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ARTE, LUTA E MEMÓRIA BIOCULTURAL: A RETOMADA DE SABERES E TÉCNICAS ARTEFATUAIS NA COMUNIDADE PATAXÓ ARTESÃ DA RESERVA DA JAQUEIRA – BAHIA, BRASIL

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PALESTRANTES

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ARTE, LUTA E MEMÓRIA BIOCULTURAL: A RETOMADA DE SABERES E TÉCNICAS ARTEFATUAIS NA COMUNIDADE PATAXÓ ARTESÃ DA RESERVA DA JAQUEIRA – BAHIA, BRASIL

Alicia Araújo da Silva Costa1

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1 Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)

Resumo: Neste trabalho1, buscaremos apresentar e discutir, de forma sintetizada, os usos políticos da arte cotidiana produzida pela comunidade artesã da Reserva Pataxó da Jaqueira – Porto Seguro/BA, formada por 30 famílias da etnia Pataxó. Tais usos políticos da arte estão sob o guarda-chuva do fenômeno denominado afirmação cultural, movimento intelectual, artístico e cultural protagonizado pelos artistas da Reserva Pataxó da Jaqueira (mas não somente por esta comunidade) desde o final dos anos 90. O movimento de afirmação cultural é parte de um processo maior de emergência étnica, isto é, de retomada da própria identidade indígena. Na prática, consiste na criação de formas de valorização de uma cultura renascente vibrante, de substrato ancestral, resguardado em uma memória biocultural que persiste no cerne da produção de artefatos e de arte. Quando retomada na contemporaneidade, no seio do movimento de afirmação cultural, ela reafirma a identidade étnica, propõe novas formas de produção da arte e de ocupação de territórios e fortalece os movimentos decoloniais resistência indígena, em um contexto histórico permeado por intensos conflitos fundiários, especulação imobiliária e turismo de massas predatório, na chamada Costa do Descobrimento. Palavras-chave: Arte Pataxó; afirmação cultural; memória biocultural.

1 Este texto deriva da pesquisa que originou a dissertação de mestrado “Tecendo o Viver Sossegado: as artes de rexistência da Reserva Pataxó da Jaqueira” defendida em 2020 pelo PPGES – Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade da Universidade Federal do Sul da Bahia – UFSB, financiada pela FAPESB – Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia. Atualmente, a pesquisa continua a nível de doutorado, no mesmo programa de Pós-graduação e sob o financiamento da mesma agência de fomento.

As três irmãs Nitynawã, Nayara e Jandaya, fundadoras da Reserva da Jaqueira, fazendo arte plumária (crédito: Alicia Araújo da Silva Costa)

A TRADIÇÃO ARTÍSTICA É UMA HERANÇA CULTURAL DO POVO PATAXÓ

A Arte Pataxó é considerada uma herança cultural para os membros desta etnia (SOUZA, 2013) e a sua valorização é pauta atual de luta e resistência (COSTA, 2020). Exemplo notório disso é a atuação da comunidade da Reserva da Jaqueira, uma comunidade composta por 30 famílias, cuja principal atividade econômica é a produção de um vasto repertório de arte visual cuja finalidade não se encerra na venda no âmbito do trabalho do etnoturismo2, mas objetiva, em última análise, mediar ou dar suporte à articulação de discursos políticos de luta em defesa dos direitos indígenas. Nos deteremos, nesse texto, especialmente nesse último aspecto dessa produção artística que, em termos gerais, pode ser vista como agente fundamental na construção de um novo regime nacional de memória (OLIVEIRA, 2016), na qual os indígenas se colocam, ao mesmo tempo, enquanto narradores e protagonistas da sua história. Tais performances – ou melhor, práticas sociais, culturais e artísticas estão impregnadas de resistência política e de autonomia, sobretudo se considerarmos o contexto macroeconômico regional da chamada Costa do Descobrimento caracterizado por uma intensa e predatória exploração turística de massa, no qual a economia Pataxó – uma economia toda baseada na produção e venda de artesanato - está inserida e por ela vem sendo afetada desde a década de 1970. Frente a esse cenário político (neo)colonizador, desde o final da década de 1990 o conceito de afirmação cultural vem sendo elaborado pelos Pataxó para remeter as práticas de valorização da sua cultura, no âmbito da luta por autonomia

e direitos, que inclui o direito primordial à demarcação dos seus territórios tradicionais. Afirmar a identidade indígena, reavivar ritos ancestrais e recriar práticas culturais são, portanto, estratégias políticas. Ademais também são meios de sobrevivência (NEVES, 2011).

Em suma, a ação de afirmar a cultura consiste, entre muitas outras coisas, na produção de formas – econômicas, políticas, acadêmicas, históricas - de valorização deste repertório cultural renascente vibrante, que emerge a partir do substrato ancestral aqui chamado memória biocultural, e que sustenta a profusa e incrivelmente criativa cena de produção de artefatos e de arte Pataxó na contemporaneidade.

ARTE DE RESISTÊNCIA À (NEO)COLONIZAÇÃO DA CHAMADA “COSTA DO DESCOBRIMENTO”

Nesse contexto, os artefatos da cultura material Pataxó agem enquanto suportes de memória (ABREU, 2016) para inscrever a versão indígena da história da sua participação na fundação do território que chamamos Brasil. Essa versão subversiva é contada nas palestras de cultura proferidas por indígenas, nas diversas arenas turísticas da chamada Costa do Descobrimento. Na Reserva da Jaqueira, por exemplo, as diversas formas de interação interétnica mediadas pela atividade etnoturística são, em última análise, ocasiões nas quais os Pataxó, anfitriões locais, têm abertura para compartilhar sua história, sua arte e, sobretudo, suas lutas. A partir desta estratégia, os Pataxó da Jaqueira, como também de outras localidades da Terra Indígena de Coroa Vermelha, dada sua condição social de povo historicamente subalternizado, fazem, por meio do etnoturismo, com que seus discursos reverberem para muito além dessas arenas turísticas. (COSTA 2020).

Nesse cenário, é inaugurado, em abril de 2019, o museu indígena comunitário da Reserva da Jaqueira, uma iniciativa autônoma e de caráter educacional e decolonial3, na qual artefatos e obras de arte de autoria Pataxó são acionadas para inscrever uma versão subversiva do mito fundador do Brasil, a partir da História do ponto de vista indígena. A potência decolonial desse discurso eleva-se quando lembramos que esta ação se dá em pleno território notadamente considerado (do ponto de vista do mercado turístico hegemônico) o local oficial do “descobrimento” do Brasil, e cujo contexto histórico, por este motivo (mas não somente) é permeado por intensos conflitos fundiários, especulação imobiliária e turismo de massas predatório. As obras de arte e artefatos do museu da Jaqueira passam a significar muito mais que meros artefatos históricos; eles são suportes de memória vivos, que agem na construção desta narrativa decolonial, transmitida oralmente nas palestras educativas de cultura, que, a propósito, são parte obrigatória do itinerário do visitante durante sua experiência etnoturística. Narrativa que, em última análise, visa informar o ponto de vista Pataxó acerca da história da invasão de Pindorama e afirmar a presença indígena no território. Ou, poder-se-ia dizer ainda, afirmar a presença de um território indígena, cuja identidade resistiu ao tempo e ao processo colonizador que, ainda hoje, insiste no termo “Território de Identidade Costa do Descobrimento”.

A COMUNIDADE ARTIVISTA DA RESERVA PATAXÓ DA JAQUEIRA

Os principais artivistas da Reserva da Jaqueira, como Nitynawã Pataxó, Nayara Pataxó e Oiti Pataxó protagonizam, por meio da arte e da tradição oral, ou seja, das chamadas palestras de

3 Não tenciono fazer referência aqui a nenhum teórico específico sobre esta categoria, apenas indicar a existência ostensiva de um discurso indígena decolonial dos intelectuais Pataxó, ou seja, autoral, autônomo e de resistência, que opera em contraposição aos discursos hegemônicos – e generalizantes, que são impostos sobre suas subjetividades, sobre sua história, enfim, sobre seus modos próprios de existir no mundo e de ver o mundo. O intuito desta pesquisa vai no sentido de analisar de que modo essas narrativas decoloniais articuladas pelos Pataxó, assim como as lutas por meio da sua arte têm contribuído para imprimir um novo regime de memória na chamada Costa do Descobrimento – e em última análise, operado na reescrita da história e da memória social desse lugar que sempre foi, ao fim e ao cabo, terra indígena.

Esculturas de cerâmica, madeira e cimento, de autoria de Oiti Pataxó, em exposição no Museu Indígena Pataxó da Reserva da Jaqueira (crédito: Alicia Araújo da Silva Costa)

cultura, o movimento artivista Pataxó; entretanto, é relevante mencionar que todos eles fazem parte de uma iniciativa ainda maior, a saber, o grupo de pesquisadores indígenas ATXOHÃ, destinado à pesquisa em cultura, história e língua Pataxó. Fundado em 1998, o ATXOHÃ, cuja capilaridade se estende às mais de 30 aldeias Pataxó, está na vanguarda do movimento de afirmação cultural da etnia. Esta pesquisa etnográfica foi realizada somente em uma delas, ou seja, na Reserva, contudo a sua comunidade é considerada exemplo para o trabalho de afirmação cultural nas demais aldeias Pataxó, e aí está, fundamentalmente, a sua relevância para o nosso estudo. Os expoentes desse movimento na Reserva da Jaqueira, hoje, são os artistas Oiti Pataxó, arte educador formado na licenciatura intercultural indígena do IFBA – Instituto Federal da Bahia, com ênfase em Artes, mestrando em Ensino e Relações Étnico-Raciais pela Universidade Federal do Sul da Bahia e fundador do Museu Indígena da Reserva da Jaqueira – cujas peças são quase todas de sua autoria; Nayara Pataxó, Jandaya Pataxó e Nitynawã Pataxó, as três irmãs fundadoras da Reserva da Jaqueira; tendo esta última se formado também na licenciatura intercultural pelo IFBA, com ênfase em Ciências Humanas e Sociais. Elas são artistas, educadoras ambientais e importantes lideranças do povo Pataxó. A produção artística dos artistas mencionados são providenciais no que tange aos usos de uma memória biocultural ancestral na criação contemporânea de uma arte de resistência – que persiste em existir e, ainda, que resiste aos efeitos predatórios do turismo de massas, como por exemplo a standardização do artesanato indígena, a sua desvalorização e a sua comoditização. Indo nesta contracorrente, a produção desses artistas – e de toda a comunidade artesã da Reserva da Jaqueira, (mas não somente nela, é importante deixar claro), materializa o movimento de retomada da cultura, a partir da memória dos mais velhos, do uso de materiais e de saberes artefatuais tradicionais que estavam adormecidos durante o tempo em que os Pataxó precisaram esconder a sua identidade para não serem perseguidos e discriminados pela sociedade não indígena. O despertar dessa condição de adormecimento se deu recentemente, e o seu marco histórico pode ser considerado, precisamente, o início das atividades do ATXOHÃ. Não por acaso, este também foi o ano de inauguração da Reserva Pataxó da Jaqueira. No caso dos Pataxó da Jaqueira, comunidade onde focamos nosso estudo, o movimento de afirmação cultural conforma uma série de práticas cotidianas coletivas que revelam saberes artesanais ancestrais, memórias e histórias contadas por anciãos as quais muitas vezes haviam ficado adormecidas durante décadas em suas memórias. Muitos desses conhecimentos recuperados acabam por revelar memórias bioculturais associadas ao saber fazer diversos tipos de artesanatos e artefatos, entre eles as biojóias, os artefatos de uso ritual como incensários, timberos e marakás, as esculturas, os artefatos de uso cotidiano como esteiras, redes, gamelas e cuias. Em nossa pesquisa identificamos, por exemplo, principalmente teçumes de tucum, piaçava, colares de sementes e a técnica da cerâmica – incluindo com a aplicação de substâncias vegetais em sua superfície a exemplo da cera de abelha, como práticas artesanais herdadas diretamente da matriarca da Reserva Pataxó da Jaqueira, dona Takwara Pataxó, que atualmente está com cento e um anos de idade. Ela é mãe de Nayara, Jandaya e Nitynawã.

Variedade de artesanatos Pataxó à venda no kijeme da Reserva da Jaqueira. (crédito: Alicia Araújo da Silva Costa)

CONSIDERAÇÕES FINALS

No bojo dessa “herança cultural”, as artistas Nitynawã, Jandaya e Nayara vem trabalhando na retomada do tucum, da piaçava, entre outras fibras naturais, em sua produção artística; além da tradicional arte plumária e com sementes; e, o artista Oiti Pataxó é protagonista da retomada da cerâmica Pataxó e das esculturas entalhadas à mão, em madeira. O caráter artivista dessa produção artesanal reside ainda no ato de transportar, consciente e reflexivamente, cada um desses modos de fazer ancestrais diretamente para o tempo presente, para serem acionados como diacríticos da etnia. Quando retomada na contemporaneidade, no seio do movimento de afirmação cultural, a memória biocultural relacionada à produção de artefatos considerados tradicional – a que Souza chamou “herança cultural” - reafirma a identidade étnica, propõe novas formas de produção da arte e de ocupação de territórios, além de fortalecer os movimentos decoloniais resistência indígena. Em suma, arte Pataxó é também expressão política, na medida em que determinados artefatos se tornam instrumentos usados pelos Pataxó para contar narrativas contra-hegemônicas da História, num explícito ato de rejeição à retórica oficial acerca do evento do “descobrimento” da nação brasileira.

REFERÊNCIAS

ABREU, Regina. Memória social: itinerários poéticos-conceituais. Morpheus: revista de estudos interdisciplinares em memória social, Rio de Janeiro, v. 9, n. 15, 2016 p. 41-66. COSTA, Alicia Araujo da S. Tecendo o viver sossegado: as artes de rexistência da Reserva Pataxó da Jaqueira. Dissertação (Mestrado). Programa de Pós-graduação em Estado e Sociedade. Porto Seguro: UFSB, 2020. FERREIRA, Oziel Santana, et al. Assim Contam os Mais Velhos: experiências e resultados da experiência intercultural em pesquisa sobre gestão etnoambiental de territórios pataxó. Feira de Santana: UEFS Editora, 2018. NEVES, Sandro Campos. Produção, Circulação e Significados do Artesanato Pataxó no Contexto Turístico da aldeia de Coroa Vermelha, Santa Cruz Cabrália-BA. PASOS. Revista de Turismo y Patrimonio Cultural. Vol. 9(3) Special Issue pp 45-58. 2011. NITYNAWÃ. Histórias da Reserva da Jaqueira: experiências de autogestão em etnoturismo. Monografia. IFBA. Porto Seguro, 2018. PACHECO DE OLIVEIRA, João. O nascimento do Brasil e outros ensaios: “pacificação”, regime tutelar e formação de alteridades. Rio de Janeiro: Contracapa, 2016. Souza, Arissana Braz Bomfim de. A aranha vive do que tece. Cadernos de Arte e Antropologia. Vol. 2, N. 2, 2013 p. 13-29.

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