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CRÍTICA DE ARTE ATIVA: O POSICIONAMENTO POLÍTICO DOS CRÍTICOS DE ARTE NO CONTEXTO DA “BIENAL DO BOICOTE” EM 1969

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PALESTRANTES

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Guilherme Moreira Santos1

1 Doutorando em Teoria e História da Arte, PPGAV - Universidade de Brasília

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Resumo: Liderado pelo crítico de arte Mário Pedrosa, o boicote à 10ª edição da Bienal Internacional de São Paulo tornou-se um marco da participação ativa da crítica de arte brasileira no confronto com instituições políticas e artísticas nacionais, sobretudo se considerarmos a mobilização internacional gerada por este evento, de proporções até então desconhecidas pela historiografia brasileira da arte. Este texto1 busca discutir os contornos de uma crítica de arte ativa tendo como base os posicionamentos políticos adotados no contexto da 10ª Bienal observando três fontes primárias: a interlocução que Pedrosa estabelece com críticos estrangeiros em seu artigo “Paris: ‘Non à la Bienale’ de São Paulo”, publicado em 11 de julho de 1969 no Correio da Manhã, a carta-desistência de Pierre Restany destinada a Francisco Matarazzo Sobrinho, escrita em 10 de junho de 1969 e a reverberação do boicote nos Estados Unidos a partir do artigo da crítica de arte Grace Glueck publicado no New York Times em 17 de julho de 1969 sob o título de “São Paulo Show Loses U.S. Entry”. Essa teia solidária formada por críticos brasileiros e estrangeiros, vocalmente contrários aos abusos democráticos, à censura e aos ataques aos direitos humanos com a instauração do Ato Institucional nº 5, em 1968, aponta caminhos que nos auxiliam a discutir a questão posta pela crítica de arte Sylvia Werneck em seu artigo publicado na Revista da USP em 2014: “É possível uma crítica socialmente ativa?”. O engajamento dos críticos brasileiros, por intermédio de Pedrosa, à época presidente da ABCA, e a participação enérgica dos críticos estrangeiros resultaram na recusa de mais de oitenta por cento dos artistas previamente confirmados para o certame de 1969, deixando uma marca indelével na história da instituição. Palavras-chave: crítica de arte ativa; 10ª Bienal de São Paulo; história da crítica de arte brasileira; crítica institucional; década de 1960.

A décima edição da Bienal de São Paulo, aberta ao público em setembro de 1969 no moderno prédio do Parque Ibirapuera, permanece circunscrita na recente historiografia brasileira da arte sob a famigerada alcunha de “A Bienal do Boicote”. Este epíteto, mais do que um termo de conotação pejorativa, nos aponta a um evento de significativa importância à história institucional da Fundação Bienal e, consequentemente, à história da arte no Brasil na segunda metade do século XX. Cabe lembrarmos que a 10ª Bienal de São Paulo havia sido a primeira edição da mostra brasileira inaugurada após a promulgação do Ato Institucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968, durante o governo do general Artur Costa e Silva (1899-1969). Neste contexto, a comunidade artística brasileira, formada em sua maioria por críticos de arte e jovens ou renomados artistas, começou a engendrar uma espécie de mobilização pacífica envolvendo os preparativos e a inauguração da 10ª Bienal de São Paulo.

Em 10 de julho de 1969, o crítico de arte Mário Pedrosa (1900-1981) publicou no jornal carioca Correio da Manhã, sob o pseudônimo de Luis Rodolfho, um artigo entitulado “Os Deveres do Crítico de Arte na Sociedade”. Neste texto, Pedrosa, então presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), urgia os críticos e demais intelectuais cujos trabalhos afetavam diretamente a cena artística brasileira, a resignarem de sua atuação junto à Fundação Bienal, dando especial importância a recusa em participarem da 10ª Bienal de São Paulo. Este texto tornou-se emblemático da enérgica atuação de Pedrosa frente ao boicote do evento paulista.

No dia seguinte, o crítico de arte brasileiro publicara, ainda sob o pseudônimo de Luis Rodolfho, um novo artigo no Correio da Manhã sob o título ““Non à la Bienale” de São Paulo”, no qual tecera uma urdidura bem precisa e estratégica acerca das constantes retiradas e desistências dos críticos de arte estrangeiros. Pedrosa inicia este artigo afirmando que

Uma espécie de boicote internacional da X Bienal de São Paulo vai ganhando corpo em quase toda a Europa sob a liderança de artistas, críticos e intelectuais da França, da Holanda, da Suécia, da Espanha, países que possivelmente não comparecerão ao Ibirapuera. Além da União Soviética, da República Dominicana e desistências isoladas de artistas, comissários e críticos. Os grupos desistentes espalham-se e influenciam outros e o boicote está ganhando proporções enormes, superiores mesmo ao realizado na Bienal de Veneza de 1968. A X Bienal de São Paulo corre o risco de ser contestada e não ser realizada mesmo. Ou realizada de maneira inexpressiva. (PEDROSA, 1969, p.1) Para compreendermos brevemente os acontecimentos que provocaram essa mobilização da comunidade artística brasileira, é importante destacarmos três importantes eventos decorridos da censura respaldada pelo AI-5. Em primeiro lugar tem-se a violenta censura e fechamento da exposição da 2ª Bienal de Artes Plásticas da Bahia, marcada para ser inaugurada em dezembro de 1968, no Convento da Lapa, em Salvador. Desta exposição, que enfatizava a produção de artistas baianos, foram confiscados cerca de dez trabalhos considerados “subversivos”, mas talvez o resultado mais devastador dessa censura foi a suspensão do evento — que era financiado pelo governo estadual — cindindo abruptamente a continuação do trânsito artístico entre o nordeste e as demais regiões brasileiras ensejado pelo certame. Esta Bienal só retornaria suas atividades mais de quatro décadas após a censura, em 2014. O segundo evento que ajudou a definir o boicote à 10ª Bienal de São Paulo consistiu no fechamento da exposição do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ), aberta em maio de 1969, e censurada pela polícia militar. Essa exposição exibia obras dos artistas selecionados para representarem o Brasil na VI Bienal de Paris, em setembro daquele mesmo ano. Estavam nessa exposição artistas Antonio Manuel (1947) e Cildo Meireles (1948), e o clima de instabilidade e repressão acentuava uma atmosfera de tensão entre artistas e militares.

Observando algumas das cartas de desistência dos representantes estrangeiros, notamos um terceiro motivo que fortaleceu o movimento de boicote ao certame brasileiro. Desde a instauração

do AI-5, uma figura importante da imprensa brasileira, e que teve participação fundamental na criação do MAM-RJ, sofria constantes ataques e perseguições da polícia militar. Niomar Moniz Sodré Bittencourt (1916-2003), proprietária do jornal Correio da Manhã, havia enfrentado diversas prisões preventivas e a sucursal de seu periódico na Avenida Rio Branco, na região central do Rio de Janeiro, havia sido bombardeada com explosivos, em 07 de dezembro de 1969, dias antes do publicação do AI-5. Pedrosa, em seu artigo sobre o movimento “Não à Bienal de São Paulo”, afirmara que o respeitado crítico de arte francês Jacques Lassaigne havia sido impedido, pelo Itamarati, de retornar ao Brasil devido a sua explícita manifestação contrária ao governo brasileiro. Neste artigo, Pedrosa menciona os motivos da resignação de Lassaigne cintando a prisão de Niomar Bittencourt e a censura à Bienal da Bahia:

O crítico Jacques Lassaigne, presidente Bienal de Paris e da Associação Internacional de Críticos de Arte, figura de grande prestígio na Europa, foi declarado persona non grata e vetado pelo Itamarati. Quando a notícia se espalhar, será gota de água. Lassaigne, amigo de Matarazzo, ao ser proposto por este para membro do juri internacional da Bienal, teve seu nome vetado pelo Itamarati por ter assinado manifesto contra a prisão de Niomar Moniz Sodré Bittencourt e ter enviado telegrama mostrando seu desagrado pelo fechamento em dezembro da Bienal da Bahia. (PEDROSA, 1969, p.1)

De igual modo, o crítico de arte francês Pierre Restany (1930-2003) citara a prisão preventiva de Bittencourt como um dos principais motivos de sua desistência na comissão responsável pela sala especial de Arte e Tecnologia. Em uma carta enviada à Francisco Matarazzo Sobrinho (18981977), idealizador e presidente da Fundação Bienal, no dia 10 de junho de 1969, Restany explicara o motivo de seu retirada da mostra dizendo que As notícias que chegam do Brasil me preocupam. A confirmação da iminência do processo que será iniciado contra Niomar Bittencourt me coloca um problema grave de consciência. Você de fato conhece os laços de amizade que estabeleço com Niomar há muitos anos. Vos envio em anexo a lista da petição que redigi e fiz circular entre os ambientes da imprensa parisiense sobre ela. Diante do estado atual das coisas, eu não posso, de modo algum, ser, mesmo através de vossa senhoria, convidado de um governo que fui levado a atacar publicamente. Devo, assim, renunciar a comparecer em São Paulo neste verão, para a Bienal. (RESTANY, 1969, p.1, tradução nossa) O trâmite da participação de Restany na 10ª Bienal arrastava-se por meses. Em um primeiro momento, o crítico de arte francês havia idealizado apresentar uma mostra com obras ambientais e instalativas, de artistas das mais variadas nacionalidades, em uma sala que chamaria de L’environnement Structurel. No entanto, devido a um orçamento restrito e às próprias demandas de Matarazzo, decidiu por organizar uma sala de Arte e Tecnologia, focando em processos artísticos ligados às novas mídias da década de 1960. Sobre a desistência de Restany, Pedrosa afirmara que o crítico francês havia enviado uma carta a um amigo seu (provavelmente o próprio Pedrosa, pois escreva o artigo sob um pseudônimo) dizendo o seguinte:

Em carta a um amigo, Restany afirma: “O protesto cultural toma aqui uma súbita extensão: isto é somente o início! Há verdadeiramente um sentimento muito forte de solidariedade por parte dos intelectuais franceses com relação a seus colegas brasileiros. Isso prova que pessoas como tu, como Mário, como os artistas residindo na Europa, souberam estabelecer verdadeiras amizades e criar uma corrente de simpatia entre os dois extremos do Atlântico. Penso que se pode ver nisto uma vitória moral da intelligenzia brasileira”. (RESTANY apud PEDROSA, 1969, p.1)

Matarazzo, Restany encabeçara um debate no Museu de Arte Moderna de Paris no dia 16 de junho de 1969, com artistas e comissários das delegações européias, a fim de discutirem suas participações na 10ª Bienal. Esta reunião resultou em uma carta-circular1, que contava com um total de 321 assinaturas de artistas e intelectuais e expunha os principais motivos das desistências, o principal deles dizia respeito à censura os atos truculentos do regime militar direcionados aos artistas brasileiros. Reforçando o conceito dessa teia solidária de críticos de arte e artistas contrários à censura e às agressões derivadas da instauração do AI-5, notícias da carta-circular assinada pelos europeus já haviam alcançado os Estados Unidos em meados de julho, e a delegação estadunidense começava a sentir os efeitos dessa reverberação. Em um artigo publicado no New York Times em 17 de Julho de 1969, entitulado “São Paulo Show Loses U.S. Entry”, a crítica de arte Grace Glueck escrevera o que se segue:

A exposição dos Estados Unidos planejada para a Bienal de São Paulo, no Brasil, a maior entre as grandes bienais internacionais de arte, foi cancelada devido a desistência de nove artistas participantes, como protesto às repressivas táticas do regime militar brasileiro. Notando que a exibição havia sido prejudicada devido a retirada de nove dos 23 artistas que inicialmente haviam aceitado participar da mostra, Gyorgy Kepes, diretor do Centro de Estudos Visuais Avançados (Center for Advanced Visual Studies) e organizador da participação, disse: “A maioria [dos artistas] escolheu boicotar o evento como forma de registrar seus protestos contrários a falta de processos democráticos e consequente maus tratos de artistas e intelectuais no Brasil” (GLUECK, 1969, p.1, tradução nossa)

Deste modo, o movimento de boicote à 10ª Bienal de São Paulo foi ganhando fôlego a partir da atuação ativa dos críticos de arte, muitos deles ocupando o cargo de comissários de suas delegações, resultando na recusa de mais de oitenta por cento dos artistas previamente confirmados para o certame de 1969. O artigo de Pedrosa de 11 de julho, em que o crítico nomeia o movimento com o epíteto de “Non à la Bienal de São Paulo”, deixa clara essa atuação politicamente e socialmente engajada dos críticos de arte na luta em favor dos direitos humanos e da democracia. Respondendo à questão posta pela crítica de arte Sylvia Werneck em seu artigo publicado na Revista da USP em 2014 se “é possível uma crítica socialmente ativa?”, afirmamos com veemência que não só é possível, como de fato aconteceu, deixando marcas indeléveis na recente historiografia brasileira da arte.

REFERÊNCIAS

GLUECK, Grace. São Paulo Show Loses U.S. Entry. New York Times, Nova York, 17 jul. 1969. p. 24, L+. PEDROSA, Mário (pseud. Luís Rodolfho). Paris: “Non a la Bienale” de São Paulo. Correio da Manhã, Rio de Janeiro, 11 de jul. de 1969, segundo caderno, nº 23384, ano LX. Disponível em: http://memoria.bn.br/docreader/DocReader.aspx?bib=089842_07&pagfis=102542. RESTANY, Pierre. [carta] 10 de jun. 1969, Paris [para] MATARAZZO SOBRINHO, Francisco, São Paulo, 1f. Carta de desistência de Pierre Restany frente a organização da Sala Especial de Arte e Tecnologia da X Bienal de São Paulo. Fonte: Arquivo Histórico Wanda Svevo.

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