compor, decompor, fazer, desfazer:processos de criação em diálogo

Page 11

compor, decompor, fazer, desfazer: processos de criação em diálogo

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

COMPOR, DECOMPOR, FAZER, DESFAZER: PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DIÁLOGO

Júlia Pugliesi Abdalla

Belo Horizonte 2022

JÚLIA PUGLIESI ABDALLA

COMPOR, DECOMPOR, FAZER, DESFAZER: PROCESSOS DE CRIAÇÃO EM DIÁLOGO

Trabalho de conclusão de curso apresentado como requisito parcial para a obtenção do título de Licenciada em Artes Visuais pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Orientadora: Rosvita Kolb Bernardes

Belo Horizonte 2022

BANCA EXAMINADORA

Orientador

Rosvita Kolb Bernardes

Universidade Federal de Minas Gerias Membro da banca (1)

Geraldo Freire Loyola Universidade Fedral de Minas Gerais Membro da banca (2)

Daniele de Sá Alves Universidade Federal de Minas Gerais

Agradeço aos meus pais por todo apoio que recebo desde muito pequena. Pelo respei to com as minhas escolhas, por essa oportunidade que me proporcionaram de migrar para uma outra cidade e me formar no curso que desejei. Por todo o amor que recebo diariamente mesmo estando a 500 km de distância. Ao meu irmão por toda ajuda, companheirismo, apoio, carinho de os todos dias. Por ser meu “ermões”, e por ser quem é, quem me inspira.

A Rosvita por toda sua delicadeza e afeto não só durante esse período final como tam bém durante toda a graduação. Aos meus professores, Daniele de Sá e Geraldo Loyola por terem aceitado o convite de me acompanharem em mais essa jornada e por terem sido uma base tão importante nessa minha trajetória durante a Licenciatura. A todos os professores da Licenciatura e do bacharelado que pude conhecer e aprender junto.

Obrigada Gerson, Dani, Ivo e Ju por terem aceitado o convite de conversarem comigo e de fazerem parte desse trabalho tão importante para mim.

Aos meus amigos da cidade de Belo Horizonte, Lara, Pedro, Wander e Yan por serem essa companhia tão densa em todos esses anos me proporcionando a possibilidade de enfrentar a cidade grande com coragem. Pela amizade forte, o carinho, a compreensão, o acolhimento, os cafés, as conversas, os trabalhos. Por terem feito desse lugar uma casa para mim por tanto tempo. Vocês são pessoas que me ensinaram muito e que me com põe. Independente para onde eu vá, carregarei vocês. A todos os amigues feitos e que conheci aqui na cidade e na Belas Artes, por tanta ajuda e afeto.

Ao Luan pelo companheirismo tão forte durante esse período difícil e turbulento. Por todo amor, carinho, calma e apoio imenso.

Aos meus amigos de Franca, Karol, Lais, Marcia, Guilherme, Lívia e Michela por nunca terem duvidado das minhas escolhas e sonhos. Por terem permanecido ainda, de manei ra cada vez mais forte.

À Geuva e Vavá, por me tirarem um riso fácil, mesmo em dias difíceis distantes de casa. Por toda preocupação e cuidado comigo.

Agradeço também a todos professores que passaram até agora pelo meu caminho, por todos ensinamentos compartilhados.

AGRADECIMENTOS
SUMARIO 1. “Como nasce uma ideia?”.................................................................................... 1 2. “Que territorios trilhamos e construímos para que uma ideia germine?”................................................................................................................................... 5 3. “Como tornar visíveis as ideias?”..................................................................... 7 4."Como nasce um processo de invenção?”...................................................... 9 5. ENTRECONVERSAS OU "Como nossas questoes, crenças, concepções se manifestam naquilo que inventamos”?..............................................................11 Entrvista com Daniela Maura................................................................................... 13 Entrevista com Gerson Watanuki............................................................................. 21 Entrevista com Ivo Indiano....................................................................................... 29 Entrevista com Juliana Saúde................................................................................... 39 6. "Quais as entrelinhas em nossos gestos?”.................................................49

1. "COMO NASCE UMA IDEIA?

*todas as perguntas feitas nos títulos dos capítulos são de autoria de Stela Barbieri de seu livro Território da invenção ateliê em movimento. São Paulo: Jujuba, 2021. P.121

”* 1
2

Que territórios trilhamos e Construímos para Que uma ideia germine (...)

Mobilizada por essas perguntas inicio meu trabalho de conclusão de curso. Durante cinco anos, em Belo Horizonte e também no interior de São Paulo, tive a oportunidade de conviver com vários artistas. Esse foi um ponto muito im portante que me estimulou a querer mergulhar no tema dos Processos de Criação. Pois, a partir dessa experiência de convivência, pude observar que os modos de criar dos artistas ao meu redor eram muito variados. A partir dessa vivência comecei a me perguntar: será que os Processes de criação são singulares em cada artista? Há pontos onde eles se encon tram? Por onde passa a imaginação de cada um?...

Apoiada nesses contatos que tive, comecei a pensar então, que os processos de criação pode riam ser muito subjetivos e pessoais. Os modos de fazer, os caminhos que cada um trilhava no fazer, os modos de pensar, por onde passavam as ideias de cada um, quais eram as suas referências artísticas… Todas essas questões eram muito distintas de um artista para outro… As pergun tas continuavam a surgir e a curiosidade por entender mais sobre processos de criação apenas aumentava.

Cecília Almeida Salles escreve o texto de apre sentação do livro “Linha do Horizonte” por uma poética do ato criador” de Edith Derdyk. Nesse pequeno fragmento encontrei um trecho que para mim é a tradução desse meu interesse na pesquisa sobre Processos de Criação.

“É interessante observar a atração que o proces so criador exerce sobre artistas, pesquisadores e fruidores em geral. Há tanta curiosidade e res peito que leva muitos a não se contentarem com a simplificação que as explicações envoltas pelo mistério do inexplicável oferecem. Bachelard, em seu livro “O direito de sonhar'', fala sobre esse fascínio. Sob esta perspectiva, o interesse de compreender o ato criativo reside no fato de que o homem é a única criatura da Terra que tem vontade de olhar para o interior de outra. Ele detecta a fenda, a fissura pela qual se pode violar o segredo das coisas ocultas. As forças psíquicas em ação pretendem deixar as pectos exteriores para ver outra coisa, ver além, ver por dentro, em suma, escapar à passividade. O avesso de todas as coisas e a imensidão íntima das pequenas coisas são visitados. E eu comple taria: transpostos os limites exteriores da obra de arte, quão espaçoso é seu interior! A intimi dade da criação guarda uma movimentação in tensa e uma vasta diversidade de possibilidades de obras.” (P.7)

"
COMO NASCE UMA IDEIA?
Como tornar visíveis as ideias?
Como nasCe um proCesso de invenção?
Como nossas Questões, Crenças, ConCepções se mani festam naQuilo Que inventamos? Quais as entrelinhas em nossos gestos?”
BARBIERI, Stela. Território da invenção ateliê em movimento. São Paulo: Jujuba, 2021. P.121
3
4
germine?

2. " QUE TERRITORIOS TRILHAMOS

UMA IDEIA GERMINE?”

Depois de entrar na Licenciatura em Artes Visu ais pela UFMG, descobri que há muitos modos de aprender e também muitos modos de ensinar. Antes, eu entendia que aprender apenas signifi cava sentar na cadeira da escola, copiar a lousa, ler e reler o conteúdo passado pelo professor. Dentro da UFMG, meus professores me ensi naram o poder da autonomia, da curiosidade, a potencialidade da conversa, da narrativa, da oralidade e da escuta.

Percebi que durante esses anos na graduação, fui descobrindo e criando o meu próprio jeito de aprender. Para mim, aprender Arte começou a fazer mais sentido quando eu lia diários de ar tistas, folheava cadernos de desenho de colegas, escutava entrevistas de variados artistas falan do sobre seus processos de criação ou observava algum artista criando. Eu sentia que ao entrar em contato com pensamentos ou algo mais íntimo de artistas, aquelas ideias impregnavam em mim.

O tema dos Processos de Criação me movimenta ram e me encantaram muito durante esse perío do. Sempre que ia à biblioteca para levar alguns livros para casa, pegava o “Gesto Inacabado”, livro escrito por Cecília Almeida Salles. Nele, a autora discute uma sistematização de características que envolvem o processo de criação. Minha relação com este livro começou de forma com pletamente livre. Eu o abria em páginas aleató rias, folheava, lia algumas passagens e destacava principalmente as frases que a autora citava de artistas falando sobre o que são processos de criação.

Durante essas andanças pela biblioteca, foi quando também descobri a Fayga Ostrower. Uma gravurista brasileira que também se dedi cou a escrever sobre arte e criação. E ainda, me encontrei com diários de artistas e escritores, como Kafka, Paul Klee, Frida Kahlo. A escrita de diários foi um gênero que me fisgou de pri meira, uma escrita íntima que parecia me reve lar coisas que os livros de história da Arte nunca poderiam me ensinar. Eu me sentia conversando com aqueles autores e artistas.

No início, eu não fazia ideia de que essas coisas estavam todas interligadas. Então, em um dia qualquer, me deu vontade de saber mais sobre a autora do livro Gesto Inacabado, a Cecília Almeida Salles. Foi quando tudo começou a se entrelaçar. Me deparei com artigos desta auto ra que falavam sobre “Crítica Genética.” Nesse campo, se estuda processos de criação a partir de uma abordagem que acompanha documentos de processo, como; esboços, diários, vídeos, entre vistas, anotações, roteiros… Segundo a autora, a Crítica Genética é uma

5

TRILHAMOS E CONSTRUIMOS PARA QUE

abordagem crítica que procura discernir algumas características específicas da pro dução criativa, ou seja, entender os procedi mentos que tornam essa construção possível (Salles, Cardoso,2 007). Foi então nesse mo mento, quando descobri esse campo de pes quisa que entendi, que tudo aquilo que me interessava, me afetava, que meu modo de aprender, tinha um nome e compreendia um campo de pesquisa.

Pensei que a minha maneira de estudar que perpassa por “entrar” dentro do pensamento de um artista, ler seus diários, escutar seus pensamentos, percorrer por entre suas fen das e fissuras me permitia acessar algumas coisas que me interessavam muito, alguns movimentos de pensamento acontecendo, falas escorregadias, modos de fazer pesso ais… Compreendi que esse minha vontade de olhar para o interior de um outro artista, se fazia para mim como um instrumento de aprendizagem de fato, que me levava muitas vezes à vontade de criar. Pois, ao entrar em contato com modos de pensar de artistas variados, me provocava também a olhar para o meu próprio processo e aprender mais sobre ele, a me debruçar.

Dessa maneira, descobri então, que meu modo de aprender Arte, tinha haver com acessar Processos de Criação de outros ar tistas, porque dessa maneira eu criei modos de investigar e mergulhar na minha própria imaginação e inventividade.

6

3. "COMO TORNAR VISIVEIS AS IDEIAS?

Nesse trabalho de conclusão de curso tive como intuito buscar modos de compartilhar os meus modos de aprender Arte. Assim como também pesquisar conteúdos de aproximação e ampliação de modos de pensar e criar. Com um desejo de que todo o conjunto deste trabalho possa servir como um diálogo com aqueles que querem experimentar modos de criar. Para isso, procurei pesquisar Processos de Criação, tendo como ponto de partida entrevistas com professores artistas que foram importantes no meu processo de formação. Nessas conversas, o principal ponto foi a investigação de como se dava o processo de cada um deles, buscando dia logar sobre os seus métodos, singularida des e procedimetos artísticos. Faço essa escolha de ter as entrevistas com um norte para esse trabalho, muito porque, o meu processo de criação, mui tas vezes perpassa pela fala. De conversas comigo mesma e também com pessoas que convivo. Há coisas em meu processo que percebo apenas exteriorizando diálogos. Quando converso, me deixo pensar de forma mais livre, começo a fazer associa ções, o pensamento caminha sem medo, rememora muitas coisas esquecidas e tam bém coloca para fora coisas que eu nem sabia que estavam dentro de mim. Falar para mim, é um modo de estudar e apren der.

Mobilizada pelas entrevistas que fiz, tive a ideia de fazer também um caderno de desenhos, em que cada página nasceu da escuta e releitura das entrevistas que fiz. Uma proposta de imersão na palavra do outro, uma investigação do meu próprio processo de criação a partir do que cada entrevistado me trouxe, daquilo que me afeta. Daquilo que me impregna. Durante o meu percurso de construção como artista (inacabado e sempre em expansão) percebi que transitar e visitar cadernos de artistas conhecidos,

amigos ou não, foi sempre muito revitalizante para o meu processo continuar. Os rastros, ra biscos, escritas, colagens, desenhos, pinturas, todo um mundo que cabia naqueles cadernos me inspiravam a experimentar o meu proces so.

O caderno de artista desde o início da gra duação teve um papel importante na minha formação. Ele sempre foi um lugar de anotar pensamentos soltos para que não se perdessem, um lugar de desenhar o agora, de rascu nho, de teste, de valorizar o erro, a experimen tação e a imaginação. Nos meus cadernos, sentia que meu pensamento transcorria de maneira mais solta. Trazer então o caderno como forma de pesquisa para esse trabalho final de curso, foi também uma maneira que escolhi de compartilhar meus modos de aprender.

E ainda, como um terceiro material para com por esse trabalho, trago uma caixa de objetos. Nela coloquei objetos que fazem ou fizeram parte dos meus próprios processos e outros que achei que dialogavam com as falas do artistas. Pensei que pudesse ser uma espécie de caixa que contém ativação poética. Os objetos são como propostas de criação, mas não são propostas prontas. São palavras, pensa mentos, itens, imagens que as entrevistas me trouxeram e que penso que podem ser como pequenos empurrões para criar. A maneira de utilizar depende da individualidade de cada pessoa que a pegar.

Essa proposta de compor, decompor, fazer, desfazer dessa caixa, nasceu a partir de uma memória de infância. Quando criança, eu fre quentava mais a casa da minha bisavó do que a casa de minhas amigas e amigos, a gente passava muitos dias juntos. Por muito tempo, ela alugava quartos de seu apartamento para mulheres que iam estudar em Franca. Seu apartamento era uma pensão. Quando essas mulheres iam embora, muitas vezes esque ciam objetos por lá. Minha bisa juntava todos os objetos esquecidos em caixas e me davam elas. A partir daquelas caixas, eu conseguia inventar mundos inteiros.

7

Desse modo, o meu trabalho de con clusão de curso perpassa por essas três estações, mas isso não quer dizer que ele tenha um ordem certa. Você pode percor rer por eles da maneira que escolher. Com ele procurei descobrir modos de pesquisa e aprendizado em Arte assim como fui em busca de dialogar com pensamentos cria dores. Espero que esse material como um todo, seja um dispositivo criador para que quem o acessa e que possa se sentir insti gado a imaginar, criar, inventar.

8

4. "COMO NASCE UM PROCESSO DE INVENCAO?

Antes de trazer o capítulo das entrevistas, quis destacar que o pri meiro sentido que atribuo a palavra “FRAGMENTO” (uma palavra que considero de muita importância para o meu processo de feitura do TCC) é que neste trabalho, trago um recorte da pesquisa que fiz. O meu trabalho de conclusão de curso não contempla as entrevistas completas. Por serem um material extenso que acabou se ampliando para outros temas, resolvi guardar uma parte para explorar mais profundamente em um futuro desdobramento dessa pesquisa. São recortes preciosos das falas desses artistas. Fragmentos de vozes para conversar com e sobre processos de criação.

Te convido a inventar um modo de usar esse material. Não há ordem certa.

FRAGMENTO(S)

Do mesmo modo que a matéria do pensamento não se dá de forma linear ou organizada, o meu pro cesso de criação acontece de forma fragmentária e não linear, o meu pensa mento vai trazendo asso ciações desalinhadas, des controladas, misturadas desordenadas.

O fragmento como início meio e fim. Fragmento como pensamento. Fragmento como modo de ir. Como caminho e lugar de criação. Fragmento como ruído e possibilidade de ser.

“Escrevo-te em desordem, bem sei. Mas é como vivo. Eu só trabalho com achados e per didos” (LISPECTOR,1998, p.66)

9

Resto

Remanescente

Pedaço de coisa quebrada Partir Fagulha Quebrar Romper

Partícula isolado do todo Pequena fração

Cada uma das pequenas partes em que se divide um todo Pedaços de algo que se rompeu ou se partiu,

FRAGMENTO(S)

Inspirada pelo último livro que encontrei para apoiar essa pesquisa, “Linha do ho rizonte: por uma poética do ato criador”, da artista e autora Edith Derdyk. Trago fragmentos de livros que li para o Tcc em diálogo com as falas dos artistas entrevis tados.

Edith Derdik, em seu livro, propõe escre ver sobre a questão da criação associado a sua própria prática artística. Ela não descreve, nem explica seus próprios métodos, vai traçando um pensamento, uma prosa poética, em diálogo com muitos outros textos de autores variados. Ela diagrama essas citações de modo distinto ao qual estamos acostumados quando se trata de notas que se relaciona com o que o autor escreve.

A autora opta por colocar o seu prórpio texto mais bem centralizado e traz as fa las de outros autores ao lado das páginas que escreve, ao invés de notas distantes do texto.

O encanto com esse livro foi imediato e entendi que também queria trazer essa proposta.

Esse trabalho de conclusão de curso nasceu de inúmero fragmentos. Es critas soltos, pensamentos em cader nos, peadços que fui juntando.

No meu trabalho como artista, utilizo de muitos recursos antes de assumir uma “obra” como pron ta. Assim como o pensamento, o meu processo de criação não é linear, rasuras, rascunhos, anota ções em cadernos, papeis soltos são partes importantes dele.

10

5. ENTRECONVERSAS OU "COMO NOSSAS COES SE MANIFESTAM NAQUILO QUE

Há cinco anos me mudei para Belo Horizonte e há dois voltei para Franca (minha cidade natal) em meio a pandemia. Para finalizar minha Li cenciatura em Artes Visuais pela UFMG retorno mais uma vez para Bh. As entrevistas que trago para o TCC foram feitas com artistas tanto de Franca e região como de Belo Horizonte. Por sempre estar nesse ir e vir entre duas cidades desde o início da minha graduação, quis trazer de alguma forma esses meus dois espaços de casa/esses dois lugares que moro/ através de pes soas as quais me deslocaram tanto de lá quanto de cá.

A primeira entrevistada foi a Daniela Maura, mesmo não a conhecendo pessoalmente, sua es crita e modos de pensar e ensinar, as quais aces sei através de seus textos e aulas no Youtube, me instigaram a querer me aprofundar nos temas da criação.

O segundo entrevistado foi Gerson, o conheci antes mesmo de entrar para graduação, ainda bem. Foi ele quem me trouxe um mundo com pletamente novo dentro das Artes, me mostrava artistas que nunca tinha visto, filmes que nunca tinha assistido, foi ele quem me apresentou a cidade de Belo Horizonte e quem ajudou muito a entrar na Universidade. Ivo, foi a terceira pessoa que entrevistei. Ele me acolheu no seu ateliê durante a pandemia, quan do eu não tinha mais a convivência de ateliê presencial da UFMG. Eu estava completamente isolada dos fazeres e pensamentos da Arte. Ivo me proporcionou conversas muito boas, me dei xou acompanhar seu processo e pude voltar a prática da gravura que eu tanto estava sentindo falta.

Juliana, foi quem eu entrevistei por último. Ela, um enorme rebentamento na minha vida. A co nheci no final de 2021 e desde então tenho apren dido muito com ela, sobre Arte e Loucura, Dese nho e Teatro, corpo, voz, Literatura. Me trouxe novos olhares para coisas que nunca tinha pen sado antes. Ela é processo de criação vivo.

As entrevistas começaram todas da mesma forma, com a pergunta:

O que é processo de criação processo?”

Apesar de no início todas as entrevistas terem esse padrão de uma mesma pergunta para todos, quis que as entrevistas pudessem ter um caráter de con versa, serem mais soltas. Então também deixei em aberto para que os entrevistados pudessem puxar os pontos que quisessem, deixar com que o fluxo de consciência acontecesse. Para que assim, eu pudesse ter acesso a um processo de fala fluído que conside ro muito precioso. Foi muito especial poder entrar em contato com a maneira que cada um interpretou o tema, como se dava os seus processos em suas singularidades. Fo ram percepções muito distintas que eles trouxeram para o tema dos Processos de Criação. Foi bonito observar as escolhas das palavras, o movimento do pensamento se construindo. E por ser uma conversa, em alguns momentos a fala parecia confusa, trunca da, mas eu fui captando a maravilhosidade disso, a fala que escorrega, inacabada, o pensamento acon tecendo, associações imediatas. Escutar a pessoa percebendo o próprio processo e entendendo coisas antes não pensadas, o seu próprio andamento, o que acontece ali dentro dela… Para mim, o processo de criação também aconteceu ali,

11

NOSSAS QUESTOES, CRENCAS, CONCEP� QUE INVENTAMOS?

criação para você? Como se dá o seu

nas entrevistas: Júlia Entrevistado(a)

12

DANIELA MAURA

Eu sinto que tem uma coisa assim, esse olhar para o processo, ele começa como um olhar para o próprio processo de vida. Eu sempre fui uma pessoa que eu consegui transitar entre uma in trospecção muito grande e uma extroversão, sabe? Então, eu sinto que esse é um pouco movimento também... Hoje eu sinto que eu trabalho muito em ciclos, então, agora, por exemplo, eu estou num momento muito de absorver os mundos de outras pessoas, nesse projeto das entrevistas e depois, geralmente, eu vou para um momento mais de introspecção onde eu deixo sedimentar, onde vou entender as coisas todas que eu recolhi. E eu sinto que isso começou na própria vida, sabe, eu sinto que eu era uma criança que parava muito para olhar o que tava acontecendo, para entender o que estava sentindo, na adolescência mais ain da… Porque eu comecei também a escrever pe quenos poemas e a poesia foi um lugar que super me ajudou a lidar com essa fase da adolescência no sentido de lidar com esse prazer da linguagem, né, era uma coisa que me trazia muita força de vida, pros períodos mais difíceis de ser adolescen te. Então eu sinto que esse olhar para o processo ele começa antes de entender essa relação com as Artes Visuais, então de uma atenção e de um cuidado para as coisas da vida e para estabelecer essas conexões, sabe, assim. Eu brinco que é ler si nais. É um pouco como olhar para o mundo como se ele fosse um oráculo, então eu fico atenta aos sinais. Sinto que isso tem muito a ver com o de senho de observação, ele me trouxe essa postura de um respeito, primeiro com as pessoas porque eu gostava de desenhar muita figura humana, o corpo, gente. Então, é como se eu pegasse esse respeito daquele corpo que estava diante de mim se doando para o meu olhar, mas também me observando, e traduzisse isso para as outras coisas todas, assim. Então, ou eu já era assim e encontrei o desenho de observação. Então, acho que tem muito a coisa da gente… A gente entrar em sintonia com coisas que estão na mesma força, na mesma direção que a gente. Então eu sinto que esse olhar para o processo começa aí, e ele tem muito haver com perceber as coisas, com ler as coisas, eu entendo esse exercício de leitura como um sentido amplo, né, e criar esses pontos de ligação entre as coisas. Eu acho que tem a ver com isso assim. Talvez, eu seria uma boa psicóloga.

TALVEZ ALGO ESTEJA RADICADO NO SER, NO CORPO OU NA LINGUA GEM, SIMULTÂNEAMEN TE: CÁPSULA MÓVEL A SERVIÇO DA INVENÇÃO QUE SÓ SE FAZ LINGUA GEM ATRAVÉS DA SUBJTIVIDADE DE UM CORPO VIVO E PRESENTE derdYK, edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo: intermeios 2012. p.33.

DIGA TUDO COM SINCERIDADE CALMA E HUMILDE. UTILIZE, PARA SE EXPRIMIR, OS OBJETOS QUE O RODEIAM, AS IMAGENS DOS SEUS SONHOS, AS SUAS LEMBRANÇAS. SE O QUOTIDIA NO LHE PARECE POBRE, NÃO O ACUSE: ACUSE-SE A SI PRÓPRIO DE NÃO SER MUITO POETA PARA EXTRAIR SUAS RIQUE ZAS. PARA O CRIADOR NADA É POBRE, NÃO HÁ LUGARES MESQUINHOS E INDIFERENTES. RILKE, rainer maria, Cartas a um jovem poeta são paulo hemus, 1967. p.15

13
Sem Título, Exposição
Sem Título, Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte

Horizonte

Mas eu acho que também eu vejo muito como uma inteligência emocional nessa relação com o outro, né, da minha mãe, por exemplo, ela é uma pessoa que é muito assim. Então, eu acho que tem esse ponto que é meio vida. Agora o Processo de Criação Artístico, ele vem junto também com… Acho que tem uma questão que é da vida tam bém. Sempre que eu tinha aula, e eu tinha muitas aulas difíceis no ensino fundamental, minha escola não era uma escola boa, mas eu olhava o pro fessor e a maneira do professor dar aula. Então, eu sempre assistia e hoje eu ainda assisto, eu tô fazendo um curso livre de filosofia com uma cara que eu acho incrível que é o Luiz Fuganti, então (amanhã eu tenho aula inclusive que delícia), mas, então, eu tô sempre pensando essas…

Eu sinto que esse olhar para o meu processo nos anos de formação ele foi um olhar também para o processo dos colegas da graduação. Tem muito essa coisa de aprender junto e aprender pela pro dução do outro. Agora o meu processo de criação artístico, eu sinto que ele tem três eixos. Um eixo que é da minha relação com meu próprio corpo, eu sinto que é uma questão que já está resolvida (já não né, eu estou com 42, então, tipo

(...) HÁ SEMPRE DADOS QUE SÃO RECOLHIDOS DE UM E DE OUTRO (...) NÓS NÃO ADMIRAMOS UMA PESSOA POR ACASO, MAS PORQUE ELA MEXE COM COM COISAS QUE SÃO NOSSAS. MESMO QUE OBSER VEMOS A VIDA ARTÍSTICA DE UMA PESSOA, ESTAMOS DO LADO DE FORA. NÃO É O NOSSO PROCESSO CRIATIVO. ESTAMOS DIANTE DO TRABALHO, MAS O ARTISTA VEM QUANDO TODOS VÃO EMBORA (...)

assim, ufa, ela está resolvida), mas eu sinto que eu vou desenhando o corpo porque eu precisa va entender o que é ser esse corpo, eu precisava entender o que é estar encarnada, sabe assim, ser essa matéria. Então, encarnado, no sentido eu acho mais da Pedagogia Waldorf, eu ando estudando isso de maneira independente. Eles falam da encarnação da imagem, que a imagem tem o processo de encarnação. Então eu sinto que o desenho da figura humana ele vinha nesse lugar para mim, de eu me reconhe cer... Coisas que não tinha assim… Era uma sensação de pertencimento com corpo, me reconhecer no meu próprio corpo, então isso foi um processo que o desenho da figura humana foi me trazendo. E junto disso, tem um outro eixo que é um desenho, que eu falo que é do casal, que fala dessa relação íntima, mas também de uma construção ao longo da vida. Tinha um profes sor que chamava Tuneu e ele fala… Se você leu o texto da Nana então talvez você tenha lido coisas sobre o Tuneu. E junto disso, tem um outro eixo que é um desenho, que eu falo que é do casal, que fala dessa relação íntima, mas também de uma construção ao longo da vida. Tinha um professor que chamava Tuneu e ele fala… Se você leu o texto da Nana então talvez você tenha lido coisas sobre o Tuneu

Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte.
albano ana angéliCa tuneu tarsila e outros mestres: o aprendizado em da arte Como um rito de iniCiação são paulo: plexus editora, 1998. p.68
14

Sim… Li sobre ele recentemente assim…Eu não sabia que você tinha sido aluna dele, caramba!

Sim, foi uma das coisas mais legais da minha graduação, na verdade foi encontrar pessoas como ele assim. O Tuneu falava que meu tra balho tava falando da possibilidade do amor. Então… acho que eu tô falando disso, dessa construção assim, porque tem esse compro misso né, de uma construção de se tornar uma pessoa melhor junto e como que é representar isso por meio da imagem e de algumas metáfo ras. E aí tem um terceiro eixo que eu sinto que ele é artístico didático, que é um eixo onde eu vou para o coletivo,que é como eu compartilho as questões artísticas na sala de aula e como que eu colho também porque… A experiência de dar aula, o que eu sinto é assim:

(...) AO CRIAR, PROCURAMOS ATINGIR UMA REALIDADE MAIS PROFUNDA DO CONHECIMENTO DAS COISAS. GANHAMOS CONCOMITANTEMENTE UM SENTIMENTO DE ESTRUTURAÇÃO INTERIOR MAIOR; SENTIMOS QUE ESTAMOS DESENVOLVEN DO ALGO EM ALGO DE ESSENCIAL PARA NOSSO SER. DAÍ SE TORNA TÃO IMPORTANTE, PARA O ARTISTA OU PARA QUALQUER PESSOA SENSÍVEL, SABER DO TRABALHO DE OUTROS, TER CONTA TO COM SERES CRIATIVOS, NÃO NO SENTIDO DE UMA RIVALIDADE, MAS NO SENTIDO DE UM CRESCIMENTO INTERIOR QUE TAMBÉM EM NÓS SE REALIZA QUANDO PODEMOS ACOMPANHAR A REALIZAÇÃO DO OUTRO SER HUMANO. OSTROWER, FAYGA. CRIATIVIDADE E PROCESSOS DE CRIAÇÃO. PETRÓPOLIS: EDITORA VOZES, 1977. P. 143

a minha maior interlocução da produção artística por muitos anos foi a sala de aula. Então lá eu compar tilhava os meus trabalhos, os meus processos, e isso nutria novos ciclos de trabalho e novos processos.

SOZINHO, NO MEU CANTO, POSSO TER IDEIAS DO TEMA A TRATAR –IDEIAS DE ARGUMENTISTA. MAS O COREÓGRAFO SÓ É DESPERTADO PELOS CORPOS (...)HÁ UM TEMPO DE ADAPTAÇÃO COM O OUTRO PARA SABER COMO JOGAR COM ELE DIZ LUIS MELLO (1993). EISENSTEIN, FAZ ANALOGIA DO TRABALHO EM EQUI PE NO CINEMA COM A CONSTRUÇÃO DE UMA PONTE: UMA DANÇA MAR CADA COLETIVAMENTE QUE UNE O MOVIMENTO DE DEZENAS DE PESSOA NUMA ÚNICA SINFONIA.

salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artísti Ca: intermeios, 2011. p. 57

15
Sem Título, Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte

Faz sentido, porque você tem muito essa coisa, eu vejo nos seus vídeos, você dá um “start” assim para os pro cessos de criação, tanto seus quanto dos estudantes, porque para mim, é isso que eu gosto muito assim de pesquisar. Meu trabalho é todo assim também, eu sempre parto do processo mesmo. Ele é todo processual… Então com certeza deve ser alguma coisa nesse sentido aí.

É, acho que é meio que no viés do “Mestre ignorante”, você já leu esse livro?

Não, não.

É um livro bem legal porque vai falar de um pedagogo que chama Jacotot, o autor é o Rancière… E aí o Jaco tot ele foi ensinar a língua dele mas ele não falava a lín gua das pessoas, que ele foi ensinar, então, ele pegou um livro que tinha uma tradução para as duas línguas, um livro em comum, uma interseção entre as línguas, e aí ele foi fazendo proposições didáticas. Eu sinto que isso tem muito a ver com o viés que é pelo método. Entender de métodos de criação e aí, não necessariamente eu preciso fazer o que a pessoa faz, mas eu consigo dialogar com ela porque, a gente tá dialogando por essa questão do método de criação, de métodos de criação. Então, isso me dá meio que um passaporte para poder transitar por áreas além daquelas em que eu tenho uma especialida de, como por exemplo, o desenho. Eu não sei se eu res pondi, mas eu tentei.

Nossa muito! Inclusive você trouxe coisas que estavam na minha cabeça em relação ao que eu quero perguntar. Ai eu tô até pensando aqui por onde começar, mas, você falou muito sobre o desenho, sobre o corpo, eu vi aque le, eu não sei se é sua tese de Mestrado que são vários desenhos assim, eu não sei como que ela é pessoalmen te, mas eu acredito que é um um livro que vai, que vai indo assim né... os desenhos, eu fiquei até curiosa assim. Porque você falou sobre a sua relação, do amor, do desenho, da observação. Mas eu acho que você já até respondeu porque eu ia perguntar muito sobre essa sua relação com desenho em si, porque o desenho parece que é o mais forte para você na sua produção.

Ah… eu posso te responder mais sobre isso?

Claro, por favor!!

Então eu sinto que desenho… Por muito tempo eu fa lava nas aulas…Falava assim: eu tenho um apreço pela bidimensionalidade… É um amor pela bidimensiona lidade né, mas não só por ela. Na verdade eu sou uma pessoa, muito… O Tuneu me ensinou isso assim. Duas coisas que o Tuneu me ensinou: a primeira, a generosi dade, eu ficava admirada com a generosidade dele, sabe, ele pegava o trabalho de um colega, e eu falava assim,

EU ESTAVA VENDO MUITAS EXPOSIÇÕES, MAS A GRANDE DESCOBERTA PARA MIM FOI QUANDO ENTRE NA EXPOSIÇÃO DO WESLEY, EM 64, NA GALERIA ATRIUM. AQUILO FOI UMA COISA FANTÁSTICA. ERA A ANTÍTESE DE TUDO QUE EU ESTA VA TENDO COMO FORMAÇÃO. REVOLU CIONOU MINHA CABEÇA. TALVEZ NÃO FOSSE REALMENTE A ANTÍTESE, PORQUE SE ME FASCINOU TANTO, É PORQUE ALGUMA RESSONÂNCIA TINHA PRA MIM. EU PEGAVA O JORNAL E LIA AQUELA EBULIÇÃO TODA, E AS PESSOAS FALAN DO QUE ELE ERA UM CARA ALUCINADO. O IMPORTANTE É QUE O BRASIL ESTAVA NUM MORMAÇO E O WESLEY APARECEU QUESTIONANDO TUDO. AS PESSOAS NÃO SABIAM COMO LIDAR COM ISSO. HOUVE UMA REAÇÃO MONUMENTAL. MAS NÃO REAGI ASSIM. QUERIA SABER O QUE ERA ISSO QUE SOAVA PARA MIM TÃO FORTE MENTE.

albano ana angéliCa tuneu tarsila e outros mestres: o aprendizado em da arte Como um rito de iniCiação são paulo: plexus editora, 1998. p.65

16

“que que o Tuneu vai falar disso” porque eu como aluna, não achava o trabalho bom, e eu conseguia ver ele enxergar as potências daquele trabalho. En tão eu falei “Nossa, eu preciso disso”. Então, acho que a generosidade é uma questão que eu aprendi, e a outra é não ter preconceito, é sempre buscar referências, buscar diferenças. Então, eu gosto de artistas que fazem coisas muito diferentes das que eu faço. Eu estava escrevendo sobre isso agora, fazendo um plano de aula, falando que eu gosto muito da linha, mas que isso não quer dizer que eu não gosto dos outros elementos. A gente estava falando de amor, eu gosto da ideia de que o amor não precisa dividir, porque eu posso amar muitas coisas e meu amor não tá sendo dividido entre essas coisas, ele tá sendo multiplicado. Então, tem isso, eu tenho apreço pela bidimensiona lidade, mas abertura para as outras coisas, e eu não sabia dizer porquê. Assim, hoje eu consigo elaborar isso, eu sinto que é… O meu apreço pela bidimensionalidade é porque eu sinto que a bidimensionalidade e mais especificamente o desenho, pela velo cidade que ele pode trazer... A bidimensionalidade específica do desenho é um plano que evoca todos ou outros planos, porque eu penso muito o mundo em camadas, assim.

A PERCEPÇÃO DELIMITA O QUE SOMOS CAPA ZES DE SENTIR E COMPREENDER, PORQUANTO CORRESPONDE A UMA ORDENAÇÃO SELETIVA DOS ESTÍMULOS E CRIA UMA BARREIRA ENTRE O QUE PERCEBEMOS E O QUE NÃO PERCEBEMOS. ARTICULA O MUNDO QUE NOS ATINGE, O MUN DO QUE CHEGAMOS A CONHECER E DENTRO DO QUAL NÓS NOS CONHECEMOS. ARTICULA O NOSSO SER DENTRO DO NÃO SER. NESSA ORDENAÇÃO DOS DADOS SENSÍVEIS ESTRUTURAM-SE OS NÍVEIS DO CONSCIENTE; ELA PERMITE QUE, AO APREENDER O MUNDO, O HOMEM APREENDE TAMBÉM O PRÓPRIO ATO DE APREENSÃO; PERMITE QUE APREENDENDO, O HOMEM COMPREENDA.

OSTROWER, FAYGA. CRIATIVIDADE E PROCESSOS DE CRIAÇÃO. PETRÓ POLIS: EDITORA VOZES, 1977. P. 13

PENSAMOS O DESENHO COMO EXPRESSÃO, APRESENTAÇÃO DE UMA IDEIA, QUE É O FRUTO DOS ATRAVESSAMENTOS QUE A RELAÇÃO COM A EXPERIÊNCIA TRAZ. DESENHAR É UMA APRENDI ZAGEM NO CAMPO DOS AFETOS (...) A LINGUAGEM DO DESENHO TEM UMA FLEXIBILIDADE NA MANEI RA COMO SE RELACIONA COM OUTRAS LINGUA GENS, DE MODO TRANSVERSAL. O DESENHO PODE ESTAR PRESENTE NOS PROCESSOS DE INVESTIGA ÇÃO DOS OUTROS TERRITÓROS – AS NARRATIVAS, A LUZ/COR, A CONSTRUÇÃO, AS TRANSFORMA ÇÕES PARA TORNAR VISÍVEIS IDEIAS E HIPÓTESES BARBIERI, STELA. TERRITÓRIO DA INVENÇÃO ATELIÊ EM MOVIMENTO. SÃO PAULO: JUJUBA, 2021. P 49

Você tava perguntando da minha criação aí eu vou dar uma volta assim, eu acho que a minha criação passa muito, por exemplo, pelas imagens de sonhos, eu escrevo essas imagens, ela passa muito por memórias, e memórias que são muito corporais. A minha apreensão de mundo, ela é muito corporal.

VIVER

ELE TEVE A SENSAÇÃO DE SER. NÃO PODERIA EXPLI CAR, TÃO PROFUNDO, NÍ TIDO E LARGO QUE ERA. A SENSAÇÃO DE SER ERA UMA VISÃO AGUDA, CALMA E INS TANTÂNEA DE SE SER PRÓ PRIO REPRESENTANTE DA VIDA E DA MORTE. ENTÃO, ELE NÃO QUIS DORMIR PARA NÃO PERDER A SENSAÇÃO DE VIDA.

LISPECTOR, CLARICE. A DESCOBERTA DO MUNDO. RIO DE JANEIRO: ROCCO, 1999. P.365

17
18
Sem Título, Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte.

Só agora eu consegui estudar filosofia, era uma coisa que eu sempre quis estudar e só agora eu tô conseguindo porque eu lia um parágrafo e eu entrava num abis mo dentro de mim e eu não conseguia continuar. Várias vezes eu peguei um livro do Bergson, parar ler, filosofia do Bergson e eu parava sempre na página 40, e aí eu começava tudo de novo, parava na página 40 e 40, porque era uma apreensão tão corporal, e aquilo ressignificava tanto o meu passado que era demais assim. Então tem o sonho, tem a memória de corpo, tem uma camada que é a rela ção com a linguagem. Eu acho que… Eu gosto muito da metalinguagem, essa consciência da linguagem em si e de que a gente está em diálogo com a própria linguagem. Hoje mais assim, que eu comecei a trabalhar mais com grafite, saí de um material que era de mais conforto para mim, por muitos anos, que eu fiquei nele, que era o nanquim, então essa relação com a matéria sabe… Então tem vários eixos que vão construindo esse processo de criação. Então entra o âmbito do sonho, o âmbito da vida cotidiana, o âmbito da própria linguagem, o âmbito de diálogo com outras produções artísticas que eu chamo de “artisticidade”, essa relação com o pensamento artístico de outros tempos, de ou tros artistas, e, o desenho para mim, ele consegue evocar tudo isso numa coisa tão simples e naquele plano tão simples do papel e de uma ferramenta de inscrição. Então, eu sinto que eu gosto dele por essa força… E ele pode ser tanto esse re gistro bidimensional como a própria força de manifestação da coisa em si, então quando eu entendo que uma ação é também um desenho. Eu gosto dessa capaci dade que ele tem de se representar e de apresentar as coisas no espaço. Eu costu mo dizer que na Belas, o desenho é a habilitação mais aberta, porque a palavra desenho já é o conceito. Então se eu for pensar em pintura. Pintura é pintura, se fosse para ser o conceito ia ser cor. Escultura se fosse para ser o conceito ia ser tridimensionalidade, então, eu sinto que o desenho já traz essa força do próprio conceito, e aí, ele consegue ser a ação, a vida mesmo. Então, tem essas questões do desenho que me interessam assim. Quando eu tô num processo de orientação, por exemplo, ou nesse processo que eu tô agora realizando esse material do site, de olhar para o processo de criação de um outro artista, para compartilhar esse processo de uma pessoa com mais pessoas, eu também estou desenhando. Eu tô percebendo quais são, é como se eu tivesse desenhando uma espécie de… Eu gosto da ideia de um diagrama em movimento. Então como se eu tivesse pensando os principais eixos, as distâncias, as relações, as camadas, as transformações dessas questões ao longo do tempo, todas essas ligações. Então isso para mim também é desenho. Pensar o meu próprio processo e escolher quais conceitos eu vou compartilhar na sala de aula, que eu entendo que são conceitos abertos o suficiente para acolher projetos artísticos dos estudantes de Arte, também era desenho. Uma outra professora... eu meio que tive uma tríade muito importante na gra duação, o Tuneu, a Lygia Eluf e a Nana Albano. Uma outra pessoa, que falou uma coisa muito importante, foi a Lygia, que foi uma coisa pontual, mas foi fundamental. Quando eu estava descobrindo quais eram as minhas questões no desenho, ela falou para mim, “você tem que dar aula da mesma maneira que você desenha”. Então, eu fui construindo isso assim, como que eu desenhava, e como que eu dava aula né, então tem esse olhar cuidadoso, tem esse entendimen to das forças que estão acontecendo, por exemplo, naquela estudante e aí um desenho, um mapa disso assim, mas buscando uma fluidez. Porque eu acho que uma grande questão, é que as coisas estejam vivas e eu sinto que para elas estarem vivas elas não podem se cristalizar, sabe? Então, acho que é isso assim, se for para falar, tentar dar uma resposta do desenho, acho que é isso.

QUANDO DISCUTIMOS A RELAÇÃO DO ARTISTA COM SUA MATÉRIA-PRI MA, FOI ENFATIZADA A RELAÇÃO TENSIONAL ENTRE LIMITES E POTEN CIALIDADE. ESSE EMBATE REVERTE EM CONHECIMENTO, QUE ENVOL VE UMA APRENDIZAGEM DE SUAS PROPRIEDADES E DE SUA HISTÓRIA. É SEMPRE LEMBRADO, POR MUITOS CRIADORES, QUE QUALQUER TEN TATIVA DE TRANSGRESSÃO DESSES LIMITES PARTE DESSA APRENDIZA GEM QUE GEROU CONHECIMENTO. salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artísti Ca: intermeios, 2011. p.132

EM MEIO ÀS TURBULENTAS EXIGÊNCIAS DO COTIDIANO QUE IMPÕE UMA ORDENAÇÃO ATIVA PARA CORRESPONDER MINIMAMENTE AOS MOLDES FUNCIONAIS, IDEOLÓGICOS E CULTURAIS, ADEQUANDO NOSSAS NECESSIDADES E DESEJOS ÀS EXPECTATIVAS DE UMA REALIDADE ECONÔMICA, IMPRIMINDO AO NOSSO FAZER UMA TRADUÇÃO DESTAS EXPERIÊNCIAS EXISTENCIAIS EM ORDEM DE VALORES. ENFIM, EM MEIO AO OLHO DO FURACÃO ALGO SEMPRE ESTÁ PEDINDO UMA FORMA DEFINI DA (...) A EXPERIÊNCIA VIVA SERÁ A ÂNCORA POSSÍVEL PARA INSTAURAR UM PONTO NO OCEANO MOVEDIÇO DA CRIAÇÃO

19
edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo: intermeios, 2012. p. 31
derdYK,

NA PRESTAÇÃO DE CONTAS QUE O ARTISTA FAZ A SI MESMO, SÃO ENCON TRADOS, EM ANOTAÇÕES, ÍNDICES RELATIVOS A SUA PERCEPÇÃO. É O ARTISTA EXPOSTO AS INFORMAÇÕES, RECOLHENDO E ACOLHENDO TUDO QUE, DE ALGUM MODO, LHE ATRAI. A PERCEPÇÃO ARTÍSTICA (...) COMO JÁ VIMOS, É O INSTANTE EM QUE O AR TISTA VAI TATEANDO O MUNDO COM OLHAR SENSÍVEL E SINGULAR. SONDAR O MUNDO É UMA FORMA DE APREENSÃO DE INFORMAÇÕES., QUE SÃO PROCESSA DAS E QUE GANHAM NOVAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO.

salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artístiCa intermeios, 2011. p.127

Sem Título, Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte

O DESENHO CARTOGRÁFICO É UM DESENHO DE LOCALIZA ÇÃO NOS PROCESSOS DE INVESTIGAÇÃO. ALGUMAS VEZES, DESENHAMOS PARA CRIAR MEMÓRIA, COMO NO CASO DE UM DIÁRIO DE VIAGEM, OU DO REGISTRO DE UMA CONSTRUÇÃO QUE SERÁ DESFEITA EM ALGUM MOMENTO, DE MANEIRA QUE POSSA SER RETOMADA (...) O PRÓPRIO CORPO É CARTOGRÁFICO, MAS AS IMPRESSÕES NO CORPO PODEM SER PASSAGEIRAS. SE NÃO AS DOCUMENTAMOS –ANOTAMOS, FOTOGRAFAMOS, GRAVAMOS UM ÁUDIO OU FAZEMOS UM DESENHO -, MUITAS VEZES ELAS SE PERDEM.

2021. p.53

Sem Título, Exposição Ofício de viver, Estúdio Guaco, 2018, Belo Horizonte.

20
barbieri stela território da invenção ateliê em movimento são paulo: jujuba,

GERSON WATANUKI

Então,

Processo de Criação para mim, como sou professor, quer dizer, hoje não trabalho mais dando aula, mas como trabalhei dando aula muito tempo, eu tinha o lado professor e também o lado artista. Os processos são um pouco diferentes as sim para mim.Trabalhei muitos anos numa escola Waldorf, que valoriza muito a questão artística. Você tem aula todos os dias, pode até avançar um pouco, nessas questões, você pode aprofundar um pouco mais na parte artística. Eu conseguia desen volver uma pesquisa pessoal interessante. Então, eles têm acesso a qualquer tipo de material que você queira usar, aquarela, giz pastel, carvão, tinta óleo, até spray se quiser, tem uma liberdade muito grande, então ajudava bastante. Tinha um currículo escolar que eu tinha que seguir, para cada ano eu tinha que seguir determi nados temas específicos, por exemplo, no oitavo ano, a gente tinha que trabalhar com luz e sombra basicamente. Eu lia o currículo, tinha explicação pedagógica que envolve uma questão espiritualis ta, que eu já acho um pouco viagem hoje, mas faz parte, porque, o pensamento todo da pedagogia Waldorf foi desenvolvida em cima disso. Mas, por exemplo, a sugestão era que se trabalhas se em determinado ano com o Barroco, a ques tão do claro e do escuro. Eu tinha conhecimento de outros processos dentro da História da Arte que dialogava com o Barroco, por exemplo, o Ro mantismo, na pintura, é muito parecido também. Essa questão dos exageros, da luz e da sombra… Então, eu trazia essa ideia de fazer a aula tentando sempre colocar um pouquinho lá do Barroco, mas também falar do Romantismo e já puxava um gancho para atualidade. Eu sempre trazia para os alunos essa preocupação de fazer sentido para ele também, para o dia-a-dia. Porque eles podiam falar, “por que eu estou estudando Barroco agora se aconteceu faz tempo, só porque ficou na histó ria?”. Então eu falava, que tem essa questão das polaridades, que o ser humano é sempre essa coi sa dos extremos, que, às vezes, você precisa dessa dramaticidade para conquistar um público e tal, e assim vai.

Então eu estava sempre tentando fazer isso, um gancho com outras atividades que fossem atuais, ou mesmo que fosse um pouco mais antigas mas que eles conseguissem pensar, criar alguma coisa em cima disso. Porque não é um processo linear. Numa escola tradicional, que eu já dei aula tam bém, é um processo bem linear, você tem que falar

(...) AQUI NOS IMPORTA FRISAR É FATO DE A HERANÇA GENÉTICA, ISTO É, O POTENCIAL CONSCIENTE E SENSÍVEL DE CADA UM, REALI ZAR-SE SEMPRE E UNICAMENTE DENTRO DE FORMAS CULTURAIS. NÃO HÁ PARA O SER HUMANO, UM DESENVOLVIMENTO BIOLÓGICO QUE POSSA OCORRER INDEPEN DENTE DO CULTURAL.

ostroWer faYga. Criatividade e proCessos de Criação petrópolis: editora vozes, 1977. p 11

21
Acervo Gerson Watanuki

sobre aquilo ali mesmo, se não sai muito, então não tem como você fazer uma pesquisa mais interessante para a aula. Fica uma coi sa meio estranha. Essa questão de dar aula numa escola Waldorf, o processo acontecia bem nesse sentido, sempre trazendo uns gan chos.

E a pesquisa como artista, sempre tive essa coisa de pesquisar os processos também. Se eu gosto de determinado artista, eu trabalho a primeira coisa que me chama atenção nele, na questão às vezes do tema ou da técnica, aí eu procuro saber como ele desenvolveu. Pro curo entender primeiro a forma dele pensar, o que tá passando pela cabeça para ele estar fazendo daquela maneira. E ai, procuro saber como ele usou aquele material, porque ele usou aquele tipo de material. Depois que eu entendo isso, eu procuro fazer um teste no meu trabalho, fazer alguma coisa parecida, vejo o que que dá para fazer… Além disso, gosto de pegar outros materiais, outros estilos e misturar.

Por isso que eu gosto muito de ilustração, porque ela te dá essa liberdade. Você não precisa seguir muito a risca o uso dos ma teriais, pode ser uma coisa mais livre, mais experimental. Na época que eu fiz faculdade

A INSPIRAÇÃO DE UM OLHAR ROTATIVO E MIGRATÓRIO, CON TRABANDEANDO SINAIS ENTRE O CORPO DE UM E O CORPO DE OUTRO, REALIZA UMA OUTRA MANEIRA DE CAPTURAR A PRESA, PRESENTE NO UNIVERSO DO OBSERVADOR: CAÇADOR DOS OLHARES QUE TOCAM AS DISTÂNCIAS AFRONTAM AS PROXIMIDADES.

não era assim, não tive professores ilus tradores, tive professores artistas visuais. Eles trabalhavam com suportes tradicionais, acredito que hoje mudou, que tem pessoas dando aula em uni versidades, um pessoal mais novo e tal. Mas até então, eu tinha aula com os caras que eram dinossauros assim, eram aqueles senhores e senhoras que fala vam muito de pintura moderna, mas não saiam muito daquilo. Eu notava que eles tinham um certo interesse mas não era a pesquisa deles, então acabava limitando. Eu ficava com isso na cabeça e queria aprender outras coisas. Mas assim, não tinha muita escola tam bém, igual agora que tem tem escola que ensina ilustração, quadrinho. Tinha uma ou outra só, mas não era aquelas coisas… Eu ficava pensando nisso, e ficava aquela coisa de pesquisar e ir atrás de artigo e tal. E fora daqui do Brasil você vê que já tinha um pessoal, principalmente no meio acadêmico, que trabalhava com ilustração e era uma

derdYK, edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo: intermeios, 2012. p.64
22
Acervo Gerson Watanuki

linguagem totalmente diferente do acadêmico tradicional. Aí eu tive certeza, eu falei “ acho que esse é o caminho que eu gosto, que eu vou seguir” tanto que ainda é.

Eu comecei a estudar muito quadrinho como lin guagem e suporte, como possibilidade de se de senvolver trabalhos artísticos em quadrinhos. E assim, sem mais preocupação do pessoal falar isso é arte ou isso não é. Depende se você sabe explicar bem o que você está fazendo. E eu acho que já é, tá dentro dos padrões que você consegue justificar, se ta dentro ali do que você tá falando então é, tudo é válido nesse sentido. Então se você domina bem o material, por exemplo, agora eu uso mui to computador, a forma que você vai expressar aí depois acho que é o de menos. Então são sempre essas duas formas.

Eu acho até bom assim dentro da pedagogia você ter que seguir algumas coisas, você fica um pouco mais preso, no processo pedagógico por ter que se guir um currículo. Às vezes não pode sair muito, mas eu sempre sai um pouco, sabe?

O pessoal não gostava muito não. Mas hoje eu vejo que isso trouxe resultados para os alunos, então, quando eu buscava outras coisas e trazia o que estava relacionado ao tema que eu tinha que trabalhar com eles, eles aprenderam de uma forma melhor. Então eu tenho alguns alunos de mais de vinte anos atrás que lembram de uma aula que eu dei.

E essa questão do artístico, do meu proces so artístico pessoal, também acabava levando alguma coisa que aprendia nova, formas de usar material, às vezes uma forma de pensar. Em História da arte, por exemplo, falava so bre Grécia e pegava um quadrinista atual que trabalhava com a mesma concepção daquele naturalismo artístico de representar daquela forma. Por exemplo, eu trazia o Alex Ross que faz realismo na aquarela, e você consegue até identificar depois as referências do outro artista naquele. Então, é uma coisa que está bem atu al, o Alex Ross faz coisas de super-heróis, é uma coisa que a molecada está presente, eles leem

23
Acervo Gerson Watanuki

coisas de super herói, assistem filmes de herói. Então eu sempre fazia isso, tentava ir para vários lados. Sempre que falava de um tema, eu tinha que fazer tam bém uma pesquisa. Às vezes eu fazia também uma liga ção com contexto literário, que é legal também trazer, com músicas também...

Comecei a ler quadrinhos na fase dos 6, 7 anos. Tinha um quadrinho que chamava Cripta que era só histórinha de terror. Eu lia e às vezes, eu nem conseguia nem dormir à noite. Ficava na minha cabeça igual filme. Eu gostava do desenho, hoje eu entendo como era feito, mas era dife rente, era pincel, com nanquim, eu achava diferente dos outros. É um traço bonito, e aí, nossa, tentava copiar os desenhos, essa Cripta me marcou bastante. Depois de um tempo ela virou Cripta do Terror, era maiorzona, é até curioso, lançou agora um filme desse diretor do Invo cação do mal, o filme chama Maligno, a história é bem naquele formatinho daquelas historinhas antigas. Quan do eu assisti eu lembrei na hora daquelas histórias que eu lia de quando eu era criança. Eu estava vendo uma entrevista esses dias, ele tava falando sobre isso, que ele fez o filme para lembrar as histórias que ele lia quando ele era criança. Nossa igualzinho… Para você ver como é importante essa questão da poética visual do filme, o jeito que faz para contar a história. Os quadrinhos foi assim, eu fui acompanhando, gostando, e aí em 89 eu cheguei uma vez numa banca grande e tinha um monte de quadrinhos, de tudo quanto é coisa. Tinha umas ca pas diferentes. Umas coisas meio surreais, falei para o cara da banca “o que que é isso aqui?” O cara falou, “é quadrinho, é novo, chama Sandman!” “Mas o que é isso aqui? é fotografia é desenho?” Eu não sabia o que era a capa, fiquei fascinado naquela arte. E eu tinha outro amigo também que até hoje ele lembra desse episódio e ele lembra a mesma coisa, até hoje ele gosta, foi a época que gente começou gostar muito dessas coisas. Dai comecei a ler Sandman,e foi legal, porque aí eu co mecei a descobrir também dentro dos quadrinhos esse universo mais experimental das Artes. Até então, tinha muito que seguir um padrão de desenho, um estilo para desenhar. E o Sandman, a cada capítulo se chamava um desenhista diferente e inclusive alguns são até tipo assim, colagem, alguns são abstratos… É muito louco isso, isso aí foi uma coisa que me marcou muito assim, eu fui pro curar saber quem eram esses desenhistas. O Dave Mackean fazia as capas e eu curti para caramba e queria saber como que fazia. Não tinha internet, ficava, “como ele fez isso aqui?!” E aí, li uma entrevista que falava que ele usava Photoshop. “E como é que ele faz isso?Ele só mexe no photoshop?” Não, tem coisa que ele faz a mão também. Hoje a gente sabe como é o processo, ele faz uma parte a mão, fotografa objetos, mistura também. Até então, eu não sabia que isso era possível, porque quando Pho toshop apareceu ele era só para mexer em foto, replicar

AS BIBLIOTECAS (ANALÓGICAS OU DIGITAIS) DOS ARTISTAS SÃO FONTES DE ESTUDOS PARA AQUELES INTERESSADOS EM MECANISMOS CRIATIVOS. OS RECORTES DE JORNAL, OS LIVROS ANOTADOS, AS LISTAS DE FAVORITOS DA INTERNET, OS ARQUIVOS DE UMA MANEIRA GERAL MOSTRAM AQUILO QUE INTERESSA ÀQUELE ARTISTA E O MODO COMO A INFORMAÇÃO É APREENDIDA.

SALLES, A. CECÍLIA. GESTO INACABADO PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA. SÃO PAULO: INTERMEIOS, 2011. P. 130

24

foto.

Ele é um cara que começou fazer umas coisas loucas assim, faz desenho, mistura um monte de coisa. Nos sa, logo no começo que apareceu ele já fazia isso. E eu pensei muito nessa coisa de experimentar. Falei, “nossa, como é que vou pesquisar? como que faz isso? E no co meço eu só tinha um scanner, fui comprar um scanner tarde, na época da faculdade e meio vagabundo você imprimia, a resolução ficava meio ruim. Ai escaneava algumas coisas, escaneava cabeça de boneca e mexia no Photoshop e pintava um pouco ali e escaneava umas texturas, ia experimentando. E agora, eu sei como faz e meu processo é mais ou menos isso. Acaba que você vai encaixando também. Então, é legal que isso é uma inspiração, você vê e já quer pesquisar, ver como que funciona, se é com scanner, se é com foto, tipo de tinta… Hoje eu já sei tudo com que ele trabalha... Tinta acrílica, ai fotografa, aí você vê que a resolução do pigmento da acrílica fica melhor quando escaneado ou fotografado. Nanquim também… Ele faz uns traços e depois esca neia, depois joga transparência de cor no Photoshop, essas coisas. Então é um processo de investigação. Nessa época foi bom, em 89 que popularizou esse tipo de Arte, de usar várias mídas. Então tinha o Bill Sienkiewicz que faz também um monte de coisa, ele chegou a fazer umas coisas no photoshop mas ele gosta mesmo de fa zer tudo à mão. Então recorta, cola tudo…Se você ver o requadro dos quadrinhos dele, ele vem coloca assim um pedaço de barbante volta e fotografa depois por cima. Achei isso muito legal e me identifiquei. Porque você vê as possibilidades do que fazer, que não precisa ter um material muito elaborado. Se você tem um lápis de cor, uma tinta vagabunda e um pedaço de papel que você recorta, já consegue fazer uma coisa bem louca.

O cinema também tem bastante influência para você, não é? No seu processo…

Tem, é.. Principalmente cinema expressionista alemão. Eu assisti muito e até hoje eu gosto. É uma temática que me interessa, então me inspira bastante. Não só expres sionista, mas tem outros gêneros também, de cinema mais antigo, tem alguns orientais bons também, a gen te acaba trazendo pro trabalho da gente… Às vezes até questão dos temas que é trabalhado nesses filmes porque é bastante íntimo, é muito interior. O cinema, por exem plo, o expressionismo alemão, tem uma visão muito pessoal do diretor e das pessoas que atuam. Não é aquelas coisas que a gente está acostumada a ver, o padrãozinho que é feito para vender, não que seja ruim também, tem uns que são bons, mas ali acho que não tinha muita essa coisa não. É muito legal também porque eles basicamen te faziam tudo, faziam cenário, pintavam, um estava filmando, aí outro já pegava e maquiava o colega...era uma coisa totalmente diferente, então acho que isso me chama atenção.

o artista tem, de ser meio assim, “fução”, vai fuçando numas coisa vê o que que pode aproveitar daquilo, vai pesquisando. Então, eu sempre me inspiro nisso nessas multidisplicinas, cinema, literatura, música…

ESFORCE-SE POR AMAR SUAS PRÓPRIAS DÚVIDAS, COMO SE CADA UMA DELAS FOSSE UM QUARTO FECHADO, UM LIVRO ESCRITO EM IDIOMA ESTRANGEIRO. NÃO PROCURE, POR ORA, RESPOSTAS QUE NÃO LHE PODEM SER DADAS, PORQUE NÃO SABERIA COLOCÁ-LAS EM PRÁTICA E VIVÊ-LAS. E TRA TA-SE PRECISAMENTE, DE VIVER TUDO.

RILKE, RAINER MARIA, CARTAS A UM JOVEM POETA. SÃO PAULO: HEMUS, 1967. P.30 E 31

DESDE CEDO, ORGANIZAM-SE EM NOSSA MENTE CERTAS IMAGENS. ESSAS IMAGENS REPRESENTAM DISPOSIÇÕES EM QUE, APA RENTEMENTE DE UM MODO NATURAL, OS FENÔMENOS PARECEM CORRELACIONAR-SE EM NOSSA EXPERIÊNCIA. (...)

AS DISPOSIÇÕES, IMAGENS DA PERCEPÇÃO, COMPÕEM-SE, A RIGOR, EM GRANDE PARTE DE VALORES CULTURAIS. CONSTITUEM-SE EM ORDENAÇÕES “CARACTERÍSTICAS” E PAS SAM A SER NORMATIVAS, QUALIFICANDO A MANEIRA PORQUE NOVAS SITUAÇÕES SERÃO VIVENCIADAS PELO INDIVÍDUO. ORIENTAM O SEU PENSAR E IMAGINAR.

ostroWer faYga Criatividade e proCessos de Criação petrópolis: editora vozes, 1977. p. 58

25
26
Acervo Gerson Watanuki

Quando você tava falando dos seus trabalhos manuais eu lembrei mui to dos seus caderninhos. Nossa os seus caderninhos ficaram muito na minha cabeça… Você levava eles para a gente ver. Então, era muito legal poder ver, eu lembro um que você levava para a escola desenhava as pessoas…

Então, eu fui para o Japão fiquei dois anos lá, quase dois anos sem desenhar nada, não fazia nada, foi tortura.. Ali eu tive certeza mes mo que não dá para mim, não dá para fazer outra coisa que não seja esteja relacionado a desenho, às Artes. E aí, logo que eu voltei, a primeira coisa que eu fiz foi isso. Eu comprei um sketchbook, voltei a fazer. E esse tempo sem desenhar foi ruim porque você esquece. Quan do vai pegando de novo, você vai relembrando o jeito que você fazia aquilo. Mas não é bom, ficar muito tempo parado, ainda mais no meu caso que fiquei totalmente parado. Dois anos, foi tortura. Fui lembrando nos sketchbooks, voltando a fazer.

O caderno é um espaço interessante de experimentação, de estar sem pre com a gente, é muito importante. Eu tenho que sempre carregar o meu porque senão eu esqueço o que to pensando, não faço, vou me afastando e isso me faz muito mal também. Para mim, é um lugar de estar sempre. Escrever coisas que vem na cabeça, desenhar o que tá vendo, o que for assim… O caderno para mim tem um lugar muito importante.

Eu faço muito isso que você falou mesmo e às vezes eu faço anotações também. Hoje também uma coisa que eu tô tentando muito é resga tar uma coisa que eu tinha mais na faculdade de fazer uma coisa mais gestual no traço, permitir mais, deixar a coisa mais torta. Às vezes, com o tempo, você vai ficando muito duro, você tem que ir sempre exercitando, deixar o traço mais solto, deixar as manchas saírem. Tô tentando resgatar de novo isso no momento. Eu sempre faço isso, às vezes tô vendo que eu estou indo para um caminho, tento ir depois pelo contrário. Uma auto-sabotagem, para ver como funciona o cére bro depois. Mas o resultado é bom, porque daí que surge umas ideias, uma coisa diferente, com um olhar diferente.

Ta nesse lugar de olhar para o seu processo e tentar ver coisas novas…

Sim!

ESFORCE-SE POR AMAR SUAS PRÓ PRIAS DÚVIDAS, COMO SE CADA UMA DELAS FOSSE UM QUARTO FECHADO, UM LIVRO ESCRITO EM IDIOMA ESTRANGEIRO. NÃO PROCURE, POR ORA, RESPOSTAS QUE NÃO LHE PODEM SER DADAS, PORQUE NÃO SABERIA COLO CÁ-LAS EM PRÁTICA E VIVÊ-LAS. E TRATA-SE PRECISAMENTE, DE VIVER TUDO.

rilKe rainer maria, Cartas a um jovem poeta são paulo: hemus, 1967. p.30 e 31

É 24 horas pensando. Você vê alguma coisa e já começa a associar com outra. horas quase que uma obsessão. Penso, só penso, enquanto não estou desenhando sando em trabalho artístico… Você fica 24 Horas pensando.

27

O CORPO EXPRESSA UMA CRISE CONSTANTE ABSORVENDO E EXTRAINDO AS EXPERIÊNCIAS SENSÍVEIS E ORIUNDAS DO MUNDO E, SIMULTANEAMENTE, POVOANDO E DEVOLVEN DO AO MUNDO EXPERIÊNCIAS FORMALMENTE RECONSTRU ÍDAS. DENTRE AS MÚLTIPLAS DIREÇÕES QUE SE OFERECEM GENEROSAMENTE PARA NÓS, A EXPERIÊNCIA CRIADORA É FUNDAÇÃO POSSÍVEL. O CORPO É O PRIMEIRO E ÚLTIMO AGENTE QUE ATUA SOBRE AS MATÉRIAS DO MUNDO: ESTA MOS SEMPRE NO MEIO.

Acontece muito isso muito comigo, eu penso 24 desenhando eu estou pensando em desenho, estou pen-

28
derdYK, edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo: intermeios, 2012. p.81
Acervo Gerson Watanuki

IVO INDIANO

vejo que alguns artistas tem isso, não sei por qual demanda e como ele chegou até isso, mas tem... Mas, para a maioria, é uma busca, a maioria é uma busca. Você fica experimen tando. A Eunice, que foi a professora que me dava História da Arte, falava que era uma corrida de bastão, porque não é quem chega primeiro, é quem consegue passar o bastão. Ela, lógico, professora fabulosa ia mostrando, “ó tá vendo, depois vem ele e pega aqui, vem o Picasso pega Cézanne e leva um pouquinho, vem o Braque e leva mais um pou quinho, depois vai voltar, depois vai para o Mondrian que vai sintetizar mais e vai….” É uma corrida de bastão, um pegando o que o outro deixou. Só que são caras que tem a consciência… O Van Gogh, era um cara completamente louco e você vê nas cartas dele, ele tinha certeza que tava certo, ele não tinha dúvida “Gente mas o cara era louco”. Era louco, mas ele tinha certeza! Ele tinha certeza do pro cesso. O Van Gogh foi procurar tinta! Foi na fábrica da tinta, para falar “oh, o amarelo que vocês fazem, não pega luz que eu quero vocês precisam de um amarelo mais vivo” Então assim, um cara desse, sabe tudo, o processo tá dentro da cabeça dele, por mais louco que seja, o processo tava ali, ele sabia. Então é legal, você compreender… sim! Acho que o segredo é tudo isso. Agora, como, como que você acha?

Pois é, eu também fico pensando nisso, e um dos meios para mim de ir percebendo as minhas coisas é o caderno. Diário de bordo. Você, eu lembro que anota todas as coisas, tudo o que acontece com a gravura. Eu fiquei impressionada o dia que eu vi.

E aquele caderno nem é mais o importante, o mais importante é o que eu anoto os resultados. É uma coisa que não faz tanto tempo assim que eu faço, mas eu percebi que se você anota o seu sentimento, o que você tá sentindo no momento, durante o processo, você tem uma visão mais pura.

O PROCESSO DE CRIAÇÃO É O LENTO CLAREAR DA TENDÊNCIA QUE, POR SUA VAGUEZA, ESTÁ ABERTA A ALTERAÇÕES (...) O PROCESSO MOS TRA-SE, ASSIM, COMO UM ATO PERMANENTE. NÃO É VINCULADO AO TEMPO DO RELÓGIO, NEM ESPAÇOS DETERMINADOS. A CRIAÇÃO É RESULTADO DE UM ESTADO DE TOTAL ADESÃO. O GRAVADOR EVANDRO CARLOS JARDIM (1993) METAFORIZA ESSE ENVOLVIMENTO QUANDO DIZ QUE CARREGA SEU ATELIÊ PARA ONDE VAI. salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artístiCa são paulo: intermeios, 2011. p. 39 e 40

COMO?

POR MAIS QUE SE DESMEMBREM ANATOMICA MENTE AS CAMADAS E AS ETAPAS RELATIVAS AOS PROCESSOS CRIADORES, ATRIBUINDO-LHES CATEGORIAS, FUNÇÕES, SIGNIFICADO, METÁFO RAS, NÃO SABEMOS AO CERTO COMO ACONTECE, O FLUXO DESENCADEADOR QUE CONECTA TODOS OS ELOS NUMA CORRENTE CRIATIVAMENTE CRIA DORA.

O QUE FAZ ALGUÉM CRIAR ALGUMA FORMA DE UMA MANEIRA SINGULAR, REPLETA DE INFOR MAÇÕES RUIDOSAS, INSTIGANTES E ESTRANHAS?

O QUE FAZ ALGUÉM VER NESTA FORMA A RESI DÊNCIA DA CRIATIVIDADE? E SOBRETUDO ISSO, ALÉM DO PORQUE, DO QUANDO E DO QUE, COMO ACONTECE O ATO CRIADOR? derdYK, edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo intermeios, 2012. p.79

(...) MEU PREZADO SENHOR, APENAS ME É POSSÍVEL DAR-LHE ESTE CONSELHO: MERGULHE EM SI PRÓPRIO E SONDE AS PROFUNDIDA DES DE ONDE JORRA SUA VIDA. SÓ DESTA MANEIRA ENCONTRARÁ RESPOSTA À PERGUNTA: “DEVO CRIAR?” DE TAL RESPOSTA RECO LHA O SOM SEM DESVIAR O SENTIDO. TALVEZ CHEGUE À CON CLUSÃO DE QUE A ARTE O CHAMA. NESTE CASO, ACEITE O SEU DESTINO E SIGA-O (...) NÃO LHE SERIA POSSÍVEL PERTURBAR MAIS VIOLENTAMENTE A SUA EVOLUÇÃO DO QUE DIRIGINDO O SEU OLHAR PARA FORA, DO QUE ESPERANDO DE FORA AS RESPOSTAS QUE APENAS O SEU SENTIMENTO MAIS SECRETO, NA HORA MAIS SILENCIOSA, PODERÁ TALVEZ PROPORCIONAR-LHE. RILKE, RAINER MARIA, CARTAS A UM JOVEM POETA. SÃO PAULO: HEMUS, 1967. P. 16 E 17

29 O rei

É! Você capta o momento, né?

O momento. Tanto que eu volto várias vezes nesses cadernos, para retomar algumas coi sas, e eu vejo que eu não concordo mais. “Eu não gostei disso aqui”, na época eu estava gostando mas hoje eu já não curto mais. Mas eu anoto durante, então assim, tô pintando aquele quadro ali, paro um pouquinho para tomar um café pego do caderno, e “ah o que eu to achando?” Ah.. to achando assim assim, tava querendo isso, mas não consegui assim… A Eunice que fala isso também. Uma vez ela passou para a gente um filme de um cara pintando, um pintor abstrato expressionista que jogava merda na tela, aqueles caras bem gestuais. No documentário, mostra ele em um barracão, uma coisa assim, aí ele vai lá, joga as coisas, meio que pintura de ação, ação, corpo, ele sem camisa, meio com umas vassou ras, jogando lata de tinta e tal. E aí fez aquela reboqueira toda, aí acabou. Terminou o filme, e ela falou assim “esse cara ele tem processo? o que vocês acham?” A gente era aluno ainda, ninguém entendia, todo mundo pensava, “ah esse cara é louco, está tendo surto”. “Mas nes se artista, existe um processo ou é uma coisa tipo, ah você deu uma vassoura para o maca co e ele também vai pintar?” Ninguém soube responder.

UMA MENTE EM AÇÃO MOSTRA REFLEXÕES DE TODA ESPÉ CIE. É O ARTISTA FALANDO COM ELE MESMO. SÃO DIÁLOGOS INTERNOS: DEVANEIOS DESEJANDO SE TORNAREM OPERANTES; IDEIAS SENDO ARMAZENADAS; OBRAS EM DESENVOLVIMEN TO; REFLEXÕES; DESEJOS DIALOGANDO (...)ESTAMOS, ASSIM, DIANTE DE OUTRA INSTÂNCIA COMUNICATIVA DO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO. ÉO DIÁLOGO DO ARTISTA COM ELE MESMO, AGINDO, NESSE INSTANTE, COMO O PRIMEIRO RECEPTOR DA OBRA.

SALLES, A. CECÍLIA. GESTO INACABADO PROCESSO DE CRIAÇÃO ARTÍSTICA. SÃO PAULO: INTER MEIOS, 2011. P.50

E ela falou assim “Tem, ele tem um proces so sim, está no filme”, aí ,“Pô, como assim, então passa o filme de novo”. Aí, passou o filme de novo, e ai quando tava terminan do o negócio ele se afasta um pouco, não tinha terminado ainda eu acho, mas ele se afastam tem uma mesa com as tintas, com as coisas, ele afasta, pega a caneca,um chá, um café, e começa a tomar.

A observação…

Ai ela falou assim, “oh, ele tá no processo agora, ele parou, tomada de posição, agia agia agia mas agora, pera aí, era é isso mesmo que eu queria ou era só uma reboqueira?” Ele tem processo porque ele raciocina, ele tira alguma coisa daquilo e recoloca. Foi na hora que ele pegou o café, largou a tinta, e foi olhar o quadro, ele entrou no processo. Ele ta reestabelecendo contato com o processo.

A CRIATIVIDADE, COMO A ENTENDEMOS, IMPLICA UMA FORÇA CRESCENTE; ELA SE REABASTECE NOS PRÓPRIOS PROCESSOS ATRAVÉS DOS QUAIS SE REALIZA OSTROWER, FAYGA. CRIATIVIDADE E PROCESSOS DE CRIAÇÃO.

PETRÓPOLIS: EDITORA VOZES, 1977. P.27
30 rei nu. Acervo Ivo Indiano, 2021

Então, eu lembro sempre disso, tem processo, tem, é contínuo? Não! É fragmen tado. É fragmentado, porque na hora que você tá pintando, você não pensa nisso, você não fica ali “aaah, acho que vou por um branco, acho que vou…” Como um músico de jazz improvisando, ele tem uma uma linha e vai nela. Às vezes sai bom, às vezes não sai tão bom, mas enfim, ele não tá contando as notas. “Ah, depois disso tem que ter isso.” Não, não, ele solta e deixa ir . Mas ele tem um momento que para, mesmo o músico, eles trocam, “agora você sola e deixa eu acompanhar, para eu me nutrir de novo das suas respostas. Então assim, diria que a única coisa mais clara que eu vejo, é um ir e vir, entre os fragmentos do fazer da ação, tem alguns fragmentos que são de análise, de você “Ah, era isso que eu queria, ou, “não, não era isso”, ou se não “esse pedacinho aqui, eu achei algu

ma coisa aqui.”Agora, eu acho que se o cara faz muito análise, se ele faz mui to isso, a chance do processo ficar mais claro, é maior. Então assim, o exercício, vai e volta, vai e volta, porque aí, envol ve técnica, envolve raciocínio, envolve tempo, tema, envolve uma série de outras demandas. E ainda, depois disso, tem o terceiro que seria o receptor. O receptor que é o cara que em algum momento vai receber isso e também vai dar feedback que pode, ou não, ser importante, porque às vezes não influencia em nada. Então, esse aqui, nem é o cara que determina, mas ele faz parte, você não pode ignorar também, “vou fazer só o que eu penso e não quero nem mostrar”, aí já passa um pouquinho, começa a se aproximar mui to da terapia, autoconhecimento, que é uma outra coisa, não é processo criativo.

O TECIDO DO PERCURSO CRIADOR É FEITO DE RELAÇÕES DE TENSÃO, ASSIM COMO SE FOSSE A MUSCULATURA. POLOS OPOSTOS DE NATURE ZAS DIVERSAS AGEM DIALETICAMENTE UM SOBRE O OUTRO, MAN TENDO O PROCESSO EM AÇÃO.

SALLES, A. CECÍLIA. GESTO INACA BADO PROCESSO DE CRIAÇÃO AR TÍSTICA. SÃO PAULO: INTERMEIOS, 2011. P67

31 Acervo Ivo Indiano, 2022

Eu acho que tem a necessidade, porque senão você não faria, porque se você não tem a de manda obrigatória, então a necessidade nem existiria. Eu acho que tem sim, tem...Mesmo que depois você perca, o cara começa por um motivo e acaba que termina e nem sabe por que fez aquilo. Eu vejo, naquele livro que con ta a história do Van Gogh, “Sede de Viver”, que foi o primeiro livro que escreveram sobre a vida dele, e segundo dizem, foi por conta do livro ser muito bom é que ele ficou conhecido. E aí, você vê que é uma busca, ele não queria ser pintor, ele queria resolver, então ele queria ser missionário, ser pastor, tentou se candidatar para a faculdade e não foi aceito, aí tentou fazer prova para ser seminarista, também não foi aceito, aí foi ser seminarista voluntário, para ver se conseguia exercitar esse negócio, não conseguiu por conta de saúde, de viver em lugares muito inóspitos e ficou muito doente. A família teve que pegar ele de volta. Tentou se casar, namorou uma mulher e a família não aceitou ele, ai você vê que talvez o processo dele tenha sido a negação. Levou tanta porta na cara, ele não queria ser artista, mas aca bou sendo, aí se falava, “pô, como um gênio desse não sabia o queria?” Não, não sabia, ficou errando, errando… até que um dia deu uma luzinha, eu acho que começou pegar uns livros, começou gostar daquilo, trabalhou numa galeria, o irmão dele arrumou um em prego de galerista. O cara tinha trinta anos, quando resolveu que queria ser artista, mas aí o cara, em cinco anos, resolve tudo. Faz tudo, pinta tudo. Então esses, são exceção, o cara tem uma linha desenhada na frente da cara dele, vai pintar 3, 4 quadros por dia. Aí envolve tudo, necessidade criativa, necessidade de comunicação, necessidade de observação, de sentir a natureza. Envolve um punhado de coisas, mas aí eu acho que é exceção. A maio ria fica na busca.

Mas você acha que para você, no seu processo, essa busca tem coisas claras ou, por exemplo, eu vendo de fora, essa coisa que você faz uma série, você pega um assunto e destrincha ele, como que você… escolhe esse assunto, esse tema?

Boa pergunta. Às vezes tem, às vezes é uma coisa mais raciocinada, pouquissímas vezes. Tem algumas séries, por exemplo, que eu lembro que eu planejei com começo, meio e fim completamente claro o processo.Que eu me lembro, é uma série que eu chamo de Adâmi ca, Projetos Andâmicos, algo assim...

É POSSÍVEL VIVER UMA VIDA SEM

ROMPER A ORDENAÇÃO VI GENTE, SEM PROVAR O GOSTO ESTRANHO DO NOVO, SEM SE DEIXAR AFETAR PELO MISTÉRIO DO OVO, SEM FRACASSAR NA COMPANHIA GESTANTE DE UMA IDEIA. SÃO MUITOS OS MODOS DE DESIMPLICAR-SE DA EXIGÊNCIA CRIADORA, FAZEN DO DE CONTA QUE SE VIVE PLENAMENTE, CUMPRINDO O ACORDO COM OS MODELOS DE VIDA PRÉ-FABRICADOS, COMO NAS CENAS DOS ANÚNCIOS COMERCIAIS. PANADES, JULIA GOMES. ELA, A CRIAÇÃO: TAMBÉM EM CLARICE LISPECTOR E LOUISE

AO LIDAR COM O TRANSITÓRIO, O OLHAR TEM DE SE ADAPTAR ÀS FORMAS PROVISÓ RIAS, AOS ENFRENTAMENTOS DE ERROS, ÀS CORREÇÕES E AOS AJUSTES. DE UMA MANEIRA BEM GERAL, PODERIA SE DIZER QUE O MOVIMENTO CRIATIVO É A CONVI VÊNCIA DE MUNDOS POSSÍVES (...) UM MO VIMENTO FEITO DE SENSAÇÕES, AÇÕES E PENSAMENTOS, SOFRENDO INTERVENÇÕES DO CONSCIENTE E DO INCONSCIENTE (...) DE UMA MANEIRA GERAL, PODE SER VISTO COMO UM MOVIMENTO FALÍVEL COM TENDÊNCIAS, SUSTENTADO PELA LÓGICA DA INCERTEZA. salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artístiCa são paulo: intermeios, 2011. p 34

32

É antigo, tem mais de dez anos essa série. Era uma coisa muito clara, inclusive até an dei procurando e não achei, eu tinha um tex to. Era uma história. Uma coisa mais ou me nos assim, era um interno de um sanatório, que ele, fazendo terapia com argila, começa a ver uns cacos cerâmicos e ele tem uma visão de que aquilo é um projeto de Adão. Alguns projetos que Deus fez mas que não deu certo, cacos de obras inacabadas divinas, que por algum motivo não deu certo, que por algum motivo não ficou bom e jogou no lixo, teve que fazer outro. Mas essa história assim, é uma das poucas. Então, eu fazia os cacos, fazia as esculturas, depois eu quebrava, algu mas eu deixava estragar mesmo e aí eu de senhava os cacos, documentava. Isso seria a história dele, ele começa a documentar para entender qual seria o projeto total. Ou seja, a partir do fragmento chegar no elemento, que não teria sido aceito. Então, é uma viagem, por ser um cara que tá no Sanatório ele pode ria ser um ser com “defeito”. Então, tem essa relação também, “Ah, sou maluco então tam bém nasci com defeito”, assim como o caco que foi jogado fora também porque não deu certo. Então esse é um dos poucos, sincera mente, eu não tenho tão claro assim.

Sim, mas acho que isso é muito legal também, coisas que a gente não entende sabe, que a gente faz pela vontade.

É… é muito bonito você ter um projeto, com começo, meio e fim, acho muito interessan te. Na época eu devo ter feito isso porque eu queria, mas hoje sinceramente eu faço isso posteriormente. Eu faço e depois eu agrupo , “a esse aqui tem tem a ver com aquele ali”...

Para mim é sempre depois...Mas você não acha que pelo menos o que eu sinto de você, você tem uma coisa mais metódica do que livre, no sentido da técnica, por exemplo, ou não?

Da técnica? É sempre uma busca, não é uma coisa tão firme, sempre uma busca. Mas, às vezes, é difícil explicar realmente essas coi sas, quando você tem um projeto é mais me tódico e até mais fácil porque você sabe, você tem alguma coisa,uma cesta de fruta, por exemplo, você pode até escolher outra fruta, mas estão todas no cesto.

O QUE CARACTERIZA OS PROCESSOS INTUITIVOS E OS TORNA EXPRESSIVOS É A QUALIDADE NOVA DA PERCEPÇÃO. É A MANEIRA PELA QUAL A INTUIÇÃO SE INTERLIGA COM OS PROCESSOS DE PERCEPÇÃO E NESSA INTERLIGAÇÃO REFORMULA OS DADOS CIR CUNSTANCIAIS DO MUNDO EXTERNO E INTERNO, A UM NOVO GRAU DE ESSENCIALIDADE ESTRUTURALL, DE DADOS CIRCUNSTANCIAIS TORNAM-SE DADOS SIGNIFICATIVOS.

ostroWer faYga Criatividade e proCessos de Criação petrópolis: editora vozes, 1977. p.57

33
34
Formigas. Acervo Ivo Indiano, 2021

Agora, quando você simplesmente produz , que é o ultimamente o que eu faço, nos últimos anos, o que eu percebo é que vai convergindo. Você vai… algumas coisas que você fazia ali, fazia lá, de repente, elas começam acontecer juntas, começam se aproximar…Hoje eu tava até conversando comigo mesmo, conversamos, tava vendo os quadros, e falei assim “gente, isso aqui da gravura!”. Eu estava fa zendo de branco e preto para ver e falei “olha que fotogravura!”, falei “é uma coisa que a gente não percebe, quando você tá pintando. Gente, é uma gravura!” Eu posso fazer isso aqui exatamente, mas não era de forma nenhuma planejado. Você descobre depois. Seila, é mais ou menos que nem o cara que joga tinta na tela. Você vai durante alguns momentos criando, criando, criando, rabiscando, rabiscando, de vez em quando, para. Para, olha, organiza, orienta. Isto, está perto disso e esse está mais perto daquilo. Então,isso sim, eu tenho esse processo criativo, às vezes até paro e falo, “o que tá dando certo o que está dando errado?” Quando você tá tentando fazer uma coisa, e olha para atrás, eu já tinha achado isso, já tinha anotado isso, “isso aqui ó, não faz isso aqui, isso não da certo…”

É, eu acho que eu quis dizer metódico, no sentido de tentar ter um controle sobre algumas coisas.

Não, isso daí, com certeza, nesse sentido de ser uma luta consigo mesmo, de você querer vencer a si mesmo . “Não, isso aqui não está tão bom, eu vou fazer melhor”.

AMBAS INTUIÇÃO E PERPECEPÇÃO, SÃO MODOS DE CONHECIMENTO, VIAS DE BUSCAR CERTAS ORDE NAÇÕES E CERTOS SIGNIFICADOS. MAS AO NOTAR AS COISAS, HÁ UM MODO DE CAPTAR QUE NEM SEMPRE VEM AO CONSCIENTE DE FORMA DIRETA. OCORRE NUMA ESPÉCIE DE INSTROSPECÇÃO QUE ULTRAPASSA OS NÍVEIS COMUNS DE PERCEPÇÃO, TANTO ASSIM QUE O INTUIR PODE DAR-SE EM NÍVEL CONSCIENTE OU SUBCONSCIENTE. OSTROWER, FAYGA. CRIATIVIDADE E PROCESSOS DE CRIAÇÃO. PETRÓPOLIS: EDITORA VOZES, 1977. P.57

Então, eu vou fazer de novo, não a mesma coisa mas eu vou voltar nesse tema, vou nessa composição vou voltar nesse processo, e isso eu faço mesmo, às vezes faço a gravura, faço uma vez, não, não é isso daqui, dá para corrigir, não, não dá, então novo!

Se dá para corrigir, tudo bem. Vamos tentar corrigir, também é legal corrigir, a gravura tem essa vertente da correção ser uma regravação de certa maneira, interessante também às vezes a correção da um caráter diferente do que você refazer.

Sim, você fala corrigir no sentido de mexer na placa, né?

De mexer, de gravar de novo, de gravar por cima, de raspar.. Eu acho interessante, o Jardim faz isso demais. Mas as vezes, dá preguiça também e você fala “Ah, faço isso aqui de novo”. Nesse caráter sim, de ter um processo metódico. Mas no geral não. Tanto que eu sou um péssimo júri para mim mesmo. Então, geral mente as coisas que eu acho que são boas, daqui um ano são exata mente as que eu detesto, tenho certeza que eu tava errado, então para que preocupar se você sabe que depois não vai gostar. Então, faço e deixo para ver depois. Então, hoje eu vejo, pouquíssimos momentos da vida eu tive consciência assim, “Não, puta merda esse aqui, você pegou, você pegou mesmo”. Foram pouquíssimas vezes, mas eu me lembro delas! Então, de vez em quando, quando você tá perdido no sentido de que “pô, não sei o que eu vou fazer, tô de saco cheio de fa zer isso aqui, vou parar de mexer nisso aqui, quero fazer outra coisa. Eu geralmente volto.

Olha só, aí geralmente você volta para que ponto assim?

35

vou voltar mesma faz de

36
Acervo Ivo Indiano, 2022

Para os pontos onde me perdi.

Tá vendo, é muito parte do seu processo!

É, talvez seja né… Porque assim, eu sei, não no momento, mas depois que passou algum tempo, alguns meses, anos de preferência, eu sou um bom jogador, porque eu olho e não é mais meu aquilo, não sinto mais nenhum apreço por aquilo. Então às vezes eu faço isso, de parar quando você começa a se repetir, quando você começa a fazer nada de bom, de novo. “Não, então para, para que você tá dando volta lá onde você se perdeu”. Perdeu não... Modo de dizer. Onde você se achou, naquele mo mento você se achou, volta e talvez você também não vai retomar.

São premissas…talvez você tenha razão, talvez seja parte do processo se você descobre algumas premissas, você orienta o seu processo, né?

37
Acervo Ivo Indiano, 2022
38
A maternidade. Acervo Ivo Indiano, 2019

JULIANA SAUDE

Como

as coisas acontecem né?

Não é à toa também que você tá me chamando para conversar, porque eu acho que de alguma maneira você identificou como o meu Processo de Criação também é fluido, não é? E que se mistura também com questões que me atravessam para além da sala de ensaio, como que esse lugar da sala de ensaio seja no Sapos e Afogados ou em qualquer outro espaço que eu esteja criando. E aliás, os Sapos e Afogados* é justamente esse lugar onde eu fui atravessada, onde encontrei com essa forma nova de organização, com uma nova lógica, uma nova forma de pensar, e aí, como artis ta era impossível seguir da mesma maneira que eu já vinha criando. Foi quase identificar que existe essa essa forma fluida de criar e que era possível fazer isso, e que isso, inclusive, pode passar a ser a grande força de uma criação teatral e que também tem como característica primal, o Teatro, e ele, é efêmero, ele acontece ali no tempo real, não se edita e se a gente vai repetir é o corpo que se coloca de novo ali, nesse lugar de buscar repetir fazer de novo igual e melhor, mas é ao vivo né, o instrumento do ator é esse que tem cheiro, ritmo, cor, sentimento em alguns casos tpm, e como que isso tudo interfere no que eu tô traduzindo ali em movimento, em um pensamento e em sentimento. É um instrumento também, que é isso...Pensa, sente e age. Então, o ator traduz ali, pode estar no texto clássi co, por exemplo, ele tá colocando o corpo dele para experimentar aquele tempo e aquele espaço, então tudo que atravessa esse corpo de alguma manei ra vai para o palco ainda que vestido ali por um personagem, por uma máscara, mas vai ter essa proteção. A gente brinca que o personagem prote ge a gente.O Chico Pelúcio que foi um dos direto res mais importantes, na minha vida mesmo, ele brinca de falar isso, que o personagem é esse que a gente espia a plateia, com o personagem na frente, protegendo a gente. Então, por mais que você cria assim essa outra textura, que pode ser um perso nagem ou na performance é um outro corpo, um corpo dilatado, não é o seu corpo cotidiano, mas de todo jeito é um corpo, é o seu corpo que tá ali. Então, é esse corpo que carrega uma história uma memória, um sentimento. E escolher o que quer que você vai colocar em cena, é um pouco também escolher, quais são as cores, qual é a tinta, qual a moldura, o que que você escolhe para compor aque le corpo que vai para cena. E aí, é uma escolha consciente, a partir de vários elementos que nem

* “ O Núcleo de Criação e Pesquisa Sapos e Afogados surgiu em 2002 a partir do trabalho da atriz Juliana Barreto nas oficinas de teatro nos Centros de Convi vência da Rede Pública de Saúde Mental de Belo Hori zonte. Os atores, usuários desse serviço, desenvolvem pesquisa na área teatral e audiovisual e desde 2004 atuam de maneira independente.”

Fonte: https://saposeafogados.wixsite.com/saposeafo gados

COMO PROCESSOS INTUITIVOS, OS PROCESSOS DE CRIAÇÃO INTERLIGAM-SE INTIMAMENTE COM O NOS SO SER SENSÍVEL. MESMO NO ÂMBITO CONCEITUAL OU INTELECTUAL, A CRIAÇÃO SE ARTICULA PRINCIPAL MENTE ATRAVÉS DA SENSIBILIDADE. INATA OU ATÉ MESMO INERENTE A CONSTITUIÇÃO DO HOMEM, A SENSIBILIDADE NÃO É PECULIAR SOMENTE A ARTISTAS OU ALGUNS POUCOS PRIVILEGIADOS. EM SI, ELA É PATRIMÔNIO DE TODOS OS SERES HUMANOS. AINDA QUE EM DIFERENTES GRAUS OU TALVEZ EM ÁREAS DIFERENTES, TODO SER HUMANO QUE NASCE, NASCE COM UM POTENCIAL DE SENSIBILIDADE OSTROWER, Fayga. Criatividade e Processos de criação. Petrópolis: Editora Vozes, 1977. P. 12

39 Acervo Juliana

você sabia que tinha,então, o fato de tá ali buscando criar daquela forma, te revela também muito de você que você não sabia. É a hora que a criação também te surpreende, para mim é a hora mais legal. Porque quando também você vai com tudo pronto, com tudo muito cheio, você descobre menos. Tem um ditado, um provérbio chinês, que fala isso, você não recebe o convite para tomar chá já indo para o outro com essa xícara cheia. Então, é experimentar esse lugar também do inesperado, do vazio, do que também te surpreende, né?

Ainda que você já tenha feito escolhas claras, precisamente assim, consciente, “Oh eu quero escolher isso, quero falar desse tema, eu quero falar assim, o corpo que vai se expressar, sei lá, com essa opção estética…” mas na intimidade disso, na intimidade desse fazer, você também se surpreende. E eu acredito na for ça da Arte assim. Se você vai com algo muito pronto, você não tem uma transformação em você e aí provavelmente essa transformação também não vai chegar lá em quem te vê. E eu tô falando, de uma forma de fazer a Arte, de pensar a Arte que dialoga com a cultura, que dialoga com formas de estar no mundo. Então, eu não falo de um lugar de construção que é comercial, que já vai para

UMA GRANDE PARTE

SENSIBILIDADE, A MAIOR PARTE TALVEZ, INCLUINDO AS SENSAÇÕES INTERNAS, PERMANECE VINCULADA AO INCONSCIENTE. A ELA PERTENCEM AS REAÇÕES INVOLUNTÁRIAS DO NOSSO ORGANISMO, BEM COMO

MENTAL DAS SENSAÇÕES.

FORMAR IMPORTA EM TRANSFOR MAR. TODO PROCESSO DE ELABORA ÇÃO E DESENVOLVIMENTO ABRANGE UM PROCESSO DINÂMICO DE TRANS FORMAÇÃO, EM QUE A MATÉRIA, QUE ORIENTA A AÇÃO CRIATIVA É TRANSFORMADA PELA MESMA AÇÃO (...) SEGUINDO A MATÉROA E SON DANDO-A QUANTO À “ESSÊNCIA DE SER”, O HOMEM IMPREGNOU-A COM A PRESENÇA DE SUA VIDA, COM A CARGA DE EMOÇÕES E DE SEUS CO NHECIMENTOS.

responder um padrão.

E aí, nesse sentido, que tem um fazer arte sanal, encontrar com a forma de pensar de um corpo que já experimentou a loucura, é muito rico, porque eles estão dizendo que es tão fora do sistema, fora de uma forma de se organizar culturalmente, e aí é isso é grande, né? Porque cria, a todo instante, milhões de possibilidades. Então, já tem 20 anos que eu trabalho com eles, cada vez que eu entro na sala é algo novo, então algo novo pode acontecer a cada instante. Por mais que já exista uma intimidade porque eu já conhe ço eles por onde cada um cada um vai, eles estão o tempo todo se permitindo, criar e ver o mundo, dialogar com esse mundo de um jeito diferente ou aberto demais.

Então, acho incrível, e aí, para trocar com esse grupo especificamente, eu entendo tam bém que se é uma troca a minha forma de pensar e de me organizar também opera ali.

DA TODAS AS FORMAS DE AUTORREGULA GEM. UMA OUTRA PARTE, PORÉM, TAMBÉM PARTICIPANDO DO SENSÓ RIO, CHEGA AO NOSSO CONSCIENTE. ELA CHEGA DE MODO ARTICULA DO, ISTO É, CHEGA DE FORMAS ORGANIZADAS. É A NOSSA PERCEPÇÃO. ABRANGE O SER INTELECTUAL, POIS A PERCEPÇÃO É A ELABORAÇÃO
ostroWer faYga. Criatividade e proCessos de Criação petrópolis editora vozes, 1977. p. 12
40 Juliana Saúde
ostroWer faYga. Criatividade e proCessos de Criação petró polis: editora vozes, 1977. p. 51

Quando eu falo que eu aprendo com o diá logo com a loucura, e que eu aprendo com eles esse lugar do ser louco, louca é me permitir também ter um devir na loucu ra, é estar ali, nesse ritmo nesse fluxo que é diferente do meu. Algumas pessoas não entendem ou até acham que eu tô só indo nesse ritmo que não é meu. Mas, tem uma hora também de parar, de refletir, de orga nizar, de trazer também para minha lógi ca, de fazer com que a minha lógica opere ali, porque o lugar da direção nos Sapos e Afogados não se dilui. Então, existe esse lugar da direção, exis te esse lugar da minha forma e da minha lógica também, isso não significa, por exemplo, tirar autonomia nem a liberdade de criação de cada um deles. Eu fico pen sando também, comecei falando do meu processo de criação para além dos Sapos assim, e de tudo que afeta o meu corpo…

NA FORMAÇÃO ARTÍSTICA É MUITO IMPORTANTE A POSSIBILIDADE DE CONVIVER, DE ESTAR INSTA LADO NA AURA DE UM ARTISTA (...) EXISTE TODO UM MECANISMO QUE NÃO TEM DISCURSO QUE EXPLIQUE. É UMA COISA ACIMA. É UMA COISA DA ALMA HUMANA. É ESTAR INSTALADO NUM SITUAÇÃO, NUMA ENERGIA ESPECÍFICA QUE AGE SOBRE O MUNDO E DE UMA CERTA MANEIRA.

TUNEU, TARSILA E OUTROS MESTRES: O APRENDIZADO EM DA ARTE COMO UM RITO DE INICIAÇÃO. SÃO PAULO: PLEXUS EDITORA, 1998. P. 58

Fico lembrando…tem uma bailarina, que vem para aqui para o Brasil, ela é do Japão, a gente acabou ficando muito amiga, e apesar da gente saber que a dificuldade agora de se encon trar é grande, ela tá do outro lado do planeta, o mundo virtual faz com que a gente esteja de alguma maneira co nectado. Eu não falo japonês, ela não fala português e a gente ficou muito

41 Acervo Juliana Saúde

muito amigas a partir da criação, do mo vimento. Ela se chama Heidi Durning. E a Heidi falava assim que a dança dela aqui no Brasil é diferente, porque de manhã ela come mamão papaia. Ela fala assim, “lá é mui to caro o mamão, aqui a gente pode comer e como que isso afeta minha dança porque quando eu saio para me apresentar a noite no teatro, minha noite de sono anterior vai fazer essa apresentação ser de um jeito…” Ou seja, você leva de alguma maneira isso para a cena também, ou pelo menos isso tá ali no processo interno, não necessariamente o público vai ter acesso a isso, mas o instrumento de trabalho da gente quando você dança, quando você faz Teatro não é dissociado. Então, tem até os limites também do que é que a gente leva, do que que é que a gente dis tancia, o que a gente escolhe colocar em cena também, ainda que seja, a partir de uma me mória ou de alguma coisa muito íntima sua, quando você coloca aquilo ali em cena, para o outro ver, aquilo já está deslocado, já existe um distanciamento no tempo e no espaço, já não é mais você. Não é no momento ali que eu vou fazer uma catarse, ou então, contar um caso da minha vida para o outro. Se eu tô no espa ço cênico ou eu faço daquilo ali lugar de cria ção de obra de arte, eu posso até levar algo que é íntimo meu ali, mas ele é transformado, ele vai com outra função, ele vai por um motivo. É diferente você falar na sua análise,não é mesma coisa, mas é possível, eu acho que é possível, acho que é necessário. Na minha forma de pensar, Arte não se dissocia, não é um corpo mecânico, não é um corpo que tá aí seguindo um padrão estético, pelo contrário, é um corpo poroso e porque é um corpo poroso ele tá atravessado pelas questões da Cultura pelo que você acredita, pela sua espiritualidade, pela sua maneira de se expressar, então eu acredito muito nisso. Que bom tá aqui con versando com você, porque eu tô falando um monte de coisa que que às vezes a gente pensa e não organiza.

Pois é! É exatamente isso que que eu gosto, desse lugar assim do processo de olhar para ele, porque a gente não sabe muita coisa...

Isso! acaba que o que eu tava explicando tá acontecendo aqui também, na hora que a gente vai falando e vai organizando sobre o sobre o que a gente já faz, assim, né?

(...) ao reCriar as formas em nossa perCepção, nós as modifiCamos, sub jetivamente, Com o nosso enfoQue vivenCial, projetando nossas experi ênCias e nossos valores para époCas e mentalidades bem diferentes das nossas entretanto, Com todas as distorções inevitáveis, ainda nos resta um núCleo, áreas Centrais de signifiCado onde na matéria formada vislumbra se a figura de um homem Que responde - ele fala sobre si sobre sua vida e sobre seus valores de viver ostroWer faYga. Criatividade e proCessos de Criação petróp olis: editora vozes, 1977. p. 143

A EXPERIÊNCIA DA CRIAÇÃO TRITURA SENSAÇÕES, RUMINA EMOÇÕES E IMPRES SÕES DIARIAMENTE VIVIDAS NOS DEVOL VE UMA PERCEPÇÃO CARNAL QUASE QUE ABSTRATA DE ESTAR NO TEMPO E NO ESPAÇO, DE SER O TEMPO E O ESPAÇO, DA FAZER UM TEMPO E UM ESPAÇO. derdYK, edith linha de horizonte: por uma poétiCa do ato Criador são paulo: intermeios, 2012. p.27

42

Acho que depois da pandemia de tudo que eu atravessei, eu vivi uma pandemia dentro da pandemia, eu tô no tempo agora que é quase que revisitar todos os lugares onde eu já criei. E aí, olhar para os 20 anos dos Sapos e Afo gados, é olhar para cada uma dessas coisas e tentar ver o que que a gente tem, o que que a gente fez, ou o que que a gente vai parti lhar e dividir com o outro. Então tá sendo também resgatar isso, revisitar o que a gente fez, olhar para produção, e aí eu tô tendo que não só olhar para a produção dos Sapos, mas para minha a produção como artista, acho que tem a ver também com fazer 46 anos, que é assim “deixa eu ver o que eu fiz aqui...” Fico vendo alguns colegas, por exemplo, que eu acho incrível, as pessoas que pensam, que elaboram antes para depois levar para a cena.

O meu fluxo não é assim, eu sempre tive uma urgência muito grande, uma voracidade, algo que me queima mesmo. Sabe olha, “tem que ser agora,tem que ser como eu posso, tem que ser com dinheiro ou sem dinheiro, tem que ser com material que eu tenho porque, tem uma coisa que eu não abro mão, que esse é esse meu lugar do Desejo, da minha vontade de fazer aquele negócio, sabe? Teve uma ga lera que já passou, por exemplo, pelos Sapos e não entendeu nada. “Lá vem a avalanche criativa da Juliana”, como se isso fosse falta de planejamento, bobo de quem não enten deu tá super bem planejado. É uma avalan che, tem a força de uma avalanche, tem, mas eu sei direitinho por onde essas pedras tem que rolar.

Então, é uma avalanche muito bem arquitetada, é uma avalanche com engenharia minuciosa. É claro que é tem hora, que depois eu falo assim, “Espera aí, deixa eu ver o que eu fiz, deixa eu ver por onde é que a gente pas sou”.

É esse cálculo do depois, acho que toda obra você vai ver depois qual foi efeito que teve. Mas esse cálculo de onde eu quero chegar, onde eu quero levar aquilo ali, do ponto de vista da criação, eu tenho. Então, existe um roteiro, mas que vem com esse gás assim, eu falo que a gente faz Teatro, de todos os jeitos, de todas as formas. Você só não faz sem de sejo, não tem jeito, tem que ser alguma coisa que passa pelo seu desejo mais profundo, do que você quer dizer e de como dizer, onde dizer, vai vir depois, mas, eu quero falar sobre isso.

E pode ser uma coisa que pareça banal, por

UMA OBRA DE ARTE DE ARTE É BOA QUANDO NASCEU POR NECESSIDADE.

MUITOS ARTISTAS DESCREVEM A CRIAÇÃO COMO UM PERCURSO DO CAOS AO COSMOS. UM ACÚMULO DE IDEIAS, PLANOS E POSSIBILIDADES QUE VÃO SENDO SELECIONADOS E COMBINADOS. AS COMBINAÇÕES SÃO, POR SUA VEZ, TESTADAS E ASSIM OPÇÕES SÃO FEITAS E UM OBJETO COM ORGANIZAÇÃO PRÓPRIA VAI SURGIN DO. O OBJETO ARTÍSTICO É CONSTRUÍDO DESTE ANSEIO POR UMA FORMA DE ORGANIZAÇÃO.

rilKe rainer maria, Cartas a um jovem poeta são paulo hemus 1967. p. 16
salles
43
a. CeCília gesto inaCabado proCesso de Criação artístiCa são paulo: intermeios, 2011. p. 41
44
Acervo Juliana Saúde

exemplo, falar sobre história do sorvete, pode parecer algo pueril. Nossa mas ali, eu tava falando de coisas muito profundas, de coisas que atravessavam, com muita força, sabe? Quem tem a ver com o tempo, que tem a ver com o encontro amoroso, que tem a ver com com as coisas que a gente, por exemplo, internamente congela ou se derrete, e o sorvete era só um pretexto para colocar aquilo estetica mente no palco. Eu tô falando do espetáculo, “Frog Sound”, porque é um espetáculo que eu não construí o roteiro junto com os meninos, eu criei um roteiro antes sozinha. E foi muito legal, por exemplo, quando eu levei isso tudo para a sala e falei qual que era o meu desejo em relação ao roteiro, e aí, eu lembro que uma parceira, uma colega que estava junto falou “Você pirou, isso não vai acontecer, você tá doida”. Depois o ensaio aberto foi na rua, e eu lembro dela chorando falando, “nossa aconteceu, é bonito demais”. Então tem isso assim né, de ter essas ideias…

De ter isso que é forte, que consome e de topar de fazer no escuro. E aí, esse lugar do jo, quando eu falo disso, é um pouco isso assim, quando a gente deseja algo, quando te aposta no desejo da gente, é um salto no escuro. A gente calcula algumas coisas…Mas, como vai ser esse salto, a gente não sabe. É… é isso. É uma relação de amor mesmo. ge Mautner, canta isso, porque o amor, é sempre um um salto no escuro então, sem não tem graça nenhuma, se você já sabe onde você vai chegar, sabe? Se você já sabe, graça de saber o fim da estrada, quando se parte rumo ao nada.

Como é que é? Quem canta isso? É o Mosca, o Mosca canta isso, “en tão me diz, qual é a graça de saber o fim da estrada, quando se parte rumo ao nada.”É esse lugar do vazio, do desconhecido. Mas eu quero ir para, eu quero isso aqui. Eu já citei essas duas pessoas, eu vou citar um ator dos Sapos e Afogados, o Edmundo fala isso e é uma riqueza: “Esperar pelo inesperado”, para né? Se a vida não tiver isso, acabou. Você, já sabe o script, você já sabe o final, você já sabe…E às vezes a gente até já sabe qual é o final, mas como é que a gente vai chegar nisso… O que que vai acontecer, como e quando, vai acontecer? De que forma a gente vai fazer acontecer na cena, que eu falo assim, que eu digo.

Eu me identifico muito com essa coisa do não saber, dessa coisa do desejo. Sempre que eu vou falar do meu trabalho, eu falo muito disso, que as coisas vem de um lugar que não sei qual é esse lugar, mas eu sei que tá muito no dentro…

Então... isso é também, conceber e criar a partir de uma perspecti va psicanalítica, onde você se pergunta pelo seu desejo, onde você se compromete e se responsabiliza pelo seu ato a partir do que você de seja. Então existe um cálculo, mas existe também essa dinâmica, que não se calcula com essa exatidão porque faz parte da vida também, faz parte disso que é o real, então, se não for assim para mim não tem sentido... Eu acho inclusive que é falso, assim é como eu vejo. E aí, nesse sentido o ator para mim, se a gente for pegar a teoria, a fórmula de conceber teatralmente do Grotowski, quando ele fala na verdade do ator, ou, quando ele vai falar desse lugar da cena, a gente a gente não tá mentindo.

TEMOS PENSADO A APRENDIZAGEM EM SEU ENTRELAÇAMENTO COM A ARTE NO SEN TIDO DE AMBAS CONSTRUÍREM FUROS NA NORMALIDADE, A PARTIR DE UM QUESTIO NAMENTO DA REALIDADE QUE SE DÁ NA EXPERIÊNCIA, DO ATO DE NÃO TOMAR AS COISAS COMO PRONTAS, DE PERCEBÊ-LAS EM CONSTANTE CONSTRUÇÃO E DESCONS TRUÇÃO. A ARTE TAMBÉM FURA A NORMA LIDADE, NO SENTIDO DE GERAR UM ENGA JAMENTO VIVO QUE CRIA DESLOCAMENTOS E NOS PROVOCA A FAZER DE OUTRO MODO, NOS LEVA AO ENCONTRO DAQUILO QUE NOS MOBILIZA. A VULNERABILIDADE AO OUTRO, AO VAZIO, AO DESCONFORTO, AO JOGO DAS IMPREVISIBILIDADES, É UMA POSSIBILIDADE DE RESISTÊNCIA À CONS TRUÇÃO DE CONSENSOS E AOS FAZER QUE REPRODUZ O PREEXISTENTE (SEM SURPRE SAS, DÚVIDAS OU INDAGAÇÕES), QUE NÃO DEIXA RASTROS DA EXPERIÊNCIA PARA A CONSTRUÇÃO DE OUTRAS REALIDADES.

jujuba, 2021. p.21

barbieri stela território da invenção ateliê em movimento são paulo:
45

do desequando a gencoisas…Mas, mesmo. O Jorsem isso, sabe, qual é a

46
Acervo Juliana Saúde

É claro que, existe essa convenção ali que é algo ficcional, que o público está assistin do. Mas, esse público, ele é testemunha de algo que verdadeiramente está acontecendo naquele naquela coxa, naquele braço,naquela cabeça, sabe? Então a busca é pela verdade desse ator. E aí, isso não precisa vir com uma parafernália de figurino, de cenários, de iluminação, isso pode ser, sem isso, se tiver, se for uma escolha estética, ok! Mas não é isso que vai fazer o espetáculo acontecer. Você só não faz o espetáculo acontecer sem alguém para testemunhar e sem alguém, que se proponha a se transformar na frente do outro. Sem isso não tem jeito, sem essas duas coisas, não rola. O máximo que alguém pode falar assim, “ah eu fiz uma cena maravilhosa hoje lá na frente do espelho do ba nheiro da minha casa”. Ou você tava ensaiando, ou você tava delirando ou as duas coi sas, no caso dos Sapos e Afogados. Mas percebe, é outra coisa. Não dá para abrir mão desse lugar, desse corpo que experimenta e se propõe ali a transformar, a viver algo na frente de um outro que topa assistir, ser testemunha disso. Que topa ter o corpo afetado, pelo que tá vendo, que tá ouvindo. Acho que é isso.

47 Acervo Juliana

O ATO CRIADOR MOSTRA-SE COMO UMA PROFUNDA INVESTIGAÇÃO DA VERDADE DO ARTISTA, QUE NÃO ENCONTRA PAZ, COMO CONFESSA LASAR SEGALL (1984), POIS HÁ UMA PROFUNDA VERDADE QUE O INQUIETA INTERIORMENTE E QUE ELE PROCURA EXPRESSAR INTEGRALMENTE.

salles a. CeCília gesto inaCabado proCesso
Criação artístiCa são paulo: intermeios, 2011. p. 140 48 Juliana Saúde
de

6."QUAIS AS ENTRELINHAS EM NOSSOS GESTOS?”

inventamos apoiados na terra Cheia de mistérios Que germinam a partir da umida de Que vem dos Céus e do seu próprio inte rior”.

a Criação e a imaginação fizeram morada na minha Casa desde muito Cedo eu podia inventar tudo Que eu Quisesse a pai me Contava as histórias do pássaro Que falava e Que andava em Cima da água da represa, naQuela Cidadezinha inventor do mundo, me ensinou desde muito peQuenininha a viver e andar pelo abstrato. desde esse tempo remoto

49
barbieri stela território da invenção ateliê em movimento são paulo: jujuba, 2021. p.121.

partir de um ínfimo grão de areia meu idadezinha próxima da nossa. o meu pai, o maior ando de mãos dadas Com a invenção.

A inventividade, para mim, está no dia a dia. Nos modos de pensar, de senhar, escrever, viver. Quando estou me dedicando a alguma imagem ou processo de criação, começo a inven tar… Uma palavra que escrevo, me leva imediatamente a outra que me leva a inventar um conceito, uma imagem, uma ação.

de repente, em uma dia QualQuer andando de ônibus pela Cida de o Que penso é interrompido por uma figura, a vejo da janela e perCorre a rua de um modo partiCular, ao mesmo tempo ouço uma Conversa de uma mulher ao telefone Com seu pai Que me Chama atenção, tento anotar tudo no meu Caderno ainda perCorrendo pela Cidade, nas viagens demoradas, abro então o livro Que estou lendo naQuele mês e me deparo Com possibilida de de imagens infinitas e tudo isso pareCe dialogar Com o Que tenho pensado em meu proCesso de Criação. aQuele livro era um oráCulo? sonhei essa noite Que pude ir para minha Casa de infânCia, eu Conseguia ver tudo Como era antes e ainda Conse guia ir andando para o Centro de belo horizonte lembrei de voCê hoje bisa, do Cheiro do Chá matte no momento Que pisava dentro do apartamento. “alô? ahhh, oi mãe (...) sim, nossa tem ventando muito mesmo (...) verdade mãe, e ainda nem é agosto.”

Há tantas coisas que acontecem no meu pensamento…

O meu processo de criação artística não acontece separado da percepção interior, reflexiva. Somos levados o tempo todo ao estado de experiências internas.

As imagens, ideias, pensamentos, acontecem nos momentos mais inu sitados. Seja pelo o cotidiano e suas sutilezas, pelas divagações do pen samento, pela literatura e suas cons tantes provocações epifânicas. Pre ciso estar atenta sempre aos meus pré pensamentos de imagem. Tento capturar meu fluxo de consciência em meus cadernos.

Todo o cotidiano, acordado, na vigí lia ou sonhado, vira parte do meu diário de bordo. Nele sempre há os meus inícios de pensamentos que de pois os tranformo em imagens. Tudo é um fio a ser puxado para delinear a invenção.

Invento palavras, invento histórias, invento imagens...

Eu não pretendo com esse tra balho de conclusão de curso res ponder a nenhuma pergunta, na verdade. O meu desejo está mais de mãos dadas com o inacabado. Esse é um material em aberto em expansão e inacabado. Considero-o um convite: à observação, à con vivência, às rasuras, anotações, ao rabisco, ao erro, a imaginação. Um convite à invenção.

50

REFERENCIAS

ALVES, D. S. Formações (C)A/R/Tográficas: experiência em processo na arte, na educação e na pesquisa para a formação de professores artistas. 2019. 155 f. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Contemporânea) - Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2019.

ALBANO, A. A. Histórias de iniciação na arte. Em Aberto, 21, n. 77, 2007.

ALBANA, A. A. Tuneu, Tarsila e outros mestres: o aprendizado em da arte como um rito de iniciação. São Paulo: Plexus Editora, 1998.

BARBIERI, S. Território da invenção ateliê em movimento. São Paulo: Jujuba, 2021.

BARROS F. d. et al. Evandro Carlos Jardim Arte trabalho e ideal. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2019.

DERDYK, E. Linha de horizonte: por uma poética do ato criador. São Paulo: Escuta, 2001.

GIANINI, M. Processos de criação como prática pedagógica. Anais ABRACE, 9, n. 1, 2008.

LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.

LISPECTOR, C. Água viva. Rio de Janeiro, Rocco, 1998

OLIVEIRA, M. C. D. d. A gravura e o processo de criação da imagem: um olhar no espelho. 1996. Tese de Doutorado. Dissertação de Mestrado). Universidade Estadual de Campinas-Facul dade de Educação.

OSTROWER, F. Criatividade e processos de criação, Petrópolis, Vozes, 2019

PANADES, J. G. Ela, a criação: também em Clarice Lispector e Louise Bourgeois. 2017.

RILKE, R.M. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: HEMUS, 1967.

SALLES, C. A. ; CARDOSO. D. R. Crítica genética em expansão. Ciência e cultura, v. 59, n. 1, p. 44-47, 2007.

SALLES, A. C. Gesto Inacabado processo de criação artística. São Paulo: Intermeios, 2011.

51

Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.