DIREITO À SEGURANÇA: PERSPECTIVA DE ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE
CENTRO INTERDISCIPLINAR DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO E DIREITO LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA Diretor Presidente da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diretor - Adjunto da Associação do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito VALFREDO DE ANDRADE AGUIAR FILHO Coordenador de Política Editorial do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito
ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA – AREPB CNPJ 12.955.187/0001-66 Acesse: www.abarriguda.org.br
CONSELHO CIENTÍFICO Adilson Rodrigues Pires Adolpho José Ribeiro Adriana Maria Aureliano da Silva Ana Carolina Gondim de Albuquerque Oliveira André Karam Trindade Alana Ramos Araújo Bruno Cézar Cadê Carina Barbosa Gouvêa Carlos Aranguéz Sanchéz Cláudio Simão de Lucena Neto Daniel Ferreira de Lira Elionora Nazaré Cardoso Ely Jorge Trindade Ezilda Cláudia de Melo Fernanda Isabela Oliveira Freitas Gisele Padilha Cadé Glauber Salomão Leite Gustavo Rabay Guerra
Herry Charriery da Costa Santos Ignacio Berdugo Gómes de la Torre Jeremias de Cássio Carneiro de Melo José Flôr de Medeiros Júnior Karina Teresa da Silva Maciel Laryssa Mayara Alves de Almeida Ludmila Douettes Albuquerque de Aráujo Marcelo Alves Pereira Eufrásio Maria Cezilene Araújo de Morais Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva Raymundo Juliano Rego Feitosa Rodrigo Araújo Reül Rômulo Rhemo Palitot Braga Samara Cristina Oliveira Coelho Suênia Oliveira Vasconcelos Talden Queiroz Farias Valfredo de Andrade Aguiar Filho
JOSÉ GODOY BEZERRA DE SOUZA, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO E YULGAN TENNO DE FARIAS LIRA ORGANIZADORES
DIREITO À SEGURANÇA: PERSPECTIVA DE ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE
1ª EDIÇÃO
ASSOCIAÇÃO DA REVISTA ELETRÔNICA A BARRIGUDA - AREPB CAMPINA GRANDE – PB 2015
©Copyright 2015 by Organização do Livro JOSÉ GODOY BEZERRA DE SOUZA, LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO E YULGAN TENNO DE FARIAS LIRA Capa PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA Editoração LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA, PHILLIPE GIOVANNI ROCHA MARTINS DA SILVA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO Diagramação LARYSSA MAYARA ALVES DE ALMEIDA E VINÍCIUS LEÃO DE CASTRO O conteúdo dos artigos é de inteira responsabilidade dos autores.
Data de fechamento da edição: 10-12-2014
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) D597
Direito à segurança: perspectiva de Estado, direito e sociedade/ José Godoy Bezerra de Souza(Org.); Laryssa Mayara Alves de Almeida (Org.); Vinícius Leão de Castro (Org.); YulganTenno de Farias Lira (Org.). – Campina Grande: AREPB, 2015. 151p.
ISBN 978-85-67494-08-1 1. Direito e sociedade 2.Segurança I.Título. CDU323.4
Todos os direitos desta edição reservados à Associação da Revista Eletrônica A Barriguda – AREPB. Foi feito o depósito legal.
O Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, responsável pela Revista Jurídica e Cultural “A Barriguda”, foi criado na cidade de Campina Grande-PB, com o objetivo de ser um locus de propagação de uma nova maneira de se enxergar a Pesquisa, o Ensino e a Extensão na área do Direito. A ideia de criar uma revista eletrônica surgiu a partir de intensos debates em torno da Ciência Jurídica, com o objetivo de resgatar o estudo do Direito enquanto Ciência, de maneira inter e transdisciplinar unido sempre à cultura. Resgatando, dessa maneira, posturas metodológicas que se voltem a postura ética dos futuros profissionais. Os idealizadores deste projeto, revestidos de ousadia, espírito acadêmico e nutridos do objetivo de criar um novo paradigma de estudo do Direito se motivaram para construir um projeto que ultrapassou as fronteiras de um informativo e se estabeleceu como uma revista eletrônica, para incentivar o resgate do ensino jurídico como interdisciplinar e transversal, sem esquecer a nossa riqueza cultural. Nosso sincero reconhecimento e agradecimento a todos que contribuíram para a consolidação da Revista A Barriguda no meio acadêmico de forma tão significativa.
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SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .......................................................................................................................................................................... 8 Laryssa Mayara Alves de Almeida, Vinícius Leão de Castro e Yulgan Tenno PREFÁCIO ........................................................................................................................................................................................ 9 José Godoy Bezerra de Souza CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NA PARAÍBA: O DEVER CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL DO ESTADO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SEGURANÇA CIDADÃ ............................................................................................................................................................. 13 Yure Tenno e Yulgan Tenno MONITORAMENTO ELETRÔNICO DE PRESOS: A INTEGRAÇÃO ENTRE TECNOLOGIA E CORPO COMO MECANISMO DE BIOPODER ................................................................................................................................ 36 Laryssa Mayara Alves de Almeida e Vinícius Leão de Castro TRÁFICO DE PESSOAS E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A SOCIEDADE MODERNA .................................... 45 Elis Formiga Lucena e Milena Barbosa Melo ANÁLISE VITIMOLÓGICA DA LEI MARIA DA PENHA, SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES QUE SOFREM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA CIDADE DO RECIFE ............................................................................... 64 Flávia Roberta de Gusmão Oliveira e Gilliard Jeronimo de Oliveira AS GRADES (IN) VISÍVEIS: USOS DA EDUCAÇÃO DENTRO DE PENINTENCIÁRIAS NA RESSOCIALIZAÇÃO DAS PRESAS ....................................................................................................................................... 79 Tomires Costa OS VETORES DA VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA E COMPORTAMENTAL SOBRE O AUMENTO DA CRIMINALIDADE E DA IMPUNIDADE NO BRASIL PÓS-DITADURA ............................... 90 Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva VIOLÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO: A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS POSTA À PROVA NO AGRESTE PARAIBANO ............................................................................................................. 107 Alan Jones Andreza Silva DESCORTINAMENTO DA VÍTIMA: ESTUDO CRITICO SOBRE AS TIPOLOGIAS VITIMAIS .................. 136 Ana Clara Montenegro Fonseca
APRESENTAÇÃO O E-book intitulado Direito à Segurança: perspectiva de Estado, Direito e Sociedade foi construído em parceria com o Ministério Público Federal – Procuradoria da República no Estado da Paraíba e fruto do acordo de cooperação acadêmica nº. 001/2014. Esta parceria tem por escopo o estabelecimento de mecanismos que permitam a comunicação efetiva e permanente entre o meio científico e a prática jurídica, visando à realização de estudos, pesquisas e intercâmbio de informações. A consolidação dessa parceria traz novos ventos para o cenário jurídico paraibano, com olhares e reflexões inovadoras no âmbito do Direito. Além do presente E-book, estão por vir edições especiais de periódicos, bem como outros empreendimentos acadêmicos vinculados ao Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito (CIPED).
Campina Grande – PB, 13 de julho de 2015.
Laryssa Mayara Alves de Almeida Vinícius Leão de Castro YulganTenno Organizadores
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PREFÁCIO O Ministério Público Federal – Procuradoria da República no Estado da Paraíba, a partir do compromisso de defesa dos direitos fundamentais da pessoa humana estabeleceu cooperação acadêmica nº. 001/2014 com a Revista Jurídica e Cultural A Barriguda. Tal Cooperação vem a colaborar com a ampliação do debate em torno do tema segurança pública, de modo a possibilitar a criação de canais de comunicação entre poder público e sociedade civil com o aporte de pesquisas acadêmicas. Na sociedade atual segurança é aspecto multifacetado, logo as abordagens devem responder as indagações e insatisfações que atravessam as relações sociais. Tratar de direito à segurança é imperativo, logo enfrentar as perspectivas de Estado, direito e sociedade revelou-se atitude com grande importância. Vale destacar que no Brasil o debate sobre segurança pública tem sido privativo dos órgãos e agentes de segurança pública, e democratizar este debate, para que toda a sociedade possa participar e decidir sobre o tema é fundamental. A presente obra inaugura a colaboração entre o Ministério Público Federal e o Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED, representando o objetivo de concretizar diálogos, experiências e ações. Sobre o assunto, segurança pública, o MPF instaurou o inquérito Civil Público nº
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1.24.000.002944/2014-38, que entre outras propósitos pretende democratizar e abrir as discussões sobre segurança para que vários outros atores possam participar de forma relevante, qualificando o debate. Nesse sentido o debate é aberto com o capítulo “Controle judicial das políticas de segurança pública na paraíba: o dever constitucional e internacional do estado na efetivação do direito social à segurança cidadã”, de autoria de Yure e YulganTenno trazendo o alicerce das decisões judiciais do Supremo Tribunal Federal a respeito das políticas públicas na área de segurança para investigar a sua concretização no âmbito da segurança cidadã refletindo sobre o contexto internacional e paraibano. Encontra a frente “Monitoramento eletrônico de presos: a integração entre tecnologia e corpo como mecanismo de biopoder”, da lavra dos pesquisadores Laryssa Almeida e Vinícius Leão. O capítulo discute o instrumento jurídico do monitoramento eletrônico através de uma interpretação filosófica que pretende ir além dos discursos postos e destacar as relações de poder presentes na sociedade. Nesse ínterim, a discussão centra-se em formas de delitos penais que ameaçam a segurança. Esta especificidade é garantida pelos capítulos “Tráfico de pessoas e as consequências para a sociedade moderna”, de Elis Formiga Lucena e Milena Barbosa Melo e “Os vetores da violência: uma análise socioeconômica e comportamental sobre o aumento da criminalidade e da impunidade no Brasil pós-ditadura” de Phillipe Martins. Comparar realidades é ampliar a discussão e consolidar observações, desse modo, traz-se à baila a pesquisa elaborada por Flávia Roberta de Gusmão Oliveira e 10
Gilliard Jeronimo de Oliveira com o tema “Análise Vitimológica da Lei Maria da Penha, sob a perspectiva das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade do Recife”. Para além do direito a sociedade também deve ser observada, afinal não é nova a demanda por interdisciplinaridade de maneira que as práticas sociais ofereçam maior abertura aos debates jurídicos. Em relação à segurança pública a interdiciplinariedade com outras políticas públicas se mostra essencial, pois não é crivel que os órgãos de segurança pública consigam resolver todas as questões envolvendo segurança em comunidades paupérrimas, com altos déficits de moradia, estrutura urbana, saúde e educação. Dessa maneira apresentam-se o capítulo, “As grades (in) visíveis: usos da educação dentro de penitenciárias na ressocialização das presas”, de Tomires Costa, partindo da experiência baseada em Campina Grande-PB com o objetivo de discutir políticas públicas e métodos educacionais na perspectiva do sujeito. Passa-se da abordagem do paradigma para o enfoque empírico no agreste da Paraíba na perspectiva do Estado que se transforma em promotor de direitos e colaborador na efetivação do direito à segurança, assim, Allan Jones Andreza Silva contribui com o capítulo “Violência e desenvolvimento humano: a efetivação dos direitos fundamentais posta à prova no agreste paraibano”. Encerrando esta publicação encontra-se “Descortinamento da vítima: estudo crítico sobre as tipologias vitimais”, de autoria da pesquisadora Ana Clara Montenegro Fonseca, com análise a respeito do conceito relacional da vítima, afastando-o do 11
senso comum e trazendo-o para perto de conceitos bem fundamentos a partir de uma perspectiva crítica. Por último cabe destacar que este e-book se alinha ao que o MPF propõe em termo de segurança pública, ou seja, democratizar o debate, acrescentando a interdisciplinariedade na discussão, sem dúvida temos um longo caminho pela frente, que este trabalho estimule o surgimento de outras obras com estes propósitos.
João Pessoa – PB, 13 de julho de 2015.
JOSÉ GODOY BEZERRA DE SOUZA
Procurador da República Procurador Regional dos Direitos do Cidadão na Procuradoria da República no Estado da Paraíba
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DIREITO À SEGURANÇA: PERSPECTIVA DE ESTADO, DIREITO E SOCIEDADE
CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NA PARAÍBA: O DEVER CONSTITUCIONAL E INTERNACIONAL DO ESTADO NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SEGURANÇA CIDADÃ YureTenno1 YulganTenno2
1 INTRODUÇÃO O século XX foi palco da ascensão do Estado Constitucional Democrático caracterizado pela mudança de paradigma ocorrida no constitucionalismo contemporâneo, o qual deslocou o foco sobre o dogma do império da lei, migrando para o novo horizonte da supremacia e normatividade da Constituição. A consolidação desse movimento vem após a Segunda Guerra, momento a partir do qual foi largamente difundida a constitucionalização dos direitos fundamentais e a adoção de complexos sistemas de controle de constitucionalidade. Nesse momento também houve a chamada internacionalização dos direitos humanos. A Constituição Brasileira de 1988 (CRFB/88) está, assim, inserida em um contexto internacional de valorização do Direito como um todo, trazendo como consequência da supremacia constitucional e aressignificação do Judiciário frente aos demais Poderes. A força normativa da constituição exerceu influência na protagonização dos direitos fundamentais sobre a estrutura dos ordenamentos jurídicos estatais. Lado outro, apesar da força normativa homogênea de todas as regras e princípios constitucionais, as dimensões de direitos fundamentais produzem desafios próprios para sua efetivação, como consequênciade suas características intrínsecas. Assim, em virtude do carácter abstencionista da primeira geração de direitos, cuja formulação do corpo de liberdades públicas se baseia em normas de não fazer, a experiência demonstra que existe dificuldade maior na efetivação da segunda dimensão de direitos fundamentais, os quais determinam obrigações prestacionais do Estado para com a coletividade, baseando-se, assim, em um facere estatal.
1Advogado
e Graduado em Ciências Sociais e Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba. E-mail: yuretenno@gmail.com 2 Advogado e Graduado em Direito pela Universidade Federal Da Paraíba com educação continuada na Academia de Direitos Humanos e Direito Humanitário da Washington College of Law – American University. E-mail: yulganfarias@hotmail.com 13
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Quase um século depois de sua positivação na Constituição Mexicana (1917), os direitos sociais, econômicos e culturais, ainda são causas de insatisfação. A ineficiência do Estado em cumprir o programa constitucional é refletida no aumento da judicialização de demandas, cuja pretensão básica é a tutela desses direitos sociais, que enseja responsabilização internacional do Estado. No entanto, a intromissão do Judiciário nos processos decisórios de questões antes concernentes exclusivamente ao Executivo e Legislativo causa desconforto entre os três ramos de poder e tem levado a reflexões teóricas quanto à legitimidade do Judiciário para realizar tal tarefa, visto que a posição proativa dos tribunais, prima facie, entraria em confronto com dois argumentos básicos, quais sejam: (a) o princípio da separação dos poderes, desenvolvido por John Locke e Montesquieu;e (b) o argumento da Democracia, desenvolvido por Jeremy Waldron (COUTINHO, 2012, p.69-75). Diante de toda a problemática, este trabalho tem como objetivo estudar como o Supremo Tribunal Federal tem enfrentado o controle judicial das políticas públicas em geral, especialmente na seara da segurança pública. Na sequência, procuraremos, a partir da análise dos julgados do STF, tecer parâmetros objetivos para uma hermenêutica constitucional adequada à concretização do direito à segurança pública, desenvolvendo análise concernente a reserva do possível, o direito ao mínimo existencial consubstanciado em núcleo essencial dos direitos fundamentais e a proibição do retrocesso. Por último, definiremos o conceito de segurança cidadã, fazendo uma análise do contexto internacional, no afã de demonstrar como os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos entendem a segurança pública, para melhor entender qual o contexto da Paraíba frente aos dados do Mapa da Violência. 2 O CONTROLE JUDICIAL DAS POLÍTICAS PÚBLICAS NA VISÃO DO SUPREMO Atendendo a proposta do trabalho, não há espaço para análise minuciosa de um grande número de julgados. Por essa razão concentramos nossas forças nas decisões do Supremo Tribunal Federal, visto que a pesquisa se propõe analisar direitos de envergadura constitucional, restando claro que o acervo de julgamentos mais importante seria aquele da Corte Constitucional. Ainda assim, selecionamos o julgamento reputado pela doutrina como sendo o leading case do STF sobre a matéria, a ADPF 45.
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Centrando esforços na análise da aludida ação constitucional, também se procurou visitar outros julgados e lições doutrinárias com o intuito de esclarecer todos os critérios estabelecidos pelo Supremo para a aferição da legitimidade do controle judicial das políticas públicas. 2.1 JUSTICIABILIDADE DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS Antes de tudo, necessário esclarecer que o STF entendeu ser possível a interferência do judiciário em seara originalmente dominada pelo executivo e legislativo, fazendo nos seguintes termos (STF, 2004): É certo que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário - e nas desta Suprema Corte, em especial - a atribuição de formular e de implementar políticas públicas (JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 207, item n. 05, 1987, Almedina, Coimbra), pois, nesse domínio, o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo.Tal incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer, com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de cláusulas revestidas de conteúdo programático.
Pelo fio do exposto, o Supremo reconhece a excepcionalidade da intervenção judicial nas esferas de competência dos demais poderes, apenas quando tais Poderes vierem a desafiar a força normativa dos preceitos constitucionais, principalmente as normas programáticas. Vale assinalar, ainda, a posição da Suprema Corte sobre as normas programáticas, advertindo sobre seu valor jurídico constitucionalmente idêntico ao restante dos preceitos da constituição. Sendo assim, o Supremo coaduna com pensamento deCANOTILHO, quando aduz: “Não deve, pois, falar-se de simples eficácia programática (ou directiva), porque qualquer norma constitucional deve considerar-se obrigatória perante órgãos do poder político (Crisafulli)” (2003, p. 1.176-1.177). As normas consagradoras de direitos sociais, econômicos e culturais são, segundo alguns autores, normas programáticas. Isso significa que a Constituição irá definir fins ao Estado, relacionados à efetivação desses direito fundamentais, assim como também atribuir competências aos órgãos dos poderes para realização de determinados direitos sociais. Como bem esclareceu CANOTILHO (2003, p. 1.177).:
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Concretizando melhor, a positividade jurídico-constitucional das normas programáticas significa fundamentalmente: (1) vinculação do legislador, de forma permanente, à sua realização (imposição constitucional); (2) vinculação positiva de todos os órgãos concretizadores, devendo estes toma-las em consideração como directivas materiais permanentes, em qualquer dos momentos da atividade concretizadora (legislação, execução, jurisdição); (3) vinculação, na qualidade de limites materiais negativos, dos poderes públicos, justificando a eventual censura, sob a forma de inconstitucionalidade, em relação aos actos que as contrariam.
Compartilhando de mesma compreensão sobre o assunto, o eminente Ministro Relator da ADPF 45, Celso de Mello, propõe interpretação similar para legitimar a atuação da Suprema Corte na prevenção e reparação de graves violações a direitos sociais, econômicos e culturais. Nesse deambular, a ADPF traz conteúdo esclarecedor sobre a matéria, pois nela se afirma que a atribuição de guardião da Constituição conferida ao Supremo Tribunal Federal põe em evidênciaa dimensão política da jurisdição constitucional, principalmente no que se refere à proteção e efetivação dos direitos de segunda dimensão, sob pena de o Poder Público, por violação positiva ou negativa da Constituição, comprometer, de modo inaceitável, a integridade da própria ordem constitucional (STF, 2004). Pelo que foi dito acima, a Corte está a reclamar à vinculação dos poderes públicos às normas programáticas reguladoras dos direitos de segunda dimensão, vinculação esta que deverá ser respeitada sob pena de inconstitucionalidade negativa ou positiva dos atos que desafiam sua supremacia. Por outro viés, o problema dos direitos sociais reside no fato de que, além de estar contida em normas programa, a garantia de sua proteção jurídica pressupõe atuação positiva dos poderes públicos, realidade que levou parcela da doutrina a negar a exigibilidade desses direitos, chamados de direitos a prestação material (MENDES, 2013, p. 161-166). Diante da mudança paradigmática no tratamento de todos os direitos fundamentais, o STF se deparou com o problema da efetivação dos direitos sociais, assentando as bases hermenêuticas para tal. Não obstante a garantia de vinculação dos atos estatais às normas finalísticas e de organização, a efetivação dos direitos sociais está acoplada a um conjunto de condicionantes – econômicas, sociais e culturais - denominados de pressupostos de direito fundamentais (CANOTILHO, 2003, p. 473). De fato, ao contrário dos direitos civis e políticos, os direitos de segunda dimensão pressupõem custos em sua efetivação. Somente por meio de significativo investimento financeiro, o Estado poderá garantir direito à saúde, educação, segurança e moradia, por exemplo. “É preciso perceber, portanto, que a implementação dos direitos fundamentais sociais está vinculada 16
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à capacidade do Estado e é desta constatação que surge o chamado princípio da reserva do possível” (COUTINHO, 2012b, p. 33). Tal fato não passou despercebido pelas considerações inseridas na ADPF 45, conforme segue abaixo (STF, 2004): Não deixo de conferir, no entanto, assentadas tais premissas, significativo relevo ao tema pertinente à “reserva do possível” (STEPHEN HOLMES/CASS R. SUNSTEIN, “The CostofRights”, 1999, Norton, New York), notadamente em sede de efetivação e implementação (sempre onerosas) dos direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais), cujo adimplemento, pelo Poder Público, impõe e exige, deste, prestações estatais positivasconcretizadoras de tais prerrogativas individuais e/ou coletivas.É que a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende, em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada, objetivamente, a incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.
Ocorre, porém, que antes de adentramos na análise do princípio da reserva do possível, será salutar breve incursão na teoria das funções dos direitos fundamentais, para melhor compreensão do tema em debate. 2.2 DIMENSÃO PRESTACIONAL DO DIREITO SOCIAL A SEGURANÇA Os direitos fundamentais desempenham funções múltiplas na ordem jurídica. As diversidade de funções determinam peculiaridades estruturais que são refletidas nas diversas maneiras de efetivação desses direitos. Essas peculiaridades estruturais permitiram a construção, no âmbito da teoria geral dos direitos fundamentais, da classificação de suas funções em direitos de defesa, direitos à prestação e direitos à participação (MENDES et al., 2013, p. 156). Enquanto os direitos de defesa oferecem ao indivíduo proteção contra a ação do Estado, que, p. ex., invade âmbito de liberdade constitucionalmente protegido, os direitos de prestação impõem ao Estado o dever de agir para suprir as necessidades dos indivíduos e atenuar as desigualdades sociais. Como assevera MENDES et al. (2013, p. 159), “se os direitos a defesa asseguram as liberdades, os direitos prestacionais buscam favorecer as condições materiais indispensáveis ao desfrute efetivo dessas liberdades”. Sobre o tema, importante contribuição foi dada por CANOTILHO, ao apontar que “a função de prestação dos direitos fundamentais anda associada a três núcleos problemáticos dos
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direitos sociais, econômicos e culturais” (2003, p. 408), são eles: (a) o problema dos direitos originais; (b) dos direitos sociais derivados; (c) dos deveres de realizar políticas públicas socialmente ativas. Os dois primeiros problemas tratam da existência de direitos subjetivos dos particulares à prestações concretas pelo Estado, deduzidos diretamente dos mandamentos constitucionais ou indiretamente, por meio dos direitos derivadas da atividade legislativa concretizadora das normas constitucionais sociais. O terceiro problema, no entanto, trata da dimensão objetiva desses direitos, como normas que vinculam os poderes públicos para a realização de políticas públicas conducentes à criação de instituições e serviços, dentre outras utilidades, independentemente de pretensões particulares dos indivíduos. Diante disso, no terceiro problema se enquadra a segurança pública, que se impõe como um direito social (art. 6º, da CRFB) e dever estatal (art. 144, da CRFB) de criar política social para estruturação e aprimoramento desse serviço social fundamental. Do ponto de vista jurisprudencial, a primeira vez que o Supremo se manifestou de modo importante sobre o dever de segurança pública foi em 2011, no julgamento do Agravo Regimenta no Recurso Extraordinário 559.646. Naquela oportunidade a Corte manifestou entendimento consonantes com as considerações acima expostas, afirmando que (STF, 2011): O direito a segurança é prerrogativa constitucional indisponível, garantindo mediante a implementação de políticas públicas, impondo ao Estado a obrigação de criar condições objetivas que possibilitem o efetivo acesso a tal serviço. É possível ao Poder Judiciário determinar a implementação pelo Estado, quando inadimplente, de políticas públicas constitucionalmente previstas, sem que haja ingerência em questão que envolve o poder discricionário do Poder Executivo.
2.3 PARÂMETROS ESTABELECIDOS NA ADPF 45 PARA O CONTROLE JUDICIAL DAS POLITICAS PÚBLICAS Antes de mais nada é importante revisitar as críticas doutrinarias no tocante a expansão do Poder Judiciário. Enumeramos como os principais argumentos contrários à expansão do judiciário, de acordo com as reclamações mais recorrentes feitas sobre sua atuação. Encontramos as seguintes frentes argumentativas: (a) o judicial review faz com que as discussões sobre direitos percam sua conotação política, cedendo espaço para questões relacionadas ao universo jurídico, precedentes, textos normativos e filigranas hermenêuticas; (b) A decisões judiciais tem déficit de legitimidade,
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visto que se recente dos valores democráticos presentes nas organizações dos espaços políticos de discussão; (c) O poder judiciário pode causar comprometimento orçamentário dos entes públicos, exigindo que a administração realoque recursos, atingido algumas vezes outras metas e objetivos de igual importância, como aduz MENDES et al. (2013, p. 162), COUTINHO (2012a, p. 73-74), COUTINHO (2012b, p.25-44) e SOUZA (2013, p. 101-120). Sendo assim, para estabelecimento de critério seguro sobre atividade do judiciário, a jurisprudência do STF deverá enfrentar os argumentos acima, que se apresentam como obstáculo ao legítimo controle das políticas públicas. O primeiro argumento deve ser contextualizado na perspectiva do dirigismo constitucional. Sendo assim, toda a construção da Política de Estado deve antes ser informada pelos preceitos contidos na Carta Magna, realizando um plano constitucional intergeracional, pactuado na origem das instituições políticas e plasmado nas normas da Constituição. Diante disso, os direitos fundamentais que demandarem concretização por meio de ações legislativa ou administrativas não poderão ser ignorados no momento das tomadas de decisões realizado por esses poderes, sob pena de necessária intervenção judicial. Lado outro, a realização desses direitos foram deixados ao arbítrio dos Poderes Políticos, que também dispõe da chamada margem de apreciação (MENDES, 2013, p. 163). Tal margem de apreciação se afigura como um espaço discricionário de conformação da vontade constituinte, quer quanto às soluções normativas concretas quer quanto ao modo organizatório e ritmo de concretização. É por isso que fica a cargo do legislador e administrador a definição do modo e da extensão como se protegerão os direito fundamentais prestacionais, isto é, aqueles que necessitam de complementação normativa ou material para se operacionalizarem. Como foi dito acima, a margem de apreciação não pode esvaziar a eficácia normativa dos direitos fundamentais prestacionais. Eles servirão de parâmetro de controle de constitucionalidade em dimensão objetiva, operando como limite de poder e como diretriz para a sua ação. Como bem colocou o Ministro Celso de Mello, na ADPF nº 45(STF, 2004): O desrespeito à Constituição tanto pode ocorrer mediante ação estatal quanto mediante inércia governamental. A situação de inconstitucionalidade pode derivar de um comportamento ativo do Poder Público, que age ou edita normas em desacordo com o que dispõe a Constituição, ofendendo-lhe, assim, os preceitos e os princípios que nela se acham consignados. Essa conduta estatal, que importa em um facere (atuação positiva), gera a inconstitucionalidade por ação.Se o Estado deixar de adotar as medidas necessárias à realização concreta dos preceitos da Constituição, em ordem a torná-los efetivos, operantes e exeqüíveis, abstendo-se,
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em conseqüência, de cumprir o dever de prestação que a Constituição lhe impôs, incidirá em violação negativa do texto constitucional.
Sendo assim, em vista das críticas presentes na letra “a” e “b”, o Poder Judiciário deve evitar se imiscuir em esferas de atuação fora de sua competência, porém, diante do caráter dirigente da Carta Política brasileira de 1988, os Tribunais poderão excepcionalmente intervir nas linhas de decisão dos demais Poderes com o intuito único e exclusive de lembra-los do compromisso institucional de proteção e realização da vontade constituinte. No que diz respeito, porém, a crítica anunciada na alínea “c”, o julgamento da ADPF nº 45 trouxe uma série de princípios a serem observados em um sistema de balizamentos, cujo objetivo é orientar o judiciário na resolução de questões relacionadas a intervenção judicial nas políticas públicas, de acordo com as condições do caso concreto. Cabe analisar todos os princípios em jogo, a começar pela reserva do possível. 2.4 O INCONTORNÁVEL OBSTÁCULO DA RESERVA DO POSSÍVEL Como dito alhures, a primeira constatação que se faz ao se questionar sobre a efetividade dos direitos sociais é a direta dependência de recursos financeiros suficientes para a sua implantação. Ainda sobre o tema, importa observar que a teoria econômica atual trabalha com o binômio básico “escassez-necessidade”, inclusive para explicar o valor dos bens e utilidades, e assim a origem da riqueza (NUSDEO, 2013). Esse binômio também pode ser utilizado para explicar a impossibilidade real de plena efetivação dos direitos sociais. Ocorre que os direitos sociais expostos em normas de textura aberta, consistem em máximas de conduta ou fins a ser alcançados, eles não impõem ao Estado comportamentos definidos, mas sim atitudes, no sentido de suprir necessidades humanas determinadas, alocando recursos para tal. Entretanto, a teoria econômica compreende que as necessidades são infinitas, tanto extensivamente quanto intensivamente, logo mesmo que os direitos sociais restrinjam o âmbito de necessidades que deverão ser providas pelo Estado a sua plena satisfação nunca ocorrerá. Como os recursos que farão frente a essas necessidades são limitados surge o problema da escassez e com este a obrigação de gerenciar aqueles, selecionando as necessidades prioritárias e a forma de utilização dos recursos. Nisso consiste o fenômeno econômico (NUSDEO, 2013)
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Trazidos ao campo jurídico, as teorias econômicas importam em duas conclusões: (1) Não existe um grau máximo de efetivação dos direitos sociais; (2) diante do problema da escassez de recursos, o princípio da reserva do possível é uma realidade incontornável que deve ser lavada em consideração nas atividades estatais. A título ilustrativo, a implementação do direito a educação pode variar entre a universalização do ensino básico até o apoio financeiro integral para todos os estudantes de pósgraduação no Brasil e no exterior. Sobre o tema, é elucidativa a lição de BRANCO e MENDES, a seguir exposta (2013, p. 162): Na medida em que a Constituição não oferece comando indeclinável para as opções de alocação de recursos, essas decisões devem ficar cargo de órgão político, legitimado pela representação popular, competente para fixar as linhas mestras da política financeira e social. Essa legitimação popular é tanto mais importante, uma vez que a realização dos direitos sociais implica, necessariamente, privilegiar um bem jurídico sobre outro, buscando-se concretizá-lo com prioridade sobre outros. A efetivação desses direitos implica favorecer segmentos da população, por meio de decisões que cobram procedimento democrático para serem legitimamente formadas – tudo a apontar o Parlamento como a sede precípua dessas deliberações e, em segundo lugar, a Administração.
Face à realidade imposta ao tema, percebe-se a dificuldade em definir de modo objetivo o que pode e o que não pode ser razoavelmente exigido ao Estado Juiz. Especificamente, está-se a procura do grau de exigibilidade dos direitos fundamentais de segunda geração (COUTINHO, 2012b, p. 34). Em vista da complexidade das questões que abrangem os direitos sociais, principalmente no tocante ao espaço de conformação e ao princípio da reserva do possível, parece estreito o campo de atuação legítima do judiciário sobre os direitos de prestação material. No julgamento da aludida ADPF 45, ficou estabelecido que os condicionamentos impostos, pela cláusula da “reserva do possível”, ao processo de concretização dos direitos de segunda geração traduzem-se em um binômio que compreende, de um lado, (1) a razoabilidade da pretensão individual/social deduzida em face do Poder Público e, de outro, (2) a existência de disponibilidade financeira do Estado para tornar efetivas as prestações positivas dele reclamadas. Porém, o julgamento da ADPF 45, lança nova luz sobre o tema, abrindo espaço para a atuação judicial por meio da inclusão no debate do princípio do mínimo existencial. A seguir, com base na solução dada pelo julgamento da ADPF 45, enfrentaremos o tema de maneira a possibilitar a construção de um paradigma hermenêutico concretista, que se adeque à realidade fática e jurídica nacional.
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2.5 ATUAÇÃO DO JUDICIÁRIO PARA GARANTIR O MÍNIMO EXISTENCIAL E A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO Como vimos, a exigibilidade das prestações materiais dos direitos de segunda geração deve obedecer a certa razoabilidade, à reserva do possível e ao espaço de conformação do administrador/legislador. Seguindo essa linha, a Corte Suprema aprofundou a discussão para advertir que se os demais Poderes agirem de modo irrazoável ou procederem com a clara intenção de neutralizar a eficácia dos direitos sociais, por meio da inércia estatal ou de conduta governamental abusiva, comprometendo aquele núcleo essencial de direitos fundamentais, o qual proporciona condições mínimas para existência digna (mínimo existencial), aí, então, justificar-se-á a possibilidade de intervenção do Poder Judiciário, em ordem a viabilizar, a todos, o acesso aos bens, cuja fruição lhes haja sido injustamente recusada pelo Estado (STF, 2004). Vê-se que, passados mais de dez anos desde o julgamento da ADPF 45, a doutrina desenvolveu novas perspectivas sobre o tema, principalmente pelo desenvolvimento dos princípios aplicáveis ao caso. No tocante ao princípio da reserva do possível, o doutrinador Carlos Mardem Cabral Coutinho, desenvolveu-o no sentido de reconhecer um viés negativo e outro positivo, que decorre da própria natureza dos direitos fundamentais de segunda geração. Com efeito, enquanto a reserva do possível fixa o grau de exigibilidade de direitos com base no limite de recurso que dispõe o Estado para garantir sua concretização, dessa mesma premissa decorre o viés positivo, qual seja aquele segundo o qual o Estado está obrigado a efetivar os direitos fundamentais de segunda geração até o limite de suas possibilidades (COUTINHO, 2012, p. 36-37). Nesse jaez, a reserva do possível em caráter positivo poderá servir de base para que o cidadão exija um controle finalístico das políticas públicas dentro das condições financeiras estatais, possibilitando incremento constante de sua efetividade diretamente proporcional ao nível de crescimento financeiro do Estado, observando a conjuntura dos desafios sociais para que seja feita a seletividade dos serviços com base no limite do razoável3. Tal posição é consentânea com trabalho desenvolvido pela advogada Juliana Maia Daniel, que conclui seu trabalho sobre a discricionariedade do administrador (espaço de conformação de direitos sociais), do seguinte modo: Numa visão sistemática consentânea com a supremacia da ordem constitucional, o mérito do ato, por via reflexa, pode ser inquirido, efetuando-se o controle de arbitrariedade por ação ou omissão do agente estatal. Essa é a razão pela qual o controle sistemático pode ser realizado com maior rigor, uma vez que a discrição existe para que o agente concretize com maior presteza as finalidades vinculantes da Constituição Dirigente. Logo, obrigatoriamente os atos administrativo – vinculados ou não – devem ser constitucionalmente justificáveis. (DANIEL, p. 25). 3
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Tal releitura já representa um avanço em relação à visão clássica do princípio, porém para que haja uma aplicação prática funcional, duas considerações são exigidas. Em primeiro lugar, deve-se destacar o respeito ao núcleo essencial dos direitos fundamentais, neste caso os sociais, para indicar que todos os direitos fundamentais têm um mínimo de concretude que deve ser preservado, sob pena de descaracterização do próprio direito, bem como comprometimento da dignidade humana. Esse núcleo essencial de direitos, que coincide com o mínimo existencial, faz com que o próprio direito possa ser reconhecido como existente, de maneira que, sem a presença dessa efetivação mínima, é impossível dizer que está sendo assegurado direito fundamental (COUTINHO, 2012, p. 37-38). Observa-se que essa obrigação é factível com o viés positivo da reserva do possível, vez que obriga o Estado a efetivar direitos sociais no limite do factível. Ao apurar os elementos fundamentais que constitui o núcleo mínimo garantidor da dignidade humana, estar-se-ão estabelecendo exatamente as prioridades dos gastos públicos. Apenas depois de atingi-los é que se poderá discutir, relativamente aos recursos remanescentes, em que outros projetos se deverão investir (SOUZA, 2013, p. 101-120). Porém, além do mínimo de investimento em politicas públicas para a manutenção do núcleo essencial de direitos, o judiciário também estará obrigado a atuar nos casos de retrocessos no âmbito de proteção desses direitos. Com efeito, para além de um mínimo existencial, o judiciário deverá observar o cumprimento das normas de direito social pelo prisma do princípio da proibição do retrocesso. Enquanto há uma vinculação de melhora progressiva da oferta dos direitos sociais, isso significa que o Poder Público não poderá retroceder nos avanços sociais já conquistados, uma vez que nega direito social ao cidadão que comprovadamente é possível efetivar. Trata-se de um princípio ínsito à lógica dos direitos fundamentais, visto que uma vez concretizados os avanços sociais na efetivação desses direitos, não será possível retroceder, extinguindo deliberadamente avanços conquistados, uma vez que a concretização desses direitos é a ressignificação dos mandamentos constitucionais, visto na perspectiva do projeto intergeracional da Constituição. Retroceder significaria negar a supremacia da vontade constituinte. Feitas essas considerações, segue abaixo gráfico que tentará traduzir a forma como todos os institutos devem se relacionam, em visão holística sobre o tema:
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Viés negativo Impossibilidade
Impossibilidade prática
Controle finalístico e de razoabilidade
Razoabilidade ou limites financeiros Viés Positivo
Âmbito de Exigibilidade Jurídica
Espaço de conformação Reserva do possível Figura nº 1.
3 A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO FRENTE À MÁ Proibição do Retrocesso PRESTAÇÃO DO DIREITO SOCIAL À SEGURANÇA CIDADÃ A segurança pública, durante o período antidemocrático da América Latina, foi entendida como uma forma de garantir a ordem numa expressão da força policial do Estado, ou seja, uma Mínimo existencial atividade constituída para repreender o crime.
Segundo Sabadell (2003, p. 9), as políticas de segurança (núcleo essencial de direitos) dos Estados se fundamentavam na erradicação da violência por meio de uma luta sanguinária contra a criminalidade; é dizer, políticas que visam legitimar a repressão do Estado em busca de uma insaciável necessidade de segurança. Contudo, a evolução da democracia revela a necessidade de se tratar a segurança pública através do prisma dos direitos humanos4, uma vez que seu conceito vai além do que a mera capacidade repressora do Estado na aplicação da lei penal.
Segundo dispõe o relatório Temática da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a segurança cidadã possui um conceito que “deriva pacificamente de um enfoque na construção de maiores níveis de cidadania democrática, tendo a pessoa humana como objetivo central das políticas, de maneira diversa da visão de segurança do Estado ou de determinada ordem política. Nesta ordem de idéias (sic), a Comissão entende pertinente recordar que a expressão segurança cidadã surgiu, fundamentalmente, como um conceito na América Latina no curso das transições para a democracia, como um meio para diferenciar a natureza da segurança na democracia frente aos moldes de segurança utilizados nos regimes autoritários.” (CIDH, 2009, pág. 21). 4
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Isso porque o entendimento atual é de que a segurança deve ser entendida como um conjunto harmônico de direitos e garantias constitucionalmente (CORREA, 2010, p.54) e internacionalmente previstos. Como exposto acima, a CRFB/88, em seu artigo 6º e artigo 144, considera a segurança um direito social dos cidadãos e dever do Estado e da sociedade. Para a nova democracia, no contexto interamericano, a segurança cidadã pressupõe o exercício da dignidade da pessoa humana através de um ambiente sadio em que seria possível a concretização de um projeto de vida (Corte IDH, 1997, p. 147), sem que o estado constante de medo resulte num obstáculo ao gozo do direito à vida lato sensu, tendo em vista que apesar de ser um direito social autônomo, a segurança está associada aos direitos mais caros da humanidade, relativo às extensões da dignidade. No Brasil, muitos estudiosos têm desenvolvidos conceitos, como o de segurança social ou direito à segurança, que, finalmente, querem significar o mesmo, resultando na efetivação dos direitos sociais. Como aduz Correa (2010, p. 55): Há uma tendência, no Brasil, de ampliação do conceito de segurança pública. Muitos estudiosos já estabelecem um direito de segurança pública ou um direito à segurança, cuja abrangência vai além da segurança policial (prevenção e repressão) propriamente dita, desvinculando a ideia única de polícia, à busca da efetivação dos direitos sociais e culturais no atual modelo de Estado Democrático de Direito.
Nessa esteira, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos - CIDH, em relatório temático sobre o tema (CIDH, 2009), estabeleceu a extensão do termo segurança cidadã, para se chegar a uma forma contemporânea de compreender a segurança pública, cada vez mais condizentes com o novo Estado Constitucional Democrático de Direito. Com efeito, entende a Comissão que a segurança cidadã consiste na possibilidade da pessoa “desenvolver sua vida cotidiana com o menor nível possível de ameaças à sua integridade pessoal, a seus direitos civis e ao gozo de seus bens” (CIDH, 2009, pár. 23). Aduz, ainda, que o Estado deve oferecer proteção contra o crime e a violência social, que resulta na grave interrupção da relação básica entre governantes e governados. Indo além, a segurança cidadã possui previsão convencional em diversos tratados internacionais de direitos humanos5 e sua natureza jurídica é de direito humano de segunda dimensão, pertencente aos direitos econômicos, sociais e culturais (CRFB/88, artigo 6º). Artigo 3 da Declaração Universal dos Direitos Humanos: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; do artigo 1 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem: “Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança de sua pessoa”; do artigo 7 da Convenção Americana sobre Direitos 5
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Delimitada sua abrangência, cumpre comprovar que o direito social à segurança cidadã pode ser exigível frente aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil. Assim, neste capítulo, abordar-se-á a justiciabilidade do direito à segurança cidadã e as consequências no que tange o direito à vida e à integridade física. Por fim, será feito um paralelo com a realidade do Estado da Paraíba, no contexto da violência, segundo os dados do Mapa da Violência de 2014. 3.1 A EXIGIBILIDADE DO DIREITO SOCIAL À SEGURANÇA Na concepção do professor Antônio Augusto Cançado Trindade (1997, p. 354), na fase legislativa de elaboração dos Pactos Internacionais de Direitos Humanos, adotado em 1966, alguns autores sustentavam a imediatidade de aplicação dos direitos civis e políticos e uma aplicação unicamente progressiva dos direitos econômicos, sociais e culturais. A visão de outrora era de que existiam duas categorias distintas de direitos, um imediatamente aplicável (os direitos de primeira dimensão) e outro que seria aplicável de forma progressiva, ou seja, de exigibilidade não imediata (os direitos econômicos, sociais e culturais). Como consequência, os direitos de segunda dimensão perdiam sua densidade jurídica, pois, na prática, não poderiam ser exigidos em juízo de forma imediata, estando condicionado a aplicação progressiva e aos recursos financeiros do Estado, como apontou a Corte Europeia de Direitos Humanos - Corte EDH, no caso Airey (1979, pár. 26). Restavam, portanto, dependentes dos direitos de primeira dimensão para garantir o mínimo de eficácia. Adicionalmente, os direitos econômicos, sociais e culturais ganharam importância devido à evolução do conceito de mínimo existencial6, consagrado no sistema internacional como elemento que induz a responsabilidade internacional do Estado em matéria de direitos de segunda dimensão (INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS et al, 1997, guideline 9)7.
Humanos: “Toda pessoa tem direito à liberdade e à segurança pessoais”; e do artigo 9 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos: “Todo indivíduo tem direito à liberdade e à segurança da sua pessoa”). 6 No original, dispõe o documento: “The first conceptual element that assists in determining the responsibilities of a State in relation to ESC rights is the idea of core content (also called minimum core content, minimum core obligations,39 minimum threshold or „essential content‟, as it is known in the German constitutional tradition and the traditions which flow from it). This concept entails a definition of the absolute minimum needed, without which the right would be unrecognizable or meaningless”(International Commission of Jurists, 2008, p. 23). 7Sobre o Minimum core obligations, aduz: “9. Violações ao Pacto ocorrem quando um Estado se recusa a satisfazer o que o Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais se referiu como „uma obrigação fundamental de assegurar a satisfação de, pelo menos, níveis mínimos essenciais de cada um dos direitos [...]. Tais obrigações mínimas essenciais são aplicáveis independentemente da disponibilidade de recursos do país em questão ou quaisquer outros fatores e dificuldades.‟” (tradução livre).
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A assim chamada minimum core obligations implica fixar um limiar mínimo necessário, sem o qual o direito civil seria irreconhecível ou sem sentido (INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS, 2008, p. 23). Diante disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), em sede do leading case Acevedo Buendía et al. v. Peru, cristalizou o entendimento de que os direitos econômicos, sociais e culturais possuem a mesma exigibilidade (força normativa) que os direitos civis e políticos (Corte IDH, 2009, pár. 101). Em seu teor (pár. 100), aludiu que o artigo 26 da CADH – que trata dos direitos econômicos, sociais e culturais – encontra-se na parte referente às “Obrigações Estatais e Direitos Protegidos”, o que, indiscutivelmente, pacifica as alegações de que os direitos de segunda dimensão não seriam exigíveis. A Corte destacou, ainda, que o artigo 26 da CADH pode ser acionado autonomamente em um processo judicial (justiciável), transformando os direitos econômicos, sociais e culturais em realidades concretas (BURGORGUE-LARSEN, TORRES, 2011, p. 620). Com isso, surge a fonte dos direitos de prestações positivas, que estabelecem verdadeiros programas convencionais que direcionam a atuação do Estado. Dentre os referidos direcionamento, encontra-se o dever de prestar a segurança cidadã, por força do artigo 26 c/c artigo 7º da CADH, no intuito de garantir o respeito aos serviços sociais mínimos (TRINDADE, 1991, p. 365) para o gozo do direito de dignidade da pessoa humana. Com relação a segurança cidadã, constata-se que o aumento na taxa de homicídios entre os jovens do Brasil gera uma situação grave que atinge o projeto de vida dessa categoria. Nesse sentido, o crescimento explosivo das taxas de homicídio na citada classe social em específico – adolescentes de 15 a 29 anos – denota que o Estado brasileiro permanece negligenciando a prestação do direito social à segurança cidadã aos jovens que tem a vida ceifada por conta da violência, como demonstra os dados do Mapa da Violência no Brasil de 2014 (WAISELFISZ, 2014, p. 36). Diante disso, a classe afetada pela omissão do Estado caracterizaria uma violação ao direito transindividual à segurança, passível de tutela judicial (MAZZILLI, 2013, p. 140), tendo em vista o dano real à vida e à integridade física à classe de jovens. Tal afirmação demonstra a existência de uma intrínseca relação entre os direitos civis e políticos e os de segunda dimensão, devido à própria natureza jurídica equivalente desses direitos humanos, que se complementam entre si (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2013, p. 270).
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Até porque se reconhece que sem os direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos teriam pouco sentido (TRINDADE, 1991, p. 355). 3.2 O LIMIAR MÍNIMO E A RESPONSABILIDADE INTERNACIONAL DO ESTADO FRENTE À MÁ PRESTAÇÃO DO SERVIÇO DE SEGURANÇA A doutrina do mínimo existencial foi desenvolvida pelo Tribunal Constitucional Alemão, a qual estabelece que o Estado é obrigado a fornecer assistência que garanta às pessoas necessitadas uma vida digna (INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS, 2008, p. 24)8. Nessa toada, diante dos números alarmantes sobre a violência no País, poderia se cogitar a responsabilidade internacional do Estado frente à omissão na prestação da segurança cidadã aos jovens, uma vez que, em alguns locais, já se tornou improvável ter uma vida digna, porque o jovem se encontra constantemente ameaçada pelos homicídios, tráfico de drogas, desaparecimentos. Com efeito, a responsabilidade internacional do Estado frente às Cortes Internacionais de Direitos Humanos surge quando aquele viola dispositivos internacionais consagrados. In casu, a Corte IDH erige a responsabilidade internacional do Estado sempre que seus agentes violem garantias objetivas presentes na Convenção Americana sobre Direitos Humanos – CADH (MAZZUOLI, 2013, p. 938). Todavia, não só os agentes públicos, mas a ação de agentes privados pode levar à responsabilidade internacional do Estado, não por conta do ato em si, mas devido à omissão em prestar a devida diligência para que o fato danoso não ocorresse (CORTE IDH, 1988, pár. 172). Dessa forma, à luz do limiar mínimo desenvolvido em âmbito internacional9, a perpetuação da banalidade do crime, gerando constantes homicídios entre os jovens, viola o artigo 26 (direitos econômicos sociais e culturais) c/c art. 4º (direito à vida e ao projeto de vida), art. 5º (direito à integridade pessoal), art. 7º, I (segurança pessoal) além da violação ao art. 1.1
8O
Tribunal Constitucional Alemão sustentou que "é dever do Estado garantir as condições mínimas existenciais que fazem uma existência digna possível", o que encontra suporte no princípio fundamental da dignidade humana (artigo 1 (1) da Constituição alemã ou Lei Fundamental) em conjunto com o princípio do estado de bem-estar social (artigo 20 da Constituição alemã) [BVerfGE 45, 187 (229)] International Commission of Jurists, 2008, p. 24). 9 Tratando de direito à saúde, no caso Free Legal AssistanceGroupandOthers v. Zaire (1995), a Comissão Africana entendeu que o fracasso do governo em fornecer serviços básicos necessários para um padrão mínimo de saúde, tais como água potável e energia elétrica, e a falta de medicamentos constitui uma violação do direito ao gozo do melhor estado possível de saúde física e mental ea obrigação do Estado para tomar as medidas necessárias para proteger a saúde do seu povo, tal como estabelecido no artigo 16 da Carta (grifo nosso) (Centre on Housing Rights & Evictions, 2009, p.15).
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(obrigação de respeitar os direitos) e 2º (dever de adotar disposições de direito interno) da CADH. 3.3 A SEGURANÇA DA PARAÍBA NO CONTEXTO DO SISTEMA INTERAMERICANO DE DIREITOS HUMANOS De fato, a situação da segurança pública no Brasil atingiu níveis alarmantes na primeira década do século XXI. A conjuntura é ainda mais expressiva com relação aos jovens (entre 15 e 29 anos). Consoante dados do Mapa da Violência, de todas as mortes de pessoas nesta faixa etária, 38,7% foi ocasionada por homicídios, em 2012; já na população não jovem, a taxa é de 2,4% (WAISELFISZ, 2014, p.27). A marca demonstra que “o futuro da nação” vem sendo morto brutalmente, vítima da omissão do Estado em prestar-lhe segurança cidadã, a qual se consubstancia em educação, cultura, emprego, dignidade. Nesse sentido, os jovens são atraídos para o tráfico de drogas, assaltos e, até mesmo, obrigados a matar para se verem livres de dívidas, contribuindo para o aumento da violência. Com relação ao Estado da Paraíba, o mesmo Mapa aponta que o ente federativo é o 8º (oitavo) na taxa de homicídios por 100 (cem) mil habitantes no triste ranking da morte (WAISELFISZ, 2014, p.36). Ressalta-se que este Estado Federativo, até pouco tempo, apresentava percentuais moderados, abaixo da média nacional, e agora passa a ter destaque na nova configuração da morte. Ainda interpretando os dados, a Paraíba não se mostra sensível a nova realidade negativa que se instala, vez que o nível de crescimento dos homicídios entre a população jovem atinge índices críticos, levando o Estado a ocupar o 5º (quinto) lugar nacional na evolução do índice de assassinatos, na primeira década no século XXI, com a progressão de 140,0% (WAISELFISZ, 2014, p.41). No que se refere à capital, João Pessoa, os números se avultam ainda mais. Conforme dados da violência, a cidade ocupa o 3º (terceiro) lugar na ordem das capitais em todo o Brasil segundo a taxa total de homicídios (WAISELFISZ, 2014, p.51). Nessa esteira, aduz a Corte IDH (1988, pár 166): A segunda obrigação dos Estados Partes é "garantir" o livre e pleno exercício dos direitos reconhecidos pela Convenção a toda pessoa sujeita à sua jurisdição. Esta obrigação implica o dever dos Estados Partes de organizar todo o aparato governamental e, em geral, todas as estruturas através das quais o poder público é
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exercido, de modo que eles sejam capazes de assegurar juridicamente o livre e pleno exercício dos direitos humanos. Como consequência dessa obrigação, os Estados devem prevenir, investigar e punir toda violação dos direitos reconhecidos pela Convenção e, além disso, se possível tentativa de restaurar o direito violado e prover a compensação cabível pelos danos resultantes da violação. (Grifo nosso).
Na realidade brasileira, em que o percentual de elucidação dos crimes de homicídio varia entre 5% e 8% - dados de 2011 - (WAISELFISZ, 2013, p. 55), não é correto dizer que o País é diligente quanto à prestação do direito social à segurança cidadã. Aliás, a Comissão IDH entende que os autos níveis de impunidade atentam contra o direito à vida dessas pessoas (2009, p. 44). Para tanto, não merece guarida o argumento que indica que agentes não estatais são responsáveis pelo caos social relativo à violência, na tentativa de, com isso, afastar a responsabilidade do Estado; uma vez que o guideline18, de Maastricht, indica que a falta de diligência do Estado em conter a atuação dessas entidades privadas é hipótese de responsabilidade internacional (INTERNATIONAL COMMISSION OF JURISTS et al, 1997). A Comissão IDH pontua que o alcance do conceito jurídico de obrigações positivas dentro do Sistema Interamericano se complementa pelo artigo 2º da CADH, que estabelece o dever de adotar disposições de direito interno para tornar efetivo os direitos e liberdades previsto neste Pacto (Comissão IDH, 2009, p. 14). A Corte IDH elucidou, em seu largo jurisprudencial10, que o dever geral do artigo 2º da CADH implica na adoção de medidas em dois eixos: por um lado, a supressão das normas e práticas de quaisquer natureza que atentem contra as garantias previstas na Convenção e, por outro, a expedição de normas e o desenvolvimento de práticas que conduzam à observância de mencionadas garantias. Dessarte, o direito à vida é transigido de forma lancinante pelo Estado. Conforme lumiou a Comissão IDH (2009, p. 44), a falta de adoção de medidas eficazes frente às ações de particulares, por meio do descumprimento do dever de implementar políticas públicas sobre segurança cidadã, ameaçam o direito à vida das pessoas que habitam o seu território. Na linha do estabelecido pela Comissão (2009, p. 44), “É obrigação dos Estados prevenir razoavelmente, investigar e sancionar as atuações que impliquem em violação ao direito à vida, inclusive as cometidas por agentes estatais ou particulares.” Corte I.D.H., Caso Castillo Petruzzi e outros Vs. Peru. Sentença de 30 de maio de 1999, Série C No. 52, par. 207; Caso Baena Ricardo e outros Vs. Panamá. Competência. Sentença de 28 de novembro de 2003, Série C No. 104, par. 180; Caso Cantoral Benavides Vs. Peru. Sentença de 18 de agosto de 2000, Série C No. 69, par. 178; Caso La Cantuta Vs. Peru. Sentença de 29 de novembro de 2006, Série C No. 162, par. 172. 10
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Tratando da criminalidade entre os jovens, e pela relevância do pronunciamento, faz-se necessário colacionar, em seus exatos termos, o que entende este órgão interamericano: O incremento da criminalidade na região, especialmente nas modalidades que incorporam um maior grau de violência contra as pessoas, constitui‐se em uma das principais ameaças ao direito à vida. Como já mencionado neste relatório, os maiores níveis de vitimização verificados dizem respeito a adolescentes e jovens dos setores de ingressos médios e baixos da população, e às mulheres. Contudo, a criminalidade e as diferentes formas de violência interpessoal e social, colocam em risco o direito à vida de todas as pessoas que integram a sociedade, independente da faixa etária ou setores sociais. A Comissão deseja mencionar, especialmente, que o Estado, de acordo com suas obrigações positivas em matéria de garantia e proteção dos direitos humanos, deve desenhar e implementar, dentro de sua política pública sobre segurança cidadã, planos e programas eficazes de prevenção, que tenham como objetivo diminuir o risco de reprodução da violência e da criminalidade, ao fazer efetivos todos os recursos necessários para perseguir os autores de crimes e colocá-los à disposição dos organismos do sistema judicial, especialmente os casos que envolvem violência contra as pessoas. (Grifo nosso).
Dessa forma, o aumento dos homicídios de jovens na Paraíba se mostra como a principal ameaça ao direito à vida da população. Faz-se necessário o estabelecimento de programas sociais tendentes à implementar a segurança cidadã real, para que as taxas se reduzam. Pari passu, os jovens são a principal peça do futuro de uma nação. Portanto, o Estado deve imprimir ações tendentes a diminuir os homicídios em geral, sobretudo nesta classe, sob pena de ser responsabilizado internacionalmente frente a sua falta de diligência quanto à prestação do direito social à segurança cidadã. 4 CONCLUSÃO Expostas as considerações, conclui-se quenenhum Estado pode se eximir de prestar o direito social à segurança cidadã, ainda mais sob o argumento de que não possui reservas financeiras para tanto, quando se encontra ameaçado o núcleo essencial inviolável de direitos humanos (minimum core obligation). Tem-se em mente que os direitos humanos possuem um mínimo de concretude que deve ser preservado sob pena de comprometimento da dignidade da pessoa, provocando responsabilidade internacional. Tal assertiva, objetiva evitar a expansão excessiva do argumento da reserva do possível a qual resultaria, em termos práticos, no abandono do compromisso que deve ter o Estado com a efetivação dos direitos de segunda dimensão, à luz dos ditames constitucionais e convencionais.
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Com inteligência, o Supremo e a Corte IDH firmaram entendimento de que a segurança cidadã se consubstancia no dever do Estado em criar serviços necessários à preservação mínima da ordem pública, incolumidade pessoal e do patrimônio. Nesse sentindo, os dados referentes à violência na Paraíba demonstram uma omissão crônica do Estado em prover o mínimo de segurança pública para que os jovens realizem seu projeto de vida. Assim, a crescente onda de homicídios constantes no ente federativo demanda uma reorganização dos serviços de segurança pública, principalmente quando os dados apresentados implicam recortes específicos em setores sociais. Desta forma, diante da inércia do poder público em reverter o quadro fático, configura-se a inconstitucionalidade progressiva por omissão e a flagrante inconvencionalidade por desrespeito aos compromissos internacionais subscritos pelo Estado brasileiro. REFERÊNCIAS CANOTINHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 7ª ed. Coimbra: Edições Almedina, 2003. CENTRE ON HOUSING RIGHTS & EVICTIONS. Leading Cases on Economic, Social and Cultural Rights: Summaries. Working Paper No. 7 ESC Rights Litigation Programme. The Netherlands, 2009. Disponívelem: <http://www.un.org.kg/en/post-2015/article/documentdatabase/un-system-in-kyrgyzstan/human-rights-and-human-rights-based-approach/112housing/2186-cohre-leading-cases-on-economic-social-and-cultural-rights-summaries-eng>; acessoem: 27 ago. 2014. COMISSÃO AFRICANA DE DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS. Free Legal Assistance Group and Others v. Zaire. Comm. Nº 25/89, 47/90, 56/91, 100/93. 1995. COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Relatório sobre a segurança cidadã e direitos humanos. OEA, documentos oficiais, 2009. Disponível em: <http://cidh.oas.org/pdf%20files/SEGURIDAD%20CIUDADANA%202009%20PORT.pdf> Acesso em: 26 ago. 2014. CORREA, Michele Alves. A adequação da atividade de segurança pública no estado democrático de direito: os desafios no combate à criminalidade e a busca pela eficiência do sistema policial. In.: Cardenos de Segurança Pública. Ano II, nº 1, agosto 2014. P. 49-59. Disponível em: <http://www.isp.rj.gov.br/revista/download/Rev20100105.pdf> , acesso em: 28 ago. 2014.
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MONITORAMENTO ELETRÔNICO DE PRESOS: A INTEGRAÇÃO ENTRE TECNOLOGIA E CORPO COMO MECANISMO DE BIOPODER Laryssa Mayara Alves de Almeida1 Vinícius Leão de Castro2
1 INTRODUÇÃO O ser humano, durante toda a história da sociedade, sempre buscou punir as pessoas que apresentassem comportamento desviante do estabelecido. Com isso, além de determinar quais condutas são corretas, a punição aparece como meio de persuasão, pois, pretende vincular práticas sociais a castigos, logo, atravessando instituições atinge-se o controle de corpos. Nesse sentido é importante observar que a aplicação do monitoramento eletrônico não está fundamentada a priori nas ciências biológicas, mas trata-se de construções de poder, ou seja, constatou-se que as relações de poder e os seus efeitos são potencializados a partir de certas tendências de punição e controle. Assim, a punição pode ser descrita como elemento catalisador de transformações sociais de modo que a transição entre a sociedade penal e a sociedade disciplinar é marcada pelo distanciamento dos suplícios e das exposições públicas que se concentravam no corpo do infrator para centrar-se nas suas virtualidades, aquilo que eles ainda podem fazer e em razão deste fato a prisão é introduzida como novo tipo de punição. Entretanto, a utilização dos diversos tipos de punição não serviu ao ajustamento social pretendido a não ser pelo fato de corroborar discursos em torno do equilíbrio social e da ressocialização, por causa disso, vozes que defendem a humanização do sistema penitenciário apareceram cada vez em maior número. Este acontecimento deve ser entendido como transformação dos mecanismos de poder que se deslocam do indivíduo à população ressiginificando o corpo em processos biológicos de conjunto a fim de ampliar o controle sobre a vida em seu sentido mais amplo e consequentemente evitar com maior eficiência os desvios. Advogada. Especialista em Direito. Pesquisadora nas áreas de Processo constitucional; Direitos e Garantias fundamentais e Remédios Constitucionais. Diretora do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito CIPED. E-mail: laryssalmeida@gmail.com. 2 Aluno do Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Pesquisador nas áreas de Filosofia do Direito; Teoria do Estado e da Decisão Judicial. Diretor do Centro Interdisciplinar de Pesquisa em Educação e Direito – CIPED. E-mail: viniciusleaocastro@gmail.com. 1
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Desse modo o paradigma3 do panóptico é progressivamente substituído por formas de controle alternativas nas quais os indivíduos não precisam estar encarcerados para serem controlados, como reflexo dos mecanismos de biopoder que passam a ser empregados. Neste espaço está inserida a discussão em torno do monitoramento eletrônico como nova forma de controle daqueles que se desviam, por isso, pretende-se analisá-lo como novo significado para punição no qual corpo e tecnologia recebem unissonamente os efeitos do biopoder ao mesmo tempo em que as relações sociais sofrem alterações. Destacar novo ponto de vista a respeito da alternativa encontrada pelas vozes que pretendem humanizar tudo e todos é trazer a observação das transformações que ocorrem na sociedade, isto é, defender a crítica em relação às realidades que estão postas, tentar com isso ampliar a relação de auto-observação que é necessária ao pesquisador. Este é o contexto no qual se indaga sobre onde o direito à segurança esbarra na vigilância e transforma-se na segurança pública para o controle? Em outros termos, como o monitoramento eletrônico enquanto mecanismo de biopoder reflete um controle que é para toda sociedade? Vale salientar que a preocupação desta pesquisa se distancia de prós ou contras em termos de políticas públicas a fim de trazer o foco para os arranjos entre relações de poder na sociedade da informação a partir do monitoramento eletrônico de presos assim como da dicotomia segundo a qual existem coisas boas ou más, exclusivamente. Este trabalho caracteriza-se por seu caráter teórico, com posição crítica e interdisciplinar, utilizando do método observacional com o intuito de explicar as relações do fenômeno (monitoramento eletrônico de presos) com outros contextos (biopoder). 2 PUNIÇÃO E ESTRATÉGIAS DE PODER A pena é a punição político-jurídica adotada pelo Estado para adequar os comportamentos desviantes. O direito penal possui como um dos seus objetos de estudo a finalidade em empregar tal instrumento, declarando-o como um fim em si mesmo ou um meio para prevenção de novos acontecimentos desviantes.
A legislação brasileira4 declara que a pena serve a ambas as funções, estabelecendo quais são as condutas aceitáveis de tal maneira que, em tese, pune os desvios e previne as virtualidades. Nesta pesquisa utiliza-se o conceito de paradigma de Thomas Kuhn (1970, p. viii): “[...] These I take to be universally recognized scientific achievements that for a time provide model problems and solutions to a community of practitioners”. Em uma tradução livre: “[Considero „paradigmas‟] as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. 3
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Certamente que a sanção por si mesma já demonstra a atuação do Estado em face do delito praticado, porém a prevenção do crime é algo mais complexo, tendo em vista que não é suficiente a ameaça de punição para impedir que crimes sejam praticados. Dessa maneira é essencial questionar se as respostas fornecidas pelo Estado e pelo direito são suficientes para evitar a prática delituosa, em outras palavras, como estas respostas estão inseridas em uma estratégia de poder? Em torno do aprisionamento como resposta é visível o ajustamento da lei penal em torno do sujeito como movimento da sociedade disciplinar a fim de controlar suas virtualidades, desse modo, a pena não funciona para concretizar o bem comum, contudo para ampliar o controle sobre o comportamento das pessoas. Então, o instrumento punitivo concretiza-se ao funcionar por meio de diversas instituições (escola, hospital, polícia etc.) que objetivam vigiar e corrigir os indivíduos “do que são capazes de fazer, do que estão sujeitos a fazer, do que estão na iminência de fazer”5. Nesse ínterim a gênese da prisão já está atrelada ao seu “insucesso” e a respostas insuficientes e inadequadas do Estado e do direito quando relacionadas a elementos como ressocialização ou prevenção, por motivos, como, por exemplo, aumento da criminalidade, reincidência, contribuição à organização criminosa e estigmatização daquele que cumpre a pena. Mas, caso a questão seja deslocada destas finalidades para esmiuçar a prisão dentro de uma estratégia de poder observa-se que o “fracasso” do sistema carcerário é propositalmente construído e mantido pelo fato da pena constituir uma forma de “[...] gerir as ilegalidades, de riscar limites de tolerância, de dar terreno a alguns, de fazer pressão sobre outros, de excluir uma parte, de tornar útil outra, de neutralizar estes, de tirar proveito daqueles”6. Por essas razões a prisão alcança seu sucesso ao produzir a delinquência-objeto7 porque as causas para o seu “insucesso” são reflexos da ampliação do controle sobre as pessoas, em outros termos, a lei penal ao determinar as condutas aceitáveis restringe os crimes a práticas específicas com o propósito de constituir esta gestão das ilegalidades. A improbidade administrativa é exemplo de proibição legal que promove o aparecimento de práticas ilegais, como caixa dois e licitação fraudulenta, as quais são controladas pelo direito e organizadas em torno de regras legais que disciplinam a contribuição privada para campanhas políticas e a própria licitação assim como de costumes ilegais, quais sejam a lavagem de dinheiro e Cf. Artigo 59 do Código Penal Brasileiro de 1940. FOUCAULT, 2009, p. 85. 6 Id., 2007, p. 226. 7 Forma política e econômica mais utilizável e menos perigosa da ilegalidade, por isso dominada, que produz o delinquente enquanto sujeito patologizado (Ibid.). 4 5
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a utilização de terceiros nos procedimentos de legalização (“laranjas”), como resultado encontrase lucro ilícito que pode ser usado. O monitoramento eletrônico também pode ser enquadrado dentro deste arcabouço ao passo que os casos de crimes de menor potencial ofensivo e regressão de regime possibilitam a saída temporária e a prisão domiciliar (hipóteses de aplicação) que produz por sua vez área propícia a práticas ilegais, tais como corrupção de servidores públicos no presídio, fuga, exercício de outros crimes e falsificações nos registros as quais serão controladas pelo direito e organizadas através do monitoramento eletrônico com o objetivo de permitir a utilização do lucro ilícito que consiste na ampliação da vigilância e do controle em conjunto com efeitos políticos e econômicos ressignificados nos discursos de humanização, descarcerização, redução de gastos e da população carcerária. Nesta seara o aparecimento do monitoramento eletrônico para a prisão domiciliar e saída temporária durante a execução penal8 significa ampliação de vigilância e controle ao contrário de uma medida alternativa à punição representada pela prisão. Este é o sentido no qual se afirma que a resposta do Estado e do direito é adequada a uma estratégia de poder que estabelece a pena e o monitoramento eletrônico como elementos da gestão de ilegalidades. Não é objetivo desta ossatura político-jurídica evitar o aumento nos índices de criminalidade através de políticas públicas, todavia o é consolidar o controle sobre as pessoas lançando mão dos mecanismos de biopoder. Na realidade de alterações sociais presente na atualidade o monitoramento eletrônico insere-se como um dos arquétipos destas estratégias. O monitoramento eletrônico, então, não deve ser visto como política pública descarcerizante ou humanizadora, afinal o que ocorre é a ressiginificação do instrumento punitivo, que é jurídico-político, para adequar-se as exigências do biopoder, assim, ao contrário de encontrar soluções onde elas não existem deve se perceber que o locus através do qual os efeitos do poder são transmitidos são outros. 3 CORPO E TECNOLOGIA: MECANISMOS DE BIOPODER NA SOCIEDADE DE CONTROLE
Com o objetivo de analisar o monitoramento eletrônico como mecanismo de biopoder é essencial destacar o processo de integração que ocorre entre corpo e tecnologia no sentido de identificar o instrumento punitivo com a expansão do controle sobre as pessoas.
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Cf. Seção VI, do Capítulo I, da Lei n. 7.210/84. 39
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No primeiro momento o corpo relaciona-se com as instituições, por isso, percebem-se as prisões como campo de visibilidade para o exercício da vigilância hierarquizada, ou seja, na disciplina o corpo é individual, dessa maneira, a partir do adestramento a eficiência deles é maximizada. As transformações sociais do século XVIII impuseram mudanças no direito, o contrato que se estabelecia a partir do direito do soberano de matar seus súditos se desloca para a vida e é neste prisma que surgem os direitos fundamentais, porquanto as pessoas passam a ser vistas em conjunto, na forma da população, por consequência o corpo transforma-se em corpo espécie e a estratégia de poder passa a regulamentar a probabilidade dos eventos e compensar seus efeitos9. O elemento que concretiza este processo é o mecanismo que deve monitorar, registrar e reconhecer os fatores que determinam esses fenômenos para que as eventualidades e acidentes sejam evitados de modo que todos os detalhes da vida são inseridos na estratégia de poder e manifestam-se por meio dos efeitos políticos e econômicos vistos na sociedade, nesse contexto se declara que os mecanismos de biopoder estão intimamente presentes em todas as relações visto que são o efeito e a causa delas10. Destarte, se vê a transição da anátomo política do corpo humano para a biopolítica da espécie humana e nesta as alterações provocadas pela sociedade da informação trazem a integração entre corpo e tecnologia constituindo o body-net. Na assunção da vida pelo poder aparece novo objeto de saber, sistemas de informação, com o alvo de controle direcionado à informação, pretendendo esquemas de intervenção em fenômenos globais através de mecanismos de biopoder para a manutenção de o próprio poder. Logo, os corpos que estavam anatomicamente separados e vigiados por técnicas de disciplina são agrupados em um conjunto denominado população em razão das suas semelhanças enquanto espécie e os mecanismos passam a controlar a todos por meio do conjunto. O gap que permite o aparecimento do body-net é a superação dos processos biológicos pelos avanços tecnológicos11 em uma interpretação que sustenta a substituição da pessoa individual, membro da espécie, por um login e senha por intermédio dos quais encontra a sua vida e o seu corpo, ou seja, o conjunto é desfeito e interligado por uma rede.
FOUCAULT, 2005. Id., 2008. 11 O transumanismo, por exemplo, é uma filosofia que reconhece a superação dos processos biológicos e as possibilidades de avanço para a espécie humana através de várias tecnologias tais como neurociência, ultrainteligência artificial, expansão da vida humana, neurofarmacologia, engenharia genética e nanotecnologia em conjunto com uma postura racional e um sistema de valores (MORE, 2013). 9
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Figura 1 – Integração entre corpo e tecnologia Fonte: elaborado pelos autores
Este é o cenário em que é proposta a utilização de aparelhos de monitoramento eletrônico por aqueles, no caso brasileiro, que estão em prisão domiciliar ou tem concedida a saída temporária. Entender a ressignificação e a consequente integração do corpo significa deixar para trás debates em torno de elementos que não promovem o aparecimento de novas verdades e permanecem batendo cabeças em torno de detalhes que não conseguem escapar ao senso comum teórico. Portanto perceber o monitoramento eletrônico de presos como mecanismo de biopoder é partir desta integração associando-a ao avanço do instrumento punitivo em direção ao controle e nesse aspecto destacar que o biopoder se desenvolve em sua plenitude na sociedade de controle, na qual os confinamentos disciplinares são substituídos por controles marcados por eternos recomeços que não encontram nenhum final12. Assim, o controle é estendido para fora das instituições em redes flexíveis e flutuantes, associando pluralidade e singularização, enraizando-se no âmago das pessoas, por seus corpos e cérebros, por intermédio de sistemas de comunicação e bem-estar, redes de informação e atividade monitoradas13. Aqui é cabível utilizar a Internet14 como exemplo de diagrama do biopoder na sociedade de controle, afinal a cada conta em uma nova plataforma se dá um novo começo que não encontra fim, pois os dados ali depositados permanecem em uma central física ou na nuvem; DELEUZE, 1992. NEGRI; HARDT, 2001. 14 Deleuze falando acerca da imaginação de Guattari descreve uma cidade onde cada pessoa deixa sua residência, rua, bairro, cidade graças a um cartão eletrônico que abre ou impõe barreiras através de um computador que detecta a posição de cada um, lícita ou ilícita, operando uma modulação universal (DELEUZE, 1992). Hoje o cartão físico ainda não existe, porém a Internet através das redes wi-fi já realiza esta função. 12 13
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empresas, escolas e judiciário estendem-se à rede de tal maneira que demissões, fiscalizações e provas processuais de lá são retiradas; a pluralidade das redes sociais consegue conviver com a singularidade do login; por fim, a distinção entre a pessoa real e a virtual se torna cada vez mais difícil. Nesse contexto, privacidade e controle são ressignificados. O emprego de satélites para a observação da Terra, a criação de bancos de dados genéticos por meio da bioinformática, a consolidação da Internet como registro de todos os fluxos de informação impuseram novo paradigma de privacidade diante do qual o uso dos aparelhos de monitoramento eletrônico pelos presos não constitui ofensa a este direito, ao contrário, reflete justamente este novo paradigma, o qual transforma a punição em controle. Esta transformação consiste na ampliação do instrumento punitivo utilizado pelo Estado e pelo direito. Os bancos de dados retratam esta realidade, neles a vida está sendo monitorada, registrada e reconhecida, a localização do preso fora da instituição carcerária por meio dos equipamentos de monitoramento eletrônico e a localização de todas as pessoas através do dispositivo GPS instalado nos celulares e das compras de cartão de crédito, por exemplo. Concretiza-se, dessa maneira, um diagrama em que todos estão interligados por uma rede que é atravessada por autoestradas da informação, onde nada que acontece permanece do lado de fora15. O monitoramento eletrônico é exemplo de como o instrumento punitivo com o discurso em torno da segurança pública alcança todas as pessoas, quanto mais informação maior será o controle. Aspecto que merece destaque é a função dos mecanismos de biopoder na sociedade de controle no que se refere à classificação das pessoas, porque a informação é o sangue que corre nas veias deste diagrama, então, se percebe o aparecimento de novas subjetividades, os que estão cumprindo condenação judicial em âmbito penal, os endividados, os pesquisadores, os infratores de trânsito, os consumidores entre muitas outras que oferecem consistência a rede. Por último volta-se aos efeitos políticos e econômicos produzidos pelo monitoramento eletrônico enquanto mecanismo de biopoder para destacar o discurso de verdade que sustenta sua aplicação. Nesta ocasião se realiza o caminho inverso, em razão desse fato, destaca-se que o discurso de segurança pública nos últimos anos no Brasil gira em torno do termo crise, pois são prisões que parecem masmorras medievais e, por conseguinte, não promovem reinserção social em
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BAUMAN, 2007. 42
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conjunto com os demais fatores que apontam para o “insucesso” e aumentam as estatísticas de criminalidade. Esta verdade, como dito alhures, participa de uma estratégia de poder por isso utiliza-se de vários instrumentos, entre eles o monitoramento eletrônico, para regulamentar as probabilidades e compensar os efeitos dos fenômenos globais que são aleatórios e imprevisíveis, mas atingem a todos de forma seriada. Para além da obviedade da manutenção dos objetivos da classe dominante, em todos os níveis, faz-se referência à distribuição de recursos públicos, manutenção na postura de parlamentares e meios de comunicação de comunicação de massa e aceitação das pessoas da maximização do controle (em detrimento da liberdade?) a fim de que o Estado e o direito continuem a conduzir a vida de todos que estão na rede. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O monitoramento eletrônico como mecanismo de biopoder reflete a integração entre corpo e tecnologia fazendo parte de uma estratégia de poder que amplia o instrumento punitivo na sociedade de controle. Estes fatos não podem representar apenas as letras que os refletem, ao contrário, devem demonstrar a responsabilidade da pesquisa em apontar questionamentos a partir de um aspecto específico da realidade. Sabendo que esta discussão está localizada preliminarmente no campo do direito à segurança é pertinente ressaltar a associação entre a construção da delinquência-objeto e o aparecimento deste direito. Sem voltar a cenários jusnaturalistas e fazendo uso da concepção de poder usada aqui em conjunto com as mudanças sofridas pelo capitalismo ao longo do tempo fica claro afirmar que assim como os funcionários se tornaram gerentes e os estudantes pesquisadores foram necessários a criação da delinquência, das prisões e da classificação de comportamento para ampliação contínua da vigilância e do controle ou como muitos preferem direito à segurança. Por isso, como o objetivo do pesquisador é a permanente inquietação deve-se perguntar onde o direito à segurança esbarra na vigilância e transforma-se na segurança pública para o controle? O monitoramento eletrônico como mecanismo de biopoder reflete um controle que é para toda sociedade? REFERÊNCIAS
BAUMAN, Zygmunt. Tempos Líquidos. Tradução por Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2007. 43
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TRÁFICO DE PESSOAS E AS CONSEQUÊNCIAS PARA A SOCIEDADE MODERNA Elis Formiga Lucena1 Milena Barbosa Melo2
1 INTRODUÇÃO Conhecido como um fenômeno complexo e multidimensional, por envolver e se confundir com outras atividades criminosas de violação aos Direitos Humanos, o Tráfico de Pessoas é uma prática delituosa em crescente abrangência por vários países. A complexidade da problemática em questão está no fato de que ela apresenta diversos meios de ser praticada, como também congrega inúmeros fins aos quais se destina. Demandando, portanto, bastante atenção e sensibilização da sociedade. Sabe-se que o Tráfico de Pessoas pode ser enquadrado como um conjunto de atividades ilícitas que alimenta uma rede internacional de exploração de seres humanos, com vistas à exploração de mão-de-obra escrava, sexual comercial, ou até mesmo atividades que se ligam às quadrilhas transnacionais especializadas na retirada de órgãos. De modo que se pode afirmar que tal crime tem sua caracterização pelo uso da força, coerção, fraude ou abuso de poder. Com efeito, a problemática em estudo pode ser definida como uma atividade delituosa mundial das mais rentáveis, ao passo que é, também, uma das mais representativas formas de degradação da dignidade da pessoa humana; havendo, por isso, uma grande preocupação com o rápido crescimento de sua incidência. Logo, imprescindível fornecer à sociedade o devido conhecimento do que vem acontecendo, para que haja uma busca por prevenção, bem como por políticas públicas que dêem atenção e apoio aos serem humanos vitimados pelo Tráfico. Por conseguinte, deve-se esquadrinhar a devida punição para aqueles que contribuem com a disseminação de tais práticas. 2 CONSIDERAÇÕES SOBRE O TRÁFICO DE PESSOAS É recente a inexistência de práticas legais de tráfico de serem humanos. Historicamente, tem-se que o mundo somente deixou de utilizar-se do trabalho de pessoas escravizadas a partir
1Graduada 2
em direito, Mestranda em desenvolvimento regional. E-mail: elisformiga@hotmail.com. Professora Orientadora. E-mail: milenabarbosa@gmail.com 45
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do século XVIII. Ou seja, há apenas dois séculos consagrou-se que a liberdade e o respeito à dignidade da pessoa humana deveriam ser valores conferidos a todas as pessoas. Todavia, o que se observa é que esta experiência de privação do sentido de humanidade vivida no mundo ocidental não deixou de existir, em que pese os relatos de migração forçada, trabalho escravo e tráfico de pessoas ainda hoje existentes. O tráfico de serem humanos vem tornando-se um problema de dimensões cada vez maiores, a ponto de ser chamado pela ONU de “a forma moderna de escravidão”. Falar em escravidão moderna é tratar da realidade de milhares de pessoas que, ainda hoje, são compradas e vendidas, exploradas e brutalizadas com a finalidade de, tão somente, gerar lucro. Nesse diapasão, impende distinguir tráfico de pessoas docontrabando de migrantes ou migração ilegal. De fato, distintamente da migração ilegal, o tráfico de pessoas não respeita a liberdade e vontade próprias da pessoa, reduzindo-as a simples mercadorias. É fundamental verificar que o Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças deixa claro que o consentimento da vítima de tráfico é irrelevante para que determinada conduta caracterize a exploração de seres humanos. No contrabando de migrantes, observa-se o conhecimento da pessoa contrabandeada a respeito do ato criminoso e, ainda, há que se dizer que o Tráfico de Pessoas não termina com a simples chegada do migrante em seu destino, como ocorre no contrabando. A concepção do moderno Tráfico de Pessoas deu-se a partir de instrumentos da ONU utilizados para fazer referência à “troca de escravos brancos”, em torno do ano de 1900. Assim, o tráfico e a migração voluntária causaram preocupações, acarretando a criação de um Acordo Internacional para Suprimir a Troca de Escravos Brancos, em 1904. No Brasil, a preocupação com o tráfico de pessoas data de sua participação num Congresso realizado em Paris no ano 1902: a “Convenção para repressão ao tráfico de pessoas e do lenocínio”, firmada em Lake Succes, em 21/3/50, encontrando-se ainda em vigor, tendo o nosso país aderido a esta em 5/10/51, por meio do Decreto nº 47.907, de 11/3/60. À época, passou-se a entender este fenômeno como a movimentação de mulheres com um propósito imoral à sociedade, ou seja, a prostituição. Dessa forma, consolidou-se a relação entre tráfico e prostituição. Importante ressaltar que, apesar da íntima relação existente entre tráfico de pessoas e prostituição, esse delito, com o passar dos tempos, vem abrangendo várias outras formas de ceifar os direitos humanos, não só das mulheres, como de todos. A evolução do tráfico abriu
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espaços para formas de criminalidade, que vão além da finalidade de exploração sexual. Vendemse pessoas para o trabalho escravo, para adoção ilegal de crianças, para a exploração sexual comercial, como também para a venda de órgãos e tecidos. Com efeito, sendo o delito em discussão tratado como terceiro maior crime organizado do mundo, torna-se compreensível o porquê de serem necessárias todas as atenções que a ele se voltam na atualidade. Assim, os discursos sobre este “câncer da atualidade” podem ser encontrados com mais frequência a cada dia. Em termos de definição aceita internacionalmente para Tráfico de Pessoas, temos a encontrada no Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial de Mulheres e Crianças, instrumento já ratificado pelo governo brasileiro3, conhecido como Protocolo de Palermo. Portanto, conforme o Protocolo, a expressão tráfico de pessoas caracteriza-se por ser: O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos;
Há também a definição dos Padrões de Direitos Humanos para o Tratamento de Pessoas Traficadas – PDH, que foca em elementos claramente restritos ao crime, a fim de distinguir casos de tráfico a outros atos, como migração sem documento. Assim, observa-se que: Todo ato que envolve o recrutamento, transporte dentro e fora do território nacional compra, venda, transferência, recebimento ou abrigo de uma pessoa envolvendo uso de engano, coerção (incluindo uso ou ameaça força ou abuso autoridade) ou servidão por dívida para finalidade de colocar ou prender tal pessoa, seja por pagamento ou não, servidão (doméstica, sexual ou reprodutiva), trabalho forçado ou por dívida, ou escravidão, numa comunidade outra onde tal pessoa vive.
Dessa maneira, são elementos essenciais para que se configure tráfico de pessoas, nomeadamente, os atos, os meios e a finalidade de exploração. Assim, para que seja configurado tráfico de pessoas, se torna necessário uma combinação de pelo menos um de cada dos três
Aprovado em 29 de maio de 2003 pela Resolução nº 231 do Congresso Nacional e posteriormente promulgado pelo Decreto Presidencial nº 5.107 de 12 de março de 2004. 3
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elementos constitutivos e não dos diferentes elementos, mesmo que em alguns casos esses diferentes elementos constituam delitos penais em si mesmo (BRASIL 2012. Página 12). O Tráfico de Pessoas assume a característica de problemática mundial na medida em que pode ser descrito como um crime transnacional e multifacetado, uma vez que vem se expandindo a partir das facilitações permitidas por um mundo mais globalizado, ultrapassando os limites das fronteiras interestaduais. Nesse sentido, falou o diplomata Kofi Annan4, durante a conferência da ONU em Palermo, na Itália, em 12 de Dezembro de 2000: Com assinatura da Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, a comunidade internacional demonstrou vontade política para responder a um desafio global com um retorno global. Se o crime cruzar barreiras, assim também devem agir os agentes da lei. Se os inimigos do progresso e dos Direitos Humanos procuram explorar as oportunidades do mundo globalizado, então nós devemos explorar esses mesmos fatores para defender os Direitos Humanos, para derrotar as forças do crime, da corrupção e do tráfico de seres humanos… A Convenção nos dá uma ferramenta nova para dirigir-se ao mundo do crime como um problema global. Com a cooperação internacional reforçada, nós podemos ter um impacto real na habilidade dos elementos não–civis em operar com sucesso e ajudar a sociedade civil em seu esforço constante em busca da segurança e da dignidade.
De igual modo se pronunciou o jurista pátrio Márcio Thomaz Bastos5, quando da apresentação da Cartilha sobre o Tráfico de Pessoas: O tráfico de pessoas e suas vítimas também têm que ser compreendidos no contexto da globalização. A livre circulação de pessoas, característica desse processo, ainda é um assunto mal-resolvido, muito embora os países de destino necessitem da mão-de-obra estrangeira. O incentivo ao consumo e a padrões cada vez mais elevados dele também fazem parte desse quebra-cabeça. Afinal, a inserção dos países e das pessoas na globalização é hierarquizada de acordo com esses mesmos padrões, reproduzindo e reforçando desigualdades de gênero e de raça.
O tráfico de pessoas é uma violação grave aos direitos de um ser humano, e envolve em muitos casos a privação de liberdade, a exploração, a violência e a retenção de documentos de identidade. Como se pode observar, é notória a procedência de tais aspectos na realidade do mundo atual; contudo, a globalização não deve assumir, unicamente, importância negativa quando da discussão a respeito da disseminação deste mal, sendo necessário que todos assumam a responsabilidade conjunta de enfrentamento, utilizando a concepção da globalização dos direitos humanos a seu favor.
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Kofi Annan: Diplomata que ocupou a posição de sétimo secretário-geral da ONU. Márcio Thomaz Bastos: Ministro de Estado da Justiça à época da redação da Cartilha sobre o tráfico de pessoas. 48
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3 PRINCIPAIS CAUSAS DO TRÁFICO DE SERES HUMANOS
É de extrema relevância discutir quais as causas que permitem levar à ocorrência do Tráfico de Pessoas, pois as raízes do problema encontram-se na força que dá ensejo à demanda pela exploração de seres humanos. De fato, leis abundantes e excessiva burocracia, juntamente à morosidade da atividade jurisdicional tornam mais vulneráveis os criminosos que atuam no campo em estudo. De modo que se verifica uma tímida tentativa de tipificação dos crimes ligados aos atos criminosos, quando relacionados ao tráfico de pessoas. Além disso, a miséria, fator circunstancial que gesta esta situação, juntamente com a impunidade de seus executores garantem a eficácia das atividades ligadas ao tráfico seja para quaisquer de seus fins. Sabe-se que a decisão de imigrar, muitas vezes, representa indiscutível ascensão social no país de origem, pois mudar para o “primeiro mundo” pode significar subir na vida, devido à baixíssima mobilidade social de vários segmentos populacionais, sobretudo das mulheres e dos negros. Então, a mão-de-obra que se torna escrava é muito fragilizada em razão da extrema pobreza da sua região de origem; de maneira que o tráfico envolve a manipulação criminal de pessoas que querem ou necessitam migrar com fins de obtenção de uma vida melhor. Na grande maioria dos casos, a decisão de migrar resulta de uma combinação de fatores interconectados, como são: a pobreza, a busca por melhores oportunidades de trabalho ou perspectivas de carreira em outros lugares, casamento com um estrangeiro, motivos ambientais, guerras, entre outras motivações. O fato de migrar, para além da mera possibilidade de melhorar economicamente, ainda pode ter motivações das mais complexas e variáveis, como, por exemplo, conhecer novas culturas, um sentido de aventura ou comportamentos considerados transgressões sociais no país/ região de origem. (BRASIL 2012 Página 29) Com efeito, os crescentes desmandos que dão causa à aceleração das desigualdades sociais fazem com que a possibilidade de uma melhora na qualidade de vida atraia cada vez mais pessoas, ainda que para serem exploradas. Realmente, a precariedade das relações de trabalho nas sociedades de onde são levadas as vítimas contribui fortemente para a crença de que haverá uma melhora significativa na qualidade de vida destas, uma vez que são seduzidas pelo fato de que vão ganhar inúmeras vezes mais com a exploração a que se destinam em relação ao que ganhariam se continuassem com a vida que levavam no país destinatário.
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Nesse contexto, dados mostram que há um significativo crescimento do desemprego, onde aproximadamente 185 milhões de pessoas, cerca de 6,2% da força de trabalho estão sem emprego, no mundo6. Além do mais, a falta de estrutura da instituição Família e de valores morais da sociedade também figura como cerne da questão para os que tentam entender o que leva uma mãe, por exemplo, a abandonar seus filhos e companheiro para tentar uma vida que lhe traga maiores confortos; nesse sentido, constata-se que muitas dessas mães vieram de famílias desestabilizadas, que não lhes puderam oferecer o mínimo de educação de qualidade Portanto, resta claro que as políticas públicas, que pressupõem o interesse do Estado em intervir de forma positiva na melhoria da qualidade de vida da população, não alcançam toda a sociedade, tendo em vista que deixam, aos que estão à margem desse processo, caminhos desonestos e de mais sofrimento. 4 DADOS DO TRÁFICO DE PESSOAS O tráfico de pessoas está entre as atividades criminosas mais lucrativas do mundo. Nessa ótica, o relatório de outubro de 2008 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) aponta o lucro anual produzido com o tráfico de pessoas como sendo de 32 bilhões de dólares; de igual modo, o levantamento do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crimes mostra que para cada ser humano transportado de um país para o outro, o lucro das redes criminosas pode chegar a US$ 30 mil por ano. Em consonância com a Empresa Brasil de Comunicação - EBC, a exploração sexual representa 85% do lucro com Tráfico de Pessoas, conforme dados da OIM (Organização Internacional de Migração)7. De acordo com os dados da Organização das Nações Unidas (ONU) o crime de tráfico de seres humanos só perde em rentabilidade para o comércio ilegal de armas e drogas, respectivamente, sendo que a venda de seres humanos é geralmente administrada por criminosos associados aos entorpecentes, visto que em 79% dos casos analisados, as vítimas foram “recrutadas” para servirem à exploração sexual e a maior parte delas é cometida contra mulheres.
SUIAMA, Sérgio Gardenghi, Procurador da República/SP, em “Aspectos Jurídicos Nacionais e Internacionais do Tráfico de Pessoas”. 7Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/media/videos/2007/04/21/ExploracaoSexualEDT.flv/view>. Acesso em 25/07/2009 6
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Uma pesquisa realizada pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), concluída em 2009, indicou que 66% das vítimas eram mulheres, 13% eram meninas, enquanto apenas 12% eram homens e 9% meninos8. Estimativas da OIT assinalam que o tráfico de pessoas faz aproximadamente 2,5 milhões de vítimas todos os anos; além do mais, este órgão estima que 43% dessas vítimas sejam subjugadas para exploração sexual e 32% para exploração econômica9. 5 MAPEAMENTO DO TRÁFICO DE PESSOAS
O estudo do Tráfico de Serem Humanos enseja, outrossim, a abordagem de um mapeamento a respeito de suas principais rotas. Considerando que o tráfico para fins de exploração sexual é o mais usual, importante trazer os dados da PESTRAF (Pesquisa sobre Tráfico de Mulheres, Crianças e Adolescentes para Fins de Exploração Sexual Comercial), a respeito das principais rotas dessa modalidade de tráfico, no Brasil. Como resultado da supramencionada pesquisa, consta que: 241 rotas de tráfico de pessoas passam pelo Brasil, sendo que 110 destas são internas (78 rotas interestaduais e 32 intermunicipais) e 131 são internacionais. Vale ressalvar, contudo, que estes caminhos têm natureza sobremaneira dinâmica, que podem ser facilmente substituídas por outras. Ademais, as principais conclusões do citado mapeamento apontaram que as rotas em geral são construídas perto de cidades próximas a portos, aeroportos e rodovias, saindo do interior dos Estados em direção aos grandes centros, possuindo as adolescentes como principal alvo. Observou-se que, na região nordeste, o tráfico de pessoas está relacionado com o turismo sexual. Nas rotas para o exterior, constatou-se que o principal destino é a Europa, especialmente, a Espanha. 6 PERFIL DAS PESSOAS TRAFICADAS Como visto até então, a questão do tráfico de pessoas é proveniente de uma enorme gama de fatores como, principalmente, as desigualdades sociais. O que se verifica é que, na prática, suas vítimas encontram-se bastante fragilizadas por sua situação de pobreza, sendo “alvos Fonte: ONU – Organização das Nações Unidas. UNODC – Escritório sobre Drogas e Crime das Nações Unidas. Global Report on Trafficking in Persons. [sine loco], fevereiro, 2009. Disponível em: <http://www.unodc.org/brazil/documents/Global_Report_on_TIP.pdf>. p. 10/11.). 9Disponível em: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ0A9BD4F5ITEMID894216FA4EA2427D987142B31FF7815CPTBRNN.h tm>. Acesso em 25/07/2009 8
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fáceis” para traficantes, que se utilizando da vulnerabilidade destas, mesmo que o preço a se pagar por isso seja a “coisificação” da pessoa, sua transformação em verdadeira mercadoria. Em todas as modalidades do tráfico de pessoas, as vítimas têm em comum o fato de serem, em sua maioria, pessoas jovens, de baixa renda, pouca escolaridade, sem oportunidade nem perspectiva de melhoria de vida e provenientes de lugares e de regiões pobres10. Em conformidade com a pesquisa da PESTRAF, a partir de um levantamento feito com base em entrevistas, análise de inquéritos e processos judiciais, bem como reportagens publicadas na imprensa de 19 Estados do Brasil, verificou-se que as mulheres e adolescentes, geralmente afrodescendentes, com idade entre 15 e 25 anos, são as principais vítimas do tráfico para fins sexuais. Verificou-se que essas pessoas inserem-se em atividades laborais relativas ao ramo da prestação de serviços domésticos e do comércio, em funções subalternas e desprestigiadas; além disso, apurou-se que as mulheres que se situam dentre as inseridas como vítimas do tráfico para fins sexuais, já sofreram algum tipo de violência, intra ou extrafamiliar, e suas famílias apresentam situação difícil. Nesse contexto, o Manual Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual (2006, p.27), destaca a atenção para os aspectos psicológicos e físicos da possível vítima: [...] desconfiança, nervosismo, medo, timidez excessiva, depressão, baixa auto-estima, estresse pós-traumático, [...] má-nutrição, desidratação, reduzida higiene, doenças venéreas, sinais de abuso sexual, marcas de edemas, fraturas e outros sinais de edemas médicos não tratados e doenças crônicas, como diabetes e câncer.
Em suma, tudo isso exterioriza a Síndrome Pós-traumática,que é definida no Manual Tráfico de Pessoas para fins de Exploração Sexual como sendo: “O conjunto de sintomas apresentados por pessoas que vivenciam situações extremas de violência ou ameaça”. Levantou-se, ainda, que as vítimas que sofrem de abusos de extremada brutalidade, tais como: estupro grupal, amputação de membros (ex. dedos), bem como as variadas formas de agressões fortes, acabam sendo atingidas por um fenômeno chamado de dissociação, que é a perda da capacidade de racionalização a respeito do que tenha ocorrido, passando por um processo de negação de que tenham vivido essas experiências. Nesse sentido, esclarece o supramencionado documento relacionado com tráfico de pessoas com fins de exploração sexual11 que: A experiência traumática permanece por anos e, em muitos casos, pelo resto da vida das vítimas, como um fator psicológico capaz de provocar pânico, terror, medo, tristeza 10 11
Relatório do Plano Nacional de Enfrentamento do Tráfico de Pessoas, p. 22 e 23). Manual: Tráfico de Pessoas para Fins de Exploração Sexual (2006, p.33). 52
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ou desespero e se manifestar em fantasias, pesadelos traumáticos e recriações psicóticas das agressões.
Logo, como sequela da Dissociação, as vítimas podem sofrer sintomas das seguintes maneiras: ficar com a noção do tempo alterada e sofrer danos na memória; acreditar na “despersonalização” da experiência e a idéia de que esta tenha acontecido com outra pessoa; sofrer fragmentação de percepção, sentimentos, consciência e memória, não sendo capazes de recordar ou descrever as torturas em detalhes; ou até mesmo tratar os abusos de maneira apática e indiferente. 7 ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE SERES HUMANOS Marcel Hazel, articulador e pesquisador da ONG Sodireitos, faz uma colocação bastante pertinente quando indaga a quem interessa o enfrentamento do tráfico de pessoas. Segundo esse autor, as pessoas traficadas são “invisíveis” no lugar de origem e de destino: Nos países receptores os governos tampouco se mostram muito preocupados com o sofrimento e violação dos direitos das pessoas traficadas. A exploração do seu trabalho garante o funcionamento de setores econômicos que lucram e não conseguiriam funcionar com trabalhadores livres, que exigem a garantia dos seus direitos. O mercado de sexo, o trabalho doméstico, a confecção de roupas baratas, a coleta agrícola, etc. sustentam-se na exploração de estrangeiros sem direitos e impedidos de ir e vir. Os governantes não contam com seus votos e sim com aqueles que se aproveitam deles, como os exploradores e consumidores.
Nesse mesmo sentido é o pensamento de Swissinfo Adam Beaumont (2006)12: [...] Os migrantes ilegais assumem tarefas que, se não fossem eles, deveriam ser assumidas pela sociedade; com eles, os custos são muito menores. Raramente eles são um fardo para a sociedade: eles trabalham mais por salários inferiores, não são sindicalizados e não reclamam do fato de não terem as mesmas vantagens dos outros.
De modo igual, Jaqueline Leite13, em apresentação da “ONG – Charme da Bahia”, falou que: Charme (organização não-governamental da Bahia) mostra que 400 “bailarinas” brasileiras, sem direito de permanecer na Suíça, contribuem por ano com 1 milhão de francos para a previdência daquele país, sem poder usufruir dela. Um economista suíço explicou que traficar mulheres para a prostituição na Suíça é bom para a economia de lá, porque, além das contribuições à previdência, os clientes deixam de viajar para o exterior em busca de mulheres exóticas e gastam seu dinheiro dentro do país.
12Disponível
em: <http://www.swissinfo.org/por/capa/detail/o_potencial_inutilizado_dos_migrantes_ilegais.html?siteSect=105&sid =7194001&cKey=1161771687000>. Acesso em 19/07/2009 13 LEITE, Jaqueline. Apresentação da ONG Charme da Bahia, em Belém, 2006. 53
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A necessidade de investimentos em Políticas Públicas capazes de ir de encontro à expansão do Tráfico de Pessoas é urgente; sendo que não se observa exatamente isto nas políticas internacionais que estimulam modelos neoliberais, onde há uma diminuição dos gastos do governo direcionados para a área social, evidenciando-se lucros e ganhos que escoam para mãos de terceiros, deixando desfavorecidos aqueles a quem deveriam ser destinadas as preocupações basilares do Estado. Além do mais, no que se refere às políticas públicas que deveriam combater o Tráfico de Seres Humanos, fala-se em três tipos: políticas de migração; econômicas e de enfrentamento ao tráfico propriamente dito. Quanto às primeiras, diz-se que mostram resultados pouco esperançosos, uma vez que a “lei do tráfico” rege que quanto mais rigorosas forem as leis de migração, mais florescerá o tráfico de pessoas. Todavia, o que se verifica é a construção de barreiras e, por conseguinte, uma inegável criminalização dos migrantes. Como pode ser observado nas palavras do Pe. Alfredo J. Gonçalves14, no “Seminário sobre Direitos Humanos e Migração”: Se tivéssemos que fazer um mapa das migrações, muitos rostos e muitas rotas se entrelaçariam. Entre os rostos, podemos rapidamente citar os refugiados, os “desplazados”, as vítimas do tráfico de seres humanos e do turismo sexual, os trabalhadores temporários, os que buscam a zona urbana, os técnicos e diplomatas, os marítimos e aeroviários, os jovens e mais recentemente as mulheres, os ciganos, além de soldados, peregrinos, deportados, etc.
Já no que diz respeito às políticas de enfrentamento ao tráfico propriamente dito, nota-se certa fragilidade; contudo, não se pode negar a existência de políticas no sentido direto de enfrentamento a este, que pode ser considerado como a “forma moderna de escravidão”. Assim, verifica-se a existência de um aumento de programas específicos, discussões qualificadas e a união de parcerias para o combate a este mal. Desse modo, é nesse contexto que surge a reflexão a respeito da autonomia da sociedade civil e sua urgente busca pelo reconhecimento dos direitos humanos, afetados pela temática em estudo, tendo sido criada, por conseguinte, a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, por meio do Decreto nº 5.948 de 26 de Outubro de 2006, instituindo o Grupo de Trabalho Interministerial com o objetivo de elaborar o Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP). Portanto, esse decreto foi resultado de uma produção coletiva, sendo conferido a ele a legitimidade necessária à sua execução. Então, apresentado como fruto de debates e reflexões, o I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas foi instituído
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Disponível em: <http://www.migrante.org.br/fenomenomigratorio.doc>. 54
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pelo Decreto nº 6.374, de 8 de Janeiro de 2008, na pessoa do então presidente da República Luis Inácio Lula da Silva. Com efeito, por ser uma política de estado, a construção da PNETP envolveu diversos ministérios, uma vez que passa por diversas áreas, tais como: saúde, justiça, educação, assistência social etc. De maneira que três eixos de atuação são considerados visando a um combate efetivo ao tráfico: prevenção, repressão ao crime e responsabilização de seus atores, e atenção às vítimas; sendo que para cada um destes o plano traz um conjunto de metas específicas, órgão responsável, parceiros, como também, prazos de execução. Com relação a esta meta, os órgãos responsáveis precisam implementar as atividades de forma agregada, buscando afinidades entre as metas e parcerias, para que não haja repetição de esforços. Ademais, o monitoramento e avaliação do Plano estiveram sob o comando do Ministério da Justiça, com o apoio de um Grupo Acessor de Avaliação e Disseminação do Plano, que contaram com a participação dos seguintes Ministérios: Justiça, que o coordena; Desenvolvimento Social e Combate à Fome; Saúde; Trabalho e Emprego; Desenvolvimento Agrário; Educação; Relações Exteriores; Turismo; Cultura. Além das Secretarias Especiais: dos Direitos Humanos da Presidência da República; da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República; da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República; e ainda da Advocacia-Geral da União. Hoje, está em usoo II Plano de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas. Segundo informações do site do Ministério de Justiça,“o texto do II Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas inclui objetivos, metas e ações a serem adotadas no combate a esse tipo de crime para os próximos quatro anos (2012-2016)”. Como principal desafio deste mencionado plano, tem-se o aumento da integração entre os parceiros institucionais, o levantamento de dados sobre o crime e o monitoramento da implementação das ações do Estado. Dessa maneira, cada estado brasileiro deverá possuir uma legislação e políticas próprias para o enfrentamento ao tráfico de pessoas. Atualmente, alguns estados, como por exemplo, Pernambuco, São Paulo, Bahia e Pará dispõem dessa legislação especifica.Tais políticas devem ir ao encontro dos princípios e diretrizes estipuladas pelo Governo Federal, devendo, portanto, guardar compatibilidade com as normas federais válidas.
7.1. NÚCLEO DE ENFRENTAMENTO AO TRÁFICO DE PESSOAS
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Previstos como uma das metas do I Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP), a implementação dos chamados Núcleos de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (NETP‟s) foi reforçada a partir da “Ação 41”, do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Ponasci) voltada, especificamente, para a criação de Núcleos e Postos Avançados, em parceria com os Governos estaduais. Atualmente, estão em funcionamento seis (06) Núcleos. Impende dizer que, enquanto unidades administrativas que são, cabe aos Núcleos executar ações previstas na Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, nos seguintes eixos de atuação: prevenção ao tráfico de pessoas (art. 5º); responsabilização de seus autores (art. 6º); e atenção às vítimas (art. 7º). Hoje, conforme informação extraída do site do Ministério de Justiça, verifica-se que há oito NETP´s, são eles: 1. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Acre; 2. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado da Bahia; 3. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Ceará; 4. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Goiás; 5. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de Pernambuco; 6. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Rio de Janeiro; 7. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado de São Paulo; 8. Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Estado do Pará.
Compete a estes núcleos: articular, estruturar e consolidar, a partir dos serviços e redes existentes, uma rede estadual de referência e atendimento às vítimas do tráfico de pessoas. Essa e outras atribuições dos Núcleos foram definidas a partir da Portaria nº 31*, de 20 de agosto de 2009. 8 O TRÁFICO DE PESSOAS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO A legislação brasileira vem tentando introduzir algumas formas de repressão a quem comete delitos que envolvem as práticas dos que traficam pessoas. Sob a perspectiva material, o crime é qualquer fato humano que provoque lesão ou exponha a perigo determinados bens que a sociedade reputa importantes, a ponto de serem
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protegidos. A liberdade individual e em especial a liberdade sexual são tutelados pelo Código Penal Brasileiro. Portanto, em conexão com o que se vê como resultado do tráfico de seres humanos, o ordenamento jurídico brasileiro considera crime aquele que reduz alguém à condição análoga de escravo. Considera-se esta a forma mais gravosa de ofensa a liberdade, não apenas a liberdade física e de manifestação de vontade, mas uma ofensa a própria dignidade do ser humano por transformá-lo em objeto. Art. 149.Reduzir alguém acondiçãoanálogaàdeescravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. §1o. Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2o.A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem".
O Supremo Tribunal Federal, por meio do julgamento do RE 398.041, publicou o Informativo nº 450/2006, que trata da questão da competência federal para os crimes de redução análoga à condição de escravo. Após a constatação de que muitas crianças são alvo destes traficantes, com elas geralmente assumindo posições de trabalhos doméstico e comercial, com funções subalternas e desprestigiadas, surge o Decreto n. 6.481, que se encontra em vigor desde 12 de setembro de 2008, tendo este sido assinado pelo então presidente Luis Inácio Lula da Silva. Assim, esse Decreto proíbe o trabalho doméstico para menores de 18 anos, colocando esta modalidade de trabalho em condições de igualdade com a extração de madeira, produção de carvão vegetal, fabricação de fogos de artifício, produção de sal e até a construção civil. Outrossim, na tentativa de implementar medidas de punição mais severas àqueles que se utilizam da ilegalidade para transplantar órgãos, a Lei nº 9.434 de 4 de fevereiro de 1997, que trata de Transplantes de Órgãos, traz a proposta de melhor tipificação dos ilícitos previstos na legislação atual, dando especial ênfase à criminalização e penalização da comercialização e do tráfico de órgãos, “[...] buscando integração com as normas penais em vigor e equiparando a realização irregular de transplantes e a comercialização e tráfico de órgãos ao crime de lesão
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corporal, penalizando, no entanto, com mais rigor estes crimes que o previsto no art. 129 do Código Penal”15. Logo, diante dos fatos destacados e do iminente crescimento da abrangência de atrocidades individuais e coletivas assistidas pela humanidade, onde se tem como exemplo o Tráfico de Pessoas, surgiu a preocupação da comunidade internacional como reação em defesa do homem e de seus direitos fundamentais; sendo que observou-se que o sistema de repressão baseado no Direito Internacional apresenta graves deficiências, especialmente por não garantir o julgamento de indivíduos. Então, como tentativa de sanar essa abertura à impunidade, surgiu o Tribunal Penal Internacional (TPI), figurando como uma proposta, objetivando a faculdade para a comunidade internacional julgar e punir pessoas que cometem crimes contra a humanidade. Realmente, o TPI foi estabelecido em 2002 em Haia, capital dos Países Baixos, onde fica a sede deste órgão, conforme estabelece o artigo 3º do Estatuto de Roma; tal documento teve sua aprovação no Brasil por meio do Decreto nº 4.388 de 25 de setembro de 2002, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso VIII, da Constituição16. Mas, ressalte-se que a jurisdição internacional é residual, só se instaurando depois de esgotada a via procedimental interna do país vinculado; além disso, sua criação recepcionou os princípios da anterioridade e da irretroatividade da lei penal, pois sua competência não retroagirá para alcançar crimes cometidos antes de sua entrada em vigor – art. 11 do Estatuto de Roma. A decisão do TPI faz coisa julgada, não podendo ser revista pela jurisdição interna do Estado participante17. Nesse contexto, a conexão do TPI com o Tráfico de Pessoas se verifica quando a escravidão é descrita como crime contra a humanidade no seu artigo 7º, embasando-se tal afirmação com a transposição do excerto retirado do próprio Estatuto, que dispõe a respeito do Tribunal em estudo: Artigo 7.º Crimes contra a Humanidade 1 - Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crime contra a Humanidade" qualquer um dos actos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque: [...] c) Escravidão; [...]
BALDIJÃO, Carlos Eduardo. Comentário a respeito da Lei dos Transplantes de Órgãos. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4388.htm>. Acesso em: 10/07/2009. 17 Curso de Direito Constitucional, ed. saraiva p. 51 15 16
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g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável; [...] 2 - Para efeitos do n.º 1: [...] c) Por "escravidão" entende-se o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças; Artigo 8o Crimes de Guerra 1. O Tribunal terá competência para julgar os crimes de guerra, em particular quando cometidos como parte integrante de um plano ou de uma política ou como parte de uma prática em larga escala desse tipo de crimes. 2. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por "crimes de guerra": a)As violações graves às Convenções de Genebra, de 12 de Agosto de 1949, a saber, qualquer um dos seguintes atos, dirigidos contra pessoas ou bens protegidos nos termos da Convenção de Genebra que for pertinente: b)Outras violações graves das leis e costumes aplicáveis em conflitos armados internacionais no âmbito do direito internacional, a saber, qualquer um dos seguintes atos: [...] xxii) Cometer atos de violação, escravidão sexual, prostituição forçada, gravidez à força, tal como definida na alínea f) do parágrafo 2o do artigo 7o, esterilização à força e qualquer outra forma de violência sexual que constitua também um desrespeito grave às Convenções de Genebra; [...]
Assim, o Tráfico de Pessoas é considerado crime quando da observação do ordenamento jurídico brasileiro, apesar da tipificação deste delito estar ainda mais ligada ao tráfico de seres humanos para a exploração sexual, conforme se pode observar na recente adequação do Código Penal, através da Lei nº12.015 de 7 de Agosto de 2009. De fato, esta legislação trouxe alterações no Título VI da Parte Especial do Decreto-Lei no 2.848 de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, tratando-o como: Dos Crimes Contra a Dignidade Sexual, como podemos verificar no seguinte dispositivo legal do Código Penal Brasileiro: Art. 231. Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2o A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato;
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III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.” (NR) * Redação dada pela Lei 12.015/09
Desta feita, a partir da análise do supramencionado artigo, tem-se incorre nas penas a ele aplicadas aquele que promove ou facilita a entrada no território nacional de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual ou a saída para o estrangeiro. Ressalte-se que incorre nas mesmas penas aquele que agencia, aliena, compra a pessoa traficada ou aquele que, conhecendo a situação, transporta, transfere ou aloja. Em síntese, observamos que a partir da possibilidade de utilização de meios distintos, as condutas descritas no tipo penal são: promover e facilitar a entrada ou saída do país quando a iniciativa é da pessoa ou de outrem, existindo, consequentemente, o crime independente do consentimento do sujeito passivo, que em diversos casos este desconhece a verdadeira razão de sua transferência para outro país. De modo que o delito se consuma no momento em que há a entrada ou saída da pessoa do território nacional; e, por ser considerado um crime de perigo, não se exige como resultado indispensável o meretrício. Portanto, a tentativa é possível e acontece sempre que o crime é impedido de se consumar por fatos alheios à vontade do sujeito ativo. O objeto jurídico é a proteção à moralidade pública sexual, qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo, enquanto que o sujeito passivo é a pessoa que venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual. O delito pode assumir, outrossim, as formas simples ou qualificada, esta quando a vítima for menor de 18 anos, quando possuir enfermidade ou deficiência mental e isso afetar a capacidade de discernimento,se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, enteado, cônjuge ou companheiro, tutor, curador, preceptor ou empregador da vítima ou assumiu por lei ou outra forma o cuidado, proteção ou vigilância, ou, ainda, se há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. Há que se dizer, também, que é competente a Justiça Federal para seu pleito, nos termos do art. 109, V, da CF. Nessa perspectiva, ressalte-se também que o ordenamento jurídico brasileiro dispõe do crime de Tráfico Interno de pessoas em seu art. 231-A, do CP; havendo até mesmo uma corrente doutrinária que sustenta que existe uma íntima relação entre este crime e o anteriormente discutido neste texto, considerando que é um que leva ao cometimento do outro. Então, segue-se a disposição legal em comento:
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Art. 231-A. Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual: Pena - reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. § 1o Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar, vender ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2o A pena é aumentada da metade se: I - a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II - a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III - se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV - há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3o Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa.” (NR) * Redação dada pela Lei 12.015/09
Enfim, tutela-se como este dispositivo a moralidade pública sexual, onde se busca coibir o incremento da prostituição dentro do território nacional. Estima-se que, entre 2005 e 2011, a Polícia Federal já fez o registro de 514 inquéritos por tráfico, dos quais 157 sobre tráfico internacional de pessoas para fins de exploração sexual, 13 de tráfico interno e 344 de trabalho escravo; enquanto o Poder Judiciário, segundo Conselho Nacional de Justiça, teve 91 processos já distribuídos. Estes são dados apresentados pelo I Relatório que consolida dados sobre Tráfico de Pessoas no Brasil, elaborado pela Secretaria Nacional de Justiça do Ministério Público (SNJ/MJ), juntamente com o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime – UNODC. O relatório, elaborado entre os meses de Abril a Maio de 2012, informam alguns dos dados a respeito da temática em questão, servindo de base para um melhor entendimento, ainda que superficial - acredita-se, a respeito de onde se está imergindo. 9 CONCLUSÃO Ao término do presente estudo, em que se analisou a situação que se instalou na sociedade a respeito do Tráfico de Pessoas, fica a preocupação com seu combate, a menos que não se deseje um mundo que cumpra os Direitos Humanos na sua plenitude. De modo que a globalização destes direitos deve vencer as facilidades que contribuem para a expansão desse crime. Conclui-se que são louváveis as políticas que envolvem a prevenção, repressão e punição dos culpados; e, aliada a estas preocupações, também são as que buscam tratar de dar às vítimas do tráfico a devida atenção, posto que representam a parte mais afetada desse meio e não têm seus Direitos Humanos garantidos, como, de fato, deveria ser. 61
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Portanto, o trabalho deve ser árduo e os esforços devem ser medidos ao máximo para que se busque, cada vez mais, não apenas a elaboração de políticas que procuram coibir e ceifar este mal, mas sim sua devida execução. Ademais, os responsáveis pelo combate a este mal, que assola o mundo nos dias de hoje, são todos os que vivem em sociedade e desejam a garantia dos Direitos Humanos; logo, devem almejar que a todos sejam fornecidos esses direitos, universalmente consagrados a todos. Finalizo este trabalho confiando na sensibilização dos que se preocupam com o destino da sociedade que se encontra cada vez mais imersa no mundo do Tráfico de Seres Humanos. Logo, fica o desejo de um maior empenho das autoridades quanto à elaboração e execução de políticas públicas, como também na urgência da necessidade de ser trabalhado o melhoramento quando da execução das leis que reprimem os atos criminosos ligados à atuação dos que traficam pessoas, bem como um estudo mais profundo a respeito da elaboração de novas leis que tipifiquem e permitam uma punição mais severa para os agentes que atuam neste campo do crime. REFERÊNCIAS CHIMENTI; et al. CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL. 4.ed. – São Paulo: Saraiva, 2007. ALIANÇA GLOBAL CONTRA TRÁFICO DE MULHERES. DIREITOS HUMANOS E TRÁFICO DE PESSOAS: UM MANUAL.Rio de Janeiro: Copyright, @2000, 2006. GLOBAL ALLIANCE AGAINST TRAFFIC IN WOMEN. Human Rights and Trafficking in Persons:A Handbook. Bancoc: [s.n], 2000. HAZEL, Marcel. Políticas Públicas de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: a quem interessa enfrentar o tráfico de pessoas? Política Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, Brasília, v. 1, p. 21-27, out., 2006. LEAL, Maria Lucia; LEAL, Maria de Fátima. Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas: uma questão possível? Política Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, Brasília, v. 1, p. 28-32, out. 2006. BRASIL. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Tráfico de Seres Humanos. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/trafico/>. Acesso em: 20/03/2014
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______. MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. Guia de Referência para a rede de enfrentamento ao tráfico de pessoas no Brasil. Brasília. 2012. SAKAMOTO, Leonardo; PLASSAT, Xavier. Desafios para uma política de enfrentamento ao tráfico de seres humanos para o trabalho escravo. Política Nacional de Enfretamento ao Tráfico de Pessoas, Brasília, v. 1, p. 16-19, out. 2006. SUIAMA, Sérgio Gardenghi. Aspectos Jurídicos Nacionais e Internacionais do Tráfico de Pessoas. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/novosdireitos/traficoseres/index.htm>. Acesso em: 28/03/2014. TRÁFICO DE PESSOAS PARA FINS DE EXPLORAÇÃO SEXUAL. Brasília : OIT, 2006. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/data/Pages/MJ0A9BD4F5ITEMID894216FA4EA2427D987142B31F F7815CPTBRNN.htm>. Acesso em: 27/03/2014;
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ANÁLISE VITIMOLÓGICA DA LEI MARIA DA PENHA, SOB A PERSPECTIVA DAS MULHERES QUE SOFREM VIOLÊNCIA DOMÉSTICA NA CIDADE DO RECIFE Flávia Roberta de Gusmão Oliveira1 Gilliard Jeronimo de Oliveira2
1 INTRODUÇÃO Infelizmente ainda é bastante persistente os casos de violência doméstica praticada contra as mulheres em todo o Brasil, por muito tempo a sociedade e o direito conviveram silente com os casos de violência contra as mulheres, contudo a luta de algumas vítimas e o incentivo de organismos internacionais de direitos humanos ensejaram a criação de mecanismos para coibir essa prática. Sem dúvida alguma no campo jurídico o mais importante desses mecanismos foi a criação da Lei 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha. Pode-se dizer que a importância desta Lei decorre do fato de ela prever mecanismos de punição mais imediatos em relação ao crime de violência doméstica e familiar contra a mulher O reconhecimento da importância dessa norma, todavia não impede a constatação de que aspectos relevantes dela vão ao encontro das novas tendências do direito penal e processual penal, como, por exemplo, a teoria vitimológica, a qual segundo Ester Kosovski(2003-2004) organiza em níveis de atuação diretamente atrelados aos direitos humanos, podendo ser comparados com um tripé, cujas bases são: estudo e pesquisa, mudança de legislação e assistência e proteção à vítima. Essa teoria possibilitou um novo paradigma para a análise do crime e do sistema penal, permitindo uma preocupação maior, com a vítima que fora até então esquecida do ponto de vista da relação processual penal. O avanço da vitimologia tem repercutido na discussão sobre a eficácia do sistema penal atual, até que ponto há justiça em processar, julgar e prender um acusado, sem nem ao menos escutar a opinião da vítima? Questionamentos como esse têm dado ensejo ao surgimento de novas ideologias que sugerem transformações no âmbito da aplicação da justiça penal. Kosovski enumera 06 (seis) dessas novas ideologias, que são: ideologia da atenção às vítimas, ideologia da
1Formada
em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e mestranda em Direitos Humanos, pela Universidade Federal de Pernambuco.E-mail: betagusmao@gmail.com 2Formado em Direito pela FACIPE e especializando em Direito Penal pela Estácio de Sá. E-mail: gillioliveira@gmail.com 64
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reabilitação, ideologia da retribuição, ideologia do direito penal mínimo, ideologia abolicionista e ideologia da prevenção. Compreendida essa noção inicial da teoria vitimológica passa-se a analisar a Lei Maria da Penha propriamente dita, sob a perpesctiva de tal teoria. A análise será organizada didaticamente pela separação dos títulos existentes na referida lei. O título I da Lei consiste nas disposições preliminares, nele há menção de que a criação desta Lei deu-se em decorrência de convenções internacionais, que tiveram por objetivo a erradicação da violência contra mulher e o §8º do art.226 da Constituição Federal, o qual diz que o Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um dos que a integram, criando mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações. Desta forma a Lei foi criada como forma de garantir o respeito à dignidade das mulheres, através da criação dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher e políticas de assistência e proteção às mulheres. Questiona-se o disposto no artigo 2º ao afirmar que toda mulher goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, haja vista ser considerada tal disposição como desnecessária, uma vez que a Carta Magna brasileira já garante os direitos fundamentais de todos, sejam homens ou mulheres. Já no título II trata da violência doméstica e familiar contra a mulher, inicialmente definese violência doméstica para a aplicação da lei no âmbito da unidade doméstica, da família e em qualquer relação íntima de afeto, é ressalvado inclusive que tais relações independem de orientação sexual. Há também o art.6º que determina que a violência doméstica contra mulher constitui uma das formas de violação de direitos humanos. Por fim, ainda neste título são definidos os tipos de violência contra mulher, a saber: violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. Nestes dois títulos iniciais percebe-se claramente aspectos da doutrina vitimológica, na medida em que a mulher, enquanto vítima, é evidenciada na busca pelo respeito aos seus direitos fundamentais e na tentativa de resguarda-la de quaisquer formas de violência. O título III é sem dúvida alguma o mais preocupado com a vítima e com o processo de vitimização da mulher, uma vez que prevê as formas de assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar. O título IV trata sobre os procedimentos para os processos que envolvam violência doméstica contra mulher, sejam eles cíveis ou criminais, ressalvado o constante em outras legislações especiais como o Estatuto do Idoso e o da Criança e do Adolescente.
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Neste título, no art.15, é discutida a competência para processar e julgar as causas cíveis e criminais envolvendo a mulher em casos de violência doméstica ou familiar, Com relação aos aspectos conceituais da vitimologia percebe-se neste capítulo o respeito à assistência e a proteção da vítima, o que não ocorre com relação à participação da vítima da instrução processual penal. Tal realidade pode ser exemplificada por meio do art.16 da referida lei, que diz: “Nas ações penais públicas condicionadas a representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. Inicialmente é importante destacar o uso inapropriado do termo renúncia à representação‟ utilizado pelo legislador, Moreira fala o seguinte a esse respeito: Desde logo, atentemos para a impropriedade técnica do termo “renúncia”, pois se o direito de representação já foi exercido (tanto que foi oferecida a denúncia), obviamente não há falar-se em renúncia; certamente o legislador quis referir-se à retratação da representação, o que é perfeitamente possível, mesmo após o oferecimento daquela condição específica de procedibilidade da ação penal. (MOREIRA, 2007)
Superada essa questão de nomenclatura convém afirmar que há muitas divergências da doutrina sobre a intenção do legislador ao inserir o artigo ora analisado a Lei Maria da Penha. Destaca-se a posição adotada por Cabette (2006), o qual considera que tal dispositivo está relacionado com as ações penais públicas condicionadas à representação da vítima, segundo a lei estabelece que nos casos de violência doméstica a autoridade policial e o ministério público agirão de ofício, independentemente da vontade da vítima, dando início e continuidade a persecução penal até que após o oferecimento da denúncia seja designada uma audiência específica que a mulher possa especificar se dará ou não continuidade a ação, não sendo possível considerar sua opinião durante o período inquisitivo. Desta forma, esta mudança serviu apenas para burocratizar o sistema judiciário e fazendoo agir desnecessariamente na medida em que farão as delegacias e o Ministério Público ficarem a envidar esforços em uma ação que em breve será extinta. Ainda no 4º título tem-se outra inovação advinda da Lei Maria da Penha, que é a possibilidade de decretação da prisão preventiva do acusado a qualquer momento desde o período do inquérito até depois de iniciado o processo. Inclusive para crimes considerados de menor potencial ofensivo. Na verdade a Lei passou a adotar um tratamento penal mais rígido, todavia não houve uma preocupação em alterar a realidade social das pessoas envolvidas nos casos de violência
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doméstica, que muitas vezes estão atrelados a questões que não estão inseridas na esfera penal, como o alcoolismo e outros problemas sociais. Muitas vezes as vítimas necessitam da intervenção estatal para solucionar o problema a que são submetidas, mas não necessariamente, essa solução deve estar restrita ao âmbito criminal, outros tipos de medidas como acompanhamento psicológico, tratamento para recuperação de alcoolismo e outros vícios, por exemplo, poderiam ser aventadas. Ressaltando que tal análise restringe-se a crimes menos ofensivos. Há também neste título inclusive as medidas protetivas de urgência.Por fim neste 4º título há disposições acerca da atuação do Ministério Público e da assistência judiciária envolvidos em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher. O título V aborda a necessidade da atuação de uma equipe de atendimento multidisciplinar nos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, o que do ponto da vista da vitimologia demonstra uma preocupação com o atendimento global da vítima. O título VI intitulado “disposições transitórias‟ demonstra a intenção do legislador de regular a lacuna entre a entrada em vigor da lei e a criação efetiva dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, deixando claro que enquanto eles não forem estruturados a competência para julgar causas cíveis ou criminais envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher será das varas criminais, dando-se o direito de preferência ante outros processos. O último título, o VII, trata sobre as disposições finais e tem uma importância significativa por alterar o dispositivo da várias legislações, incluindo o Código Penal e de Processo Penal e Lei de Execução Penal. Convém destacar o art. 41 o qual diz que Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. O objetivo precípuo da inaplicabilidade da lei 9.099/95 nos casos de violência doméstica e familiar foi à proibição de medidas como a composição civil, a transação penal e a suspensão do processo. Essa medida, sem dúvida alguma, é uma das mais relevantes quanto à inobservância da vitimologia na Lei 11.340/06, uma vez que veda a possibilidade de a vítima, caso queira, celebrar um acordo com o agressor, indo de encontro às novas ideologias do sistema penal (já mencionadas) que estão em consonância com a teoria vitimológica, além de ferir o princípio da igualdade, na medida em que pune de forma diferenciada a pessoa que agredir um homem ou mulher da mesma família.
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Além disso, o recente julgado do Supremo Tribunal Federal – STF, (ADC 19/DF, rel. Min. Marco Aurélio, 9.2.2012. (ADC-19)) estendeu a interpretação desse artigo, destacando que a inaplicabilidade da Lei 9099/95 abrange toda essa norma, inclusive no que se trata ao fato das lesões corporais leves serem consideradas como ação penal pública condicionada a representação da vítima, por ser crime de menor potencial ofensivo, voltando a ser considerado o previsto no Código Penal, ação penal pública incondicionada, o que mais mitiga a participação de mulher no processo penal. 2 OBJETIVOS Analisar as inovações criminais trazidas pela Lei Maria da Penha, a partir da perspectiva das vítimas de violência doméstica da cidade do Recife, sob a ótica da teoria vitimológica; Compreender a mulher como protagonista do cenário delituoso e não apenas como mera coadjuvante; Dar voz às vítimas de violência doméstica na cidade do Recife, apreendendo a percepção que elas têm da Lei Maria da Penha. 3 METODOLOGIA A escolha do estudo exploratório como metodologia decorreu do fato da temática abordada ainda ser pouco explorada.
Tal estudo foi realizado através de uma abordagem
quantitativa e qualitativa, a partir da análise dos dados obtidos e segundo a teoria vitimológica. O público-alvo da presente pesquisa era formado por mulheres vítimas de violência doméstica atendidas pela 1ª Delegacia de Policia da Mulher - DPMUL, devido a impossibilidade de entrevistar todo este público-alvo, foi definida uma população a ser estudada, representada por uma amostra, composta por 12 (doze) mulheres. O instrumento utilizado para obtenção dos dados junto às mulheres vítimas de violência doméstica, que foram entrevistadas, foi um questionário, o qual foi criado visando dar voz a estas mulheres, que muitas vezes estiveram na invisibilidade, em decorrência da vulnerabilidade e da cultura machista que incidia sobre elas, as oprimindo e as subjugando. O questionário foi aplicado por esta pesquisadora com as mulheres atendidas pela 1ª DPMUL no dia 03 de outubro de 2011, sendo 09 (nove) vítimas que estavam denunciando o
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agressor e 03 (três) que já haviam feito o boletim de ocorrência e estavam realizando outras atividades. 4 RESULTADOS DA PESQUISA E DISCUSSÕES A apresentação dos dados obtidos no presente estudo exploratório foi feita de acordo com a divisão estrutural do questionário aplicado com as vítimas de violência doméstica, visando primar por uma melhor didática, ou seja, inicialmente foi analisada a primeira parte do questionário que discorre sobre os dados pessoais das entrevistadas, buscando traçar um perfil das mulheres vítimas de violência doméstica da cidade do Recife. Após a definição do perfil das vítimas, foi avaliada a percepção que as mulheres entrevistadas têm de algumas das inovações criminais trazidas pela Lei Maria da Penha. 4. 1 PERFIL DAS MULHERES VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA AVALIADAS (DADOS PESSOAIS) A parte de dados pessoais do questionário era formada por 05 (cinco) perguntas, que serão analisadas uma por uma. A primeira pergunta questiona o grau de escolaridade da entrevistada e as respostas obtidas são expostas no gráfico a seguir:
Fonte: Oliveira (2011). Gráfico 01 – Grau de escolaridade
A segunda pergunta refere-se à renda média familiar, cujas respostas estão expostas no gráfico a seguir:
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Fonte: Oliveira (2011). Gráfico 02 – Renda média familiar
A terceira pergunta questionava se a mulher trabalhava ou não e mais uma vez as respostas obtidas são expostas por meio de um gráfico.
Fonte: Oliveira (2011). Gráfico 03 – Empregabilidade das vítimas
Os dados obtidos nestes três primeiros gráficos são semelhantes aos constantes da pesquisa realizada por Oliveira et al (2009) no Centro de Referência da Mulher de São Paulo e demonstram que o quantitativo de mulheres que sofrem violência nas camadas menos favorecidas ainda é bem mais elevado, indicando a vulnerabilidade social a que elas estão submetidas. A quarta pergunta questionava se a entrevistada tinha filhos, apenas uma respondeu negativamente e relacionada a essa pergunta, havia outra que inquiria a quantidade de filhos, para esta última pergunta as respostas obtidas foram as seguintes:
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Fonte: Oliveira (2011). Gráfico 04 – Quantidade de filhos
A última pergunta questionava a idade da entrevistada, as respostas obtidas foram organizadas nas seguintes faixas etárias: menor de 20 anos, entre 20 e 30 anos, entre 30 e 40 anos e acima de 40 anos, a partir desta organização foi elaborado mais um gráfico, representando as informações obtidas:
Fonte: Oliveira (2011). Gráfico 05 – Faixa etária
Com relação ao gráfico da faixa etária convém destacar que a entrevistada com menos de 20 anos havia sido agredida pelo padrasto (tentativa de estupro) e que um das que tem mais de 40 anos foi agredida pelo filho, demonstrando que a grande maioria das entrevistadas encontra-se na faixa etária entre 20 e 40 anos, principalmente quando a agressão ocorre em decorrência de relação afetiva. Tal realidade mais uma vez coincide com a encontrada por Oliveira et al (2009, p.74) que citando Guerra atribui essa realidade ao fato de que neste período da vida da mulher ela desperta mais a atenção dos homens, além de estar na fase produtiva o que gera ciúmes e insegurança dos seus companheiros ou maridos. 4.2 CONCEPÇÃO DAS VÍTIMAS DA LEI MARIA DA PENHA (PERGUNTAS GERAIS) A segunda parte do questionário trata sobre a situação de agressão em si, partindo para abordagem de temas relacionados com a Lei Maria da Penha, no que concerne a proibição de penas pecuniárias estabelecida por tal norma, além da aplicabilidade da prisão preventiva a 71
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qualquer momento, mesmo em crimes de menor potencial ofensivo e a proibição da renúncia à representação até o oferecimento da denúncia nos casos de ação penal pública condicionada. É importante ressaltar que tais questionamentos foram escolhidos, pois como já visto anteriormente segundo a vitimologia essas inovações criminais trazidas pela Lei Maria da Penha prejudicam de uma certa forma a participação da vítima na persecução penal. A primeira pergunta questionava qual o relacionamento (vínculo familiar) entre a vítima e o agressor 08 (oito) das entrevistadas responderam que se tratava de seus maridos ou companheiros ou ex-maridos ou companheiros e as demais dividiram-se em filho, irmão, cunhado e padrasto. Apesar de 66,66% dos casos envolver vínculo afetivo, ou seja, relaciona-se a marido/companheiro ou ex-marido/ex-companheiro, chama a atenção os demais casos que envolvem outros tipos familiares, mas que também são protegidos pela Lei Maria da Penha, uma vez que ela abrange qualquer tipo de violência doméstica e familiar contra a mulher. A segunda e a terceira pergunta são as fechadas. Na segunda foi questionado se foi a primeira vez que a vítima foi agredida apenas 33,33% disseram que sim, enquanto que 66,66% disseram que não, ou seja, já haviam sido agredidas anteriormente, o que demonstra que a reincidência de práticas violentas ainda é bastante alta. Na terceira pergunta questionou-se se, nos casos em que a vítima já havia sido agredida, se já havia denunciado anteriormente, 50% das entrevistadas disseram que sim e as outras 50% disseram que não, demonstrando que ainda há mulheres que apanham e não denunciam. Houve inclusive um caso em que o companheiro já havia sido preso com a aplicabilidade da Lei Maria da Penha e novamente voltou a agredir a vítima. A quarta pergunta era bastante genérica foi questionado o que as entrevistadas achavam da Lei Maria da Penha, ao que 66,66% das entrevistadas disseram que ela era muito boa ou ótima, 8,33% disse que era ruim e 25% disse que era razoável, pois falta a tal lei mais agilidade, uma entrevistada inclusive deu como exemplo o fato de a audiência do seu caso somente ser marcada muito tempo depois ao delito ter ocorrido. Ainda com relação a esta quarta pergunta destaca-se o depoimento da entrevistada que foi contra a Lei Maria da Penha, segundo ela “A Lei veio para as mulheres morrerem mais, pois os homens pensam que se é para ser preso por agredir, é melhor matar logo”. A partir da quinta pergunta é iniciada a avaliação da Lei Maria da Penha, sob a perspectiva das vítimas, tal pergunta questionou se o agressor deveria ficar preso juntamente com as pessoas
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presas por outros crimes 25% das entrevistadas disseram que sim, outras 25% disseram que ele não deveria ser preso e as 50% demais disseram que ele deveria ficar separado dos outros presos.
Este resultado demonstra claramente a preocupação das vítimas com seus agressores, apesar de terem sofrido violências, em muitos casos graves, elas não vêem seus agressores como marginais, mas sim como alguém com quem conviveram boa parte da vida e na maioria das vezes como o pai dos seus filhos. A sexta pergunta continua a discutir sobre a prisão dos agressores e perguntou se na opinião das entrevistadas a pena de prisão seria a ideal ou seria melhor aplicar outra pena, diante desse questionamento 33,33% das entrevistadas são a favor da prisão, houve ainda 8,33% que optou por uma pena mais brusca que a prisão, 58,33% opinaram por outras formas de punição, eis algumas sugestões apresentadas pelas entrevistadas: tratamento psicológico, tratamento contra drogas, serviços comunitários em hospitais, entre outros. O resultado vai ao encontro do que é preconizado pela Lei Maria da Penha, que proibiu penas pecuniárias, desconsiderando a opinião das vítimas, como já sido dito anteriormente as mulheres querem uma intervenção do Estado rápida e imediata para que saiam da situação de violência, porém não necessariamente desejam a prisão de seus conviventes, na verdade o ideal seria uma relativização desta proibição, talvez a limitando apenas aos crimes mais sérios que, via de regra, por si só já têm penas mais severas, sem atingir, contudo, os crimes de menor potencial ofensivo. A sétima pergunta investigou quais seriam os principais fatores que levam algumas mulheres a perdoar seu agressor e persistirem em um relacionamento, mesmo havendo agressões, o que chamou mais atenção nesta pergunta foi que a resposta mais repetida entre as entrevistadas foi o amor ou sentimento que as vítimas têm por seus agressores, para elas eles são seus maridos que tiveram um “momento de fraqueza”, além deste motivo outros podem ser destacados, como: o medo e a ameaça e os filhos. A Lei Maria da Penha primou de forma marcante pela adoção de uma política de assistência e apoio à vítima, estimulando a criação de órgãos institucionais de proteção às vítimas, todavia essa estrutura apesar de ter crescido bastante ainda é precária, conforme pode ser observado na oitava pergunta. Tal pergunta questionava se a política de assistência e apoio das mulheres vítimas de violência doméstica é satisfatória, apesar de algumas reconhecerem a melhora e estarem satisfeitas com o serviço prestado, a maioria das entrevistadas identificou problemas que prejudicam a rede de assistência e apoio, os principais foram os seguintes: demora da polícia para chegar no local do
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delito; além do que, apesar do aumento, a quantidade de delegacias especializadas na mulher ainda é pequena o que dificulta o acesso de mulheres que moram em locais distantes; e, por fim, a necessidade de mais capacitações para alguns policiais que ainda prestam um mau atendimento. A última pergunta questionava o que as entrevistadas achavam da renúncia à representação até o oferecimento da denúncia nos casos de ação penal pública condicionada, o que na linguagem popular costuma ser chamado de proibição de retirada da “queixa” (ressaltando que tal linguagem está equivocada juridicamente, haja vista que a queixa-crime somente ocorre nos crimes de ação penal privada, todavia ela foi utilizada no questionário devido ao fato de ser comumente utilizada pela população, ficando mais fácil a abordagem da pesquisadora frente às entrevistadas). Segundo os preceitos da vitimologia a proibição à retirada da renúncia cercearia a liberdade da vítima, peça fundamental no delito criminoso e que, portanto, deve ser ouvida e ter sua opinião registrada, desta maneira estaria a Lei Maria da Penha desestimulando a participação da vítima. O resultado obtido durante a pesquisa demonstra que apesar de não terem sua opinião considerada a maioria das mulheres, 66,66% concorda com o dispositivo que proíbe a retirada de denúncia, apenas 33,33% consideraram ruim tal disposição, inclusive uma das entrevistadas que estava na delegacia para ser ouvida e não para registrar o boletim de ocorrência afirmou que ela mesma queria retirar a “queixa”, como ela falou. Ressalta-se que este resultado, como já dito anteriormente, está influenciado por fortes sentimentos presentes em muitos depoimentos de entrevistadas que haviam sido agredidas há pouco tempo, na realidade o que se percebe é que em grande parte dos casos a mulher desiste de continuar com a ação penal e há todo um despreendimento do estado em vão. Essa realidade pode ser percebida com os dados obtidos em uma pesquisa realizada a partir do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC), no ano 2010/2011, orientado pela Drª. Marília Montenegro Pessoa de Mello, ocorrida por meio de um convênio entre a Universidade Católica de Pernambuco e o Tribunal de Justiça de Pernambuco, que foi desenvolvida no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Recife, para investigar vários aspectos dos processos julgados pelo referido juizado, sendo uma das abordagens realizada pela aluna Nathalia Cecília Guedes Dias Pereira, que tratou sobre o perfil da ofendida, a qual foi intitulada “Violência doméstica contra mulher: uma análise crítica do perfil da ofendida no Juizado da Mulher do Recife (2007- 2008)”. No trecho a seguir tem-se os dados
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desta pesquisa do PIBIC, que corroboram para a idéia de que a renúncia a representação ainda é maioria nos crimes de violência doméstica, in verbis: (...) Isto porque, a presente pesquisa demonstrou que 75,51% dos processos foram extintos sem resolução de mérito, sendo, em sua maioria, por retratação da vítima (nas ações públicas condicionadas à representação) ou decadência (nas ações privadas); 21,99% tiveram sentença absolutória; 1,65% despacho determinando o arquivamento do feito por insuficiência de provas e; apenas 0,82% sentença condenatória. (PEREIRA, 2011, p.07-08)
Todavia há casos em que a proibição da retirada da denúncia realmente faz-se necessária, pois, conforme destacado por uma das entrevistadas, o agressor poderia obrigar a vítima, por meio de ameaças, a ir até a delegacia e realizar a retirada. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A violência doméstica infelizmente sempre esteve presente na capital pernambucana, atingindo mulheres de todas as idades e classes sociais que muitas vezes sofriam caladas, amordaçadas por uma cultura patriarcalista que as impunham um papel de submissão aos homens. A criação da Lei Maria da Penha buscou coibir a prática de violências contra as mulheres no âmbito familiar ou doméstico, com a criação de uma série de inovações criminais. O objetivo do presente trabalho foi avaliar as inovações criminais trazidas por esta lei frente à teoria vitimológica e sob a perspectiva das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade do Recife. Pode ser percebido que de forma geral, a Lei Maria da Penha tem uma atenção especial à vítima, na medida em que ela foi criada com o objetivo precípuo de defender a mulher, estabelecendo mecanismos de apoio e assistência, além de tornar mais severas e eficazes as penas dos agressores, todavia alguns pontos são discutíveis do ponto de vista vitimológico, por limitar o papel da vítima, daí a necessidade de avaliar se essas inovações criminais são bem aceitas pelas principais interessadas: as vítimas; e a metodologia utilizada para essa avaliação foi a realização de um estudo exploratório. O estudo exploratório consistiu na aplicação de um questionário com vítimas de violência doméstica atendidas pela 1ª DPMUL. Os sentimentos de dor, desespero e humilhação apreendidos durante a realização das entrevistas para elaboração do estudo exploratório proposto corroborou para dimensionar o drama vivenciado por estas mulheres, imersas numa relação de amor e ódio, em que o medo, a 75
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dificuldade em reconhecer o fracasso na escolha de seus companheiros e a esperança que eles possam mudar prendem-nas num relacionamento falido. Do ponto de vista vitimológico a realização do estudo exploratório foi importantíssimo, pois possibilitou conhecer melhor qual o perfil das mulheres que sofrem violência doméstica na cidade do Recife, a partir da amostra avaliada, a partir do questionamento de grau escolaridade, renda média familiar, se a vítima trabalha ou não, se tem filhos e quantos seriam e a idade; sendo possível detectar que apesar de estar presente em diversas camadas sociais, é mais recorrente nas camadas sociais mais pobres e com baixa escolaridade, nas quais as mulheres estão mais expostas a fatores de vulnerabilidade social. Foi questionado também se era a primeira vez que a vítima estava sendo agredida ao que a maioria disse que não, reconhecendo a existência de um histórico de agressões, havia inclusive uma das entrevistadas que o companheiro já havia sido preso pela Lei Maria da Penha e também foi perguntado se a vítima já havia denunciado, ao que exatamente a metade das entrevistadas disse que “sim‟ demonstrando que muitas já haviam sofrido agressões, mas ainda não tinham denunciado e que a reincidência é bastante nestes crimes, o que pode ser reflexo da impunidade, que ainda existe nos casos de violência doméstica. Além disso, a importância residiu no fato de que permitiu que essas vítimas expressassem a opinião que elas têm sobre a norma que as protegem, a Lei Maria da Penha, vista de forma geral como positiva, mas com a presença de problemas significativos que dificultam sua melhor aplicabilidade. Conforme já destacado anteriormente pode ter havido um certo prejuízo na emissão das opiniões das vítimas pela sensibilidade que muitas estavam sentindo devido a proximidade com a ocorrência da agressão. De todo modo os resultados obtidos, principalmente com relação à prisão do agressor, demonstram incompatibilidades entre a vontade da vítima e o preconizado pela Lei Maria da Penha, haja vista que a maioria das entrevistadas prefere que o agressor não seja preso e caso seja não fique junto dos presos por outros crimes, enquanto que a lei proíbe a aplicabilidade de outras penas para o agressor. Já com relação à rede de apoio e assistência às vítimas percebe-se que apesar de a Lei dispor de forma bastante ampla e sistemática sobre essa matéria, ainda há muitas falhas que não garantem a segurança da mulher no momento da agressão, quando não há um rápido atendimento da emergência policial, que demora a chegar ao lugar do crime e após o registro da ocorrência, devido a burocracias para implementação das medidas protetivas, uma prova que
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assevera a existência dessas falhas é a morte de mulheres submetidas a medidas protetivas que ainda ocorre com frequencia. Houve também uma discussão sobre a proibição da renúncia a representação nos crimes de ação penal pública condicionada e o que pode ser percebido é que apesar de tal dispositivo cercear a liberdade de escolha da vítima, estando em desacordo com o preceituado pela teoria vitimológica tal vedação é válida para impedir que outros fatores como ameaças impeçam que haja a punição do agressor. O recomendável seria que nos delitos de menor potencial ofensivo as vítimas tivessem a liberdade de escolha, como perigo de contágio venéreo ou ameaça para que pudesse ser evitado o trabalho desnecessário da polícia, com a continuidade do inquérito; do Ministério Público, na análise do caso e do próprio judiciário, haja vista que a desistência somente iria ocorrer perante o juiz. Por outro lado nos casos mais graves, como estupro, deveria ser desconsiderada a opinião da vítima, pois muitas vezes tal opinião pode estar corrompida pelo medo do agressor. Associar o estudo da vitimologia com a violência doméstica, com base na análise da Lei Maria da Penha foi uma tarefa árdua, mas bastante prazerosa, por haver possibilitado ir além do dogmatismo pragmático das ciências jurídicas e percorrer a realidade subjetiva, na qual está inserido o direito, enquanto ciência social. Percebe-se, entretanto, que o ideal seria realizar uma pesquisa mais aprofundada, que pudesse abranger um maior número de entrevistadas, todavia devido a exigüidade do tempo e os encalços e burocracias vivenciados durante a elaboração do presente trabalho, tal aprofundamento não pode ser realizado, restando nesta oportunidade a constatação que o estudo desta temática não se encontra completamente esgotado e registrando a sugestão de novas pesquisas que atualizem a discussão a respeito deste assunto REFERÊNCIAS BRASIL. INFORMATIVO nº 654 do Supremo Tribunal Federal. Disponível em: <http://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo657.htm#transcricao1˃. ______. Lei 11.340/2006. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-
2006/2006/lei/l11340.htm Acesso em setembro de 2011. Constituição Federal. Disponível <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constitui%C3%A7ao.htm> setembro de 2011 ______.
em: Acesso em
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CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Anotações críticas sobre a lei de violência doméstica e familiar contra a mulher. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/8822/anotacoescriticas-sobre-a-lei-de-violencia-domestica-e-familiar-contra-a-mulher> Acesso em setembro de 2011. FILHO, Guaracy Moreira. Vitimologia: o papel da vítima na gênese do delito. São Paulo: Editora Jurídica Brasileira, 1999. KOSOVSKI, Ester. Vitimologia e direitos humanos: uma boa parceria. Revista da Faculdade de Direito de Campos, São Paulo, p.123-140, 2003-2004. MOREIRA, Rômulo de Andrade. A Lei Maria da Penha e suas inconstitucionalidades. Disponível em: <http://jus.com.br/revista/texto/10291/a-lei-maria-da-penha-e-suasinconstitucionalidades> Acesso em setembro de 2011. PEREIRA, Nathalia Cecília Guedes Dias. Violência doméstica contra mulher: uma análise crítica do perfil da ofendida no Juizado da Mulher do Recife (2007-2008). Relatório da Pesquisa do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC). Recife: Unicap, 2011.
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AS GRADES (IN) VISÍVEIS: USOS DA EDUCAÇÃO DENTRO DE PENINTENCIÁRIAS NA RESSOCIALIZAÇÃO DAS PRESAS Tomires Costa1
O presente artigo tem como pretensão fazer uma breve contextualização histórica sobre a educação dentro de estados democráticos de direito enquanto políticas públicas e enquanto direito fundamental. Ainda o artigo analisa a aplicabilidade da educação dentro do Presídio Feminino de Campina Grande analisando os usos que as apenadas fazem com a educação ofertada à elas pelo presídio, procurando explorar as modificações que as mesmas fazem com o aparato ditos ressocializadoras que na grande maioria das vezes estão à quem da realidade das presas. O grande questionamento é até onde estas políticas públicas permitem que as apenadas se reintegrem no seio social após a aplicabilidade de medidas ditas de ressocialização? A educação que esta sendo implementada no local para ressocializar as detentas que estão encarceradas dentro da instituição penitenciaria, buscam a realidade das detentas? A nova política penitenciária tem como finalidade reintegrar ao âmbito social os indivíduos apenados, tentando recuperá-los através de políticas públicas voltadas aos direitos humanos2. O Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos mostra a construção de políticas pública fundamentada nos direitos humanos, assim o PNEDH afirma que: A construção de políticas públicas nas áreas de justiça, segurança e administração penitenciária sob a ótica dos direitos humanos exige uma abordagem integradora, intersetorial e transversal com todas as demais políticas públicas voltadas para a melhoria da qualidade de vida e de promoção da igualdade, na perspectiva do fortalecimento do Estado Democrático de Direito. (BRASIL, 2010, p. 47)
A Constituição ainda vem reconhecendo que àquelas determinadas pessoas que mesmo estando com sua liberdade restringida, têm direitos a bens materiais e imateriais, expondo que todos os indivíduos tem direitos assegurados pela Carta Magna que deve-se voltar à elas como construção histórica, social e cultural da sociedade e pelos poderes públicos, desta maneira a Constituição de 1988 dita em seu artigo 216 A que
1Graduada
em História pela Universidade Estadual da Paraíba. Graduada em Direito UEPB. Especialista em Direitos Fundamentais e Democracia UEPB. 2 A educação em Direitos Humanos tenta uma aproximação com a realidade cultural de cada lugar de modo a fazer com que o ensino seja mais eficaz no sentido de respeitar as diferenças sociais, culturais das diversas sociedades em todo mundo, é desta maneira que com Symonides nos amparamos na questão dos direitos humanos na educação para desenvolver a conscientização dos diferentes sujeitos. SYMONIDES, Janusz. Direitos humanos: novas dimensões e desafios. Brasília: UNESCO / SEDH, 2003, p.68. 79
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O Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração, de forma descentralizada e participativa, institui um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes da Federação e a sociedade, tendo por objetivo promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais.
Porém tendo como foco as penitenciárias brasileiras podemos observar que as mesmas encontram-se num estado calamitoso onde faltam condições mínimas e necessárias para se tratar da recuperação dos indivíduos que se encontram encarcerados. Segundo Foucault (1999) o que acontece é que a detenção provoca por si só a reincidência, desta maneira, os indivíduos que se encontram dentro das prisões na maioria das vezes são antigos detentos.Desta forma, o encarceramento para Foucault (1999)3 não diminui a reincidência, mas aumenta o numero de apenados que voltam a praticar delitos, assim o autor coloca que “Conhecem-se todos os inconvenientes da prisão, e sabe-se que é perigosa quando não inútil. E, entretanto, não „vemos‟ o que pôr em seu lugar. Ela é a detestável solução, de que não se pode abrir mão”. (FOUCAULT 1999, p. 261)
Isso ocorre porque os métodos de reintegração dentro das penitenciárias brasileiras só agravam a situação, desta forma, Mirabete (2002, p.24) continua afirmando que as penas privativas de liberdade não são ressocializadoras, mas tendem a estigmatizar o detento, coisa que impede reincorporação ao meio social do apenado. Isso porque as políticas públicas procuram mais analisar dados do que a própria realidade4 dos apenados, implementando na maioria das vezes métodos ressocializadores que estão longe do seu dia a dia, assim Bittar (2010) mostra que a educação deve preparar, aproximando os sujeitos daquilo que está sendo estudado através de inúmeras linguagens de forma a fazer com que os mesmos sejam afetados, tocados e assim transformado por uma educação que busca a sua realidade. Tendo como ponto de partida os métodos utilizados para reintegrar o preso na sociedade, analisa que existem vários usos que as detentas fazem da educação que não coincidem com as pretensões estatais de ressocialização. A pretensão do Estado na implementação da educação dentro de presídios tem como intuito a tentativa de dignificar o ser que, de certa maneira, não mais se enquadra nos padrões sociais, além do mais a educação é uma forma de distanciar os seres humanos das grades das Foucault continua mostrando que para a sociedade aqueles que infligiram as normas do que é ditado, deve-se sofrer uma sanção dura, inflexível, ficando, o detendo, recolhido do seu meio, desta forma a sanção está ligado a uma função social. Porém devemos ter em mente – e o autor explicita isso – que este tipo de castigo ao preso que foi criado em um tempo que não permite que seja implementado da mesma forma atualmente, isso porque os mesmo foram criados para uma dada sociedade no seu tempo espaço. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis, Vozes, 1999. 4 Segundo Andreopoulos (2007, p. 122) os estudantes tornam-se conscientes de sua realidade quando passam a participar na criação do conhecimento crítico. ANDREOPOULOS, George; CLAUDE, Richard P. (orgs.). Educação em direitos humanos para o século XXI. São Paulo: Núcleo de Estudos da Violência, 2007. 3
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cadeias que aprisionam não apenas seus corpos, mas também suas mentes. Aos falarmos de cadeias, o nosso imaginário remete a um lugar repleto de grades, porém concomitantemente com as grades reais, as prisões são lugares de grades invisíveis, que estão no inconsciente daqueles que estão encarcerados dentro destes locus que não respeitam a dignidade da pessoa humana, o direito a liberdade, a uma boa alimentação e a educação, mesmo havendo leis que amparem estes sujeitos como é o caso da Constituição Federal, a Lei de Execução Penal que mostra em seu art.1° que “Execução penal tem por objetivo efetivar as disposições de sentença ou decisão criminal e proporcionar condições para a harmônica integração social do condenado e do internado”. Pode-se dizer, com isto, que a aplicabilidade das sanções que culminam nas penas privativa de liberdade não deve ter o objetivo apenas de disciplinar criminologicamente e castigar o individuo, mas deve também ter a finalidade de reintegração social do apenado de forma efetiva, isto é, tentar com a ressocialização de indivíduos presos reduzir os níveis de reincidência, e a educação é a melhor forma de se utilizar para ressocialização em presídios, pois ela é uma das medidas que auxilia no desenvolvimento cognitivo, na capacitação profissional e na busca da conscientização psicológico-social, havendo um resultado otimizador da reintegração do preso. O que cabe aqui respaldar é que nos países que se ditam democráticos, assim como o Brasil, o preso tem direito a educação, assim como informa a Lei de Execução Penal, contudo essa educação levada às prisões deve auxiliar na reintegração do detento fazendo com que o mesmo receba informações para ajudá-lo a analisar o meio em que vive. Desta maneira podemos afirmar que a democracia tem como base a tentativa de proteger os direitos fundamentais das pessoas tais como direito à igualdade, direito a liberdade de expressão, liberdade de religião assim como também ao ensino, independentemente da sua situação dentro do estado democrático de direito, com base nas leis brasileiras podemos analisar que o apenado tem o direito de poder participar da vida política, assim como também em todos os seus aspectos sejam eles econômico e cultural. Assim, quando se fala que um Estado de Direito é regido por uma democracia, isso quer dizer que o mesmo assegura direitos aos seus cidadãos e que os mesmos sejam protegidos juridicamente. Com isto, cada Estado constrói para si uma democracia respaldada de acordo com o locus, os costumes e a cultura local. O homem é pertencendor de direitos e garantias fundamentais, de direitos inerentes aos mesmos, ainda que tenham infringidos outras normas sociais, desta maneira Kelsen relata sobre os direitos fundamentais: ... esta proteção da minoria é a função essencial dos chamados Direitos Fundamentais e liberdades fundamentais, ou direitos do homem e do cidadão, garantidos por todas as modernas constituições das democracias parlamentares. (KELSEN, 2000, p. 67)
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Analisa-se desta maneira que os direitos e garantias fundamentais estão respaldados numa norma objetiva, a Constituição5, em que mostra que todos tem direitos à condições mínimas para a sua sobrevivência. Os direitos e garantias fundamentais fazem parte do próprio corpo social construídas historicamente a partir de um dado local, analisando a sociedade e os costumes daquela comunidade. Desta forma, segundo Claude e Andreopoulos (2007) mostra que a educação em direitos humanos faz com que analisemos as diferenças entre os diferentes sujeitos, assim a educação em prisões não são aplicadas de forma a concientizar a ressocialização das detentas, mas as mesmas fazem outros usos da educação que não para auxiliar no seu cotidiano fora das prisões. Desta forma, há a necessidade de se trabalhar a mentalidade da sociedade em relação aos presos que estão privados de sua liberdade mediante as políticas públicas como o ensino dentro dos presídios que auxiliam numa formação do preso. As políticas públicas podem ajudar na ressocialização das detentas, fazendo com que as mesmas se reintegrem à sociedade por meio de uma formação e orientação crítica de si e do meio, fazendo com que as mesmas visualizem o que é aceito ou não pela sociedade desde que essas políticas públicas sejam construídas de forma a analisar o próprio dia-a-dia da detenta, e se inserir no seu meio. A pesquisa tem como propósito uma abordagem crítica sobre a temática do ensino dentro do Presídio Feminino na cidade de Campina Grande. Tendo em vista o ensino enquanto política pública, uma vez que a educação faz parte do conjunto de programas, atividades, ações que são desenvolvidas pelo Estado com a participação de entidades públicas e privadas, e que tem como objetivo primordial assegurar certo direito ao indivíduo. A temática veio à tona depois de se observar a carência de estudos sobre a educação e sua importância dentro dos presídios. O que se constatou foi que embora muitos projetos em relação à educação estejam sendo implementados pelo governo, pouco se comenta sobre esse tipo de política pública. A figura das mulheres foi em todos os campos dos saberes científicos tiveram que percorrer uma longa trajetória até “ganhar vozes”. Segundo Perrot (1998), por mais que elas pertençam a uma camada privilegiada da sociedade, as mesmas ainda assim são (ou um dia foram)
Os Direitos e Garantias Fundamentais estão previstos na Constituição Federal Brasileira de 1988, no artigo 5º no decorrer de seus incisos. são os direitos ligados ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, tais como à vida, à igualdade, à dignidade, à segurança, à honra, à liberdade e à propriedade. 5
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excluídas da história pelo fato de pertencerem ao sexo feminino6, porém o que está em questão aqui não é subjugar as mulheres como “coitadinhas” ou como estando em segundo plano, mas o objetivo é de analisar suas resistências, suas lutas, suas formas de se inscreverem no mundo, suas táticas e astúcias nos usos de instrumentos normatizadores, e suas formas de ressignificar o que o sistema as impõe. Com base nas pesquisas realizadas, constatou-se que há poucos estudos sobre o ensino dentro de presídios, principalmente quando este objeto se estende até a cidade de Campina Grande a documentação se torna ainda mais escassa. Esse quadro piorar quando levamos para o lado das detentas, havendo pouquíssimas citações referentes às mulheres presidiárias que passam a usar a educação como forma de ressocialização e que passam a ser, de certa forma, construtoras e transformadoras do seu cotidiano. Além da pouca documentação há também o estigma perante muitas pessoas que preferem fechar os olhos ao que ocorre dentro dos sistemas penitenciários, havendo em relação aos presídios todo o estigma que a sociedade construiu em cima dele, como um lugar obscuro, sujo, que retém indivíduos perigosos que não se enquadram mais nos padrões sociais, por isso, os presídios e todos aqueles que circundam o sistema carregam marcas difíceis de serem apagadas. O que a sociedade não percebe – ou não quer perceber – é que os sujeitos que estão retidos nesses lócus, são, muitas vezes, produtos da própria sociedade, são seres alienígenas do seu próprio planeta. Desta forma, é de extrema relevância o desenvolvimento do tema nas academias sobre o estudo da educação dentro dos presídios, pois é a partir destas pesquisas que podemos modificar, ressignificar o estigma construído sobre os presidiários como seres à margem, e assim demonstrar a sociedade que há como ressocializar estas pessoas para novamente se integrarem ao âmbito social como analisa Tosi (2006)7, o mesmo mostra que deve haver uma proposta educativa de um projeto transformador de toda sociedade, de um olhar mais justo de todo corpo social. Através de pesquisas realizadas em sites do Governo foi constatado que há nas regiões Sul e Sudeste do país e também em alguns estados do nordeste que os projetos de educação dentro oferecidos dentro dos presídios são procurados pelos próprios detentos antes mesmo da inauguração. Sinal do interesse da população carcerária pelo ensino seja ele para diminuir a delonga da espera dos processos ou para diminuir seu tempo dentro dos presídios. Mas o detento Poole faz uma contextualização histórica sobre a luta pela independência e pelo direito a igualdade das mulheres. POOLE, Hilary et al. (orgs). Direitos humanos: referências essenciais. São Paulo: EDUSP / NEV, 2007, p. 22. 7 Giuseppe Tosi em seu texto “Os Direitos Humanos com o Eixo Articulador do Ensino, da Pesquisa e da Extensão Universitária”, faz uma analise da educação para as classes populares, dos oprimidos e excluídos da sociedade tendo em vista uma modificação do olhar da sociedade perante essa camada, inspirado na Pedagogia do Oprimido de Paulo Freire. TOSI, Giuseppe (org) Formação em Direitos Humanos na Universidade. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2001. (2006, p.29). 6
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tem direito a educação? Tendo em vista que a educação é um direito fundamental e social contido na Constitucional, analisa-se que os detentos das cadeias do Brasil tem o direito de receber educação de qualidade e gratuita dentro das penitenciárias, pois a Constituição é clara em dizer que a educação é direito de “todos” ... a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando o pleno desenvolvimento da pessoa, o seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho".(Grifos nossos)
Porém mesmo havendo projetos inovadores que o Ministério da Educação desenvolve como o Programa Brasil Alfabetizado (PBA) trabalha não só com alfabetização de jovens, mas também com adultos e idosos, ou mesmo através de leis como a Lei n° 9.394 a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional, e o Plano Nacional de Educação (PNE), não há em nenhum deles amparo especificado sobre educação dentro de presídio. Com isto, devem-se implantar políticas públicas eficientes no sistema carcerário nacional pretendendo não só a reabilitação, profissionalização, mas em conjunto a reinserção social do que está sob custodia. Analisa-se, desta forma que, é de extrema relevância o estudo sobre a educação nos presídios como uma ferramenta que desenvolve e auxilia na transformação do cidadão crítico que tem tanto obrigações quanto direitos. Assim, programas de ensino dentro de presídios devem visar dar condições a cidadãos de ocupar o seu espaço na sociedade. Historicamente o advento dos direitos humanos e dos direitos e garantias fundamentais se desenvolveram através de um processo gradativo, onde inicialmente os direitos dos indivíduos de uma dada sociedade são direitos constituídos por monarcas, por pessoas dos altos escalões da sociedade, desta maneira, comprometendo os direitos da massa, dos sujeitos marginalizados. Podemos afirmar segundo Comparato (2008) que a condição humana exige respeito de determinados bens e valores, mesmo que o sujeito se encontre em uma situação onde suas atitudes estejam fora do que é imposto pelo estado, o mesmo ainda é resguardado pelo direito inerente a ele, o Direitos Humanos, sendo este por sua vez elaborado a partir de costumes, isto é, através de um sistema de valores construídos coletivamente, sendo produto da ação da coletividade humana, que acompanha e reflete sua constante evolução e acolhe o clamor de justiça dos povos. Com o passar do tempo, depois de inúmeras revoltas em todo mundo, percebeu-se que “ninguém – nenhum indivíduo, gênero, etnia, classe social, grupo religioso ou nação – pode afirmar-se superior aos demais” Comparato (2008, p.1). Continua afirmando Comparato (2008)
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(...) a dignidade da pessoa humana não consiste apenas no fato de ser ela, diferentemente das coisas, um ser considerado e tratado, em sim mesmo, como um fim em si e nunca como um meio para a consecução de determinado resultado. Ela resulta também do fato de que, pela sua vontade racional, só a pessoa vive em condições de autonomia, isto é, como ser capaz de guiar-se pelas leis que ele próprio edita. (COMPARATO 2008, p. 22)
Pode-se afirmar de acordo com Comparato (2008) que a pessoa é a mesma em todos os lugares, considerando as diversidades culturais, deve ser tratada igualmente, de forma justa e solidária, a dignidade, por sua vez, é inerente a todo e qualquer ser humano como a razão máxima do direito e da sociedade, devendo ser resguardada e cultivada por todos. Porém os sujeitos têm suas singularidades, cada indivíduo é inserido em seu tempo/espaço cultural tem sua subjetividade, tem a sua singularidade e que é insubstituível sendo portador de uma dignidade singular. Certeau (1998) analisa que a antidisciplina caracteriza-se como a astúcia, como resistência no cotidiano, esvaziando assim, as pretensões de uniformização e obediência idealizadas pela sociedade vigente. Desta maneira, o sistema oferece através de suas estratégias o ensino, a educação às detentas, para que as mesmas voltem a se enquadrarem aos padrões sociais exigidos e assim poderem se inserirem novamente na sociedade. O que acontece é que estas detentas usam das astucias, das artimanhas, se apropriando do que o estado lhes oferecem para outras finalidades. Certeau (1998) afirma A „fabricação‟ que se quer detectar é uma produção, uma poética – mas escondida, porque ela se dissemina nas regiões definidas e ocupadas pelos sistemas da „produção‟ (televisiva, urbanística, comercial.) e porque a extensão sempre mais totalitária desses sistemas não deixa aos „consumidores‟ um lugar onde possam marcar o que fazem com os produtos. A uma produção racionalizada, expansionista além de centralizada, barulhenta e espetacular, corresponde outra produção, qualificada de „consumo‟: esta é astuciosa, é dispersa, mas ao mesmo tempo ela se insinua ubiquamente silenciosa e quase invisível, pois não se faz notar com produtos próprios, mas nas maneiras de empregar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante. (CERTEAU 2009, P.38)
Assim as detentas usam a lei, as políticas públicas lhes são impostas pelo poder para outros fins que não a do sistema, fazendo com elas outras coisas, subvertendo a sua forma original, modificando sem os deixar. Os valores e produtos consumidos por estes sujeitos anônimos em seu cotidiano, os bens culturais e materiais e imateriais são, como mostra Certeau (1998), sempre apropriados e com isto ressignificados (colocando novos interesses) por estes homens e mulheres “ordinários” que modificam as pretensões previstas nas idealizações. Essas „maneira de fazer‟ constituem as mil práticas pelas quais usuários se reapropriam do espaço organizado pelas técnicas da produção cultural (...) operações quase 85
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microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de „táticas‟ articuladas sobre os „detalhes‟ do cotidiano (...). Estes modos de proceder e essas astúcias de consumidores compõem, no limite, a rede de uma antidisciplina(...) (CERTEAU. 1998. 41)
Assim, Certeau (1998) mostra que esta antidisciplina caracteriza-se como a astúcia dos “consumidores” (que por sua vez também são produtores de ideias e de valores dos bens materiais e culturais) que aparece como resistência no cotidiano. Com isto pode-se dizer que a cultura ordinária cotidiana das detentas do Presídio Feminino de Campina Grande, driblam o sistema, fingindo seu jogo, estando, muitas vezes estes recursos ocultos, numa subversão silenciosa e até mesmo no próprio interior da ordem instituída nas prisões. Bobbio (2004) vai analisar que o direito fundamental mais importante será o da liberdade, abordando a importância dos direitos fundamentais nas sociedades e o quanto esses direitos vêm ganhando força. O autor continua afirmando que o reconhecimento da proteção dos direitos do homem está prevista nas constituições ditas democráticas. Desta forma, podemos analisar que por mais que o direito a liberdade esteja previsto em normas, o que se esta se aplicando são normas medievais, fazendo com que não haja uma reintegração da detenda na sociedade. Assim, analisa-se que por mais que se tente valorizar os direitos fundamentais e que os direitos dos indivíduos devem ser respeitados, pouco se ver essa questão nas penitenciarias. Assim Bobbio (2004) coloca Do ponto de vista teórico, sempre defendi – e continuo a defender, fortalecido por novos argumentos – que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizadas por lutas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez e nem de uma vez por todos (BOBBIO, p. 25)
Bobbio (2004), assim coloca a questão do direito enquanto uma subjetividade, isto porque o direito é construção histórica, passível de modificação de acordo com seu tempo, lugar e costume, desta maneira o direito, não é algo passível de um absolutismo, não sendo admissível o uso das penas privativas de liberdade tais como usavam em outros tempos e em outras sociedades nos tempos atuais. Com isto, Kelsen(2003) trabalha a democracia enquanto uma espécie de regime político mais adequado para a realização da liberdade se este estiver em conjunto com a participação do povo através de uma interação discursiva, assim Kelsen coloca ...a vontade da comunidade numa democracia é sempre criada através da discussão contínua, entre maioria e minoria, através da livre consideração de argumentos a favor e contra certa regulamentação de uma matéria. Essa discussão tem lugar não apenas no parlamento, mas também, e em primeiro lugar em encontros políticos, jornais, livros e
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outros veículos de opinião. Uma democracia sem opinião pública é uma contradição em termos. (KELSEN, p. 411, 2003)
Desta forma, na democracia, a construção das normas jurídicas, por meio dos direitos fundamentais, terá como intuito a proteção das minorias. Porém o que verificamos é que a democracia brasileira foge do que Kelsen analisava em seu estudo, pois bem se sabe que as normas jurídicas no Brasil são construídas por uma minoria favorecida para ser imposto a uma maioria que está quem do que foi construído nas normas para elas, mas não buscou em momento algum ouvir suas “vozes”. Com isto podemos afirmar que pouco se investe na ressocialização dos presos das cadeiras públicas do Brasil, deixando de lado o que a teoria jurídica trabalha. Chartier (1990) trabalha com as questões referentes às representações, práticas e apropriações, uma “nova” forma de interrogar a realidade. O autor ainda toma como base temas do domínio da cultura e salienta o papel das representações dentro das práticas cotidianas. O que verificamos, com base na leitura de seus textos, é que os diferentes lugares e momentos de uma realidade social são construídos, pensados e dados a ler de acordo com seu tempo/espaço. A problemática do „mundo como representação‟, moldado através das séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figurarão desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real (...) o interesse manifestado pelo processo por intermédio do qual e historicamente produzido um sentido e diferenciadamente construída uma significação. (CHARTIER. 1990, p.23)
Chartier (1990) ainda frisa a importância de verificarmos e analisarmos o contexto de um determinado trabalho de um autor, pois há nele representações como realidades de múltiplos sentidos. Mesmo porque as representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem à universalidade de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Desta maneira analisa-se que as detentas se apropriam de um “texto” e vai ser afetado, produzindo uma nova forma de compreender a si próprio no mundo, dando uma refiguração. Assim, a partir das práticas culturais que estas mulheres fazem parte, elas se apropriam de ideias e valores do seu cotidiano, e representam suas obras através de cores, traços, formas, etc. Utilizando-se da teoria de Certeau (1998) Com isto pretendemos analisar suas vozes, como as mesmas impõem sua forma de agir e pensar, as suas “maneiras de fazer” constituem práticas onde elas se apropriam do espaço social e de seus produtos através de maneiras “microbianas” que se proliferam no interior das estruturas modificando, de certa forma, seu funcionamento, dando novas formas a partir de seus olhares.
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OS VETORES DA VIOLÊNCIA: UMA ANÁLISE SOCIOECONÔMICA E COMPORTAMENTAL SOBRE O AUMENTO DA CRIMINALIDADE E DA IMPUNIDADE NO BRASIL PÓS-DITADURA Phillipe Giovanni Rocha Martins da Silva1
1 INTRODUÇÃO A ascendência criminal é sem dúvida um dos mais graves e contraditórios problemas enfrentados pelo país na atualidade. Grave porque presente em todos os setores sociais, e contraditório no que diz respeito a todas as disparidades que cercam o fenômeno da violência urbana. Inúmeras causas são apontadas como vetores dessa realidade, a maioria delas inevitavelmente interligadas entre si. Há quem assimile, v.g., diversos fatores históricos como agravantes do estágio violento atual, a exemplo das omissões do Estado em punir condutas violadoras de direitos humanos durante a chamada “transição democrática”. Outras tantas, além do tradicional fator socioeconômico, grande parte dos crimes de hoje estão de alguma forma ligados ao narcotráfico, base de sustento do crime organizado. As violências perpetradas por agentes públicos, a corrupção e o excesso de força, de igual forma, por vezes estão vinculados a essa mesma realidade: ao aumento da violência. A sociedade que é vítima, por sua vez, ainda subnotifica excessivamente tais ocorrências, o que tem gerado uma espécie de cumplicidade social em relação ao desenvolvimento da criminalidade no país. Com base nisso, o objetivo desse texto é examinar o grau de relação do alto índice criminal no país com a herança da impunidade e outras causas citadas como responsáveis diretas pelo aumento da violência, quais sejam, a exclusão socioeconômica, o tráfico ilícito de entorpecentes e o excesso de subnotificações criminais. 2 OS (IR)RESPONSÁVEIS PELA INSEGURANÇA
Já não parece novidade ligarmos a TV e nos deparamos com as manchetes de inúmeros ilícitos que diariamente ocorrem no país, crimes tais que muitas vezes se consumam por circunstâncias banais e desproporcionais ao fato ensejador da ocorrência. Explosões a caixas
Advogado; Especialista em Segurança Pública e Direitos humanos pela UFPB/SENASP. Membro Administrativo da Academia Nacional de Estudos Transnacionais – ANET; Coordenador da Escola Superior de Advocacia da Paraíba – ESA/PB; Membro efetivo do Grupo de Pesquisa "Justiça e Política: Constitucionalismo, democracia e ativismo jurídico" (UFPB/CNPq). 1
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eletrônicos, roubos, latrocínios e homicídios são apenas parcelas desses delitos que cada vez mais ganham destaque na mídia e na sociedade como um todo. Dificilmente não conhecemos alguém que já tenha sido vítima dessa violência, seja ela física ou até mesmo de natureza psicológica. Algumas delas, inclusive, são oriundas do próprio núcleo familiar, que uma vez associadas ao medo e à insegurança da vítima se somam aos deslizes da impunidade que acabam por fomentar a prática de crimes mais graves. Essa violência, que para muitos tem reflexos históricos, funciona, muitas vezes, para autoafirmar a autoridade do chefe de família (ALDRIGHI apud. FIORELLI; MANGINI, 2009). As estatísticas da violência no país hoje refletem de forma significativa a discrepância que existe entre a quantidade de investimentos em segurança pública e sua situação emergencial que indiretamente tem favorecido o desenvolvimento da criminalidade no país. Para se ter uma idéia disso, só em 2013 foram investidos 258 bilhões de reais com custos da violência, segurança pública, prisões e unidades de medidas socioeducativas no país, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2014, e o que se observa é que os resultados ainda não são dos mais satisfatórios. Segundo dados atuais, a cada 10 minutos uma pessoa é assassinada no país, número esse que inclusive não para de crescer. No que se referem às prisões, os dados também são alarmantes. Ainda segundo o anuário, o Brasil tem hoje 574.207 pessoas encarceradas, dos quais 40% são presos provisórios. Em síntese, nota-se que toda essa problemática não se resume, a priori, aos problemas de investimentos em segurança por si só, senão vejamos. Não obstante o termo segurança pública ainda seja equivocadamente enxergado no seu viés ideológico mais restrito por grande parte da sociedade civil organizada, tal conceito muitas vezes é erroneamente vinculado apenas à atuação ostensiva da polícia. Para comprovar essa realidade, basta refletirmos que, com freqüência, tratamos uma determinada localidade como mais ou menos segura considerando a assiduidade da atuação policial através das tradicionais rondas, quando a mesma é, na verdade, apenas uma pequena parcela do conjunto de atividades vinculadas à atuação dos dispositivos de segurança na manutenção da ordem pública. É certo que o crescimento da criminalidade hoje também é conseqüência de uma série de fatores que tratados de forma isolada tendem apenas a agravar o quadro existente. O tráfico de armas e de drogas quando alinhados, por exemplo, “constituem as dinâmicas criminais mais perversas em curso na sociedade brasileira” (SOARES, 2000, p. 267). Políticas preventivas, da mesma forma, são eficazes na medida em que a população age de forma conjunta com o Estado,
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e não este exclusivamente sozinho. O que se presencia diariamente, todavia, muito difere dessa realidade. Explicamos. O desenvolvimento tecnológico tem despertado nos últimos anos um maior interesse das gangues e quadrilhas especializadas por furtos e roubos de objetos eletroeletrônicos. Isso ocorre porque os mesmos são facilmente convertidos em moeda de troca para pagamentos de dívidas da criminalidade. Celulares, laptops e tablets são alguns dos favoritos. Não bastasse a ocorrência criminosa, inúmeros são os casos em que a vítima de um furto ou roubo, v.g, prefere o anonimato à notificação, temendo represarias do criminoso ou dos demais membros de sua gangue que permanecem em liberdade. O temor é ainda maior quando a vítima reside próximo de onde ocorreu o ilícito ou quando ela conhece o criminoso. Uma das motivações também é a idéia negativa de que a prisão do indivíduo jamais acorrerá, preferindo a vítima, então, arcar sozinha com os prejuízos materiais suportados e silenciar diante do ocorrido. O mesmo ocorre com algumas espécies de crimes que tendem a expor ainda mais a vítima perante o criminoso e também perante a própria sociedade, a exemplo do estupro. Buscando minimizar a extensão do dano sofrido é que, por vezes, a vítima opta por se omitir na notificação da ocorrência. Ainda segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 2013 foram registrados 50.320 casos de estupros no país, percentual que poderia ser bem maior se mais de 60% dos casos não deixassem de ser registrados. O que as vítimas não compreendem é que essa omissão, além de representar uma espécie de aceitação do dano sofrido, contribuindo com a banalização da violência, é, ao mesmo tempo, um ato que pode significar a permanência do criminoso na sociedade e sua conseqüente continuidade delitiva. Além do mais, a simples comunicação do fato à autoridade policial, com indicação detalhada da fisionomia do criminoso, quando possível, bem como sua área de atuação criminosa, pode ser fundamental para a captura do indivíduo e sua retirada da sociedade, evitando, inclusive, que ela própria volte a ser vítima do mesmo criminoso. Nesse diapasão, indispensável tem sido a posição das autoridades policiais em propiciar um ambiente acolhedor que transmita credibilidade para a vítima no momento em que a mesma se submete a prestar tais informações. Neste sentido, Rosa Maria Fischer, aponta que: Tanto o excesso de pessoas esperando atendimento quanto a superlotação da carceragem são utilizados para ressaltar a importância do papel que a organização desempenha. Este clima intimida o público que procura espontaneamente a delegacia, visto que lhe é passada sempre a impressão de que os funcionários estão muito ocupados com problemas maiores e mais graves do que aqueles que levou cada um a buscar o serviço social. Funciona também como elemento para isolar o público, 92
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colocando-o como dependente da vontade dos funcionários, já que a desorganização criada pela rotina impede a percepção dos padrões de funcionamento, e, consequentemente, a possibilidade de que as pessoas fundamentem suas críticas sobre eles (FISCHER, 1985, p.47).
Percebe-se ainda que o instrumento ressocializador do Estado é caótico e nitidamente defasado, e somente funciona para com os que de fato desejam para si a reinserção social, ainda que com todas as dificuldades que lhe são próprias e pelas condições do cárcere no país que quase sempre viola algum direito fundamental constitucionalmente garantido. O país conta ainda com a violência decorrente do tráfico de drogas como um dos principais motivadores do aumento no número de homicídios segundo as estatísticas, e a população que pede socorro é a mesma que se cala diante da violência sofrida. É dizer, o Estado, como grande responsável pela segurança pública, é o único que detém força capaz de agir direta e coercitivamente sobre os criminosos, impondo sanções e demais medidas reprimendas. Ocorre que conforme disciplina o artigo 144 da Carta Magna, a segurança pública é não apenas um direito como também responsabilidade de toda sociedade, e sendo assim, cabe ao Estado garantir o mínimo necessário de proteção ao seu povo através de uma viável política de segurança apta a efetivar outros direitos correlatos, como a própria cidadania e a dignidade humana, preceito maior dos direitos humanos. Não se exclui, todavia, a participação social através de uma interação direta com o poder público na medida de possibilidades racionais e adequadas, uma vez que já se denota o quão importante tem sido a cooperação da população nas atividades estatais essenciais, especialmente no que diz respeito a preservação da paz social. O excesso de subnotificações contribui ainda com os baixos índices de elucidação de crimes no país. Segundo o relatório CNMP/ENASP 2012, “Meta 2 – A impunidade como alvo: Diagnóstico da Investigação de Homicídios no Brasil”, com base em dados estatísticos específicos, inclusive da Associação Brasileira de Criminalística, apenas referente aos homicídios, o percentual de elucidação de homicídios não chega a 10%, um verdadeiro fomento à impunidade desde o processo de redemocratização. A respeito dessa necessidade de reorganização social, esclarece Percival de Souza, citado por Carlos Alberto Queiroz: Do lado de cá, precisamos, de igual modo, ter uma sociedade igualmente organizada, que saiba perceber e enfrentar os sintomas da criminalidade moderna. Essa luta, atualmente é absolutamente desigual porque entre ficar no Olimpo e conhecer a dura realidade das ruas existe uma considerável diferença. [...] A marcha evolutiva do ser humano, toda ela feita entre crises e calmarias, numa infindável marcha histórica, pressupõe, sempre, o cotejo entre as idéias. (SOUZA apud QUEIROZ, 1998, p.45).
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Situação semelhante pode ser observada em outras diversas ocasiões, como no exame de corpo de delito, por exemplo. Nesse sentido, brilhantemente se manifestam José Fiorelli e Rosana Mangini: Tratando-se da vítima de violência sexual, são conhecidos os efeitos da insensibilidade e falta de cuidados de muitos médicos no exame de corpo de delito, quando necessário; o que seria um procedimento clínico pode ganhar os contornos de uma nova invasão. (FIORELLI; MANGINI, 2009, p. 205).
Diante dessa realidade, nos cabe indagar: quais seriam os verdadeiros responsáveis pela ascensão dessa violência e quais os meios de combater – ou reduzir – esse mal que hoje recai com tanta incidência nos mais variados setores sociais? Hoje, estudiosos, como a cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, apontam ainda a impunidade dos crimes cometidos durante o regime militar como uma das grandes responsáveis por novas violações aos direitos humanos na atualidade. 3 A SEGURANÇA PÚBLICA NO PERÍODO PÓS-DITATORIAL Atender demandas sociais exige do ente estatal um sólido investimento nos setores envolvidos e uma vasta capacitação de longo prazo dos profissionais que neles atuam. Ocorre que esse não parece ser nem de longe o maior questionamento referente à qualidade dos serviços públicos que na atualidade são ofertados à população. A análise pormenorizada do fator eficiência é necessária na medida em que a participação social nas atividades de segurança pública dos estados tem exigido uma maior transparência do efeito produtividade que recai diretamente sobre a atuação, por exemplo, das respectivas secretarias de segurança. É dizer, esse poder participativo, hoje tão latente, tem exigido uma maior repercussão não apenas dos pontos positivos, mas principalmente dos aspectos negativos que decorrem da atividade estatal ligada à atuação do poder das polícias e demais dispositivos de segurança, por exemplo. Nesse sentido, é indispensável que a polícia cumpra como seu fiel papel na manutenção da ordem pública. Para Balestreri: Dizendo de outra forma, em termos de inconsistente coletivo, o policial exerce função educativa arquetípica: dever ser “o mocinho” da história, com procedimentos e atitudes coerentes com a “firmeza moralmente reta”, oposta radicalmente aos desvios perversos do outro ente arquetípico que se lhe contrapõe: o anti- herói, o bandido. (BALESTRERI, 2003, p. 28).
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Por estas razões, indispensável se faz a figura do policiamento comunitário no estreitamento desse laço participativo, uma vez que esse tipo de atividade funciona como uma espécie de instrumento de concretização dos projetos de segurança pública ligados à participação social. Nessa linha de entendimento, João dos Reis Velloso e Roberto Albuquerque, na obra “Pobreza, Cidadania e Segurança”, cita como proposta de ação do então Ministro General Alberto Cardoso: O íntimo relacionamento com a comunidade voltando-se para a defesa do cidadão, que deve ser um aliado constante. Nesse sentido, essa aliança passa também pelo controle externo da polícia pela sociedade, um mecanismo importante para que essa sociedade seja sua avalista (VELLOSO; ALBUQUERQUE, 2000, p. 296).
É bem verdade que é tarefa do Estado aprimorar estratégias de alto desempenho visando coibir e prevenir a prática de ilícitos, incluindo-se nesse grupo, investimentos em inteligência policial, melhor remuneração das polícias, dentre outros. Quanto maior a confiança da população no aparato de segurança estatal, maior será a sua disponibilidade interativa e participativa. Essa compreensão, porém, se choca com uma série de outros agravantes sociais e históricos. Sob o ponto de vista histórico, vários estudos associam a violência à impunidade, inclusive dos ilícitos e excessos cometidos durante regimes de exceção. Nesta senda, destaca-se a cientista política norte-americana Kathryn Sikkink, que em sua obra “The justice cascade: how human rights prosecutions are changing world politics.”, ratificou o que denominou de “cascata de justiça”, (SIKKINK, 2011). Justiça de cascata traduz a tendência de julgamentos envolvendo responsáveis por violações a Direitos Humanos durante regimes autoritários (LUTZ; SIKKINK, 2001). Segundo Kathryn Sikkink e Carrie Booth Walling, a justiça compreende necessariamente quatro pontos específicos: o direito à verdade, o direito à justiça, à reparação e à reformas institucionais. (SIKKINK e WALLING apud TELES; SAFATLE, 2010). No Brasil, esse processo de justiça é visto como controverso, uma vez que os critérios que mencionamos anteriormente não se vislumbram em sua plenitude, tendo em vista os obstáculos que impedem, por exemplo, a punição dos responsáveis por essas violações, tornando incompleta a chamada justiça de transição no país. Nesse sentido, Teles e Safatle são enfáticos: Constata-se na experiência de transição brasileira um processo aberto e incompleto, na medida em que tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos no regime militar, nos termos da Lei 9.140/95. Emergencial é avançar na garantia do direito à verdade, do direito à justiça e em reformas institucionais. (TELES; SAFATLE, 2010, p. 104)
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Kathryn Sikkik (2011) nos ensina que os Estados utilizam três modelos de responsabilização por violações ocorridas no passado. O primeiro deles é o chamado “modelo da imunidade” (ou a impunidade), onde nem o Estado nem as suas autoridades poderiam ou deveriam ser responsabilizados pelas violações aos direitos humanos. Existia aqui, pois, uma imunidade genérica. As falhas verificadas no modelo em questão só foram minimizadas após o término do holocausto com a criação da Organização das Nações Unidas (1945), da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e pelos tratados internacionais de Direitos Humanos que surgiriam a posteriori (SIKKINK, 2011), além da Anistia Internacional e da criação do Instituto Interamericano de Direitos Humanos, “tendo como finalidade a divulgação de ideias e a educação em Direitos Humanos” (MAGALHÃES, 2000, p. 35). Surgia aqui, o modelo de responsabilização do Estado que décadas depois dividiria espaço com um terceiro modelo, o de responsabilização penal individual. Anos após o término da ditadura no Brasil é bem verdade que o país ainda demonstra sentir reflexos de uma redemocratização tida como inacabada, uma vez que a justiça de transição representa, ao mesmo tempo, um indicativo de não tolerância de condutas semelhantes que eventualmente possam vir a se repetir. É dizer, quando o Estado se omite e não toma esse tipo de providencia, abre brechas para ocorrências muitas vezes ainda mais gravosas. Teles e Safatle, citando o estudo de Kathryn Sikkink e Carrie Walling continuam: Estudos demonstram que justiça de transição tem sido capaz de fortalecer o Estado de Direito, a democracia e o regime de Direitos Humanos, não representando qualquer risco, ameaça ou instabilidade democrática, tendo, ainda um valor pedagógico para as futuras gerações. (TELES; SAFATLE, 2010, p. 104-105)
E prosseguem: Vale dizer, a inexistência de uma justiça de transição é fator a justificar o grave quadro de violações de direitos humanos no Brasil, sobretudo no que se refere à prática de tortura e à impunidade que a fomenta (TELES; SAFATLE, 2010, p. 105)
É certo que qualquer conduta omissiva do Estado referente às reprimendas de condutas ilícitas e violadoras de direitos humanos acaba por dar ensejo a continuidade dessas condutas. Os embaraços da Lei da Anistia com a Convenção Americana de Direitos Humanos é hoje o grande óbice para a efetivação da justiça de transição no Brasil.
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4 A VIOLÊNCIA E O TRÁFICO: REFLEXO SOCIOECONÔMICO? Sob o ponto de vista social, é inegável que o mercado de consumo tem proporcionado às crianças e aos jovens de hoje uma série de meios atrativos – e ao mesmo tempo violentos – que interferem significativamente na capacidade cognitiva do indivíduo, tornando-o uma pessoa socialmente agressiva. “Esses valores, comportamentos e linguagens induzem pensamentos que conduzem à prática da violência” (FIORELLI; MAGINI, 2009, p. 273). Dessa violência, surge o desprestígio social que induz a prática de crimes, ultrapassando a esfera subjetiva do indivíduo. O tráfico de drogas hoje – e demais crimes correlatos –, é um grande exemplo, e apenas “existe em função do mercado da droga, largamente consumida pela porção mais educada da sociedade” (VELOSO; ALBUQUERQUE, 2000, p. 192). Ocorre que quem trafica nem sempre é usuário, assim como quem é usuário nem sempre vende ou distribui a droga que faz uso, e essa distinção é considerada, segundo a doutrina, essencial pela autoridade policial no momento da autuação. A primeira situação é, sem sombra de dúvidas, considerada pelos agentes do crime como mais temerosa, isso porque, segundo Menna Barreto, por interesse próprio, o apenas traficante jamais se submeteria a entregar os demais envolvidos à autoridade policial, enquanto o traficante-usuário, em meio à abstinência que o cerca, se encontraria mais vulnerável a condutas que viesse a favorecer o seu imediato retorno ao uso do tóxico (BARRETO, 1971). Em decorrência disso, o usuário tende a ficar mais propenso a figurar na lista de vítimas decorrentes do tráfico. Nem mesmo os indicadores sociais decorrentes do modelo atual de sociedade devem ser apontados hoje como causa maior da criminalidade no país, e ainda que se mencione que a violência encontra-se diretamente ligada a problemas socioeconômicos, várias estatísticas vão de encontro a tal reflexão. Segundo dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), só na última década, milhões de brasileiros deixaram a extrema pobreza no país, conforme se constata na tabela abaixo: TABELA 1: Renda domiciliar per capita, coeficiente de Gini e incidência da extrema pobreza – Brasil, Nordeste (2003 e 2011)
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Fonte: IPEA/Microdados das PNADs 2003 e 2011
Paralelamente a esse fato, segundo o Mapa da Violência 2014, tivemos em 2012 o maior índice de homicídios praticados no país, com 29 casos para cada cem mil habitantes. Em suma, a redução da extrema pobreza no Brasil não foi acompanhada pela redução da violência que, ao contrário, aumentou consideravelmente da última década até os dias atuais. O mesmo não se pode falar do tráfico ilícito de entorpecentes que segundo a própria Organização das Nações Unidas é responsável por ¼ das mortes causadas por armas de fogos nas Américas2, isso sem mencionar outros tantos cujas causas permanecem desconhecidas ou lhe são conexas. Apesar de criticar a generalização, a edição de 2014 do Mapa da Violência admite nas últimas décadas que o termo violência na América Latina já se tornou sinônimo de tráfico (WAISELFISZ, 2014). As cidades de fronteiras – que convivem diariamente com os resultados maléficos dos tóxicos em decorrência do tráfico transnacional – são outros grandes exemplos, com algumas dessas cidades3, inclusive, figurando no topo dos municípios mais violentos do país4. Para Sapori, “a pobreza e a desigualdade socioeconômica são apenas o pano de fundo desse fenômeno” (SAPORI, 2012, p. 134).
Disponível em: < http://www.onu.org.br/estudo-do-unodc-mostra-que-partes-das-americas-e-da-africa-registramos-maiores-indices-de-homicidios>. 3 Segundo o Mapa da Violência 2014, Tabatinga (cidade-gêmea) é a segunda cidade mais violenta do Amazonas, perdendo apenas para a capital Manaus. 4 Segundo dados do Mapa da Violência edição 2008, com referência a dados de 2006, Coronel Sapucaia se apresentava como o município de maior taxa média no número de homicídios no país. Dados atuais ainda incluem a cidade entre as 5 (cinco) mais violentas do Mato Grosso do Sul. 2
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Outro estudo recente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) confirma a estatística das drogas ilícitas no nordeste. Em relação ao Crack e/ou similares, há um considerável uso regular na região, segundo o levantamento. GRÁFICO 1 - Estimativas (em números absolutos) do uso regular nos últimos 6 meses de drogas ilícitas (exceto maconha)e de “crack e/ou similares” nas capitais do Brasil, por macrorregião, 2012
Fonte: Fiocruz
As drogas também aparecem como a segunda maior causa de detenções no país (26%), ficando atrás, apenas, dos crimes patrimoniais que totalizam quase metade dos encarceramentos (49%). Mais de 50% dos encarcerados no país são jovens negros e do sexo masculino, o mesmo perfil serve para as vítimas5. O grande desafio das autoridades hoje tem sido a contenção dos crimes violentos letais intencionais. Como mencionamos anteriormente, é de suma importância o conhecimento da ocorrência criminal pela autoridade policial para que medidas estratégicas possam ser tomadas de forma emergencial e preventiva. Difícil também é quantificar especificamente quais crimes contra o patrimônio, por exemplo, estão diretamente ligadas ao tráfico de drogas, já que no momento da prisão do acusado raramente esse envolvimento é assumido em decorrência do temor do aumento de pena. No caso 5
Vide 8ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública. 99
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dos homicídios a situação se difere, pois tenha sido ela conseqüência ou não do narcotráfico, a vítima é quase sempre determinada pela existência do cadáver (objeto material do crime). A publicidade das ocorrências criminais apresenta-se como fundamental na medida em que facilita uma intervenção coordenada e planejada nas áreas mais violentas, sendo essa a tarefa dos órgãos e secretarias especializadas. Em situações mais específicas, como nos homicídios, ainda é possível ter uma média desses dados em decorrência da inevitável publicidade midiática que recaem sobre essas ocorrências. Nos crimes contra o patrimônio, por sua vez, essa dificuldade é notória, e o silencio da vítima obsta a coleta de informações importantes e necessárias que provavelmente deixarão de constar nas estatísticas estaduais da criminalidade, transparecendo um clima de paz que passará a existir apenas no papel. A não mudança de perspectiva do atual sistema criminal, por exemplo, é outro mentor do descontrole violento no país. Isso porque o desenvolvimento social não foi acompanhado da readequação do atual sistema, o que permitiu que alguns tipos penais simplesmente caíssem em desuso e ainda comprometessem o próprio conceito de justiça6. Por outro lado, a sensação de impunidade em relação a tipos penais específicos tem favorecido o retorno da vingança privada, através dos tradicionais linchamentos. Paoli, Benevides, Pinheiro e DaMatta nos ensinam: A fúria punitiva é tão mais distante de um desejo real de “justiça”, que os atos de violência extravasam, em muito, uma ação “corretiva”. É o caso, por exemplo, de inúmeros linchamentos nos quais a vítima continua sendo agredida com extrema brutalidade mesmo depois de morta. (PAOLI; BENEVIDES; PINHEIRO; DAMATTA, 1982, p. 104-105).
O resultado disso é que não se tem hoje a mesma sensação de segurança, paz e liberdade que se tinha tempos atrás, e ainda que a revolta popular e o número de crimes tenham aumentado de forma considerável nesse meio tempo, o poder punitivo e normativo estatal permaneceu estático e acabou abrindo brechas para os resultados que hoje representam um verdadeiro estímulo à impunidade latu sensu no país. A população, por sua vez, ao ignorar essa disparidade, mantém hábitos e costumes que não mais são compatíveis com o estágio violento atual. 4 INTERAÇÃO SOCIAL E SEUS BENEFÍCIOS PARA A SEGURANÇA PÚBLICA
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O art. 60 do Decreto-Lei 3.688/1940 (Lei de Contravenções Penais), que previa a contravenção penal de mendicância e encontrava-se em pleno desuso, só foi revogado em 2009 pela lei 11.983. 100
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A integração comunitária na atividade de segurança pública tem se mostrado satisfatória na medida em que o Estado – por intermédio dos seus dispositivos de segurança – também se compromete ao duplo viés dessa vertente participativa. De um lado, se ele deseja fazer jus a essa participação social nas atividades preventivas, deve o mesmo criar todos os meios necessários para concretizar essa participação. Tradicionalmente não é isso que vemos na prática, e a idéia do “não senhor‟‟, ou “sim senhor” tem sido um dos maiores exemplos do grau de intimidação que uma simples abordagem policial pode representar para a sociedade, ainda que para uma simples e eventual averiguação. “Sob a ótica do inimigo interno, o brasileiro médio, pobre, mulato ou negro, mal vestido, é o esteriótipo do suspeito que deve ser reprimido” (JÚNIOR, 1991, p. 58). É dizer, essa imediata intimidação impede, em um primeiro plano, qualquer possibilidade de questionamento ou indagação recíproca sobre condutas inadequadas que possam eventualmente surgir em ambos os lados, fomentando o caráter unilateral da ordem. Indo mais além, esse receio praticamente veda toda e qualquer possibilidade de participação social nas atividades de segurança pública, uma vez que a polícia acaba sendo identificada erroneamente não como um aliado da população, mas como uma espécie de segundo mal. Nesse íterim, a falta de informação e de conhecimento em relação às atividades policiais pode fazer uma simples revista rotineira se apresentar como uma espécie de invasão. Roberto Damatta ilustra bem essa idéia de indagação, demonstrando o porquê desse tradicional receio. Em nossa sociedade, a indagação está ligada a inquérito, forma de processamento jurídico acionado quando há suspeita de crime ou pecado, de modo que a pergunta deve ser evitada. Sem a interrogação, a vida social parece correr no seu fluxo normal, de modo que é possível postular uma provável ligação entre o temor das formas interrogativas e as sociedades preocupadas com a hierarquia, onde normalmente tudo deve estar no seu lugar (DAMATTA, 1997, p. 196).
É possível perceber que a necessidade de interação entre Estado e sociedade na segurança pública é cercada por uma série de fatores que na prática tem dificultado essa aproximação. A mesma sociedade que de forma indireta contribui para a geração violenta atual, só vem a se dar conta da gravidade dessa situação quando não há mais o que se fazer para evitá-la, sendo possível no máximo reduzi-la, e ainda assim encontra obstáculos no momento de garantir a efetivação de um direito que é seu, seja em decorrência da má prestação do serviço estatal, seja pelo próprio isolamento que decorre da imagem negativa que alguns tantos ainda têm da polícia.
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Além da integração social com os organismos governamentais visando a contenção e prevenção dos índices violentos, a implantação de programas sociais de conscientização sobre condutas individuais de autoprevenção também se mostram altamente eficazes no enfrentamento da criminalidade. Essa cooperação se mostra satisfatória especialmente quando da readequação de regras tradicionais de condutas, de modo que a sociedade possa contribuir com a atividade estatal sem se vincular diretamente a ela. A realização de palestras e eventos esporádicos em escolas e localidades que convivem diariamente com a violência é outra forma inteligente de se estabelecer um contato permanente e de confiança entre polícia e sociedade, onde se pode ouvir da própria população local quais os principais problemas enfrentados e assim orientá-los como agir diante cada um deles. A interação social com a polícia e autoridades de segurança pública em geral é uma realidade necessária e tem se mostrado eficiente no combate à criminalidade. Buscar suprir de forma isolada todas as deficiências que se interligam nos vários sistemas que tutelam assuntos de interesse geral, é abrir mão de uma forte ferramenta de acompanhamento, atuação e redução da violência urbana. Somente uma ação coordenada entre os vários setores da sociedade são capazes se suprir as falhas que hoje recaem quase que exclusivamente sobre setores específicos. Nesse sentido, se manifesta Balestreri: Por onde passa a democratização da segurança pública no Brasil?Passa pela interatividade, não apenas em experiências de cunho “laboratorial”, demarcamente bem sucedidas, mas pela interatividade como um fio conduto do conjunto do sistema: interatividade com a população mas também com a clientela interna; interatividade com as demais corporações policiais mas também interatividade com as OGs não policiais e ONGs, interatividade no contexto interno dos centros de formação, escolas e academias, mas também interatividade com as Universidades e instituições educacionais, e assim por diante (BALESTRERI, 2003. p. 54).
Percebe-se, pois, o quão fundamental se faz a participação da sociedade no quesito segurança pública, vez que nenhuma política pública implementada está apta ao progresso quando a própria sociedade se distancia ao silenciar diante dos problemas sociais dos quais convive diariamente. A gênese da delinqüência abarca uma gama enorme de fatores que podem ir desde a predisposição genética, a até outros elementos diversos ligados à formação dos valores morais e éticos dos indivíduos. A mesma escola que educa, por exemplo, pode servir também como cartão de visita para o conhecimento e o consequentemente uso de drogas (FIORELLI; MANGINI, 2009). Um pequeno deslize e aquela criança ou adolescente estará a meio passo da criminalidade.
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Se na própria escola esse risco é iminente, o que dizer então do sistema carcerário que hoje mais fomenta a criminalidade do que propriamente reeduca?O delinquente é, pois, “produto da instituição”, como dizia Foucault, e a prisão, uma espécie de “continuação natural, nada mais que um grau superior dessa hierarquia percorrida passo a passo” (FOUCAULT, 1999, p. 249). Daí porque a necessidade permanente de combate aos principais elementos ligados à origem do fenômeno delitivo, sem que isso se limite a uma abordagem reducionista tendente a excluir outras obrigações quando esse comportamento delitivo ligados à violência já se encontra materializado. O crime, como um fato social, encontra-se presente em todos os tipos de sociedades (DURKHEIM, 2005), e o maior desafio do Estado hoje estaria em identificar combater os reais vetores do fenômeno da violência que inclusive pode se diversificar a depender da sociedade em que se insere. CONSIDERAÇÕES FINAIS O aumento da violência no país é hoje atribuído a uma série de fatores que vão desde a impunidade dos crimes cometidos durante a ditadura militar até o tráfico ilícito de entorpecentes. Outros fatores também são citados como responsáveis pelo alto índice criminal no país, como a própria exclusão socioeconômica. Todavia, embora possa existir vinculação entre esses fenômenos, alguns se ligam apenas indiretamente a essa realidade. Enquanto a impunidade pode vir a propagar a idéia de “terra sem lei”, aumentando a prática de ilícitos, o excesso de subnotificação dessas ocorrências pode ser um fator a mais para o aumento das estatísticas criminais do país. A exclusão socioeconômica, da mesma forma, tem uma inegável participação na mudança de comportamento social que pode levar à deliquencia, porém, como bem vimos, não estaria esse fato ligado diretamente à disseminação da violência, uma vez que a redução dessa desigualdade não bastou para reduzir o índice violento no país, tornando, portanto, questionável toda e qualquer estreita relação que se faça entre os fenômenos. Por outro lado, extrai-se dessa análise uma maior compatibilização entre relação drogas e crime, uma vez que o aumento de consumo e do tráfico em algumas regiões do país acompanhou sistematicamente o aumento da violência. Em outras palavras, haveria hoje uma ligação apenas indireta entre a violência e a exclusão socioeconômica, e não mais uma linha tênue como já se defendeu, estando a criminalidade muito mais associada às drogas e à impunidade do que a
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outros fatores. Assim, a pobreza por si só não seria um vetor direto da violência, mas tão somente estaria apta a induzir um desvio de conduta tendente a levar o indivíduo a delinqüir. O que se quer dizer é que inúmeros são os fatores responsáveis pelos desdobramentos do índice violento no país, fatores esses que não resumem as causas tradicionais tidas como mãe maior da violência, como o déficit educacional ou a má distribuição de renda. A efetivação do direito fundamental à segurança pública tem exigido da sociedade não apenas uma postura consistente focada em programas preventivos ou de autoprevenção, mas principalmente, de uma nova posição que garanta maior interação entre os segmentos sociais e o trabalho policial na comunidade. REFERÊNCIAS
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VIOLÊNCIA E DESENVOLVIMENTO HUMANO: A EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS POSTA À PROVA NO AGRESTE PARAIBANO Allan Jones Andreza Silva1
1 INTRODUÇÃO Os direitos humanos são considerados admiráveis instrumentos de proteção a bens jurídicos de grande importância para o desenvolvimento humano e instrumentalmente também são utilizados para coibir práticas de desprezo e desrespeito. Corroborando com este pensamento a Carta Geral das Nações Unidas veio a instituir a cooperação dos Estados para o desenvolvimento de relações amistosas, primando por uma reafirmação de valores fundamentais, tais como a dignidade da pessoa humana e a igualdade de direitos. Diante desta perspectiva, que vêm sendo reiteradamente reafirmada por tratados e pactos internacionais e pela incorporação destes preceitos aos ordenamentos jurídicos das nações, o Estado assume uma posição de agente promotor dos direitos humanos a partir de ações afirmativas, tal como a prestação de serviços públicos para a garantia das condições básicas para sobrevivência e proteção da dignidade humana, se propondo, desta forma, a promover o respeito a esses direitos e liberdades, independentemente das diferenças de origem nacional, econômica, cultural, social crença, gênero, dentre outras. Neste interim, a Segurança Pública surge como um dos direitos humanos elementares e que também deve ser preservada, mas sem perder de vista o respeito às liberdades e garantias fundamentais, tais como a igualdade de direitos, a proteção à integridade física, psicológica, sexual, patrimonial e moral das pessoais. Apesar da Constituição Federal de 1988 prevê a garantia da segurança pública, a sua efetivação no Agreste da Paraíba esbarra no fenômeno da violência, problemática esta que vem galgando espaço cada vez maior nas discussões em âmbito estadual e na própria região. A partir do avanço das tecnologias comunicativas, cada vez mais a violência tem se publicizado e ocupado posição de destaque nos meios de comunicação, influenciando decisivamente o modo de vida da população brasileira. Fazendo um recorte específico para a mesorregião do agreste paraibano, tal problemática tem sido uma das preocupações centrais dos 1Aluno
do Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba, área de concentração em Direitos Humanos. Pós-graduado em Direitos Fundamentais e Democracia (UEPB), Bacharel em Segurança Pública (PMPB), Bacharelando em Direito (UEPB), pesquisador do Núcleo de Estudos sobre a Violência no Agreste da Paraíba (NEVAP) e do projeto de Monitoramento da Violência contra Mulher no Agreste da Paraíba. E-mail: allanjonesgba@hotmail.com 107
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governos municipais e estadual, sobretudo quando se considera a incidência de homicídios, que afronta diretamente o direito fundamental a vida, desacredita as ações de segurança pública, provoca grandes prejuízos para a sensação de segurança local, além de influir em outros setores do desenvolvimento regional. O sensível aumento nos números de homicídios na região do Agreste Paraibano tem ascendido uma discussão sobre os fatores responsáveis por tal crescimento, seja nos meios acadêmicos, através da imprensa ou até mesmo nos diversos ambientes sociais, muitas são as hipóteses levantadas por parte da população, algumas delas questionando as estratégias dos órgãos de segurança pública, outras se atêm a questões socioeconômicas, quase sempre relacionadas com a efetivação de políticas públicas. Contudo, este é um espaço de discussão ainda nebuloso no meio científico regional, principalmente considerando o espaço geográfico da 8ª Área Integrada de Segurança Pública, uma vez que praticamente não existem estudos aprofundados publicados sobre o problema, ou as pesquisas até então desenvolvidas são inexpressivas. Ainda assim, não se pode olvidar que a identificação das causas da violência na área é marcada por muitas dificuldades, pois o trato do tema é criticamente cercado por preconceitos e premissas falsas, como aponta Alberto Marques Santos2. A banalidade com que muitas vezes esse tipo penal é executado no Agreste Paraibano tem gerado muitas críticas ao modelo de segurança pública atualmente em execução e, ao mesmo tempo, tem atentado este setor para a análise das circunstâncias que influenciam a reprodução de práticas de violência e ainda o tem mobilizado pela busca de medidas técnicas e criativas para a minimização de ocorrências e de seus efeitos, principalmente focando a prevenção a partir da articulação com outros órgãos, a fim de galgar melhorias na sensação de segurança regional. Por conseguinte, a análise dos fatores determinantes para a reprodução ou majoração e a mensuração dos efeitos deste fenômeno (violência) na região, principalmente atentando as suas configurações no século XXI, é um ponto primordial para se chegar a propostas plausíveis para o problema, constituindo um recurso de suma importância para que os diversos setores estatais, sobretudo as polícias, possam definir uma política ou estratégia operacional articulada capaz de
“O combate à criminalidade no Brasil tem se orientado por preconceitos e falsas premissas, generalizadas entre a população leiga, e que repercutem entre as autoridades incumbidas daquele combate. Essa é uma das razões do nosso fracasso na guerra contra o crime: partimos de falsos pontos de partida e orientamos nossa estratégia em bases equivocadas. (...) A primeira é a de que o fenômeno criminal tem uma causa somente. Alguns apontam como causa uma ingênua generalização: todo criminoso é vítima da sociedade. Outros defendem a generalização oposta, mas igualmente ingênua: todo criminoso é um pervertido irrecuperável. A segunda ideia falsa é a de que um problema complexo como a criminalidade pode ser resolvido poruma solução fácil e simples (...)” (SANTOS, 2009, p. 33, grifo nosso). 2
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minimizar o problema sem perder de vista a proteção dos direitos fundamentais e dos anseios democráticos. 2 O QUE SE PODE ENTENDER POR VIOLÊNCIA? Antes de adentrar no cerne da análise sobre as características e as influências que este fenômeno provoca para a região do agreste paraibano, é necessário primeiramente conceitua-lo, a fim de melhor identifica-lo, sobretudo quanto as suas diferentes formas de manifestação. Para tanto, é necessário verificar a violência como um fenômeno complexo, haja vista que cada ato de manifestação possui elementos próprios, sendo, portanto, cercado por uma heterogeneidade factual que lhe garante certa imprevisibilidade, especificamente decorrente da interação interpessoal e/ou coletiva, quase sempre marcada por danos em diversos campos. Alguns estudiosos como Hayeck (2009, p. 3), a consideram como um fenômeno biopsicossocial cuja complexidade dinâmica emerge da vida em sociedade, pois é impregnada pelas vicissitudes de cada contexto histórico3, haja vista que seu conceito está intrinsecamente relacionado com a carga axiológica que o indivíduo e a sociedade definem qual seria o elemento lesivo4 aos bens ou valores importantes que estes pretendem resguardar naquele determinado momento. De tal forma, a violência poderá ser constituída por uma afronta aos seus interesses patrimoniais, ou às incolumidades: física, psicológica, moral, intelectual, sexual..., seja em caráter singular ou coletivo, depende sempre de uma contextualização com as peculiaridades temporal, espacial e cultural. Ainda assim, ao tratar sobre o tema é necessário ter em mira duas circunstâncias: a) A violência é uma “quimera”. Nascida das relações intersubjetivas e alimentada pela sociedade, ela pode ser identificada por diversas ciências em diferentes ângulos ou modos de observação. Assim, a Sociologia, a Filosofia, o Direito, a Psicologia, entre tantas outras, analisamna sob perspectivas distintas, o que implica na ausência de uma identidade única, passível de ser reportada indistintamente, demonstrando também a ineficiência de tais ciências para tratar de Segundo Levisky (2010, p. 6, in Almeida, 2010): “A violência não é um estigma da sociedade contemporânea. Ela acompanha o homem desde tempos imemoriais, mas, a cada tempo, ela se manifesta de formas e em circunstâncias diferentes. Não há quem não identifique uma ação ou situação violenta, porém conceituar violência é muito difícil visto que a ação geradora ou sentimento relativo à violência pode ter significados múltiplos e diferentes dependentes da cultura, momento e condições nas quais elas ocorrem. Na Idade Média, por exemplo, certos procedimentos violentos eram formas de demonstração de amor a Deus”. 4 O que hoje pode parecer inescrupuloso ou impregnado de bárbara violência pode não ser num determinado contexto histórico, cultural e social. Por exemplo, “O famoso artigo 3º do código francês de 1791 – „todo condenado à morte terá a cabeça decepada‟ – tem estas três significações: uma morte igual para todos (...); uma só morte por condenado (...); o castigo unicamente para o condenado (...)” (FOUCAULT, 2010, p. 17). 3
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forma ampla do tema, haja vista que apenas conseguem (quando conseguem) analisar uma parcela deste fenômeno; b) Ao verificar a violência, o observador/pesquisador deve contextualizar seu exame sob duas perspectivas: uma subjetiva (uma vez que o conteúdo material passa por uma análise individual muito particularizada) e outra coletiva (haja vista que a sociedade pode estipular um conceito geral de violência, impregnada por valores culturais, morais, religiosos e jurídicos...). Podem existir casos em que a concepção individual venha a destoar da concepção social, isso implicará na inserção do indivíduo num quadro estigmático e/ou segregado, onde esta pessoa passará a ser identificada como passiva ou potencialmente nociva a sociedade, de acordo como pauta sua vida em distanciamento com as concepções de conduta socialmente aceitas, ou seja, dependendo do ideário subjetivo frente ao coletivo do acatamento ou reprodução de práticas consideradas violentas pela comunidade. Dentre as hipóteses que são alavancadas sobre a origem da violência, podem ser suscitados os conflitos de interesses, muitos deles instintivos5, provenientes das diferenças naturais do homem6, decorrentes do sexo, das características físicas, da idade, das experiências de vida... tornando-se muito provável que a existência de discordância de ideias e de valores tenha gerado o primeiro ato de violência, sob os moldes concebidos hoje. Segundo a Bíblia, Caim e Abel protagonizaram o primeiro ato de violência da humanidade. Passado algum tempo, ofereceu Caim frutos da terra em oblação ao Senhor. Abel, de seu lado, ofereceu dos primogênitos do seu rebanho e das gorduras dele; e o Senhor olhou com agrado para Abel e para sua oblação, mas não olhou para Caim, nem para os seus dons. Caim ficou extremamente irritado com isso, e o seu semblante tornou-se abatido. O Senhor disse-lhe: “Por que estás irado? E por que está abatido o seu semblante? Se praticares o bem, sem dúvida alguma poderás reabilitar-te. Mas se procederes mal, o pecado estará à tua porta, espreitando-te; mas tu deverás dominá-lo”. Caim disse então a Abel, seu irmão: “Vamos ao campo”. Logo que chegaram ao campo, Caim atirou-se sobre seu irmão e matou-o. (GÊNESIS, 4, 3-8)
Verifica-se então que, mesmo cercado de religiosidade e pautado num exemplo teoricamente antigo, tal fato não foge aos exemplos hoje observados, os sentimentos negativos De acordo com a psicanálise, consoante exposto por Almeida (2010, p. 16), “(...) somos em grande parte dominados por instintos dos quais não temos pleno controle nem plena consciência (...), o humano tem a possibilidade de mudar o destino original de suas energias instintivas. Por isso, Freud (1915) adotou a expressão Trieb (traduzida para pulsão em português) ao referir-se aos instintos humanos”. Por conseguinte, estes pulsões, de acordo com cada pessoa, podem ensejar diversificados modos de conflitos, com intensidades não menos distintas, inclusive podendo provocar a morte do outro. 6 Segundo Rosseau (2012, p. 77), “(...) entre as diferenças que distinguem os homens, muitas que são tidas por naturais são unicamente o resultado do hábito e dos diversos gêneros de vida que os homens adotam na sociedade.” 5
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como inveja, raiva, egoísmo, entre tantos outros, são combustíveis inflamáveis diante de uma contenda, por conseguinte, as diferenças naturais e psicossociais são elementos contundentes para estipulação de discordâncias e, posteriormente, da violência. Até a resolução das contendas era impregnada por violência, uma vez que esta acabava sendo utilizada para subjugar o outro e impor determinado pensamento, intuito ou interesse. Nestes moldes, Câmara (2008, pp. 22-23) acentua que: “A vingança, não padece dúvida, constitui o modo primitivo de „solução‟ do conflito penal (...). Prevaleciam reações espontâneas (impulsos de retaliação) que implicavam quase sempre no emprego da força e em uma exacerbada violência”. Segundo Muchembled (2012, p. 07), a palavra “violência” surgiu no século XIII em francês, derivando do latim vis, designa a força ou vigor que caracteriza um ser humano em estado colérico ou brutal. Já Zaluar (1999, apud Kleinschmitt, 2011, p. 218), indica que a raiz deste termo é derivado do latim violentia, e também expressa fatores como força e vigor, mais ainda o recurso do corpo para exercer a força física. De uma forma ou de outra, a ideia de utilização da força está presente em ambos os radicais. A violência também é o retrato da evolução das desigualdades sociais 7, uma vez que “(...) os comportamentos violentos foram mais rápida e facilmente erradicados pela educação, a moral e a pressão do ambiente entre os herdeiros das camadas superiores” (MUCHEMBLED, 2012, p. 09), isso ocorre porque estas problemáticas ensejadas pela: má distribuição dos recursos, das funções sociais, entre outros fatores, provocam dificuldades para efetivação de direitos fundamentais, os quais são imprescindíveis para sobrevivência e desenvolvimento das potencialidades humanas.Assim, as classes desfavorecidas pelo sistema utilizam os recursos que dispõe para garantir sua sobrevivência e a efetivação do que lhe fora negado pelo Estado e pela Sociedade, por conseguinte aquelas desigualdades acabam sendo identificadas como um dos fundamentos dos atos de violência. Neste ensejo, um dos patrocinadores destas desigualdades, na visão de Rosseau (2012, p. 80), é a propriedade privada, haja vista que: O primeiro que, ao cercar um terreno, teve a audácia de dizer isto é meu e encontrou gente bastante simples para acreditar nele foi o verdadeiro fundador da sociedade civil. Quantos crimes, guerras e assassinatos, quantas misérias e horrores teria poupado ao gênero humano aquele que, arrancando as estacas e cobrindo o fosso, tivesse gritado a seus semelhantes: “Não escutem esse impostor! Estarão perdidos se esquecerem que os frutos são de todos e a terra é de ninguém!” (ROSSEAU, 2012, p. 80, grifo do autor) “O abandono de amplas camadas populacionais, moradores das periferias e bairros populares urbanos, fomentou, de fato, a criação de sociedades alternativas, ou seja, de „anti-sociedades‟. Essas sociedades coexistem ao lado do sistema de poder e regras oficiais e criam as suas próprias condições e regras de vida. A maioria dessas sociedades, ironicamente, se caracteriza e regulamenta por regimes ainda muito mais autoritários, poderosos e rigorosos do que os oficiais. O exemplo mais polêmico talvez seja o caso dos „morros‟ do Rio de Janeiro, onde o poder alternativo das quadrilhas criminosas ganhou uma dimensão preocupante” (SCHIKORA, 2004, p. 16). 7
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Importante também é pensar que, se o homem não almejasse que o outro compactuasse dos mesmos pensamentos, valores, crenças e interesses, talvez muitas vidas teriam sido poupadas das intemperes da irracionalidade humana. Quando os indivíduos começam a se agrupar, por se identificarem em razão de questões ideológicas, sociais ou econômicas, eles passam a se digladiar numa “queda de braços” em que o mais forte garante uma série de privilégios e, ao mesmo tempo, subjuga o outro. Desse modo, “Havia, entre o direito do mais forte e o direito do primeiro ocupante, um conflito perpétuo, que só terminava por combates e mortes” (ROSSEAU, 2012, p. 94).Na medida em que a sociedade começa a se tornar mais complexa8, outros elementos começam a se inserir nas discussões: força e poder, os quais se consolidam nas relações humanas, estabelecendo uma distinção dos papeis sociais entre elite e subordinados, e entre fortes e fracos etc. O poder enseja uma circunstância contraposta à violência, consoante observa Lafer (1994, in Arendt, 2011): Poder e violência são termos opostos: a afirmação absoluta de um significa a ausência do outro. É a desintegração do poder que enseja a violência, pois quando os comandos não são mais generalizadamente acatados, por fata de consenso e da opinião favorável – implícita ou explícita – de muitos, os meios violentos não têm utilidade.
A efetivação do poder se procede em decorrência da potencial força que se exerce sobre o outro. Enquanto isso, a violência detém em seu âmago uma força cogente de grau elevado para subjugar o outro, partindo quase sempre da frustação do poder e dos preceitos socialmente aceitos, mantendo laços muito fortes com a criminalidade e com os meios ou recursos de segregação social. Desse modo, é necessário assinalar que a violência também é um instrumento para impor ou manter relações sociais desiguais, como leciona Souza (2008, p. 68). Este também informa que ela ocorre quando um dos polos da relação não está usufruindo de uma condição de liberdade. “Assim, evidentemente, a relação entre o senhor e o escravo é uma relação de violência. A relação
Segundo García-Pelayo (2009, p. 154), “Da simples observação da realidade, chega-se facilmente à conclusão de que o sistema estatal do nosso tempo cresceu em complexidade em relação aos que lhe precederam historicamente, tanto em sua estrutura como em suas funções e meios de ação”. Verifica-se, desse modo, que a trajetória evolutiva do Estado passa por uma crescente complexidade. Acrescenta este autor que esta complexidade é motivada pelas seguintes razões: “a) a ampliação da atividade do Estado, exigida pela civilização industrial e pós-industrial; b) a complexidade da sociedade contemporânea ou, em termos mais gerais, do ambiente em que se move o sistema estatal, e c) a interação entre ambos os temos” (GARCÍA-PELAYO, 2009, p. 161). 8
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violenta pode ser convertida em relações de poder, desde que um dos polos da relação ganhe status jurídico de liberdade” (SOUZA, 2008, p. 68). Desse modo, verifica-se que durante a análise atenta da gênese das práticas de violência pode-se estar diante de um grande leque de motivações. Aos antigos conflitos decorrentes de fatores naturais são, aos poucos, acrescidos fatores sociais, econômicos, étnicos, religiosos, culturais, entre tantos outros. Com a evolução cultural e o aumento da complexidade das relações sociais, há também uma ampliação de fatores favoráveis a reprodução daquele fenômeno9. Para Muchembled (2012, p. 11), a violência também pode ter uma dupla concepção: a) Legítima, estabelecida por instituições como: Estado e Igreja; b) Ilegítima, quando é exercida em confronto com as leis e a moral. Logo, a violência pode ser procedida com ou sem tolerância social, ou seja, em acordo ou não com as normas e preceitos estatuídos pela sociedade para o regramento das relações intersubjetivas, assim poderá ser admitida desde que esteja fundada pelo intuito de garantir a existência de condições favoráveis ao desenvolvimento humano. Ademais, carece observar que muitos teóricos analisam a violência sob outras duas perspectivas, como o produto dos aspectos biológicos humanos (para Hobbes, por exemplo, “o homem é um lobo para o homem”) ou como o resultado de uma questão cultural, que tem entre seus defensores Bastos et al (2010, p. 252), para quem “(...) a violência não é fruto de uma parte da natureza humana (animalidade), mas uma possibilidade de estruturação vital do homem”. Para outros autores como Muchembled (2012, p. 11), a violência humana depende, ao mesmo tempo, de elementos biológicos e culturais. Conforme bem atenda Eufrásio (2009, p. 104) a violência é identificada a partir das análises sobre o agressor, agredido ou o meio empregado para a consecução da ação, mostrandose como um fenômeno essencialmente humano, que compreende relações de conflito e poder, interpostas sob o intuito de subjugar o outro, seja através da força, da dissimulação ou coação, e que, ao mesmo tempo, pode ser alimentada pela conjuntura social. Assim sendo, a violência é a expressão da interposição de uma relação de subordinação, onde o vitimado encontra-se numa situação de inferiorização e de desatenção a sua dignidade como pessoa humana. Desse modo, em ligeira síntese, Eufrásio (2009, p. 106) entende a violência como:
Segundo Kleinschimitt et al (2011, p. 218), “(...) autores, como por exemplo, Minayo (1994) e Costa (1999), definiram a violência como um fenômeno social que faz parte da coletividade humana e assume contornos específicos de acordo com o tempo e o lugar”. 9
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(...) um acontecimento que representa a subjugação de um homem a outro homem, mesmo sendo naturalmente iguais, nessa relação desajustada, nasce a relação do superior e do inferior, por meio da força física ou moral, da coação, da dissimulação, do medo, da força da palavra, da desarticulação e manipulação dos sentimentos (entre parentes próximos, namorados, vizinhos, amigos, pais e filhos etc.) entre outros, tudo em nome da feição de uma relação de poder e de conquista, não constituindo necessariamente numa relação positiva para o ser humano, mas numa relação de poder e de desumanização.
Não se pode olvidar, contudo, que a violência detém vínculo inseparável com os valores disseminados no seio da sociedade, uma vez que sua concepção parte de um senso de reprovação, um verdadeiro “desvalor” considerado como prejudicial para as relações humanas. Assim,ao mesmo tempo em que são alavancadas idealizações de novos direitos humanos, cuja proteção deva constituir uma tarefa de toda a humanidade, também são criadas novas formas de violência identificadas como violações de tais direitos. É nesta perspectiva que atualmente é observado o alargamento conceitual do termo “violência”, pois conforme assinala Porto (1997, Apud Waiselfisz, 2011b, p. 11), aquela vem assumindo novos significados, “(...) de modo a incluir e a nomear como violência acontecimentos que passavam anteriormente por práticas costumeiras de regulamentação das relações sociais”. Para Waiselfisz (2011b, p. 11), são exemplos desta nova contextualização: a violência intrafamiliar contra a mulher ou as crianças, a violência simbólica contra grupos, categorias sociais ou etnias, a violência nas escolas etc. 3 A VIOLÊNCIA NOS DIAS ATUAIS A concepção atual de violência galga uma amplitude bem maior do que ela já fora concebida em qualquer momento da história do homem, haja vista o entendimento que ela constitui a afronta ao vasto rol de bens jurídicos a serem protegidos pelos direitos humanos, os quais também vêm ganhando elasticidade nas últimas décadas, ao incorporar uma gama de novos direitos. Ademais, esta circunstância tem tornado o Estado um detentor de uma série de deveres para com a sociedade, principalmente de promoção de direitos através da prestação de serviços, como acontece com a segurança pública,que requer, entre uma série de elementos, a existência de aparelho policial compenetrado com a proteção da ordem jurídica e dos direitos fundamentais dos cidadãos. Acontece que este agigantamento das tarefas estatais, aliadas ao total descompromisso de alguns gestores, em meio as constantes mudanças sociais, fez com que a segurança pública atualmente viesse a enfrentar grandes dificuldades e lidar com um verdadeiro desafio: conter a 114
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evolução dos índices de criminalidade e violência. Até mesmo países tidos como de Primeiro Mundo, tais como os Estados Unidos, Inglaterra e França enfrentam graves problemas relacionados com a criminalidade e violência, sobretudo quando estas questões são aliadas a preconceitos e estigmas étnico-raciais como aponta Wacquant (2005). Ao tratar sob a violência nestas circunstâncias, Jesus (2008, p. 69) relata que “(...) é inegável que, a partir da década de 70 do século passado, assistiu-se a uma escalada de seus índices a ponto de se criar uma neurose coletiva de medo nas populações de todos os países, especialmente nos grandes centros”. Logo, a violência deixou de ser um fenômeno de preocupação dos estados em caráter individual para assumir o papel de preocupação global, uma vez que passa a atingir indistintamente os diversos países do planeta. Mesmo assim, ela continua a ser distribuída desigualmente entre as raças e classes econômicas (SANTOS, 2009, p. 25), uma vez que seus efeitos são desproporcionalmente sentidos, pois majoritariamente os mais afetados são as classes socialmente excluídas e economicamente menos abastadas10. Para poder lidar com esta circunstância, o Direito tem enfrentado a necessidade de uma readaptação, pois enfrenta uma dupla missão: garantir a proteção dos bens jurídicos universalmente imprescindíveis ao desenvolvimento humano (direitos humanos) e reprimir ou desestimular as práticas que afrontem a preservação destes direitos, as quais, no contexto atual, deixam de ter reflexos meramente locais para poderem atingir efeitos em escala geográfica mais ampla, inclusive, podendo oferecer riscos transnacionais. Diante desta perspectiva, Luciano Nascimento Silva ao analisar os novos rumos da delinquência econômica, a qual pode asseverar os efeitos das diversas formas de violência hoje verificáveis, informa: Definitivamente a intenção do poder estatal – pois não se pode chamar de política criminal um emaranhado de leis especiais criminalizadoras – de ameaça coativa com sansões usando o poder supremo, ora por disposições administrativas, ora através de prescrições como forma de garantia preventiva, não transparece mais o menor significado, sem nem ressaltar a importância da eficácia. Não há dúvida de que a criatura cresceu e agora engole o criador. Não há mais uma visão real da dimensão do problema. (SILVA, 2010, p. 36).
Logo, não se pode olvidar que a globalização ao mesmo tempo em que tem favorecido o desenvolvimento tecnológico e informacional, não tem arcado pragmaticamente com a proposição de um desenvolvimento sustentável, capaz de proporcionar o acesso igualitário aos
De acordo com o FSP (2004, in: Santos, 2009, p. 25), “Enquanto em 2002 a taxa de homicídios entre jovens brancos era de 39 / cmh, entre os jovens negros era de 68 / cmh, ou seja, 74% maior”. 10
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meios de produção e o acesso às condições indispensáveis a sobrevivência humana, ao revés tem instituído e incentivado padrões de consumo cada vez mais altos sem, contudo, oferecer condições hábeis a solucionar (ou pelo menos minimizar) as problemáticas sociais enfrentadas por muitos Estados, os quais acabam arcando com uma série de deveres sociais sem, contudo, poder prestar serviços adequados à demanda que lhe é apresentada, tanto em quantidade como em qualidade, aliado a isso as problemáticas como corrupção eo reduzido senso político-jurídico dos cidadãos criam um quadro complexo e de difícil superação. Na realidade, estas circunstâncias beneficiam o desenvolvimento de espaços favoráveis a reprodução da criminalidade e, consequentemente, ao incremento dos índices de violência, tal como é apontado pór Rique e Lima (2003, p. 15): (...) sem dúvida, a exclusão, o racismo, o desemprego, a falta de perspectiva geracional, a exposição cotidiano dos jovens a infraestruturas urbanas e ambientes degradados – onde faltam os serviços públicos essenciais – e a figura reguladora do Estado fazem parte do solo onde germina e prospera a violência urbana.
Não obstante, na medida que as evoluções tecnológica e informacional patrocinam a transposição de barreiras para a disseminação do conhecimento e informações, noutro norte têm sido exploradas para a criação de novas práticas criminosas e do exercício da violência numa escala nunca sentida pela natureza humana. Intrigantemente, o empenho para reprimir as práticas de violência transnacionais, protagonizadas pelo slogan da guerra ao terror, é revelado por iniciativas individuais de alguns Estados, majoritariamente os que possuem maior poderio bélico.Estas intervenções muitas vezes podem ser permeadas por interesses escusos, principalmente de favorecimento econômico, haja vista que “a máquina de guerra” ainda é um elemento bastante rentável para as classes economicamente e socialmente mais favorecidas. Assim, a violência atual ganha aspectos mais amplos e plásticos, uma vez que se confronta com uma realidade global que coaduna de valores crescentemente homogêneos, mas em constante mutabilidade, onde a velocidade das relações intersubjetivas, coletivas e institucionais galga um caráter de quase simultaneidade, o que facilita a criação e adaptação das atividades violentas e criminais em circunstâncias dificilmente acompanháveis pelos aparatos estatais, principalmente porque muitos deles são despreparados ou ineficientes perante esta conjuntura internacional, a qual aparenta galgar um potencial nocivo cada vez maior.
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4 A VIOLÊNCIA NO AGRESTE PARAIBANO: UMA ANÁLISE SOBRE OS HOMICÍDIOS REGIONAIS A temática segurança pública, nos últimos anos, vem ganhando espaço no cenário científico e político nacional, principalmente no tocante as estratégias direcionadas a análise e, posterior, contenção da violência. Partindo desta condição, tanto a Secretaria Nacional de Segurança Pública como os próprios Estados têm adotado a contabilização dos crimes violentos letais intencionais (CVLI) como recurso para aferir a evolução desta problemática, os quais são caracterizados por, entre outros fatores, o resultado “morte”, tendo como maior representante deste gênero, os homicídios dolosos. O governo do Estado da Paraíba não tem sido diferente, adotou este método quantitativo para, inclusive, avaliar a eficiência dos gestores dos órgãos imbuídos da segurança pública (comandantes de batalhões policiais militares, delegados seccionais, entre outros), fazendo com que haja um direcionamento das atenções de todos para o controle e prevenção da incidência de homicídios. Deste o início do Século XXI, a Paraíba vem vivenciando o crescimento da incidência de homicídios. Consoante informa Waiselfisz (2011b, p. 159), este Estado nos últimos anos vem deixando seu status de local tranquilo, com pequenos índices de violência, para figurar entre os seis mais violentos do Brasil já em 201011, e o Agreste Paraibano não foge desta regra. As práticas de homicídios nesta área têm, no decorrer dos anos, assumido características distintas das esperadas por uma região tida como “interior”. O modus operandi empregado pelos criminosos tem tido como marca principal o requinte de crueldade. Essa conjuntura violenta não deve ser interpretada como o produto de uma única determinante, mas como resultado da interação de diversos aspectos (ZALUAR; LEAL, 2001, p. 145), o que demonstra sua complexidade e, ao mesmo tempo, a necessidade de análise das práticas de homicídio para identificar quais medidas estatais podem ser desenvolvidas de forma apropriada, a fim de galgar um resultado prático aceitável (minimização do problema e garantia da segurança pública). Tais circunstâncias demonstram claramente que há uma necessidade de pesquisas e estudos científicos sobre o tema, capazes de colaborar com a identificação dos elementos que favorecem a reprodução destes delitos para, a partir de então, poder guiar os órgãos da segurança
Segundo dados apontados por Waiselfisz (2011b, p. 159), em 2000 a Paraíba ocupava o 20º lugar no cenário nacional, possuindo uma taxa de homicídios variando entre 10 e 15 a cada 100 mil habitantes, já em 2010, ela passa a figurar entre os seis mais violentos do Brasil. 11
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pública para um agir mais atencioso à preservação dos direitos fundamentais e comprometido em atingir as raízes do problema e minimizar seus efeitos. Desse modo, este artigo além de ter o interesse em contribuir cientificamente com estudos sobre a incidência de homicídios no agreste paraibano, tem o a fã de colaborar com os gestores da 8ª Área Integrada de Segurança Pública12, dos municípios e até mesmo com o governo estadual, na busca por subsídios necessários para a identificação das causas específicas desta problemática na região, uma vez que, conforme assinala Beato Filho e Reis (2012, p. 386393), o trato sobre o assunto através de concepções generalizadas pode contrapor a realidade, haja vista a existência de particularidades locais. A violência manifestada através da prática de homicídios é cercada por uma complexidade marcada não apenas em suas origens, mas pelas suas consequências também, mostrando-se como elemento a ser analisado em diversas vertentes. É esta concepção tratada por Sachsida e Mendonça (2013, p. 09-10) quando informam que muitos teóricos, a citar Becker (1974), Glaeser, Sacerdote e Scheinkman (1996), trazem entendimentos distintos acerca das suas causas, adentrando sob os campos econômico, social, cultural e psicológico dos indivíduos. Atentando a esta circunstância, Peres et al (2006, p. 22) relata que os homicídios são indicadores das relações sociais em nível micro e macro, não se atendo apenas ao campo da segurança pública, mas também da saúde, educação, entre outros. Ainda assim, observando as exposições de Hayeck (2009), Bustamente& Moura (2009), Muchembled (2012), a violência pode assumir diferentes contornos de acordo com os contextos social, cultural e histórico, o que demonstra que este fenômeno detém características próprias de acordo com a conjuntura em que se procede a análise. Diante de tal perspectiva e atentando a região do agreste paraibano, verifica-se que nos últimos anos as circunstâncias da execução das práticas de homicídio vêm tomando novas peculiaridades, as ações criminosas estão sendo promovidas com cada vez mais crueldade, chegando, em boa parte dos casos, a evidenciar características de extermínio humano.
A 8ª Área Integrada de Segurança Pública (8ª AISP), atualmente abarca a circunscrição de 24 (vinte e quatro) municípios da mesorregião do agreste paraibano, atribuindo uma responsabilidade comum pela segurança pública e defesa social aos órgãos: 4º Batalhão de Polícia Militar (4º BPM), 8ª Delegacia Seccional de Polícia Civil e 3º Batalhão de Bombeiros Militar. Apesar de haver a previsão, a Polícia Científica ainda não se encontra geograficamente integrada com os demais órgãos em razão da ainda existente deficiência em recursos logísticos e humanos, mesmo assim possui uma unidade em Guarabira que presta serviço a 8ª AISP e outras áreas subjacentes. Os municípios abarcados são: Alagoinha, Araçagi, Araruna, Bananeiras, Belém, Borborema, Cacimba de Dentro, Caiçara, Casserengue, Cuitegi, Dona Inês, Duas Estradas, Guarabira, Logradouro, Mulungu, Pilões, Pilõezinhos, Pirpirituba, Riachão, Serra da Raiz, Serraria, Sertãozinho, Solânea e Tacima. 12
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A análise preliminar dos relatórios de ocorrências policiais registrados pelo 4º Batalhão de Polícia Militar e a verificação dos bancos de dados do Mapa da Violência 201313 evidenciam a formação de um novo paradigma criminal na região. Aos poucos estão sendo abandonadas as práticas de homicídio doloso em decorrência da luta braçal ou com a utilização de objetos de livre acesso popular (pedras, pedaços de madeira ou facas), geralmente motivadas por uma discussão prévia entre acusado e vítima embasada na defesa da honra ou da virilidade. Ultimamente pode ser evidenciado um modelo mais sofisticado, marcado pelo uso de melhores recursos como armas de fogo e veículos (principalmente motocicletas), em ações essencialmente rápidas, sem haver qualquer forma de comunicação entre as partes envolvidas, uma vez que essas ações criminosastem se mostrado previamente planejadas e executadas quando as vítimas encontram-se sem condições de repelir a agressão, seja porque estavam desfrutando de algum momento de lazer em local público ou em suas residências, ou até mesmo achavam-se meramente distraídas. A adoção deste novo modus operandi tem patrocinado o crescimento dos índices de homicídio dolosos em torno de 134,4% num período de 10 anos na região sob a circunscrição da 8ª Área Integrada de Segurança Pública, pois os registros de delitos desta natureza passaram de 2914 em 2003 para 68 no ano de 201215. Em atenção a esta problemática, o governo do Estado da Paraíba criou mecanismos para verificação da incidência criminal através do Núcleo de Análise Criminal e Estatística (NACE) e Programa Paraíba Unida pela Paz, o qual tem como estratégia principal a integralização geoadministrativa dos gestores que atuam diretamente com o sistema de segurança pública e defesa social, incentivando o desenvolvimento de ações de cunho operacional repressivo e preventivo a fim de reduzir a violência em suas respectivas áreas de responsabilidade. Desde que tal política foi instituída, pôde ser registrada uma redução de 8,12% no número de homicídios entre os anos de 2012 e 201116 no Estado, contudo a Paraíba ainda Após análise do banco de dados do Mapa da Violência 2013 sobre os homicídios provocados por armas de fogo, disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/mapa2013_armas.php>, verifica-se que a região do agreste paraibano aumentou 100% sua incidência entre os anos de 2008 a 2010, passando de 15 para 30 delitos desta natureza. 14 Segundo banco de dados sobre homicídios dolosos do Mapa da Violência 2010, disponível em: <http://mapadaviolencia.org.br/mapa2010.php>. Acesso em 21 Set. 2013. 15 Consoante dados expostos pela Secretaria de Segurança Pública da Paraíba, disponíveis em: <http://www.paraiba.pb.gov.br/especiais/pbunidapelapaz/boletim/2012/04.pdf>. Acesso em 21 Set. 2013. Contudo, carece esclarecer que a Secretaria de Segurança Pública da Paraíba tem utilizado em suas análises a quantificação dos Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), que abarcam vários tipos penais, entre eles homicídios dolosos. Nesse interim, a partir da observação preliminar dos Boletins de Ocorrência do 4º Batalhão de Polícia Militar, verifica-se em que todos os casos de CVLI registrados na região foram tipificados como homicídios dolosos. 16 Disponível em: <http://www.paraiba.pb.gov.br/72909/projeto-paraiba-unida-pela-paz-e-apresentado-paragestores-durante-forum-brasileiro-de-seguranca-publica.html>. Acesso em 21 Set. 2013. 13
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permanece num patamar bastante elevado quando comparado a outros estados. Segundo Waiselfisz (2013, p. 71) esta ocupava em 2011, o 3º lugar entre as unidades da federação com maior índice de homicídios e o 4º lugar no ranking de assassinatos femininos. Desse modo, verifica-se que os esforços dos órgãos de segurança pública ainda não tem sido suficientes para efetivamente minimizar esta problemática. Noutra visão apontada por Kleinschmitt et al (2011, p. 221), Zaluar e Leal (2001), Barata (2008, p. 08) e Feltran (2012) a violência não é um problema simples, que se restringe a uma interação social anômala ou a deficiência dos órgãos de segurança pública, mas decorre de ações ou omissões de outros setores, principalmente a carência de políticas públicas. Para Costa (2005) a violência, e sua manifestação mais atroz, o homicídio, tem como causa uma política governamental desastrosa, que se omite em prestar os serviços fundamentais para a vida humana17. Atentando as condições socioeconômicas do agreste paraibano, os dados obtidos junto ao Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD)18 apontam que, historicamente, os índices de desenvolvimento humano, em seus diversos aspectos de análise, desde os anos de 1991 até 2010, sempre estiveram abaixo das médias estaduais, as quais também se inserem num patamar inferior quando comparado aos índices do Brasil, conforme pode ser verificado nos gráficos 01, 02 e 0319.
Gráfico 1 – Índice de Desenvolvimento Humano Municipal (IDHm)
“A violência, e no seu rastro o homicídio, não constituem direta e necessariamente uma consequência da pobreza; nem é tampouco uma reação natural de pessoas originalmente pobres. Ela pode ser entendida como resultado de uma política econômica destituída de compromisso ético, em que a elite e o Estado se furtam a resolver o problema da distribuição de renda e da prestação de serviços fundamentais para a vida humana.” (COSTA, 2005, p. 89) 18 Disponível em: <http://www.atlasbrasil.org.br/2013/consulta>. Acesso em 21 Set. 2013. 19 Os valores do IDHm, bem como dos seus fatores em análise (educação e renda), da região do agreste paraibano foram obtidos a partir da média aritmética dos índices de todas as 24 cidades que compõem a área em estudo. 17
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Gráfico 2 – IDHm, fator educação
Gráfico 3 – IDHm, fator renda
Fazendo uma análise dos gráficos supra expostos, pode ser observado que as condições socioeconômicas e educacionais que marcam o desenvolvimento humano regional estão enfrentando melhorias, contudo ainda permanecem em nível bem abaixo da média do Estado da Paraíba e do Brasil, evidenciando que a região do agreste paraibano, abarcada pela 8ª AISP, enfrenta grande defasagem e carência de políticas públicas mais eficientes. Ainda pode ser verificado que as linhas de evolução dos índices nacional, estadual e da região são marcadas por um quase paralelismo, demonstrando que tanto a Paraíba como o Agreste tem acompanhado as
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tendências do país, mas não tem empenhado esforços suficientes para reduzir as distâncias entre si existentes deste o final do século passado. Este distanciamento encarado pela sociedade regional dos padrões de vida nacional e/ou estadual detém estreita relação com a majoração da incidência da violência na área. As carências econômicas (desemprego, subemprego, miséria, etc.) constituem verdadeiros óbices para que sejam atingidas as condições mínimas de dignidade, reiteradamente defendida pela Magna Carta, mas materialmente esquecida pelos gestores públicos. Não se pode olvidar que a privação econômica e as desigualdades sociais persistentes no cenário do agreste paraibano constituem não apenas elementos motivadores de uma “ruptura da vida civil através do recurso da força”20, mas facilita o desenvolvimento de um quadro simbólico estigmatizante, responsável por interpor uma segregação social com características geográficas capazes de acentuar os efeitos da violência estrutural sob a qual são submetidos os grupos socialmente mais frágeis, influenciando-os duplamente a aderirem ao crime, tanto como forma de aferir recursos e serviços até então negados pelo Estado, mas também como meio para requerer estas prestações. Em outras palavras, as péssimas condições socioeconômicas causam um duplo prejuízo, não apenas em razão da miséria e da fome, mas também promovem o desenvolvimento de uma repulsa (preconceito) direcionado a todos aqueles que convivem na região em que estas problemáticas são mais frequentes, o que dificulta ainda mais a superação destes fatores e favorece o risco dos indivíduos enveredarem pela criminalidade. Em decorrência das elevadas taxas de urbanização, da ausência de planejamento urbanoe da precariedade na distribuição dos serviços públicos há o desenvolvimento em todas as cidades da região de áreas (conjuntos e bairros) em que a moradia é mais barata e isto constitui condições atrativas para instalação da população mais carente, formando verdadeiros conglomerados onde as problemáticas socioeconômicas são visíveis (como exemplo, tem-se o “Buraco do Afonso” no bairro do Nordeste em Guarabira). Os moradores destes conglomerados urbanos, além de sofrerem com estas condições, enfrentam grandes dificuldades para superarem individualmente esta situação, uma vez que o espaço geográfico em que estão inseridos é afetado por estigmas generalistas que associam, de maneira insana, os cidadãos residentes ao envolvimento com a criminalidade e isto acaba tendo uma força simbólica muito forte, porque além de fechar as portas para a superação da precariedade, incute uma mensagem de violência, apontando como solução para garantia de sua sobrevivência a recorrência ao crime, seja praticando ativamente delitos ou até mesmo 20
Expressão cunhada por Wacquant (2005, p. 27). 122
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constituindo um mercado ilegal (através do consumo de drogasou da comercialização de produtos ilegais, principalmente subtraídos de terceiros). Assim, para muitas pessoas, a participação na criminalidade acaba não sendo uma opção, mas uma necessidade para sobrevivência. Esta circunstância acaba por evidenciar um tipo de “violência que vem de cima”, como bem trata Wacquant (2005, p. 29), que decorre das classes altas e é responsável por uma crescente estigmatização e uma escalada geral da desigualdade, demostrando que a violência urbana também tem entre suas raízes a violência estrutural que acomete a classe econômica e socialmente menos favorecida, mas também é um subproduto da esfera política, denunciando a decomposição dos sistemas sociais e dos aparatos formais que consolidaram o estado nacional (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005). Os atuais padrões de consumo nacionais, estipulados através dos diversos meios de comunicação, exercem um poder simbólico sobre boa parte da população, principalmente sobre a parcela com baixo grau de instrução21, fazendo com que a participação ativa na esfera de consumo torne-se condição essencial para a garantia de uma dignidade social e seja elemento imprescindível à cidadania, mesmo entre aqueles que não têm um poder aquisitivo tão alto (WACQUANT, 2005, p. 33). Nesta perspectiva, pode ser notado que a maior parte dos anseios particulares se dirige ao acesso à tecnologia, por meio de celulares avançados, notebooks, tablets, ou ainda a outros utensílios sofisticados como eletrodomésticos, veículos motorizados, ou ainda a utilização de roupas de grife, entre outros. Estes padrões de consumo constituem uma realidade praticamente inacessível a muitas famílias, uma vez que o poder de compra de grande parcela da população regional é essencialmente pequeno22 e decorre do subemprego, provocado pela majoritária mão-de-obra pessimamente capacitada e com baixo valor agregado. A dissonância entre a realidade vivida e a almejada (em muitos casos verificáveis através dos meios de comunicação) torna boa parte da população facilmente suscetível de ser influenciada pelas benéficas que a criminalidade pode proporcionar, assim, parafraseando Wacquant (2005, p. 33), a violência e o crime acabam sendo o único meio à mão da classe Segundo dados do PNUD, já em 2010 a expectativa de anos de estudo da pulação regional é de 8,87, contando ainda uma taxa de apenas 28,4% da população com 18 anos ou mais que possui o ensino fundamental completo. 22 Segundo o PNUD, em 2010, a renda per capita regional era de R$ 254,31 enquanto que no Brasil era de R$ 793,87. Além do mais, enquanto rendimento médio da população ocupada no mesmo ano no país é de R$ 1.296,19, a região do agreste paraibano evidencia uma total discrepância ao apresentar um valor médio de R$ 385,87. Tudo isto demonstra o quão deficiente é a economia regional, sobretudo por demonstrar a existência de um grande mercado informal que paga aos seus funcionários valores bem abaixo não apenas da média nacional, mas muito inferiores ao salário mínimo legalmente instituído. 21
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trabalhadora sem perspectivas de emprego para adquirir direitos e bens de consumo indispensáveis para ascender a uma existência socialmente reconhecida. Não obstante, este anseio por consumo que vem aflorando nas últimas décadas tem influenciado drasticamente a sociedade, uma vez que o importante acaba sendo o “possuir”, logo o consumo acaba sendo uma engrenagem importante não apenas no campo econômico, mas também no social, educacional, cultural, entre outros, fazendo com que hoje se observem novos (des)valores e muitas incertezas. Há uma instrumentalização das relações humanas voltadas para uma racionalidade mercadológica e utilitarista, assim a violência assume uma posição de mediadora das tensões decorrentes destas relações (ALVES, 2012). É nesta perspectiva que a SENAD (2013, p. 101) relata: Uma sociedade focada no consumo, na qual o importante é o “ter” e não o “ser”, e a inversão de crenças e valores gera desigualdades sociais, favorece a competitividade e o individualismo e não há mais “certezas” religiosas, morais, econômicas ou políticas. Esse estado de insegurança, de insatisfação e de estresse constante incentiva a busca de novos produtos e prazeres – nesse contexto, as drogas podem ser um deles.
É importante ainda observar que as distâncias provocadas pelas condições socioeconômicas e geográficas entre riscos e pobres e a falta de engajamento das instituições públicas em verdadeiramente tentar reverter o cenário de carências regionais favorecem o desenvolvimento de hostilidades e desconfiança perante o Estado, aliado a isto o modelo adotado pelos órgãos de segurança pública atuais é essencialmente reativo, mostrando-se desconcertado para lidar com as raízes do problema, o que abre espaço para o questionamento da legitimidade da ordem social, sobretudo em decorrência do vácuo criado pela ausência de laços políticos, principalmente pela falta de instâncias de mediação acessíveis para que os pleitos da população urbana marginalizada se tornem audíveis (WACQUANT, 2005). Ademais, em meio a tantos desconcertos políticos, econômicos, sociais e educacionais, as drogas ilícitas (principalmente o crack e maconha) tem se mostrado elementos atrativos para grande parcela da população marginalizada, seja através do consumo que pode proporcionar sensações de prazer, de liberdade (expressa pela fuga das problemáticas recorrentes em sua realidade) e de alívio das tensões sociais, seja através do tráfico de drogas que apesar de ser uma atividade ilícita se mostra bastante rentável. Esta circunstância torna os indivíduos triplamente vulneráveis à violência: a) a necessidade de sanar dívidas provocadas pelo vício ou tráfico de drogas ou ainda a coação de integrantes de seu grupo para angariar dinheiro ou bens, podem incentivar os
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indivíduos a agirem como agressores ou criminosos, ou ainda serem vitimados em decorrência do não adimplemento das obrigações contraídas junto à “boca de fumo” (termo utilizado para expressar o local onde ser comercializa drogas ilícitas); b) os indivíduos que mantém relações de proximidade com grupos delinquentes podem tornar-se suscetíveis a vitimização por ações de integrantes do próprio grupo ou de rivais, em razão de querelas constituídas em torno do comercio ilícito de drogas (por exemplo, disputas por zonas de influência); c) Ao praticarem ações criminosas (por exemplo, o consumo ou tráfico de drogas, ou outros delitos para custear o vício ou adimplir dívidas contraídas perante este tipo de comércio ilícito), os indivíduos podem ser submetidos a reprimendas estatais, especificamente a violência institucional (mesmo que legalmente acolhida por alguma excludente de ilicitude) empenhada pelos agentes de segurança pública para capturar tais agentes e/ou apreender os objetos ilícitos em seu poder. É necessário frisar ainda que os novos padrões culturais que vem sendo incorporados ao dia-a-dia da população do agreste paraibano acabam tendo sua parcela de contribuição para a estipulação do contexto violento que hoje se observa. Não só a facilidade no acesso a informações sobre as peculiaridades culturais de todo o país e do mundo, mas também as experiências factuais decorrentes da imigração ao Sudeste do país tem favorecido a assimilação de novos elementos (música, hábitos, concepções etc.). Em decorrência das desfavoráveis condições econômicas do agreste paraibano, sobretudo por causa do desemprego, muitos cidadãos se aventuram em tentar a vida nos Estados do Sudeste, principalmente na cidade do Rio de Janeiro. A maior parte destes imigrantes pertence à classe pobre e possuem baixo grau de instrução, em consequência disto acabam se instalando nas áreas periféricas (sobretudo nas favelas) e se incorporam ao mercado informal destas regiões. São nestes locais que começam a ter contato com padrões muitos mais avançados de violência e criminalidade e acabam tendo que se adaptar e conviver com esta realidade. Mas não é só isso, acabam incorporando ao seu dia-a-dia um modo de vida muito distinto do interior ao qual pertenciam, sobretudo no que concerne aos modos de lazer: começam a frequentar bailes funks (onde é facilmente verificável um consumo excessivo de drogas lícitas e ilícitas), a ouvir músicas alimentadas por letras que incentivam a violência e a banalização do sexo, entre outros. Assim, ao retornar para sua cidade de origem, estes cidadãos trazem consigo uma série de informações que são acolhidas por familiares e amigos como ideário de modo de vida (um
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protótipo de wellfarestate que enfatiza o prazer23). Não obstante, muitos deles acabam tendo alguma forma de experiência com drogas ilícitas, seja decorrente do consumo ou até mesmo tendo atuado como mão-de-obra para o tráfico (seja através da entrega, comercialização, segurança das “bocas de fumo”, fiscalização das atividades dos demais integrantes, entre outros). Desse modo, paulatinamente vem sendo incorporados novos elementos culturais degenerativos, que apresentam um caráter negativo não pela sua contraposição aos padrões tradicionais do agreste paraibano, mas por carregarem consigo uma mensagem de favorecimento à violência e à criminalidade, como também por estipularem uma inversão moral que identifica o sexo, as drogas e padrões elevados de consumo como elementos centrais de um modo de vida prazerosa, ideal. Uma consequência palpável desta mudança cultural é a substituição do ideário do heroísmo pelas crianças e adolescentes anteriormente centrado em ações épicas, como o esforço para salvar vidas e proteger a sociedade contra o mal, que muita vezes se identificava com o exercício de algumas profissões, como de policiais, bombeiros, juízes, promotores, médicos, entre outros, por um novo modelo simbolicamente instituído pela luta de grupos criminosos por zonas de influência, manifestada pela dualidade entre as categorias identificadas como “OKAIDA” e “Estados Unidos”. A efervescência deste novo modelo tem sido capaz de envolver muitos jovens das comunidades em situação de risco numa disputa que tem motivado a realização de muitos homicídios, justamente por carregar consigo um poder não só simbólico mais ideológico muito forte, capaz até de padronizar as características dos participantes de cada grupo através de tatuagens e emolumentos24 e, ao mesmo tempo, fomentar ou fortificar seu envolvimento com a criminalidade. Assim, a violência e a criminalidade no agreste paraibano são retratos de uma gama de fatores que historicamente vem consolidando no cenário regional e vêm formulando um quadro de segregação social e estipulando valores para um modelo cultural que observa com grande
23Sob
esta supervalorização do prazerHopenhayn (2002) expõe: “No quiero con esto impugnar el placer. Me refiero más bien a un tipo específico de valoración del placer, que tiende a imponerse en la sensibilidad publicitaria, en los mensajes de los medios de comunicación, en los escaparates de los malls, en las conversaciones entre profesionales exitosos, en el mundo del espectáculo y también en los jóvenes privados de inserción productiva. Esta valoración específica del placer nos propone la imagen seductora de una vida poblada por una secuencia de sensaciones placenteras, una vida donde el placer debe ir en aumento, donde el presente debe intensificar su vibración cada vez más, donde la sensoriedad debe acceder a una excitabilidad progresiva.” Como exemplo, as experiências empíricas apontam que a tatuagem de um palhaço indica que o indivíduo pertence a facção da OKAIDA, de outro modo a forma como é disposta as cores dos pregadores de cabelo afixados a aba de um boné também pode explicitar qual grupo aquela pessoa faz parte. 24
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passividade a reprodução desses elementos. Até mesmo o poder estatal não tem empenhado grandes esforços para superar esta problemática ou estes são sistematicamente ineficientes (como, por exemplo, o emprego reativo das forças de ordem que não tem conseguido frear a onda de violência por não poder influir sobre as raízes sociais do problema). Apesar de tudo isso, algumas estratégias paulatinamente vêm sendo rabiscadas no cenário regional, tais como a implementação de iniciativas de policiamento comunitário, a criação de redes de assistência psicossocial, o fomento a práticas desportivas (principalmente através de passeios ciclísticos, criação de espaços públicos apropriados, corridas, etc.), entre outros. Estas são algumas medidas que partem para uma estratégia de envolvimento social, ou seja, da participação popular, mas que precisam ser ampliadas e acessíveis aos mais necessitados. Mesmo já tendo ocorrido algumas iniciativas de desenvolvimento de um orçamento participativo, precisase abrir espaços mais claros e acessíveis para que a população mais carente e com maior risco social possa ter sua voz audível quando da apresentação de seus pleitos, favorecendo assim a sua participar nas decisões políticas da cidade, especificamente estipulando meios para o exercício de sua cidadania e galgando condições para o usufruto de uma segurança social. O poder público precisa centrar suas ações na redução das condições que favorecem o desenvolvimento da violência, principalmente empenhando esforços para a redução do desemprego, formulação de uma educação de melhor qualidade, a criação de um planejamento urbano e social, além de, com apoio da imprensa local, disseminar campanhas de elevação de muitos valores tradicionais como o respeito à vida, à dignidade do ser humano, à honestidade, à solidariedade, passando assim uma mensagem de paz. 4.1. ALGUNS EFEITOS DA VIOLÊNCIA PARA O DESENVOLVIMENTO HUMANO NO AGRESTE DA PARAÍBA Conforme observado no item anterior, a violência detém suas raízes nas estruturas sociais, econômicas e culturais que historicamente vão se desenvolvendo e criam um cenário atrativo a todos aqueles que não têm grandes perspectivas de vida em razão da segregação ou estigmatização que lhes acomete. Acontece que esta mesma violência interage com estes sistemas e influencia-os negativamente agravando vertiginosamente as problemáticas que lhe deram causa. Mesmo assim, careceobservar que um dos recursos utilizados pela violência para agravar as problemáticas que lhe dão sustentabilidade é o medo do crime.
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Para John Howard Societyof Alberta (1999, apud Dantas et al, 2006) o medo do crime pode ser considerado como “(...) uma reação emocional caracterizada pela percepção de perigo e consequente ansiedade produzida por sua ameaça remota ou iminente, indicada por fatores percebidos no ambiente (...)”, logo a frequente observação de casos bárbaros de violência (como, por exemplo, a incidência de homicídios) pode acentuar os efeitos deste sentimento, provocando impactos negativos sobre a vida dos cidadãos conforme assinala Dantas el tal (2006) e Bondaruk (2007, p. 51), inclusive podendo trazer consequências individuais, coletivas, políticas e econômicas significativas, dentre elas o dano psíquico, o abandono ou esvaziamento demográfico, percas econômicas sobretudo através do recrudescimento do turismo, desvalorização imobiliária, entre outros. Como retrato claro desta realidade, a região do agreste sofre de uma estagnação demográfica, uma vez que nos últimos 20 anos não se observa um grande crescimento demográfico regional, com exceção apenas de Guarabira que concentra a maior rede de serviços públicos da região. Em algumas cidades como Serraria, entre 1991 e 2010, foi presenciada a redução da sua população em 14,7%, consoante dados do Atlas 2013 do PNUD. Encontra partida, todas as cidades da região presenciaram uma urbanização desorganizada, promovida pelo êxodo rural, que ainda vem ocorrendo nos dias atuais em razão da carência de políticas de incentivo e apoio a agricultura familiar e por causa insegurança. Apesar de não haver um estudo estatístico consolidado para a região do agreste paraibano, não se pode deixar de observar que a violência tem provocado efeitos no campo econômico regional, uma vez que não se tem mais observado, como outrora,uma grande quantidade de lojas abertas em horário que corriqueiramente há uma redução do contingente policial (geralmente horário das refeições). Inclusive, alguns tipos de comércio não prestam um serviço em regime integral por causa do receio de serem roubados ou saqueados, como as farmácias que, apesar de ser um tipo de empreendimento essencial à saúde dos cidadãos, têm atuado frequentemente nas cidades da região até, no máximo, às 22 horas, salvo quando estão em regime de plantão, quando podem estender seu horário de serviço atéa meia-noite.Isso remete diretamente a observação de que valores deixam de ser produzidos ou ganhos em razão do medo da violência, conforme expõe Kahn (1999).Outrossim, se pode observar com maior frequência o crescimento do setor de segurança privada, seja através da comercialização de equipamentos de vigilância eletrônica, grades, cadeadosou do serviço ostensivo diurno ou noturno. Até mesmo o arranjo das residências urbanas toma um contorno cada vez mais enclausurante, uma vez que sem grande esforço pode ser percebido a frequência cada vez maior
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de casas marcadas por grades, travas, cadeados, muros altos, cercas eletrificadas, entre outras medidas destinadas a desestimular uma possível tentativa de investida criminosa, mas paralelamente não deixam de demonstrar características de auto restrição dos próprios moradores. Também tem se tornado cada vez mais comum o debate político em torno da estruturação das guardas municipais como mais um recurso para suprir o déficit de recursos humanos no setor da segurança pública, verificável pelo reduzido contingente policial diariamente lançado nas ruas, mesmo diante do aumento da demanda de serviços. Além do mais, busca-se através desta guarda prevenir a prática de delitos e minimizar a sensação de insegurança regional. Outra marca do medo do crime é a pequena participação da população em espaços públicos destinados ao lazer, sobretudo no horário da noite. Quase todas as cidades da região veem suas praças e ruas vazias assim que termina o horário de aulas noturnas nos colégios, geralmente por volta das 22 horas. Inclusive muitos estabelecimentos comerciais como bares, lanchonetes e restaurantes detém um horário de atendimento reduzido, geralmente não ultrapassando a meia-noite. É importante ainda assinalar que os danos físicos e psicológicos provocados pela violência, além de causar prejuízos econômicos por afastamento do trabalho, podem produzir prejuízos à saúde mental e emocional não só das vítimas, mas de suas famílias também. No campo da saúde, provocam o aumento de gastos com serviços de atendimento de emergência, assistência e reabilitação, os quais são mais custosos do que as intervenções médicas convencionais (MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2005)25. Outros efeitos sensíveis decorrentes do aumento da violência é o crescimento dos gastos com segurança pública (serviço extraordinário remunerado, recursos logísticos, entre outros) 26e com o sistema de justiça criminal e penitenciário, principalmente quando é levado em consideração que os estabelecimentos prisionais na 8ª AISP detém uma população carcerária média de 570 detentos, dos quais mais de 400 cumprem pena em regime fechado, segundo levantamento realizado junto a estas entidades. Desse modo, a violência influencia diretamente no desenvolvimento regional, que não deve ser concebido unicamente sob uma ótica economista, mas também sob outros enfoques, Segundo informações prestadas pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde (2005) os gastos diretos com a violência são estimados em 3,3% do PIB, o que corresponde a um valor superior ao que é investido com Ciência e Tecnologia no Brasil. Assim, no ano de 2000, enquanto o custo médio das internações em geral era de R$ 403,38, os gastos médios do tratamento de pessoas feridas, traumatizadas ou lesionadas por acidentes e violências foi de R$ 506,52. 26 Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (2013, p. 47), os gastos com a segurança pública na Paraíba aumentou 16,62% entre 2011 e 2012, assumindo o patamar de 10,4 % das despesas do Estado neste último ano. 25
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como bem salienta Tavares (2008, p. 20), e, ao mesmo tempo, constitui uma das mais terríveis formas de violação de direitos humanos, não apenas pelo seu efeito direto (morte, lesão, danos...), mas também em razão das suas consequências indiretas para a vida social, tomada em seu aspecto amplo, e para o Estado Constitucional de Direito. Logo, há uma necessidade de estabilizar (conter) a incidência e os efeitos dos atos de violência para se evitar grandes prejuízo são desenvolvimento do agreste paraibano, minimizando riscos à vida, ao patrimônio e outros bens juridicamente relevantes dos moradores regionais, para que, assim, possam gozar suas vidas com dignidade e segurança. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS A análise atenta da violência no agreste paraibano evidencia uma complexa rede de motivações e consequências que interagem neste espaço geográfico demonstrando possuir um duplo viés, ora como raiz desta problemática, ora como consequência direta dela. Esta dualidade estabelece seu engessamento no seio social e a torna uma questão com resolução cada vez mais difícil, sobretudo diante das estratégias governamentais atuais e o baixo envolvimento popular com a causa. Apesar de ser sensivelmente afetada, a maior parte da população tende a se adaptar tomando uma postura passiva, voltada essencialmente para sua defesa, uma vez que esta condição demonstra (apenas aparentemente) oferecer menores riscos para suas vidas e para seu patrimônio, no entanto a escalada dos índices de violência, principalmente os registros de homicídio, denuncia que é imprescindível o afloramento de uma nova postura, um novo paradigma que evidencie o envolvimento popular na busca de medidas que possam influir na sua própria qualidade de vida, principalmente reduzindo a insegurança e efetivando seus direitos fundamentais, principalmente à segurança. Noutro norte, a agenda de ações governamentais (seja nos campos da segurança pública, saúde, educação, economia, cultura, entre tantos) tem apresentado medidas ainda muito tímidas, não sendo realmente capazes de readequar o cenário regional as reais demandas que lhe são apresentadas. É importante que haja uma verdadeira integração entre todas as instituições públicas, não apenas em matéria de segurança, a fim de serem articuladas ações multifocais, responsáveis por oferecer um acompanhamento dos acusados, vítimas e familiares de ambos, de modo a minimizar os impactos sociais do crime, além de uma orientação popular sobre o
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problema, mas também sem perder de vista o trato das causas subjacentes a este, em suas diversas estruturas. Só a partir da formação de um eixo com interação e atenção voltadas para a resolução do problema da violência, passando pelas famílias, instituições públicas e privadas, e sociedade como um todo, é que poderá ser revertido esse quadro atuale ao mesmo tempo ter-se-á diante de uma série de condições capazes de proteger os direitos fundamentais de todos, principalmente da dignidade da pessoa humana. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Maria da Graça Blaya. A violência na sociedade contemporânea. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2010. [dados eletrônicos]. ALVES, R.A. et al. Homens, vítimas e autores de violência: a corrosão do espaço público e a perda da condição humana. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.16, n.43, p.871-83, out./dez. 2012. ARENDT, Hannah. Sobre a violência. Tradução de André de Macedo Duarte. – 3ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2011. BÍBLIA SAGRADA. 198. ed. São Paulo: Claret; Editora Ave-maria, 2012. BASTOS, Aguinaldo de et al. Ontologia da violência: o enigma da crueldade. Rio de Janeiro: Mauad X, 2010. BARRATA, Susana de Almeida. Violência Urbana. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2008. BEATO FILHO, Claudio C.; REIS, Ilka Afonso. Desigualdade, desenvolvimento socioeconômico e crime. In.: Anais do Seminário Desigualdade e Pobreza no Brasil. Cap. 13. p. 385 – 403. Disponível no site: <http://www.ipea.gov.br/sites/000/2/livros/desigualdadepobrezabrasil/capitulo13.pdf>. Acesso em 03 Nov 2012 às 20h35min. BECKER, G. S.. A Theory of Social Interactions. Journal of political economy, v. 82, n. 6, p. 1063-1093, 1974.
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DESCORTINAMENTO DA VÍTIMA: ESTUDO CRITICO SOBRE AS TIPOLOGIAS VITIMAIS
Ana Clara Montenegro Fonseca84
1 INTRODUÇÃO A presente pesquisa tem como objeto de estudo a vítima de crime. Esta, geralmente, está associada tão somente a ideia de passividade e inocência. Aqui, busca-se desvendar as origens conceituais sobre a vítima, que vinculam a sua definição a certa sacralização. Logo, a intenção é descortinar as possíveis interferências dela na cena do crime, indo além da concepção padrão de vítima como sujeito passivo. Para tanto, pretende-se analisar as tipologias vitimais, através de estudos vinculados a chamada Vitimologia, para descobrir outras espécies de vitima e sua interação com o autor do delito. Ao final, expõe-se a possibilidade de vítimas que contribuem para o delito, a fim de desconstruir a visão maniqueísta de autor como único causador do delito e a vítima absolutamente inerte, chegando, assim, ao conceito de vitima relacional. 2 ENFOQUES ETIMOLÓGICOS DA VÍTIMA A interpretação e aplicação do direito penal atual exigem uma definição nítida entre as posturas de autor e vítima na cena do crime. Esta distinção, contudo, apresenta dificuldades, desde tempos remotos, pois nem sempre a linha que separa os dois protagonistas do drama criminal é suficientemente precisa. Segundo Stephen SCHAFER85, no período primitivo da humanidade, “ataque era defesa contra ataque e o estado de guerra entre o criminoso e a vítima fazia do sofredor um atacante e convertia criminosos em vítimas. A relação autor-vítima era um esforço mútuo e contrário para assegurar o poder” (livre tradução). Logo, não se vislumbrava com clareza o papel desempenhado por tais protagonistas na cena do conflito, aspecto este prejudicial em demasia à compreensão e solução do mesmo.
Mestra em Direito Penal pela UFPE. Professora e pesquisadora na UFPB, nas áreas das Ciências Penais, Bioética e Direito Ambiental. Email: anaclarafonseca@gmail.com 85SCHAFER, Stephen. Victimology: the victim and his criminal. Virginia: Reston Publishing Company, 1977. p. 6. 84
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Ezzat FATTAH86, por seu turno, assinala com propriedade que autor e vítima podem desempenhar papéis relevantes para a ocorrência do crime, não remarcando um necessário antagonismo. Assim, assevera que: O criminoso e sua vítima não são radicalmente diferentes como o negro e o branco, como são tidos freqüentemente, mas podem ser igualmente responsáveis pela comissão do ato. Portanto, somente pelo exame individual dessas duas partes, das suas personalidades, das inter-relações e interações entre elas, considerando o papel que cada uma assumiu no drama, é possível formular uma avaliação correta da responsabilidade penal para a ação em causa (livre tradução).
Etimologicamente, concebe-se a palavra vítima como derivação do verbo latino vincere87,
animal sacrificado às divindades, ou do nome victima88, que, sem expressiva variação, implica na pessoa ou no animal que se destina ao sacrifício89. Sua raiz remete-se também à expressão vencire ou
vincire que significa atar ou vencer, sendo a vítima, o atado, o vencido90. Ainda, as palavras victima, victus, cuja semântica reflete alimento, bem como a expressão vieo, sendo atar com juncos, que formava parte de um ritual, eram abundantemente usadas, no cenário romano, expressando o imobilizado, dominado, abatido e ferido91, imbricando a origem do verbete à noção de sofrimento, de prejuízo. De acordo com as lições de Cláudio BRANDÃO92, na sociedade primitiva o direito penal possuía um caráter sacerdotal e teocrático, em que a aplicação da pena pelos sacerdotes (intermediários entre homens e divindades) decorria da violação de normas sagradas, do tabu (sagrado e proibido). O tabu violado, segundo esclarece Luis Jiménez de Asúa93, exige a expiação do 86FATTAH,
Ezzat. La victime est-elle coupable? Montréal: Les Presses de l‟Université de Montréal, 1971. p. 11-12. 87Segundo F. Vigouroux no “Dicionário da Bíblia” cabe ao verbete victime uma origem ligada a holocausto e oblação, ipsis litteris: “ser vivo que se imola em um sacrifício” (apud BITTENCOURT, Edgar de Moura. Vítima. São Paulo: Universitária de Direito Ltda., 1971, p. 50). 88MANZANERA, op.cit., nota 5, p. 55-56. 89O texto bíblico, primeira visão antropológica da vítima e que inspira essas traduções expõe: “Isaac dirigiu-se a Abraão: Pai!. Respondeu ele: Eis-me aqui, meu filho!. Isaac continuou: Aqui estão o fogo e a lenha, mas onde se acha a vítima para o holocausto?. Respondeu Abraão: Deus providenciará a vítima para o holocausto, meu filho!”. A vítima era o próprio Isaac. Deus punha em prova a fé e a fidelidade de Abraão ao lhe sugerir a vitimização de seu único filho. BÍBLIA. Português. Bíblia Sagrada. São Paulo: Paulinas, 1976. Gênese 22, 68 – sem grifos no original. 90IÑIGUEZ ORTEGA, Pilar. La víctima: aspectos sustantivos y procesales. Cervantes Virtual. Disponível em: http://descargas.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/13560842112138384122202/013181_2.pdf.Acess o em: 20 ago de 2008. 91Na mesma trilha, PANTALEÃO, Juliana F. Ação civil ex delicti. Boletim Jurídico. Uberaba-MG, a. 3, nº100. Disponível em: <http://www.boletimjuridico.com.br/doutrina/texto.asp?id=400> Acesso em: 6 jan. 2006. 92BRANDÃO, Cláudio. Curso de Direito Penal: parte geral. São Paulo: Forense. p 23. 93(a) ASÚA, Luis Jimézez de. Tratado de Derecho Penal. Tomo I. 5ed. Buenos Aires: Editorial S.A, 1950. p.242. O autor ainda cita em outra obra (vide também (b) ASÚA. La llamada victimologia. In: Estudios de Derecho Penal e Criminologia. 1961 vol. I. p. 24) que Cornil relaciona a origem da palavra vítima à religião, 137
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infrator, ou mesmo de coisas inanimadas e animais, como sacrifício à divindade para purificar o ambiente do mal causado. Infere-se que nesse momento humano a razão da vítima é exatamente de ser sacrificada como oferenda (sacrum facere) 94, havendo nessa origem um caráter sacral. O alimento (victus) deve ser imolado em um ritual, pois a tribo (clãs e demais organizações sociais primitivas) precisa oferecer vítima às divindades para, segundo a crença, afastar os malefícios da quebra do tabu e manter a coesão do grupo95. Vê-se que a vítima há muito tempo é alvo de análise, embora a vitimologia seja de composição recente. Assim, observa-se que as legislações antigas corroboram essa afirmação, posto que já havia referencias à vítima em Códigos como o de Ur-Nammu, na Lei de Eshuma e no Código de Hammurabi, os quais datam 2000 a.C96. 3 CONCEPÇÃO GERAL E JURÍDICA DE VÍTIMA Uma concepção geral e vernácula do nome, colacionada de AURÉLIO B. de Holanda Ferreira97, outorga roupagem polissêmica à vítima (do latim victima), qual seja: “homem ou animal imolado em holocausto aos deuses; pessoa arbitrariamente condenada à morte, torturada ou violentada; pessoa sacrificada aos interesses ou paixões alheias; pessoa ferida ou assassinada (...); sujeito passivo do ilícito penal; paciente; pessoa contra quem se comete crime ou contravenção” (sem grifos no original). De se vê que Aurélio, como representante da consciência leiga, perpetua a genérica indumentária acerca da perspectiva jurídica, que (en)cobre a vítima de perene candura e celestial inatividade face ao crime. Em sincronia, transladando-se, porém, para o vocabulário jurídico, conforme De PLÁCIDO e SILVA, vítima (do latim victima) corresponde à “toda pessoa sacrificada em seus interesses, que sofre um dano ou é atingida por qualquer mal”. Prossegue coadunando com a inopiosa e tradicional definição penal, a designá-la como simples “sujeito passivo de um delito ou de uma contravenção”. Isento de pudor, remata sua prosaica percepção com a aglutinação de
tratando-se do sacrifício de uma pessoa ou de um animal à divindade. Também, Litré entende a vítima como o que se sacrifica em favor de interesses ou paixões de outrem. 94IÑIGUEZ ORTEGA, op. cit., nota 24. 95De se pensar que a vítima em cumprimento de um mito religioso, seja ela homem ou animal, não possui relação com a criminologia/vitimologia, porém conforme aduz Israel Drapkin, esses sacrifícios também alcançam níveis civilizatórios. O auto relata o caso de uma mulher estadounidense que em 1978 matou seu filho de cinco anos e tentou o mesmo com o outro de dez alegando que “eram filhos de Satanás e iriam matála” (DRAPKIN, Israel. El derecho de las víctimas. In:Anuario de derecho penal e ciencias penales. Madrid, 1980. P. 368). 96 PIEDADE JUNIOR, Heitor. Vitimologia, evolução no tempo e no espaço. Rio de Janeiro: Freitas Bastos: 1993. p.21. 97AURÉLIO. Dicionário de língua portuguesa. 3. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 2081. 138
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termos jurídicos distintos, como ofendido, prejudicado, ferido, assassinado, burlado, todos sob o universo semântico da nomenclatura vítima98. Insta assentar a acepção de BITTENCOURT99 que se constitui pelo sentido originário, implicando na “pessoa ou animal sacrificado à divindade; geral, significando a “pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios atos, dos de outrem ou do acaso”; e, no campo da hermenêutica jurídica, subdivide-se em: “jurídico-geral representando aquele que sofre diretamente a ofensa ou ameaça ao bem tutelado pelo Direito; jurídico-penal-restrito, designando o indivíduo que sofre diretamente as conseqüências da violação da norma penal; e jurídico-penal-amplo, que abrange o indivíduo e a comunidade que sofrem diretamente as conseqüências do crime” (sem grifos no original).
É de se notar que o referido autor faz um esboço bastante coerente, evitando o uso de vocábulos (a exemplo, de “sujeito passivo”) diversos no sentido único de vítima e prevê a noção de auto-vitimização, quando afirma ser a vítima a pessoa que sofre os resultados infelizes dos próprios atos.
Por seu turno, Frederico Abrahão de OLIVEIRA100 afirma que vítima é o sofredor de danos em três ordens, quais sejam: física, mental e econômica; bem como o perdedor de direitos fundamentais, em virtude da ocorrência de violações de seus direitos humanos, reconhecidos internacionalmente, e por atos lesivos comuns. Corrobora-se a clássica visão de vítima: constante sujeito passivo, vislumbrando apenas um lado do respectivo conceito. Outrossim, inobstante o uso indistinto da palavra vítima por doutrinadores e legislações em geral, uma definição adequada desta, certamente, diferencia-a das variadas categorias com as quais é comumente confundida, sem o privilégio de uma sobre a outra, mas com o devido reconhecimento da coexistência desses variados conceitos101. Segundo Guglielmo GULOTTA102, na linguagem jurídica, o termo vítima não é usado de modo uniforme sendo comparado, alternativamente, com outros, tais como: parte lesada, pessoa ofendida etc. Ainda, podendo-se entender a vítima como sujeito passivo do delito, titular do interesse ofendido, sujeito material do crime, que nem sempre coincide com o primeiro. Do ponto de vista legal, vítima é pessoa física ou jurídica, ou o Estado.
98SILVA,
De Plácido e. Vocabulário Jurídico. 26. ed. rev. atual. Rio de Janeiro: Forense, 2005. p. 1493. BITTENCOURT, op.cit., nota 21, p. 51. 100OLIVEIRA, Frederico Abrahão de. Vítimas e criminosos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1993. p. 9. 101A guisa de exemplificação, vislumbra-se no Código Penal brasileiro de 1940 o uso tanto do termo vítima, bem como do termo ofendido: da fixação da pena, art. 59: “o juiz atendendo à culpabilidade, ao s antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente (...), bem como ao comportamento da vítima estabelecerá conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e prevenção do crime”; perdão do ofendido, art. 105: “o perdão do ofendido, nos crimes em que somente se procede mediante queixa, obsta ao prosseguimento da ação”. 102GULOTTA, op. cit., nota 11, p. 6. 99MOURA
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Em uma incipiente tentativa de distinção, leciona Heitor Piedade JÚNIOR103 que vítima indica o tratamento conveniente ao titular do bem envolvido em crimes contra a pessoa, não devendo a denominação ser igualmente utilizada no sentido de prejudicado ou lesado104, os quais se revestem do estereótipo de sofredor, quanto às conseqüências patrimoniais do resultado lesivo, submetendo-se à esfera civil de indenização por danos; nem tampouco podendo considerá-la em relação de sinonímia com o termo ofendido, cujo uso comporta somente o titular do bem-alvo nos crimes contra a honra ou contra os costumes. Cabimento ainda menor seria a sua utilização, de forma genérica, como sujeito passivo105 do crime, uma vez que essa denominação retrata o inadmissível esquecimento das vítimas que colaboram no risco para si próprias e distanciam-se intensamente desse juízo de paralisia, que não é uma invariável no delito. Diante da notória miscelânea terminológica, cumpre consignar que o entendimento do termo ora defendido alude à pessoa física ou jurídica (Estado, entidades coletivas, família, sociedade etc.)106 que sofre as conseqüências da conduta típica ou é titular do bem jurídico tutelado (difuso ou coletivo) lesionado ou ameaçado de lesão concreta e grave. Prescinde-se da noção sacral que os agrupamentos e religiões primitivas lhe atribuía107. Admite-se, por seu turno, o caráter interacionista da relação entre vítima e agente no desenrolar da relação contenciosa.
4 VÍTIMA ALÉM DE CONSTANTE SUJEITO PASSIVO DO CRIME Em boa técnica, além do senso comum de necessária passividade e de inocência atribuídas e incorporada pela noção dogmática à vítima de crime, a compreensão do significante deve, forçosamente, abandonar essa perspectiva maniqueísta e englobar o citado enfoque vitimológico interativo. É de se considerar, pois, a relação entre autor e 103JÚNIOR
(1993 apud OLIVEIRA, Ana Sofia Schmidt de. A vítima e o direito penal. Uma abordagem do movimento vitimológico e de seu impacto no direito penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 79). Destaca-se, que, embora o mencionado autor sistematize o uso do vocábulo consoante o sujeito e sua identificação com o bem tutelado, o próprio Código Penal e o Código de Processo Penal não distinguem tais nomeações. 104MARQUES (Frederico Marques. Curso de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1956. vol. 2, p.56) diferencia prejudicado, lesado e sujeito passivo, servindo-se do crime de homicídio. Aduz que o último seria o morto (na verdade, a vítima) e os primeiros os que dependem do de cujus. Conclui afirmando que normalmente o sujeito passivo é prejudicado, mas que nem sempre o inverso procede. O prejudicado sofre danos patrimoniais em decorrência do crime, cabendo-lhe ação de ressarcimento. 105Bettiol defende a existência de dois sujeitos passivos em todo crime: um constante, o Estado, e outro eventual, o titular do interesse concreto. Importante relembrar que se repudia neste estudo a expressão “sujeito passivo” pela idéia de imobilidade, inércia que ela traduz, opta-se, todavia, pela noção de vítima como sendo a pessoa que sofre as conseqüências (lesão ou ameaça de lesão a seu bem jurídico) do delito, sujeita à relação de interação com o delinqüente e o ambiente (BETTIOL Giuseppe. Direito penal. v. 3. Trad. e notas de Paulo José da Costa Júnior e Alberto Silva Franco. São Paulo: RT, 1977. p. 47). 106Nesse sentido, ver BETTIOL, Giuseppe. Diritto Penale. Parte generale. Milano: Giuffré, 1958. p. 529 a 534. 107BERISTAIN, Antonio. Victimología. Nueve palabras clave. Valencia: Tirant lo Blanch, 2000. p .456457. 140
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vítima – vislumbre meritório da evolução penal mercê de investigações criminológicas e de estudos vitimológicos hodiernos que desvendaram, pois, as facetas outras da vítima. Nesse sentido, salienta o precursor vitimólogo Hans von HETING108 que: a lei faz uma distinção clara entre o que pratica e o que sofre. Olhando para a gênese da situação, em um número considerável de casos, conhece-se uma vítima que consente tacitamente, coopera, conspira ou provoca (livre tradução).
Desse modo, apesar de a vítima ser entendida como a titular do bem jurídico ameaçado de lesão ou concretamente atingido, reveste-se, não raras vezes, “tal qual as ovelhas que atraem os lobos nos campos”109, de caráter instigador à própria vitimização. Na mesma linha, argüi Elías NEUMAN que: a vítima pode constituir-se em fator desencadeante na etiologia do crime e assumir em certos casos e circunstâncias uma postura que integre o delito. É preciso visualizar deixando de lado o preconceito de sua inocência. O sujeito passivo: morto humilhado, física ou moralmente, não é sempre sinônimo de inocência (sem grifos no original)110.
De se constatar que a caracterização de NEUMAN reflete perfeitamente os ideais vitimodogmáticos de vítima contributiva e relacional, já que prevê, na sua postura, diante de problemas específicos, a possibilidade de a mesma ser levada em conta na interpretação do delito. Além do mais, enfatiza bem que a noção de sujeito passivo – tomada no sentido de vítima – ultrapassa a ingenuidade comumente difundida. Em termos simplórios, opta-se pela referência à vítima de crime como o titular do bem jurídico (interesse concreto), alvo de ameaça ou lesão, tutelado pela conduta típica, suscetível de liberar potencial deflagrador que cause o resultado lesivo. Distinta concepção, em suma, do atingido constante, que é o Estado-Administração (já que o crime viola um interesse público)111; do chamado sujeito passivo puro, que justifica sua titulação pela idéia de freqüente inércia; e do prejudicado, que sofre efeitos reflexos do crime, meramente patrimoniais, os quais não são assuntos imediatos de atenção. 108Versão
original: “the law makes a clear-cut distinction between the once who does and the one who suffers. Looking into the genesis of situation, in a considerable number of cases, we meet a victim who consents tacitly, co-operates, conspires or provokes”. HENTIG, Hans von. The criminal and his victim. Studies in the sociobiology of crime. New York: Schocken Books, 1979. p.384. 109OLIVEIRA, Edmundo. Novos rumos da vitimologia: o crime precipitado pela vítima. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.9, n.107, p. 17, out. 2001. Para o referido autor tem-se que a inércia pode perfeitamente inexistir na conduta da vítima, posto que há casos em que a mesma interatua com o agente e o meio, dominando o crime e gerando ou programando as coordenadas para sua vitimização. Origina-se disso o chamado crime precipitado ou a chamada precipitação vítimal. 110NEUMANN, Elías. Victimología. El rol de la víctima em los delitos convencionales y no convencionales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 1994. p. 25. 111Em relação ao Estado como sujeito passivo do crime, vide MARQUES, José Frederico. Curso de Direito Penal. vol II. São Paulo: Saraiva, 1956, p. 35-36. 141
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Em síntese, evoluiu-se de uma primitiva vítima arraigada à religião – ser sacrificado como oferenda ou para aplacar a ira divina – até a moderna definição de crime, que avança a fronteira de vítima como mero objeto passivo, e aprofunda sua valoração com uma perspectiva pluridimensional, à medida que abrange, em torno de si e a um só tempo, o agente, a vítima e a reação social.
5 AS OUTRAS FACES DA VÍTIMA DE CRIME Em tempos de tecnologia sem limites, inexata será ainda a equação que tentar categórica e genericamente determinar quem é o verdadeiro ofensor e a vítima de crime, olvidando o desenlace interativo possível entre ambos em dados contextos. Criar lados oponentes cerrados de benfeitores e malfeitores é fantasiar, semelhante a preconceber transviados irreversíveis e superanjos de eterna brandura. Em verdade, sobre essE assunto, o terreno é movediço, porque se de um lado a vítima é dotada de singular plasticidade (a vítima pode, paradoxalmente, vítima não ser – e mesmo assim não se estar diante de um enigma nem de um anátema –, apenas defronte a possibilidade nada incomum de uma permuta de papéis – fungibilidade – ou diante de uma falta vítima. Sua definição não se reduz a uma configuração unívoca, pois sofre modulações ampliativas ou restritivas a depender da força que permeia o debate vitimológico. No mundo real, os papéis desempenhados por humanos não se encaixam com tanta simplicidade nesses moldes de bem versus mal. Em sentido processual, relutam arduamente as partes em busca de meios convincentes que demonstrem, em situações pontuais, de que lado elas estão, ora obtendo-se justo êxito, ora iniqüidades. Essa é a dinâmica do crime e da própria vida. A vitimologia renova a idéia de delito como intercâmbio entre ofensor-vítima, não inventa tal dado. O estudo da vítima nas ciências penais não é novidade, apesar de sua pretérita exposição ser pouco metódica. Atualmente, apenas se revigora de forma organizada o olhar ao objeto, a fim de se desvendar outras arestas pouco exploradas antes, embora já existentes. De tal maneira, a compreensão perscrutada, atinente às outras faces que a vítima pode apresentar, perpassa pelo conhecimento de suas tipologias, cujo critério utilizado reporta-se ao nível de intercâmbio entre autor e vítima na cena do crime. Não se trata de estabelecer um juízo de culpabilidade mecânico, mas de se admitir o crime como um fenômeno interativo. Afere-se o maior ou menor grau de participação desta última na ocorrência do crime e seus efeitos para a dogmática jurídico-penal. Cumpre esclarecer, como lembra Flávia de Magalhães BARROS112 que tais tipologias objetivam descobrir as causas biológicas antropológicas e sociais da vitimização e também foram 112BARROS,
Flaviane de Magalhães. A participação da vítima no processo penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008.p.49. 142
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utilizadas para incluir o comportamento da vítima como elemento da análise da culpabilidade do autor (um exemplo disso é o art. 59 do Código Penal) Segundo Martin E. WOLFGANG, que estudou pontualmente o homicídio provocado pela vítima, no início do séc. XIX, a opinião de que a análise do fato criminoso exige o olhar ao comportamento da pessoa sobre a qual ele recai ganha consistência, inclusive, na literatura satírica francesa. Thomas DEQUINCEY, em “Do assassínio considerado como uma das Belas Artes” (1925)113, expressa a convicção de que determinados indivíduos em razão de algum traço característico, são mais predispostos a tornarem-se vítima de um homicídio e a inspirar o autor a idéia do crime114. Nesse diapasão, Anselm FEUERBACH atribui, referindo-se a um caso de parricídio, à vítima a quase totalidade da responsabilidade do delito115. Em termos exatos, “foi ela própria a autora culpada de tudo que a vitimou”116. Com o advento da Escola Positiva e os primeiros estudos criminológicos surgem outras evidências de vítimas provocadoras, isto é, da importância da vítima e do seu papel. LOMBROSO considerou os casos de criminosos que tinham agido sob influência das emoções provocadas a eles pelo comportamento da vítima. GAROFALO destacou que o comportamento da vítima pode provocar a ação criminosa do réu. Já Ferri indiretamente mencionou que o pseudo-criminoso viola a lei em uma necessidade inevitável de autodefesa117. Gabriel TARDE protestou contra os “erros legislativos” derivados do fato de não considerar os elementos indicativos de uma inter-relação significante entre a vítima e criminoso e sublinhou a possível responsabilidade da vítima relativa a algumas ações por ela tomadas118. Conforme expõe GULLOTA119, Em meados de 1952, F. Tennyson JESSE destaca em Murder and its Motives um conceito de predisposição vítimal. O citado autor cunha o substantivo inglês “assassinável” para designar o tipo particular de sujeito que parece predisposto a tornar-se vítima de um homicídio: “parece que há um tipo de ser humano que é predisposto a ser assassinado - eles são o chamados murderees”. Posteriormente, M. W. o ALLEN pronuncia que a maior parte dos crimes contra o patrimônio ocorrem devida à negligência e imprudência das vítimas, afirmando a necessidade, para o progresso social e científico, não só de examinar a personalidade do ofensor, mas também o da vítima. Com apoio em Franz von LISZT, Viveiros de CASTRO, em meados de 1899, prolatava decisões (Jurisprudência Criminal, Cap. XXVI, p. 296-309) já afirmando, que, quando a vítima não Referência original: DEQUINCEY, Thomas. De l‟assassinat considere comme um des Beaux-Arts. Gallimard, Paris, 1963. 114 Vide MOURA BITTENCOURT, op. cit., nota 21, p.14 e GULOTTA, op. cit., nota 11, p. 3. 115FEUERBACH, Anselm von. Narratives of Remarkable Criminal Trials. London: John Murray, 1846. Nesse sentido ainda vide GULOTTA, loc. cit. 116 PAASCH, Fritz R. Problèmes fondamentaux et situation de la victimologie. In: Revue Internacionale de Droit Pénal. n. 1 e 2. 1967. p. 121. 117 Assim, WOLFANG, Martin E. Victim precipitated criminal homicide. In: The journal of criminal law, criminology and police science. New York, 1957. vol. 48/maio. p. 2-11. 118TARDE (1912 apud WOLFANG, loc. cit.); também MOURA BITTENCOURT, op. cit., p. 14 119GULOTTA, op. cit., nota 11, p.4. 113
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estava de boa fé, quando, também, pretendia iludir ou propunha uma transação criminosa, imoral ou torpe, o fato incriminado não incide na sanção penal120. De se notar que os autores sobreditos atentam para o fator precedente de a vítima poder provocar a (re)ação do infrator, ensejando ora uma conduta legítima de autodefesa, ora de revide à sua provocação motivadora anterior. Reforça a idéia MOURA BITTENCOURT121 afirmando: a ocasião faz o ladrão – em contrário da velha assertiva de que a ocasião faz o furto, porque o ladrão nasce feito – assim também a vítima muitas vezes faz o criminoso. A esposa infiel arma o marido enganado. É verdade que também o cônjuge traído, não raro com suas atitudes, estimula, provoca ou por qualquer forma determina a traição. Mas tudo, como se vê, inspira a necessidade de se estudar bem o tema em tese e em cada espécie. Tal estudo não é ponto secundário da criminologia, nem particularmente no processo movido contra o acusado, mas de inestimável importância.
O psiquiatra americano F. WERTHAM, para parte da doutrina122, introduziu no idioma criminológico-científico o termo vitimologia, vez que enfatizava não se poder compreender a psicologia do homicida, se não se compreendesse a sociologia da vítima. Por isso, evidente é a necessidade de uma ciência da vitimologia. Estudo que permite a visão do fenômeno criminal como interação, compondo uma visão ampla do crime, através da díade autor-vítima, esta última inserida como alvo de estudo das ciências penais. Sem ela não poderiam ser conhecidas as tipologias que abaixo serão expostas. 6 TIPOLOGIAS VITIMAIS Hans von HENTIG123, na obra The Criminal and His Victim (1948), tenta tornar sistemática as diferenciações nas relações autor-vítima para a gênese do crime. Parte de grupos sociais de 120Apud
MOURA BITTENCOURT, op.cit., nota 21, p.14. Nessa mesma trilha segue o autor citando ClaudeRoland Souchet com o exemplo do homem pacato e socialmente proveitoso que cai nas garras de uma mulher fatal. Tornando-se ele um agressor em ato de desatino, o foi por mero instrumento de sua vítima; a responsabilidade desta deveria apresentar-se mais importante do que a culpabilidade daquele, a menos que a mulher fatal não seja senão pretexto de uma fatalidade interior. (p. 16-17) 121Ibid., loc.cit. 122Embora a maioria da doutrina considere MENDELSOHN (a exemplo, vide FRITZ R., op.cit., nota p. 623) o pai da vitimologia, persiste a controvérsia sobre o pioneirismo, atribuindo-se também a HENTIG, tal prerrogativa, por sua obra “The criminal and his victim”, como insiste ASUA (op.cit., nota 27 (b), p.19-41). Elias Neuman (op.cit., nota 43,. P. 31) aduz que não cabe a crítica de ASÚA opondo-se à MENDELSOHN por ele ter atribuído a si a qualidade de fundador da disciplina quando HENTIG havia falado antes dela. Em defesa de MENDELSOHN, NEUMANN ressalta que em 1947, um ano antes da publicação da obra de Hentig (1948) enunciou em Bucareste (Romenia) uma palestra com o título “Vitimologia”. Ainda, segundo GUlotta (Op.cit. p 5 e 9) teria sido mesmo o psiquiatra americano F.WERTHAM em sua obra “The show of violence”, publicada em 1949, o primeiro a usar a expressão vitimologia. Frisa-se, que maiores discussões não são relevantes ao estudo em desenvolvimento. 123HENTIG, alemão radicado nos Estados Unidos, é considerado o pioneiro na consideração da vítima como fator de delinqüência, com a menção já em 1941 ao caráter interacionista da vítima no trabalho “Remarks on the interaction of perpetrator and victim” e com a publicação em 1948 do livro "The criminal and victim” (SCHAFER, op. cit., nota 19, p. 35-42). Sobre essa referência ver também GONZÁLEZ, Rodrigo Ramírez. La 144
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vítimas e apresenta, assim, diversas classes vítimais: os jovens, as mulheres, os idosos, os deficientes mentais, os imigrantes, as minorias, os indivíduos de pouca inteligência, os deprimidos, os solitários etc. Continua o autor, sem empreender clara categorização, a considerar grupos de vítimas deprimidas, desenfreadas, libertinas, solitárias, atormentadas, lutadoras e, isoladamente, no crime de estelionato, segrega as resistentes das cooperadoras124. Observa-se que HENTIG não facilita a identificação de vítimas que interagem ou não com o criminoso e com o meio social, destacando os diversos grupos de vítimas coletivas e sua necessidade de proteção. Porém, ele parte da pressuposição de que os motivos da ação não são criados aleatoriamente, mas são despertados por influências externas; um destes, não o menos importante, é a personalidade ou a atitude da vítima125. Com isso, propicia que a Criminologia admita que a vítima de crime represente um papel criminógeno ou pelo menos provocador. Classificação significativa é a idealizada por Benjamín MENDELSOHN126, que destaca a conveniência de se estudar a vítima sob ângulos diversos: de direito penal, psicologia e psiquiatria. Examina as razões as conseqüências da relação autor-vítima, sugerindo a sistematização do tema, não a um simples departamento da ciência penal, mas a uma ciência unida à criminologia, sob a denominação de vitimologia. Expõe, desse modo, cinco produtos vítimais, cujo ponto de partida compõe-se por dois lados distintos: o da vítima inteiramente inocente (vítima ideal, desprovida de colaboração para o evento danoso) e o da vítima inteiramente culpável. Neste último pólo inserem-se: a vítima infratora (comete a infração e termina como vítima, a exemplo, tem-se o homicídio em legítima defesa); a vítima simuladora (imputa falsamente a prática de um delito a outrem); e a vítima imaginária (imagina ter sido vítima por psicopatia)127. Porém, é válida a crítica de que a classificação é moralista, com categorias que percorrem do completamente inocente para a vítima mais culpada que o autor. Esta forma de nomear graus de culpa refletiu que a intenção de MENDELSONHN era menos para desculpar o ofensor que inventar um modelo explicativo, no qual se poderia construir programas preventivos para reduzir a extensão e severidade de vitimizações128. Desiderato distinto desta proposta.
Victimología. Estudio de la víctima del delito. Su funcion de la prevención e control de la criminalidad.Bogotá: Temis Librería, 1983. p. 18-29. 124HETING, op.cit., nota 41. p. 404 et seq. 125HETING, loc. cit. 126MENDELSOHN, advogado de origem israelense, é, para a maioria dos estudiosos (como se asseverou, para PAASCH, loc. cit.), considerado o primeiro a utilizar a expressão vitimologia, uma vez que em seus trabalhos de sociologia jurídica (1947, 1956 e 1957) publicou obra exatamente com este título; e anteriormente (1947) pronunciou uma conferência de Bucareste (no Hospital do Estado), sob o título “Um horizonte novo na ciência bio-psico-social: a vitimologia. (A esse respeito, PAASCH, op cit., p.124 e MOURA BITTENCOURT, op. cit., nota 21, p.15-16). 127GONZÁLEZ, op. cit., nota 55, p. 18. 128ZEDNER, Lucia. Victims. In: MAGUIRE, Mike, MORGAN, Rod e REINER, Robert (ed.). The Oxford Handbook of Criminology. Oxford: OUP, 1997. p. 2 145
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No entremeio dos transcritos extremos maiores, acima mencionados, MENDELSOHN qualifica a vítima conforme o respectivo grau de influência na etiologia do crime, visando uma melhor distribuição de responsabilidade para a dupla relacional, vítima-autor. Dispõe em categorias distintas: aquela de culpabilidade menor (ignorante que dá o impulso involuntário ao crime, expondo-se ao risco); a vítima tão culpável quanto o autor (voluntária que adere à conduta ou a sugere, como no suicídio por adesão e eutanásia); e a vítima provocadora, que por sua própria conduta incita o autor à prática do crime ou por imprudência dá causa ao mesmo
129.
Verifica-se nessa classificação o claro aparecimento de vítimas que por atos próprios, voluntariamente, determinam sua vitimização ou provocam riscos a si mesmas. Influem, portanto, sobremaneira, na origem do resultado criminoso, interagindo com o autor e o espaço circundante. A tipologia de FATTAH130 trata da vítima provocadora ativa, consciente e não consciente, ou passiva (incita, respectivamente, de modo direto ou indireto o autor na motivação à prática do crime); e das participantes ativas ou passivas, que funcionam no curso da execução do crime. A esse respeito, insta mencionar que mesmo utilizando-se do termo “passiva”, o qual imprime significação de inércia, uma leitura cuidadosa sobre as palavras de FATTAH evidencia o seu intuito de demonstrar que há vítimas que permitem a ocorrência do risco a si, posicionando-se em relação ao crime, mesmo que por omissões ou atos maliciosamente sutis, como a incitação, instigação ao presumido autor. As vítimas segundo Guglielmo GULOTTA131 distribuem-se em falsas e reais. As primeiras subdividem-se em simuladoras (que incriminam um inocente por vingança, recato ou outra motivação consciente, usando calúnia) e imaginárias (que não tem consciência da não ocorrência do crime, sustentando as falsas acusações em decorrência de psicoses – paranóia, histerias etc.). Enquanto as segundas se dispõem em: acidentais/fortuitas (vitimizadas por fenômenos naturais – terremoto, ciclone, vulcão etc.); indiscriminadas (vitimizadas por terrorismo, fraude no comércio, crimes ambientais etc.); alternativas (que se expõem a certo evento como possíveis ofensores ou vítimas – duelos, rixas etc.); provocadoras (aquelas de crime de sedução e estupro); e voluntárias (que praticam suicídio, eutanásia, pacto de morte, havendo normalmente um consenso). É de se notar que na classificação sobredita, embora o caráter interativo de vários tipos de vítimas, há uma impropriedade quanto às vítimas de crimes sexuais, ao se atribuir imediata e genuína culpabilização às mesmas. Primordial, porém, é descortinar sua atuação diante do delito: se conscientemente agiu na criação do risco para si e se se colocou em uma dada situação, que resultou no crime ou, ainda, se discordou quanto ao ato sexual, configurando-se flagrante violação à sua dignidade e liberdade sexual. Logo, é tão equívoco desprezar a análise da conduta da vítima para a gênese do crime, como estigmatizá-la de “culpada” por meio de um juízo cego e preconceituoso.
129NEUMAN,
op.cit., nota 43, p. 30-31. p. 53-56. 131 GULLOTA, op. cit., p. 33-44, nota 11. 130Ibid.,
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Todavia, o ponto alto da categorização localiza-se na exposição de vítimas simuladoras, alternativas, voluntárias e mesmo as provocadoras têm em comum o reflexo da potencialidade contributiva vítimal para a ocorrência do crime. Outra coleção de classes de vítimas relevante é a de Elías NEUMAN132 que divide seu rol em vítimas individuais, familiares, coletivas, sociais (ou do sistema social). Na primeira categoria NEUMAN separa as vítimas sem atitude vítimal (inocentes ou resistentes), das com atitude vítimal culposa (provocadoras, cooperadoras ou solicitantes) e as com atitude vítimal dolosa. Com isso, reforçase, uma vez mais, a existência de vítimas capazes de colaborarem com o surgimento do delito, interatuando com o presumido autor. Mediante o amálgama do figurino classificatório, fundamental é perceber, de um lado, quem desempenhou determinado papel na etiologia do crime, que função cada qual exerceu, que influência tal representação teve para o domínio e desenrolar dos fatos e que conseqüências advêm de todas essas questões para a área jurídico-penal. CONCLUSAO Dessa forma, abriu-se a percepção para uma contemplação aprofundada da vítima, reconhecendo a possibilidade de seu caráter relacional, e do delinqüente, admitindo a possível interação entre ambos. Verificou-se uma atividade conjunta para o surgimento do delito, através da qual se chega a uma melhor distribuição da responsabilidade penal do autor ou mesmo, conforme alguns entendimentos, à constatação da ilegitimidade penal ao interferir na seara particular da vítima; como também da inserção da vítima na geração de formas de controle social, transação penal e busca pela satisfação de seus direitos (viés que foge ao objeto de estudo em questão). Em suma, a elaboração das classificações enuncia a ideia de interação entre vítima e autor em determinadas circunstâncias, causando uma mudança paradigmática no conceito de vítima. Isso culmina exatamente com os estudos conhecidos como vitimologia e suas duas maiores contribuições para o campo jurídico: em um pólo a vitimodogmática, estudo dogmático da vítima (cerne deste trabalho), e de outro, a vitimologia da reparação, com programas de proteção e assistência às vítimas. Ambos com o mérito de introduzir as vítimas no sistema de solução dos litígios.
REFERÊNCIAS
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