, o governo militar
utilizou-se
de
meios
para
enfraquecer
movimentos
progressistas,
transformando-os praticamente em criminosos, subversivos, e fazendo com que o restante da populaç~o os vissem como “inimigos internos” do Estado. Além disso, a tortura, violência e supressão de direitos foram formas que o regime autocrático usou para silenciar as manifestações sociais. Tendo-se em vista essa temática, o presente resumo tem como enfoque discorrer sobre a criminalização dos movimentos sociais na época da ditadura militar e os seus resquícios na sociedade contemporânea.
Desenvolvimento I. Criminalização dos movimentos sociais para legitimar o autoritarismo do estado
Na obra ficcional de George Orwell, “1984”, é apresentada por um dos personagens uma fórmula para que o mesmo grupo de pessoas permaneça no poder durante um longo período de tempo: a repressão e a aceitação. Não basta que a ~ 63 ~
população obedeça às regras impostas pelo Estado Totalitário, é também necessário que ela tenha apreço em cumpri-las. Uma forma de conseguir isso é encontrar um inimigo em comum tanto ao Estado como ao povo, uma vez que ameaças elevam a coesão do grupo e colocar a culpa dos problemas no inimigo diminui a sensação de falta de controle. No livro supracitado, há um ritual chamado “2 minutos de ódio”, no qual as pessoas assistem, todos os dias, a um vídeo colocado nas “teletelas” do discurso e imagem do inimigo do Estado, Emanuel Goldstein. É nesse momento que as pessoas se exaltam, se enfurecem e destilam seu ódio ao inimigo principal do Partido. No nosso país, para conseguir efeito semelhante, utilizou-se, segundo afirma Bruziguessi: No caso brasileiro, na relação entre coerção e consenso, há uma recorrência maior grande do uso dos aparelhos repressivos e esta recorrência assumirá formas distintas ao longo da história, incorporando novas maneiras de estabelecer a relação entre coerção e consenso, como é o caso do que chamamos de criminalização dos movimentos sociais. (Bruziguessi, 2014, p. 228)
A partir disso, então, foram desenvolvidas uma série de ferramentas jurídicas e oficiais durante a vigência do regime militar que fazia com que as pessoas tolerassem as atrocidades realizadas contra aqueles que podiam comprometer a ordem do Estado. Além disso, para fomentar, ainda mais, a desconfiança na população, foi abraçada pelos militares a Doutrina de Segurança Nacional (DSN). Elaborada nos Estados Unidos e utilizada no Brasil como pretexto para os militares ascenderem ao poder, essa doutrina promovia uma lógica de funcionamento do Estado em que não comportava confrontos e divergências. A DSN rotulava como “comunistas” os indivíduos que participavam dos movimentos sociais, fazendo com que eles, de certa forma, pudessem ser responsabilizados pelo não avanço do capitalismo no nosso país. Dessa forma, prejudicando o desenvolvimento econômico e social do mesmo e, ainda, fazendo com que a população fosse incentivada a defender a nação contra os movimentos sociais. Tal doutrina fora até incorporada no ordenamento jurídico nacional da época, como forma do Decreto-Lei nº 314, de 13 de Março de 1967, que elenca nos seus primeiros 4 artigos: ~ 64 ~
Art. 1º Tôda pessoa natural ou jurídica é responsável pela segurança nacional, nos limites definidos em lei. Art. 2º A segurança nacional é a garantia da consecução dos objetivos nacionais contra antagonismos, tanto internos como externos. Art. 3º A segurança nacional compreende, essencialmente, medidas destinadas à preservação da segurança externa e interna, inclusive a prevenção e repressão da guerra psicológica adversa e da guerra revolucionária ou subversiva. § 1º A segurança interna, integrada na segurança nacional, diz respeito às ameaças ou pressões antagônicas, de qualquer origem, forma ou natureza, que se manifestem ou produzam efeito no âmbito interno do país. § 2º A guerra psicológica adversa é o emprêgo da propaganda, da contrapropaganda e de ações nos campos político, econômico, psicossocial e militar, com a finalidade de influenciar ou provocar opiniões, emoções, atitudes e comportamentos de grupos estrangeiros, inimigos, neutros ou amigos, contra a consecução dos objetivos nacionais. § 3º A guerra revolucionária é o conflito interno, geralmente inspirado em uma ideologia ou auxiliado do exterior, que visa à conquista subversiva do poder pelo contrôle progressivo da Nação. Art. 4º Na aplicação dêste decreto-lei o juiz, ou Tribunal, deverá inspirar-se nos conceitos básicos da segurança nacional definidos nos artigos anteriores.
Desse modo, e com o exposto acima, fica perceptível o esforço do Estado, durante o regime militar, de tornar os integrantes dos mais diversos movimentos sociais “vilões”, como aqueles que trariam a desordem e o caos ao país.
II. Criminalização dos movimentos sociais na contemporaneidade
É de fácil assimilação o esforço despendido pelo Estado para atribuir um caráter de inconveniência aos movimentos sociais. Atualmente, visualiza-se esse aspecto através, por exemplo, do tratamento que é dado aos componentes do MST (Movimento Sem Terra). Acerca do tema, afirma a advogada Giane Ambrósio (2016):
De acordo com dados da Comissão Pastoral da Terra, observa-se que no contexto das lutas rurais protagonizadas por trabalhadores, lideranças de movimentos sociais e sindicais e defensores de direitos humanos, entre os anos de 1995 e 2014, foram catalogados 3.964 casos de pessoas presas em todo o país. Especialmente no que diz respeito ao Movimento Sem Terra, suas tradicionais formas de protesto sempre desencadearam reações repressivas do Estado, com o desenvolvimento da atividade punitiva que exacerba os limites legais impostos por regimes democráticos.
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No corrente ano pudemos presenciar os protestos realizados pelos caminhoneiros, onde os mesmos buscavam a baixa dos preços dos combustíveis, bloqueando, assim, as vias de todo o Brasil. Na ocasião, o atual Presidente da República, Michel Temer, não hesitou em usar as Forças Armadas para desobstruir as rodovias interditadas. Demonstrando, mais uma vez, o descaso estatal para com os movimentos sociais. É possível verificar, então, de forma expressiva, a contribuição histórica de valores culturais na criminalização dos movimentos sociais. Tendo a ditadura militar de 1964 como base, observa-se que a desconsideração de direitos em detrimento de procedimentos repressivos, tais como a tortura, não foi efetivamente combatido após o período ditatorial. É possível, assim, ilustrar esse fato através da Lei da Anistia, a qual afirma em seu artigo 1º que:
Art. 1º É concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares.
Em virtude de princípios morais, a Lei nº 6.683/79 garantiu, entre outros benefícios, impunidade àqueles que, de certa forma, repreenderam grupos que reivindicavam seus direitos naquele período de constante censura. Como consequência disso, tem-se a natural marginalização dos movimentos sociais, que foi perpetuada no decorrer dos anos, como corolário da ausência de reflexão acerca das atitudes tomadas em períodos como o ditatorial.
III. Direitos sociais e a constituição federal de 1988
Apesar da tendente criminalização dos movimentos sociais como herança de períodos de repressão, desde a promulgação da Constituição Federal de 1988 há uma ascensão aos direitos sociais que, a partir de então, ganham tutela constitucional. Dispõe o artigo 6º da Carta Magna: ~ 66 ~
Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.
A Lei Maior de 1988 é um exemplo emblemático da dialética entre Estado e sociedade civil, uma vez que incorporou ao seu texto vários direitos que haviam sido ignorados, face o período de repressão, e acrescentou requisições de vários setores, como o trabalhista. Com o advento da Constituição Federal de 1988, foi instaurado, de fato, no Brasil o Estado Democrático de Direito, o qual assegura, por parte do Estado, a garantia dos Direitos Fundamentais dos indivíduos de uma sociedade. Esses avanços incorporados no texto constitucional configuram frutos de lutas travadas por grupos, tais como os estudantes, durante a década de 80. Contudo, o diploma constitucional resguardou, ainda, interesses particulares de grupos elitistas. Nesse sentido, afirma Jorge Zaverucha:
A nova Constituição descentralizou poderes e estipulou importantes benefícios sociais similares às democracias mais avançadas. No entanto, uma parte da Constituição permaneceu praticamente idêntica à Constituição autoritária de 1967 e à sua emenda de 1969. Refiro-me às cláusulas relacionadas com as Forças Armadas, Polícias Militares estaduais, sistema judiciário militar e de segurança pública geral (ZAVERUCHA, 2010, p. 45).
Zaverucha (2010) trata, também, da constante mistura entre as esferas de poder do Estado. Há, segundo o mencionado autor, uma militarização da segurança pública, em certos momentos as Forças Armadas são acionadas para resolver casos que são de competência da polícia. Tal fato é facilmente visualizado nos dias de hoje, posto que o Exército é costumeiramente acionado para repreender manifestantes em todo o Brasil. Além de uma herança fruto do período autocrático, há a restauração, bem como ampliação, dos meios de criminalizar os movimentos sociais em maneiras cada vez mais dinâmicas e com cada vez mais consentimento, quando não o apoio direto, de importantes esferas da sociedade civil. ~ 67 ~
Metodologia
Utilizou-se, no trabalho em questão, o método hipotético-dedutivo, partindo de visões mais amplas, através de apanhados históricos, que perpassam a efetiva contribuição dos movimentos sociais no decorrer dos tempos dando ênfase, no entanto, à marginalização que foi conferida aos mesmos no período ditatorial. O método exegético-jurídico propiciou a relação dos momentos que a sociedade enfrentava com as garantias tuteladas nos dispositivos vigentes na época. Por meio de pesquisas bibliográficas, buscou-se embasamento para a escrita, bem como incentivo para discussões acerca do tema. Conclusões
Diante do exposto, torna-se visível que a ditadura militar desenvolveu um legado de marginalização dos movimentos sociais durante os anos em que se estendeu, através da constante repressão e censura àqueles que possuíam ideais diferentes dos defendidos pela elite que estava no poder. Criando e aperfeiçoando meios de se manter, tais como a DSN (Doutrina de Segurança Nacional). A previsão de dispositivos como a Lei da Anistia (Lei nº 6.683/79) fazem transparecer a ausência de reflexão acerca das atrocidades cometidas no período ditatorial, uma vez que essa lei garante a impunidade daqueles que mitigaram direitos fundamentais. São normas como essa que possibilitam emergir a desconsideração do Estado e de alguns civis para com os movimentos sociais. Embora a Constituiç~o de 1988, conhecida como “Constituiç~o Cidad~”, tenha trago em seu texto legal a previsão dos Direitos Sociais, este fato não é suficiente para impedir a transgressão a esses direitos. Haja vista que, ainda nos dias atuais, o Poder Executivo, ignorando os preceitos legais, faz uso das Forças Armadas - em situações que nem sempre lhe competem - para censurar manifestantes. Enquanto àqueles que estão no poder preferirem os interesses de pequenas elites em detrimento dos interesses da coletividade, os movimentos sociais, lutas que visam a reinvindicação de direitos, serão vistos de forma negativa. A herança ditatorial deve ser ultrapassada, de forma que o período de repressão experimentado pela ~ 68 ~
população brasileira seja alvo de reflexões, discussões e debates no meio social. Somente através da informação e disseminação de conhecimentos é que mazelas como essas podem ser superadas.
Referências
ÁLVARES, Giane Ambrósio. Criminalização dos movimentos sociais revive a ditadura. Disponível em: <http://justificando.cartacapital.com.br/2016/09/24/criminalizacao-dos-movimentos-sociais-reviveditadura/> Acesso em: 08 jun. 2018. BRUZIGUESSI, Bruno. O legado da ditadura no processo de criminalização dos movimentos sociais. Tempos Históricos, Marechal Cândido Rondon, Volume 18, p. 228- 254, 1º semestre de 2014. ORWELL, George. 1984. Tradução de Alexandre Hubner e Heloisa Jahn. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: 1988. BRASIL. Decreto nº 314, de 13 de Março de 1967. Define os crimes contra a segurança nacional, a ordem política e social e dá outras providências. Diário Oficial da União, 13/03/1967. Seção 1. BRASIL. Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979. Concede anistia e dá outras providências. Diário Oficial da União, 28/08/1979. MEDEIROS, Alexsandro M. Breve História dos Movimentos Sociais no Brasil. Disponível em: <https://www.sabedoriapolitica.com.br/products/breve-historia-dos-movimentos-sociais-no-brasil/> Acesso em: 7 jun. 2018. PESSOA, Eudes Andre. A Constituição Federal e os Direitos Sociais Básicos ao Cidadão Brasileiro. Disponível em: <http://www.ambitojuridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9623> Acesso em: 6 jun. 2018. ZAVERUCHA, Jorge. Relações civil-miltares: o legado autoritário da Constituição brasileira de 1988. In: TELES, Edson; SAFATLE, Vladimir (Org.). O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo, 2010.
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8 IDENTIDADE DE GÊNERO: DEMONIZAÇÃO OU DESINFORMAÇÃO EM PROJETO DE LEI MUNICIPAL DE SOUSA, PB.
ANDRÉ FELIPE ALMEIDA FREIRE SOARES LILIANE GOMES AMÉRICO
RESUMO: O seguinte resumo busca analisar brevemente a conotação negativa vinculada a ideologia de gênero na normativa municipal de Sousa-PB que proibiu seu debate em âmbito escolar, delineando-se sobre o conteúdo semântico atribuido à temática no projeto de lei. A pesquisa extendeu-se pelo site do MEC, do projeto Base Nacional Comum Curricular, dos manuais PCNs e de notícias locais e nacionais. Além da pesquisa bibliográfica sobre a análise do discurso e seu poder pesuarsivo. Ponderar sobre a questão semântica dos termos utilizados nos projetos de lei elaborados em Sousa e em algumas cidades brasileiras representa o objetivo central do trabalho em questão. Palavras-chave: Identidade; Gênero; Ideologia
Introdução
O papel de gênero representa uma ideia defendida por cientistas sociais que compreendem gênero como uma construção social, produto de uma herança históricocultural, que categorizou como gêneros o masculino e feminino a partir da estrutura ~ 70 ~
biológica do ser humano. Quando um sujeito possui o sexo biológico incompatível àquele o qual ele se percebe no mundo social, constitui o que estudiosos da psiqué humana denominam de crise de identidade de gênero. Isso pode ocorrer pela hipótese científica de que, no processo gestacional, os órgãos sexuais são formados antes da constituição do cérebro do bebê, e essa falta de sintonia originaria em uma pessoa transgênero. Nesse sentido, o trabalho se atém tanto verificando a errônea noção sobre genêro na lei sancionada como a discussão do termo Identidade de gênero na esfera educacional como fonte de esclarecimento das possiveis mudanças nas paisagens sociais do município de Sousa-PB.
Desenvolvimento
A concepção de gênero exige um direcionamento na conduta do sujeito quanto ao seu vestuário, posicionamentos, maneiras de falar, caminhar e gesticular, reduzidas ao núcleo que contém dois gêneros definidos, que não podem cambiar suas peculiaridades entre si, resultando na retaliação social caso este transgrida com os ditames que o definem de forma taxativa como homem ou mulher. Gayle Rubin, na sua obra “O tr|fico de mulheres: notas sobre a “economia política” do sexo” trata da questão de gênero como um mecanismo estrutural, possuindo em suas engrenagens classificações que determinarão os papéis do Homem e da Mulher na sociedade. Essas relações são determinadoras para a inserção da pessoa transgênero, por exemplo, em zona subalterna e marginalizada por romperem com a condução que essa estrutura visa promover na esfera coletiva. Esses papéis de gênero são culturalmente demarcados para estabelecer uma relação de Poder do mais forte sobre o mais fraco, do homem sobre a mulher, do considerado normal sobre o desviante. Em razão disso, cria-se um sistema excludente, que nomina esses indivíduos pejorativamente com termos impregnados de carga estigmatizante, como sapatão. Para a subsistência desse mecanismo estruturado, foram aprovados projetos de lei em algumas localidades que vedam a aplicação de atividades pedagógicas em torno de matérias atinentes a identidade - e não ideologia - de gênero na grade de ensino das escolas da rede privada e municipal, como ocorreu na cidade de Sousa-PB, apesar de os
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Parâmetros Curriculares Nacionais determinarem a abordagem de temas transversais, como gênero e orientação sexual. O artigo 205 da carta magna encarrega ao Estado e a família, com colaboração da sociedade, de promover o desenvolvimento da pessoa em todas as suas etapas, desde a formação educacional e cidadã, até a sua qualificação para inseri-la ao mercado de trabalho. O que se verifica quando não há o dialogo entre esses entes, no intuito de fornecer esclarecimentos a pessoa – na idade cabível - é a fortificação de uma herança histórico-cultural que provoca ressonâncias lesivas à parcela estigmatizada, como eventuais violências físicas e morais. Alega-se que a discussão sobre identidade de gênero no âmbito escolar signfica doutrinação das crianças e desestruturação do núcleo famíliar. Esse discurso, desenvolvido na maioria das vezes na dicção de senso comum, emprega uma associação negativa ao tema e distorce informações que são recepcionadas pelo população sem uma assepsia crítica do discurso de quem o faz. Essa técnica argumentativa é a chamada dialética erística9, também utilizada para a condenação social da proposta de abordagem de temas sobre pluralismo sexual e identidade de gênero no nível fundamental designado de kit gay. É necess|rio ponderar sobre o termo “ideologia”, bastante utilizado pelos condenadores da cartilha sobre diversidade sexual proposta pelo MEC em 2014 e que, subentende-se, apresenta uma conotação propositalmente negativa. Segundo o dicionário de filosofia10, ideologia “é toda a crença usada para o controle dos comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença [...]”, e que “apresenta um elemento limitativo: o fato de n~o ser estritamente objetiva e completa”. Os contrários ao debate sobre identidade de gênero nas escolas atrelam o termo a uma desestruturação do núcleo familiar, composta nessa perspectiva pela figura paterna e materna, além de induzir a ideia de rompimento com a ordem natural estabelecida pelo sexo biológico do indivíduo. Os adeptos ao diálogo buscam conscientizar que essa questão precisará ser prévia ou tardiamente tratadas em conjunto com a família e a escola para que haja a inserção desde cedo de realidades que estão cada vez mais à tona. 9
38 Estratégias para Vencer Qualquer Debate – A Arte de Ter Razão https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/ideologia
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Não havendo a abordagem sobre as questões de gênero nas instituições escolares, serão então processadas pela instituição familiar, que nem sempre irá saber como proceder diante do assunto em moldes adequados. Assim, o processo de construção cultural, que se inicia dentro do cotidiano familiar do sujeito, chamado de endoculturação, influenciará na forma como ele venha a interpretar a sociedade e sua volatilidade. Isso significa que o meio em que o contexto em que este está inserido, seja na família, seja na escola, contribuirá para sua a formação da sua percepção sobre gêneros. A discussão em sala de aula não determinará seu comportamento, mas fomentará o respeito àquele que seja diferente do dele. O desconhecimento das particularidades relacionadas a identidade de gênero, que em diversos casos se torna perceptível pelos indivíduos ainda na infância, (seja quando uma criança percebe comportamentos tidos como diferentes no colega, segundo os padrões ensinados à ela, ou quando ela mesma apresenta esses mesmos comportamentos) é o que geralmente provoca atitudes de intolerância, promovida por injúrias, agressões físicas ou psicológicas, o que vai contra a premissa do Estado como um ente que possui como fundamento a dignidade da pessoa humana, uma vez que quando uma pessoa se torna vítima dessas ações praticadas por terceiros sua dignidade não está sendo violada. Se isso pode ocorrer naquela fase inicial da sua vida e dentro de um órgão estatal (no caso das escolas públicas) possivelmente sua dignidade, bem como a de outras pessoas nas mesmas condições, também não serão respeitadas em momentos posteriores.
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Fonte: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro01.pdf
Segundo o documento Base Nacional Comum, projeto federal em andamento, a educação deve seguir o viés de normatividade e progressividade em âmbito nacional, para isso o MEC está visando uma maior uniformização dos conteúdos pedagógicos, o que denota, inclusive, a impossibilidade de criação de uma disciplina divergente das estabelecidas pelas legislações regulamentadoras da educação e órgãos nacionais responsáveis. A proibição explicita por meio da competência legislativa, que deve se voltar para assuntos de interreses locais, representa uma censura em face a uma socidade globalizada, onde a informação irá ser propagada de maneira ou de outra. Caberá, portanto, rever se essas normativas não violam com a carga axiologica contida na Constituição Federal de 88.
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Metodologia
O método utilizado no presente trabalho foi o Dedutivo, partindo de uma premissa maior em torno de gênero para chegar a ponderações específicas sobre a temática na esfera educacional. A pesquisa utilizada é a bibliográfica, por utilizar de subsídio livros e produções que corroboraram para construção lógica do respectivo resumo.
Conclusões Tendo em vista a discussão feita acima, a proibição estabelecida pelas leis municipais ordinárias pode trazer como consequência a vedação da abordagem de pluralismo sexual e de gênero, de modo que não haja o amadurecimento desses temas na maneira devida dentro das escolas, que devem buscar fomentar o estudo e reflexão antes de criar ideias preconcebidas pela falta da informação. A maneira com que os projetos de lei tratam sobre Identidade de gênero dirimi sua importancia pratica a uma simples ideia abstrata, a realidade enfatizando o contrário. Seu debate não representaria desrespeito aos preceitos internos de cada família e muito menos uma agressão a saúde psicológica do ser humano, esteja esse em qualquer uma das fases de desenvolvimento cognitivo. Educadores defendem que a escola não deve ser um espaço artificial onde determinadas temáticas são abordadas e outras esquecidas, mas um lugar onde deve haver a fomentação da discussão sobre assuntos que os alunos vivenciam fora da escola e aos quais apresentam curiosidade. A escola seriam assim um ambiente que prepararia futuros cidadãos que, supõem-se, possuirão consciência dos seus direitos e dos seus deveres, conhecendo os limites que devem ser traçados para suas ações frente aos outros indivíduos. Isso implica tolerância e respeito ao outro, exemplos de condutas que, presentes nos indivíduos desde sua infância e préadolescência, evitariam diversos conflitos que geralmente necessitam de mediação e interferência jurídica.
Referências
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RUBIN, Gayle; O tr|fico de mulheres: “Notas sobre a “Economia Política” do Sexo”. Disponível em: https://joaocamillopenna.files.wordpress.com/2018/03/rubin-o-tracc81fico-de-mulheres.pdf <http://basenacionalcomum.mec.gov.br/>. Acesso em: 07 de jun. de 2018. PROJETO QUE PROÍBE IDEOLOGIA DE GÊNERO EM ESCOLAS É APROVADO EM SOUSA, NA PB. G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/pb/paraiba/noticia/projeto-que-proibe-ideologia-de-genero-emescolas-e-aprovado-em-sousa-na-pb.ghtml>. Acesso em: 07 de jun. de 2018. VEREADORES DE APODI, RN, APROVAM LEI QUE PROÍBE DISCUTIR ‘IDEOLOGIA DE GÊNERO’ EM AMBIENTE ESCOLAR.G1. Disponível em: <https://g1.globo.com/rn/rio-grande-donorte/noticia/vereadores-de-apodi-rn-aprovam-lei-que-proibe-discutir-ideologia-de-genero-emambiente-escolar.ghtml>. Acesso em: 08 de jun. de 2018. LEI SANCIONADA EM GARANHUNS VEDA IDEOLOGIA DE GÊNERO NAS ESCOLAS. UOL. Disponível em: <http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/politica/pernambuco/noticia/2017/12/13/lei-sancionada-emgaranhuns-veda-ideologia-de-genero-nas-escolas-319927.php>. Acesso em: 08 de jun. de 2018. <https://sites.google.com/view/sbgdicionariodefilosofia/ideologia>. Acesso em: 06 de jun. de 2018. MESMO SEM EXISTIR, CÂMARA DE SOUSA APROVA PROIBIÇÃO DE “IDEOLOGIA DE GÊNERO NAS ESCOLAS”. JORNAL DA PARAÍBA. Disponível em: <http://blogs.jornaldaparaiba.com.br/suetoni/2017/12/06/mesmo-sem-existir-camara-de-sousaaprova-proibicao-de-ideologia-de-genero-nas-escolas/>. Acesso em: 06 de jun. de 2018. TRANSGÊNERO: ORIGEM PODE SER BIOLÓGICA E COMEÇAR NA GESTAÇÃO. G1. Disponível em: <http://g1.globo.com/globo-reporter/noticia/2016/09/transgenero-origem-pode-ser-biologica-ecomecar-na-gestacao.html>. Acesso em: 08 de jun. de 2018. LARAIA, Roque de Barros. Cultura: uni conceito antropológico. 14 ed. Rio de Janeiro: Jorge “Zahar Ed., 2001. SCHOPENHAUER, Arthur. 38 Estratégias Para Vencer Qualquer Debate: A Arte de Ter Razão. São Paulo: Faro Editorial, 2014.
9 O HISTÓRICO DO MOVIMENTO LGBT E A “CURA GAY” NO BRASIL
NINMERY RANYA LACERDA RACHED¹ MARIA ISABELA DE OLIVEIRA²
RESUMO: A relevância do tema advém da urgência em combater a Homofobia no Brasil, problema ainda presente e constante, bem como elucidar o histórico da luta LGBT ao longo dos anos. No país, ocorreram algumas tentativas de legalização para a cura da homossexualidade, posicionamentos que na prática, pretendem tornar legitimamente admissível que psicólogos apresentassem pseudoterapias de reversão sexual, popularmente denominadas de “cura gay”, inclusive proibidas pelo Conselho ~ 76 ~
Federal de Psicologia (CFP) em sua Resolução N° 001/99. Essas terapias de mudança de orientação sexual são eticamente suspeitas, acarretando consequências prejudiciais para a saúde mental, causando considerável sofrimento psicológico para aqueles que se sujeitam a elas. Palavras-chave: Cura gay. Homofobia. LGBT.
Introdução
Questões pautadas sobre gênero e sexualidade têm tomado uma expressiva centralidade em várias instâncias sociais por todo o mundo. No Brasil, apesar daqueles que reconhecem a homossexualidade como mais um exemplo de diversidade sexual, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) ainda sofrem constantemente com os casos de intolerância e também de violência. Devido ao fato de ainda grande parte da população brasileira encarar de modo preconceituoso as identidades sexuais e também as de gênero taxando-lhes como identificações de teor anormal. Esse preconceito reflete também em parte da comunidade legislativa e jurídica brasileira. Em 2011, mais um Projeto de Decreto Legislativo 234/2011, ficou em tramitação na Câmara dos Deputados, onde estabelecia normas de atuação para os psicólogos em relaç~o { quest~o da orientaç~o sexual e sua “cura”, os projetos não foram aprovados, mas a assunto não encerrou. Em 2017 O Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª Vara do Distrito Federal, concedeu liminar que deixa legalmente possível pseudoterapias de reversão sexual que envolvem um conjunto de métodos visando eliminar a orientação sexual homossexual de um indivíduo. Decisão inclusive que foi alvo de discussões e criticas em todo o país. É mister dizer que a psicologia é uma área que trabalha com saber científico. Ela cresce através de técnicas e constatações cuja comprovação se norteia por um método racional. Nela, a dúvida é o que impele a busca incessante da resposta mais correta acessível ao conhecimento humano. Logo a ciência não pactua com o preconceito, contrário a razão e que serve de origem para a discriminação. Assim, ciência utilizada de forma correta não usa de preconceitos, agindo como instrumento ~ 77 ~
para o progresso da democracia. Do mesmo modo a Lei não deve ser usada como meio de perseguições, mas sim como ferramenta reguladora do direito e da justiça, devendo tratar e respeitar de forma equitativa todos os cidadãos.
Desenvolvimento
No país, dos anos sessenta para a próxima década, houve o marcado endurecimento da ditadura militar. Em meados da década de setenta, nascem as primeiras organizações do movimento homossexual, a exemplo do Somos (Grupo de Afirmação Homossexual), de São Paulo. O aparecimento do movimento homossexual sugere a aspiração a exigir direitos plenos, utilizando-se de atuações políticas que não se limitavam ao “periférico”, mas que buscavam alcançara sociedade de maneira mais expansiva. Os grupos militantes homossexuais pioneiros apareceram no Brasil no final dos anos setenta, na conjuntura da “abertura” política que noticiava o final da ditadura no país. O movimento aqui é caracterizado de modo antiautoritário, em resposta a situação da ditadura militar. Isso impactava o próprio modo de coordenação dos grupos, estes eram de reflexão e não institucionalizados, nos quais as organizações eram alternadas de maneira a impedir centralização de poder. No ano de 1980, há o nascimento do primeiro grupo unicamente lésbico a partir de uma cisão no Grupo de Afirmação Homossexual -SP. Já em 1981, o Grupo Gay da Bahia começou uma campanha nacional unido à sociedade civil, psiquiatras e psicólogos apoiando a despatologização da homossexualidade. A conquista apareceu em 1985, com deliberação favorável do Conselho Federal de Medicina. Acontecendo no país cinco anos antes da Organização Mundial de Saúde riscar a homossexualidade de sua lista oficial de doenças. A luta também era por definir a homossexualidade não como uma escolha objetiva, mas sim uma condição inata. Acontece a dissolução do grupo Somos de São Paulo em 1983. Nesse mesmo período surge a epidemia do HIV/AIDS, restringindo de modo considerável o número de grupos homossexuais. Perante o aumento dos casos da doença e do retardamento para ser dada uma resposta governamental,entraram então os grupos Triângulo Rosa e Atobá, do Rio de Janeiro e o Grupo Gay da Bahia. Cujo objetivo, além de atividades ~ 78 ~
comunitárias, era também gerar mudanças na sociedade, especialmente os que tinham relação com os direitos civis de homossexuais. O enfoque inicial da AIDS apresentada como “peste gay” levou { necessidade de construir uma imagem pública positiva da homossexualidade que possibilitasse a luta pela conquista de direitos civis. Segundo Regina Facchini em seu artigo “Histórico da Luta de LGBT no Brasil” publicado pelo Conselho Regional de Psicologia de São Paulo:
Boa parte da pauta de reivindicações do movimento LGBT atual já estava entre as demandas dos militantes homossexuais dos anos 1980. Em 1984, no encontro nacional de ativistas ocorrido na Bahia, a luta era pela despatologização da homossexualidade, por legislação antidiscriminatória, pela legalizaç~o do que na época se denominava como “casamento gay”, por tratamento positivo da homossexualidade na mídia e pela inclusão da educação sexual nos currículos escolares. A partir do encontro nacional realizado em 1989, a AIDS passa a ter um lugar privilegiado na agenda do movimento, havendo ainda preocupação com a questão da violência, com a discriminação religiosa e a necessidade de estimular a formação de grupos. Já em 1990 e 1991, a grande ênfase recaiu sobre a luta contra a Aids e a necessidade de fortalecer o movimento. O que se chama de crise da organização, por ocasião da epidemia do HIV/Aids, é exatamente isso: ele deixa de se concentrar em suas pautas anteriores, cuja esmagadora maioria de demandas não estão sanadas até os dias atuais, para uma demanda de fortalecimento do próprio movimento e de que governo desse alguma resposta em relação à Aids, que era uma questão muito candente na comunidade naquele momento. (FACCHINI, 2014).
No início da década de noventa, o movimento homossexual expandiu-se como um meio de saída para essa situação, sendo o Brasil então o pioneiro no combate a AIDS. Tomando por base a experiência acumulada e o conhecimento e acesso comunitário, os grupos vieram a orientar projetos de prevenção custeados por programas nacionais de combate à AIDS, os quais admitiram que determinados grupos se estabelecessem no formato de organizações não-governamentais (ONGs). Nesse novo episódio, uma das particularidades é a distinção de vários indivíduos políticos dentro do movimento: lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, com enfoco em demandas especiais para cada um desses subgrupos. A organização das travestis acontece no começo da década de noventa e a categoria é ligada à sigla que representa o movimento só em 1995. Já as lésbicas são inclusas realmente apenas em 1993, embora estivessem atuantes nos grupos desde o começo. No ano de 1995, ocorre a primeira e maior fundação de uma rede de organizações LGBT brasileiras, ~ 79 ~
a ABGLT(Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Travestis), sendo atualmente citada como a maior rede LGBT na América Latina. A ABGLT despende uma série de esforços na esfera legislativa e judicial, com o intuito de abolira discriminação e a violência contra a comunidade LGBT, a exemplo das campanhas de sensibilização do parlamento e comunidade em prol da aprovação de projetos de lei, como o 1151/95, que reconhece a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e o 122/2006, que criminaliza a homofobia. Além da atuação junto ao Poder Executivo, ocorre também estímulos e investimentos nas eleições de parlamentares LGBT ou aliados da causa, e propostas de projetos de lei em esfera nacional, estadual e municipal. Como os que operam a favor do reconhecimento do direito de constituição de famílias com pais LGBTs;os debates acerca das uniões homo afetivas e o direito à paternidade ou maternidade; os que visam diminuir condutas discriminatórias; e os que buscam o reconhecimento da identidade social de transgêneros. Tanto o casamento entre homossexuais e a união civil estável constituíram em concessões do poder Judiciário. O reconhecimento da união civil estável entre pessoas do mesmo sexo ocorreu em 2011 pelo Supremo Tribunal Federal. Já em 2013, a permissão do casamento civil homossexual foi dada pelo Conselho Nacional de Justiça. Em sentido desestimulante, indo para 2011, ecoavam em todo o Brasil manifestações opostas ao projeto de lei complementar 234/2011que tramitava na Comissão de Direitos Humanos, da Câmara dos Deputados, popularmente conhecido como "projeto de cura gay". Já arquivado devido a grande onda de manifestações por parte da população, o projeto possuía duas metas centrais, uma delas também seria a de suspender os impedimentos do Conselho Federal de Psicologia para que psicólogos apresentassem tratamentos a homossexuais e a segunda era para que dissessem publicamente, utilizando-se da psicologia, que a homossexualidade constituía doença. No artigo “Psicanálise e homossexualidade – da apropriação à desapropriação médico-moral” feita por Membros da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, há um grande problema com esse tipo de posicionamento:
Para se pensar em um ‘projeto de cura gay’, precisaríamos em primeiro lugar pensar como chegamos à realidade anacrônica de encarar a sexualidade, incluindo a homossexualidade, como doença. Isto significa ~ 80 ~
entender de que maneira os movimentos da sexualidade humana desde sempre, com sua multiplicidade de formas e expressões, incluindo as relações entre pessoas do mesmo sexo, foram encampados pelo saber dito científico, médico, e passaram da condição de algo sem um nome, algo dos homens e das mulheres, algo da intimidade desejante dos seres, valorizado ou não, idealizado ou execrado, para algo que tinha agora um nome – homossexualidade – que era determinante da personalidade, do caráter e da própria essência do sujeito. (MARTINS et al., 2014).
Já em 2017 uma decisão provisória emitida pela Justiça, atendeu ao pedido de três psicólogos que creem em reversão sexual. O juiz Waldemar Cláudio de Carvalho não chega a defender de forma explicita a cura gay e nem derroca a resolução do Conselho Federal de Psicologia (CFP) que, desde 1999, condena esse tipo de prática. O juiz cita em seu texto que, ao avaliar o caso, levou em consideração à premissa dita pela Organização Mundial da Saúde de que "a homossexualidade constitui uma variação natural da sexualidade humana, não podendo ser, portanto, considerada como condiç~o patológica”. Contudo, o magistrado de modo contraditório decide que o órgão mude a interpretação de suas normas de modo a não proibir os profissionais "de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re)orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia". O juiz faz referência a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, que decide que "os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados". Além do mais, afirma que os profissionais contribuam "para uma reflexão sobre o preconceito e o desaparecimento de discriminações e estigmatizações contra aqueles que apresentam comportamentos ou práticas homoeróticas". Para o Magistrado Carvalho, essas normas "não ofendem os princípios maiores da Constituição". Mas, "se mal interpretados", podem deixar "vedado ao psicólogo realizar qualquer estudo ou atendimento relacionados à orientação ou reorientação sexual", já que a Constituição "garante a liberdade científica bem como a plena realização da dignidade da pessoa humana, inclusive sob o aspecto da sexualidade". Desse modo, ele não chega a invalidar a resolução, mas decide que os profissionais possam "estudar ou atender àqueles que voluntariamente venham em busca de ~ 81 ~
orientação acerca de sua sexualidade, sem qualquer forma de censura, preconceito ou discriminação." O entendimento do Conselho Federal de Medicina com o Parecer 05/85 e a Resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia que defendem o argumento da homossexualidade não ser uma doença acabam não impedindo que vários grupos conservadores, vendessem soluções milagrosas para erradicar a homossexualidade. Presentes no Congresso, grupos como esse querem mudanças na legislação através do projeto de lei 4931/2016, com o objetivo de acabar com a penalidade ao psicólogo que trata o indivíduo com "transtorno de orientação sexual" e garantir o "direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana". Outra crítica feita a liminar do Magistrado Carvalho partiu de Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp e Doutor pela USP e de Roger Raupp Rios Desembargador Federal do TRF-4, doutor em direito pela UFRGS e professor de direitos humanos do UniRitter no artigo “Entre o senso comum e a ciência: existe ‘cura gay’?”:
Com efeito, a patologização da homossexualidade é um expediente que se alimenta da homofobia e que a reproduz. Ela expressa na linguagem da “medicina das perversões sexuais” a mudança do paradigma da homossexualidade de pecado para doença. Ela se revelou como tentativa de legitimar preconceitos e discriminação, de um modo pseudocientífico. Nessa trajetória, a homofobia desafia a psicologia e o direito. Nutrida por certas crenças religiosas ou pelo senso comum preconceituoso, ela deteriora as liberdades de profissão, de religião e de ciência, além de obscurecer o dever estatal de coibir a discriminação, com sérios danos à saúde e à democracia. (QUINALHA;RIOS,2017).
A discussão, portanto, adentra na seara do Direito Constitucional em seu Art. 3º, IV quando diz “Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminaç~o” (BRASIL, 2012, pg. 11). A liberdade de expressão homossexual é fundada na dignidade da pessoa humana, por tanto não deve ser violada, mas sim respeitada e preservada.
Metodologia
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O método de abordagem será dedutivo. Parte-se de uma premissa geral para se chegar a conclusões particularizadas. Preconiza que o conteúdo a ser extraído da conclusão já estava, ao menos implicitamente, imiscuído na premissa geral. As técnicas de pesquisa serão bibliográficas e documentais.
Conclusões
O desenvolvimento do presente estudo possibilitou uma análise de que apesar das lutas e conquistas do movimento LGBT, ainda existem muitos entraves a serem combatidos na busca pela igualdade, haja vista que a liberdade de expressão homossexual é pautada na dignidade da pessoa humana, e desse modo não pode ser violada, e sim respeitada e preservada. A tentativa de transformar a homossexualidade em doença através da Lei se tornou um reflexo da homofobia. Juridicamente se mostra como tentativa de regularizar preconceitos através de um discurso sem amparo verdadeiramente cientifico. Nesse curso, a homofobia se choca diante da Lei e da ciência, causando sérias lesões ao bem-estar e aos direitos dos que dela são alvo.
Referências
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 35.ed. Brasília: Edições Câmara, 2012. BRASIL. Tribunal. Seção Judiciária do Distrito Federal, 14ª Vara. Ação Popular nº 101118979.2017.4.01.3400. Autores: Rozangela Alves Justino e outros. Réu: Conselho Federal de Psicologia. Relator: Juiz Waldemar Cláudio de Carvalho. Brasília, 15 de setembro de 2017. Disponível em: < http://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2017/09/Decisão-Liminar-RES.-011.99-CFP.pdf>. Acesso em: 25 Mai. 2018. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Parecer nº 05/85. 29 de Janeiro de 1985. Consulta referente à orientação para a correta aplicação da CID, questão a que interessa o pleito formulado pelo autodenominado "GRUPO GAY DA BAHIA". Disponível em: < https://sistemas.cfm.org.br/normas/visualizar/pareceres/BR/1985/5>. Acesso em: 05 Jun. 2018. CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. Resolução n° 001/99. 22 de Março de 1999. Estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da Orientação Sexual. Disponível em: <https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1999/03/resolucao1999_1.pdf>. Acesso em: 25 Mai. 2018. FACCHINI, Regina. Histórico da luta de LGBT no Brasil. Disponível em: <http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/11/frames/fr_historico.aspx>. Acesso em: 25 Mai. 2018. GOIÁS. Projeto de Lei Complementar PLC 234/2011. Susta a aplicação do parágrafo único do art. 3º e o art. 4º, da Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº 1/99 de 23 de Março de 1999, que ~ 83 ~
estabelece normas de atuação para os psicólogos em relação à questão da orientação sexual. Assembléia Legislativa. Disponível em: < http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=505415>. Acesso em: 25 Mai. 2018. MARTINS, E. et al. Psicanálise e homossexualidade – da apropriação à desapropriação médicomoral. Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-31062014000100013> . Acesso em: 04 Jun. 2018. QUINALHA, Renan; RIOS, Roger Raupp. Entre o senso comum e a ciência: existe ‘cura gay’? 2017. Disponível em: <https://www.nexojornal.com.br/ensaio/2017/Entre-o-senso-comum-e-a-ciência-existe‘cura-gay’>. Acesso em: 25 Mai. 2018 RAMOS, Silvia; CARRARA, Sérgio. A Constituição da Problemática da Violência contra Homossexuais: a Articulação entre Ativismo e Academia na Elaboração de Políticas Públicas. Disponível em: <http://www.fafich.ufmg.br/educacaosemhomofobia/TextosSite/AConstituicaodaProblematica.pdf>. Acesso em: 25 Mai. 2018. RIO DE JANEIRO. Projeto de Lei Complementar PL 4931/2016. Dispõe sobre o direito à modificação da orientação sexual em atenção a Dignidade Humana. Assembleia Legislativa. Disponível em: <http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2081600>. Acesso em: 25 Mai. 2018.
GRUPOS DE TRABALHOS II (GT II)
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DIREITOS REPRODUTIVOS
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1 LANEJAMENTO FAMILIAR COMO DIREITO FUNDAMENTAL EVELINNE MARIA DE ALÂNTARA PINHEIRO BRUNO HENRIQUE CRISPIM TORRES
RESUMO: Este trabalho, que se desenvolveu no projeto da Universidade Federal de Campina Grande, em linha de pesquisa, da AUDIH (Articulação de Direitos Humanos), teve como objetivo fundamental a identificação e a problematização da inclusão dos direitos reprodutivos e sexuais. Não como incluídos na categoria de direitos fundamentais, mas quanto a autonomia de tais em relação a regulamentação que constituíram nosso produto de análise. Buscamos, assim, metodologicamente, indícios construídos sobre tais direitos na sociedade atual e de que modo eles devem ser influenciados como direitos de igualdade absoluta e a autonomia dos sujeitos na contemporaneidade. Para tanto, tomamos como base um breve apanhado histórico, desde o Brasil colonial até o que a Constituição e jurisprudências garantem hoje através de seus textos legais. Dessa forma, pontuamos: a) a Os Direitos Humanos b) Autonomia; e c) Busca de absolutismo, observando tais segmentos, revela-se que tais eixos, emergindo da própria análise, levaram-nos a concluir que há garantia desses direitos na sociedade moderna, no entanto, se busca um pleno exercício de tais direitos. Assim, surgem as seguintes indagações: existe ou não um direito à procriação? Se existe esse direito, ele é autônomo ou apenas uma forma de manifestação de outros direitos fundamentais como o direito à intimidade e à vida privada? Seria um direito absoluto em termos de exercício? Tais questionamentos a serem respondidos ao longo do trabalho, constataram que apesar de autônomos, os direitos reprodutivos e sexuais devem ir além de autonomia. Trazendo então a ideia de que a transformação cultural é uma dimensão totalmente estratégica para uma nova forma de relação entre homens e mulheres baseandose nos direitos reprodutivos.
Palavras-chave: Planejamento Familiar; Direitos Fundamentais; Reprodutivos; Políticas públicas; Dignidade da pessoa humana.
Direitos
Introdução
Os Direitos fundamentais são os direitos básicos individuais, sociais, políticos e jurídicos que são previstos na Constituição Federal. Tais direitos são baseados no advento dos direitos humanos, garantindo a vida, a liberdade, a educação, a ~ 86 ~
segurança e etc. No Brasil, os avanços relacionados a mudança do pensamento, acerca da reprodução humana, são resultados das batalhas políticas, realizadas fortemente pelo movimento feminista. Na época colonialista do Brasil, a ideologia natalista fora bastante motivada pela Igreja, a qual acreditava que a mulher apenas seria ressarcida de seus pecados com a maternidade, sendo assim, a elas cabia o dever de realizar a reprodução. Logo, eram tratadas como ferramentas em prol da realização de um fim e não como o próprio fim. Já na década de 30, Getúlio Vargas, com uma política pró-natalista, houve a criação de programações que estimulavam o crescimento populacional, auxílio natalidade e o salário-família. Com tais providências o país ia contrariamente ao cenário internacional, que na época tinha predominantemente a teoria Malthusiana, ao qual afirmava que a população crescia em progressão geométrica e a produção de alimentos em uma progressão aritmética, sendo assim a demanda de alimentos seria inferior ao número de pessoas, ocasionando uma crise alimentar. Desta maneira, começaram a surgir discussões sobre o planejamento familiar. Pois quantos sujeitos sociais já se perguntaram sobre quantas mulheres decidem de forma livre sobre como, quando, em quanto tempo e se querem ter seus filhos. Os direitos reprodutivos das mulheres, que vão desde anticoncepção e perpassam o tema aborto ainda são desatendidos e desrespeitados. O exercício desses direitos é uma condição elementar essencial inclusive para a igualdade de gêneros na sociedade. O direito das pessoas de segmentar sua vida reprodutiva e o de apoio fornecido pela ciência para suprir o reestabelecimento da saúde sexual e reprodutiva como solução. Portanto, deve ser considerada legítima toda intervenção que tenha o objetivo de assegurar o restabelecimento das funções reprodutivas, ou, de oferecer alternativas que possam resultar no nascimento dos filhos desejados como forma de efetivação da democracia.
Fundamentação Teórico-Metodológica
Como explanado anteriormente, espera-se que o planejamento familiar seja visto como todo o planejamento ao pleno desenvolvimento e amparo da família. Como todos os direitos fundamentais, o direito à liberdade do planejamento familiar, pode ser depreendido de outros princípios de direitos fundamentais, pois todos se referem, ~ 87 ~
de forma completamente possível, à realização de acesso à moradia, alimentação, lazer, educação, vestuário etc. No entanto, a legislação brasileira só relativa a compreensão de tal direito à reprodução, como questões de controle de fecundidade (contracepção) e de estímulo à fecundidade (concepção), o qual se apresenta, parcialmente, inexplorado. Hoje o planejamento familiar no Brasil, ao menos supostamente, goza de livre exercício, embora sejam perceptíveis as dificuldades enfrentadas, sejam estas morais, legais, culturais, materiais, educacionais, ideológicas ou religiosas. Baseando-se no breve apanhado histórico apresentado, o poder do Estado sobre o corpo feminino em tal contexto, acaba trazendo à tona um problema complexo: aborto; o qual envolve muito mais do que onde se começa a vida, envolve uma questão de saúde pública. Hodiernamente, parte dos Direitos Reprodutivos perpassa pela constatação de que o valor da vida de um embrião é um valor preenchido pela consciência moral de cada indivíduo social. Tal consciência requer mais do que reconhecimento, há um fundo de natureza constitucional. A partir disso se espera o pensamento de que a mulher poderia ser autora do projeto parental, não trazendo à questão a permissão ou não de tal prática, mas assim corrobora-se com a ideologia de que essa mulher também poderia ser autora da sua decisão, de sua consciência moral e de sua liberdade. Visto isso, os Direitos Reprodutivos abordam tal questão como sendo algo a ser repensado, visando a autonomia de tal parte no projeto parental. Acompanhando as teorias históricas apresentadas, a ascensão do movimento feminista em tal período, passou a participar das discussões e a analisar o controle de fecundidade por outro ângulo, alavancando a autonomia da mulher sobre seu próprio corpo. O chamativo agora deveria ser muito mais os princípios do direito à saúde e o bem-estar dos membros da família do que a definição do seu tamanho. Dado a evolução do pensamento e os avanços jurisprudenciais, pode-se inferir que o Direito Brasileiro reconhece hoje, tanto no plano constitucional como no infraconstitucional o planejamento familiar como elemento essencial para o pleno exercício de autonomia. No plano Constitucional, a regulamentação do planejamento familiar é prevista no artigo 226, §7º: Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. ~ 88 ~
§ 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas.
Observa-se no plano infraconstitucional, apesar dos avanços na concepção de tal âmbito, na Lei 9.263, de 12 de janeiro de 1996, que regulamenta o artigo acima citado, da CF/88, a tendência de privilegiar o aspecto contraceptivo, relegando a segundo plano a quest~o da fecundidade. A lei 9.263⁄96, que trata exclusivamente do planejamento familiar, em seu artigo 2º enuncia o conceito desse direito fundamental: Para fins desta Lei, entende-se planejamento familiar como o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos iguais de constituição, limitação ou aumento da prole da mulher, pelo homem ou pelo casal. É possível ainda encontrar esse direito também no Código Civil de 2002, em seu artigo 1565, § 2º: O planejamento familiar é de livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por parte de instituições privadas ou públicas.
Desta forma, posteriormente a apreciação dos textos legais acima apresentados, entende-se que o direito ao planejamento familiar é assegurado a todo cidadão de forma livre, sendo o Estado vedado, em potencialidades da esfera privada ou qualquer pessoa a decretação de medidas ou limitações ao exercício do mesmo dentro do domínio da autonomia privada do cidadão. Ao analisar tais legislações, depreende-se que o planejamento familiar está distante de ser somente um direito reprodutivo, mas sim, um direito humano fundamental que é rodeado pelos preceitos da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana. O princípio da paternidade (parentalidade) responsável é encontrado na Carta Maior de 1988 nos seus artigos 226, 227 e 229 e é o cuidado e responsabilidade para com a prole advinda da afetividade que se pressupõe natural à condição da paternidade e maternidade. Assim, esse princípio objetiva promover os meios necessários à educação, à saúde, à alimentação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e outros, bem como colocar os filhos a salvo da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, para que se possa, por fim, respeitar a ~ 89 ~
dignidade da criança a ser gerada ou adotada. Tais direitos serão garantidos com a efetivação de políticas públicas que garantam a educação sexual e todos os aparatos necessários durante a concepção.
Metodologia
Quanto aos aspectos metodológicos utilizados neste resumo, a análise do tema se deu por meio de pesquisas bibliográficas, legislativas, documentais e de meios eletrônicos. Quanto aos resultados encontrados, fora o método analítico, uma vez que a investigação se deu pelo desmembramento do tema, observando as causas, a natureza e os efeitos. Quanto à conclusão do estudo, através do método, depreendese que o direito ao Planejamento Familiar é garantido pela legislação, porém ainda não goza efetivamente de seu exercício.
Conclusões
A evolução da bioética e a biotecnologia (materialismo genético), como direitos fundamentais, interpelam diretamente à regulamentação do usufruto das novas tecnologias. Ao segmentar por esta linha, chega-se à questão do planejamento familiar, que está positivado tanto no plano constitucional como no plano infraconstitucional no Brasil, visando a regulamentação como um direito humano fundamental e, como este, extensível a todos os indivíduos, sem distinção de qualquer natureza, pelo fato de serem seres humanos subordinados a ordem jurídica vigente no país. Nesse sentido, entram em questão os avanços biotecnológicos como meios para a efetivação desses direitos, mas tendo o cuidado para que não se tornem instrumentos para a discriminação social, econômica ou de gênero, e até mesmo para novos estímulos eugênicos. A evolução histórica do planejamento familiar no Brasil está fortemente marcada por uma concepção unilateral desse direito (controlista) e, somente nos últimos tempos pode-se efetivamente perceber uma alteração dessa visão, embora o acesso concreto ao planejamento familiar de forma multifacetária, ainda é incipiente. Recai sobre o Estado, então, por ordem Constitucional, propiciar ~ 90 ~
políticas públicas. Assegurando desta forma, os meios educacionais e científicos para que este direito seja viabilizado. A Lei 9.263⁄96 estabelece v|rias diretrizes acerca do direito ao planejamento familiar, pelo homem, pela mulher ou pelo casal (entendido este último de forma ampla e em suas várias configurações). Entretanto, é forçoso admitir que há inúmeras circunstâncias e situações concretas que envolvem o exercício desse direito ainda não regulamentadas, o que, na prática, pode conduzir ou { sua n~o viabilizaç~o em relaç~o a algumas pessoas ou classes, ou { “abusos” na utilização de algumas das técnicas cientificamente disponibilizadas, geralmente de acesso restrito a alguns estratos sociais. Percebe-se, desse estudo, ainda em construção, que esse direito fundamental é, portanto, autônomo, (por não ser derivado de nenhum outro direito constitucional, como o direito à liberdade, à intimidade e à vida privada), porém não absoluto, vez que se encontra limitado pelos princípios da paternidade responsável e da dignidade da pessoa humana, visto que o direito ao planejamento familiar consegue, em uma de suas facetas ou dimensões, alcançar a esfera de outro individuo, o que será gerado, o filho, sujeito de direitos. O que se espera do Estado é a intervenção de forma plena a fim de mudar tal caracterização do direito: autônomo, para direito autônomo e absoluto, por meio das políticas públicas assistidas aos indivíduos sociais desde a juventude, como a educação sexual. Além de assegurar a todos os indivíduos o direito de acesso aos meios de reprodução assistida, aos meios contraceptivos e a todo o atendimento, do pré ao pós-parto. Constando então que as políticas públicas, juntamente com a transformação cultural são dimensões estratégicas para a produção de uma inovadora forma de relação entre os homens e as mulheres com base nos direitos reprodutivos.
Referências
Brasil. Lei n° 9.263, de 12 de janeiro de 1996. Lei do planejamento familiar. Diário Oficial da União. Brasília, 15 jan. 1996. p. 561-70. Ministério da Saúde 2002. Assistência em planejamento familiar: manual técnico. (4ª ed.). MS, Brasília. FONSECA, Sobrinho. D. Estado e população: uma história do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro: CEDEPLAR/Rosa dos Tempos, 1991. Brasil. Ministério da Saúde. Assistência integral à saúde da mulher: subsídios para uma ação programática. Brasília: Centro de Documentação: 1983.
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BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988. Organização do texto: Juarez de Oliveira. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1990. 168 p. (Série Legislação Brasileira). BRASIL. Código civil. Brasília: Câmara dos Deputados, 2002. 152 p. (Série Legislação Brasileira). PIOVESAN, Flávia . O que são Direitos Reprodutivos?. 2009. Disponível em: <http://feminismo.org.br/o-que-sao-direitos-reprodutivos/523/>. Acesso em: 07 jun. 2018. VENTURA, Miriam . DIREITOS REPRODUTIVOS NO BRASIL. 3. ed. Brasília: UNFPA, 2009. 296 p.
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2 O DIREITO À INFORMAÇÃO FRENTE À OMISSÃO ESTATAL QUANTO A VIOLÊNCIA OBSTÉTRICA
Ana Lívia Dias Veras¹ Natália Nogueira Dantas²
RESUMO: A violência obstétrica consiste em uma realidade habitual vivenciada pelas mulheres que passam ou passarão pelo momento do parto, a qual constitui, além de uma questão de saúde pública, também um problema de âmbito governamental. Contudo, embora seja uma problemática corriqueira e de importante relevância para a saúde da mulher no país, bem como, consistindo em um direito fundamental e humano, qual seja, a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde e à informação, o Poder Público se omite na prestação de assistência e no que tange à tipificação da violência. Sendo assim, é imprescindível a efetividade do direito à informação, a fim de abrandar a violência sofrida pela mulher. Palavras-chave: Violência Obstétrica. Poder Público. Direito à Informação.
Introdução
A violência obstétrica, legalmente, consiste na violação ao direito de reprodução, o qual consta no rol de direitos humanos. A presença neste rol foi admitida através de movimentos revolucionários que pediam a humanização do parto, como o Movimento Feminista que levanta a bandeira em defesa, também, dos direitos da mulher. Consiste, portanto, em diversas formas de violências a que mulheres, desde a gestação até o pós-parto, sofrem em decorrência da omissão ou no falho atendimento profissional, possuindo repercussão em âmbito nacional e internacional.
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A diferença, em níveis comparativos, se faz pela forma como é enfrentada pelos entes governamentais de cada país. No Brasil, a problemática não encontra proteção, tampouco suporte ou respaldo jurídico e estatal acerca do problema, apesar de ativistas atuarem constantemente em prol da denúncia do tema. Logo, o objetivo deste resumo é justificar a necessidade de prevenção e proteção da violência institucional obstétrica, bem como problematizar a omissão e negligência estatal no que tange as ações de legitimação do problema e, por fim, discutir as estratégias de prevenção e assistência, tomando como iniciativa principal o direito à informação, como alternativa elementar de veiculação da violência e manifestação do problema às entidades brasileiras.
I. A violência obstétrica
Comumente expressões do tipo “Parir|s com dor!”, “Na hora que você estava fazendo, você n~o tava gritando desse jeito, né?”, “J| est| sentindo dor mesmo...”, “N~o chora n~o, porque ano que vem você t| aqui de novo.” s~o ouvidas por um percentual imensurável de mulheres gestantes e puérperas brasileiras, conforme levantado pelo relato de mulheres realizado por um dossiê, elaborado pela Rede de Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres. O fato comprova-se pelos dados do Inquérito Nacional “Nascer no Brasil”, o qual revela que no total dos partos, apenas 5% ocorrem sem intervenção do profissional de saúde. Destas ainda, 25% afirmam que sofreram algum tipo de agressão da gestação ao pós-parto. (SANTOS; SOUZA, 2015). Estas situações incorrem na problemática da violência institucional obstétrica, uma difícil realidade que vem sendo enfrentada no país há algumas décadas. A respectiva violência (VO) consiste em uma série de danos e agressões, das mais diversas formas de manifestação às mulheres durante o acompanhamento obstétrico, cujos sujeitos ativos são os profissionais de saúde, podendo ocorrer desde o pré-natal até o pós-parto. Nos estudos de Santos e Souza (2015), a violência pode dar-se sob quatro formas: violência verbal, sexual, física ou por negligência. Assim, explica que:
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A negligência trata-se da omissão dos profissionais para com as parturientes. A violência verbal refere-se a tratamento rude, ameaças, gritos, repreensão, humilhação e abuso verbal. A violência física é identificada como agressões, procedimentos violentos e, até mesmo não utilização da analgesia quando indicado. Já a violência sexual é a menos praticada nos serviços de saúde, sendo caracterizada por estupro ou abuso sexual. (SANTOS; SOUZA, 2015, p. 58)
Nesse sentido, pode-se apontar como causas: o desconhecimento do processo fisiológico do parto, pré-natal ou da gestação, decorrente do atendimento omisso, negligente, insuficiente em informações, indiferente ou ríspido, porque a negligência no atendimento as induz a acreditar estar sendo um procedimento correto ou o aceitam por achar ser próprio para o bebê. Pela relação entre médico e paciente, no sentido do profissional mostrar-se, às vezes, como detentor de poder, isso pode acarretar ao paciente um “receptáculo de uma ação autoritária, sem nenhuma possibilidade de interferir, sem poder emitir seu parecer ou fazer respeitar os seus direitos e desejos”, como bem ressalta (WOLFF; WANDOW, 2008), constituindo uma relação de submissão, na qual não há diálogo e toda a relação exige conversação. Ademais, o abuso físico também configura uma das formas de violência obstétrica, precedido de “procedimentos sem justificativa clínica e intervenções “did|ticas”, como toques vaginais dolorosos e repetitivos” e afins, conforme (TESSER, et al, 2014). Intervenções não consentidas ou consentidas, mas a partir de informações distorcidas ou insuficientes, como induzir a um procedimento sem apresentar todas as possibilidades. Abuso verbal, por meio de ridicularizações e humilhações depreciativas. Discriminação baseada em determinadas condições, sejam raciais, econômicas, por nível de escolaridade, baseando-se em atributos considerados positivos, como se foi gravidez planejada, se há companheiro ou cônjuge.
I.I. A violência obstétrica frente às redes de saúde
O ato de dar à luz é um momento que é romantizado pela grande maioria das mulheres durante toda a gestação, senão durante toda vida. Contudo, estudos atuais apontam a problematização e as dificuldades reais vivenciadas pelas mulheres que ~ 95 ~
passam pela gestação. Por exemplo, a humanização do parto e deixa-lo acontecer de maneira natural, como acontecia com as mulheres no século passado, não é mais uma realidade comum no Brasil. Fazendo com que “os partos, e n~o as mulheres parindo, deixem de ser um assunto de âmbito privado e assumem a face pública, e devem ser dirigidos e controlados com toda a sorte de intervenções possíveis.”, assim dispõe (SANTOS; SOUZA apud SOUSA; ALMEIDA; REIS, 2009, p. 65). Isto é, os profissionais de saúde, durante a assistência a parturiente, por vezes retiram a autonomia desta em questão ao trabalho de parto, sobre seu próprio corpo e de seu filho, isso se dá pela relação hierárquica existente entre paciente/médico, conforme afirma Pereira (2016). Assim dispõe também Souza (2015), no sentido de que: Seguir esse paradigma leva a uma preocupação apenas técnica, ou seja, preocupam-se mais com a gravidez do que com a “mulher gr|vida”, assim, a técnica do parto é supervalorizada e a mulher deixa de ser vista como um ser humano biopsicossocioespiritual. (SANTOS; SOUZA, 2015, p. 65)
Ou seja, considerando que a gestação e o parto em si são momentos íntimos, frágeis e extremamente pessoais à mulher, a qual se sujeita a alterações fisiológicas e hormonais, às dúvidas e questionamentos que a afligem quanto às mudanças que irão advir com o nascimento de uma criança, o senso de responsabilidade e demais questões sociais e culturais que a acompanham, o ideal seria um acompanhamento pautado na intersubjetividade dos sujeitos, baseados em uma assistência holística, cujos profissionais considerem as particularidades de cada gestante e esclareçam o melhor acompanhamento a ser seguido. Contudo, a realidade não convém com o desejado. Em recente pesquisa realizada pelo Ministério da Saúde, por meio do Inquérito Nacional sobre Parto e Nascimento, realizado nos anos de 2011 e 2012, constatou-se que 52% dos partos ocorrem por cesarianas, sendo que no setor privado o percentual cresceu para 88% e essa estimativa não mudou de forma considerável ao longo dos anos. Estima-se ainda que estas mulheres submetidas ao procedimento cesariano não tiveram o acompanhamento obstétrico adequado e, ainda, afirmam a preferência pelo parto normal. Ressaltam as situações de riscos às quais foram expostas, como dores
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excessivas e intervenções violentas ao corpo. Nesse contexto, as mulheres afirmam que se submeteram a intervenções excessivas, como: Ficar restrita ao leito e sem estímulo para caminhar, sem se alimentar durante o parto, usou medicamentos para acelerar as contrações (ocitocina), foi submetida à episiotomia (corte entre a vagina e o ânus) e deu à luz deita de costas, muitas vezes com alguém apertando a sua barriga (manobra de Kristeller). (INQUÉRITO NACIONAL SOBRE PARTO E NASCIMENTO, “NASCER NO BRASIL”, 2012, p. 3)
Em 1985, a Organização Mundial de Saúde definiu como taxa ideal para realização de cesarianas o índice de 15%. Estabelecendo ainda ser necessária quando o médico julgar imprescindível frente ao caso clínico, com vistas a reduzir a mortalidade e morbidade materna e perinatal. Contudo, ainda dispõe a Declaração da OMS sobre Taxas de Cesárias (2015) que: Não existem evidências de que fazer cesáreas em mulheres ou bebês que não necessitem dessa cirurgia traga benefícios. Assim como qualquer cirurgia, uma cesárea acarreta riscos imediatos e a longo prazo. Esses riscos podem se estender muitos anos depois de o parto ter ocorrido e afetar a saúde da mulher e do seu filho, podendo também comprometer futuras gestações. Esses riscos são maiores em mulheres com acesso limitado a cuidados obstétricos adequados.
Relevante mencionar ainda que as cesarianas envolvem um custo alto para realização, uma vez que envolve muitos instrumentos e muitos profissionais, por isso, também, há uma preferência dos profissionais por este método.
I.II. A omissão estatal e legislativa diante da problemática
Com base nas informações já comentadas, pode-se inferir que a violência institucional obstétrica é, acima de tudo, uma questão de Saúde Pública. O termo institucional é no sentido de que “é caracterizado como a atuaç~o do profissional de saúde dentro da instituição de atendimento, atrelando, de certa maneira, sua atuação {s condições físicas, organizacionais e de recursos da mesma” (SANTOS; SOUZA, 2015). Portanto, denuncia a má gestão ou mal funcionamento da rede de saúde do país.
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Da mesma forma, ao estudar a problemática, restou clara a ausência de regulamentação do tema, ou seja, a ausência de práticas legislativas no sentido de legitimar o tema e amparar, juridicamente, as mulheres vítimas da VO, bem como de propor mudanças no sistema de saúde. Em estudo comparativo, a Venezuela e Argentina são os países que, notando a relevância da problemática, a regulamentaram, punindo, prevenindo e protegendo as mulheres vítimas desta violência. O que denota o descompromisso e atraso das autoridades legais brasileiras e seus códigos diante da situação da assistência ao parto, assim expõe o dossiê elaborado pela Rede de Parto do Princípio para a CPMI da Violência Contra as Mulheres. No entanto, o Brasil consta com três Projetos de Lei acerca do tema, quais sejam: o PL nº 7.633/14, o PL nº 7.867/17 e o PL nº 8.219/17, os quais encontram-se ainda em tramitação na Câmara dos Deputados, sujeitos a apreciação conclusiva pelas Comissões de Educação, Seguridade Social e Constituição e Justiça. Contudo, apesar da formação das propostas, o que se observa é a vagarosidade na tramitação, o que gera uma certa falta de preocupação com o tema, visto a relevância deste, já que o número de gestantes e as respectivas violências são constantes e não esperam o pronunciamento estatal. Portanto, o que espera é uma atuação imediata e mais incisiva governamental. Explicita o Dossiê elaborado para o Senado Federal (2012) que “tanto a legitimação dos direitos como o reconhecimento do delito requerem esforços da sociedade civil para a compreens~o dos mesmos”. É, neste sentido, que o direito à informação entra em questão como uma alternativa primária para, pelo menos, amenizar a problemática da violência obstétrica.
I.II. O direito à informação como alternativa
O direito à informação está resguardado em diversas legislações de âmbito nacional e internacional. Trata-se de um direito fundamental do cidadão brasileiro, disposto expressamente no art. 5°, inciso XXXIII, da Carta Magna. O Código do Consumidor para ampliar os efeitos desse artigo às relações de consumo privadas. A partir de seu art. 4°, caput, definiu que a política nacional das ~ 98 ~
relações de consumo teria por objetivo, entre outros, a transparência e harmonia nas relações de consumo. Ademais, coube ao Conselho Federal de Medicina incluir em seu Código de Ética Médica, o seguinte texto:
ART. 34. Deixar de informar ao paciente o diagnóstico, o prognóstico, os riscos e os objetivos do tratamento, salvo quando a comunicação direta possa lhe provocar dano, devendo, nesse caso, fazer a comunicação a seu representante legal. (CÓDIGO DE ÉTICA MÉDICA, 2010)
Diante do disposto, retornando à problemática trazida a este trabalho, notamos que é do direito da mulher durante toda a gestação até que alcance o estado de puérpera, ser informada de todos os procedimentos que a mesma e seu bebê se submeterão, e só a partir de seu conhecimento, entendimento e consentimento prévio, o profissional de saúde poderá fazê-lo, de modo que, uma decisão consciente para ser tomada por qualquer pessoa, só é possível quando dada a informação necessária. Se trata de um direito da mulher, não apenas o direito à informação, mas está também protegida pelo princípio da dignidade da pessoa humana, garantido no art. 1°, inciso III, da Constituição Federal, além de ter resguardado o seu direito a preservar a sua integridade física e moral. Dessa forma, a informação necessária precisa ser passada de maneira clara e de fácil entendimento, para que assim esteja esclarecida no momento da decisão, uma vez que, uma decisão viciada caracteriza violência. Apesar de todo o respaldo legal que o direito a mulher possui nesse momento tão delicado em sua vida, qual seja a gestação, a gestante ainda sofre negligência quanto a efetividade de seus direitos, chegando a sofrer vários graus de violência obstétrica.
Metodologia
A pesquisa deste trabalho seguiu o método qualitativo, apoiada no levantamento bibliográfico e documental, por meio de artigos científicos, livros, periódicos e legislações. Utilizando-se também o método explicativo, quanto aos ~ 99 ~
objetivos, a fim de facilitar o entendimento da complexidade que cerca a violência institucional obstétrica.
Conclusões
Com base nos estudos realizados, pode-se verificar a relevância da temática e evidenciar o grau de imaturidade do Brasil frente a problemática, tendo em vista que, países menos desenvolvidos que o brasileiro, levantam a problemática a um patamar de grande relevo. Desta forma, é importante que o Poder Público cumpra os dispositivos legais existentes e crie novos dispositivos, a fim de que cubra e cumpra com totalidade o que se almeja no que tange a violência institucional obstétrica. Como também, é imprescindível que o Estado realize práticas diretas ao profissional de saúde, no sentido de orientar, capacitar médicos, enfermeiros, assistentes e atendentes da rede de saúde, de forma que os qualifique com competência técnica e emocional para lidar com os pacientes, bem como fiscalizar as práticas, se são humanizadas ou não, e incentivar a denúncia. Ademais, é de suma importância que divulgue a conduta agressiva por meio de mídias informativas e informar os direitos sexuais, reprodutivos e de cidadania da mulher a estas, no sentido de exercerem sua autonomia e autodeterminação, exigindo e prevenindo-se dos abusos e desrespeitos à sua dignidade enquanto pessoa humana.
Referências
BRASIL. Constituição Federal de 1988. Promulgada em 5 de outubro de 1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 06 jun. 2018. BRASIL. Lei nº 8.078 de 11 de setembro de 1990. Código de Defesa do Consumidor. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l8078.htm>. Acesso em: 07 de jun. 2018. BRASIL. Resolução CFM nº1931/2009 de 17 de setembro de 2009. Disponível em:< http://portal.cfm.org.br/in-dex.php?option=com_content&view=cate-gory&id=9&Itemid=122>. Acesso em: 07 de jun. 2018. CIELLO, Cariny et al (Org.). Violência Obstétrica “Parirás com dor”. 2012. Disponível em: <https://www.senado.gov.br/comissoes/documentos/SSCEPI/DOC VCM 367.pdf>. Acesso em: 06 jun. 2018. Ética, ciência e cultura jurídica: IV Congresso Nacional da FEPODI: [Recurso eletrônico on-line] organização FEPODI/ CONPEDI/ANPG/PUC-SP/UNINOVE; coordenadores: Livia Gaigher Bosio Campello, Mariana Ribeiro Santiago – São Paulo: FEPODI, 2015. Disponível ~ 100 ~
em:<https://www.conpedi.org.br/publicacoes/z307l234/aod3msh1/0m57fgDdTp7c4bbs.pdf>. Acesso em: 07 de jun. 2018. INQUÉRITO NACIONAL SOBRE PARTO E NASCIMENTO. Nascer no Brasil. Rio de Janeiro. 2012. Disponível em:< http://www.ensp.fiocruz.br/portal-ensp/informe/site/arquivos/anexos/nascerweb.pdf>. Acesso em: 06 de jun. 2018. MARIANI, Adriana Cristina; NETO, José Osório do Nascimento. Violência obstétrica como violência de gênero e violência institucionalizada: Breves considerações a partir dos direitos humanos e do respeito às mulheres. Cad. Esc. Dir. Int. (UNIBRASIL), Curitiba-PR, v. 2, n. 25, jul/dez 2016, p. 61-72. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DE SAÚDE. Declaração da OMS sobre Taxas de Cesárias. Genebra, 2015. Disponível em : em:<http://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/161442/WHO_RHR_15.02_por.pdf;jsssionid=1954 F1E1877051DF6A7CA1E0C64024C7?sequence=3>. Acesso em: 06 jun. 2018. PEREIRA, Jéssica Souza; SILVA, Jordana C. de Oliveira; BORGES, Natália Alves; RIBEIRO, Mayara de M. Golçalves; AUAREK, Luiza Jardim; SOUZA, José H. Kalil de. Violência Obstétrica: ofensa à dignidade humana. Brazilian Journal of Surgery and Clinical Research (BJSCR). Vol.15, n.1, p.103-108, jun/ago. 2016. SANTOS, Rafael Cleison Silva dos; SOUZA, Nádia Ferreira de. Violência institucional obstétrica no Brasil: revisão sistemática. Estação Científica (UNIFAP), Macapá, v. 5, n. 1, p. 57-68, jan./jun. 2015. TESSER, Charles D.; KNOBEL, Roxana; ANDREZZO, Halana F. de Aguiar; DINIZ, Simone Grilo. Violência obstétrica e prevenção quaternária: o que é e o que fazer. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2015; 10(35):1-12. Disponível em:< https://www.rbmfc.org.br/rbmfc/article/view/1013>. Acesso em: 06 jun. 2018. WOLFF, L. R.; WALDOW, V. R. Violência Consentida: mulheres em trabalho de parto e parto. Saúde Soc. São Paulo, v. 17, n. 3, p. 138-151, 2008.
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3 GARANTIA DE PLANEJAMENTO PARA FAMÍLIAS HOMOPARENTAIS: APONTAMENTOS A CERCA DOS DIREITOS REPRODUTIVOS DOS HOMOSSEXUAIS
MARCOS VICENTE MARÇAL11
RESUMO: A luta pela dignidade humana é progressiva, assim como contra o preconceito e a desigualdade de gênero e orientação sexual, e nesse embate os direitos humanos se faz presente, como arma de justiça e empatia. Onde a igualdade e liberdade entre homens e mulheres, homossexuais ou héteros é fundamental para o desenvolvimento da humanidade, bem como torna real os direitos humanos. O presente trabalho tem como objetivo discorrer sobre os direitos reprodutivos dos homossexuais, planejamento familiar homoparental, equiparação das famílias homoperentais e a possibilidade jurídica da barriga solidária e da adoção por homoafetivos. Para tanto, foi empregado os principais métodos de pesquisa, como o dedutivo, além da análise bibliográfica e documental, com uma abordagem explicativa.
Palavras-chave: Família. Homoafetividade. Liberdade.
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Graduando de Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas e sociais da Universidade Federal de Campina Grande. ~ 102 ~
Introdução
Promover e respeitar os direitos humanos é moldar uma sociedade, sem discriminação de gênero, cultura, etnia, religião, classe social e orientação sexual. A partir das discursões de gênero e orientação sexual torna-se nítido que os direitos sexuais e reprodutivos fazem parte de tal rol, pois permitem o pleno exercício da cidadania. O presente trabalho propõe-se discorrer sobre os direitos reprodutivos dos homossexuais, planejamento familiar homoparental, equiparação das famílias homoperentais e a possibilidade jurídica da barriga solidária e da adoção por homoafetivos. Para isso, busca-se mostrar os fundamentos teóricos doutrinário jurídico, legal, ético e jurisprudêncial que envolvem tais assuntos. Assim, colocando a progressiva efetivação desses direitos pelo judiciário e pelo Conselho Federal de Medicina como formas de enfrentamento a desigualdade real, oferecendo a possibilidade de escolha para os homossexuais de um livre planejamento familiar, tendo em vista sua legitimação jurídica, bem como a falta de impedimentos legais.
Desenvolvimento I. Da equidade de gênero e orientação sexual
Os Direitos Reprodutivos são formados por certos direitos humanos fundamentais, declarados nas leis internacionais e nacionais. Além das leis, um conjunto de princípios, normas e institutos jurídicos, e dimenções administrativas e judiciais tem a função instrumental de estabelecer direitos e obrigações, do Estado para o cidadão e de cidadão para cidadão, no que se refere à reprodução e ao exercício da sexualidade (VENTURA, 2004). No entanto, a concepção dos direitos reprodutivos não se restringe à simples proteção da reprodução. Sendo assim, defendendo um conjunto de direitos individuais e sociais que devem interagir em busca do pleno exercício da sexualidade e reprodução humana. Com isso, essa nova concepção tem como ponto de partida uma perspectiva de igualdade e equidade nas relações ~ 103 ~
pessoais e sociais, bem como a ampliação das obrigações do Estado na promoção, efetivação e implementação desses direitos. Assim, sob a compreensão da equidade entre gêneros e orientação sexual na visão dos direitos humanos, o conceito de direitos reprodutivos advém de dois entendimentos diversos e complementares. Em um primeiro momento, reside em um campo da liberdade e da autodeterminação individual, onde está o livre exercício da sexualidade e da reprodução humana, sem discriminação, coerção e violência. Assim, é fundamental o poder de decisão no planejamento familiar, no que concerne a ter filhos. Afirma-se o direito de mulheres e homens de decidir no campo da reprodução (o que compreende o direito de escolha livre e com responsabilidade acerca da reprodução, do número de filhos e do intervalo entre seus nascimentos, e ainda se serão biológicos ou adotivos). Encontra-se no direito de autodeterminação, privacidade, liberdade e autonomia individual, onde se pede pela não-interferência do Estado, pela não-discriminação, pela não-coerção (aproxima-se a dimensão típica dos direitos de primeira geração) (PIOVESAN,2002). Em um segundo momento, a efetivação do exercício dos direitos reprodutivos torna necessario políticas públicas, que garantam a saúde sexual e reprodutiva. Nesse sentido, fundamental é o direito ao acesso a informações, meios e recursos seguros, disponíveis e acessíveis. Bem como, também é o direito a um bom padrão de saúde reprodutiva e sexual, sendo a saúde não como mera ausência de enfermidades e doenças, mas como a capacidade de gozar de uma vida sexual segura e com liberdade de reproduzir-se ou não, quando e com que frequência, com os métodos necessários e uteis. Afirma-se ainda a garantia ao acesso ao progresso científico e o direito de receber educação sexual. Sendo assim, aqui é essencial a interferência do Estado, para a implementação de políticas públicas garantidoras do direito à saúde sexual e reprodutiva (aproxima-se da segunda geração de direitos) (PIOVESAN, 2002). II. Liberdade de livre formação da família homoafetiva
Em cartilha, o Ministério da saúde (2005) sintetiza os direitos reprodutivos como sendo: a) o direito de decidir e responsavelmente sobre o número, espaçamento ~ 104 ~
e se quer ou não ter filhos; b) a informação, aos meios, métodos e técnicas para ter ou não ter filhos; c) direito de exercer a sexualidade e a reprodução livre de discriminação, imposição e violência. E ao tratar sobre planejamento familiar, afirma que é o conjunto de ações que possibilitam à pessoa: a) ter ou não ter filhos de acordo sua vontade; b) escolher o melhor momento para engravidar; c) decidir quantos filhos quer ter e o espaçamento entre eles; d) escolher de forma livre e informada o método de planejamento familiar que deseja usar. Para os heteros, salvo casos de infertilidade, é fácil ter filhos, sendo necessário técnicas para evitar até chegar o momento adequado, pelo menos para os que são responsáveis. Mas para outros, mesmo esse momento tendo chegado é extremamente difícil, nos casos de filhos biológicos ou mesmo por adoção. Mas o progresso científico e a efetivação dos princípios constitucionais pelo judiciário, bem como o Consselho Federal de Medicina, possibilitou que muitos homoafetivos realizam esse desejo. A família homoparental é entendida como sendo formada por pelo menos um homossexual (gay, lésbica ou bissexual) na situação de cuidador e/ou provedor do lar. Félix López Sanchez afirma que os tipos mais comuns de famílias homoperentais são constituídas por: a) homossexuais que tem filhos de relações hetero; b) homossexuais que tem filhos por reprodução assistida ou barriga solidária; c) homossexuais que decidem adotar solteiros; e d) homoxessuais que decidem adotar com um companheiro. III. A união estável e o planejamento familiar
O que mais clareou, no Brasil, a questão da legitimidade jurídica das famílias homoafetivos foi o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277/DF, da Relatoria do Ministro do STF Ayres Britto, em que se abordou a equiparação da união estável entre pessoas do mesmo sexo com a entidade familiar, indicado pelo art. 1.723 do Código Civil, onde ficou definido que:
[...] 6. INTERPRETAÇÃO DO ART. 1.723 DO CÓDIGO CIVIL EM CONFORMIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL (TÉCNICA DA ‘INTERPRETAÇÃO CONFORME’). RECONHECIMENTO DA UNIÃO ~ 105 ~
HOMOAFETIVA COMO FAMÍLIA. PROCEDÊNCIA DAS AÇÕES. Ante a possibilidade de interpretação em sentido preconceituoso ou discriminatório do art. 1.723 do Código Civil, não resolúvel à luz dele próprio,faz-se necess|ria a utilizaç~o da técnica de ‘interpretaç~o conforme { Constituiç~o’. Isso para excluir do dispositivo em causa qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como família. Reconhecimento que é de ser feito segundo as mesmas regras e com as mesmas consequências da união estável heteroafetiva. (STF, 2011).
Esse julgamento representou um importante avanço forense no direito de família brasileiro, tendo em vista sua consistência jurídica. Essa decisão supre lacunas legais que existe quanto a falta de normatização acerca da união homoafetiva. Portanto, o conceito de família tornasse flexibilizado, mostrando que o fator primordial, antes de qualquer fator genético, é o afeto. A partir de então, as famílias homoafetivas passam a gozar de uma maior efetividade de seus direitos no âmbito judiciário. Assim, o planejamento familiar tornasse garantia, fundamentada constitucionalmente:
Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado. [...] § 7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas (BRASIL, 1988).
Assim, ao se aceitar a legitimidade das famílias homoafetivas, podendo estás gozarem dos mesmos direitos constitucionais e legais, é possível se falar em efetivação desses direitos, mesmo que ainda não estejam positivados, seja por preconceito ou morosidade do legislativo, os princípios que os regem estão cada vez mais sendo aplicados pelo judiciário.
IV. Principais aspectos jurídicos da reprodução assistida e adoção por homoafetivos
É através da reprodução assistida (que compreende as técnicas de inseminação artificial, fertilização em vitro e barriga solidaria) e da adoção que homoafetivos ~ 106 ~
podem ter filhos sem terem que se submeter a uma relação sexual hetero, sendo também opções de método e técnicas que devem ser garantidos para todos. Em relação a reprodução assistida, ainda encontra falta de normatização jurídica. A esse respeito, Silvio de Salvo Venosa ensina: [...] o Código Civil não autoriza e nem regulamenta a reprodução assistida, mas apenas constata a existência da problemática e procura dar solução exclusivamente ao aspecto da paternidade. Toda essa matéria, que é cada vez mais ampla e complexa, deve ser regulada por lei específica, por opção do legislador (VENOSA, 2006).
Sendo assim, em aberto essa questão, o Conselho Federal de Medicina vem editando, para tanto, algumas resoluções, e a que se encontra em vigor, atualmente é a 2.121/2015, que “adota as normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida[...]". Iremos tratar mais detalhadamente sobre a barriga solidaria, que é utilizada por casais gay, tendo em vista que existe uma impossibilidade biológica de produzir óvulos e gestarem os fetos. No VII - SOBRE A GESTAÇÃO DE SUBSTITUIÇÃO (DOAÇÃO TEMPORÁRIA DO ÚTERO) dispõe que:
As clínicas, centros ou serviços de reprodução assistida podem usar técnicas de RA para criarem a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação na doadora genética ou em caso de união homoafetiva. 1- As doadoras temporárias do útero devem pertencer à família de um dos parceiros em parentesco consanguíneo até o quarto grau (primeiro grau – mãe; segundo grau – irmã/avó; terceiro grau – tia; quarto grau – prima). Demais casos estão sujeitos à autorização do Conselho Regional de Medicina. 2- A doação temporária do útero não poderá ter caráter lucrativo ou comercial. 3- Nas clínicas de reprodução assistida, os seguintes documentos e observações deverão constar no prontuário do paciente: 3.1. Termo de consentimento livre e esclarecido informado assinado pelos pacientes e pela doadora temporária do útero, contemplando aspectos biopsicossociais e riscos envolvidos no ciclo gravídico-puerperal, bem como aspectos legais da filiação; 3.2. Relatório médico com o perfil psicológico, atestando adequação clínica e emocional de todos os envolvidos; 3.3. Termo de Compromisso entre os pacientes e a doadora temporária do útero (que receberá o embrião em seu útero), estabelecendo claramente a questão da filiação da criança; 3.4. Garantia, por parte dos pacientes contratantes de serviços de RA, de tratamento e acompanhamento médico, inclusive por equipes
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multidisciplinares, se necessário, à mãe que doará temporariamente o útero, até o puerpério; 3.5. Garantia do registro civil da criança pelos pacientes (pais genéticos), devendo esta documentação ser providenciada durante a gravidez; 3.6. Aprovação do cônjuge ou companheiro, apresentada por escrito, se a doadora temporária do útero for casada ou viver em união estável. (CFM, 2015)
Assim, é possível observar a instituição de normas que ajuda na orientação ética tanto dos médicos, como pacientes e doadores. Desse modo, supre uma lacuna legal, onde o legislador se omite a explanar. Portanto, o Conselho Federal de Medicina cumpre um papel de suma importância, mesmo que não tenha o poder de legisla, orienta de forma efetiva sobre os direitos reprodutivos, nesse caso, em especial, dos homoafetivos. Em relação a adoção, são grandes as discussões, no entanto não existe norma contrária à adoção por homossexuais e no nosso ordenamento jurídico se não é proibido, é permitido. A omissão legislativa atribuí à adoção por homossexuais a legalidade necessária para ser juridicamente possível. Assim, uma das principais exigências para a adoção é o que dispõe o art. 43 da Lei 8.069/90, que os adotantes apresentem reais vantagens para o adotado em consonância com motivos legais. Ademais, de acordo com o Art. 42 da Lei 8.069/90, que dispõe sobre os requisitos necessários para a adoção:
Art. 42. Podem adotar os maiores de dezoito anos, independentemente do estado civil. § 1º Não podem adotar os ascendentes e os irmãos do adotando. § 2º Para adoção conjunta, é indispensável que os adotantes sejam casados civilmente ou mantenham união estável, comprovada a estabilidade da família. § 3º O adotante há de ser, pelo menos, dezesseis anos mais velho do que o adotando. § 4º Os divorciados, os judicialmente separados e os ex-companheiros podem adotar conjuntamente, contanto que acordem sobre a guarda e o regime de visitas e desde que o estágio de convivência tenha sido iniciado na constância do período de convivência e que seja comprovada a existência de vínculos de afinidade e afetividade com aquele não detentor da guarda, que justifiquem a excepcionalidade da concessão. § 5º Nos casos do § 4º deste artigo, desde que demonstrado efetivo benefício ao adotando, será assegurada a guarda compartilhada, conforme ~ 108 ~
previsto no art. 1.584 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). § 6º A adoção poderá ser deferida ao adotante que, após inequívoca manifestação de vontade, vier a falecer no curso do procedimento, antes de prolatada a sentença (BRASIL, 1990).
Uma luz nessa discurssão foi o entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), através da decisão de recurso extraordinário da Ministra Cármen Lúcia, sobre o processo RE 846102 PR - PARANÁ, que argumentou o conceito de família e a importância do afeto na adoção, afastando limitações de idade ou sexo da criança:
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO POR CASAL HOMOAFETIVO. SENTENÇA TERMINATIVA. QUESTÃO DE MÉRITO E NÃO DE CONDIÇÃO DA AÇÃO. HABILITAÇÃO DEFERIDA. LIMITAÇÃO QUANTO AO SEXO E À IDADE DOS ADOTANDOS EM RAZÃO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DOS ADOTANTES. INADMISSÍVEL. AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. APELO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Se as uniões homoafetivas já são reconhecidas como entidade familiar, com origem em um vínculo afetivo, a merecer tutela legal, não há razão para limitar a adoção, criando obstáculos onde a lei não prevê. 2. Delimitar o sexo e a idade da criança a ser adotada por casal homoafetivo é transformar a sublime relação de filiação, sem vínculos biológicos, em ato de caridade provido de obrigações sociais e totalmente desprovido de amor e comprometimento (STF, 2015).
A adoção de crianças e a adolescentes por casais homoafetivos encontra opiniões divergentes, apesar de todos os avanços referentes ao reconhecimento das relações constituídas por pessoas de mesmo sexo, e mesmo inexistindo embasamento jurídico para tais opiniões.
Metodologia
Para a realização deste trabalho foram utilizados os principais métodos de pesquisa, como o dedutivo, além da análise bibliográfica e a documental. Para fundamentar tal resumo foi necessário buscar autores e pronunciamentos de órgãos competentes do poder judiciário. Nesse sentido, a pesquisa bibliográfica se pautou a partir de doutrinas, artigos e cartilha. E na pesquisa documental buscou-se a constituição, leis ordinárias, jurisprudências do STF e resolução do Conselho Federal de Medicina. Tendo ainda, uma abordagem explicativa, já que buscou analisar o
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material levantado de forma sistêmica, bem como estabelecendo uma relação entre eles, para conseguir os objetivos estabelecidos inicialmente.
Conclusões
Ao fazer um corte sobre os direitos reprodutivos dos homossexuais, pode-se entender como a possibilidade de utilizar métodos e técnicas para possibilitar a reprodução, tendo em vista que este direito torna possível a realização do planejamento familiar para tais indivíduos. A partir disso, ao alisar a equiparação pelo judiciário da união estável de homoafetivos, legitima-se a formação de famílias homoperentais, tornando possível está gozer das mesmas proteções legais que qualquer outra família, sendo um importante passo contra a discriminação e o preconceito. Destarte, é notório a falta de normatização que garanta tais direitos, mesmo estando sub-entidos nas normas jurídicas, já que ao levar ao judiciário são deferidos, isso porque o legislativo se nega a falar sobre, tornando o judiciário encarregado de legitimar tais direitos. Ademais, é que tais direitos existem e estão sendo efetivados pelo judiciário e pelas orientações éticas do CFM, como forma de aplicar os princípios constitucionais e legais, já que não existe norma jurídica que os proíbam expressamente. No entanto, as orientações doutrinárias é no sentindo de necessidade de positivação desses direitos no ordenamento jurídico brasileiro, para possibilitar maior segurança jurídica, ou ainda, a implementação de políticas públicas.
Referências
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal/Centro Gráfico, 1988. _____. Estatuto da criança e do adolescente: Lei federal nº 8069, de 13 de julho de 1990. Rio de Janeiro: Imprensa Oficial, 2002. _____. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4277/DF, Relator: Ministro Ayres Britto. Brasília, DF, 5 de maio de 2011. Dje, 14 out. 2011. _____. Supremo Tribunal Federal. Recurso extraordinário: RE 846102 – PARANÁ, Relator: Ministra Cármen Lúcia. Brasília, DF, 5 de março de 2015. Dje, 18 mar. 2015. _____. Ministério da Saúde. Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos: Uma prioridade do governo. 1° ed., Brasília: editora MS, 2005. Conselho Federal de Medicina. Resolução CFM n° 2.121/2015. Brasília – DF, portal.cfm.org.br, 2015.
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PIOVESAN, Flavia. Os direitos reprodutivos como direitos humanos. Buglione S, organizadora. Reprodução e Sexualidade: Uma questão de justiça. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor e Themis-Assessoria Jurídica e Estudos de Gênero, 2002. SANCHEZ. Félix López. Homossexualidade e Família: novas estruturas. Tradução: Carlos Henrique, Lucas Lima. Porto Alegre: Artmed, 2009. VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 6. ed., São Paulo: Atlas, 2006. VENTURA. Miriam. Direitos reprodutivos no Brasil. 1. ed., São Paulo: Câmara brasileira do livro, 2004.
4 A PROBLEMÁTICA DO ABORTO DO PONTO DE VISTA LEGAL E A MENDACIDADE DA LEGISÇÃO
CLARA OLIVEIRA BARRETO 12 MARIA IARA HENRIQUE DE OLIVEIRA 13
RESUMO: O aborto é uma realidade social, mas em meio ao cenário brasileiro em que vivemos (conservador, moralista e religioso) falar em aborto causa certo incômodo às pessoas, tema este tratado como tabu. E quê muitas vezes, quando discutido é tratado com ideias rasas e sem fundamentos, estas apregoadas pelo senso comum. Tentamos trazer aqui ideias já existente mais com fundamentações teóricas e também efetivas, além da desconstrução de ideias erroneamente disseminadas para com a população sobre a descriminalização do aborto. Assim, a nossa reflexão recai que a ilegalidade do aborto vai de encontro aos ideais dos Direitos Humanos, ofendendo a dignidade da gestante e a saúde pública. Palavras-chave: Aborto. Código Penal. Descriminalização. Direitos Humanos.
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Graduanda do 5º período do Curso de Direito pela Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: clara.barretobr@hotmail.com 13
Graduanda do 5º período do Curso de Direito pela Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: maria.iara25@yahoo.com.br ~ 111 ~
Introdução
O artigo debate o porquê o aborto ainda não foi legalizado no Brasil, temática bastante relevante que deve ser analisada partindo do cenário brasileiro, prezando, sobretudo a dignidade humana e não a análise de apenas princípios considerados morais. Para tanto inicialmente trazemos um breve comentário sobre os códigos penais brasileiros, como e por qual contexto foi redigido o nosso atual códex e também como a legislação do aborto é tratado é tratado nele. Posteriormente é abordada a questão da descriminalização do aborto e por fim analisado que o aborto tem que ser tratado como uma questão de saúde pública.
Desenvolvimento I. Precedentes históricos
O Código Criminal do Brasil Império de 1830 não criminalizava o aborto provocado pela gestante, ou seja, o autoaborto. Contudo o aborto provocado por terceiro com ou sem o consentimento da gestante era tipificado. Em 1890 no Brasil República o código penal se modificou, assim além de punir o terceiro passou também a punir o aborto praticado pela gestante. No nosso atual código penal, de 1940, tipifica o aborto provocado (a gestante assume responsabilidade pelo aborto), aborto sofrido (o aborto e realizado por terceiro com ou sem o consentimento da gestante) e por ultimo o aborto consentido (realizado pelo terceiro mais sem o consentimento da gestante). Dessa forma o atual cenário brasileiro ainda traz consigo marcas do passado em face dos direitos atuais, com isso assuntos como o aborto ainda são tratados de maneira bastante retrógada, apesar de a sociedade ter evoluído a legislação do aborto se manteve praticamente intacta como menciona Bitencourt (2013, p.164): “O código penal de 1940 foi publicado segundo a cultura, costumes e hábitos dominantes na década de 30. Passaram-se mais de sessenta ~ 112 ~
anos, e, nesse lapso, não foram apenas os valores da sociedade que se modificaram, mas principalmente os avanços científicos e tecnológicos, que produziram verdadeira evolução na ciência médica.”
II. Os aspectos da abordagem legal do aborto II.I A tipificação penal: o debate moral e o debate real
O aborto constitui uma problemática comum aos mais diversos países, todos experimentando um debate que envolve aspectos da formação social, moral, cultural, histórica e religiosa de cada nação. No entanto, em virtude da promoção de direitos humanos, sociais e direitos fundamentais das mulheres, países como Estados Unidos, Uruguai, Alemanha, Canadá, Holanda, Portugal, entre outros passaram a adotar a legalização do aborto. Ao analisar essa a configuração global, é possível compreender que tradicionalmente, são países com baixo índice de desenvolvimento humano que se posicionam pela criminalização da prática abortiva. Porém, não concidentemente, são justamente esses países que abrigam a maioria das ocorrências de aborto, segundo a OMS, 88% dos 56,3 milhões casos, apontando uma incompatibilidade da proibição com a realidade fática. O Brasil é um país que reúne esses elementos, sendo um recorte explícito do insucesso da política de proibição e da indiferença para com direitos condizentes à mulher. Com uma das legislações mais rígidas do mundo, a criminalização do aborto apareceu pela primeira vez no Brasil com o Código Penal Republicano de 1890. O Código Penal de 1940, vigente até o presente momento, por sua vez, conservou-o como crime, tipificado o aborto provocado, o sofrido e o consentido, tutelados nos arts. 124 a 128, na parte referente aos crimes contra a vida. Entretanto, ao estudar o processo que produziu codificação de 1940 é possível notar que, quando se trata de aborto, o debate jurídico foi e é negligente. Visto o contexto da época, quem de fato integrava o cerne da problemática do aborto não pôde contribuir na formulação do Código Penal, uma vez que ele foi elaborado por representantes de uma sociedade patriarcal, absurdamente machista, ~ 113 ~
onde a representação feminina era pouca ou inexistente, ainda submetida a uma sociedade que buscava anular as liberdades individuais e a autonomia da mulher. Assim, deixou-se de considerar fatores sociais, aspectos de saúde, direitos de gênero e reprodutivos que, na seara jurídica, seriam essenciais para estabelecer a tutela do aborto. Como agravante deste cenário, no processo de desenvolvimento da legislação, o aborto permaneceu ligado a um debate fundamentalmente moral orientado por valores religiosos. Aliado a isso, dentro do corpo social, o apego a moral e aos chamados bons costumes, assim como a força de determinadas igrejas, que contrárias à legalização, moldam um pensamento de massa que impede uma interpretação mais profunda sobre o que de fato acontece, mantendo o senso comum agarrado à ideia de que o aborto envolve somente as concepções de certo e errado. Dessa forma, a discussão tradicional fez e faz da criminalização do aborto um produto político que agrada a grandes grupos conservadores, mas ignora a existência de uma realidade diferente daquela que o código pretende. Pois, o fato é que as mulheres abortam por motivos reais que a criminalização não resolve. Dessa maneira, a proibição do aborto não impede a sua realização, porém, impede que isso aconteça em condições mínimas de saúde, segurança e dignidade humana, expondo quem o faz a um risco de morte ou, caso venha a sobreviver, de ferimentos capazes de comprometer o corpo da mulher que terá de suportar dores e outras sequelas para o resto da vida. Consequentemente,
grandiosas despesas
estatais são destinadas para tratar de complicações provenientes de abortos inseguros que vitimam, em esmagadora maioria, mulheres pobres. Nas palavras de Daniel Sarmento (2005, p. 2 e 3):
“Hoje, n~o h| mais como pensar no tema da interrupç~o volunt|ria da gravidez sem levar na devida conta o direito à autonomia reprodutiva
da
mulher,
questão
completamente
alheia
às
preocupações da sociedade machista e patriarcal do início da década de 40 do século passado. Parece assente que, embora esta autonomia não seja absoluta, ela não pode ser negligenciada na busca da solução mais justa e adequada para a problemática do
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aborto, seja sob o prisma moral, seja sob a perspectiva estritamente jurídica.”
Compreende-se com clareza que não cabe ao Estado regular sobre a opção de prosseguir ou não com uma gravidez, uma vez que, a mulher alcançou a autonomia e liberdade para dispor sobre o próprio corpo e deve exercer tal prerrogativa, devendo o estado tutelar somente sobre o momento em que deve ser realizado o aborto, evitando mais uma negativa de direitos à mulher. Além disso, a condição de direitos como o acesso universal a saúde sinalizam pela legalização da prática abortiva como mais positiva e racional.
III. Código penal e o aborto
A palavra aborto é originaria do latim abortus, que segundo o dicionário Aurélio significa: “Expulsar, espontânea ou voluntariamente, um feto ou embrião, antes do tempo e sem condições de vitalidade”. Tal conceito não é tratado no código penal ficando a jurisprudência e a doutrina responsável por esclarecer o que seria aborto. De acordo com Fernando Capez: “Considera-se aborto a interrupção da gravidez, com a consequente destruição do produto da concepç~o. Consiste na eliminaç~o da vida intrauterina”. Outro ponto oculto no códex é a precisão do momento que se inicia a vida, pois este não especificou o que seria o produto da concepção, se seria penas o óvulo fecundado, o embrião ou o feto. Surgindo então várias correntes doutrinarias e com isso lacunas e divergências na lei. Ainda segundo Capez:
“A lei n~o faz distinç~o entre óvulo fecundado (3 primeiras semanas de gestação), embrião (3 primeiros meses) ou feto (a partir de 3 meses), pois em qualquer fase da gravidez estará configurado o delito de aborto, quer dizer, entre a concepção e o início do parto[...].”
Contudo, conforme a teoria da nidação defendida por Rogério Greco (2013, p.230) a vida se inicia partir da fecundaç~o, mas segundo ele “[...] para fins de
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proteção por intermédio da lei penal, a vida só terá relevância após a nidação, que diz respeito à implantação do óvulo já fecundado no útero materno, o que ocorre 14 (catorze) dias após a fecundaç~o”. Como consequência dessa divergência, entram nessa seara os métodos anticoncepcionais como o DIU (Dispositivo Intrauterino) e a pílula do dia seguinte, que sua forma de funcionamento vai de desencontro a percepção de vida do nosso ordenamento, pelo menos a majoritária, logo seu uso ensejaria o aborto, mas como esses métodos não são tipificados mais sim amparados por lei, a conduta não se torna criminosa. Conforme essa linha de raciocínio preceitua-se que a concepção de vida vai muito além do código penal, envolvendo predominantemente questões éticas e morais. Assim pode se dizer que a ideia de aborto não e dada conforme a vida e sim conforme ao bem querer do legislador.
IV. Descriminalização do aborto
Ao falar em aborto a primeira reflexão que recai é o que vai mudar com a legalização/descriminalização do aborto? Podemos falar que apenas a garantia da saúde da mulher, pois com ou sem a sua legalização milhares de abortos continuaram sendo feitos todos os anos e estes muitas vezes vitimando também a gestante. O código penal permite o aborto necessário e o aborto sentimental, contudo as outras modalidades de aborto s~o proibidas ficando as mulheres “obrigatoriamente” a mercê da lei. Carlos Santiago Nino explica muito bem essa situação:
“O reconhecimento da dignidade da pessoa humana pressupõe que se respeite a esfera de autodeterminação de cada mulher ou homem, que devem ter o poder de tomar as decisões fundamentais sobre suas próprias vidas e de se comportarem de acordo com elas, sem interferências do Estado ou de terceiros. A matriz desta ideia é a concepção de que cada pessoa humana é um agente moral dotado de razão, capaz de decidir o que é bom ou ruim para si, de traçar planos de vida e de fazer escolhas existenciais, e que deve ter, em princípio, liberdade para guiar-se de acordo com sua vontade.” (NINO,1989 apud Daniel Sarmento, 2005, p.42)
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Essa falta de liberdade recai sobre a mulher causando muitos danos físicos e psicológicos. Fora quando cometidos em clinicas clandestinas causando danos por estarem cometendo atos ilegais e altamente prejudiciais se feitas em condições mínimas saúde. O filósofo Ronald Dworkin relata a falta de liberdade da mulher comparando a uma escravização como menciona:
“Uma mulher que forçada pela sua comunidade a carregar um feto que ela não deseja não tem mais o controle do seu próprio corpo. Ele lhe foi retirado para objetivos que ela não compartilha. Isto é uma escravizaç~o parcial, uma privaç~o de liberdade” (Dworkin,1998 apud Sarmento, 2005, p.44).
V. O aborto como questão de saúde e a perspectiva constitucional
Ao admitir que a criminalização não inibe a prática de abortos percebe-se que ele apresenta-se mais propriamente como uma questão de saúde pública, não exigindo tipificação penal ou julgamento criminal. Quanto à saúde, a Constituição Federal (1988, p.61) afirma, no art. 196, que:
“é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoç~o, proteç~o e recuperaç~o”.
Portanto, é de cunho constitucional a obrigação do Estado de efetivar medidas que objetivem a redução do risco e agravos de doença, prezando pelo acesso universal a saúde. Contudo, ao manter o abordo proibido, o Estado afasta as mulheres de procedimentos seguros e como resultado, alcança um quadro espantoso de vítimas de abortos irregulares. Essa realidade, infelizmente, só contribui para o aumento de mulheres com doenças e transtornos provenientes de abortos mal sucedidos, gerando enfermas para um sistema que, poderia, ao invés de trata-las após a prática abortiva, realizar o procedimento com segurança e com menos prejuízo a saúde da mulher e ao próprio
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Estado que, no atual cenário, atua na via contrária a sua obrigação constitucional por excelência. A constatação a ser feita, quando analisam-se as disposições sobre questões relativas ao aborto é de que: “(...) do ponto de vista pr|tico, a criminalizaç~o tem produzido como principal conseqüência, ao longo dos anos, a exposição da saúde e da vida das mulheres brasileiras em idade fértil, sobretudo as mais pobres, a riscos gravíssimos, que poderiam ser perfeitamente evitados através da adoção de política pública mais racional. Portanto, a legislaç~o em vigor n~o “salva” a vida potencial de fetos e embriões, mas antes retira a vida e compromete a saúde de muitas mulheres.” (SARMENTO, DANIEL. 2005, p.2)
Destarte, ao manter a postura de criminalização do aborto, salvo raríssimas exceções presentes na legislação, o Estado brasileiro perpetua um modelo violento e falho na tentativa salvar vidas, que sustenta-se a partir de um discurso dotado de um moralismo hipócrita e negligente com direitos humanos e femininos.
Metodologia
No presente artigo utilizou-se do método dedutivo e da técnica de pesquisa bibliográfica.
Conclusões
Ao longo do estudo realizado no presente resumo expandido foi possível compreender o processo de construção da legislação brasileira sobre o aborto, notando a existência de um debate moral que muito se coloca distante da realidade prática demonstrada no país. Além disso, é apresentada a a visão do aborto como problemática de saúde pública, acrescido do entendimento constitucional.
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Por fim, entende-se que o aborto não é algo a se analisado sob a perspectiva penal, uma vez que refere-se a um direito a ser exercido pela mulher em conjunto com diversos fatores, indicando que a proibição não constitui a melhor saída
Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, 2: parte especial: dos crimes contra a pessoa. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro gráfico, 1988. 292p. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte especial. 13.ed. São Paulo: Saraiva, 2013. v.II. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio Online. Disponível em: < https://dicionariodoaurelio.com/aborto> Acesso em 07 de junho de 2018. GRECO, Rógerio. Curso de Direito Penal. Parte especial. 10.ed. Rio de Janeiro: Impetos,2013. MEIRELLES, Alexa. Entenda como o aborto é tratado ao redor do mundo. Revista Superinteressante. 2017. SARMENTO, Daniel. Legalização do Aborto e Constituição. Disponível em <http://www.mundojuridico.adv.br.> Acesso em 07 de junho de 2018.
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GRUPOS DE TRABALHOS III (GT III)
DIREITOS HUMANOS SOB A PERSPECTIVA DO DIREITO PENAL
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1 A INEFICÁCIA DO PODER ESTATAL FRENTE AO SISTEMA PENITENCIÁRIO POTIGUAR: UM ESTUDO ACERCA DAS VIOLAÇÕES AOS DIREITOS HUMANOS NO PRESÍDIO DE ALCAÇUZ KELVIN WESLEY DE AZEVEDO14 JULIANA DAS MERCÊS GOMES BEZERRA15
RESUMO: Não é nenhuma novidade que o atual modelo penitenciário utilizado no Brasil encontra-se completamente defasado. Dificuldade na administração dos recursos, corrupção, organização criminosa, violência, além do completo descaso com o qual são tratados os internos, são algumas das inúmeras causas que provocam toda essa crise que vem se alastrando há décadas. A penitenciária estadual de Alcaçuz vive uma realidade não tão diferente da existente nas demais penitenciárias. Contudo, a situação saiu do controle em 2017, quando facções se rebelaram no interior do complexo penitenciário, provocando a morte de cerca de 26 (vinte e seis) presos. O presente trabalho possui, como principal objetivo, analisar a ineficácia do poder estatal no que diz respeito ao sistema penitenciário do Estado do Rio Grande do Norte, com ênfase na penitenciária de Alcaçuz; além disso, pretende-se traçar um panorama acerca das inúmeras violações aos Direitos Humanos no referido estabelecimento. Para tal, utilizou-se do método investigativo bibliográfico. Palavras-chave: Prisão. Dignidade. Violação. Direito. Violência.
Introdução
Muito se tem discutido, atualmente, sobre a qualidade de vida daqueles que estão sob a égide do cárcere. É inegável que o Estado Brasileiro falhou em sua missão de reeducar os condenados e os reinserir no convívio social, de modo que não tivesse um caráter unicamente punitivo. Prova disso, é a existencia de facções criminosas dentro do sistema penitenciário, no exemplo do Primeiro Comando da Capital, considerada, até hoje, 14
Graduando em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Endereço eletrônico: kelvinw_azevedo@outlook.com. 15 Graduanda em Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Endereço eletrônico: mercesjuliana@hotmail.com ~ 121 ~
como a organização criminosa de maior poder no país. Em seu princípio, as facções carregavam a intenção de se rebelar contra as injustiças e opressões cometidas pela força estatal. Possuíam, de certa forma, uma “ideologia legalista”. Contudo, posteriormente a isso, seu princípio foi corrompido e as mesmas passaram a atuar de forma a buscar controlar o crime organizado de dentro dos estabelecimentos penitenciários. Veja, é imprescindível ressaltar que, ao estarem dentro dos estabelecimentos penitenciários, os condenados estão, inegavelmente, sobre os cuidados do Estado. Portanto, este se torna forte responsável por aquilo que venha a acontecer dentro dos presídios. É sob a égide dos Direitos Humanos e das garantias fundamentais, que o conteúdo exposto neste trabalho visa demonstrar as diversas lacunas deixadas pelo poder estatal no que diz respeito ao tratamento daqueles que estão cumprindo determinada pena. Lacunas essas que ferem um dos princípios invioláveis assegurados pela Carta Magna, a dignidade da pessoa humana.
I. O Sistema Penitenciário Potiguar: Caos Declarado
Os elevados índices de violência, e, consequentemente, o crescimento considerável da população carcerária brasileira refletem diretamente nas condições de vida existentes nas prisões do Brasil, ocasionando graves problemas como: a superlotação, os abusos cometidos por agentes de segurança e pelos próprios presos, a violação de direitos, os motins, corrupção, homicídios e, como se não bastasse, a falta de assistência social e psicológica daqueles indivíduos encarcerados, além da escassez de projetos de natureza laborais e educativos, praticamente anulam as chances de recuperação e reinserção concreta daqueles sujeitos à sociedade, de modo que não voltem a delinquir, assim como prevêem os dispositivos da Lei de Execução Penal16, do Código Penal17 e da Carta Magna de 198818. 16
BRASIL. LEI Nº 7.210, DE 11 DE JULHO DE 1984. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. 17 BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. 18 BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. ~ 122 ~
No estado do Rio Grande do Norte a realidade não é tão diferente da encontrada nos demais presídios do país. Os investimentos são raros e, quando surgem, são mal aplicados. Além disso, a precariedade de estrutura a qual os presos são condicionados a viverem é de uma desumanidade sem igual. Celas que foram construídas para comportarem entre quatro e cinco presos, comportam vinte ou mais. Como ter o mínimo de condições de sobrevivência em meio a um confinamento? Como discutir uma possível recuperação se o indivíduo é jogado – literalmente – dentro de um estabelecimento e o Estado não apresenta nenhuma preocupação em que condições o mesmo terá de enfrentar? É notório que a atual realidade do sistema penitenciário potiguar diverge do que é disposto na própria legislação brasileira, como é o caso do art. 59 do Código Penal Brasileiro19, senão vejamos:
Art. 59. O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime I - as penas aplicáveis dentre as cominadas; II - a quantidade de pena aplicável, dentro dos limites previstos; III - o regime inicial de cumprimento da pena privativa de liberdade; IV - a substituição da pena privativa da liberdade aplicada, por outra espécie de pena, se cabível. (grifo do autor)
Observa-se que a pena também possui como objetivo a recuperação e futura reinserção do sujeito, de modo que este retorne ao convívio em sociedade estando pronto para nela viver e se desenvolver, sem delinquir. Na atual situação do sistema penitenciário brasileiro, não há de se afirmar que o caráter ressocializador da pena esteja próximo do real. Devido as condições degradantes e violadoras dos Direitos Humanos existentes nos interiores dos estabelecimentos penitenciários, é de se observar que muitos dos sujeitos que ali estão deixam o sistema prisional com um novo olhar acerca do crime, principalmente o crime organizado. De acordo com BECHARA (2008, p.17)20:
19
BRASIL. DECRETO-LEI Nº 2.848, DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. ~ 123 ~
O direito penal moderno tende a refugiar-se em encargos meramente simbólicos, como instrumento para a sensibilização social, para satisfazer demandas por atuação, para mostrar um Estado forte, etc., mas o simbólico não é neutro, no sentido crítico em que o tratadista alemão Hassemer dá ao termo, pois deve ser associado com engano, na medida em que existe uma oposição entre o que realmente se quer e o que de fato se aplica. Engano porque parte de uma aparência falsa de efetividade e instrumentalidade e, com isso, legitima-se o endurecimento das sanções, a extensão do controle penal e a necessidade de recorrer a este instrumento em primeira e última instância. Direito penal simbólico significa que as funções latentes das normas predominam sobre as funções manifestas; é então de se esperar que com elas e sua aplicação realiza-se algo diferente do disposto na mesma lei. (grifo do autor)
A prisão, quando não apresenta as mínimas condições de oferecer uma qualidade de sobrevivência e subsistência, além de favorecer a recuperação do apenado e o surgimento de oportunidades, acaba fomentando o aumento da violência e da opressão, formando e reforçando valores negativos dos sujeitos, em virtude da tamanha violação aos direitos e garantias fundamentais, inerentes a todo e qualquer ser humano. Para CUNHA (2015)21, pelo princípio da humanização da pena, a execução penal deve obedecer aos parâmetros modernos de humanidade, consagrados internacionalmente, mantendo-se a dignidade humana do condenado. O nascimento de organizações criminosas, como o Primeiro Comando da Capital (PCC), por exemplo, está completamente ligado à presença de muitas das problemáticas citadas anteriormente. Como bem disse DIAS (2013, p. 502)22:
A necessidade de proteção era de fato um imp ortante elemento nessa figuração social. Estruturada a partir de frágeis laços de lealdade e amizade mitigados por toda sorte de intrigas, traições e desconfianças, a figuração social da prisão anterior ao PCC demandava uma ininterrupta precaução a fim de preservar a vida e a integridade física dos indivíduos.
Em meio a tantos conflitos, os próprios apenados editaram as suas normas de conduta dentro dos presídios, de modo a atuarem de forma estruturada e organizada. O Primeiro Comando da Capital surgiu no ano de 1993, com uma ideologia manifesta 20
BECHARA, Ana Elisa. Os discursos de emergência e o comprometimento da consideração sistêmica do direito penal. Boletim do IBCCrim. a. 16. n. 190. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, set. 2008. 21 CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial. 7ª. ed. Salvador: JusPodivm. 2015 22 DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC - Hegemonia Nas Prisões e Monopólio da Violência - Col. Saberes Monográficos. São Paulo: Saraiva. 2013. ~ 124 ~
sobre dois pilares principais: de um lado,instigava a luta contra a opressão estatal e pela garantia aos direitos assegurados aos presos; de outro, até mesmo como uma forma para se chegar ao pilar anterior, reafirmava a necessidade de parceria e solidariedade entre os apenados, como bem afirmava DIAS (2013)23. O que é perceptível no tocante ao sistema carcerário brasileiro, com ênfase no sistema carcerário potiguar, é o completo descaso por parte das autoridades. Na teoria, o propósito da pena de reclusão seria punir e, ao mesmo tempo, recuperar o indivíduo, contudo, as atuais circunstâncias tornam essa possibilidade praticamente impossível. Sendo assim, no ano de 2009, a Câmara dos Deputados decidiu instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), para investigar e apurar a realidade a qual o sistema penitenciário se encontrava, além de discutir meios para conseguir vencer a crise que se estabelecia. Apesar da legislação brasileira ser, na teoria, boa, como é o caso da Lei de Execuções Penais (LEP), a realidade constatada foi cruel e degradante. Em meio aos inúmeros problemas encontrados, celas superlotadas chamaram a atenç~o. N~o havia uma separaç~o dos tidos como “presos comuns” dos presos considerados de “alta periculosidade”; ou seja, presos por roubo ocupavam o mesmo espaço que o preso por tráfico de drogas ou por homicídio. Isso facilita de diversas formas a propagação e difusão das ideias do crime organizado. Sendo assim, a partir daí, a prisão deixou o seu papel de instituição de reeducação e passou a ser uma verdadeira “escola do crime”. O sistema prisional deixou de ser, de certa forma, uma solução, para se tornar um problema em si, de acordo com MONTANUCCI (2016).24
II. Guerra entre facções: PCC versus Sindicato do Crime
Com essas violações a princípios b|sicos, o Estado “colaborou” com a consolidação do Primeiro Comando da Capital (PCC), como citado anteriormente, considerada, até hoje, a maior facção criminosa do Brasil. 23
Ibidem. P. 502. MONTANUCCI, Rafael Luiz. OMISSÃO DO ESTADO E HEGEMONIA DO PCC NOS PRESÍDIOS BRASILEIROS. Disponível em: < http://docplayer.com.br/63671628-Omissao-do-estadoe-hegemonia-do-pcc-nos-presidios-brasileiros-1.html>. Acesso em: 07. Jun. 2018. 24
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No momento inicial da sua criação, possuía como objetivo a propagação dos ideais reacionários, sentimentos de luta contra a opressão dentro do sistema; entretanto, com o decorrer do tempo, passaram não apenas a administrar o interior dos estabelecimentos prisionais, mas também atuar de forma explícita contra as forças do Estado. Em meio a esse descaso das autoridades com os encarcerados, foi surgindo uma lacuna para o nascimento deste grupo extremamente organizado. Com a união existente entre os presos, somada ao apoio dos componentes que se encontram do lado de fora dos presídios, a organização se torna a cada dia mais forte, deixando o seu “legado” como o principal inimigo do Estado. O Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu na Casa de Custódia de Taubaté, região localizada a cerca de cento e trinta quilômetros da capital São Paulo, no ano de 1993, tido, naquela época, como um dos estabelecimentos mais seguros do país. Durante um jogo de futebol, oito presos que foram direcionados da capital para aquele estabelecimento por comportamento inadequeado resolveram batizar o seu time como “Comando da Capital”. Ainda no início, o que era um simples time tomou novos rumos. Eles começaram, ainda no sistema prisional, a pregar a ideia de que foram criados para “combater a opress~o no sistema prisional paulista”, bem como vingar a morte dos 111 presos que foram mortos em Outubro de 1992, no episódio conhecido como “Massacre do Carandiru”. No momento em que as autoridade paulistas descobriram a existência da organização e seus objetivos, tomaram a medida que julgaram ser a mais adequada, mas que ajudou a consolidar ainda mais os seus planos: o envio dos líderes para outros estados. Como bem disse BIGOLI (2015)25, os líderes propagaram os seus ideais para os presos locais, fazendo com que novos integrantes atuassem junto ao grupo. Mesmo “nascendo” no estado de S~o Paulo, o PCC “expandiu as suas fronteiras” e teve o seu estatuto disseminado por todo o país, tendo passado a ser, hoje, a facção criminosa de maior poderio dentro do estado do Rio Grande do Norte, com grande atuação e influência dentro da penitenciária de Alcaçuz.
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BIGOLI, Paula. Facções Criminosas: o caso do PCC - Primeiro Comando da Capital. Disponível em: <http://paulabigoli.jusbrasil.com.br/artigos/150336089/faccoes-criminosas-o-caso-do-pcc-primeirocomando-da-capital>. Acesso em 07. Jun. 2018. ~ 126 ~
Tido como uma dissidência do PCC, o Sindicato do RN foi criado por detentos inconformados com as decisões dos líderes locais da facção paulista. Aliados de um dos maiores inimigos do Primeiro Comando, o Comando Vermelho, o Sindicato é um grupo local do estado do Rio Grande do Norte, assim como a Família do Norte é no Amazonas, a entrar em colis~o com os “paulistas” pela supremacia dentro dos presídios. O Sindicato ganhou “fama” em Agosto de 2016, quando praticou um verdadeiro “conjunto de atentados” no Rio Grande do Norte, onde controla cerca de 24 das 32 penitenciárias existentes. Em três dias de ataques, 65 ocorrências foram registradas por todo o estado, como: ônibus incendidados e prédios públicos alvejados. O que teria provocado a crise? A instalação de bloqueadores de celular em alguns presídios26. Contudo, a questão é: O que provocou tamanha rivalidade entre as duas facções? Ora, além do Sindicato ter sido, de certa forma, um grupo advindo do PCC “que n~o deu certo”, acabou entrado na rota mais lucrativa para o Primeiro Comando. O RN é um dos estados mais próximos da Europa, destino final de parte dos ilícitos contrabandeadas pelos paulistas e uma das mais lucrativas rotas do tráfico internacional. Ambas as facções buscam controlar tal rota e aumentar o seu poderio dentro e fora dos estabelecimentos prisionais.
III. O presídio de Alcaçuz e a rebelião de 2017
A penitenciária estadual de Alcaçuz é considerada, até hoje, a maior unidade prisional do estado do Rio Grande do Norte. Informações publicadas no Portal EBC27 dão conta que Alcaçuz tem um total de 620 vagas e abriga, atualmente, uma população de cerca de 1.083 presos em regime fechado. Em Janeiro de 2017, motivado, inicialmente, pela instalação de bloqueadores de celulares no presídio, os presos se rebeleram no interior do complexo de Alcaçuz. O 26
EL PAÍS. Sindicato do Crime RN, a dissidência do PCC que hoje é seu inimigo mortal. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/17/politica/1484672500_297788.html> . Acesso em: 07 Jun. 2018 27 EBC. Entenda a crise no sistema prisional brasileiro. Disponível em: < http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-no-sistema-prisional-brasileiro>. Acesso em: 07. Jun. 2018 ~ 127 ~
primeiro motim logo foi controlado pelas forças policiais, e sem conflitos. Contudo, posteriormente, os presos voltaram a se rebelar, dessa vez subindo no topo dos pavilhões, ateando fogo em colchões e assassinando outros detentos. Cerca de vinte e seis corpos foram encontrados. Entretando, após outras buscas, partes de corpos foram encontrados dentro do sistema de esgoto do estabelecimento, dando conta de que o número de mortos foi bem maior do que o constatado. A questão é: qual a responsabilidade do estado frente a tantos ataques? O ocorrido em Alcaçuz foi a terceira rebelião em menos de um mês. Como acreditar que existe eficiência na administração oferecida se não há controle nem onde os indivíduos são condenados a cumprir pena?
Metodologia
Para alcançar o objetivo desse trabalho, foi-se utilizado da hermenêutica dos dispositivos do Código Penal Brasileiro (Lei 2848/1940), além da Lei de Execução Penal Brasileira e da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, bem como a análise de teses de doutorado, dissertações de mestrado, artigos científicos produzidos por estudiosos do tema e matérias jornalísticas.
Conclusões
Se o Estado tivesse exercido a sua função da maneira que deveria, respeitandoi a legislação vigente e os Direitos Humanos, tal problemática não estaria sendo, agora, utilizada como objeto de pesquisa. Como o Estado falhou, deixando os presos sem as mínimas condições de sobrevivência, estes tiveram de adotar as próprias regras para a devida convivência no interior dos estabelecimentos. Os presídios brasileiros ultrapassam a sua capacidade máxima, deixando os indivíduos em meio a situações completamente degradantes. A penitenciária estadual de Alcaçuz tornou-se uma verdadeira “escola do crime”, onde os protagonistas est~o tentando, a todo o custo, “virarem o jogo” e assumirem, de vez, o comando da coisa. Nada mais havendo a tratar, concluímos que há de se discutirem novas formas de administração dos recursos destinados ao sistema penitenciário, além de maneiras de ~ 128 ~
“desafogar” os presídios, de modo que cada um passe a funcionar da forma como deve, com a sua capacidade máxima respeitada. A dignidade da pessoa humana não pode e não deve ser deixada em segundo plano, passando a prevalecer somente “quando for conveniente”. A pris~o deve cumprir o seu real papel, abandonando o caráter meramente punitivista, e passando a assumir o papel de instrumento de reeducação e reinserção do sujeito à sociedade.
Referências
BRASIL. LEI Nº 7.210 DE 11 DE JULHO DE 1984. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l7210.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. BRASIL. LEI Nº 2.848 DE 7 DE DEZEMBRO DE 1940. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del2848compilado.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. BRASIL. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL DE 1988. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 07 Jun. 2018. BECHARA, Ana Elisa. Os discursos de emergência e o comprometimento da consideração sistêmica do direito penal. Boletim do IBCCrim. a. 16. n. 190. São Paulo: Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, set. 2008. BIGOLI, Paula. Facções Criminosas: o caso do PCC - Primeiro Comando da Capital. Disponível em: http://paulabigoli.jusbrasil.com.br/artigos/150336089/faccoes-criminosas-o-caso-do-pcc-primeirocomando-da-capital. Acesso em 07 jun. 2018. CUNHA, Rogério Sanches. Manual de Direito Penal: parte especial. 7ª. ed. Salvador: JusPodivm. 2015 DIAS, Camila Caldeira Nunes. PCC - Hegemonia Nas Prisões e Monopólio da Violência - Col. Saberes Monográficos. São Paulo: Saraiva. 2013. EBC. Entenda a crise no sistema prisional brasileiro. Disponível em: < http://www.ebc.com.br/especiais/entenda-crise-no-sistema-prisional-brasileiro>. Acesso em: 07. Jun. 2018 EL PAÍS. Sindicato do Crime RN, a dissidência do PCC que hoje é seu inimigo mortal. Disponível em: < https://brasil.elpais.com/brasil/2017/01/17/politica/1484672500_297788.html> . Acesso em: 07 Jun. 2018 MONTANUCCI, Rafael Luiz. OMISSÃO DO ESTADO E HEGEMONIA DO PCC NOS PRESÍDIOS BRASILEIROS. Disponível em: < http://docplayer.com.br/63671628-Omissao-do-estado-e-hegemoniado-pcc-nos-presidios-brasileiros-1.html>. Acesso em: 07. Jun. 2018.
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PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA: IMPASSE ENTRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A PRISÃO ANTES DO TRÂNSITO EM JULGADO
NIVALDO ALVES MARTINS NETO FERNANDO ANDRADE HOLANDA
RESUMO: Cotidianamente é possível verificar que diversas pessoas estão sendo presas antes do trânsito em julgado. Isto só é possível, pois o Supremo Tribunal Federal (STF), no julgamento das ADCs 43 e 44, entendeu por 6 votos a 5 que após decisão judicial em órgão colegiado, pode-se iniciar a execução penal. Este trabalho irá realizar uma abordagem através de dados estatísticos, doutrinas e jurisprudências, verificando a efetividade dessa decisão, buscando retratar sobre o impasse do princípio da presunção de inocência e a prisão antes do trânsito em julgado. Além disso, usaremos como suporte a Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica), o art. 283 do Código de Processo Penal e o art.5º, inciso LVII da Constituição Federal de 1988. Palavras-chave: Pacto de San José da Costa Rica. Direito Processual Penal. Prisões antes do trânsito em julgado. Presunção da inocência.
Introdução
É possível afirmar que a Convenção Americana de Direitos Humanos (pacto de San José da Costa Rica), realizada em 22 de novembro de 1969, contribuiu significativamente na luta para uma real efetivação dos direitos inerentes a pessoa humana. O objetivo desse trabalho é mostrar até que ponto o Direito de todos serem considerados inocentes até o trânsito em julgado é considerada norma fundamental à pessoa humana. Além disso, será abordada a efetividade dos Direitos Fundamentais, elencados no art.5º da Constituição Federal de 1988, levando em consideração o ativismo judicial do Supremo Tribunal Federal (STF). Serão expostas divergências, com base em dados, encontradas nas decisões dos Ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) no que se refere ao art.8º do Pacto de
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San José da Costa Rica, o art.5º da nossa Constituição Federal de 1988 e o art.283 do Código de Processo Penal.
Desenvolvimento
O tcheco-francês, Karel Vasak, classificou os Direitos Fundamentais em três gerações. Os de primeira geração, direitos associados à liberdade, são os direitos mais essenciais, sendo chamados de direitos individuais ou negativos, pois se relacionam a direitos que não podem ser negados pelo Estado. Os direitos de segunda geração são chamados de direitos positivos e encontram-se associados à coletividade, ou seja, a igualdade; pressupondo um dever do Estado. A terceira dimensão é a geração dos direitos supra individuais, como: a paz, o meio ambiente, etc. Com isso, podemos dizer que o Princípio da presunção de inocência surgiu na primeira dimensão dos Direitos Humanos. O princípio da presunção da inocência é um dos princípios constitucionais, no qual o acusado passa a ser sujeito de direito dentro de uma relação processual, e quando aplicado ao direito penal, podemos dizer que esse principio estabelece o estado de inocência como regra em relação ao acusado da prática de infração penal e tem por objetivo respeitar o estado de inocência em que todo acusado se encontra até que sua sentença transite em julgado definitivamente. Conforme MORAES (2008), a presunção da inocência pode ser entendida como garantia política, como regra de julgamento em caso de dúvida e como regra de tratamento do indiciado no transcorrer do processo judicial. A sua origem foi durante a Revolução Francesa, sendo reiterado na Declaração Universal dos Direitos Humanos e também firmado posteriormente em 1969 no pacto de San Jose de Costa Rica. A dignidade da pessoa humana possui um conceito muito amplo, porém de forma genérica, podemos dizer que é um conjunto de princípios e valores que tem a função de garantir que cada cidadão tenha seus direitos respeitados pelo Estado, cujo seu maior objetivo é o bem estar social. Para Kant, a dignidade é o valor de que se reveste tudo aquilo que não tem preço, ou seja, não é passível de ser substituído por um equivalente. Dessa forma, a dignidade é uma qualidade inerente aos seres humanos enquanto entes morais: na medida em que exercem de forma autônoma a ~ 131 ~
sua razão prática, os seres humanos constroem distintas personalidades humanas, cada uma delas absolutamente individual e insubstituível. Consequentemente, a dignidade é totalmente inseparável da autonomia para o exercício da razão prática, e é por esse motivo que apenas os seres humanos revestem-se de dignidade(KANT, ed. 2007). É o que dispõe o art. 1º, III da Constituição Federal: “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III – a dignidade da pessoa humana.” No art. 5º da CF/88, inciso LVII, diz: “ninguém ser| considerado culpado até o tr}nsito em julgado de sentença penal condenatória”, com base nesse princípio podemos concluir que o acusado só irá cumprir a pena a partir do momento em que não couber mais recurso. Porém, o Supremo Tribunal Federal, “guardi~o” da nossa constituição, entende de forma adversa, havendo um impasse entre dignidade da pessoa humana e execução penal antes do trânsito em julgado. Em outubro de 2016, os 11 Ministros reafirmaram por seis votos a cinco, o entendimento de que o inciso LVII do art.5º da CF/88 e o art.283 do CPP, não impede o início da execução penal após condenação em órgão colegiado. Conforme o voto do Senhor Ministro, Edson Fachin nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44: Com a devida vênia de quem eventualmente conceba de forma diversa, considero haver um agigantamento dos afazeres deste Supremo Tribunal Federal que decorre da própria forma como esta Corte interpreta determinadas regras constitucionais. Não faço aqui apologia daquilo que se costuma denominar de jurisprudência defensiva. Quero, todavia, dizer que, dentro daquele espaço que a Constituição outorga ao intérprete uma margem de conformação que não extrapola os limites da moldura textual, as melhores alternativas hermenêuticas quiçá são, em princípio, as que conduzem a reservar a esta Suprema Corte primordialmente a tutela da ordem jurídica constitucional, em detrimento de uma inalcançável missão de solver casos concretos. Por essa razão, interpreto a regra do art. 5º, LVII, da Constituiç~o da República, segundo a qual “ninguém ser| considerado culpado até o tr}nsito em julgado de sentença penal condenatória”, entendendo necessário concebê-la em conexão a outros princípios e regras constitucionais que, levados em consideração com igual ênfase, não permitem a conclusão segundo a qual apenas após esgotadas as instâncias extraordinárias é que se pode iniciar a execução da pena privativa de liberdade.
Mesmo com esse entendimento do Ministro, são visíveis os gastos que o Estado terá em caso de absolvição após julgamento do Supremo. Ou seja, levando em ~ 132 ~
consideraç~o o art.5º, LXXV que diz “o Estado indenizará o condenado por erro judici|rio, assim como o que ficar preso além do tempo fixado na sentença”, fica claro que a possibilidade de prisão em segunda instância não é a melhor alternativa para suprir o sistema judiciário, e sim um processo penal justo, tempestivo e satisfatório. O processo penal, conforme ressalta Aury Lopes Jr., não pode ser visto hoje como um instrumento a serviço do poder punitivo, mas como aquele que cumpre o papel de limitar o poder e garantir ao indivíduo a ele submetido. Como bem expresso pelo citado autor, “há que se compreender que o respeito às garantias fundamentais não se confunde com impunidade, e jamais se defendeu isso. O processo penal é um caminho necessário para chegar-se, legitimamente, à pena. Daí por que somente se admite sua existência quando ao longo desse caminho forme rigorosamente observadas as regras e garantias constitucionalmente asseguradas (as regras do devido processo legal)”.
Sendo assim, é visível que nosso ordenamento jurídico não permite a Autotutela (exceto em casos previstos em lei) que consiste na solução imposta a um conflito por meio da força, por um dos litigantes contra o outro. Ou seja, na linguagem informal, é “fazer justiça com as próprias m~os”. Além disso, o Estado é o único que usa a força de forma legítima, para que não retornemos ao estado de barbárie. Levando em consideração o Código de Processo Penal brasileiro, em seu artigo 283 relata que “ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de pris~o tempor|ria ou pris~o preventiva”. Sendo assim, o entendimento do Ministro relator das ADCs 43 e 44, Marco Aurélio, seria o mais adequado, já que está em acordo com a Carta Magna e o Código de processo penal. No entendimento do relator, não há dúvida de que o artigo 283 do CPP se harmoniza ao princípio constitucional da não-culpabilidade, segundo o qual ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória (artigo 5º, inciso LVII).
O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas. A Carta Federal consagrou a excepcionalidade da custódia no sistema penal brasileiro, sobretudo no tocante à supressão da liberdade anterior ao trânsito em julgado da decisão condenatória. A regra é apurar para, em execução de ~ 133 ~
título judicial condenatório precluso na via da recorribilidade, prender. Afirma o Ministro Marco Aurélio.
O maior argumento dos defensores da execução penal em segunda instância, é que os crimes até que sejam julgados em ultima instância, irão prescrever. Além disso, afirmam que poucas decisões são corrigidas pelo Supremo, concretizando ainda mais a opinião de celeridade no cumprimento das penas. Porém, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nos trás dados importantíssimos que servem como combate a esse tipo de pensamento. De acordo com o CNJ a produtividade dos juízes tem aumentado significativamente, em 2016, cada juiz brasileiro solucionou mil setecentos e quarenta e nove (1.749) processos, mais de sete por dia. O número de casos sentenciados registrou a mais alta variação da série histórica. No último ano, o número de sentença e decisões cresceu 11,4%. Em 2016, magistrados e servidores conseguiram a marca de 30,8 milhões de casos julgados. O índice de atendimento à demanda – indicador que verifica se o tribunal foi capaz de baixar processos pelo menos em número equivalente ao quantitativo de casos novos – ficou em 100,3%, o que mostra o esforço para evitar o aumento dos casos pendentes. Com isso, podemos concluir que o Brasil mesmo tendo um povo consideravelmente “litigioso” judicialmente, o Poder judici|rio trabalha incansavelmente para que todos os brasileiros tenham sua resposta de forma satisfatória e tempestiva. As funções do Direito Penal, assim, podem ser sintetizadas como, por um lado, o controle social, através de mecanismos simbólicos de prevenção. Por outro lado, paralela e paradoxalmente, a garantia do indivíduo frente ao Estado e suas pretensões de intervir sobre a liberdade individual. É no contraponto entre essas duas faces da esfera penal que se pode destacar que o Direito Penal contemporâneo caminha para ser uma esfera jurídica centrada no enaltecimento do ser humano como referência e razão principal das relações sociais. (COELHO, 2011) Quando se relaciona o principio da presunção da inocência com a prisão em transito em julgado, vemos que a prisão preventiva é uma prisão cautelar de natureza processual decretada pelo juiz durante o inquérito policial ou processo criminal. Entretanto, existem requisitos para se declarar a prisão preventiva, garantindo todos os princípios fundamentais, em especial o da presunção da inocência. Esses requisitos ~ 134 ~
estão expostos no Art. 312 do Código de Processo Penal que foi complementado com o advento da Lei 12.403/11, no qual presume: “A pris~o preventiva poder| ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício suficiente de autoria.”. Contudo, embora sem trânsito em julgado da sentença condenatória, há compatibilidade entre a prisão preventiva e o estado de inocência, devendo, entretanto, ficar comprovada a presença dos requisitos que fazem tal ato tornarem-se legal, diferentemente do entendimento em execução penal a partir do julgamento de órgão colegiado. Hodiernamente, foi notório ver que a prisão do Ex-Presidente Lula, em abril de 2018, causou grandes debates sobre o assunto no mundo jurídico, já que tanto a constituição como o Código Processo Penal não deixa duvida em afirmar que ninguém será culpado antes do transito em julgado da sentença penal condenatória. Outrossim, segundo o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) há, no brasil, uma população carcerária de mais 725 mil presos, ficando claro a superlotação dos presídios e intrigando a população sobre os benefícios do entendimento defendido pelo STF. Sendo assim, é perceptível a necessidade de um entendimento mais fundamentado e concretizado entre os juristas, no que tange o princípio da não culpabilidade, a dignidade da pessoa humana e a execução penal a partir da decisão em segunda instância. Logo, esta jurisprudência deve ser revista e refeita para um estudo mais aprofundado, buscando meios alternativos que não firam visivelmente os direitos inerentes à pessoa humana.
Metodologia
Esta pesquisa foi realizada através de pesquisas bibliográficas e documentais, além de dados estatísticos. O levantamento foi feito utilizando-se de fontes como: notícias, artigos, doutrinas, periódicos, jurisprudências, documentos oficiais, etc. Discutiu-se, também, a decisão do STF nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade 43 e 44 que tem uma relação bastante divergente com os direitos e garantias fundamentais da pessoa humana e o pacto de San José da Costa Rica. ~ 135 ~
Conclusões
A prisão antes do trânsito em julgado tornou-se regra ao invés de exceção. Com base no entendimento firmado pelo STF, é visível a ferida profunda e incurável que causa a dignidade da pessoa humana. O presente trabalho teve como objetivo principal mostrar a verdadeira realidade do ordenamento jurídico brasileiro e suas falhas no que tange no entendimento firmado nas ADCs 43 e 44. Além disso, mostra-se que o art.8º do Pacto de San José da Costa Rica foi violado pelo STF. Diante disso, é perceptível a necessidade de que diversas medidas devem ser tomadas para que o cidadão não tenha seus diretos diminuídos pelo próprio Estado, fazendo com que o mesmo volte a ter direito de recorrer em liberdade até que se prove a culpa ou inocência na sentença transitada em julgado.
Referências
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ENCARCERADOS E ULTRAJADOS: UMA ANÁLISE JURÍDICA SOBRE A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO NO DIREITO BRASILEIRO E O DEVER DE INDENIZAR OS PRESIDIÁRIOS SUBMETIDOS A CONDIÇÕES DEGRADANTES
ARTHUR VICTOR DE MACEDO LARA LETÍCIA DIAS CAMPELO DEODATO
RESUMO: O presente estudo busca trazer à tona considerações importantes acerca da Responsabilidade Civil do Estado no Direito brasileiro, promovendo uma firme conexão com o recente entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), no que se refere ao dever que tem o Estado de indenizar o presidiário submetido a condições degradantes, abordando, inclusive, disposições constitucionais sobre a matéria, bem como analisando o dever do Estado para com o encarcerado de acordo com a Lei de Execução Penal. Com isso, tem-se o intuito de fomentar a discussão acerca dos direitos que assistem a essas pessoas, tentando trazer luz a um debate permeado de preconceitos e opiniões pouco embasadas, atentando sempre para o princípio mor da dignidade da pessoa humana e observando o que dizem as normas brasileiras sobre a matéria. Palavras-chave: Dever de Indenizar. Responsabilidade Objetiva do Estado. Jurisprudência do STF. Lei de Execução Penal. Sistema Prisional Brasileiro.
Introdução
A Responsabilidade extracontratual do Estado, ora em análise, tem origem no Direito Civil, consistindo na obrigação de indenizar um dano causado a outrem, quer seja esse dano de ordem moral ou patrimonial. No Direito Público, a Responsabilidade Civil do Estado expressa-se no dever que este tem de indenizar os danos patrimoniais e morais que seus agentes, atuando nessa qualidade, causarem a terceiros. No Direito Brasileiro, a teoria adotada acerca da Responsabilidade Civil do Estado é a objetiva, também chamada de “Teoria do Risco Administrativo”. Ou seja, no Brasil, Pessoas Jurídicas de Direito Público (União, estados, Distrito Federal, Municípios, autarquias, fundações públicas) e Pessoas jurídicas de Direito Privado ~ 138 ~
prestadoras de serviço público (concessionárias, permissionárias) respondem pelos danos causados a terceiros independente de culpa ou dolo que eventualmente tenham em suas condutas comissivas ou omissivas, importando os referidos dolo e culpa apenas no que tangem os agentes públicos que diretamente causaram o dano. Para expor todo o estudo de forma mais concisa e didática, o trabalho será dividido em três partes. A primeira abordando a Responsabilidade Civil do Estado no Direito brasileiro; a segunda tratando a respeito dos deveres do Estado, e direitos do encarcerado; e a terceira atendo-se ao dever que tem o Estado de indenizar os presidiários submetidos a condições degradantes, pautando-se para tanto no entendimento do STF que reconheceu o direito a referida indenização, tecendo sobre tudo isso uma análise crítica, do ponto de vista jurídico e humanista. Trata-se de um trabalho científico que objetiva analisar a Responsabilidade Civil do Estado no Direito brasileiro, traçando um paralelo com a decisão do Supremo Tribunal Federal no sentido de atribuir ao Estado o dever de indenizar os presidiários submetidos a condições degradantes.
I. A responsabilidade civil do estado brasileiro e o dever de indenizar os presos submetidos a condições degradantes
A responsabilidade civil do Estado é um tema polêmico, cheio de controvérsias e pensamentos distintos, uma vez que essas questões afetam diretamente o erário público e, portanto, muito discute-se acerca dessa responsabilidade. Todavia, é mister tratar de tais temas, porquanto não se trata de uma questão meramente patrimonial, mas diz respeito aos danos sofridos em decorrência da atividade estatal. Em primeiro momento, é preciso entender do que se trata a responsabilidade civil do Estado e qual tipo de responsabilização que o sistema brasileiro adota. Também, é necessário entender qual o papel do Estado em relação aos encarcerados e, portanto, ter conhecimento de em que casos ele venha ser omisso em relação as suas responsabilidades. Por fim, é importante ver de que forma vem entendendo o Supremo Tribunal Federal acerca da matéria.
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I.I. Da responsabilidade civil do estado no direito brasileiro
Dentre as várias teorias acerca da responsabilidade civil do Estado, o ordenamento jurídico brasileiro optou por adotar a teoria da responsabilidade objetiva, ou seja, o Estado será responsabilizado quando, por meio de conduta oficial, causar algum dano a outrem (seja patrimonial, moral ou estético) e se houver nexo causal entre a conduta estatal e o dano sofrido (ALEXANDRE; DEUS, 2017). Diógenes Gasparini também traz um conceito interessante acerca da responsabilidade civil do Estado sob a ótica da responsabilidade objetiva, abordando que se trata da “obrigaç~o que se lhe atribui de recompor os danos causados a terceiros em razão de comportamento unilateral comissivo ou omissivo, legítimo ou ilegítimo, material ou jurídico, que lhe seja imput|vel” (GASPARINI, 2012, p. 1123). Desta maneira, o Estado tem a obrigação de reparar os danos que causou a terceiros, sem que seja necessária para isso uma análise referente a dolo ou culpa. Como fundamento do que aqui se expõe, tem-se o próprio texto constitucional, no seu art. 37, §6º: As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. (BRASIL, 1988, online).
Vale ainda comentar que, de acordo com a Carta Magna, o Estado possui o dever de ressarcir terceiros por danos causados em decorrência de atividade pública, ainda que ele (o Estado) não o faça diretamente, como é o caso das pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviços públicos. Por fim, em suma, observa-se cristalinamente que a responsabilidade civil estatal no Direito brasileiro é de caráter objetiva. O presente trabalho analisa, de forma sucinta, a responsabilização do Estado em decorrência de conduta omissiva, isto é, quando este tem o dever de agir e a possibilidade de agir para evitar o dano, todavia, não o faz (DI PIETRO, 2017). A análise parte da conduta omissiva do Estado em não prestar o devido amparo e
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assistência devidos aos encarcerados que estão sob sua custódia. Mas, antes disso, é preciso entender quais são esses deveres do Estado para com os encarcerados.
I.II. Dos direitos dos encarcerados, e dos deveres do estado
A Constituição Federal de 1988 traz consigo um bojo de princípios e garantias fundamentais, que se aplicam indistintamente a todos. Como exemplo tem-se o princípio da dignidade da pessoa humana, que transcende a categoria de princípio e se torna um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, como se vê no art. 1º, III (BRASIL, 1988). Esse princípio se desdobra em vários outros, que buscam objetivar esse postulado mor. E quando se trata dos encarcerados, a própria constituição é clara acerca de suas garantias, buscando sempre elucidar a importância de garantir ao encarcerado a integridade física e moral, tal como se estrai do art. 5º, XLVIII, que diz: “é assegurado aos presos o respeito à integridade física e moral” (BRASIL, 1988, online). Todavia, não somente normas constitucionais, mas normas infraconstitucionais também trazem garantias e direitos aos encarcerados, que são tutelados e garantidos pelo Poder Público, no exercício de suas funções. A Lei nº 7.210/84 (Lei de Execução penal), por sua vez, trata a respeito dessa temática, em especial, no Capítulo II - Da Assistência, ao abordar questões relativas a obrigações por parte do Estado para com os encarcerados. No art. 10, o texto legal diz que “A assistência ao preso e ao internado é dever do Estado, objetivando prevenir o crime e orientar o retorno { convivência em sociedade” (BRASIL, 1984, online). Desta maneira, o Estado não deve tão somente cercear a liberdade dos encarcerados, mas tem por obrigação dar-lhes toda assistência necessária, a fim de promover uma devida ressocialização, dando-lhes condições dignas de se cumprir suas penas e possibilitando aos mesmos uma reinserção social. A lei especifica quais as espécies de assistência que o Estado deve oferecer aos encarcerados, a saber, aquelas que estão elencadas no art. 11 da retro mencionada LEP: assistência material, à saúde, jurídica, educacional, social e religiosa (BRASIL, 1984). Ainda que o Estado não ofereça todas essas assistências de forma direta, é preciso que ele atue, mesmo que indiretamente, promovendo estas. ~ 141 ~
Em seguida, os artigos do 12 ao 27 tratam de se debruçar a respeito das respectivas espécies de assistência acima elencadas, somando a estas a assistência também à pessoa do egresso, sendo cada seção (II, III, IV, V, VI, VII e VIII) destinada a trabalhar uma delas. Portanto, fica muito clara a responsabilidade do Estado em prover total assistência aos encarcerados, que dependem diretamente dos recursos e assistência provenientes do Poder Público. Deste modo, uma vez que o Estado seja omisso, não prestando a devida assistência, este deverá ser responsável pelos danos sofridos pelos encarcerados que estão sob sua custódia.
I.III. Do dever de indenizar o presidiário que se encontre em situação degradante
O Estado é responsável pela guarda e segurança das pessoas submetidas a encarceramento, que por ele estão sendo custodiadas, enquanto ali permanecerem detidas. Deste modo, é dever do Poder Público mantê-las em condições carcerárias que preservem e respeitem sua dignidade, com mínimos padrões de humanidade estabelecidos em lei, bem como, se for o caso, ressarcir os danos que daí decorrerem. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende, desde 2012, que o Estado possui responsabilidade objetiva e, portanto, o dever de zelar pela integridade física e psíquica daqueles que estão sob sua custódia, como é possível observar no trecho a seguir, que foi retirado de um voto proferido pelo Ministro Gilmar Mendes, que versou sobre o tema ora exposto: A negligência estatal no cumprimento do dever de guarda e vigilância dos detentos configura ato omissivo a dar ensejo à responsabilidade objetiva do Estado, uma vez que, na condição de garante, tem o dever de zelar pela integridade física dos custodiados (trecho do voto do Min. Gilmar Mendes no ARE 662563 AgR, julgado em 20/03/2012).
Neste referido voto, restou claro que o Estado tem o dever de indenizar os encarcerados submetidos a maus tratos ou qualquer que seja a situação degradante, tendo em vista que aquele, devendo agir e garantir direitos essenciais a estes que estão sob a sua guarda, não o fez e, portanto, foi omisso em sua conduta. Neste ~ 142 ~
sentido, a jurisprudência do STF rumou nesta direção, buscando efetivar tais garantias aos encarcerados por meio da responsabilização do Estado. Deste modo, em decisão recente, O STF, ao apreciar o tema, em Recurso Extraordinário com repercussão geral, assim dispôs: Considerando que é dever do Estado, imposto pelo sistema normativo, manter em seus presídios os padrões mínimos de humanidade previstos no ordenamento jurídico, é de sua responsabilidade, nos termos do art. 37, § 6º, da Constituição, a obrigação de ressarcir os danos, inclusive morais, comprovadamente causados aos detentos em decorrência da falta ou insuficiência das condições legais de encarceramento. (STF. Plenário. RE 580252/MS, rel. Orig. Min. Teori Zavascki, red. P/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgado em 16/2/2017 [repercussão geral] [Info 854]).
Dos dez ministros que participaram do julgamento, foi unânime que, como verdadeiro responsável pela integridade física e psíquica dos presos, o Estado deve arcar com eventuais sofrimentos infligidos a eles. Com a decisão, a Corte admitiu a possibilidade de o Poder Público reparar financeiramente danos morais causados a detentos submetidos a condições precárias, superlotação ou maus tratos. Contudo, como bem ficou demonstrado neste trabalho, o dever do Estado de assegurar a integridade física e psíquica dos presidiários sob sua custódia encontra amparo não apenas na jurisprudência pátria, mas também em vasta legislação, a exemplo das leis mencionadas no subtópico acima. Assim, vislumbra-se claramente o amplo substrato jurídico que possui o tema em análise, apontando para uma só direção: existe, sim, o claro dever do Estado em ser responsabilizado e arcar com eventuais indenizações que se fizerem necessárias a presidiários que, por irresponsabilidade estatal, estão submetidos a condições degradantes.
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Metodologia
O presente trabalho adotou o método de pesquisa bibliográfica, pautando-se para a consecução de seu objetivo em Leis, doutrina e jurisprudências que versassem sobre a temática ora em análise. Quanto à legislação aqui trazida, fora fundamentado todo o alegado, em suma, com base na Lei Maior, a Constituição Federal, assim como na LEP (Lei de Execução Penal). No tocante à doutrina, foram analisados os conceitos e posicionamentos de renomados juristas brasileiros, no intuito de esmiuçar com profundidade a Responsabilidade Civil do Estado e o claro dever que este tem de indenizar os presidiários submetidos a condições degradantes. Por fim, a jurisprudência que aqui se expôs e debateu trata-se do recente entendimento do Supremo Tribunal Federal em relação ao tema já mencionado, que é o dever que tem o Estado de indenizar os presidiários submetidos a condições degradantes.
Conclusões
Diante de todo o exposto, extrai-se uma importante conclusão: é dever do Estado brasileiro ofertar condições dignas aos detentos por ele custodiados, a fim de proporcionar-lhes meios necessários de bem cumprirem suas penas, sem que para isso tenham que conviver com situações degradantes e vexaminosas. Tendo, o Estado, caso descumpra esse dever, a evidente obrigação de ressarcir esses mesmos detentos por todos os danos eventualmente sofridos. Com isso, busca-se respeitar o disposto na Constituição Federal, atentando para este postulado mor, que é o princípio da dignidade da pessoa humana. Afinal, uma vez sendo violado pelo próprio Poder Público um direito tão fundamental como esse, há de se pôr em questão se de fato a República Federativa do Brasil se trata de um verdadeiro Estado Democrático de Direito. Isto posto, observa-se claramente que o Estado tem o dever de ressarcir os presidiários submetidos a condições degradantes, para, ao menos, tentar compensar ~ 144 ~
todos os transtornos sofridos por esses encarcerados dentro de um sistema que falha em cumprir o seu papel, que é o de oferecer amparo e habilitação necessária para o retorno ao convívio social. O ressarcimento dos danos causados é um suporte para que o encarcerado não fique desamparado por parte do Estado, já que este deveria cuidar dignamente daquele.
Referências
ALEXANDRE, Ricardo; DEUS, João de. Direito administrativo. 3. ed. São Paulo: Método, 2017. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530975814/>. Acesso em: 09 jun. 2018. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, 5 out. 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ConstituicaoCompilado.htm>. Acessado em: 08 jun. 2018. . Lei nº 7.210, de 11 de julho de 1984. Institui a Lei de Execução Penal. Brasília, DF: Diário Oficial da União, 13 jul. 1984. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/l7210.htm>. Acesso em: 09 jun. 2018. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 30. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788530976163/>. Acesso em: 09 jun. 2018. GASPARINI, Diógenes. Direito administrativo. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. Disponível em: <https://integrada.minhabiblioteca.com.br/#/books/9788502149243/>. Acesso em: 09 jun. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraodinário nº 580252/MS. Brasília, DF, 16 de fevereiro de 2017. Brasília, p. 325-332. Disponível em: <https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/attachments/STF_RGRE_580252_8bb6a.pdf?Signature=Eu68ksnzQkqmloop0Z3wRLe2Z20=&Expires=152 8598825&AWSAccessKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-contenttype=application/pdf&x-amz-meta-md5-hash=6337ecedf3149c6ee1531c9f28615edd>. Acesso em: 09 jun. 2018. . Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental em Recurso Extraordinário Com Agravo nº 662563/GO. Brasília, DF, 20 de 2012. Brasília, . Disponível em: <https://jurisprudencia.s3.amazonaws.com/STF/IT/ARE_662563_GO_1333403859561. pdf?Signature=xKNf3kQHxcS9kOSxkuNaj9c4za0=&Expires=1528599211&AWSAcc essKeyId=AKIAIPM2XEMZACAXCMBA&response-content- type=application/pdf&x-amz-meta-md5hash=492d4be34a719829119161a09a202cbd>. Acesso em: 09 jun. 2018.
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4 ANÁLISE DOS PRINCÍPIOS DO DIREITO PENAL E PROCESSUAL PENAL SOB UMA PESPECTIVA CONSTITUCIONAL DOS DIREITOS HUMANOS
ORLANDO SOARES DA SILVEIRA FILHO28
RESUMO: Os princípios são meios de uso efetivo no âmbito jurídico, que ao longo dos anos vêm se ampliando às novas perspectivas e contextos que a vida em sociedade lhes atribui diariamente. Objetiva-se, dessa forma, buscar a compreensão e a forma como os princípios são aplicados ou, em alguns casos, minimizados em sua aplicação em decorrência de não haver direito pleno em nosso ordenamento jurídico. O Estado Democrático de Direito por abranger as discussões que cercam as relações entre princípios e uso da força estatal demonstra uma forma de tentar relativizar possíveis efeitos negativos que possam surgir em relação a dignidade da pessoa humana. Além disso, uma análise com base no que os doutrinadores especializados (Direito Penal e Direito Processual Penal) expõem sobre essa temática. Palavras-chave: Princípios. Direitos Humanos. Dignidade da Pessoa Humana.
Introdução
A vida em sociedade é regida por regras de convivência que extrapolam os limites do que se pode escrever em um determinado documento. Os Códigos, dos quais, estamos adaptados a consultar a cada possível dúvida que possa surgir é um meio que já é característico da nossa atual cultura de convívio social. Além disso, tem-se, também, os princípios que norteiam a atividade jurisdicional para proteção/execução de uma efetividade maior, no que se trata de direitos humanos. Fala-se em Direitos Humanos em sentido amplo, em decorrência de ser uma matéria que abrange aspectos constitucionais, administrativos, processuais (civil, penal, trabalhista, etc.), quanto nas relações econômicas. 28
Graduando do 7º período do curso de Direito pela Universidade Federal de Campina Grande – E-mail: orlando1996filho@hotmail.com ~ 146 ~
Limitando-se, em especial, aos aspectos que se referem ao Direito Penal e ao Direito Processual Penal, o estudo e análise dos princípios que embasam esses dois grandes campos que se interligam na proteção dos bens jurídicos mais importantes da pessoa: a liberdade, a vida, e dignidade da pessoa humana. Com isso, objetiva-se compreender a forma como os referidos princípios são aplicados, buscando uma análise com base no que os doutrinadores especializados nesses campos (Direito Penal e Direito Processual Penal) expõem sobre essa temática. Ainda, buscar uma relação comparativa entre o que se espera que ocorra e o que realmente acontece. A importância dessa discussão advém das divergências que ocorrem na sociedade, seja entre pessoas que detêm um determinado conhecimento jurídico, ou mesmo entre aquelas pessoas que apesar de não serem estudiosas do Direito, tem um conhecimento de mundo que apesar de parecer coerente com a realidade e apelo social, em alguns casos, conflitam com institutos de proteção ao interesse/proteção à dignidade humana, no modo mais amplo da palavra.
Desenvolvimento
Ao estudar determinada matéria, é necessário que se delimite o que tal conteúdo trata e abrange. Com isso, o estudo dos princípios que norteiam os direitos humanos em matéria penal e processual penal se mostram cada vez mais em evidência, pois leva-se em consideração o que eles tratam e defendem. Princípio é um meio utilizado em Direito para se ter uma maior amplitude de aplicabilidade de normas ao caso concreto. Por mais detalhada e completa que possa parecer a norma, o legislador não é capaz de prevê todas as situações que se encadearão no decorrer dos anos em confronto com tal norma. Dessa forma, os princípios estão dispostos como uma forma de ampliar o seu alcance de modo mais pleno e coerente para a resolução de uma dada demanda. Com isso, precisas são as palavras de Guilherme Nucci, que em análise aos princípios que regem o Direito Processual Penal assevera que:
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[...] em Direito, princípio jurídico quer dizer um postulado que se irradia por todo o sistema de normas, fornecendo um padrão de interpretação, integração, conhecimento e aplicação do direito positivo, estabelecendo uma meta maior a seguir. Cada ramo do Direito possui princípios próprios, que informam todo o sistema, podendo estar expressamente previstos no ordenamento jurídico ou ser implícitos, isto é, resultar da conjugação de vários dispositivos legais, de acordo com a cultura jurídica formada com o passar dos anos de estudo de determinada matéria. O processo penal não foge à regra, erguendo-se em torno de princípios, que por vezes, suplantam a própria literalidade da lei. Na Constituição Federal, encontramos a maioria dos princípios que governam o processo penal brasileiro, alguns explícitos, outros implícitos (NUCCI, 2012, p.88).
Segundo Nucci, evidencia-se que os princípios são amplos e importantes para o Direito, o referido autor trata de temáticas de cunho processual penal, onde tem-se um maior contato com bens jurídicos indisponíveis. Estes bens indisponíveis são abarcados, também, por um princípio maior: dignidade da pessoa humana. Discute-se muito sobre a amplitude e até onde pode-se chegar a dignidade humana. Trata-se de um supra princípio que dele derivam um complexo campo de outros preceitos, dessa forma, cabe ao aplicador, no caso concreto, a análise do que e como aplicar tal mandamento. Temos no nosso ordenamento jurídico um vasto campo de normas, decretos, jurisprudências que podem dar suporte a um referido caso, mas em casos especiais não há uma solução prática a ser tomada. Com isso, surgem os conflitos acerca do que se deve fazer quando se está diante de situações desse porte. Acerca desse enfoque, Flávia Piovessan diz, que: Por ora, enfatiza-se que a interpretação constitucional ganha esses específicos contornos justamente por sua especificidade, historicamente e mesmo quando cotejada com o direito infraconstitucional. Com efeito – e não se perca de vista a temática diretamente pertinente aos princípios fundamentais, genéricos que são – constrói-se o moderno Direito Constitucional na ideia de normas propositadamente abertas, sem a pretensão de abarcar tipicamente todas as hipóteses previsíveis [...] (PIOVESSAN, 2014, p. 527).
Em acordo com que Flávia Piovessan expressou, e com o disposto na Constituição Federal de 1988 elenca-se em seu rol de fundamentos a Dignidade da Pessoa Humana. Trata-se de um compromisso que o Estado brasileiro se propõe a cumprir, visto que em períodos anteriores da história brasileira os referidos direitos estavam em crescente crise, assim como deduz Vicente Paulo e Marcelo Alexandrino: ~ 148 ~
A dignidade da pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil consagra, desde logo, nosso Estado como uma organização centrada no ser humano, e não em qualquer outro referencial. A razão de ser do Estado brasileiro não se funda na propriedade, em classes, em corporações, em organizações religiosas, tampouco no próprio Estado (como ocorre nos regimes totalitários), mas sim na pessoa humana. São vários os valores constitucionais que decorrem diretamente da ideia de dignidade humana, tais como, dentre outros, o direito à vida, à intimidade, à honra e à imagem (PAULO & ALEXANDRINO, 2017, p. 90).
De forma gradual, a Constituição Federal de 1988 ao longo dos artigos busca evidenciar o compromisso em defender os direitos humanos, como se expressa no artigo 5°, §3°, onde encontra-se que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. O referido parágrafo consagra ainda mais a atenção expressa no texto constitucional abrangendo os direitos humanos. Como extensão a esse artigo, podese expor a Convenção Americana Sobre Direitos Humanos, que observou os referidos trâmites para compor nosso leque de disposições acerca desses direitos.
I. Desdobramentos da dignidade humana
Como o direito não deve ser avaliado de modo isolado, o aparato que a constituição oferece é essencial para que os demais ramos possam tratar da matéria de modo mais efetivo, em obediência ao texto constitucional, e ao estado democrático direito. O ordenamento jurídico é um complexo de normas que busca abranger os mais diversos casos, possibilitando assim uma maior coerência entre os fatos e normas. A constituição é a base fundamental de tudo que é tratado nos mais diversos ramos, e com ela, acompanha-se, também, a determinação dos valores da dignidade humana, ultrapassando a letra fixa da lei. A lei é o meio de possibilitar a comprovação do que se defende e se aplica. Pauta-se na garantia de um momento solene que a constituição prevê que seja realizado para assegurar segurança aos cidadãos de modo efetivo. Dessa forma, ao ~ 149 ~
ser confrontada, devido a sua estruturação formulada a determinada matéria, em certos casos o aplicador busca uma aplicação coerente, devendo-se equilibrar os direitos em pauta. Diante disso, a legalidade que é característica usual do dia a dia forense traz garantias essenciais a sua aplicação, como a segurança jurídica. Ocorre que em determinadas circunstâncias deve-se observar não só os preceitos instituídos na letra fria da lei, mas nos mandamentos que os princípios envolvem nas mais diversas áreas, em especial nas de cunho penal e processual penal. O Direito Penal, por si só, remete a ideia do poder estatal de punir um indivíduo que agiu contrário ao correto no convívio social. Dessa forma, preenchidos os aspectos de materialidade e autoria do suposto delito, dependendo da situação, cabe ao ofendido ou ao Ministério Público levar ao conhecimento do estado-juiz o ato causado, e buscando a punição cabível ao caso. Preenchidos os mandamentos legais, cabe ao Estado exercer seu poder de punir, e, com isso, deve preservar os bens jurídicos da pessoa que infringiu a norma. Merece atenção estabelecer que o bem jurídico ofendido da vítima, em determinados casos, não retorna ao seu estado natural, por isso que muitas vezes existe o sentimento de indignação social acerca dos Direitos Humanos buscarem a preservação das prerrogativas à pessoa do acusado, deixando uma ideia distorcida, levando a entender que busca cuidar do autor de um crime, e não da vítima. É um ponto de vista incorporado pela sociedade e constantemente difundido nos meios de comunicação, e através de pessoas que têm uma visibilidade maior, capazes de difundirem opiniões que acabam sendo absorvidas pôr aquelas pessoas que vêm esse assunto pelo mesmo senso. Não se trata de defender um ou outro, pois não existe uma dignidade mais importante que outra. Os indivíduos devem ser respeitados, até mesmo aqueles que causam
desagrado
social.
O
que
a
dignidade
da
pessoa
humana,
e,
consequentemente, os Direitos Humanos buscam, é o respeito e a preservação do mínimo existencial. Diante disso, a Constituição Federal já expõe em seu art. 5°, XLVII: XLVII- não haverá penas: ~ 150 ~
a) De morte, salvo em caso de guerra declarada, nos termos do art. 84, XIX; b) De caráter perpétuo; c) De trabalhos forçados; d) De banimento; e) Cruéis (BRASIL, 1988). f)
O Estado é o detentor de todos os meios necessários para se obter dados, provas, ou qualquer conteúdo que induza à incriminação do acusado. Com isso, os princípios norteadores do Direito Penal, quanto do Direito Processual Penal, buscam amenizar essa discrepância que há entre o Estado e o indivíduo. Sobre isso, Rogério Greco também afirma que a proibição de tais penas atende a um dos fundamentos de nosso Estado Democrático de Direito, previsto no inciso III do art. 1° da Constituição Federal, que é a dignidade da pessoa humana (GRECO, 2016, p. 133). A constitucionalização de tais direitos vem para afirmar uma mudança de paradigma social. A liberdade é um dos bens jurídicos mais essenciais para vida de qualquer cidadão, e quando se fala em liberdade, não se limita apenas às questões de cárcere, mas também questões comportamentais. Quando o Estado mantém um suspeito sobre prisão cautelar, deve ser aplicada tal medida em casos onde não caiba fiança ou se tal suspeito possa gerar perigo à sociedade. Em casos onde se têm a efetiva prisão de um acusado, esta prisão deve obedecer às questões do mínimo existencial para que haja um equilíbrio mental do agente, visto que, medidas de progressão de regime servem também para restringir um pouco a limitação de tal direito (liberdade). Além disso, as discussões sociais emanam em confronto com disposições tanto nacionais, quanto de nível internacional (Convenção Americana de Direitos Humanos), em decorrência da disseminação de informações discrepantes que acabam dando uma conceituação sobre os direitos humanos e seus desdobramentos. Um problema do qual o Estado e a sociedade estão no mesmo patamar, devido a possibilidade de as pessoas serem informadas de modo incorreto sobre a amplitude de tal prerrogativa, passando a visão de ser os Direitos Humanos um benefício aos infratores. A dignidade da pessoa humana ultrapassa qualquer cidadão, visto que o seu alvo não está nas pessoas que serão punidas efetivamente, mas sim em toda e
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qualquer pessoa. O fato é que tal desdobramento se apresenta com mais vigor quando ocorre uma latente usurpação de tais prerrogativas, que são evidenciadas de modo mais prático naquelas pessoas que estão sob custódia do aparato estatal. Diante disso, tanto o processo penal, quanto as normas de direito material estão amparadas por um texto constitucional que se alinha a tal proteção. Cabe, com isso, a efetivação de tais princípios aos mais variados casos e agentes, não só quando se tratar de cuidar de quem está em poder do Estado, mas do cidadão que diariamente vive sob o prisma do medo, tendo questões mínimas de dignidade humana infringidas, pois limitação ao direito de ir e vir é muito mais do que manter alguém em cárcere. Cabe ao Estado atuar de modo mais preventivo, que como decorrência disso práticas repressivas serão minimizadas. Os princípios são mecanismos essenciais, em decorrência da diversificação em sua aplicação, e capacidade de serem postos em situações específicas, tendo uma essência atemporal, que não acaba sendo ultrapassada com facilidade.
Metodologia
A análise da aplicação dos princípios acerca dos direitos humanos buscou a compreensão e a dimensão que tais princípios denotam atualmente. Através de pesquisas bibliográficas, em doutrinas específicas de Direito Penal e Direito Processual Penal sobre a autoria de Rogério Greco (Direito Penal) e Guilherme de Souza Nucci (Direito Processual Penal), investigando os aspectos constitucionais e os meios que o Estado utiliza para punir agentes infratores, e o que os princípios delimitam, mesmo não estando positivados de modo usual/padrão nos códigos. A previsão constitucional nos aspectos da dignidade da pessoa humana e o diálogo feito entre os ramos do direito que lidam com os bens jurídicos mais importantes, além disso, questões debatidas atualmente sobre tais direitos. Uma pesquisa voltada para a conciliação entre os assuntos que geram uma reflexão social em questões legais e supralegais.
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Conclusões
Diante disso, é necessária a preservação da dignidade das pessoas, não só no aspecto penal ou processual penal, mas também entre todas as relações sociais. O convívio humano é regido por conflitos, e a essência humana é propensa a conflitar, esses direitos estão postos à disposição dos indivíduos justamente para evitar as usurpações que existiram e ainda persistem. O Estado é forte e detêm os mais diversos meios para punir os agentes que acabam sendo atingidos por seu controle. A nossa Constituição Federal de 1988 já preserva a dignidade da pessoa, e que os meios usados devem ser compatíveis com o ato de punir, mas sem desprezar aspectos mínimos de existência. A formação do cidadão influencia nas acepções que ele levará ao longo da vida. Com isso, cabe ao Estado propor soluções desde a educação de base, indo até os mais altos graus de ensino, revelando que a formação que as pessoas absorvem do lugar onde vivem gera efeitos no futuro. O campo das discussões acerca dessa temática, hoje em dia, é tenso, com defensores e acusadores, nos mais diversos níveis de instrução. Propostas de governos que visam uma maior punição aos agentes infratores em desacordo com o que defende o texto maior nacional, chegando até a uma forma de vingança privada, da qual é aplaudida e fortemente disseminada nos mais diversos meios. Evidencia-se, que, atualmente é necessária uma revisão no que tange a forma como alguns institutos são aplicados, pois para as vítimas de determinados crimes ocorre a sensação de impunidade e extrema preocupação com o que será feito ao acusado. Punir não é diretamente proporcional a retribuir o mal cometido, mas através de uma força maior proveniente do Estado, fazer com que o indivíduo possa ser punido em conformidade com os mandamentos legais. Ocorre que há uma grande falta de estrutura nos meios utilizados para tal punição, deixando os mandamentos legais só no campo da abstração legal. A dignidade da pessoa humana tem nos princípios uma garantia que a letra fria da norma não consegue alcançar, pois amolda-se a situações novas e dinâmicas. A ~ 153 ~
liberdade, a vida, e demais desdobramentos desse princípio maior são amplos e estão em constante transformação, estudos e análises necessitam serem feitos, saber as principais causas e os mecanismos postos à sua efetivação.
Referências BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a colaboração de Luiz Roberto Curia, Livia Céspedes e Fabiana Dias da Rocha. - 53. Ed., atual. E ampl. - São Paulo: Saraiva, 2016. - (Coleção Saraiva de Legislação). GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal / Rogério Greco. – 18. Ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2016. NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de processo penal e execução penal / Guilherme de Souza Nucci. – 9. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2012. PAULO, Vicente & ALEXANDRINO, Marcelo. Direito Constitucional descomplicado / Vicente Paulo, Marcelo Alexandrino. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: Método, 2017. PIOVESAN, Flávia. Temas de direitos humanos / Flávia Piovesan. – 7. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014.
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5 CONTRIBUIÇÕES DA ADI 4.275 PARA A RESSIGNIFICAÇÃO DO CONCEITO DE MULHER NO DIREITO BRASILEIRO E ABRANGÊNCIA DA LEI Nº 13.104/2015
RAFAEL VIEIRA FORMIGA29 JAQUELINE ROSÁRIO SANTANA30
RESUMO: No contexto da ampla discussão dos entendimentos contemporâneos sobre identidade de gênero, situa-se o questionamento sobre quem é “a mulher” para o ordenamento jurídico brasileiro. Nesse sentido, este trabalho tem por objetivo questionar se a ADI 4.275 direciona a reflexão na seara penal para o entendimento pela aplicação da Lei nº 13.104/2015 às mulheres Trans*. Desenvolve-se, dessa maneira, pesquisa bibliográfica e documental, apresentando fundamentação para discussão da temática, e concluindo-se que o entendimento do STF no julgamento da ADI 4.275 orienta no sentido de uma percepção abrangente da Lei de Feminicídio, de modo a incluir a mulher Trans*. Palavras-chave: Lei do Feminicídio. ADI 4275. Mulher Trans*.
Introdução
A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.275, proposta pela Procuradoria da República no ano de 2009, no intuito de reconhecer o direito das pessoas Trans* 31 poderem alterar seus prenomes e sexo no registro civil sem que tenham que se
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Bacharel em Direito pela rafaelformiga.una@gmail.com.
Universidade
Federal
de
Campina
Grande
(UFCG).
E-mail:
30
Advogada, bacharel em Direito pela Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e pós-graduanda em Direito Penal e Processo Penal também pela UFCG. E-mail: jaque.r.santana@gmail.com. 31
A sigla Trans* ou mesmo a letra T*, ambas as formas com asterisco, tiveram sua utilização aprovadas pelo Congresso Internacional sobre Identidade de Gênero e Direitos Humanos (CONGENID) de modo a abarcar toda e qualquer forma de transgeneridade (DIAS, 2014). ~ 155 ~
submeter a uma cirurgia de transgenitalização, foi a julgamento, no Supremo Tribunal Federal, neste ano de 2018, sendo a decisão favorável à propositura da Procuradoria. Longos e calorosos debates foram empreendidos, dentro e fora dos tribunais, acerca dos direitos da pessoa Trans*, bem como sobre a própria concepção de Trans*, até a decisão mencionada. Decisão essa que se embasou na natureza dos direitos compreendidos na questão sub judice, direitos humanos fundamentais que devem ser salvaguardados pela ordem jurídica brasileira em decorrência de compromissos internacionais. Uma visão simplória e abreviada da referida ADI poderia resumi-la a seu efeito direto e objetivo, qual seja, a possibilidade de qualquer pessoa Trans* poder escolher seu nome e sexo para figurar no registro civil. No entanto, o teor e significados desse julgamento possuem convergência com demais questões envolvendo pessoas Trans*, dentre elas, a ressignificação do conceito de mulher na legislação brasileira e em específico na legislação penal, in casu, como abordado neste trabalho, na Lei nº 13.104/2015, também conhecida como Lei do Feminicídio. Dessa maneira, apresentase como problemática deste estudo a seguinte questão: a ADI 4.275 direciona a reflexão na seara penal para o entendimento pela aplicação da Lei nº 13.104/2015 às mulheres Trans*? Em resposta ao questionamento proposto, estrutura-se este texto, atendendo às regras de submissão do evento, em mais duas seções além desta introdução e das referências ao final. Na seção dois a seguir, que compreende o título desenvolvimento, aborda-se a fundamentação teórico-legal e judicial do trabalho, com destaque para os aspectos conceituais basilares sobre: mulher Trans*, direitos humanos e feminicídio, além das considerações específicas sobre a ADI 4.275 e a aplicação da Lei nº 13.104/2015 às mulheres Trans*. A seção três apresenta objetivamente o exigido quanto a métodos de abordagem e de procedimento que propiciaram a realização do trabalho. Já a seção quatro, por sua vez, traz, a título de considerações, a síntese de percepções nos termos de conclusões sobre a problemática pesquisada.
Fundamentação Teórico-Legal e Judicial I. Aspectos conceituais basilares: mulher trans*, direitos humanos e feminicídio ~ 156 ~
Excetuando-se os espaços ocupados por movimentos sociais de minorias e outros em específico, ao se tratar de qualquer tema relacionado aos sujeitos Trans*, uma série de visões estereotipadas e preconceituosas preponderam nas abordagens. No que tange ao campo do Direito não é diferente. De modo notório, a pessoa Trans* é vítima de marginalizações múltiplas, seja por imposição de uma sociedade preconceituosa ou de um corpo legislativo, embasado na heteronormatividade32, que os/as relegam à margem da sociedade. É esse panorama, inclusive, que demanda necessidade de explicitação, em estudos como este, sobre questões basilares, como “quem é a mulher Trans*?”. Primeiramente, insta observar que a sigla Trans* “[...] alberga diferentes identidades: transexual, travesti, transgênero [...]” (DIAS, 2014, p.44). Nesse diapasão, o Congresso Internacional sobre Identidade de Gênero e Direitos Humanos (CONGENID), realizado em Barcelona, no ano de 2010, aprovou a utilização de tão somente a sigla Trans* ou mesmo a letra T*, ambas as formas com asterisco, de modo a abarcar toda e qualquer forma de transgeneridade (DIAS, 2014). Ou seja, considera-se Trans* “[...] qualquer pessoa cuja identidade de gênero n~o coincide de modo exclusivo e permanente com o sexo designado quando do nascimento” (DIAS, 2014, p.44). Nesse sentido, mulheres Trans*, sobre as quais recaem as atenções deste estudo, são aquelas que se identificam com o gênero feminino apesar de terem nascido com o sexo/gênero masculino. Para essas, dentro do contexto de estereótipos e preconceitos explicitado, a legislação penal ganha relevância, evidenciando-se, no presente estudo, aspectos voltados à aplicação da Lei nº 13.104/2015 - Lei do Feminicídio. É o que se observará logo mais. No que diz respeito aos direitos humanos, consubstancia a Declaração Universal dos Direitos Humanos - DUDH (dezembro de 1948), ratificada pelo Brasil, no seu art. 1º que “todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos” (ONU, 1948). Esse é o }mago dos direitos humanos, que se traduzem em 32
“*...+ pode-se compreender o termo heteronormatividade como aquilo que é tomado como parâmetro de normalidade em relação à sexualidade, para designar como norma e como normal a atração e/ou o comportamento sexual entre indivíduos de sexos diferentes.” (PETRY; MEYER, 2011). ~ 157 ~
garantias jurídicas universais, aplicáveis a todo e qualquer ser humano, independente de raça, cor, gênero, orientação sexual ou religião, de modo a salvaguardar direitos básicos e essenciais, como o direito à vida, à integridade física e à dignidade. Importante ainda mencionar a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica), que estabelece o Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Sistema esse do qual faz parte o Brasil, signatário de diversos tratados, convenções e pactos de direitos humanos, como a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) (ALMEIDA, 2015), o que o coloca em posição de compromisso internacional de enfrentamento à violência de gênero. Ademais, independente de firmados no texto da Constituição, quando ganham o status de direitos fundamentais, os tratados, convenções e pactos internacionais de direitos humanos possuem um caráter supralegal. Ou seja, passam a ser exigíveis, sendo considerados “[...] como princípios gerais do direito e, como tal, devem orientar a produç~o legislativa e a interpretaç~o da lei quando de sua aplicaç~o.” (BARSTED, 2001, p.7) “[...] influenciando na formaç~o das novas leis e de uma jurisprudência calcada nos valores dos direitos humanos” (BARSTED, 2001, p.7). Já o Feminicídio, conforme a Lei nº 13.104/2015, é uma qualificadora para o crime de homicídio contra mulher por razões da condição do sexo feminino. Considera-se, por sua vez, que há razões de condição de sexo feminino quando o crime envolve, além da violência doméstica e familiar, “o menosprezo ou discriminação à condição de mulher” (BRASIL, 2015, grifo nosso). Conforme ratificam Bianchini e Gomes (2015), quaisquer embrulhos interpretativos no intuito de desvirtuar a ideia emanada pela express~o “condiç~o de sexo feminino” trazida pela lei, n~o merece prosperar. A expressão se relaciona com razões de gênero e, se pode entender que foi um recurso utilizado pelo legislador para tentar excluir da abrangência da lei as mulheres Trans*, uma vez que “o Projeto que deu origem à Lei 13.104/2015 (PL 8305/2014) sofreu, pouco tempo antes de ser aprovado, uma alteraç~o: o voc|bulo ‘gênero’ foi substituído pela express~o ‘condiç~o de sexo feminino’” (BIANCHINI; GOMES, 2015, p.3).
Ou seja, a qualificadora
“feminicídio” n~o deve se referir a uma quest~o de sexo, mas “a uma questão de
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gênero (atinente à sociologia, padrões sociais do papel que cada sexo desempenha) [...]” (BIANCHINI; GOMES, p.3). Ademais, figura notadamente a supracitada Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (1994) e “[...] acordos internacionais que asseguram de forma direta ou indireta os direitos humanos das mulheres bem como a eliminação de todas as formas de discriminação e violência baseadas no gênero” (PORTO et al, 2015, p. 2), no bojo fundamental da Lei nº 13.104/2015, isto é, embasa-se a referida lei na premissa internacional de que a violência contra mulher constitui violação dos direitos humanos. E é justamente esse o ponto de confluência dos aspectos conceituais esclarecidos, mulher Trans*, direitos humanos e feminicídio, uma vez que se tende, sob o aspecto legislativo e na ordem jurídica interna, a atribuir o termo “mulher” apenas à mulher biológica, ficando a mulher Trans* à margem e sem proteção às suas garantias fundamentais, como o próprio direito humano fundamental à vida.
II. ADI 4.275 e aplicação da Lei Nº 13.104/2015 às mulheres trans*
A ADI 4.275 proposta, em 21 de julho de 2009, originalmente pela então Procuradora Geral da República Deborah Macedo Duprat de Britto Pereira, com fins de que, nos termos da inicial apresentada, fosse proferida decisão de interpretação conforme a CRFB/1988 do art. 58 da Lei 6.015/1973 - Lei dos Registros Públicos, na redação que lhe foi dada pela Lei 9.708/98, para o reconhecimento do direito de os/as Trans*, que assim os desejassem, substituíssem o prenome e o sexo no registro civil, independente de cirurgia de transgenitalização. O pedido fundamentou-se, conforme a página 10 da inicial, no direito fundamental à identidade de gênero, inferido dos princípios da dignidade da pessoa humana (art.1º. inciso III), da igualdade (art.5º, caput), da vedação de discriminações odiosas (art.3º, inciso IV), da liberdade (art. 5º, caput), e da privacidade (art.5º, X), todos previstos na CRFB/1988. Ou seja, direitos que pertencem à grande classificação dos direitos humanos. Conforme a Procuradoria, o direito fundamental à identidade
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de gênero sustenta a exegese de que o art.58 da Lei 6.015/197333 autoriza mudança de sexo e prenome no registro civil, no caso de pessoas Trans*. Nesse diapasão, o STF decidiu, no dia 01 de março de 2018, em sede de julgamento da referida ADI, por maioria, pela procedência da ação para interpretação conforme o texto constitucional e a Convenção Americana dos Direitos Humanos do art.58 da Lei de Registros públicos, afim de “[...] reconhecer aos transgêneros que assim o desejarem, independentemente da cirurgia de transgenitalização, ou da realização de tratamentos hormonais ou patologizantes, o direito à substituição de prenome e sexo diretamente no registro civil” (BRASIL, 2018). O referido julgamento representa um marco para o ordenamento jurídico brasileiro, e teve como embasamento, como visto, direitos humanos sob a perspectiva de gênero. Como afirmou o Ministro Marco Aurélio em seu voto “[...] Descabe potencializar o inaceitável estranhamento relativo a situações divergentes do padrão imposto pela sociedade para marginalizar cidadãos, negando-lhes o exercício de direitos fundamentais” (BRASIL, 2018), bem como se destacou autonomia da vontade e o dever de o Estado Democr|tico de Direito “[...] promover a convivência pacífica com o outro, na seara do pluralismo, sem admitir o crivo da maioria sobre escolhas exclusivamente morais [...]” (BRASIL, 2018). Ora, está posto pelo Supremo Tribunal Federal, ancorando-se nos estudos de gênero, que a mulher Trans* tem o direito de ter no seu registro civil o nome feminino pela qual deseja se chamar, bem como pode alterar o seu sexo no registro para “sexo feminino”, independente de quaisquer alterações físicas. Dessa maneira, a mulher Trans* fora reconhecida na instância jurídica, pela Corte Superior do país, como mulher, reconhecimento esse em consonância com os direitos humanos. Transferindo o teor da decisão emanada pelo STF para a abrangência da Lei nº 13.104/2015, resta claro encaminhamento para a ressignificação do conceito de mulher no Direito Brasileiro de modo não só reconhecer a identidade de gênero, mas possibilitar o seu exercício pleno, incluindo a não sujeição à violência (PORTO et al, 2015). Ou seja, alia-se a voz do julgador aos movimentos sociais, aos estudiosos de
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Art. 58. O prenome será definitivo, admitindo-se, todavia, a sua substituição por apelidos públicos notórios. (Redação dada pela Lei nº 9.708, de 1998). ~ 160 ~
gênero, bem como a diversos criminalistas, como Luís Flávio Gomes (2015), no sentido de contribuir para a percepção abrangente da Lei de Feminicídio, de modo a incluir a mulher Trans*.
Metodologia
Para a realização deste trabalho operou-se com o método de abordagem dedutivo, ou seja, partindo das teorias e leis para os fenômenos particulares e, quanto aos métodos de procedimento, desenvolveu-se pesquisa bibliográfica (literatura sobre o assunto) e documental (fontes primárias) (MARCONI; LAKATOS, 2003).
Conclusões
Conforme a contextualização apresentada, observou-se que as pessoas Trans* sofrem, no geral, com preconceitos e estereótipos que às relegam, tanto a uma posição de marginalização como de invisibilidade frente à ignorância preponderante quando presente nas diferentes abordagens, o que não é diferente na legislação brasileira, pautada nos princípios da heterenormatividade e binarismo, ou seja, na existência tão somente da mulher e homem biológicos. Esclarecidas as mulheres Trans* como aquelas que se identificam com o gênero feminino apesar de terem nascido com o sexo/gênero masculino, seguiu-se com a elucidação do âmago dos direitos humanos, qual seja o tratamento igualitário, independente de raça, cor, gênero, orientação sexual e religiosa, de todo e qualquer ser humano de modo a salvaguardar seus direitos básicos à vida, dignidade e liberdade, dentre outros. Observou-se, nesse ínterim, os direitos humanos sob a perspectiva dos direitos de gênero, demonstrando ser o Brasil um país internacionalmente compromissado no combate à violência de gênero como denotam os tratados, pactos e convenções internacionais assinados pelo país.
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Passando para a compreensão da qualificadora do feminícídio, optou-se por análisá-la sob a ótica de um criminalista, Luís Flávio Gomes, em detrimento de um teórico de gênero, de modo a tentar afastar-se o mais possível de posicionamentos tendentes ao meramente ideológico, conferindo maior cientificidade a este estudo. Nesse sentido, observou-se que, compreendida como qualificadora do crime de homicídio cometido contra mulher por condições do sexo feminino, conforme a literalidade da lei que a prevê, a mesma pauta-se justamente na perspectiva de enfrentamento à violência de gênero, devendo açambarcar mulheres em seu sentido lato. Sequencialmente, apreciando-se a ADI 4.275, na qual fora reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal o direito de pessoas Trans* alterarem o prenome e o sexo no registro civil sem necessidade cirurgia de transgenitalização, nota-se que o referido pedido embasou-se em direitos humanos fundamentais das pessoas Trans*, aqueles que se encontram firmados na Constituição da República Federativa do Brasil, e fora acatado sob fundamentos emanados pelos estudiosos de gênero, como pode ser verificado nos votos dos Ministros. Em outras palavras, reconheceu o STF a mulher Trans* como a mulher que há muito é enunciada e defendida em meio aos estudos de gênero, aliando-se a voz do julgador aos movimentos sociais e aos estudiosos. A partir desse julgado, pois, podese depreender que o STF com a sua significante representatividade frente ao ordenamento jurídico brasileiro, apresentou contribuições objetivas para a ressignificação do conceito de mulher na legislação pátria, incluindo a mulher Trans*. Independente de questões qualitativas, quais sejam aquelas que dizem respeito às discussões sobre sexo, gênero e orientação sexual, e quantitativas, aquelas que dizem respeito aos índices de violência contra a mulher Trans*, sobre as quais não se debruçou no presente trabalho por não ser o seu foco, o entendimento do STF no julgamento da ADI 4.275 orienta no sentido de uma percepção abrangente da Lei de Feminicídio, de modo a incluir a mulher Trans*, também sujeita dos direitos humanos.
Referências
ALMEIDA, Guilherme Assis de. Direitos Humanos e Não-violência. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. ~ 162 ~
BARSTED, Leila Linhares. Os direitos humanos na perspectiva de gênero. Colóquio de Direitos Humanos, I. São Paulo, Brasil, 2001. Disponível em: <http://dhnet.org.br/direitos/textos/a_pdf/barsted_dh_perspectiva_genero.pdf>. Acesso em: 29 maio 2018. BIANCHINI, Alice; GOMES, Luís Flávio. Feminicídio: entenda as questões controvertidas da Lei 13.104/2015. Disponível em: <http://professorlfg.jusbrasil.com.br/artigos/173139525/feminicidioentenda-as-questoes-controvertidas-da-lei-13104-2015?ref=news_feed>. Acesso em: 29 maio 2018. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>. Acesso em: 02 jun.2018. BRASIL. Lei nº 13.104, de 9 de março de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/L13104.htm>. Acesso em: 02 jun. 2018. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/estfvisualizadorpub/jsp/consultarprocessoeletronico/ConsultarProcessoEletronic o.jsf?seqobjetoincidente=2691371>. Acesso em: 29 maio 2018. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e os Direitos LGBTI. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. MARCONI, Marina de A.; LAKATOS, Eva M. Fundamentos da metodologia científica. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2003. ONU. Organização das Nações Unidas. Assembleia Geral das Nações Unidas. Declaração Universal dos Direitos Humanos. 1948. Disponível em: <http://www.ohchr.org/EN/UDHR/Documents/UDHR_Translations/por.pdf>. Acesso em: 01 jun. 2018. PETRY, Analídia Rodolpho; MEYER, Dagmar Elisabeth Estermann. Transexualidade e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa. Textos e Contextos, Porto Alegre, v.10, n.1, 2011. Disponível em: <http://www.redalyc.org/html/3215/321527168015/>. Acesso em: 04 jun. 2018. PORTO, André et al. Identidade de gênero plena: uma proposta de ressignificação do conceito de mulher para o direito. Derecho y Cambio Social, Lima, v. XII, n. 41, p. 1–25, 2015. Disponível em: <http://www.derechoycambiosocial.com/revista041/IDENTIDADE_DE_GENERO_PLENA.pdf>. Acesso em: 6 maio 2018.
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6 A IMPORTÂNCIA DA GARANTIA DOS DIREITOS HUMANOS AO POLICIAL MILITAR EM SERVIÇO EM FACE DA INEFICIÊNCIA DO ESTADO NO CUMPRIMENTO DA TUTELA DO DIREITO PENAL BRASILEIRO
MIGUEL ERNESTO SANTOS DE QUEIROZ¹ CAMILA ALMEIDA RODRIGUES DOS SANTOS²
RESUMO: A despeito da importância do papel exercido pelo policial militar e de um cenário comumente hostil ao exercício pleno do ofício, percebe-se a vulnerabilidade da profissão, que pode ser atestada através das inúmeras reivindicações dos militares. A observância do tema faz-se necessária, pois tem em vista que é de primordial relevância que sejam resguardados os direitos humanos àqueles que garantem e asseguram que os mesmos direitos sejam aplicados integralmente à sociedade. Dessa forma, o presente estudo propôs-se a analisar as principais nuances que delineiam o mencionado tema, o que fora executado através de pesquisa bibliográfica e documental utilizando o método dedutivo, o que propiciou atestar que, apesar da universalidade do Estado de Direitos, as garantias findam como seletivas quando não abarcam determinados segmentos sociais, desencadeando uma situação de desumanização do policial militar. Palavras-chave: Policial Militar. Vulnerabilidade. Omissão Estatal. Direitos Humanos. Bem-estar Social.
Introdução
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É inquestionável a premissa de que o respeito aos direitos humanos é requisito indispensável para a caracterização de um Estado como democrático. Alguns marcos históricos auxiliaram na construção desse princípio que norteia o ordenamento jurídico de todo Estado Democrático de Direito, inclusive o Brasil. O iluminismo é um deles, pois, concretiza a luta por igualdade. Posteriormente, a Revolução Francesa, sendo um movimento político-social e questionador do poder absolutista, serviu de berço para a proclamação da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789, documento indispensável para a evolução concreta dos direitos humanos. Por fim, o término da Segunda Guerra Mundial, em 1945, trouxe a carta da ONU e a Declaração Universaldos Direitos Humanos. O embrião da Polícia Militar brasileira adveio das Forças Policiais, ainda no Brasil Império. Em 1830, diante da instabilidade política, o Ministro da Justiça, Antônio Diogo Feijó sugeriu que fosse criado um “Corpo de Guardas Municipais Permanentes”. Contudo, somente em 1946, o termo Polícia Militar foi utilizado constitucionalmente. A Constituição Federal Brasileira em vigor, no artigo 144, atribui às polícias militares o policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, ou seja, é papel da polícia a fiscalização de atividades ilícitas para a prevenção de crimes objetivando que a sociedade tenha maior sensação de segurança. Muito embora os direitos humanos e a polícia militar tenham por objetivo o bem- estar social, o Corpo Militar não tem sido respeitado como instrumento de promoção à dignidade humana. A universalidade das garantias fundamentais não tem, muitas vezes, abarcado da forma devida esses profissionais. Diante dessa perspectiva, é salutar a necessidade de uma explanação mais satisfatória acerca da temática. O presente trabalho tem por objetivo analisar a atual conjuntura na qual está inserida o policial militar e quais direitos têm sido negligenciados em relação ao exercício de sua atividade de maneira satisfatória. Assim, tem-se por finalidade, uma maior conscientização e sensibilização da população, a partir da perspectiva da legislação e mostra de estudos concretos que deixam clara a lamentável discrepância das condições encontradas pelo policial
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militar, enquanto a maioria distorce a visão do profissional legitimado para trazer bem-estar e segurança aos bens jurídicos mais valiosos da população.
Desenvolvimento I. Direitos humanos à luz do código penal militar
A formação da Justiça Militar no Brasil, devido à colonização, possui estreitos laços com Portugal e utilizou-se do modelo de Justiça Castrense. Pouco depois da vinda da família real, foi criado o Conselho Supremo Militar, que exercia funções administrativas e judiciárias. A primeira tentativa de modificação veio apenas após a Proclamação da República e deu origem ao Código Penal da Armada, que regia o comportamento dos agentes, principalmente no tocante à insubordinação aos superiores. Somente em 1965, através do Ato Institucional n.2, a composição do agora Superior Tribunal Militar passou a ser regrada constitucionalmente, a posteriori, durante o mandato de Arthur Costa e Silva, foi publicado o, até então vigente, Código Penal Militar. É cabível analisar duas nuances a partir do histórico de criação do Código. A primeira trata sobre a desatualização do regimento, tendo em vista que o período de sua elaboração foi o que mais banalizou os direitos humanos. Fato este agravado pela sua criação ser anterior à Convenção Interamericana dos Direitos Humanos. A segunda ocupa-se da pouca modificação presente no Código, o que impossibilitou, em determinados aspectos, acompanhar a evolução da sociedade e também das corporações militares, tendo em vista que até o objetivo primário da Polícia Militar foi modificado e constitucionalizado em 1988. Hodiernamente, essas implicações têm algumas consequências e entre elas pode- se destacar a vulnerabilidade tanto da sociedade quanto do profissional militar, a obsolência do treinamento militar e as precárias condições de trabalho e a falta de estudo nas universidades sobre o Direito Penal Militar. Esse desinteresse acadêmico conflui para a estagnação da tão necessária evolução do ramo, o que demonstra que não só o Estado está sendo conivente com a atual situação militar, mas também os instrumentadores do direito. ~ 166 ~
II. Omissão do estado ante às condições de trabalho do policial militar
Na relação de satisfação no trabalho e excelência na execução existe uma abordagem que trata especificamente dos atributos do próprio trabalho. Tendo em vista que a profissão de policial militar pressupõe, minimamente, risco à vida, ela carrega alto nível de estresse. Para atestar esse quadro, a Revista Época entrevistou militares e levantou estatísticas das condições dos policiais. Dos 21 mil entrevistados, cerca de 81% acreditam viver “em risco constante” e 36% acreditam que a população sente raiva deles. Paralelamente, a crescente onda de assassinato de policiais, exclusivamente por cumprirem o ofício, indubitavelmente potencializa essa sobrecarga. Os números têm sido tão alarmantes que o curso de formação de praças da Polícia Militar do Rio de Janeiro dá aos alunos orientações sobre como ocultar a profissão, e com isso, interiorizam que a população é hostil a eles. Aliado a esse quadro, a Revista Exame publicou sobre o curso de formação dos agentes de segurança, dando conhecimento sobre abusos físicos e psicológicos serem rotineiros e, na maioria dos casos, empregando a “pedagogia do medo”. A partir disso, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, da Fundação Getúlio Vargas, fez um levantamento com 18 mil policiais militares e resultou que 60% já sofreram algum tipo de violência. Em consonância com esse contexto, pode-se observar, comparando o Código Penal Militar e o Código Penal, que os militares são o único grupo que não tem direito a audiência de custódia, que é um direito previsto pelo art. 7º da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo. Diante dessa perspectiva, a mídia, por ser a controladora do fluxo de informações e detentora de potenciais veículos de divulgação, tece o papel de influenciadora da sociedade. Cabe-nos, nesse contexto, concordar com o que versa o escritor e poeta estadunidense Allen Ginsberg: “quem controla a mídia, as imagens, controla a cultura. ” A partir dessa premissa, pode-se notar a propagação de algumas notícias que marginalizam e deturpam a imagem dos agentes de segurança diante da sociedade. Ante informações desse cunho, é gerada uma onda convicta de generalização que beira a deslegitimação da Policia Militar que acaba sendo vista por um prisma de parcialidade e afasta qualquer sensibilização social diante da ~ 167 ~
problemática encontrada pelo grupo. Em suma, a mídia seleciona e salienta, predominantemente, aquilo que é negativo e o comportamento de um agente é generalizado a todo corpo militar. Portanto, fica claro que os agentes de segurança pública estão desassistidos no tocante às garantias fundamentais e a universalidade, que é uma das principais características dos direitos humanos, não está abarcando esse importante agrupamento social. É de salutar valor a observância do efeito que boas condições de trabalho, curso de formação humanitário e a garantia de direitos básicos ao policial traria para a sociedade. A pesquisadora Camila Nunes Dias, da Universidade Federal do ABC e associada ao Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, afirma que esse redirecionamento da violência atende sobretudo as mais vulneráveis camadas socioeconômicas e os egressos do sistema prisional. Portanto, as mudanças a partir da formação digna até a proteção eficaz do Estado ao agente no cotidiano, refletiria na sociedade tanto na excelência e prontidão dos serviços militares quanto com a forma de lidar com a população, aumentando assim o estado de bem-estar social.
III. Universalização dos direitos humanos para manutenção do bem-estar social
O policial, instrumento de poder do Estado, também deve ser protegido pelos direitos humanos, visto que o direito penal é quem define a área de atuação desse agente público. Sendo o direito penal quem dita o que é lícito, permitido e obrigado, deve-se, o agente de segurança, quando agir dentro dessa conformidade, ter seu direito assegurado pelo Estado. O Código Penal define que não há crime quando o agente pratica o fato em estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito (art.23), portanto cabe-se observar que nem toda violação da esfera privada dos cidadãos pode ser criminalizada, já que o código penal afasta a ilicitude nos casos acima citados. Cabe ao policial, utilizando- se de meios necessários e moderados, tentar inibir qualquer tentativa de agressão a bens jurídicos. Se houver excesso, o agente poderá responder civil, penal e administrativamente; se não houver, não haverá ~ 168 ~
crime e não há o que se falar em responsabilização e, portanto, ele deverá ser protegido pelo Estado. Sendo o policial militar um dos contatos mais diretos do Estado com a população, ele deve garantir que os direitos propostos pelo atual ordenamento jurídico tutelem os civis da forma mais ampla possível. Nesse viés, é válida a observância do critério primeiro: o agente de segurança pública deve ter seus direitos resguardados anteriormente para que possa, de forma mais abrangente, assegurar as garantias constitucionais à população. O caminho mais prático para assegurar o bem-estar social é proporcionar aos que estão na linha de frente dessa luta, condições plenas de trabalho para melhor cumprimento
do
dever
legal.
Não
apenas
melhor
remuneração,
mas
acompanhamento adequado, tratamento humanitário e proteção à vida. A partir dessa perspectiva, sendo resguardado os direitos fundamentais desses agentes estatais de contato direto com a população, será resguardada também, à sociedade em geral, sua dignidade humana. Dessa forma, o ciclo de proteção desses direitos acontecerá de maneira mais eficiente. O cidadão terá sua integridade garantida pelo agente de segurança, que por sua vez, estará acobertado pelo poder público para pleno cumprimento de suas funções. Assim, o Estado busca a universalização dos Direitos Humanos e permeia de forma mais eficaz a concretização, a partir a disseminação prática, das garantias fundamentais inerentes ao Estado Democrático de Direito.
Metodologia
Os métodos utilizados foram: explicativo, dedutivo e comparativo, com predominância do dedutivo tendo por objetivo a melhor e mais ampla análise da temática, embasados na perspectiva acerca da real condição do policial militar. A metodologia empregada no estudo foi a qualitativa, uma vez que o aprofundamento do assunto é obtido através da leitura de artigos, livros e trabalhos acadêmicos, além de entrevistas e dados estatísticos para que haja uma abordagem mais precisa.
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A fundamentação foi obtida através de artigos relacionados ao tema proposto, pois a técnica de pesquisa é a documentação indireta, baseada em conteúdos preexistentes, fazendo a devida observância de referência legais.
Conclusões
Diante do exposto, fica evidente a vulnerabilidade do policial militar, que se encontra numa sociedade muitas vezes hostil a eles, não os enxergando com olhos humanitários. Ficou claro, no decorrer da observação, que incluí-los na tutela das garantias fundamentais e assegurar direitos básicos, desde o curso de formação até o cotidiano exercício da profissão é a forma mais eficaz de garantir maior disseminação dos direitos humanos da sociedade como um todo. Fez-se notório que, além da visão deturpada de parte da sociedade, o agente de segurança esbarra na omissão estatal, que se vê impossibilitado do exercício do pleno oficio mediante um Código Penal Militar desumano e desatualizado que não tutela de forma adequada e o deixa com a sensação de abandono. Nesse viés, servindo ao Estado e à população e sem o apoio de ambos, o bem jurídico de maior valor, a vida, fica negligenciado em prol dos mais diversos bens alheios. O Estado, indo de encontro a garantias constitucionais, negligencia a atual situação do militar. A população, por vezes induzida pela mídia, repudia a profissão. Ambos confluem para uma pormenorização desse agente de segurança e, consequentemente, uma universalidade seletiva de garantia dos direitos humanos. Por fim, a pesquisa propõe que para que exista a sensação de bem-estar social, o Estado deve maximizar seus esforços objetivando resguardar os bens inerentes à dignidade humana de seus agentes para que esses sejam defensores dessas garantias. O policial militar deve receber e ser propagador de tratamento humanitário para que esse sentimento circunde dentre as mais diversas classes sociais.
Referências
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7 DIREITOS HUMANOS SÃO “DIREITOS DOS MANOS”? ANÁLISE FACE À REFERÊNCIA AOS DIREITOS HUMANOS NO ACERVO MONOGRÁFICO DO CCJS COMO ASPECTO DE INCLUSÃO PENAL
JOSÉ ALYSON DA SILVA34 PAULO HENRIQUES DA FONSECA35
RESUMO: Os direitos humanos no Brasil sofrem o estigma reiterado de ser “direito de bandidos” ou “direito dos manos”. Numa sociedade marcada pela profunda desigualdade e exclusão social, direitos humanos parecem um luxo contra o qual a população é levada a se opor. O objetivo do trabalho foi realizar uma análise acerca da referência a direitos humanos no acervo monográfico do CCJS/UFCG, se estes são levantados como direitos sociais fundamentais ou garantias penais pessoais. O método de pesquisa utilizado foi qualitativo-quantitativo, através de fontes bibliográficas e levantamento de dados. Os resultados obtidos comprovam a 34
Acadêmico de Direito pelo Centro de Ciências Jurídicas e Sociais, da Universidade Federal de Campina Grande (2018). 35 Doutor em Direito pelo PPGD/FDR - Faculdade de Direito de Recife - da UFPE, Universidade Federal de Pernambuco (2016), Mestre em Ciências Jurídicas pela UFPB, Universidade Federal da Paraíba, área de concentração em Direitos Humanos, aprovado "com distinção" (2007). Foi bolsista do CNPq e do Produtorial da CAPES. Graduação em Letras pela UERN, Universidade Estadual do Rio Grande do Norte (1991), em Direito pela UFCG, Universidade Federal de Campina Grande (2003) e em Filosofia pela FAFIC, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Cajazeiras (2005). ~ 171 ~
tendência do aparecimento de direitos humanos na área de penal e de constitucional. Dessa forma, chegou-se à conclusão de que os direitos humanos são, sob forte influência midi|tica, um ramo que sofre muito com a estigmatizaç~o de “direito dos manos” e direciona a vis~o para o campo da violaç~o, deixando de lado a perspectiva da exclusão social. Palavras-chave: Direitos Humanos; Exclusão-violação; Inclusão penal; Monografias.
Introdução
O estigma dos direitos humanos como "direito de bandidos" ou direito "dos manos" tem várias hipóteses explicativas, uma delas aqui desenvolvida é a de que o tema tem sido tratado predominantemente na dimensão penal. Numa população carente de inclusão social e sob ameaça de perda de direitos sociais mínimos, direitos humanos parecem um luxo reservado aos estratos sociais privilegiados. A hipótese trazida neste trabalho é a de que num contexto de exclusão social crônica que afeta grande parte da população, portanto, em uma situação massiva, os eventos de violação de garantias penais individuais são no mínimo considerados irrelevantes. A partir da análise da referência aos direitos humanos no acervo de monografias do curso de Direito no CCJS, Campus de Sousa da Universidade Federal de Campina Grande, se buscará investigar em que campo do Direito se dá a discussão dos direitos humanos: se estes são invocados como fundamentos de direitos sociais e coletivos ou garantias individuais penais. A hipótese é de que é preponderante o recurso aos direitos humanos na dimensão penal das violações de garantias de pessoas acusadas de crimes e, por isso, com exposição na mídia. A população vitimada pela exclusão social como processo crônico, silencioso e massivo se vê confrontada com o fato de indivíduos que, pelo crime, afetam sua esfera de segurança e ganham a atenção prioritária dos agentes dos direitos humanos em face das violações de suas garantias penais pessoais. A dialética "exclusãoviolação" é primordial para entender a baixa recepção dos direitos humanos numa sociedade marcada pela pobreza, desigualdade e exclusão social conforme teoria desenvolvida por Fonseca (2008) que vê os recursos argumentativos dos direitos
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humanos voltarem-se prioritariamente para indivíduos que pelo crime reproduzem uma relação de força perante uma coletividade enfraquecida em suas necessidades. A dialética "necessidade e liberdade" integra aquela da "exclusão e violação" na análise do papel dos direitos humanos. Resultado previsível é que nas monografias do CCJS, analisadas por método qualitativo-quantitativo, o argumento dos direitos humanos são mais fortemente empregados na esfera da discussão penal e como reforço das garantias individuais, e pouco empregada na crítica das necessidades coletivas e exclusão social. Daí resultaria uma recepção defeituosa dos direitos humanos como programa de ideias partilhada por toda a sociedade, pois se "especializou" num aspecto da vida social, a dimensão penal e no ideal de liberdade.
Desenvolvimento I. Aspectos hodiernos no que tange a compreensão dos direitos humanos
Os direitos humanos, na contemporaneidade, têm se deparado com um enorme paradigma, que se perpetua, principalmente, em países subdesenvolvidos. Esse paradigma está atrelado às questões sociais e de liberdades individuais, com as quais foram aceitas e legitimadas ao longo do processo histórico de criação e efetivação dos direitos fundamentais inerentes ao ser humano. O fundamento principal desse paradigma trata-se da dialética: “exclus~o-violaç~o”. Nessa perspectiva, entende-se que tal paradigma compreende a uma esfera que atinge a sociedade como um todo, como é desenvolvido por Fonseca (2008), que, em sua teoria, enxerga a contrariedade desse paradigma e argumenta que isso diz respeito ao fundamento interpretativo e operativo dos direitos humanos e ressalta à necessidade de legitimá-los em nível científico. Adentrando mais na perspectiva da dialética “exclus~o-violaç~o”, torna-se perceptível que os princípios que regem a violação são mais visíveis e mais sentidos, midiaticamente e socialmente, do que as da exclusão. É um processo pelo qual há uma total dessemelhança entre as duas ópticas. Desse modo, identifica-se que a violação tem mais impacto na sociedade do que a exclusão. De forma que, por ~ 173 ~
exemplo, se um determinado grupo enquadrado nas “minorias” realiza uma manifestação, impedindo a passagem de automóveis em uma rodovia, como denúncia as mais diversas formas de exclusão, dificilmente será visto nessa concepção. De modo que, é mais provável que seja visto na ótica da violação a um direito, o de ir e vir. A visão dos direitos humanos na perspectiva da violação e como fator de inclusão penal pessoal acarreta uma baixa recepção desses direitos, como sendo “direitos dos bandidos”, ou “direitos dos manos”. Em concord}ncia com a perspectiva desenvolvida por Caldeira (2010, p. 164), “na verdade, s~o contra o que eles consideram ser "regalias para bandidos", mas na prática e no discurso acabam reagindo contra a ideia de direitos humanos. Dado o absurdo da situação, é importante entender como se chegou a isso”. Destarte, a oposição aos direitos humanos, associada a um diagnóstico sobre a desordem social, acaba originando sugestões de como recuperar essa ordem ameaçada. Essas sugestões, defendidas com a mesma paixão com que se afirmam que bandidos são menos que humanos, vão hoje em dia basicamente por dois caminhos não excludentes. De um lado, voltam-se as costas ao Estado, enxergado como incompetente e defensor de criminosos, e privilegia-se a privatização dos mecanismos de prevenção da violência. De outro lado, defende-se cada vez com maior veemência o uso da força física contra os prisioneiros, ou seja, exatamente o contrário da ideia de respeito aos direitos humanos e às práticas democráticas. Desse modo, argumenta-se que essa brutalidade é apenas equivalente à brutalidade dos que passaram os limites da humanidade. É por aí que, além de ser contra o que se chama de "bons-tratos" aos criminosos, parcela considerável da população exige a pena de morte, fecha os olhos para os abusos da polícia e o desrespeito aos direitos humanos, requer "dureza" contra os bandidos ou a sua eliminação pura e simples, num discurso também altamente difundido. É ainda nesse contexto que são apoiados os "justiceiros" 36 que agem nos bairros populares (CALDEIRA, 2010). Em suma, nessa realidade os criminosos são colocados cada vez mais fora do contexto da humanidade e da sociedade, privatiza-se a questão da segurança, e volta-se a legitimar o uso da força contra os "desordeiros". 36
“Justiceiros” passa a ser atributo a quem viola as normas vigentes para fazer, supostamente, “justiça”. ~ 174 ~
A grande questão que corrobora para isso é que, além de a população não ver com maus olhos o uso da força contra "bandidos", os estereótipos criados e implementados na sociedade brasileira sobre os criminosos consideram-nos no limite não só da sociedade, como também da humanidade. E, na verdade, no processo de contestação aos direitos humanos parece que esses estereótipos foram cada vez se tornando mais radicais. A figura dos criminosos foi mais do que enfatizada. Eles foram pintados com as cores do preconceito, da discriminação social e do desvio de conduta como estando nas bordas tanto da sociedade quanto da humanidade. Nos mais diversos discursos contra os direitos humanos, os suspeitos são sempre criminosos, e os criminosos são sempre assassinos ou estupradores (ambos menos que humanos), destruindo a honra e a propriedade de honestos trabalhadores e “homens de bem”. O estranhamento das pessoas comuns perante o manuseio retórico dos direitos humanos, o preconceito que a população em geral volta aos direitos humanos, como sendo “direitos de bandidos” devem direcionar ao estudo desses direitos de um modo geral. Maria R. Kelh, citada por Fonseca (2008), descreve o sentimento de ira das pessoas quanto à ideia associativa dos direitos humanos a direitos de presos, demonstrando, assim, a falsa perspectiva da suspensão de direitos e garantias mínimas de vida atribuídas a qualquer indivíduo, independentemente de qualquer desvio de conduta, escancara a dimensão passional que se vincula a retórica dos direitos humanos.
II. Levantamento de dados acerca do acervo monográfico do CCJS II.I. Direitos humanos no título das monografias
O título das monografias é de extrema importância para a compreensão e interpretação da proposta desenvolvida pelo autor em seu referencial teórico. É uma das partes estruturais cuja função é a delimitação do tema, o qual será trabalhado em torno da discussão do tema e dos resultados obtidos na pesquisa.
Tabela 1 – Menção a direitos humanos no título das monografias do CCJS Ramos do Direito
Quant. de menções ~ 175 ~
Percentagem (%)
Administrativo Civil
0 1
** 9%
Constitucional
4
33,3%
Empresarial
0
**
Penal
6
50%
0 1 0
** 9% **
Previdenciário Trabalhista Tributário
Na escolha temática, os direitos humanos aparecem
nas áreas
predominantemente penal e constitucional, ou seja, ligadas aos espaços de atuação mais fortes do Estado. O Direito como disciplina veria na atuação deste o campo mais proeminente da análise dos direitos humanos no horizonte dos alunos de graduação do CCJS/UFCG. As relativamente poucas menções expressas a “direitos humanos” nos títulos, 12 apenas, num universo de 565 monografias já indica a pouca centralidade desse tema.
II.II. Direitos humanos nas palavras-chave
Antes de destacarmos a importância e a necessidade da utilização das palavras-chave nas monografias, partiremos do princípio de que todo o posicionamento do emissor e os argumentos por ele defendidos encontrar-se-ão distribuídos no texto de forma organizada, por meio dos parágrafos. Dessa forma, cada um deles se define pela condensação de ideias, as quais compõem a forma totalizada da mensagem, do discurso propriamente dito. De modo que o levantamento das palavras-chaves contidas em cada parágrafo representa o passo fundamental para que a familiaridade com o discurso seja efetivamente materializada. Sendo assim, tem-se que a identificação das palavras-chave se torna muito mais acessível após compreendermos toda a essência semântica de um dado parágrafo, e que elas, de forma inegável, representam o fio condutor que, de forma sucessiva, vai ligando um pensamento a outro e contribuindo para que o discurso seja compreendido de forma plena. ~ 176 ~
Tabela 2 – Menção a direitos humanos nas palavras-chave das monografias do CCJS Ramos do Direito
Quant. de menções
Administrativo Civil
0 0
Constitucional
3
Empresarial
0
Penal Previdenciário Trabalhista Tributário
Percentagem (%)
** ** 42,8% **
3
42,8%
0 1 0
** 14,2% **
Repete-se o padrão dos títulos nas palavras-chaves escolhidas. As palavraschave sinalizam a direção e eixo de argumentação dos textos monográficos e a menç~o expressa a “direitos humanos” em número menor que nos títulos mostra que o emprego do termo direito humano pode ser mais retórico. Na maioria dos casos, as palavras-chave aparecem quando os direitos humanos estão expressamente citados no título das monografias, portanto a hipótese era que a quantidade maior de palavras-chave com referência a direitos humanos estivesse nos campos de constitucional e penal. Dessa forma, confirma-se o direcionamento de uma maior parte das monografias com referência a direitos humanos a estes campos. Outros campos como tributário, trabalho, empresarial, civil, etc. não tiveram menções a direitos humanos em suas palavras-chave, compreende-se, logo, que essas áreas não deverão ter uma alta quantidade de citações aos direitos humanos em seu corpo geral de desenvolvimento, tendo em vista que as palavras-chave são, como já supracitado, o direcionamento pelo qual a discussão do autor se dará.
II.III Direitos humanos no texto geral
Gráfico 1 – Menção expressa a direitos humanos no texto geral das monografias do CCJS
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MENÇÃO A DIREITOS HUMANOS PROC. PENAL PREVIDENCIÁRIO TRIBUTÁRIO TRABALHO
3% 0,70% 1% 5% 47%
PENAL EMPRESARIAL DIR. CRIANÇA E ADOLESC.
1% 1% 33%
CONSTITUCIONAL CIVIL ADMINISTRATIVO
8% 0,50%
0,00%
10,00%
20,00%
30,00%
40,00%
50,00%
Direitos humanos são uma categoria jurídica que se incorporou como um consenso em nível internacional, uma abordagem de certa forma inevitável, portanto impacta na construção argumentativa de diversos campos do direito. Ainda assim, no corpo dos textos das monografias, a express~o “direitos humanos” vai aparecer no corpo textual de muitos outros trabalhos em outros ramos do direito afora direito penal e constitucional, mas estes estão no topo de menções a direitos humanos. O distanciamento da abordagem de direitos humanos nas dimensões do direito civil e privado pode ser explicado pelo distanciamento da discussão da justiça econômica da dogmática jurídica (HANSSEN, 2015). Esta passou a dedicar-se não aos valores da vida “civil” da vis~o de Locke, mas da força do Estado perante o súdito, a dimensão penal das relações jurídicas, numa perspectiva mais de Hobbes (HANSSEN, 2015, p. 221). A segurança coloniza as preocupações, ao passo que timidamente se discutem outros aspectos do direito sob a teoria dos direitos humanos.
Metodologia
A pesquisa a qual este trabalho foi submetido tem caráter quantitativoqualitativo, fundamentando-se em pesquisa bibliográfica e documental, além de dados estatísticos. Utilizando-se de uma técnica indireta de coleta de informações, este resumo expandido seguiu duas etapas. Em um primeiro momento, fez-se o ~ 178 ~
levantamento da bibliografia, através da coleta de fontes primárias (documentos oficiais, notícias jornalísticas locais e internacionais, dados estatísticos etc.) e de fontes secundárias (artigos científicos, livros, periódicos, etc.). O segundo momento tratou-se da elaboração do resumo expandido através da discussão pertinente, fundamentada nos dados estatísticos obtidos através do levantamento de dados do banco de monografias do Centro de Ciências Jurídicas e Sociais (CCJS), da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG). Foram avaliadas as monografias do período 2013.1 até o período 2016.2, totalizando cerca de 565 monografias. Para tanto, utilizou-se a ferramenta de pesquisa disponibilizada pelo programa de visualização de arquivos PDF, além de planilhas do EXCEL.
Conclusões
O tratamento dos direitos humanos dentro da abordagem penal predomina seja na academia jurídica, seja, intuitivamente, nos meios de comunicação social que divulgam o crime e seus agentes operadores, “vagabundos e bandidos”. O papel dos meios de comunicação é relevante na (des)educação para direitos humanos e em especial para a estigmatização tema do presente trabalho: “bandidos” e “vagabundos” recebem uma exposiç~o grande nos notici|rios. J| as situações de exclusão, os sofrimentos diuturnos e crônicos da população são de custosa divulgaç~o, n~o interessa. Notícia f|cil e “quente”, além de mais barata, é aquela colhida do crime e acidentes, e nesse contexto é que os direitos humanos são em geral apresentados como direito de bandidos. A predominância da referência expressa a direitos humanos nas monografias jurídicas nas áreas de direito penal e constitucional indicam tendencialmente, no apertado da amostra, os campos em que a luta por esses direitos se dá no Brasil. No campo penal, o estado de barbárie que assola ainda a dimensão da segurança pública e da proteção da população que tende a identificar no agressor mais imediatamente visível a raiz de todos os males da exclusão como processo mais amplo. No campo ~ 179 ~
constitucional, a discussão dos problemas fundamentais do país e os grandes temas certamente conectam-se aos direitos humanos pelo seu caráter cosmopolita e o lugar na governança jurídica internacional. A populaç~o que mais foi “bombardeada” pela relaç~o entre direitos humanos e “bandidos” sem mais confiança no Estado, “privatiza” a soluç~o de segurança, alçado a principal problema no cotidiano da sociedade brasileira. Por outro lado, silenciosamente a exclusão social que afeta tantos outros bens da vida é incorporada como algo normal e daí se deixa de visualizar os verdadeiros inimigos da população. Pode-se dizer, por fim, que as dimensões penal e constitucional no Direito figuram como a reserva temática de preocupações mais coletivas e gerais das pessoas em sociedade pela importância que os problemas de segurança e de justiça social tem na vida das pessoas. E, nesses contextos, os direitos humanos aparecem como relevantes.
Referências
CALDEIRA, Teresa Pires. Direitos humanos ou “privilégio de bandido”?. Disponível em: <https://pt.scribd.com/document/15508554/20080624-Direitos-Humanos-Ou-Privilegios-deBandidos1> Acesso em: 03/09/2017. FONSECA, Paulo Henriques da. Direitos humanos dos pobres: entre a violação e a exclusão. Disponível em: <http://www.andhep.org.br/ anais/arquivos/IIencontro/direitoshumanosseculoxxi.pdf> Acesso em: 28/08/2017. HANSEN, Phillip Birger. Reconsidering Macpherson: From possessive individualism to democratic theory and beyond. Toronto, Buffalo e Londres: University of Toronto Press, 2015.
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8 A INCONSITUCIONALIDADE DO MANDADO DE BUSCA E APREENSÃO COLETIVO FRENTE À GARANTIA FUNDAMENTAL DA INVIOLABILIDADE DO LAR
JOÃO FRANCISCO DE SOUSA FILHO37
RESUMO: O mandado de busca e apreensão é um importante instrumento para coleta de provas para o inquérito policial e instrução criminal, entretanto, como este se dá através da violação da garantia da inviolabilidade do domicílio, é preciso que este obedeça a determinadas regras, que são exigência direta do princípio da dignidade da pessoa humana, um dos fundamentos do Estado brasileiro. Vem tornando-se cada vez mais comum no dia-a-dia das periferias das grandes cidades a execução de mandados de busca e apreensão com fundamento genérico, prática que contraria as exigências do código de processo penal e afronta os direitos e garantias fundamentais gravados na Constituição Federal. 37
Discente Graduando do curso de direito da Universidade Federal de Campina Grande.
João_filho87.cz@hotmail.com.
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Palavras-chave: Direitos fundamentais. Processo Penal. Busca e apreensão.
Introdução
O presente trabalho tem por objetivo analisar a prática da expedição e cumprimento de mandados de busca e apreensão coletivos, utilizados para obtenção de meios de prova para a instrução criminal, à luz das garantias constitucionais, com ênfase na garantia da inviolabilidade do lar, trazido expressamente no Art. 5º, inciso XI, da Constituição Federal. Em tese esse tipo de medida possui um alcance muito mais amplo do que sua forma convencional, o que justificaria sua aplicação, como uma forma de adaptá-la as condições urbanísticas das periferias dos grandes centros urbanos, aonde tradicionalmente vem sendo aplicada, entretanto, é flagrante a forma como o mandado de busca e apreensão foi desfigurado, afastando-se completamente do que as normas processuais autorizam que seja feito. O tema bastante relevante e controverso vem sendo amplamente debatido entre acadêmicos, razão que justifica o presente trabalho. Inicialmente, como ponto de partida, serão discutidas as garantias trazidas no texto constitucional pertinentes ao tema em questão, para em seguida se tratar do mandado de busca e apreensão em seu sentido singular, tal qual é trazido pelo código de processo penal, apresentando seus requisitos e finalidade, para em fim tratar do mandado genérico de busca e apreensão, evidenciando sua incompatibilidade com o Estado democrático de Direito e a vigente ordem constitucional.
Desenvolvimento I. A garantia constitucional da inviolabilidade do lar
O princípio da dignidade da pessoa humana está gravado na Constituição Federal de 1988, em seu artigo 1º, inciso III, como um dos fundamentos do Estado brasileiro, e dele decorrem todos os direitos e garantias fundamentais, que protegem ~ 182 ~
os cidadãos das ingerências e abusos do Estado. Ao se referir aos direitos e garantias fundamentais, o ilustre constitucionalista Paulo Bonavides, diz que:
Os direitos fundamentais são a sintaxe da liberdade nas Constituições. Com eles, o constitucionalismo do século XX logrou a sua posição mais consistente, mais nítida, mais característica. Em razão disso, faz-se mister introduzir talvez nesse espaço teórico, o conceito do juiz social, enquanto consectário derradeiro de uma teoria material da Constituição, e sobretudo da legitimidade do Estado social e seus postulados de justiça, inspirados na universalidade, eficácia e aplicação imediata dos direitos fundamentais. Coroam-se, assim, os valores da pessoa humana nos seu mais elevado grau da juridicidade e se estabelece o primado do Homem nos seio da ordem jurídica, enquanto titular e destinatário, em última instância, de todas as regras do poder (BONAVIDES, 2000, p. 587).
A Constituição Federal trouxe em seu Art. 5º, inciso XI, a inviolabilidade domiciliar: “A casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinaç~o judicial.”, do texto constitucional é possível extrair que sem o consentimento do morador, o domicílio só poderá ser violado em duas hipóteses: a primeira em caso de flagrante delito, desastre, ou para prestar socorro, podendo esta se dar de dia ou à noite, a segunda dá-se por meio de determinação judicial e somente durante o dia. A doutrina e a jurisprudência cuidaram de delimitar o alcance dessa garantia em alguns aspectos. Pedro Lenza ensina que o termo casa não se resume apenas ao domicílio, mas abrande também escritórios, oficinas, garagens (RT 467/385), quartos de hotel (RHC 90.376) etc. (LENZA, 2012). Quanto ao período que se considera dia, há certa discordância na doutrina, a posição do Ministro Alexandre de Moraes é a de que seja aplicado conjuntamente, o critério físico-astronômico, de que o dia começa com a aurora e se encerra com o crepúsculo, e o critério temporal, de que o dia é o período compreendido entre as 6h e às 18h, como forma de melhor alcançar a finalidade constitucional de proteção ao domicílio (MORAES, 2001).
II. Do mandado de busca e apreensão singular
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Uma das formas de ingresso no domicilio sem o consentimento do morador por determinação judicial, é o mandado de busca e apreensão. Assim sendo, faz-se necessário examinar o conceito de busca e apreensão. De acordo com Lima (2018, p. 733), “A busca consiste na diligência cujo objetivo é o de encontrar objetos ou pessoas. A apreensão deve ser tida como medida de constrição, colocando sob custódia determinado objeto ou pessoa” Trata-se, portanto, de procedimento para obtenção de meios materiais de prova úteis para a instrução criminal. A lei cuidou de afastar a possibilidade de realização de busca e apreensão sem fundamentos ou mesmo baseada em meras suspeita. A expedição do mandado de busca domiciliar está condicionada à existência de fundadas razões, apesar da certa subjetividade que o termo usado pelo legislador ofereceu à autoridade judicial, este deve ser entendido como a existência de elementos informativos que apontem a presença no interior da casa diligenciada de alguma das pessoas ou coisas citadas pelo Art. 240, § 1º do Código de Processo Penal como: [...] Proceder-se-á á busca domiciliar, quando fundadas razoes a autorizarem, para: a)prender criminosos; b)apreender coisas achadas ou obtidas por meios criminosos; c)apreender instrumentos de falsificação ou de contrafação e objetos falsificados ou contrafeitos; d)apreender armas e munições, instrumentos utilizados na prática de crime ou destinados a fim delituoso; e)descobrir objetos necessários à prova de infração ou à defesa do réu; f)apreender cartas, abertas ou não, destinadas ao acusado ou em seu poder, quando haja suspeita de que o conhecimento do seu conteúdo possa ser útil à elucidação do fato; g)apreender pessoas vítimas de crimes; h)colher qualquer elemento de convicção.
O art. 243 disciplina a forma sob a qual deve ser realizada a diligência. Segundo a lei, mandado judicial deve: I – indicar, o mais precisamente possível, a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador; II – mencionar o motivo e os fins da diligência; III – ser subscrito pelo escrivão e assinado pela autoridade que o fizer expedir. ~ 184 ~
III. Do mandado de busca e apreensão genérica ou coletiva
O mandado genérico de busca e apreensão domiciliar se diferencia por não haver especificação do alvo da busca, somente a demarcação da área onde será realizada a diligência. Aproveitando o exemplo dos mandados de busca e apreensão coletivos utilizados na intervenção militar do Rio de Janeiro em 2018, como foi veiculado pela mídia, ao invés de o mandado citar um domicílio especifico, individualizado por rua e número da casa, este conterá uma rua inteira, uma área ou um bairro (JUNGMANN, 2018 apud ARAÚJO et al, 2018). Entretanto, na busca e apreensão coletiva não há observância ao requisito do Art. 243, I, do Código de Processo Penal, que impõe que a busca deverá se proceder com a individualização do domicílio (LEITE, 2018), pois uma vez que a casa é asilo inviolável de acordo com a constituição, qualquer forma de ingresso em seu interior, sem a permissão do morador, deve ser promovida com o devido cuidado para evitar que pessoas sem ligação com o que está sendo investigado sejam constrangidas pela violação desnecessária de sua intimidade. No caso em questão a polícia pode acessar qualquer lugar de uma determinada área sem autorização dos proprietários, mesmo em casas onde os moradores não são suspeitos de cometer nenhum crime, percebe-se que nessa situação não se pode verificar a presença das fundadas razões de que fala o Art. 240, §1º, nem de qualquer outra coisa que justifique a violação do sagrado direito à intimidade. É possível que um mesmo mandado judicial abranja mais de um domicílio, situados em um mesmo local, desde que sejam especificados e a atuação da polícia limitada a uma área bem definida, visto que há possibilidade que a diligência seja determinada para um local periférico, onde muitas vezes os becos e vielas não possuam nomes. Posicionando-se sobre o tema, Renato Brasileiro ainda menciona que “Mandados de busca domiciliar n~o podem se revestir de conteúdo genérico, nem podem se mostrar omissos quanto à indicação, o mais precisamente possível, do local
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objeto dessa medida extraordin|ria, tal qual dispões o art. 243 do CPP“ (LIMA, 2018, p. 742). Apesar dos direitos e garantias não serem absolutos, não é admissível o argumento de que os fins justificam os meios nesse caso, pois, como ensina José Afonso da Silva ao tratar do direito à inviolabilidade do lar, “a Constituição está reconhecendo que o homem tem direito fundamental a um lugar em que, só ou com sua família, gozará de uma esfera jurídica privada e íntima, que terá que ser respeitada como sagrada manifestação da pessoa humana” (SILVA, 2002, p. 209).
Metodologia
Foi utilizada a abordagem do método indutivo para chegar ao raciocínio apresentado. O procedimento utilizado para coleta das informações utilizadas na formação do raciocínio foi o de revisão bibliográfica, onde foram utilizadas obras de doutrinadores e juristas renomados, artigos, a legislação brasileira e jurisprudência atualizada.
Conclusões
Diante das regras do mandado de busca e apreensão previstas no código de processo penal que foram apresentadas, não resta dúvida que o legislador vedou a possiblidade de expedição de mandado com fundamentação genérica, ao exigir que nele seja individualizada a residência em que será realizada a diligência e o nome do respectivo proprietário ou morador. Além de ilegal, percebe-se que a medida também é inconstitucional, pelo fato de que representa grave desrespeito ao direito à inviolabilidade do lar, garantia que só pode ser afastada havendo fundadas razões, o que não ocorre no caso em questão, visto que o mandado de busca e apreensão coletivo também permite o ingresso forçado nas residências de pessoas que não são sequer suspeitas.
Referências
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ARAÚJO, Carla et al. Exército pede uso de mandado coletivo; especialistas e população temem abusos. O Estado de S. Paulo. Disponível em <https://brasil.estadao.com.br/noticias/rio-dejaneiro,defesa-pede-autorizacao-judicial-para-aplicar-mandados-coletivos-de-busca-e-apreensao-norio,70002195172> Acesso em: 06 jun. 2018. BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 10ª ed. São Paulo: Malheiros, 2000. BRASIL. Constituição (1988). Constituição da Republica Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.> Acesso em: 06 jun. 2018. _______. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm>. Acesso em: 06 jun. 2018. LEITE, André Ribeiro. Análise constitucional do mandado de busca e apreensão genérico no processo penal. 2018. Disponível em: <https://andreleite.jusbrasil.com.br/artigos/261653507/analiseconstitucional-do-mandado-de-busca-e-apreensao-generico-no-processo-penal>. Acesso em: 06 jun. 2018. LENZA, Pedro. Direito constitucional esquematizado / Pedro Lenza. – 16. ed. rev., atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva, 2012. LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal: volume único/ Renato Brasileiro de Lima – 6. Ed. ver., ampl. e atual. – Salvador: Ed. Jus.Podivm, 2018. MORAES, Alexandre de. Direito constitucional. 9ª ed., atualizada com a EC nº31/00. São Paulo: Atlas, 2001. SILVA, José Afonso. Curso de direito constitucional positivo. 22ª ed. São Paulo: Malheiro, 2002.
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