Órgão oficial da Associação Brasileira de Imprensa
Jornal da ABI
325 J ANEIRO 2008
ESPECIAL
Editorial
O saber, na prática DEPOIS DE DEDICAR EDIÇÕES ESPECIAIS AOS 170 anos da caricatura no Brasil e ao trabalho dos repórteres-fotográficos, ambas festejadas por quantos a elas tiveram acesso, o Jornal da ABI ocupase agora de outro aspecto destacado do jornalismo do País, mostrando o fecundo desempenho de atuante elenco de profissionais responsáveis pelo respeito e a credibilidade que os veículos impressos adquiriram entre nós. Os leitores do Jornal da ABI já têm sido brindados em edições sucessivas da publicação da Casa por depoimentos que há muitas edições vêm mostrando o dia-a-dia da árdua missão de informar. Ao divulgar um par de depoimentos em cada uma de suas edições, o Jornal da ABI busca, de um lado, prestar homenagem a esses profissionais, que têm de ser exaltados pela contribuição que oferecem à conscientização do conjunto da cidadania. De outro lado, promove a ABI a difusão de informações, contidas nesses relatos, que constituem um manancial de ensinamentos psra o aperfeiçoamento até dos profissionais mais calejados e sobretudo para a gente jovem que aspira a se integrar às redações dos veículos impressos ou eletrônicos. Está aqui, agora, uma coletânea do saber de experiência feito de que falava o poeta Luís de Camões. Ao contrário das edições precedentes, em que a limitação do espaço e a agilidade jornalística im-
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puseram, como sempre impõem, a obrigação de variedade dos textos a serem oferecidos aos leitores, esta edição abriga numerosos relatos sobre a experiência do exercício profissional no multifacetado campo de interesse dos órgãos de comunicação. Estamos diante de repórteres, redatores e editores que atuaram na reportagem política e na cobertura policial; na observação dos costumes e no acompanhamento da vida cultural; na produção de reportagens extensas e na elaboração de notícias breves mas de importância para o meio social; que editaram o noticiário trivial do cotidiano e os eventos de duradoura significação histórica; que promoveram como resposta ao seu trabalho a felicidade e o infortúnio, o prazer e a dor, com freqüência resistindo à tentação de se render à emoção daquilo que transmitem ao público. Gente — esses jornalistas — que aplicou por dever de ofício e também por instinto a lição de um mestre da palavra impressa, o jornalista Mário Filho,. cujo centenário se celebra este ano, assim como o da ABI, e que com justas razões empresta seu nome ao Estádio do Maracanã, o maior templo de emoções do País. Mário Filho, que viveu intensamente o jornalismo desde muito jovem até seu passamento, em setembro de 1966, dizia que jornal tem de fazer rir e fazer chorar. É essa gente que povoa esta edição.
Nesta Edição Élcio Braga
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DOCUMENTO HISTÓRICO Francisco de Assis Barbosa entrevista Mário de Andrade
Arthur Dapieve
Artur Xexéo
Clóvis Rossi
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Fernando Molica
Franklin Martins
15 20 24
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Maria Lùcia Amaral
27
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Ricardo Kotscho
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DIRETORIA – MANDATO 2007/2010 Presidente: Maurício Azêdo Vice-Presidente: Audálio Dantas Diretor Administrativo: Estanislau Alves de Oliveira Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretor de Assistência Social: Paulo Jerônimo de Sousa (Pajê) Diretor de Jornalismo: Benício Medeiros CONSELHO CONSULTIVO Chico Caruso, Ferreira Gullar, José Aparecido de Oliveira (in memoriam), Miro Teixeira, Teixeira Heizer, Ziraldo e Zuenir Ventura. CONSELHO FISCAL Luiz Carlos de Oliveira Chesther, Presidente; Argemiro Lopes do Nascimento, Secretário; Arthur Auto Nery Cabral, Geraldo Pereira dos Santos, Jorge Saldanha e Manolo Epelbaum. CONSELHO DELIBERATIVO (2007-2008) Presidente: Fernando Barbosa Lima 1º Secretário: Lênin Novaes 2º Secretário: Zilmar Borges Basílio Conselheiros efetivos (2005-2008) Alberto Dines, Amicucci Gallo, Ana Maria Costábile, Araquém Moura Rouliex, Arthur José Poerner, Audálio Dantas, Carlos Arthur Pitombeira, Conrado Pereira (in memoriam), Ely Moreira, Fernando Barbosa Lima, Joseti Marques, Mário Barata (in memorian), Maurício Azêdo, Milton Coelho da Graça e Ricardo Kotscho. Conselheiros efetivos (2006-2009) Antônio Roberto Salgado da Cunha, Arnaldo César Ricci Jacob, Arthur Cantalice, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Augusto Xisto da Cunha, Domingos Meirelles, Fernando Segismundo, Glória Suely Alvarez Campos, Heloneida Studart (in memorian), Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho e Pery de Araújo Cotta. Conselheiros efetivos (2007-2010) Artur da Távola, Carlos Rodrigues, Estanislau Alves de Oliveira, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri, Jesus Chediak, José Gomes Talarico, José Rezende Neto, Marcelo Tognozzi, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Salles, Paulo Jerônimo de Sousa, Sérgio Cabral e Terezinha Santos. Conselheiros suplentes (2005-2008) Anísio Félix dos Santos (in memoriam), Edgard Catoira, Francisco Paula Freitas, Geraldo Lopes (in memoriam), Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Amaral Argolo, José Pereira da Silva, Lêda Acquarone, Manolo Epelbaum, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Pedro do Coutto, Sidney Rezende, Sílvio Paixão e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros suplentes (2006-2009) Antônio Avellar, Antônio Calegari, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Antônio Henrique Lago, Carlos Eduard Rzezak Ulup, Estanislau Alves de Oliveira, Hildeberto Lopes Aleluia, Jorge Freitas, Luiz Carlos Bittencourt, Marco Aurélio Barrandon Guimarães (in memoriam), Marcus Miranda, Mauro dos Santos Viana, Oséas de Carvalho, Rogério Marques Gomes e Yeda Octaviano de Souza. Conselheiros suplentes (2007-2010) Adalberto Diniz, André Moreau Louzeiro, Arcírio Gouvêa Neto, Benício Medeiros, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Luiz Sérgio Caldieri, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Ely Moreira, Presidente; Carlos di Paola, Jarbas Domingos Vaz, Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Maurílio Cândido Ferreira. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Artur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Audálio Dantas, Presidente; Arthur Cantalice, Secretário; Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Germando Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, Lucy Mary Carneiro, Maria Cecília Ribas Carneiro, Mário Augusto Jakobskind, Martha Arruda de Paiva, Orpheu Santos Salles, Wilson de Carvalho, Wilson S. J. Magalhães e Yaci Nunes.
Jornal da ABI Rua Araújo Porto Alegre, 71, 7º andar Telefone: (21) 2220-3222/2282-1292 Cep: 20.030-012 Rio de Janeiro - RJ (jornal@abi.org.br) Editores: Francisco Ucha, Maurício Azêdo e Benício Medeiros Colaboração: Marcos Stefano Projeto gráfico, diagramação e editoração eletrônica: Francisco Ucha Apoio à produção editorial: Ana Paula Aguiar, Fernando Luiz Baptista Martins, Guilherme Povill Vianna, José Ubiratan Solino, Maria Ilka Azêdo e Solange Noronha. Diretor responsável: Maurício Azêdo Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1808, Osasco, SP (11) 3693-8027 As reportagens e artigos assinados não refletem necessariamente a opinião do Jornal da ABI.
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FRANCISCO DE ASSIS BARBOSA ENTREVISTA MÁRIO DE ANDRADE
“Os intelectuais puros venderam-se aos donos da vida” Uma célebre entrevista feita pelo biógrafo de Lima Barreto com a poeta de Paulicéia desvairada.
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o prefácio do livro de Otávio de Freitas Junior¹, Mário de Andrade escreveu umas coisas muito sérias num tom quase patético. Coisas que precisam ser repisadas. “Eu afirmo (estou citando o grande escritor paulista) que a mocidade de hoje está de posse duma verdade. Nós todos, mas todos, intelectuais e dirigentes, sabemos que a mocidade que conta agora de vinte a trinta anos está de posse de uma só verdade. Os que dentre esses moços desconhecem essa verdade, é porque fingem desconhecê-la. E há também muitos, os... os outros. São os sujos, que se venderam, colocando-se da banda da contraverdade. Porém eles mesmos, eles tanto como os dignos, gritam pelos olhos, pelas mãos, pelos poros, a existência dessa verdade. E os moços estão querendo exclamar a verdade que vai chegar, mas não podem. A mocidade está engasgada e regouga surdamente. Mas não é por ignorância, por inadvertência ou displicência que a mocidade engasgou. Engasgaram a mocidade”.
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ta nos homens da sua geração, põe sua Tudo isso, vamos e venhamos, é de Andrade, iniciativa da Livraria Marfé nos moços. Penitencia-se. Talvez grave, muito grave mesmo. As palatins. Não foi sem razão que o chamapor julgar ter realizado muito pouco vras são exatas, espantosamente exaram de “papa do modernismo”. Coné que confia tanto nos moços. tas. A mocidade quer falar e não pode. cordo que o apelido é bombástico mas Ah, os moços engasgados , que “reTem um osso na garganta. E é por isso não há duvida que indica o papel do esgougam”. que Mario de Andrade empregou tão critor: a sua linha de conduta, a sua No entanto, Mário de Andrade já bem o feio e desusado verbo “regouação prodigiosa, a sua fé na literatura, fez muito. É imensa a significação da gar”. Só um verbo desses para definir o seu valor moral. Por todos esses mosua obra literária, abrindo caminhos o estado de espírito da mocidade. Da tivos Mário deve ser considerado a fina poesia, no conto, no romance, na mocidade só? Não. De jovens, madugura mais importante dentre os agitacrítica, no folclore, na música. Princiros e velhos. Todos “regougam”. Não dores do movimento. Mas não é só por palmente nas questões do estilo e da há nada a fazer senão “regougar”. Oh, isto. Hoje, decorridos mais de vinte forma de expressão literária, quero como é bom “regougar”! anos depois da celebérrima Semana da dizer na técnica de escrever. Mário de No setor literário, acontece tamArte Moderna, vemos que foi a sua Andrade é bem um mestre das novas bém uma outra coisa, igualmente esobra que encontrou maiores ressonângerações. Mas afinal esta pantosa. Os que não “reintrodução está se tornangougam” xingam-se entre do longa demais. E a ensi, gastam energia bobatrevista? Vamos a ela. mente. E é com infinita tristeza que a gente vê o A entrevista nome limpo de um granEmbora com os sinais de poeta agredido numa de longa enfermidade aindiscussão estéril e besta, da muito visíveis no rosto que faz lembrar a famosa pálido, Mário de Andrade “guerra do alecrim e da me pareceu remoçado mangerona”. Calma, miquando uma dessas manha gente. Pra que discunhas o procurei na sua tir futebol e cinema silencasa da Rua Lopes Chacioso, num momento desves, no bairro da Barra tes? Essas discussõezinhas Funda, em São Paulo. É só têm servido para auuma casa simples, sem mentar a confusão, que luxo, Mas está cheia de nos levou a conjugar, com quadros, de livros, de muum jeito esquisito e às vesicas. Lhote, Picasso, Porzes tragicômico, o infame tinari, Segall. Sem falar na verbo “regougar”. “Regoucoleção de desenhos e graguemos”, pois, com devuras, que sobem a oitocência. centos mais ou menos. E Encompridei esta inos livros? Há de tudo. A trodução para avisar que parte principal é sobre tomei uma entrevista arte e literatura. As músicom Mário de Andrade, cas estão em baixo, numa que nada tem a ver com sala pequena, que tem o as guerrinhas literárias, que se travam presenteA arte de Anita Malfatti, como O homem amarelo, causou polêmica e retrato de Beethoven. Sei mente entre os “inocen- provocou a ira da sociedade e até de intelectuais, como Monteiro Lobato. que existem para mais de vinte mil peças, todas detes” de diversas praias cavidamente catalogadas na biblioteca riocas. A coincidência com pessoas e cias na turma da geração mais nova, de Mário de Andrade. fatos conhecidos é puramente ocasijustamente os que estão agora entre os O escritor me recebe, a principio, onal e inevitável, Por isso mesmo, vinte e trinta anos, os tais da “mocidanuma sala do andar superior, onde vi, quero deixar bem claro que procurei de engasgada”. Creio que dizendo isto pela primeira vez,os quadros de Anita o autor de Macunaíma sem segundas explico suficientemente o porquê desMalfatti: O homem amarelo e A estudanintenções. ta entrevista, que julgo muito oportute russa, que tantas celeumas provocaAs palavras de Mário de Andrade na. Das mais oportunas que se poderiram nos áureos tempos de modernissão duras, vão doer em muita gente. am fazer, neste momento. mo. A exposição de Anita Malfatti, Paciência. São palavras que precisaA condição de “papa” (desculpe, considerada como o início do movivam ser ouvidas. Mário) não dá imunidades a ninguém. mento, foi um escândalo. Monteiro Esta entrevista é bem uma definição Mário de Andrade não vive num altar, Lobato escreveu um artigo violento, de atitude do artista em face da guerpermanentemente endeusado pelos erradíssimo, contra a pintora. Olho ra, uma espécie de Código de Ética. moços. Não vive trancado em nenhubem O homem amarelo. Por mais que Poucos como o grande poeta e crítico ma redoma. O escritor age, está aginprocure, não encontro nada demais. de São Paulo estariam mais indicados do. Jamais se recusa aos novos. A sua Sem ser acadêmico é um quadro norpara a tarefa difícil, que transformei no palavra é sempre ouvida com respeimal. Por que teria despertado um tatema central desta reportagem. to, porque parte dele . Assim foi com manho furor em Monteiro Lobato? Aí A vida literária de Mário de Andraos rapazes da revista Clima, cujo artiesta uma coisa que não compreendo. de tem sido um lutar constante. Os argo de apresentação , escrito por Má– Você acha normal, não é? Isso tigos de crítica e polêmica que escreveu rio de Andrade, encerra um grande quer dizer que não fizemos o moderem jornais e revistas dariam para mais sentido político e humano. Chama-se nismo em vão. Para a época. O homem de seis volumes; os mais importantes A elegia de abril. Parece o título de um amarelo era uma coisa louca. Poucos deles serão publicados em livros, na poema. Esse artigo é um apelo à rescompreendiam, quase ninguém aceiedição das obras completas de Mário ponsabilidade. O escritor não acredi4
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tava. Anita é uma pioneira. A entrevista começa assim por um desvio. Encontro o escritor mais loquaz do que nunca, satisfeitíssimo com a marcha da moléstia (úlcera no duodeno para quem quiser saber). Durante os dias que esteve na cama, um mês precisamente, Mário de Andrade não interrompeu a sua atividade jornalística, escrevendo todas as quintas-feiras um longo artigo sobre música para a Folha da Manhã, de São Paulo. Agora escreverá com regularidade também no Correio da Manhã. Mostra-me o seu primeiro artigo publicado no jornal carioca. É sobre Shostakowitzch o músico soviético, autor de uma sinfonia celebrando o heroísmo dos defensores de Leningrado e do Hino das Nações Unidas, composição esta mais recente, da qual ainda não tinha ouvido falar. Mário de Andrade fala explicado, como bom paulista: –No artigo sobre Shostakowitzch, volto a tocar num velho refrão meu: a arte interessada. Acho que o artista, mesmo que queira, jamais deverá fazer uma arte desinteressada. O artista pode pensar que não serve a ninguém, que só serve à Arte, digamos assim. Aí está o erro, a ilusão. No fundo, o artista está sendo um instrumento nas mãos dos poderosos. O pior é que o artista honesto, na sua ilusão de arte livre, não se dá conta de que está servindo de instrumento, muitas vezes para coisas terríveis. É o caso dos escritores apolíticos, que são servos inconscientes do fascismo, do capitalismo, do quinta-colunismo. Responsabilidade A conversa cai na controvérsia “arte pura” e “arte interessada”. Mário de Andrade diz o que pensa a respeito: – Até o século 18, o intelectual era um empregado dos príncipes. Vivia, portanto, preso aos seus Mecenas. Ele era pago para louvar. Com o século 19, veio a arte livre. O intelectual se libertou. E com a liberdade se desmandou. Tornou-se um irresponsável. Foi o seu grande erro. Liberdade não quer dizer irresponsabilidade. Isso porque entre o escritor e o público há uma relação, um compromisso. É o publico, ou melhor, a sociedade, quem protege o escritor, quem lhe dá tudo, inclusive dinheiro, até o aplauso, duas coisas indispensáveis. Porque eu estou me referindo a todo artista de modo em geral. Não só os escritores, prosadores e poetas, ficionistas ou não. Mas também aos pintores, escultores, arquitetos, músicos. Todos eles, todos nós, somos responsáveis. Perante o público, perante a sociedade. O escritor então é responsável até pela grafia das palavras quanto mais pelo que transmite por elas. Se a sociedade está em
perigo, conclui-se que o escritor tem a obrigação indeclinável de defendê-la. Infelizmente não são muitos os que entre nós se capacitaram disso. Uns por não possuírem consciência profissional. Outros por não possuírem consciência de espécie alguma. Não há por onde fugir. Ninguém pode cruzar os braços, ficar acima das competições sociais. É assim com a guerra, na luta das democracias contra os fascismos de todas as categorias. A guerra não é um teatro, que a gente possa assistir comodamente, como se estivesse sentado num camarote. Todos participam da luta, mesmo contra a vontade. Queiram ou não queiram. E se é assim o escritor tem de servir fatalmente: ou a um ou a outro lado. Os intelectuais brasileiros que continuam colaborando em jornais fascistas precisam se convencer de que estão errados. Não é só escrever para ganhar 200 cruzeiros por um artiguete e blasonar depois que continuam livres. Não continuam, esta é a verdade. Podem ser livres no primeiro, no segundo artigo. Aos poucos, mil cordões invisíveis vão enleando o pobre até que um dia ele se verá perdido. É triste de dizer. Mas é este o caso da maioria dos escritores brasileiros que colaboram nos jornais fascistas. Muitos desses escritores, bem sei, não são fascistas. Acabaram sendo. Pelo menos eles já estão servindo ao fascismo. – Mas você, também. Mário, colabora na revista Atlântico... – É verdade. Publiquei um artigo em Atlântico. Confesso que estou arrependidíssimo. Quando me dei conta do erro que estava cometendo já era tarde. Reconheço que errei. Dou minha palavra de honra que jamais cairei noutra. Experiências O assunto continua o mesmo: – Já vê que falo por experiência própria. Mas quero mostrar que tenho sido coerente. Não faço arte pura. Nunca fiz. Neste particular, sinto estar em desacordo com amigos e camaradas queridos, amigos e camaradas que tenho na conta de mestres. Sempre fui contra a arte desinteressada. Para mim, a arte tem de servir. Posso dizer que desde o
meu primeiro livro faço arte interessada. Naquele tempo, em 1917, se quisesse poderia ter arranjado um livro de versos menos ruim para aparecer em público. Tinha cadernos e mais cadernos cheios de sonetos e poesias, que reputava melhores que os de Há uma gota de sangue em cada poema. Mas não. Senti que precisava publicar o meu livrinho de poemas pacifistas escritos sob as emoções da guerra de 14. Eles me parecem mais úteis que os sonetos e as poesias rimadas. Lembro que o livro de estréia de Mário de Andrade traz o pseudônimo de Mário Sobral. Por que o pseudônimo? – Por timidez – retruca o poeta mais que depressa. Todo mundo que me conhece sabe que eu sou um tímido. Os
lectuais brasileiros a procura de um instrumento de trabalho que os aproximasse do povo. Esta noção proletária da arte, da qual nunca me afastei, foi que me levou, desde o inicio, ás pesquisas de uma maneira de exprimir-me em brasileiro. Às vezes com sacrifício da própria obra de arte. Cito, para esclarecer, o meu romance Amar, verbo intransitivo. Não fosse a minha vontade deliberada de escrever brasileiro, imagino que teria feito um romance melhor. O assunto era bem bonzinho. O assunto porém me interessava menos que a língua, nesse livro. Outro exemplo é Macunaíma. Quis escrever um livro em todos os linguajares regionais do Brasil. O resultado foi que, como já disseram, me
este meio. Pelo menos ajudei a abrir o caminho. – Você anunciou, uma vez, a Gramatiquinha da língua brasileira. Por que não publicou nunca esse livro? – Da língua, não. Da fala brasileira. Nenhum escritor criou língua nenhuma. Anunciei o livro, é verdade, mas nunca o escrevi. Anunciava o livro por me parecer necessário ao movimento moderno. Para dar mais importância às coisas que queríamos defender. É ainda muito cedo para escrever-se uma Gramática da língua brasileira. Eu queria prevenir contra os abusos do escrever errado. Estávamos caindo no excesso contrário, como muito bem observou um dos redatores de Estética, não me lembro se Sergio Buarque
“Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever ‘cavalo’ com três ‘l’ isso não tem importância. Precisamos é de acabar com a bagunça.” meus estouros não provam nenhuma coragem. São produtos da minha vida introspectiva. Vou me enchendo, enchendo. De repente estouro. E é assim que ele me faz uma confissão interessante: – É bem possível que eu nunca tivesse publicado uma só linha se não tivesse a certeza de que a minha literatura poderia ser útil. Não pretendia, de fato, publicar nenhum poema de Paulicéia desvairada. Até que um dia percebi que as minhas poesias tinham capacidade para irritar a burguesia. Foi o bastante. Pelo resto da minha carreira literária, observei a mesma linha de conduta. Só publico o que pode servir. Todas as minhas obras têm uma intenção utilitária qualquer. As coisas de pura preocupação estética que fiz durante algum tempo, eu destruí, só me interessavam a mim, como aquisição de técnica pessoal. E Mário de Andrade repete: – A arte tem de servir. Venho dizendo isso há muitos anos. É certo que tenho cometido muitos erros na minha vida. Mas com a minha “arte interessada” eu sei que não errei. Sempre considerei o problema máximo dos inte-
fiz incompreensível até para os brasileiros. Bem sei que minha literatura tem muito de experimental. Que me importa? Disso não me arrependo. Consciência Para Mário de Andrade, o que importa mais que tudo é agir. Daí a sua admiração por um Valentim Magalhães, literato medíocre, mas ativo. – Valentim Magalhães fez o diabo. Meteu-se em tudo que era movimento literário, disse-me ele. Mas o caso do poeta de Remate dos males é muito diferente. Valentim Magalhães talvez agisse apenas em função do seu temperamento buliçoso. Mário, ao contrário, sempre agiu conscientemente. Bem que pode falar assim, quando mais uma vez se refere ao modernismo: – Eu bem sabia que não bastava ser espontâneo. Era preciso ter consciência profissional, também. Quando empregava o “me” começando as frases, não era só pelo gosto de escrever diferente. Eu sabia o que estava fazendo. Para isso estudei. Procurei honestamente uma maneira de escrever em brasileiro. Acho que encontrei
de Holanda ou Prudente de Morais, neto. Estávamos criando o “erro de brasileiro”. Quando falo em escrever certo, estendo a questão até o problema ortográfico. Considero-o um problema de ordem moral. É mais uma responsabilidade que se acrescenta ao ofício de escrever. Não me interessa discutir se esta ou aquela é a ortografia que presta ou não. O essencial é termos uma ortografia. Que se mande escrever “cavalo” com três “l” isso não tem importância. Precisamos é de acabar com a bagunça. Não há coisa mais irritantemente falsa do que a ortografia inglesa, por exemplo. Não compreendo por que a palavra “right” se escreve com “g-h-t”. No entanto assim é que está certo. Escrever de outra forma na Inglaterra ou nos Estados Unidos é diploma de ignorância. Aqui, não. Todo mundo escreve como bem entende. O Estado da Bahia tem “h”. A baia de Guanabara não tem. Acredito que a questão ortográfica tem contribuído muitíssimo para a desordem mental no Brasil. E de certa forma tem impedido a muito escritor de formar uma verdadeira consciência profissional.
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UMA ENTREVISTA PARA A HISTÓRIA Paralelo Voltamos novamente a falar sobre “arte interessada”. Quero saber que relações existem entre “arte interessada” e liberdade de pensar e de escrever, no entender de Mário de Andrade. Aí o escritor não quis mais conversar. Preferiu escrever a resposta. No dia seguinte fui buscá-la. É a seguinte: – O assunto é tão grave e de tamanha complexidade que eu seria leviano pretendendo sintetizar tudo isso no limite de uma entrevista. É meio desagradável a gente parecer que está fazendo propaganda de suas próprias obras, mas a resposta a certos aspectos da sua pergunta está implicada em alguns dos meus ensaios, ajuntados no Baile das quatro artes e nos Aspectos da literatura brasileira. Qualquer analise psicológica, mesmo leve, da manifestação artística nos convence de que a arte é sempre interessada, e que toda obra de arte é, em ultima análise, “obra de circunstância”, isto é, nascida de uma circunstância ocasional, social ou individual, a que o artista atribui o seu interesse. Neste sentido, não é a arte que se modifica, mas a qualidade do interesse que leva o artista a artefazer. É quase exclusivamente na civilização cristã que a inflação do individualismo permitiu essa perniciosa vacilação de qualidade no interesse que, de social que sempre foi, passou muitas vezes a confidencial e individualista. Quanto ao mais, ensaios como A elegia de abril e O movimento modernista provam que não sou nenhum místico da liberdade de pensamento, mas estou convencido que noções como essa ou como democracia implicam um certo número de princípios sem os quais elas deixam de existir. Não é possível a gente imaginar democracia sem opinião publica, assim como não é possível liberdade de pensamento sem aquisição duma técnica de pensar, coisa muito menos freqüente do que se pode supor. E explicando melhor o que ficou dito atrás: – De fato quando eu considero que uma grande parte da inteligência brasileira vendeu-se aos donos da vida, estou longe de afirmar que ela se rebaixou ao ponto de assinar uma transação com contratos legalizados em cartório. Mas por não possuir uma legítima técnica de pensar, essa intelectualidade se entrega facilmente a sofismas e confusionismos de mil e uma espécies, de que é malignamente a maior essa tal de “arte pura”. Veja bem: não nego a possibilidade nem o valor do que chamamos “arte pura”, estou dizendo é que o intelectual se utiliza dela pra se salvaguardar e se livrar de seus deveres morais não só de homem, mas de artista. E o intelectu6
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Concedida à revista Diretrizes, de Samuel Wainer, que a publicaria na edição de 6 de janeiro de 1944, esta entrevista feita por Francisco de Assis Barbosa, então um repórter com menos de 30
al se retrai na pseudopureza do seu pensamento – pensamento...! – enquanto a vida se torna cada vez mais infame lá fora, e o homem mais escravo. Mas o intelectual imagina que ele (veja bem: só ele) não é escravo, pois que o seu pensamento, a sua arte é livre! Pois ele não pode compor uma sinfonia “arte pura”, um soneto sobre o amor ou sobre coisa nenhuma, um quadro com peixe e margaridinhas? Pode sim. “Minha arte é livre” E o intelectual sofisma que tem liberdade de pensamento, simplesmente porque não tem técnica de pensar suficiente que lhe dê coragem pra levar o seu pensamento até o fim. Porque na verdade a pseudoliberdade dele consistiu em seqüestrar das suas manifestações intelectuais todos aqueles assuntos momentosos, cuja qualidade de interesse era social, que o haviam de deixar desagradável com o chefe da repartição em que trabalha, o diretor do jornal em que escreve, e mesmo lhe trariam complicações com as gestapos. Participação Ainda em resposta à mesma pergunta, continua Mário de Andrade: – Porém o intelectual não fica só nisso não. A sua escravização aos donos da vida ainda é mais confusionista e mais indecente. Ele também “participa”. Pois ele já não afirmou, num artigo, que era antinazista? Pois outro
anos, foi a mais longa e contundente que Mário de Andrade deu às vésperas de seu ultimo ano de vida. Mário, que morreria pouco mais de um ano depois, em 25 de fevereiro de 1945, fez-se expressão do engajamento da intelectualidade na luta para a derrubada do Estado Novo, a qual teve um momento destacado no mês da sua morte, com a realização, em São Paulo, do 1° Congresso Brasileiro de Escritores, que reclamou com vigor o restabelecimento das liberdades publicas e dos direitos civis no Brasil. Francisco de Assis Barbosa iniciava então a ascensão que culminaria com a sua portentosa biografia de Lima Barreto e a publicação da obra completa do escritor e jornalista carioca. Um dos muitos discípulos de Samuel Wainer, com o qual trabalhou em Diretrizes e, nos anos 50, em Ultima Hora, Francisco de Assis Barbosa granjeou na área cultural
dia ele já não aplaudiu todo o mundo porque o Brasil entrou na guerra? Ele já não achou, naquela conversa de bar, que devemos nos precaver contra os possíveis futuros imperialismos das grandes democracias? Tudo isso ele já fez, o herói! E o intelectual descansa, imaginando que o seu dever está cumprido, apenas porque ele cumpriu metade (a metade mais fácil) da sua responsabilidade: a responsabilidade para consigo mesmo, Mas a sua responsabilidade para com o publico, essa ele não cumpriu nem cumprirá. Porque esta é difícil, esta é que impõe mil sacrifícios (de que não é menos doloroso, reconheço, o sacrifício de sua própria arte), esta responsabilidade é que impõe o exercício do seu nãoconformismo. Porque o não-conformismo do intelectual não está apenas em gritar e assinar: “sou antinazista” “sou pela democracia”, sou isto e mais aquilo. Isto quando muito é ser tagarela. O não conformismo implica não apenas a reação, mas a ação. E é nesta ação que está a responsabilidade pública do intelectual. A arte é exatamente como a cátedra uma forma de ensinar, uma proposição de verdades, o anseio agente de uma vida melhor. O artista pode não ser político enquanto homem, mas a obra de arte é sempre política enquanto ensinamentos e lição; e quando não serve a um partido serve ao seu contrário. O escritor particulariza ainda mais o seu ponto de vista: – Basta de falar em “tese”, meu amigo. Demos de barato que a arte é desinteressada, que o artista é normalmente um ser à parte, um individuo que
um respeito que lhe permitiu mobilizar a parte intelectual para produzir o ensaio de abertura de cada volume da obra do criador de Recordações do escrivão Isaias Caminha e O triste fim de Policarpo Quaresma. Membro da Academia Brasileira de Letras, na qual ocupou a cadeira numero 13, sucedendo a Augusto Meyer, Chico de Assis Barbosa nasceu em 1914 e faleceu em 1991. Esta entrevista foi publicada sob o título Testamento de Mário de Andrade e Outras Reportagens na celebre coleção Os Cadernos de Cultura, criada por José Simeão Leal quando Diretor do Serviço de Documentação do antigo Ministério de Educação e Cultura. O texto foi reproduzido por Igor Waltz, estudante de Comunicação e estagiário da Diretoria de Jornalismo da ABI, de exemplar da Biblioteca Rodolfo Garcia, da Academia Brasileira de Letras. (Maurício Azêdo)
pela natureza de seu “status” pode não ser participante, pode ser um “clerc”. Se alguém quiser, eu lhe concedo tudo isto. Mas “normalmente” entenda-se. Eu aceito que um intelectual se isente da guerra franco-prussiana, da guerra russo-japonesa, e até, mais dificilmente já, da guerra do Transvaal ou da sino-japonesa. Eu aceito que um intelectual brasileiro hesite em tomar partido diante de Palmares. Admito, compreendo, aprovo e aplaudo a sua nãoparticipação direta em revoluções como as de 24, 30 e ainda mais 32. Mas se estas guerras e revoluções poderão estar dentro das condições normais da organização social de uma civilização determinada, o mesmo não se dá em certas condições absolutamente anormais da vida, em que é a essência mesma duma civilização que periclita, como na luta entre cristãos e mouros, ou periclita a natureza mesma do homem, como na atual luta contra o nazismo. Deixa, por fim, bem claro onde quer chegar: – Em momentos como estes não é possível dúvida: o problema do homem se torna tão decisivo que não existe mais o problema profissional. O artista não só deve, mas tem que desistir de si mesmo. Diante duma situação universal de humanidade como a que atravessamos, os problemas profissionais dos indivíduos se tornam tão reles que causam nojo. E o artista que no momento de agora sobrepõe os seus problemas de intelectual aos seus problemas de homem, está se salvaguardando numa confusão que não o nobilita. (1) Ensaios do Nosso Tempo. Edição da Casa do Estudante do Brasil. Rio de Janeiro, 1943.
ARTHUR DAPIEVE
ENTREVISTA A SOLANGE NORONHA
O
nome de Arhur Dapieve é associado geralmente à música, mais ainda ao rock. Afinal, foi este o tema de seus primeiros textos na imprensa (no Jornal do Brasil) e de seus primeiros livros (BRock — O rock brasileiro dos anos 80 e Renato Russo — O trovador solitário) — e continua sendo este o tema da coluna semanal que assina no site NoMínimo. Quem acompanha sua carreira, no entanto, sabe que o carioca Dapieve, de 42 anos, vai muito além. No Globo, passou por diversas editorias e mantém no Segundo Caderno uma coluna em que os assuntos são os mais variados, podendo ir da política ao futebol — incluindo, é claro, a música. Na literatura, estreou finalmente no romance, idéia acalentada há mais de 20 anos, com homenagem a Cartola no título (De cada amor tu herdarás só o cinismo), depois de passar pelo humor (Manual do mané). E é com muito bom humor também que apresenta com Marcelo Madureira o quadro Sem controle no canal por assinatura GNT. O mestrado que está concluindo, porém, gira em torno de coisa muito séria e é com seriedade também que ele encara a nobre profissão de jornalista, conceito que faz questão de passar a seus alunos na Puc-Rio.
Professor, crítico de músico, humorista. Essas são apenas algumas “profissões” do eclético jornalista que começou no JB, passou pelo Globo e pela Veja Rio e acabou fazendo o que planejara: um romance.
DEFESA DA DEMOCRACIA UMA IMPOSIÇÃO DA NOBREZA DA PROFISSÃO Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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ARTHUR DAPIEVE
Jornal da ABI — Você está concluindo mestrado. Dá para contar um pouco a respeito? Qual é o tema da sua tese?
Arthur Dapieve — Falta defender a dissertação diante da banca, no começo de março. Meu tema é o modo como a imprensa trata o suicídio — quando trata, claro. Ela tende, primeiramente, a omiti-lo e, se for inevitável publicá-lo, dada a importância da personagem ou o transtorno que seu gesto causa no trânsito, por exemplo, usa eufemismos, desvia o assunto, tenta desqualificar a sanidade mental do suicida. Como jornalista, sempre me pareceu curioso que fosse assim. Como mestrando, descobri que não é procedimento exclusivo da imprensa, mas se inscreve num velho temor de que o suicídio possa ser metaforicamente contagioso. Jornal da ABI — Você se formou, faz mestrado e dá aulas na Puc-Rio. Do seu tempo de estudante para o tempo de professor, o que mudou nos cursos de Jornalismo brasileiros?
Dapieve — Como ex-aluno, mestrando e professor da mesma Puc, minhas impressões sobre os outros são isso: nada mais que impressões. Lá, a principal mudança foi a explosão da tecnologia, o que levou o departamento a se modernizar. Quando estudei, não usávamos, nem na faculdade, nem nas redações, computador. Era máquina de escrever mesmo. Fotografia, só em filme. Vídeo? O que era vídeo? Mas a boa formação humanística permanece a mesma. Jornal da ABI — Qual é sua cadeira na Puc e o que você procura, essencialmente, passar para os alunos sobre o trabalho e a carreira?
Dapieve — Minha cadeira se chama Técnica de Redação em Jornalismo Gráfico. Ensino como escrever para jornais, revistas e sites. Explico que um bom texto é a base de toda atividade jornalística, mesmo aquela desenvolvida na tv ou no rádio. Porque quem escreve bem pensa e lê bem. Isto é essencial. Então, fazemos exercícios em sala todas as semanas. Levo para casa, corrijo; na aula seguinte, eles já têm o que fizeram comentado, individualmente. Na aula, coletivamente, discutimos os erros mais comuns, chamo a atenção para cacoetes, para o significado exato ou mutante
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das palavras etc. Também alerto contra qualquer tipo de erro, porque o erro corrói o texto e mata a credibilidade. É dela que vivemos. Jornal da ABI — Falando em carreira, as aulas entraram na sua vida antes dos jornais. Depois vieram JB, Veja Rio, Globo, NO., NoMínimo, em cargos variados, sempre com a música em primeiro lugar. Foi coincidência ou preferência?
Dapieve — Começou como coincidência. Se eu tivesse entrado no jornalismo pelo esporte, estaria lá até hoje, feliz da vida. Aliás, comecei a colaborar com o JB fazendo resenha de livros, não de discos. Continuou como uma preferência pela música, que aprimorei com fins profissionais. Nesse tempo, na redação que o leitor não vê, já fiz outras coisas. No Globo, editei os artigos por um ano e meio, fui editor de Política por dez meses, editei o suplemento O Globo 2000, com a retrospectiva do século XX, por dois anos... Ótimo que tenha sido assim. Ficar sempre inteiramente na mesma área pode ser entediante. Jornal da ABI — Os livros também começaram com temas musicais e viés jornalístico (um, pelo menos, é reunião de textos publicados em sua coluna no Globo). Como é para você este processo criativo, até mesmo para selecionar as crônicas do jornal que merecem destaque e longevidade?
Dapieve — Os livros começaram como reflexo da minha atividade jornalística mais visível, a música. Foram desdobramentos dela, na verdade. Aproveitei muito do que apurei como repórter para BRock — O rock brasileiro dos anos 80 ou Renato Russo — O trovador solitário, por exemplo. No caso de Miúdos metafísicos, seleta de colunas entre 1993 e 1999, a escolha se deu meio a meio: parte os textos que eu mais gostava e parte os textos que os leitores mais pediam. É curio-
so que raramente ambas as coisas coincidem no mesmo texto. Jornal da ABI — E a estréia no romance, como aconteceu? Você “mudou de gênero” até no título, tirado de Cartola.
Dapieve — Quando entrei numa faculdade, entrei não por vocação jornalística. O que eu queria era escrever romances. Tanto que, no então vestibular unificado, eu me inscrevi foi em Letras. Na Puc é que eu me inscrevi em Comunicação. A vida fez com que eu demorasse quase duas décadas para retomar o plano original, publicando um romance. Um romance, aliás, que em linhas gerais já estava em gestação há quase 20 anos! Este período nas redações, porém, foi muito importante para eu exercitar a escrita, obter um estilo, perceber por onde seguir... Quanto ao título, De cada amor tu herdarás só o cinismo, ele revela uma das minhas grandes admirações por Cartola. Embora tenha escrito majoritariamente sobre rock, sempre curti muito as coisas dele, do Paulinho da Viola, do Candeia, do Nélson Cavaquinho... Ou Bach, Mahler, Miles Davies e Bill Evans. Jornal da ABI — Como foi conciliar livro, aulas, mestrado, colunas...? Fazer uma obra de ficção deve ser muito mais trabalhoso.
Dapieve — Sinceridade? Foi terrível. Foi porque, tendo posto o ponto final provisório no mestrado, neste momento estou me achando um vadio, apesar de continuar trabalhando em todo o resto. E foi terrível não apenas porque uma dissertação ou um romance sejam trabalhosos, e são, mas porque eles têm muito pouco em comum. O mesmo se dá com Tv e colunas, por exemplo. Ou entre isso e as aulas. Ao menos de tédio eu não morro... Jornal da ABI — Isto é verdade, pois você atua em vários mercados e segmentos,
do acadêmico e literário aos veículos Tv, jornal e site. Como os vê hoje, especialmente levando em conta a tão falada ameaça à imprensa pela internet?
Dapieve — Não há ameaça alguma. Cada vez que surge novo meio de comunicação, o que há é uma reorientação dos já existentes, de modo a explorar melhor seus pontos fortes, suas características essenciais. Quando o rádio surgiu, achava-se que o jornal ia acabar... Quando a Tv surgiu, achavase que o rádio ia acabar... Que nada. Cada meio possibilita um tipo de abordagem, um tipo de acesso, uns mais rápidos, outros mais profundos. E a boa formação educacional ajuda a entender e a usufruir isso. Jornal da ABI —- Como vê a exigência de diploma para jornalistas? O que resolve e o que fica faltando apesar da lei?
Dapieve — Sou contra a exigência de diploma. Conheço grandes jornalistas, experientes e não tão experientes, formados em outra coisa, Sociologia ou Biologia Marinha. Exigir o diploma deles teria nos privado dos seus textos, do seu talento. Além disso, um diploma não é garantia de nada, de nenhuma aptidão para a profissão, sobretudo dada a proliferação de cursos mercenários de Jornalismo. Mesmo sem esta exigência, porém, é claro que as redações serão formadas majoritariamente por quem tinha aptidão desde sempre e se dedicou a ela nas faculdades sérias, diplomando-se em Jornalismo. A lei, me parece, era apenas mais uma tentativa de enquadramento da classe durante o regime militar. Jornal da ABI — De um modo geral, como vê o nível dos cursos de Jornalismo no Brasil?
Dapieve — Vale aqui a ressalva da resposta anterior. Em visitas a outras faculdades, vejo as públicas com bons corpos docente e discente, mas péssimas instalações. E algumas privadas com ótimas instalações, corpo docente se aprimorando, até por exigência do Mec, mas alunos desinteressados em realmente aprender. Diferentemente do que pensam muitos alunos (estimulados, é verdade, por donos de universidade que pensam assim), o aprendizado não é uma mercadoria, entregue embalada para presente ao fim de quatro anos, desde que se pague a mensalidade, claro. Aprendiza-
do exige compromisso, entrega, esforço, interesse.
e já tinha presenciado, em festas, papos idênticos aos que vão ao ar na Tv. Idênticos, não: bem mais pesados! O Marcelo, eu conheço desde que fui editor responsável pelo Segundo Caderno do Globo, com o qual ele e o Hubert Aranha colaboram escrevendo o Agamenon Mendes Pedreira. Somos amigos há mais de dez anos. O quadro passa uma impressão de entrosamento e espontaneidade porque é precisamente assim. Somos amigos e não há roteiro.
Jornal da ABI — As qualidades exigidas do jornalista são também as do cronista ou colunista? Afinal, você escreve sobre música no site NoMínimo, mas no Globo sua coluna vai de filosofia e política a futebol, cinema, Tv — e música também, claro. O quanto é verdadeira a história de que o jornalista sabe um pouco de tudo e, no fundo, não sabe nada de coisa alguma?
Dapieve — Não, as qualidades exigidas não são as mesmas. Mais que outros colaboradores do jornal, o cronista/colunista está liberado de exigências ou de apego a temas. Quando cheguei ao Globo como subeditor, vindo da Veja Rio, comecei escrevendo basicamente sobre o que já havia escrito no JB: música, cinema e literatura. Quando me tornei colunista, levei estes temas e acrescentei outros, como filosofia, história, futebol.... Concordo em que o jornalista sabe um pouco de tudo, mas ele também deve, cada vez mais, saber muito de uma determinada coisa — no meu caso, esta coisa é a música. Jornal da ABI — Autocrítica é fundamental no trabalho do cronista ou colunista?
Dapieve — Sim. Se não, com o nome no alto do texto, antes até do título, ele corre o risco de se perder numa tremenda egotrip, que não interessa a ninguém, além dele mesmo e do seu círculo íntimo. O leitor não merece ser excluído, nunca.
Da música de seu início na profissão, Dapieve passou a escrever sobre tudo em suas crônicas, desde filosofia a futebol.
Dapieve — Funciona, né? Às vezes, a gente troca: o Marcelo se torna o jornalista, cheio de informações,
Dapieve — Eles têm muita curiosidade sobre jornalismo cultural. Muitos sonham escrever nos chamados segundos cadernos. Ótimo, mas tento mostrar a eles que é um trabalho como qualquer outro, que isso não os torna artistas ou amigos dos artistas e que o lazer periga se confundir perigosamente com o trabalho. Cada disco que se ouve, cada filme a que se assiste, tudo, tudo pode virar pauta. Ao mesmo tempo, enfatizo que o conhecimento específico sobre as diversas formas de arte deve nascer até antes da faculdade de comunicação, de um hobby, por exemplo. A principal diferença que noto diz respeito às revoluções tecnológicas. Os alunos de hoje têm mais informação do que os de 20 anos atrás, mas elas são
“Uma imprensa livre e independente dos três Poderes é fundamental para a manutenção da democracia e da ética.” Jornal da ABI — Como nasceram o quadro Sem controle — do programa Armazém 41, do GNT — e a parceria com o Marcelo Madureira?
Dapieve — Foi uma idéia do primeiro diretor do programa, Pablo Pessanha. Ele nos conhecia (tinha sido meu aluno na Puc em meados dos anos 80)
Um retrato da imprensa pela ótica da morte O suicídio é algo que assusta. Seja ele contado em algum clássico da literatura, como Werther, de Goethe, ou O mito de Sísifo, de Albert Camus, seja como uma notícia nas páginas de jornais. Porém, nestes últimos, até pela natureza do próprio jornalismo, seria de se esperar que recebesse um tratamento diferenciado, talvez menos condicionado. Coisa que, em quase todos os casos, nunca acontece, pois quando se trata do tema, longe de ser formadora de opinião, a mídia torna-se uma reprodutora de idéias e preconceitos já formados na sociedade. Em Morreu na Contramão (192 páginas, Jorge Zahar Editor), o jornalista e escritor Arthur Dapieve, professor da PUC do Rio de Janeiro, analisa como a imprensa trata a questão do suicídio. Mais especificamente, o autor trabalha a questão no noticiário do jornal O Globo, um dos quatro diários de maior circulação no País. O que encontra é uma série de eufemismos do tipo “as causas da morte não foram divulgadas” ou “a morte se deu por acidente com arma de fogo”. Ou quando era impossível utilizar esse tipo de recurso, a alternativa era desqualificar o suicida como um “fanático religioso”, “louco” ou
Jornal da ABI — O Marcelo é engenheiro de formação e tornou-se humorista, tem um jeitão gaiato. Você é jornalista com fama de tímido. Como funciona essa mistura? Você diria que há algo de jornalístico no programa ou ali só aflora sua veia humorística, exposta também em Manual do mané (co-autoria com Sérgio Rodrigues e Gustavo Poli)?
Jornal da ABI — Nas palestras, o contato com estudantes de Jornalismo também deve ser constante. Qual o principal interesse que você nota neles? Há muita diferença entre os alunos de hoje e os de 20 anos atrás?
e eu o humorista, cheio de piadas. Acho, na verdade, que eu sempre fiz piadas, em mesas de botequim ou redações, a diferença é que agora me profissionalizei... No livro, com o Sérgio e o Poli, e na tv, com o Marcelo. Jornal da ABI — Repercutem de alguma forma sobre você declarações irreverentes mais radicais do Marcelo? Colegas jornalistas e intelectuais mais conservadores fazem patrulha ideológica?
Dapieve — Patrulha, não, ao menos não ainda. Acho que os colegas sabem separar quem disse o quê, a gente vive discordando e discutindo. O espectador comum, este sim, às vezes confunde quem disse o quê e cobra correção política dos dois. Bem, tudo o que tanto eu quanto o Marcelo não pretendemos ser, não só na tv, é politicamente corretos. Jornal da ABI — E o veículo? Já tinha intimidade com as câmeras da tv?
ainda “criminoso”. Longe de ser esclarecedora ou imparcial, a imprensa prefere refletir o senso comum, condenando o ato quando motivado por razões particulares, como dissabores amorosos, e absolvendo, quando motivado por idealismo. Sempre com um toque analítico – que traz a discussão para o campo da filosofia e faz a inquietante pergunta: qual é o verdadeiro sentido da vida? –, Dapieve não apenas mostra como o suicídio é tratado na notícia, mas também consegue um inusitado perfil do modus operandi da imprensa brasileira e um retrato da própria sociedade e seus tabus. (Marcos Stefano)
Dapieve — Já tinha dado um número razoável de entrevistas e depoimentos para a tv, sem maiores problemas, em parte porque dar aula ajudou a quebrar a minha timidez essencial. Jornal da ABI — Ia falar sobre isso, de timidez não combinar com turmas cheias. E você ainda é constantemente chamado para dar palestras. Quais são os temas mais comuns?
Dapieve — Falo basicamente sobre jornalismo cultural, música ou, menos freqüentemente, história da Segunda Guerra e política internacional. Por achar que tenho domínio do que falo, nem penso muito se as platéias têm dez, 20 ou 200 pessoas. Abro a boca e falo, simplesmente. Frio na barriga só dá antes ou depois...
fragmentadas, confusas. O professor precisa estabelecer conexões entre elas, limpar um pouco a área, organizar as cabecinhas. Jornal da ABI — E como os estudantes da área e recém-formados estão percebendo o mercado jornalístico no Brasil?
Dapieve — Tento animá-los. Embora hoje tenhamos menos jornais impressos, temos sites, temos mais canais de Tv abertos e pagos, mais rádios. Tanto há mais postos de trabalho quanto há mais possibilidades dentro do próprio mercado. Quando me formei, na metade de 1985, apenas uma pessoa tinha um estágio bem encaminhado na área de Jornalismo. Hoje, a cada formatura da qual participo quase todos os alunos têm um caminho diante dos olhos. Estão estagiando ou trabalhando na área. Ou nas áreas próximas. O jornalista é multiuso. Jornal da ABI — Há alguma mensagem especial que você dê em suas aulas e palestras aos futuros jornalistas ?
Dapieve — Adapto a mensagem a cada turma ou momento. Atualmente, me preocupo que eles não considerem a própria profissão uma forma de crime, como os políticos flagrados com as calças na mão dizem e repetem. A nossa profissão é nobre — o mesmo não pode se dizer do propósito deles. Somos importantes exatamente para vigiar e alertar os leitores sobre o desvio do dinheiro público, sobre o exercício do poder em proveito próprio. Uma imprensa livre e independente dos Três Poderes é fundamental para a manutenção da democracia e da ética. Entrevista publicada em 10 de fevereiro de 2006. Dapieve concluiu e publicou depois sua tese de nestrado: imprensa e sucídio. Ver texto ao lado.
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ARTUR XEXÉO
HUMILDADE PARA VENCER NA PROFISSÃO
ENTREVISTA A CLAUDIO CARNEIRO
R Jornal da ABI — O quase monopólio do Segundo Caderno do Globo no Rio é bom ou ruim?
Xexéo — É um peso muito grande. E é ruim para o mercado e para os profissionais, que perdem a capacidade de competir entre si. Além disso, você não tem como comparar o seu trabalho, fazer uma avaliação. A gente acaba fazendo comparação com os jornais de São Paulo, mas o interesse deles é outro, o leitor é outro, a briga lá é diferente. Resumindo: é péssimo para a criatividade, para o mercado e até economicamente. Jornal da ABI — Qual a diferença da postura do Xexéo editor do Segundo Caderno para o Xexéo colunista?
Xexéo — Acho ruim o conflito editor-colunista, porque muita coisa que serviria para a minha coluna acaba transformada em pauta. A questão existe. A escolha do que posso escrever ou pautar esbarra em mim e me pergunto: “Que faço agora?” Geralmente o colunista perde nessa batalha. Acabo privilegiando a pauta e fico com mais dificuldade de fazer a coluna. Não sou um jornalista que precisa de sossego para escrever, então, faço minha coluna aqui, na Redação. No dia do fechamento, chego mais cedo para escrever, 10 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
mas em 80% dos casos edito enquanto faço a coluna. E nos dois casos eu me submeto à pressão do horário de fechamento, sempre em cima do laço. Acho que nessa divisão o colunista sai prejudicado. Tanto na escolha dos assuntos quanto na qualidade do texto. Jornal da ABI — Entre os cerca de 400 emails que enchem sua caixa postal diariamente, você deve continuar a receber pautas de assuntos absolutamente absurdos e irrelevantes.
Xexéo — Eu nem acho que sejam tão absurdos ou tão irrelevantes, afinal, tudo tem relevância e sentido. O problema é que o assessor de imprensa não sabe a quem dirigir sua pauta. Então, atira para todos os lados. É bobagem me mandarem uma nota comunicando a separação de um casal de atores de novela ou que a atriz “tal” trocou de cabeleireiro. Certamente tem alguém interessado nisso, mas acho que falta focar o trabalho e não mandar a mensagem para todo mundo do mailing. Jornal da ABI — Às vezes você brinca e carrega nas tintas, em comentários sobre releases recebidos. Será que o assessor de imprensa não cumpriu seu papel então?
Xexéo — Tenho minhas dúvidas. Eu me sentiria mal se fosse o artista, entendeu? Há uma grande diferença entre a nota que ele fabricou junto com o assessor e o que acabou publicado. É difícil você conseguir espaço na mídia. O meu comentário — em tom de brincadeira — não tem conotação pejorativa. Acho até que o assessor pode gostar mais do resultado do que o próprio artista.
eceber 400 e-mails por dia, editar o Segundo Caderno do jornal O Globo acumulando a função de colunista e, ainda assim, manter-se sereno e bem-humorado não deve ser muito fácil. Até agora, neste ano em que completa 57 anos, Artur Xexéo conseguiu a façanha e ainda encontrou tempo para esta entrevista ininterrupta de quase hora e meia de duração. Formado em Comunicação pela Facha, depois de ter largado no terceiro ano o curso de Engenharia da Pontifícia Universidade Católica, Xexéo tem a responsabilidade de editar um caderno que é considerado a mais importante via de divulgação de toda manifestação cultural do Rio de Janeiro. Ele acha complicado equilibrar a expectativa do mercado com o interesse do leitor e considera frustrante deixar de satisfazer uma das pontas.
Jornal da ABI — Você sabe que o assessor trabalha com mailing eletrônico que faz o disparo para todo mundo. A pauta cai na sua caixa e na de muitos outros...
Xexéo — É um erro isso. A gente está falando dessa cultura de celebridades, mas tem muita coisa inútil. Recebo informação sobre nova comida pra cachorro e outras bobagens. Às vezes, só pra chatear, eu respondo: “Olha, eu adoraria fazer a matéria sobre sugestões de presente para o Dia das Mães, mas, infelizmente, o Segundo Caderno
não trata desses assuntos.” Aí o cara vem, não percebe a minha ironia e insiste: “Mas como? Você não é o editor de Variedades?” Eu nem sei o que é uma editoria de Variedades. Enfim, não adianta brigar muito com eles. Jornal da ABI — Você vê o assessor de imprensa que inferniza sua caixa de email como um promoter?
Xexéo — Hoje em dia não. Se você analisar essa atividade no Brasil, ela vem com uma imagem muito ruim,
uma vez que foi introduzida nos tempos da ditadura. As assessorias viraram grande mercado para o jornalista. Todas as estatais começaram a contratar profissionais com salários muito maiores que os de mercado, com uma única missão: não permitir o vazamento de informações. Era o oposto do que você imagina que deva ser a assessoria de imprensa. Então, a história da atividade no País começa muito mal. O que eu detesto mesmo é o divulgador chegar na Redação e falar assim: “Queria que você me desse uma força.” Sempre respondo: “Eu não dou força, eu dou notícia. Se você tiver notícia, estou aqui pra receber. Agora, força não é comigo.” O divulgador sofre pressão — principalmente nesta área em que a gente atua, de cultura, artes e espetáculos — e acha que a gente tem de dar uma “força”. Ainda assim, o papel dele é importante. Nós atuamos num universo muito amplo. São muitas coisas, muitos interesses e a gente fica meio filtrado. O divulgador traz sempre uma novidade, algo que está fora desse circuito. É nossa obrigação reconhecer o que está fora do circuito. Recebo esse turbilhão de e-mails por dia, mas não deleto nenhum logo de cara. Primeiro, leio o assunto, porque pode ser o tal da comida pra cachorro. Não sendo, abro. Afinal, ali pode estar uma informação que me interessa. Uma boa e curta redação do assunto do e-mail já é meio caminho andado Jornal da ABI — Vamos ao começo de tudo. Como foi sua ida para o JB, onde você começou?
Xexéo — Eu me formei em 1975 e fui estagiar no JB no segundo semestre do mesmo ano. Fui para a Geral. Os estágios duravam três meses e você ia renovando. Quando fiz meu segundo período de estágio, o chefe de Reportagem prometeu a minha contratação. Fiquei nove meses esperando uma vaga. Fui contratado em 1976 e saí em 1978. Em 1985, numa reforma que o jornal estava fazendo, o Marcos Sá Corrêa era o editor e o Zuenir Ventura, que ia cuidar da revista Domingo, me chamou para ser subeditor dele. Foi assim que eu voltei e fiquei por 15 anos, até 2000. Foi uma experiência maravilhosa. Depois que o Zuenir saiu, fui editor da Domingo, depois do Caderno B e, mais adiante, do Cidade. Cheguei à Subsecretaria de Redação acumulando a função de colunista. Fiz de tudo nesse período, cobri Copa do Mundo e Olimpíadas. Foi muito enriquecedor.
do Prêmio Esso, falecido este ano; o Caderno B estava no auge; o Elio Gaspari fazia o Informe JB... Enfim, essa primeira “encarnação” reuniu os melhores jornalistas do Brasil. A segunda, com o Marcos e o Zuenir, também era um time de craques. Jornal da ABI — Ano que vem o Código de Ética do Jornalista completa 20 anos e vai passar por uma reforma. Você acha que a ética está presente em todos os momentos do exercício da nossa profissão?
Xexéo — Acho que você pode pegar uma variedade de exemplos em que não se cumpre a ética, mas acho que a exercemos o tempo todo na medida em que nos preocupamos com isso. Aqui, no Globo, é uma preocupação constante. Nas coisas aparentemente menos relevantes, volta e meia nos deparamos com um problema ético que a gente deixou passar. Isso pode ser o que estraga a imagem do jornalista. Não há como corrigir. Quem tiver a oportunidade de ficar aqui dentro 24 horas vai perceber que essa é uma preocupação nossa e da imprensa inteira, tenho certeza, embora tenhamos uma profissão em que não dá tempo para refletir o tempo todo. Temos exemplos radicais em que a ética não cumprida deixou estragos muito grandes. Hoje, a imprensa trabalha eticamente. Muito mais do que no passado.
freu algum tipo de censura, no Globo ou no JB.
Xexéo — Não. O Doutor Nascimento Brito tinha lá suas questões, mas não eram econômicas nem políticas. Eram pessoais. De vez em quando ele ia a Brasília fazer algumas visitas importantes e o que acontecia, e acredito que não fosse somente comigo, era que não gostava de chegar ao Palácio no dia em que o jornal tivesse feito alguma crítica a quem fosse visitar. Então, ele dizia assim: “Olha, domingo não faz nada não que eu vou a Brasília, entendeu? Não mexe com fulano que eu tenho um encontro com ele.” Eu percebia que era uma coisa social, não era uma questão política ou econômica. Muito menos uma coisa definitiva, do tipo “nunca mais fale dessa pessoa”. Era mais um “alivia um pouco”. Imagino até que eles, os patrões, sofram mais pressão do que a gente. Se eu falar mal de um secretário ou de um ministro, eles não vão ligar pra mim, mas para o dono do jornal. E aqui no Globo, para ser inteiramente franco, não tenho nenhuma história pra contar.
“Quando comecei, eu tinha o diploma de jornalista, mas muita gente não tinha. Convivi com uma Redação cuja maior parte das pessoas não tinha feito faculdade de Jornalismo”
Jornal da ABI — Você acha mesmo que a imprensa representa o quarto poder?
Jornal da ABI — Foi também um período de convivência com uma grande equipe, não é? Como hoje, você convivia com alguns dos maiores jornalistas do País.
Xexéo — Olha, se você pensar na imprensa como papel, não mais ou cada vez menos. Se incluirmos os meios eletrônicos, acho que sim. Sem dúvida. Uma prova disso é o quanto os outros três Poderes se preocupam com a opinião da imprensa. Acho que nessa reeleição do Lula, por exemplo, houve pressão muito grande contra o trabalho da imprensa. Pairava no ar a interpretação de que os jornalistas estivessem contra o Presidente e a favor do Alckmin. Havia queixas de que o espaço dado aos dois candidatos não era equânime. Isso preocupava muito os políticos e demonstrou a importância da imprensa, que, aliás, a bem da verdade, não foi partidária nessas eleições. Mas o Executivo temia a força da imprensa e as conseqüências desse poder. Se a imprensa tivesse sido partidária como temia o PT e fosse mesmo o quarto poder, o Lula não seria reeleito.
Xexéo — Na verdade, peguei mais gente boa na primeira fase do que na segunda. Era uma equipe top de linha. Tinha, por exemplo, o José Gonçalves Fontes, excelente repórter, ganhador
Jornal da ABI — Você chegou a dar uns “beliscões” no Fernando Henrique e também no Lula. Esse comentário é um gancho para perguntar se já so-
Jornal da ABI — E você já foi processado?
Xexéo — Fui processado pela Governadora Rosinha; acho até que foi mais de um processo. Não sei muito bem, só sei que ela perdeu. Também fui citado num processo por calúnia e difamação movido pelo Otávio Mesquita, mas ele não o levou adiante. Teve também o caso de um aluno da Estácio de Sá na época em que eu comparei esta universidade com o McDonald’s. Recém-formado por lá em Direito, ele me levou ao Juizado de Pequenas Causas, pois se sentiu prejudicado na carreira depois que eu desqualifiquei a faculdade dele na coluna. Pedia, de indenização, que eu pagasse sua faculdade e os danos futuros que viesse a ter como advogado. Era uma fortuna. Acho que ele queria garantir a aposentadoria. Aí eu fui. Ele defendeu sua própria causa e levou a mãe para assistir e fotografar. Acabou perdendo. Faço a coluna há 14 anos e há quem pense que sofri muitas ações na Justiça, mas não é verdade. Jornal da ABI – Há uma frase atribuída a você, de que o bom da Olimpíada é que ela só acontece a cada quatro anos...
Xexéo — Acho isso até injusto com o leitor e com o evento. O fato é que em situações como Olimpíada e Copa do Mundo a imprensa costuma levar para fazer a cobertura pessoas que não são da área e, portanto, têm uma visão diferente. Para o leitor e para o repórter de Esportes, pode ser o máximo.
Para quem não é do ramo, como eu, aquilo ali enche um pouco. Gosto mais da Olimpíada vista daqui do que de lá. Aqui você liga a tv e, se não quiser ver, vai fazer outra coisa. Lá, você não tem opção: a cidade está totalmente envolvida com a competição. Houve um repórter da Folha de S. Paulo que foi cobrir a Olimpíada de Seul, tendo que enviar uma crônica diária. Lá pela quarta ou quinta, começou assim: “Ninguém agüenta mais ouvir falar em Olimpíada.” Os colegas ficaram furiosos; afinal, só ele não agüentava mais. Mas acho que é isso mesmo que o jornal procura: colocar alguém de fora para representar o leitor que não está tão interessado naquilo. Jornal da ABI — Como você lida com o erro? Não sei se aquela troca de letras em O ônus da prova é de sua autoria...
Xexéo — Esse é meu. Aliás, com esse erro eu lidei muito mal. Eu era editor do Caderno B e fui fazer uma matéria de capa sobre um livro do Scott Turow, o perfil do autor desse best-seller internacional. Escrevi o título errado na matéria inteira e ninguém na Redação leu, porque eu era o editor. Foi tão sério que eu estava dormindo e sonhei que tinha escrito errado. Aí acordei, concluí que o desastre estava feito e não dormi mais. Esperei sair o jornal e fiquei arrasado. Com o tempo de profissão, o erro acaba machucando menos. Ainda assim, é horrível, porque alguém vai ler aquilo. A gente erra à beça. Hoje eu sou mais relaxado com os erros, mais graves ou menos graves. Hoje eu acho que O ânus da prova nem foi tão grave assim. Virou uma piada. Alguns erros dão demissão, como uma falha de informação que possa causar certa comoção. Isso é mais grave que um erro de grafia, ou ato falho mesmo. Jornal da ABI — Como você avalia o papel do profissional de imprensa comparando a atualidade com o momento em que você começou, por exemplo?
Xexéo — É muito diferente. Quando comecei, eu tinha o diploma de jornalista, mas muita gente não tinha. Convivi com uma Redação cuja maior parte das pessoas não tinha feito faculdade, pelo menos não de Jornalismo — havia muita gente com diploma em outras especializações. Não acho que o profissional de hoje esteja menos preparado. Toda a experiência que tenho com estagiários é sempre muito boa, tanto no tempo em que, no JB, fui coordenador dos estágios quanto aqui, em que os vejo muito bem preparados, mas são mais acomodados do que nos anos 70, esperam mais a notícia chegar e correm menos atrás dela, principalmente nessa área de cultura. Falando das assessorias de imprensa mais uma vez, eu já disse que elas são necessárias, mas, ao mesmo tempo, sua existência acomoda muito o repórter, que passa a esperar Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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ARTUR XEXÉO
pela informação, em vez de telefonar e batalhar por ela. Dessa forma, o assessor de imprensa é sempre o contato e nunca se chega à fonte. Há 30 anos, era diferente. Brigava-se muito pelo furo no segmento de cultura. A busca pela notícia, hoje transformada em produto pasteurizado, está mais acomodada também em outras editorias. Na economia, por exemplo, 70% do que sai são relatórios, estudos, pesquisas de instituições. Jornal da ABI — Você já reparou que escreve muito sobre o passado, sobre coisas que já foram? Isso é saudosismo?
Xexéo — Isso é idade, né? Quanto mais eu vivo, mais passado eu tenho. Hoje mesmo escrevi uma coluna inteira sobre o assunto. Muitas vezes isso ocorre porque você percebe que certas coisas vão se perdendo e dá vontade de que elas permaneçam. Meu contato maior é com as Redações, muito maior até do que com a vida real. As pessoas mais novas são muito desinformadas sobre o que já aconteceu. É muito comum você falar de determinado acontecimento ou personalidade e o mais jovem retrucar: “Ah, mais isso foi antes de eu nascer”. Como se o mundo começasse no dia em que a gente nasce! Então, quando escrevo, sinto essa vontade de mostrar como as coisas eram e aconteciam. Acho que a nostalgia é essa sensação de achar que “aquele tempo” era melhor do que esse. É claro que a nossa juventude é sempre melhor do que a maturidade. A infância é, de certa forma, idealizada e tudo o que a cerca parece melhor também, mas tenho consciência de que não é bem assim. Só quero deixar registrado. Tem gente viva que está praticamente esquecida. Gosto de falar de vez em quando, por exemplo, da cantora Marlene. Não que eu tenha sido assim fã dela, mas está viva e as pessoas precisam saber que ela existe. Ela deve gostar disso. Outro dia escrevi crônica sobre Bibi Ferreira. A Bibi, aos 80 e tantos anos, é estrela consagrada e respeitada. Ela é a atriz que há mais tempo está em atividade no País, já é do teatro desde os anos 40 e poucos, tinha uns 17 quando estreou profissionalmente. Ela está em atividade há quantas décadas? E tem uma agenda de shows! Não está precisando de emprego, do reconhecimento, de nada mesmo. Outro dia escrevi uma crônica sobre ela em que dizia que na minha família era uma tradição gostar da Bibi, porque minha mãe era fã dela. A Bibi me ligou aos prantos para agradecer. A nova geração não se liga nisso. 12 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
Talvez, quando eu fui da nova geração, não tenha respeitado o passado. Isso acontece. Agora eu me sinto responsável por não deixar que se repita. Não tenho sentimento nostálgico, não sou saudosista, não acho que antes era melhor que é hoje, mas me sinto meio responsável por isso. Sou carioca, gosto do Rio, gosto de falar das coisas boas que o Rio tinha e perdeu. Jornal da ABI — E as novelas? Você assiste, grava, ou alguém vê por você? E aquele alter-ego que você criou para comentar os capítulos?
Xexéo — Dona Candoca. Ela era minha avó e autêntica noveleira de rádio; continuou fiel quando ninguém ouvia mais. Em São Paulo havia uma emissora que transmitia radionovelas das oito da manhã às oito da noite. Ela ligava e fazia crochê o dia inteiro. Nos intervalos, lia fotonovelas. Eu não sou noveleiro, mas pertenço à primeira geração exposta à babá eletrônica. Meus pais saíam de casa despreocupados, porque eu ficava parado diante da tv. Isso no final dos anos 50 e início dos anos 60. Eu via de tudo e tenho uma boa memória televisiva. Quando as novelas começaram, eu assistia. Quando trabalhei na Veja, fui, por dois anos, editor-assistente da área de televisão. Passei a ver novela profissionalmente. Os novelistas do meu tempo foram Gilberto Braga, Manoel Carlos, Janete Clair, esta já consagrada então. A partir daí, sempre atuei em cultura. A novela entra na minha coluna quando percebo o interesse do leitor. Ou quando estou sem assunto. O retorno é garantido. Jornal da ABI — Você escreveu sobre a Janete Clair...
Xexéo — Não tinha nada em especial com a Janete, nem a idéia de escrever sobre ela. O Instituto Rioarte e a Secretaria Municipal de Cultura lançaram a coleção Perfis do Rio e fui convidado a escrever sobre um dos quatro temas escolhidos para lançar o título. Um dos personagens era a Janete Clair e a princípio não aceitei. Só aceitei quando vi que não era biografia, apenas perfil. À medida que comecei a apurar, fui me apaixonando. No final, já desconfiava que tinha vindo ao mundo para escrever sobre a Janete. Fiquei muito envolvido. Adorei ter feito. Às vezes leio coisas sobre ela que parecem ter saído do livro, o que me deixa muito orgulhoso. A Janete talvez tivesse a injusta imagem de fornecer o “circo” para o povo durante a ditadura militar. Foi uma artista tão censurada quanto o Chico Buarque, por exem-
plo, vivia em Brasília brigando com os censores, mas não entra nessa lista. E ela sofria muito por não ter o mesmo respeito intelectual que o marido, Dias Gomes. É uma personagem muito interessante e eu fiquei totalmente responsável por ela. Uma vez, o Dias Gomes me ligou, porque havia saído uma informação errada sobre ela — nem lembro mais onde foi — e me disse: “Você é o biógrafo oficial da Janete, tem a obrigação de desmentir isso.” Fiquei orgulhoso. Eu os chamava de Seu Dias e Dona Janete. Jornal da ABI — Você se arrepende de alguma coisa que tenha feito?
Jornal da ABI — Você já escreveu a coluna dos seus sonhos?
Xexéo — É capaz. Foram tantas que já devo ter feito a dos meus sonhos e também a pior de todos os tempos. Na verdade, não tenho nenhum projeto de escrever uma coluna determinada e não me acho um cronista. Não sei o que sou quando escrevo naquele espaço ali. De vez em quando, me aproximo da crônica. Quanto mais isso acontece, e ainda é raro, eu gosto. Supero um obstáculo, meu trabalho é melhor, fica mais literário e atinge as pessoas de modo mais sofisticado do que simples comentários ou opiniões sobre um assunto. Quando isso acontece, estou mais perto dos meus sonhos.
“A novela entra na minha coluna quando percebo o interesse do leitor. Ou quando estou sem assunto. O retorno é garantido.”
Xexéo — Tenho um arrependimento que sempre comento: fui injusto com um artista. Hoje trocamos correspondência, mas não tenho coragem de falar sobre o assunto nem sei se ele se lembra, mas falo tanto disso que é capaz de um dia ele ter lido. Eu fazia crítica de música para a Veja e saiu um disco do Marcos Vale. A capa do lp era o rosto dele. Não gostei e falei mal do trabalho, usando a seguinte imagem: “A música de Marcos Vale está tão enrugada quanto o rosto na capa do disco.” No dia achei inteligente; depois observei que havia um quê de perversidade que não ajudou a melhorar o texto, não ajudou a crítica, não agradou o leitor e acabou por ofender e magoar uma pessoa que não tinha nada a ver com isso. Daí o arrependimento. Jornal da ABI — Qual foi a notícia mais difícil que você já deu ou a coluna que doeu escrever por algum motivo?
Xexéo — Eu era fã da Elis Regina, acho que sou o maior fã que ela já teve na vida. Assisti aos shows dela várias vezes, tenho todos os discos em vinil e em cd, adorava a Elis. Até acho que me tornei jornalista para um dia poder entrevistá-la. Era o motivo para me aproximar dela. Eu não cobri a morte dela mas estive nas paralelas, fui entrevistar pessoas, conversei com o Jair Rodrigues, com o Tom Jobim... Tudo isso foi muito difícil de fazer, porque eu estava sofrendo muito. E no dia da morte dela, estreou aqui no Rio um Show da Lucinha Lins, no Teatro da Lagoa. Estava arrasado, e tive de ver e depois escrever sobre o espetáculo. Acho que foi a coisa mais difícil que eu fiz. Estava, emocionalmente, muito perto daqueles acontecimentos. Sofri muito por ter de trabalhar em pleno estado de luto. Foi uma morte muito surpreendente pra todo mundo. Você espera uma morte por overdose da Janis Joplin, mas não da Elis. A maneira como ela morreu também foi muito chocante.
Jornal da ABI — Você já bateu forte em algumas pessoas, no Ministro Gil, na Regina Duarte... Como é essa decisão de “vou falar mesmo e que se dane”?
Xexéo — Nunca é assim “vou falar e que se dane”. Você sabe que está atingindo de alguma maneira, mas não parto do princípio de que todo mundo lê a minha coluna e o ministro vá ler também. Aliás, acho que ele não lê, que tem mais o que fazer. Eu procuro não dar essa importância ao que escrevo. De verdade, mas se for importante escrever e dividir, não tem jeito. Às vezes, você cria um compromisso com o leitor em que não pode fugir de tomar certas atitudes. Talvez eu tenha falado mal, não sei se essa é a expressão mais adequada, por perceber que essa era a expectativa do leitor. Mas é preciso ser responsável e fazer ponderações o tempo todo. Jornal da ABI — E se você fosse professor universitário de Jornalismo, o que ensinaria a seus alunos?
Xexéo — O jornalista tem de ter duas qualidades básicas. Uma é a curiosidade; acho que é possível ensinar isso. A outra é a humildade, pois esta é uma profissão que, talvez por ser associada a essa história de quarto poder, permite que você se ache melhor que os outros, tenha o nariz empinado e se sinta com o rei na barriga. Isto acaba prejudicando o trabalho. A gente detém, ou consegue, a informação por uma única razão: não porque é mais inteligente, mais bonito ou mais gostoso, mas porque sabe que tem a função de dividi-la com a sociedade. É preciso ter humildade o tempo todo para saber que você é só o “cavalo” dessa história, que não é melhor do que ninguém porque sabe antes das coisas. Eu tentaria passar isso. Entrevista publicada no Site da ABI em 28 de dezembro de 2006.
CLÓVIS ROSSI
SOMOS TESTEMUNHAS DA HISTÓRIA Articulista da Folha lembra Bob Woodward, do escândalo Watergate, para dizer que jornais e jornalistas têm o compromisso de publicar sempre a melhor verdade possível de cada informação. Jornal da ABI — Sabemos que você gostaria de ter sido diplomata. Por que decidiu ser jornalista?
Clóvis Rossi — Porque não tinha idade ao terminar o curso Científico, como então se chamava, para prestar vestibular para a carreira diplomática. Para não ficar parado, resolvi fazer o vestibular para Jornalismo, passei, entrei na Faculdade. No segundo ano já fui indicado para uma vaga no Correio da Manhã (sucursal em São Paulo). Fiquei, fui ficando, ficando, ficando... Jornal da ABI — O jornalismo é mesmo aquilo que você pensava ou. com o tempo, você percebeu que não tinha opinião bem-formada a respeito do dia-a-dia de uma Redação?
Clóvis — É evidente que o dia-a-dia varia muito de Redação para Redação, de momento histórico em momento histórico, de algumas funções que você exerce para outras, etc. Assim, não dá para responder genericamente.
ENTREVISTA A JOSÉ REINALDO MARQUES
N
ascido na cidade de São Paulo em 1943, Clóvis Rossi é colunista, repórter especial e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo. Trabalhou no Jornal do Brasil e foi editor-chefe de O Estado de S. Paulo. Teve participação em coberturas internacionais de grande repercussão, pelo Estadão e pela Folha, da qual foi correspondente em Buenos Aires e Madri. Escreveu vários livros sobre jornalismo, entre eles Vale a pena ser jornalista? (Moderna, 1986), no qual aborda os prós e os contras da profissão. Para Clóvis Rossi, “o que há de bom na profissão é essa coisa de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. O que há de ruim é a exigência até irracional de dedicação plena”. Clóvis Rossi considera que o jornalista de um diário é um batalhador que “precisa matar um leão por dia”. Ao chegar aos 44 anos de profissão, diz que tem pela frente umas 10 mil batalhas, todas interessantes, em grandes assuntos, mas também em pequenos pés-de-página. Nesta entrevista o leitor vai conhecer a experiência de Rossi, sua opinião sobre o jornalismo nacional e por que prefere sair da tranqüilidade da Redação para pôr os pés nas ruas atrás da boa notícia.
Além disso, eu nem tinha opinião formada sobre jornal, jornalismo e Redação quando fiz o vestibular e também quando comecei a trabalhar. Jornal da ABI — Com base na sua própria experiência você escreveu o livro Vale a pena ser jornalista? Vale mesmo a pena?
Clóvis — Sim, claro. O que há de bom na profissão é essa coisa de poder ser testemunha ocular da história de seu tempo. O que há de ruim é a exigência até irracional de dedicação plena, na qual você é atirado pelo seu senso de responsabilidade. Deveria haver a maneira de conciliar melhor as duas coisas, mas não aprendi ainda. Jornal da ABI — No livro O que é Jornalismo (Brasiliense, 2005) você diz que jornalismo é uma batalha. Por quê?
Clóvis — Disse que é uma batalha pela conquista das mentes e corações de leitores/ouvintes/telespectadores. Porque é preciso conquistá-los para ser lido/ouvido/visto, certo? Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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CLÓVIS ROSSI
carágua, em El Salvador, na Espanha, em Portugal e na África do Sul). Jornal da ABI — Em El Salvador, o carro em que você viajava foi atingido por tiros, supostamente disparados por soldados do exército. Qual foi a sua reação na hora?
Clóvis — Nunca soubemos quem disparou. Minha reação foi me enfiar debaixo do painel, nem sei como, pelo meu tamanho. Jornal da ABI — Qual foi o episódio que fez você chorar durante a cobertura na Argentina?
Clóvis Rossi numa viagem a Helsinki, visita a Catedral Ortodóxa Uspenski, uma das marcas da dominação Russa na história da Finlândia.
Jornal da ABI — Quais foram as principais batalhas que você enfrentou no exercício da profissão?
Clóvis — A Folha de S.Paulo, sem dúvida.
Clóvis — Quem, como eu, trabalha praticamente a vida toda em diário sabe bem que é preciso matar um leão por dia. Portanto, com 44 anos de profissão, devo ter aí umas 10 mil batalhas, todas interessantes, em grandes assuntos, mas também em pequenos pés-de-página.
Jornal da ABI — Na Folha, além de escrever coluna, você também foi editorialista. É difícil isentar o discurso do colunista da opinião do jornal?
Jornal da ABI — Você iniciou a carreira um ano antes de o Brasil sofrer o golpe militar que mergulhou o País na obscuridade das liberdades de imprensa e de expressão. Como você acha que a mídia se saiu ante esse quadro?
Clóvis — Nunca falo da mídia como um todo, como se ela fosse homogênea. Há diferenças substanciais, acho, entre, digamos, Folha e Veja, Estadão e TV Globo e por aí vai. Logo, seria preciso fazer análise caso por caso para responder adequadamente, o que não tenho tempo nem condições de fazer apoiado apenas na memória, que é sempre traiçoeira. Jornal da ABI — O que você tem a dizer sobre a qualidade do jornalismo brasileiro?
Clóvis — Acho que o bom jornalista brasileiro compete em igualdade de condições com o bom jornalista americano ou europeu. O problema é que, pela qualidade da educação, os países desenvolvidos conseguem formar maior quantidade de jornalistas qualificados do que o Brasil, mas a parte boa do nosso jornalismo não passa vergonha, não. Jornal da ABI — Que tipo de mídia atualmente no Brasil tem projeto editorial mais plural e independente?
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Clóvis — Faz tempo que não faço editoriais. Quando os fiz, o enfoque era sempre bastante discutido previamente, o que me dava todos os subsídios para saber o que a instituição Folha queria dizer. Logo, não tinha maior dificuldade, até porque as diferenças de opinião não são tão agudas assim, creio. Eu apenas sou mais sangüíneo, digamos. Jornal da ABI — Por causa da internet, ficou mais difícil para o jornalista dar um furo de reportagem. A rede também veicula muita inverdade. Nesse caso quais os cuidados que um repórter deve ter para não cometer as barrigas?
Clóvis — Os cuidados são os mesmos de sempre. O trabalho do repórter (e os cuidados a ele associados) não mudou. Mudou apenas o modo de difundir a mensagem. Jornal da ABI — Ao contrário do padrão habitual, você é o tipo de colunista que gosta de pôr os pés fora da Redação em busca da notícia. Por quê?
Clóvis — Porque acho que a única maneira de ser feliz na profissão é como testemunha ocular da história do meu tempo. E não dá para ser testemunha de nada sem botar os olhos em cima do evento da hora. Jornal da ABI — Por que a cobertura da morte do Tancredo Neves foi a matéria mais difícil da sua vida?
Clóvis — Porque o objeto da notí-
cia ficava quatro andares acima de onde os jornalistas podiam ficar (a calçada do Incor) e porque eu sou profundamente ignorante em matéria de medicina, doenças, saúde etc. Jornal da ABI — E sua experiência como correspondente internacional?
Clóvis — Como correspondente foi uma experiência (riquíssima) de três anos na Argentina e uma de sete meses na Espanha. O resto, aí sim, em grande quantidade, é como enviado especial. Jornal da ABI — Quais foram as coberturas mais importantes de que você participou nos países em que trabalhou?
Clóvis — Eu gostei muito do que fiz na Argentina, talvez porque, pela primeira vez na vida (e já tinha quase 20 anos de carreira), recebi retorno do leitor (pelo menos do leitor argentino). Publiquei até o texto que os exilados argentinos no Brasil me dedicaram, quando anunciei meu retorno ao Brasil. Considero-o a minha melhor condecoração. Jornal da ABI — O resultado desse trabalho teve outros desdobramentos?
Clóvis — Mais tarde, soube pelo porta-voz do Presidente Néstor Kirchner que os grupos da resistência argentina à ditadura xerocavam o material da Folha porque era o único que tratava de temas relativos a direitos humanos, mesmo durante a ditadura, coisa que a mídia local não podia fazer. Gostei de um monte de outras coisas, entre elas a chance de ter feito a cobertura da transição da ditadura para a democracia em um quilo de países (todos os da América do Sul em que houve a transição e ainda na Ni-
Clóvis — Era um dia especial de manifestação das Madres de Plaza de Mayo. A ditadura, já abalada, cercou todos os acessos à Plaza, com um cordão de policiais-”armários”. Eu caminhava pela Avenida de Mayo, em direção à praça, pouco atrás de uma das mães, de lenço branco na cabeça, com o nome do filho desaparecido, rosto enrugado pela dor. Ela trombou com a barreira policial, pequenininha, frágil, absolutamente indefesa e disse à tropa: “Deixe-me passar que tenho um encontro marcado com meu filho”. O filho estava morto, como todos sabíamos. Quem não choraria? Jornal da ABI — Você tem acompanhado, com muito interesse, as últimas reuniões de cúpula sobre as negociações de comércio exterior. O que o atrai tanto nesse tema?
Clóvis — O fato de que elas giram em torno de tudo, literalmente tudo, o que o ser humano produz e comercializa transfronteiriçamente. Então, é uma chance enorme de aprender um montão de coisas. Jornal da ABI — Você escreveu um artigo dizendo que na Venezuela “a liberdade de imprensa é absoluta”. A não renovação da concessão da Radio Caracas Televisión–RCTV não seria uma forma de censura à liberdade de expressão?
Clóvis — Até agora eu mantenho a minha posição. A cassação da Radio Caracas de Televisión seria, sem dúvida, censura à liberdade de expressão. Se houver a cassação da RCTV, mudo de opinião. Jornal da ABI — Você ouviu falar de algum governo, se é que existiu, que tenha se manifestado satisfeito com a mídia?
Clóvis — Nenhum que eu saiba. Nem no Brasil nem no exterior. Jornal da ABI — Qual é a responsabilidade social dos jornalistas e dos meios de comunicação?
Clóvis — É a mesma: publicar a melhor versão da verdade possível de obter. O conceito não é meu, mas do Bob Woodward, aquele do escândalo Watergate, em palestra na Usp, muitos anos atrás. Entrevista publicada no Site da ABI em 9 de março de 2007. Após a publicação, a concessão da Rádio Caracas Televisión–RCTV não foi renovada.
ÉLCIO BRAGA
N VIOLÊNCIA EXIGE APURAÇÃO MUITO MAIS DETALHADA Redução do espaço e premência de tempo nos diários conspiram para que as reportagens deixem de ser escritas com mais criatividade e informações, diz repórter que convive com a violência. ENTREVISTA A JOSÉ REINALDO MARQUES
ascido em Nova Iguaçu há 43 anos, o jornalista Élcio Braga, do jornal O Dia, é considerado um dos mais experientes repórteres da cobertura policial do Rio. Sua estréia, após se formar em 1987, foi no Jornal de Hoje, de sua cidade, mas o interesse pela profissão vem da infância, quando criava emissoras fictícias de tv e imaginava os programas que ia exibir. Para ele, a reportagem de Polícia é simples, mas se tornou muito perigosa — “mesmo assim, acho bom começar na carreira pela editoria de Cidade”, comenta. Ao falar de violência, ele destaca a pressão psicológica que estressa a população e não poupa críticas às autoridades, devido à falta de políticas públicas que protejam efetivamente a sociedade da criminalidade. Diz também que, com alguns pequenos ajustes, a imprensa cumpre um papel importante no processo de denúncia e esclarecimento dos atos violentos, melhorando ainda mais sua participação. “É preciso haver espaço também para se falar da realidade do agressor ”, afirma Élcio, que também comenta sua prisão pela Polícia Federal, em 1999. Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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ÉLCIO BRAGA
Jornal da ABI — Sua opção pelo jornalismo foi vocação ou acaso?
Élcio Braga — Desde os 10 anos fazia grade de programação de tv. Criava emissoras fictícias e ficava imaginando que programas ia exibir. Também fazia à mão pequenos jornais e os distribuía na sala de aula. Isso tudo apesar de ser extremamente tímido.
e, por isso, nunca recebia carne. Foi também um dos únicos que não “pegou” uma baiana que saía com todo mundo na caminhada. Fiz também uma matéria sobre tortura nos morros cariocas, bem antes do caso Tim Lopes. Os traficantes contavam, rindo, tudo o que faziam com suas vítimas. No final, me convidaram para presenciar o que iam fazer com um inimigo.
Jornal da ABI — Foi fácil ingressar na carreira?
Élcio — É mais simples começar como estagiário. Com dedicação, você acaba conquistando a confiança do editor e é contratado. A outra opção é mais dolorosa. Depois de formado, não se consegue mais entrar pela porta da frente nos grandes veículos. Parodiando um ditado muito usado por Brizola, a gente precisa comer o mingau pelas beiradas. A solução é buscar vagas em jornais de bairros ou do interior. Foi assim que aconteceu comigo. Comecei no Jornal de Hoje, de Nova Iguaçu. A remuneração não chegava a dois salários-mínimos, mas aprendi muito. Jornal da ABI — E depois?
Élcio — Após rápida passagem pela assessoria de um político da Baixada, comecei a cobrir a madrugada no jornal O Dia, em 1991. Em seguida, fui para a editoria da minha região, que produzia material diário para a edição metropolitana e tinha um caderno dominical. Hoje estou na Cidade, onde faço muitas matérias de fundo social, mas confesso que me interesso mais por comportamento e biografias.
Jornal da ABI — O relatório Mídia e violência — Como os jornais retratam a violência e a segurança pública no Brasil, da Universidade Cândido Mendes, diz que os textos da Repol (reportagem de Polícia) ainda são “superficiais e descontextualizados”. Há exagero nessa afirmação?
Élcio — Para deixar de ser superficial, é necessário mais e mais espaço. O mundo está corrido demais. Nem sempre podemos nos aprofundar nos assuntos. Eventualmente, os jornais fazem abordagem mais detalhada nas edições de domingo. No dia-a-dia, realmente as reportagens são mais, digamos, inocentes ou reféns do tempo, aceitam as versões oficiais. Jornal da ABI — Alberto Dines, diretor do Observatório da Imprensa, diz que se vê “uma ostensiva diminuição e burocratização da cobertura policial” num momento de crescimento da violência. Como analisa essa crítica?
Élcio — É verdade, a violência cresceu muito, o que deveria estimular os jornalistas a investir na apuração mais detalhada. O repórter precisa ser cada vez mais extraordinário. Quando comecei, em 1989, chacinas com três ou quatro mortos davam manchetes. Hoje, muitas vezes nem os jornais populares noticiam tais crimes. O caso João Hélio deixou todos estupefatos; a gente tinha perdido a capacidade de se horrorizar. E a banalização foi jogando muitas matérias para as colunas de notas curtas. Jornal da ABI — É preciso passar pela Geral, principalmente pela Repol, para se tornar um bom repórter?
Élcio — Jornalismo é uma profissão em que as regras estão cheias de exceções, mas é muito proveitoso para o estagiário ganhar experiência nas matérias de Polícia, em que se aprende o básico da reportagem, como identificar rapidamente o lide, pois os fatos não são tão complexos. Imagina começar numa editoria como a de Economia, com todos aqueles detalhes sobre taxas de juros e informações de bastidores? É claro que hoje a Geral, sobretudo a Repol, assusta. Há realmente riscos e os profissionais se expõem, ainda que, na maioria das vezes, desnecessariamente. Já cheguei em muitos lugares sob aplausos da multidão. Entrava em favela sem problemas, sentia-me segu-
Élcio — Um amigo fotógrafo estava numa van que foi seqüestrada por bandidos, em Itaguaí. Sabe qual foi a primeira coisa que ele fez? Pegou o crachá e, com muito cuidado, escondeu-o debaixo do banco, para não ser reconhecido como jornalista. Eu e vários colegas já passamos por situações de perigo, nem sempre em matérias de denúncias. Uma vez, por exemplo, fui ao Morro da Cachoeirinha (Zona Norte do Rio) para entrevistar um casal que estava junto há 50 anos e ia se casar num programa da Prefeitura. Os traficantes não esconderam a contrariedade com a minha presença e eu fui embora apressadamente. Jornal da ABI — E como é lidar com esse tipo de situação?
Élcio — O que mais me impressiona é o rosto aterrorizado de parentes das vítimas; é difícil conviver com esse tipo de coisa. Há casos também em que temos de abrir mão da reportagem para não pôr outras pessoas em risco, entre outros motivos. Passei por momentos de tensão, mas não estive de cara para a morte. Sou cuidadoso. Penso muito em como seria a vida da minha filha e de outros parentes caso ocorresse algo comigo. É o que me dá mais medo.
Élcio — A de uma sociedade que está assustada e paranóica com tanta violência. O “ninguém sabe, ninguém viu” impera. Até em off tem gente com medo de dar entrevista. Esse negócio de parar em sinal e ficar olhando para os lados mostra como estamos alucinados. Percebo isso mais claramente quando vou fazer matérias fora do Rio e me dou conta de que não preciso ficar tão alerta. É um alívio e tanto.
Élcio — O repórter de jornalismo impresso tem um desafio muito maior do que os colegas de outros meios. Se você mostra uma imagem em movimento e joga um áudio, já cria um clima para despertar a atenção. No texto, que nem sempre é acompanhado sequer por foto ou ilustração, o que nos resta é o modo de repassar a informação. Sempre gostei de abrir as matérias de um modo diferente, mas, com a permanente redução de espaço nos jornais, temos cada vez menos chance de usar a criatividade no lide e no resto do texto.
Jornal da ABI — Há quem diga que o amplo noticiário criminal aumenta o medo.
Élcio — Se isso ocorre, é positivo, porque é para ficar amedrontado mesmo. Acho até que a situação é mais grave do que os jornais retratam. Os números da violência são subestimados. Todos sabem disso. Muita gente não registra assaltos, muita coisa que chega às Redações não pode ser investigada por dificuldades de acesso...
Jornal da ABI — Houve alguma reportagem mais marcante?
16 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
Jornal da ABI — Qual foi o impacto dessa mudança?
Jornal da ABI — Qual é a verdade das atuais reportagens policiais?
Jornal da ABI — Pertencer à nova geração de repórteres não o impede de se destacar entre os colegas mais maduros, com muitas matérias nas finais de importantes prêmios de Jornalismo. A que você credita isso?
Élcio — Gostei muito de uma em que acompanhei a primeira caminhada dos sem-terra a Brasília. Foram mais de dez dias ouvindo histórias comuns. Escrevi a reportagem sob a ótica de um gorducho, o Pedrão, um dos cariocas do grupo. Preferi não entrar na questão política da causa, mas mostrar como eles viviam e o que era participar daquele movimento. O Pedrão era lerdo e sempre chegava atrasado. Ficava no fim da fila para comer
ro por ser repórter. E não faz tanto tempo, no início dos anos 90 ainda era assim. Agora, tudo mudou.
Jornal da ABI — A cobrança da imprensa sobre políticas de segurança pública tem dado resultado?
No Haiti, em 2004, avaliando os quatro primeiros meses de ocupação brasileira.
Élcio — Sim. Ela pode gerar mais mobilização policial quando passa a relatar determinada modalidade de crime, por exemplo. O problema é quando a cobrança é generalizada. Aí, sobra espaço para o discurso político e se começa a pôr a culpa em outras gestões, a dizer que o problema é social etc.
Élcio é participante destacado do Prêmio Vladimir Herzog de Direitos Humanos, láurea que já conquistou com suas reportagensdenúncias de violências policiais nas comunidades pobres do Rio.
Jornal da ABI — Qual deve ser o comportamento da mídia?
Élcio — Exercer esse papel de fiscalização. Quando a imprensa não acompanha avidamente um caso, ele está condenado ao esquecimento e arquivamento. Jornal da ABI — As reivindicações da sociedade dividem-se entre as da elite e as das populações marginalizadas. O noticiário reflete essa divisão?
Élcio — Às vezes os meios de comunicação são elitistas e acabam defendendo o interesse da classe média, condenando as populações carentes. Houve uma época, por exemplo, em que os jornais questionavam as excursões de pessoas humildes para praias da Região dos Lagos, chamando-as de farofeiras. Alguns prefeitos chegaram a proibir a entrada dos ônibus desses excursionistas em seus Municípios. Jornal da ABI — Esse comportamento não é preconceituoso?
Élcio — É claro que a mídia, como resultado da sociedade, tem conceitos e crenças difíceis de derrubar. Anos atrás, vi muitos colegas se negarem a fazer matéria com homossexuais. Quem sugeria pauta sobre o assunto virava alvo de piadas. Quando algum ativista gay telefonava, o repórter que atendia passava a ligação para outro ramal, e isso ia se sucedendo em toda a Redação. Quebrar o preconceito na imprensa é como derrubar a primeira peça numa fila de dominó. Jornal da ABI — Caco Barcelos, da TV Globo, diz que o profissional da Repol não lida com polícia e sim com injustiças sociais. Ele tem razão?
Élcio — Um caso recente chamou minha atenção. Na acareação dos acusados de matar o menino João Hélio, um colega levou um pontapé de um cinegrafista de tv por ter ficado perto de um dos bandidos no dia da prisão. Outros tentaram agredir os suspeitos. Um policial, surpreso, repreendeu os jornalistas. Jornal da ABI — É complicado apurar matérias em órgãos públicos?
Acima à direita, Élcio ao fundo investiga a situação das prostitutas brasileiras escravas nos bordeis do interior do Paraguai. Ao lado, em Aparecida.
Élcio — Nas delegacias, por exemplo, dependemos da boa vontade dos policiais. Alguns, com medo de punição, não passam nada, mas isso não acontece só com a Polícia. Uma vez solicitei o currículo escolar de um religioso envolvido em um baita escândalo. A Secretaria Municipal de Educação recusou, disse que era invasão de privacidade e por aí vai. Aleguei que, pela Constituição, eu tinha direito à informação, que era de interesse público. Recomendaram-me então um caminho cheio de burocracia, que levaria meses para dar algum resultado. Jornal da ABI — Cresce no País, principalmente no interior, o número de casos de agressão a jornalistas que denunciam corrupção. Como você vê a situação?
Élcio — Repórter não é assessor de imprensa. Em geral, não se compra jornal para se ler elogios sobre ninguém. Obviamente, as reportagens desagradam mais do que agradam. Há muitas ameaças. Muitas ficam só na esfera jurídica, o que é legítimo. O que precisamos é que elas sejam denunciadas com muito barulho, cobrando ações das autoridades, e não ter medo, divulgando mais e mais crimes. Quanto mais forte a imprensa parecer, menos ameaças teremos. Os veículos devem estar unidos nessa luta. Jornal da ABI — Em 1999, você foi preso pela Polícia Federal. Por quê?
Élcio — Parentes do porteiro do Galpão de Curas do médium Rubens Faria, o Dr. Fritz, denunciaram que policiais federais o haviam prendido com flagrante forjado de posse de arma. À
época, o médium estava envolvido em uma série de denúncias e alegava que era tudo armação da ex-mulher. Enfim, nesse rolo todo, prenderam o porteiro e fui à PF, na Praça Mauá, conversar com ele. Dei o meu nome e entrei. Nem estava gravando entrevista na cela, quando um policial me achou parecido com algum bandido e pediu meus documentos. Ficaram revoltados ao descobrir que eu era repórter e inventaram que eu os desacatara. Aí, pensei: será que o porteiro estava realmente armado? Quando estava sendo autuado, um policial disse em tom debochado: “Quero ver se ele tem coragem de pôr isso no jornal”. No dia seguinte, saiu a matéria sobre minha prisão. Escrevi um artigo com o título: “Entrar na Polícia Federal foi mais fácil do que roubar doce de criança”. Jornal da ABI — Como O Dia reagiu à sua prisão?
Élcio — Mandou advogados imediatamente e, como eu disse, noticiou a prisão com destaque. Fui embora com R$ 50 de fiança, que o jornal pagou. Na verdade, a irritação maior dos agentes era contra outro jornalista, que havia escrito uma série de matérias denunciando corrupção na instituição naquele período. Hoje a Polícia Federal tem outra imagem na mídia.
Jornal da ABI — Já passou pela sua cabeça mudar de profissão?
Élcio — Já. Um dia, no início da carreira, procurei um gerente da Souza Cruz para ser vendedor de cigarro e ouvi dele o seguinte: “Como faxineiro na minha empresa, você vai ganhar mais do que como repórter”. Um colega que me acompanhava, no entanto, me garantiu que eu ia morrer velhinho, fazendo o que realmente gostava: ser jornalista. Resolvi continuar na profissão. Gostei dessa história do velhinho. Penso em, daqui a um tempo, me dedicar a documentários e biografias, sobretudo voltados para a internet. O vídeo na web vai crescer ainda mais nos próximos anos. O campo é vasto. Jornal da ABI — E enquanto esse momento não chega?
Élcio — Tenho filmado bastidores de algumas coberturas. Há cenas inusitadas de repórteres em ação, que geraram o envio de outras por muitos colegas. Um dos registros que fez mais sucesso foi o do fotógrafo Carlos Moraes gritando descontroladamente em Irecê, na Bahia, ao descobrir pererecas no seu quarto. Gravei o áudio do desespero e distribuí com outros vídeos no fim do ano. Entrevista publicada no Site da ABI em 20 de julho de 2007.
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FERNANDO MOLICA
DEFENDER A LIBERDADE DE IMPRENSA É DEVER NÃO APENAS DOS JORNALISTAS, MAS DA SOCIEDADE Formado na redação de jornais, ele se reciclou para trabalhar na tv, que tem linguagem própria e diferencial importante: o trabalho deixa de ser solitário para ser de toda a equipe. ENTREVISTA A RODRIGO CAIXETA
C
arioca, criado na Piedade, subúrbio do Rio, Fernando Molica completou 26 anos de profissão em 2007. Formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, ensaiou os primeiros passos na carreira ainda na infância, colaborando para o suplemento O Jotinha, de O Jornal. Naquela época, no entanto, sonhava ser jornaleiro, “para passar o dia inteiro lendo jornais e revistinhas” e foi na adolescência que fez a escolha definitiva pelo jornalismo. Aos 46 anos, repórter especial da TV Globo, ele concilia o trabalho na emissora com um cargo na diretoria da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo–Abraji e se prepara para estrear no universo acadêmico coordenando um curso de MBA da FGV-Rio. Carrega ainda no currículo passagens pelas redações do Globo, Folha e Estadão e a autoria de três livros. Aqui Molica relembra sua trajetória profissional, fala sobre os caminhos do jornalismo investigativo e as reportagens que marcaram sua vida e critica o desrespeito à liberdade de imprensa.
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FERNANDO BUENO
Jornal da ABI – Quando você estreou no jornalismo e em qual veículo? Antes já tinha exercido alguma outra profissão?
Fernando Molica – Se for para responder ao pé da letra, usando a lógica dos mil gols do Romário, posso dizer que minha estréia foi em O Jotinha, suplemento infantil de O Jornal. Por volta dos 8/9 anos, eu mandava colaborações eventuais para o tal suplemento. Tinha até carteirinha de repórter-mirim. O trabalho profissional começou em 1981, quando iniciei uma série de frilas para a Bloch Editores. Publiquei matérias na Manchete e na Fatos & Fotos. No mesmo ano comecei a estagiar na sucursal carioca do Estado de S.Paulo e acabei contratado em 1983, assim que me formei. Jornal da ABI – O que o motivou a se tornar jornalista?
Molica – Não sei bem, talvez um conjunto de fatores. Sempre gostei da idéia. Inicialmente, confesso, queria ser jornaleiro, para passar o dia inteiro lendo jornais e revistinhas. Depois, no início da adolescência, decidi que iria ser jornalista. Até pensei em fazer publicidade ou cinema, mas a opção pelo jornalismo acabou vingando. Como disse, não sei bem o que me atraiu, não tinha nenhum parente jornalista, nenhum amigo dos meus pais exercia a profissão. Sei que gostava muito de ler jornal, um hábito que adquiri desde cedo – o timaço do Botafogo em 67/68 ajudou a criar esse vício. Outro detalhe importante: o jornal, de alguma forma, servia de ponte para um outro mundo, permitia que eu saísse da Piedade, do subúrbio. Pelo jornal eu sabia de fatos do mundo inteiro, inclusive da minha própria cidade, do que ocorria do outro lado do túnel. Sempre vi o jornal como, na prática, um bom amigo, que me contava boas histórias, que me mantinha bem informado. Ah, sempre gostei de escrever. Isso certamente também contribuiu para a opção. Jornal da ABI – Ao longo de sua carreira, você tem passagens pelas sucursais cariocas da Folha de S.Paulo e Estadão e na chefia de reportagem do Globo. Como foi sua experiência na redação destes jornais?
Molica – A passagem pelo Estadão foi fundamental. Em primeiro lugar, eu começava, enfim, a trabalhar em um jornal, um jornal importante. A sucursal era grande, formada por jornalistas mais velhos – na época, eu achava que qualquer pessoa com mais de 30 anos era meio idosa. Esse convívio com profissionais mais experientes foi importantíssimo, aprendi muito com eles. Em 85, vi um anúncio da Folha para uma vaga de repórter na sucursal do Rio. O salário era o dobro do meu. Mandei o currículo e acabei sendo escolhido. A ida para a Folha representou um recomeço, cheguei lá no auge da implantação do Manual de Redação, tempo bem radical, em que
Molica entrevistou Débora Bloch em 1984, quando trabalhou na sucursal carioca do jornal O Estado de S.Paulo.
princípios consagrados do jornalismo passavam por crítica muito forte. Foi meio complicado no início, mas acabou sendo uma experiência que redefiniu muitos de meus conceitos sobre o jornalismo. Fiquei seis anos por lá, como repórter e chefe de Reportagem. Depois, fui para O Globo e um ano depois voltei para a Folha, como repórter especial. A ida para O Globo, na chefia de Reportagem, representou minha estréia em um jornal local. Um negócio meio louco, na época havia 40 repórteres na editoria Rio. Isso sem contar com os fotógrafos. É muita gente. Pior é que repórter, por definição, é um ser meio indisciplinado, questionador. E é bom que seja assim. E a Cidade é, digamos, dinâmica; de tédio a gente não morre, né? Enfim, foi um período muito intenso, conheci profissionais admiráveis, aprendi muito. O convite para voltar a cuidar de um repórter apenas – eu mesmo – foi tentador. Jornal da ABI – Atualmente você é repórter especial da TV Globo. Quando surgiu o convite para a televisão? Houve algum tipo de dificuldade para se adaptar à linguagem televisiva?
Molica – Houve, claro. Aos 35 anos eu voltei a ser um iniciante. Não é simples. É claro que, no fundo, trabalhamos com a mesma matéria-prima, a notícia, mas o processo de produção na tv é bem diferente, desde a apuração até a edição. A minha geração queria trabalhar em jornal, não me lembro que houvesse, na faculdade, alguém que queria ir para a tv (hoje, pelo que sei, é o contrário). Quando o Evandro Carlos de Andrade e o Luiz Erlanger me chamaram, achei que era
para assumir algum cargo de chefia, não imaginava que era para ser repórter. Resolvi apostar, tentar aprender a fazer aquele negócio. E o início foi difícil. A tv tem gramática própria, você tem que aprender a falar para a câmera, tem que se preocupar com a voz, com a narração, com a “conversa” com o telespectador. O texto também é diferente, mais calcado nas imagens. O trabalho em jornal é mais solitário, na tv envolve muita gente, é preciso aprender a lidar com trabalho mais coletivo. Já estou em tv há 11 anos, acho que está dando razoavelmente certo. Jornal da ABI – O repórter de tv, aliás, gosta de estar ao vivo porque pode arrancar algo inesperado do entrevistado. Até que ponto vai o limite do profissional para não deixar o entrevistado em situação embaraçosa ou constrangedora?
Molica – Acho que isso vale para qualquer repórter, de tv ou não. O limite entre a ousadia e a grosseria é, às vezes, meio tênue. O problema é que, na tv, todos ficam mais expostos, o entrevistado e o entrevistador. Ao vivo, então, é pior. Como sempre, vale usar o bom senso. Jornal da ABI – Você é autor do romance Notícias do Mirandão, sucesso de crítica e vendas, de O homem que morreu três vezes e organizou 10 reportagens que abalaram a ditadura. Quando surgiu o lado escritor?
Molica – Acho que desde a adolescência eu queria ser escritor, mas o exercício do jornalismo acabou intenso demais, não dava muito espaço para tentar outras possibilidades.
Além do mais, como jornalistas, aprendemos a ser muito críticos, o que, de vez em quando, é meio castrador. Comecei a escrever Notícias do Mirandão mais como um exercício, um desafio – será que vai dar? Talvez, na época, estivesse com saudades de escrever mais, o texto em tv é sempre curto. Achei que seria legal tentar escrever ficção, partir para um texto que dependesse da imaginação, não de um processo de apuração. Apesar de estar ambientado no Rio de Janeiro da atualidade, o livro é ficção pura, trata de um grupo de esquerda que resolve se aliar a traficantes de drogas cariocas para organizar uma reedição da guerrilha urbana. Acho que a experiência jornalística ajudou a escrever o livro. O tempo todo eu ficava me perguntando: e agora, o que pode acontecer, o que é razoável acontecer? O livro foi publicado na Alemanha, deve sair ainda neste ano na França e vai virar filme, dirigido pelo Rui Guerra, o que me deixou muito feliz. Já O homem que morreu três vezes nasceu de duas reportagens que fiz para o Fantástico, sobre Antonio Expedito Carvalho Perera, um ex-advogado de extrema direita que virou aliado da guerrilha no fim dos anos 60, foi preso, torturado, banido do Brasil e que, na Europa, tornou-se fornecedor de armas do Carlos, o Chacal, o terrorista-símbolo dos anos 70, o Bin Laden da época. Personagem espetacular, a história do Perera é de humilhar qualquer ficcionista. Depois escrevi um outro livro de ficção, o Bandeira negra, amor. O 10 reportagens que abalaram a ditadura faz parte da coleção Jornalismo Investigativo, projeto da Abraji, Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, com a editora Record. Nossa idéia é recuperar reporJornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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FERNANDO MOLICA
Molica e o repórtercinematográfico Lúcio Rodrigues em San Vicente del Caguan, na Colômbia, então uma cidade dominada pela guerrilha das Farc.
tagens significativas e publicá-las ao lado de textos de seus autores ou de jornalistas que cobriram aqueles fatos. Jornal da ABI – Você tem algum projeto editorial em andamento?
Molica – Há duas semanas lançamos, também pela Abraji, o segundo volume da coleção Jornalismo Investigativo, o 50 anos de crimes, que traz reportagens sobre 20 casos policiais ocorridos entre os anos 50 e 90. E espero, ainda neste ano, publicar um outro livro de ficção. Jornal da ABI – Você saberia eleger uma matéria que tenha marcado sua trajetória? Qual e por quê?
Molica – Em tv, gosto muito das reportagens sobre o Expedito Perera. Também estive na Colômbia, fiz matéria com guerrilheiros das Farc. Foi bem interessante. Na Folha, fiz muitas reportagens sobre religião, principalmente sobre a igreja católica. Acabei, juntamente com um outro colega, antecipando que Leonardo Boff ia deixar o sacerdócio. Jornal da ABI – Como avalia o ensino nas faculdades de Jornalismo? Como analisa os focas que chegam ao mercado?
Molica – Não acompanho assim tão de perto o ensino para fazer análise mais responsável. Acho que ainda persiste uma separação meio doida entre teoria e prática, como se a 22 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
teoria não fosse essencial para que possamos criticar e melhorar nosso trabalho. Sobre os jovens: não dá para fazer crítica geral. O que talvez fique mais evidente seja certa preocupação maior com as técnicas, com a prática do jornalismo em si e com a própria carreira. Talvez ocorra hoje menor preocupação com temas mais gerais, relacionados ao País. Minha geração começou a trabalhar ainda no regime militar, havia grande discussão sobre a abertura, a democratização do País. É possível que houvesse sonhos mais coletivos, esperança mais generalizada. Acho que hoje estamos todos mais céticos, mais individualistas, com menos esperança no País. Isso é muito ruim, principalmente quando ocorre entre os jovens. Jornal da ABI – Falando em ensino, você coordenou o seminário Novos cami-
nhos do jornalismo investigativo, na FGV do Rio. Quais são estes novos caminhos?
Molica – Acredito que estamos passando por um momento muito interessante no jornalismo. Cada vez mais temos acesso a instrumentos e fontes que nos permitem buscar e trabalhar as informações de forma independente. Estamos ficando menos dependentes de fontes como deputados, promotores, policiais. Não que eles devam ser desprezados, de maneira alguma, mas está sendo criada uma cultura fundamental no Brasil que tem a ver com o acesso a documentos públicos, a informações públicas. Esta é, inclusive, uma das lutas da Abraji, a busca por uma legislação que deixe claros os critérios para o acesso a documentos públicos. Os recursos oferecidos pela internet e por programas de computador permi-
tem que o jornalista possa analisar esses dados, combiná-los e, no fim do processo, ter em mãos informações inéditas, exclusivas. O seminário procurou discutir essas possibilidades e também alguns limites para o nosso trabalho – o número de processos contra jornais e jornalistas não pára de crescer. Jornal da ABI – O que o levou a ingressar no mundo acadêmico, agora que você vai coordenar também o MBA em Jornalismo Investigativo e Realidade Brasileira, da FGV?
Molica – Recebi um convite do CpDoc(Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil) para organizar e coordenar esse MBA. Fiquei muito animado, acho que é uma chance para estudar, de forma sistematizada, questões e técnicas fundamentais para o exercício do jornalismo, particularmente do jornalismo de caráter mais investigativo, que busca informações inéditas. O universo acadêmico sempre me fascinou, ainda que, por diferentes razões, acabasse adiando uma volta aos estudos. O convite abreviou o processo e me colocou diante de um desafio muito interessante. Como coordenador, espero aprender muito. Jornal da ABI – O escândalo de Watergate (que levou à renúncia do Presidente Richard Nixon, após investigação dos jornalistas
Bob Woodward e Carl Bernstein, do Washington Post) é um marco na história do jornalismo investigativo por refletir o melhor que o jornalismo poderia oferecer à democracia: manter o poder responsável. Ainda hoje é assim?
Molica – Essa idéia é bem interessante, a de controlar o poder. O falecido Brizola dizia que a política brasileira era uma espécie de clube fechado, e afirmava que era um estranho nesse ninho. Não me cabe julgá-lo, mas acho que a definição dele é boa. O poder cada vez mais se torna algo fechado em si mesmo, como se deslocado da sociedade. Ao vigiá-lo, o jornalismo presta um serviço inestimável. Algo como um “cuidado, estamos de olho”. O jornalismo funciona como uma espécie de ombudsman da população, isso, claro, ajuda a, pelo menos, fazer com que os caras pensem um pouco nas conseqüências de algumas besteiras que pensem em fazer. Já é muito bom.
movido, em colaboração com sindicatos e entidades de jornalistas, cursos em que o repórter aprende a lidar com situações de risco, tiroteios, por exemplo. Várias empresas têm carros blindados, fornecem coletes à prova de balas. Acho que nenhuma matéria justifica o risco excessivo. E é melhor decidir isso em conjunto. Jornal da ABI – A atividade jornalística acarreta um risco de vida presumido atualmente?
Molica – Acho que não, necessariamente. Depende da situação, do veículo em que o jornalista trabalha, dos interesses que serão contrariados. Jornal da ABI – Para alguns profissionais, o jornalismo investigativo se diferencia da rotina habitual das redações por fazer a investigação minuciosa dos fatos, pelo tempo que for necessário, por
ter a disponibilidade de recursos específicos – tempo, dinheiro, paciência, talento e sorte – e a precisão das informações. São estes realmente os elementos essenciais para uma boa reportagem investigativa?
Molica – É muito difícil estabelecer uma fronteira: aqui termina o jornalismo mais comum e começa o investigativo. Uma boa investigação jornalística pode ser feita até em um dia, depende do caso. É claro que, de modo geral, matérias mais aprofundadas precisam de tempo, dinheiro, paciência, talento e, claro, sorte. O dinheiro tem sido fator preocupante. As redações andam enxutas, com poucas sobras. É complicado tirar uma equipe da pauta e permitir que os profissionais se dediquem a um tema que, volta e meia, exige viagens, uma série de custos. Podemos ter atitudes de caráter investigativo no dia-a-dia, mesmo
Jornal da ABI – Um advogado escreveu um artigo em que diz que “o jornalismo investigativo pode ser proveitoso para a sociedade, no entanto, por vezes, torna-se conflitante com os objetivos da administração pública e se sobrepõe aos valores do particular, esbarrando no conceito de moral e ética”. Você concorda com esta afirmação? Por quê?
Molica – Seria bom que ele exemplificasse. O “por vezes” é genérico demais. Não entendi o “conflitante com os objetivos da administração pública”. Como assim? A investigação sobre o caso Collor atrapalhou a administração pública? Acho que foi o Governo Collor que atrapalhou a administração pública. É certo que cometemos erros, que exageramos e, eventualmente, ultrapassamos alguns limites. O que ele diz serve para praticamente todas as profissões, inclusive para os advogados.
Jornal da ABI – Como é o seu trabalho na Diretoria da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji)?
Molica – Tenho me dedicado principalmente à coleção de livros – o último deu um trabalho imenso. Contei com a ajuda de uma colega, a Bianca Encarnação, e de dois estudantes que ficaram encarregados de buscar as reportagens. O trabalho foi muito grande. Jornal da ABI – Comemoramos recentemente o Dia Mundial da Liberdade de Imprensa e de Expressão e diversas entidades jornalísticas divulgaram relatórios alertando para o crescente número de jornalistas mortos enquanto exerciam suas atividades. Como você analisa essa triste constatação?
Molica – Pois é, a situação é grave. Ainda não há uma cultura de respeito à liberdade de informação. Temos que ficar muito atentos a isso e exigir a punição dos culpados por esses crimes. Recentemente ocorreu o assassinato do jornalista Luiz Carlos Barbon, em Porto Ferreira, interior de São Paulo. Tudo indica que o crime está relacionado a reportagens que ele publicou. Isso é absurdo, escandaloso. Defender liberdade de imprensa não é atitude corporativa de jornalistas, é algo que interessa a toda a sociedade. Quem se achar prejudicado deve recorrer à Justiça, como em qualquer lugar minimamente civilizado. Jornal da ABI – Você disse, em uma entrevista ao Observatório da Imprensa, que “o jornalismo escreve a História todos os dias (...), uma escrita meio complicada, sujeita a erros, às dificuldades naturais da pressa, da falta de uma perspectiva histórica, de um distanciamento dos fatos”. Como resolver isso, a fim de escrever a História tal como ela é?
Molica – A história, ou a História, será sempre fruto do embate de várias versões. Até hoje não se chegou a um consenso se o Brasil foi descoberto, achado ou invadido por Cabral. E olha que já são mais de 500 anos... Não existe um olhar neutro, imparcial, há sempre um viés ideológico. É normal que seja assim. O que existe mesmo são versões bem fundamentadas e outras que não são fruto de boa apuração. Temos que aprimorar essa apuração, o cuidado na busca de boas fontes, de bons documentos. A partir daí temos condições de contar bem nossas histórias.
Jornal da ABI – A morte de Tim Lopes deixou uma lacuna na profissão. Qual seria o limite do jornalismo investigativo? Até quando uma investigação é segura para o profissional dessa área?
Molica – Cada caso é um caso. Não dá para trabalharmos em tese. Cada matéria vai apresentar seus limites, suas dificuldades e seus riscos. Tudo isso tem que ser avaliado pelo profissional e pela sua chefia. O importante é não tomar decisões sozinho. Jornal da ABI – Qual seria a responsabilidade das empresas em relação aos seus jornalistas? Eles assumem o risco por suas atividades?
Molica – O melhor é discutir sobre cada pauta, sobre os eventuais riscos. De um modo geral, jornalistas que trabalham em grandes empresas correm menos riscos, mas isso não é verdade absoluta, como vimos no caso Tim Lopes. Muitas empresas têm pro-
em pautas mais corriqueiras.
Jornal da ABI – Qual é sua a relação com a ABI hoje em dia?
Molica – Admito que já foi maior. Acho que, de um tempo para cá, a entidade tem recuperado seu vigor, sua capacidade de mediar discussões importantes para o jornalismo e para a sociedade. A ABI é fundamental para o País.
Molica com José Luiz del Roio, ex-exilado brasileiro, senador na Itália.
Entrevista publicada em 22 de junho de 2007.
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MARCELLO CASAL JR./ABR
FRANKLIN MARTINS
UM DEVER: INFORMAR, E SÓ C apixaba, descendente de portugueses e criado no Rio, Franklin Martins é filho e irmão de jornalistas e estreou cedo na imprensa, aos 15 anos, quando ainda era estudante no Colégio Pedro II. Além de recordar o início da carreira, Franklin fala sobre a revista que lançou na década de 60 e como ajudou a reorganizar o movimento estudantil após o golpe de 64. Ele conta ainda o motivo que o levou a candidatar-se a um cargo político nos anos 80 e diz que a imprensa se tornou menos partidarista na cobertura política. Comenta também a demissão da TV Globo, a ação que move contra o colunista da Veja Diogo Mainardi e a mudança para a Band.
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Líder estudantil durante a ditadura, que o prendeu e lhe impôs o exílio, ele participou da luta armada reconhece que a imprensa deixou de ser partidarista na cobertura política, porque o público agora é mais amplo. ENTREVISTA A RODRIGO CAIXETA
Jornal da ABI — O senhor diria que sua entrada no jornalismo teve influência direta de seu pai, o também jornalista Mário Martins?
Franklin Martins — Direta, não; indireta, certamente. Afinal, criei-me num ambiente em que se lia muito jornal e se conversava permanentemente sobre os acontecimentos do País e do mundo. E meu pai, jornalista e político, era uma pessoa tão interessante e tão marcante que, até sem querer, não poderia deixar de nos influenciar. Não é à toa que cinco dos seus 11 filhos são ou em algum momento foram jornalistas Jornal da ABI — Aos 15 anos, o senhor já era estagiário da Última Hora. Em seguida, tornou-se repórter da agência de notícias Interpress, para a qual cobria os movimentos sindicais da época.
Como foi fazer esse tipo de cobertura ainda tão jovem? O interesse pela política aumentou?
Franklin — Já me interessava por política antes disso. Aos 11 anos, como representante de turma no Pedro II, votava com os comunistas. Aos 13, atuava no grêmio do colégio, considerava-me de esquerda e fazia jornaizinhos estudantis. Aos 15, participei de um curso de Jornalismo promovido pelo movimento secundarista do Rio — coisa de só uns dois meses — e, ao concluí-lo, indicaramme para um estágio na Última Hora. Pouco depois, fui contratado como repórter iniciante na Interpress, que funcionava em Botafogo. Como o momento era de grande agitação política e o movimento sindical estava em plena efervescência, escalaramme para cobrir as greves e assembléi-
as de trabalhadores, que volta e meia terminavam em pancadaria. Eu ainda era um garoto e, talvez por isso, chamava a atenção no meio dos outros repórteres. Logo fui adotado pelos dirigentes sindicais, que me tratavam com carinho e respeito. Fiz boas matérias e aprendi muito sobre política. Foi uma escola fantástica. Jornal da ABI — Como foi lançar uma revista de política e cultura voltada para os secundaristas cariocas?
Franklin — A Diálogo Estudantil falava de política, reformas de base, literatura, cinema, teatro, movimento estudantil e teve acolhida razoável entre a garotada da época. Impressa na gráfica do Colégio Divina Providência, no Jardim Botânico, pagava-se com publicidade. Das 40 páginas, dez foram de anúncios — entre outros, Ducal, Compactor, Petrobras, Casa Colegial, Delta-Larousse, Casa Mattos, Aliança Francesa, Yázigi e Banco Nacional. Os diretores eram o Antônio Carlos Lemgruber, José Roberto Spiegner, Ronaldo Bastos e eu. Tonico formou-se em Economia e foi presidente do Banco Central no início da Nova República. Ronaldo é músico e poeta — quem não conhece Amor de índio, Fé cega, faca amolada, Menino ou Canção do novo mundo? Zé Roberto, que a ditadura matou em 1970, quando tinha apenas 22 anos, talvez fosse o mais talentoso de todos nós. Tiramos apenas um número da Diálogo Estudantil. O segundo estava na gráfica quando veio o golpe de 64 e tivemos de repensar tudo. Jornal da ABI — Como foram suas passagens nas revistas Chuvisco e Manchete e a experiência de trabalhar numa agência de publicidade?
Franklin — Trabalhei na Manchete pouco tempo e, sinceramente, a experiência não me marcou. Chuvisco valeu pela companhia: Cláudio Bueno Rocha, Paulo Henrique Amorim, Hedyl Valle Junior e meu irmão Nilo Martins. Era uma revista de picaretagem, como se dizia na época, cujo dono, de repente, chegou à conclusão de que poderia faturar mais se a transformasse numa publicação séria. A metamorfose durou pouco e deu com os burros n’água, mas foi divertidíssima.
o trabalho. Fazíamos de tudo para atrair a turma: torneios esportivos, festas e excursões, shows de música, grupo de teatro, cineclube, jornal, murais, debates etc. O trabalho foi tão amplo que a direita praticamente desapareceu do mapa na escola. O grêmio transformou-se numa força viva, em que todo estudante se reconhecia e tinha espaço para se expressar e crescer. Como era de se esperar, a diretora indicada pelas novas autoridades educacionais logo tratou de cortar nossas asas. Mas aí já havíamos aprendido a voar. Jornal da ABI — Após sua eleição para presidente do Diretório Central dos Estudantes da UFRJ, o senhor foi preso no Congresso da União Nacional do Estudante (Une), em Ibiúna, e esteve atrás das grades com Luiz Travassos, Vladimir Palmeira, José Dirceu e Antônio Ribas, também líderes estudantis. Como foi essa convivência e de que forma vocês influenciavam nos movimentos estudantis mesmo estando presos?
Franklin — Já nos conhecíamos antes e a convivência foi boa. Boa em termos, porque convivência na prisão é muito difícil. Afinal, você não escolhe com quem vai conviver e tampouco quer estar preso. Da cadeia, influenciamos pouco o movimento estudantil. Ele seguiu seus próprios caminhos, conduzido por outros líderes que estavam em liberdade. Jornal da ABI — Quando do anúncio do AI5, que, em suas próprias palavras, representaria “mais ditadura dentro da ditadura”, como foi chegar à conclusão de que não havia outro caminho a não ser o de enfrentar a ditadura de armas na mão?
Franklin — Não comecei o enfrentamento, apenas somei-me a ele. Muita gente na época chegou à conclusão, como eu, de que não havia mais espaço para a luta legal e de que era necessário partir para a luta armada. O raciocínio dominante na época era: a ditadura tinha vindo ao mundo pelas armas e só se mantinha de pé pelas armas; portanto, só seria derrubada pelas armas. Então, pequenos grupos passaram a tomar revólveres e metralhadoras de policiais, a assaltar bancos e carros-pagadores para arrecadar fundos para financiar a revolução (as chamadas expropriações), a fazer ações de propaganda armada e a preparar o lançamento da guerrilha rural. Essas ações, que tiveram seu auge nos anos de 1969 e 1970, não levaram à constituição de um exército revolucionário, como se imaginava. Embora contassem com a simpatia distante de boa parte da população, não abriam espaço para a participação popular e, por isso mesmo, levaram ao isolamento e à liquidação as organiza-
“Nas últimas décadas, a imprensa tornou-se menos partidarista na cobertura política.”
Jornal da ABI — Depois do golpe de 64, o senhor ajudou a reorganizar o movimento estudantil no Colégio de Aplicação da UFRJ. De que forma o grupo se articulava com tanto cerceamento à liberdade de expressão?
Franklin — Por coincidência, deixei o Pedro II e fui para o Aplicação no comecinho de 64. Quando veio o golpe, tratamos de manter o grêmio aberto e aos poucos fomos reorganizando
ções revolucionárias responsáveis por elas. Centenas de militantes foram mortos, a maioria em sessões de tortura. Milhares foram presos ou tomaram o caminho do exílio. Graças ao terrorismo de Estado e ao crescimento econômico dos primeiros anos da década de 70, a ditadura consolidouse momentaneamente, embora jamais tivesse logrado respaldo popular consistente e duradouro. Tanto que em 1974, apesar da repressão e do obaoba oficial, sofreu contundente e inesperada derrota nas urnas, sinal evidente de que a resistência popular ressurgia trilhando outros caminhos Jornal da ABI — O senhor se exilou em Cuba, no Chile e, mais tarde, na França, onde diz ter tido mais vontade de retornar ao Brasil. Por quê?
Franklin — Em Cuba e no Chile, nunca me senti um estrangeiro, talvez porque esses dois países, no início da década de 70, vivessem processos revolucionários e, generosa e solidariamente, recebessem de braços abertos todos os que lutavam pela liberdade e pelo socialismo. Na França, apesar da hospitalidade da esquerda, o quadro era diferente, éramos peixes fora d’água. Além disso, lá o exílio deuse depois da derrota de Allende e coincidiu com o período em que as ditaduras militares na Argentina, no Chile, no Uruguai e no Brasil estavam na ofensiva e, para muita gente, pareciam imbatíveis. Foi uma época terrível.
cobertura política; vão além de suas chinelas e querem puxar a sociedade pelo nariz, como se viu na última crise. Nossa missão não é fazer a cabeça do leitor, mas informá-lo com inteligência e respeito, para que ele possa formar sua própria opinião e participar democraticamente da vida política do País. Jornal da ABI — O senhor teve passagens por veículos como O Globo, Jornal do Brasil, SBT, Estadão e Rede Globo, onde ficou oito anos e meio. A que credita sua demissão da emissora?
Franklin — Sinceramente, não sei. É uma pergunta que deve ser feita à TV Globo. O ambiente lá sempre foi muito bom. Dirigi o Jornalismo da Globo em Brasília, uma área crítica. Participei do núcleo que dirigiu a cobertura da campanha de 2002, um momento crucial. Fiz comentários para todos os telejornais da emissora e fui o primeiro comentarista político do Jornal Nacional. Tive o privilégio de trabalhar na GloboNews desde o seu comecinho e crescer juntamente com ela, inclusive pilotando um programa inovador e aberto, como o Fatos & Versões. Em suma, a Globo foi uma experiência fantástica para mim e me ofereceu desafios profissionais interessantíssimos. Durante a crise política do ano passado, porém, nossa relação, aos poucos, foi-se desgastando. Sentia que meus comentários incomodavam; passou a haver uma certa tensão no ar. Em meados de março, pouco antes de sair de férias, procurei a Direção do Jornalismo e expus com franqueza minhas dúvidas sobre a conveniência de renovar o contrato, que vencia em fins de maio. Para mim, não seria bom ficar numa geladeira de luxo. Para a emissora, não valeria a pena administrar minha insatisfação, se isso viesse a ocorrer. Disseram-me que eu estava vendo fantasmas. “Sua posição na Globo é consolidada; não existe nenhum problema com você”, resumiu a direção da CGJ (Central Globo de Jornalismo). Três semanas depois, estou em Madri e a Veja publica a primeira coluna de calúnias contra mim. Telefonei para a Direção da Globo e me disseram que achavam a coluna uma canalhice, mas que não iam se meter no assunto. Era um problema meu, resumiram. Estranhei. Não esperava que a Globo me defendesse, mas esperava receber dela alguma solidariedade. Informei então à emissora que iria responder ao sr. Mainardi publicamente e processá-lo.
“A Globo foi uma experiência fantástica para mim e me ofereceu desafios profissionais interessantíssimos”
Jornal da ABI — Depois de anistiado, o senhor candidatou-se a deputado, mas não foi eleito. O que o levou a concorrer a um cargo político?
Franklin — Em 1982, com a ditadura na defensiva, buscávamos ocupar todos os espaços políticos possíveis para apressar o fim do regime militar. Fui candidato a deputado pelo PMDB dentro dessa perspectiva, mas não levava o menor jeito para o negócio, tanto que tive uma votação muito pequena. Jornal da ABI — Quais as principais transformações que o senhor presenciou no meio jornalístico e qual a tendência acredita que ele venha a seguir?
Franklin — Nas últimas décadas, a imprensa tornou-se menos partidarista na cobertura política, já que está obrigada pelos próprios custos da indústria da informação, cada vez mais pesados, a se dirigir a um público heterogêneo e plural. Se focar apenas num publicozinho fechado e cativo, ela quebra. Tal processo não é, porém, uma linha reta. Ao contrário, é marcado por vaivéns. E, volta e meia, alguns jornalistas e órgãos de imprensa caem na tentação de partidarizar a
Jornal da ABI — O que aconteceu em seguida?
Franklin — Quando voltei ao BraJornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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FRANKLIN MARTINS
FABIOPOZZEBOM/ABR
esteja também distante das redações. Jornal da ABI — Quando e por que o senhor decidiu escrever o livro Jornalismo político?
Franklin — Não foi nada muito planejado, não. A editora entrou em contato comigo, perguntou se eu topava escrever o livro e achei que seria interessante sistematizar minhas idéias sobre o assunto, idéias que, de uma forma ou de outra, eu vinha expondo em palestras e artigos soltos. Jornal da ABI — Como o senhor avalia a corrida presidencial e a crise política vivida hoje no Brasil, em meio a tantas denúncias de corrupção e CPIs?
Agora do outro lado, Franklin Martins recebe a imprensa depois de assumir o Ministério da Comunicação Social.
sil, duas semanas mais tarde, recebi um recado de que a direção da CGJ queria falar comigo. No encontro, informaram-me que haviam feito pesquisa qualitativa e que, entre outras coisas, ela apontara que eu tinha uma imagem fraca junto aos telespectadores. Por isso, haviam voltado atrás e decidido não renovar meu contrato. Respondi que não acreditava na história e perguntei explicitamente se a decisão tinha algo a ver com as calúnias do Senhor Mainardi. Garantiram que não. Não me convenceram. Jornal da ABI — O senhor sofreu vários ataques de Diogo Mainardi e escreveu, inclusive, o manifesto Desafio a um difamador. As acusações dele datam de outros tempos ou começou com a história de que o senhor teria exercido tráfico de influência junto ao Governo para beneficiar sua família?
Franklin — Há algum tempo que o Senhor Mainardi vinha fazendo críticas desrespeitosas ao trabalho de dezenas de jornalistas que, como eu, não pensam como ele. Enquanto ele ficou no terreno da crítica, ainda que desrespeitosa, evitei polemizar. Afinal, a crítica faz parte da democracia e cada um imprime a ela seu estilo e seu caráter. O problema deu-se quando o Senhor Mainardi partiu para a calúnia. No meu caso, disse que eu fazia tráfico de influência e mantinha uma cota de cargos públicos, ocupada por minha mulher e por um de meus irmãos. Ora, minha mulher é funcionária pública há mais de 20 anos. O que há de absurdo no fato de servidores públicos trabalharem no serviço público? O ab26 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
surdo seria se não trabalhassem. Meu irmão é um técnico respeitado na área de petróleo e tem a carreira profissional dele, que não tem a nada a ver com a minha. Jamais movi uma palha para que ele fosse nomeado para qualquer cargo. Para que não pairassem dúvidas sobre meu comportamento, lancei um desafio ao sr. Mainardi: se ele apresentasse um senador que fosse, apenas um, a quem eu tivesse pedido apoio para a indicação de meu irmão para a Agência Nacional de Petróleo, eu deixaria o jornalismo político. Caso contrário, ele pouparia os leitores da Veja de suas colunas semanais. O Senhor Mainardi não fez nem uma coisa nem outra. Saiu de fininho. E lançou novas calúnias contra mim. Acusou-me de haver participado da quebra de sigilo bancário do caseiro Francenildo. Não apresentou uma prova, uma evidência, um ponto de apoio para a afirmação estapafúrdia. Disse que tinha ouvido comentários nesse sentido. Ouvido de quem? Não se dignou a dizer. Ora, meu nome sequer aparece no volumoso inquérito da Polícia Federal que investiga o assunto. Isso não importa ao sr. Mainardi, porque fatos não têm
a menor importância para ele. Mais um pouco, me acusará de ter incendiado Roma somente porque não rezo por sua cartilha. Jornal da ABI — Então o senhor entrou na Justiça contra ele.
Franklin — Entrei na Justiça com pedido de resposta à revista Veja, já que ela, numa atitude que diz muito a respeito do jornalismo que vem praticando nos últimos tempos, não publicou nem uma linha de minha carta à Redação. Além disso, estou processando o Senhor Mainardi cível e criminalmente. Na Justiça, ele terá todas as oportunidades de provar que trafiquei influência ou quebrei o sigilo bancário do caseiro. Como é mais fácil um burro voar do que ele provar suas invencionices, estou seguro de que será condenado.
“O PT agravou o erro, transformando-o em crime, ao tentar contornar o problema comprando a adesão dos mercenários de plantão nas bancadas do PP, PTB, PL e PMDB. Assim, tornou-se refém do que existia de pior no Congresso. Deu no que deu.”
Franklin — O PT cometeu o gravíssimo erro político de pretender governar sem maioria política no Congresso, descartando a idéia de formar coalizões com partidos de centro, notadamente o PMDB. Em qualquer lugar do mundo, e no Brasil também, governo de minoria parlamentar acaba em crise. Foi o que aconteceu. Depois, o PT agravou o erro, transformando-o em crime, ao tentar contornar o problema comprando a adesão dos mercenários de plantão nas bancadas do PP, do PTB, do PL e do PMDB. Assim, tornou-se refém do que existia de pior no Congresso. Deu no que deu. A crise tem um lado positivo: deixou claro que nossos sistemas eleitoral e político estão falidos e precisam ser reformados. Não dá mais para seguir em frente com o voto proporcional com listas abertas, que debilita os partidos, gera deputados que se julgam donos dos mandatos, fragmenta o quadro partidário, dificulta a formação de maiorias e impede a fiscalização do eleitor sobre o eleito. Ou o Brasil muda seu sistema eleitoral, ou a crise da representação política se agravará ainda mais, se é que isso é possível. Quanto às eleições presidenciais, as pesquisas mostram uma forte polarização entre Lula e Alckmin, sendo o Presidente o favorito na disputa. Mas pesquisa não é eleição. O que vale é o voto na urna. Jornal da ABI — O senhor estreou no Jornal da Band em junho deste ano. Como será sua participação na programação jornalística da emissora?
Jornal da ABI — O senhor já disse que, se ganhar esta ação, parte da indenização será doada à ABI. Qual a sua relação atual com a Casa do Jornalista?
Franklin — Comentarei os fatos políticos do dia no Jornal da Band e também participarei do Jornal da Noite. Além disso, estarei nas rádios Bandeirantes e Band News FM e participarei do Canal Livre, quando o coração da entrevista for um tema político. Fui muito bem recebido e está sendo um prazer trabalhar na Band, emissora com tradição de jornalismo e ótimos profissionais. Mudar é muito bom, especialmente quando está na hora de mudar.
Franklin — Já participei bastante das atividades da ABI, mas hoje, morando em Brasília, minha relação com a entidade é distante. Talvez a ABI
Entrevista publicada em 28 de julho de 2006. No começo de 2007 Franklin afastou-se do jornalismo e assumiu o cargo de Ministro da Comunicação Social do Governo Lula.
MARIA LÚCIA AMARAL
A ENCANTADORA DE CRIANÇAS Aos 91 anos, escritora sugere que os cadernos dedicados ao público infantil deveriam ter mais substância, ensinar a pensar e incentivar o gosto pela leitura. ENTREVISTA A JOSÉ REINALDO MARQUES
Jornal da ABI — Onde a senhora nasceu?
Maria Lúcia Amaral — Nasci em Pernambuco, por isso que o escritor Hernani Donato quando fez o prefácio do meu livro O chalé vermelho me chamou de A Borboleta de Olinda. Jornal da ABI — Por que ele lhe deu esse apelido?
Maria Lúcia — Porque antes de me transferir definitivamente para esta cidade maravilhosa eu vivia viajando do Recife para o Rio. Só me mudei finalmente para cá depois da morte do meu pai, em 1951, quando estava com 32 anos.
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aria Lúcia Amaral é educadora, escritora, jornalista, teatróloga e cantora. Nos anos 50, iniciou um trabalho pioneiro na imprensa de Recife, quando lançou no Jornal do Commercio uma página dedicada ao público infantil. Sobrinha de Barbosa Lima Sobrinho, Maria Lúcia Amaral herdou do tio a longevidade, a vocação para o jornalismo, o gosto pela literatura e a opção pelo nacionalismo: “Quero um Brasil para os brasileiros”, diz. Aos 91, Maria Lúcia Amaral continua firme na produção literária, já escreveu 32 livros e se tornou “referencial das páginas infantis”, como atesta o escritor Hernani Donato.
Jornal da ABI — Quando foi que a senhora ingressou no jornalismo?
Maria Lúcia — Comecei em Recife, no Jornal do Commercio, em 1948. Na época, meu tio Barbosa Lima Sobrinho era o Governador de Pernambuco. O chefe de Gabinete dele era o escritor e jornalista Nilo Pereira, diretor da Folha da Manhã, que sabia que eu me dedicava à literatura infantil e me intimou a fazer uma crônica para o seu jornal. Jornal da ABI — A senhora se lembra do nome da crônica?
Maria Lúcia — Essa foi a minha priJornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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MARIA LÚCIA AMARAL
para depor pelo Exército, por causa de um artigo que escrevi dizendo que um livro do General Olimpio Mourão Filho, que os seus colegas militares não queriam que fosse publicado, havia sido liberado pela censura. Eu quis dar um furo sobre a briga do Mourão com os outros generais que apoiaram o golpe de 64. Fui convocada a comparecer ao quartel da Evaristo da Veiga (Centro), para prestar depoimento, e pedi ao Sílvio Terra, que me acompanhasse, porque ele tinha sido delegado.
meira crônica e se chamava Marido tanajura. Foi um sucesso e o Nilo então pediu que eu continuasse a escrever crônicas todos os domingos para a Folha da Manhã. Jornal da ABI — Em Recife a senhora chegou a colaborar com outros jornais?
Maria Lúcia — A convite do Esmaragdo Marroquim, diretor do Jornal do Commercio, eu passei a escrever crônicas para adultos no Diário da Noite, que era o vespertino do mesmo grupo. Foi no Jornal do Commercio que eu criei uma folha infantil, intitulada Meu cantinho. Foi uma experiência tão agradável que nunca mais consegui me livrar do “micróbio” jornalismo.
Jornal da ABI — O que aconteceu durante o seu interrogatório?
Jornal da ABI — A senhora então é uma das pioneiras do jornalismo dedicado ao público infantil?
Maria Lúcia — Eu me considero pioneira neste tipo de jornalismo porque já fazia isso em Recife, e quando eu cheguei ao Rio de Janeiro quase não havia mulheres trabalhando na imprensa. Naquela época eu só conheci a Eneida de Moraes e a Maria de Lourdes, que fazia a seção Diário Escolar, no Diário de Notícias. Jornal da ABI — Antes de se lançar como cronista na imprensa a senhora já tinha publicado algum livro?
Maria Lúcia — Eu escrevia para crianças, no que fui estimulada pelo meu pai. Nessa época já tinha lançado o livro infantil O caranguejo bola (Editora Brasil), inspirado no repertório de estórias da minha criação que gostava de contar para os meus sobrinhos. Sobre esse livro aconteceu um fato inusitado.
“Acho que falta substância nos cadernos infantis de hoje. Eles não induzem as crianças a pensar, são muito superficiais.” própria para o Rio de Janeiro e nunca pedi nada ao meu tio. Eu procurei o Austregésilo de Athayde no Diário da Noite. Fui a ele e disse que eu fazia uma página para crianças em Pernambuco e que queria continuar a fazê-la no Rio.
Jornal da ABI — Que fato foi esse?
Maria Lúcia — Eu precisei tirar uma radiografia da coluna e fui atendida por uma moça. Ao saber que eu era escritora ela me perguntou pelo meu primeiro livro. Quando eu disse que era autora de O caranguejo bola ela me abraçou, me beijou e disse: “Foi a senhora quem escreveu O caranguejo bola? É o livro da minha infância”. A moça fez uma verdadeira festa. Jornal da ABI — Quando foi que a senhora sentiu que gostaria de ser escritora?
Maria Lúcia — Eu acho que a criança já demonstra o que vai ser quando adulto na fase escolar. Eu estava matriculada em um colégio estudando para ser professora. Tinha um professor de Português que pedia para os alunos escreverem muitas redações. Ele disse que eu tinha o dom para escrever, porque em redação a minha nota era sempre dez. Então ali eu já estava me revelando e praticando para ser escritora. Jornal da ABI — Foi o seu tio Barbosa Lima Sobrinho quem a colocou na imprensa no Rio de Janeiro?
Maria Lúcia — Eu vim por conta 28 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
Jornal da ABI — No Rio a senhora começou a escrever suas crônicas infantis no Diário da Noite?
Maria Lúcia — Não, porque o Diário da Noite não era um jornal próprio para um público infantil. Então eu soube que a Ondina Dantas, diretora do Diário de Notícias e viúva do Orlando Dantas, queria lançar uma página infantil no jornal. Decidi procurá-la e ela me contratou para fazer uma seção dedicada às crianças. Jornal da ABI — Quanto tempo durou a sua coluna no Diário de Notícias?
Maria Lúcia — Escrevi essa página, cujo nome era Calunga, durante 14 anos. O título foi por sugestão dos colegas da Redação, que gostavam das promoções que eu fazia no jornal, como a idéia de levar crianças ao Jardim Zoológico para batizar os animais. Nesse processo eu batizei uma zebrinha com o nome Calunga, que acabou virando o título da seção infantil do jornal. Jornal da ABI — Em mais de uma década no Diário de Notícias a senhora sempre escreveu para crianças?
Maria Lúcia — Fiz de tudo. Fundei o departamento de Pesquisa, criei a seção Diário Escolar. E cobria as férias do Henrique Oscar, que fazia crítica teatral porque eu entendo de teatro, inclusive tenho várias peças registradas. Eu sou cantora também. E gosto muito de cantar. Jornal da ABI — A convite de quem nos anos 70 a senhora fez parte da direção da ABI?
Maria Lúcia — Foi o Fernando Segismundo que achou que eu podia me encarregar de desenvolver atividades culturais na ABI. Foi assim que eu ingressei na Casa. Até que chegou um momento em que, para a minha surpresa, fui indicada para fazer parte do Conselho. De conselheira, ocupei depois um cargo na diretoria, na gestão do Adonias Filho (1972 a 1974), sempre na área cultural. Jornal da ABI — A senhora se lembra quem eram os membros da Diretoria da ABI nessa época?
Maria Lúcia — Vários escritores como o Valdemar Cavalcânti e o Santos Moraes. O único que não era escritor era o Sílvio Terra, que eu conheci durante a ditadura e me ajudou quando eu tive um problema com a Polícia do Exército do regime militar. Jornal da ABI — A senhora foi perseguida pela censura?
Maria Lúcia — Eu fui convocada
Maria Lúcia — Quem me interrogou foi um capitão, que se virou para mim e disse: “A senhora não sabia que não devia falar no General Mourão, nem em Dom Hélder Câmara?” Na hora eu fiquei admirada com a minha presença de espírito, porque eu disse a ele que era o caso de eles me fornecerem os nomes das pessoas que não podiam ser citadas, porque eu não tinha interesse algum em estar sendo chamada para dar depoimento ao Exército. Jornal da ABI — Em que outros jornais a senhora trabalhou?
Maria Lúcia — Quando o Diário de Notícias afundou de vez eu fiquei trabalhando como freelancer para Tribuna da Imprensa e Última Hora. Também procurei o Félix de Athayde, que era o editor do Segundo Caderno de O Globo, e sugeri a ele fazer reportagens sobre o universo feminino. Ele topou, e a primeira matéria que fiz foi sobre o trabalho das mulheres na Justiça. Fiquei impressionada com o número de mulheres ocupando cargos de juízas. Jornal da ABI — Na Última Hora a senhora conheceu o Samuel Wainer?
Maria Lúcia — A Última Hora tinha uma revista e eu propus ao Samuel fazer uma seção dedicada às crianças. Foi assim que eu o conheci, ele era um grande diretor de jornal. Pena que por problemas econômicos a revista acabou. Jornal da ABI — Entre as múltiplas atividades que a senhora exerceu uma delas foi a de educadora.
Maria Lúcia — Eu me formei professora e trabalhei como concursada do Mec no cargo de inspetora de ensino, que depois ganhou o nome pomposo de Técnico de Assuntos Educacionais. Quando eu me aposentei, estava trabalhando nas Universidades de Petrópolis e Nova Iguaçu. Jornal da ABI — E a sua carreira literária?
Maria Lúcia — Assim que deixei de trabalhar em jornais e no Mec, eu, que até então tinha poucos livros, passei a me dedicar à criação literária e consegui produzir 32 obras, sempre dedicadas às crianças, desen-
crevi um conto chamado O marciano no Rio, inspirado numa crônica sobre um casal de marcianos que o Carlos Drummond de Andrade escreveu para o Correio da Manhã. Eu conheci o Drummond quando era conselheira da ABI. Ele era muito tímido, mas eu venci a sua timidez. Eu publiquei o conto no Diário de Notícias, na minha página infantil Calunga, e depois encaminhei uma cópia para ele. Ele então me mandou uma mensagem dizendo que tinha gostado muito do que eu escrevi. Esse bilhete, com muito carinho, eu reproduzi no meu livro.
Maria Lúcia foi sempre uma mulher muito bonita, como mostram a fotografia de abertura desta entrevista e a foto ao alto, à esquerda. Ao lado ela posa com o pai e a mãe e os irmãos na casa da família no bairro da Ribeira, em Olinda. Ela mantém uma relação muito carinhosa com o irmão Antônio Carlos, radicado em São Paulo (abaixo), assim como fazia com seu tio Barbosa Lima Sobrinho (mais abaixo). Maria Lúcia foi uma das mais eficientes colaboradoras de Barbosa na Diretoria da ABI.
Jornal da ABI — Como era a sua relação com o seu tio Barbosa Lima Sobrinho?
Maria Lúcia — Era muito boa. Uma vez eu cheguei na casa dele e ele pegou um livro e me disse: “Me deram esse livro, mas ele não é para mim, é para você”. Era uma obra do Bruno Betlheim sobre contos de fadas. Eu sempre gostei de contos de fadas, porque a gente não pode tirar da criança o seu lado maravilhoso da vida. E o conto de fadas é a emoção, temos que passar isso para as crianças. Jornal da ABI — Além do gosto pela literatura e a vocação para o jornalismo existe outra semelhança entre a senhora e Barbosa Lima Sobrinho?
Maria Lúcia — Eu fiz um conto que é baseado nos nossos costumes populares, e isso eu herdei do meu tio: eu sou nacionalista como ele. Eu quero o Brasil para os brasileiros, por isso escrevi livros populares, usando uma linguagem moderna.
volvendo vários temas para o público infantil. Jornal da ABI — Que tipo de assuntos os seus livros abordam?
Maria Lúcia — A barata baratinada, por exemplo, é um livro em que eu falo para as crianças sobre o desespero das drogas, que está se alastrando cada vez mais. Eu achei que deveria alertar as crianças sobre o problema do tóxico. O livro foi lançado há dois anos no Mam e rapidamente esgotou a tiragem de 4 mil exemplares, o que é raro para livro infantil. Tivemos que fazer uma segunda edição. Jornal da ABI — Existe algum outro livro que a senhora tenha gostado muito de fazer?
Maria Lúcia — Quando começaram a falar que havia vida em Marte eu es-
Jornal da ABI — A senhora foi pioneira das páginas infantis da imprensa brasileira. Qual é a sua opinião sobre os cadernos para crianças publicados nos jornais hoje em dia?
Maria Lúcia — É claro que tudo tem a sua época e atualmente as coisas são muito diferentes do período em que eu comecei fazendo esse trabalho. Acho que falta substância nos cadernos infantis de hoje. Eles não induzem as crianças a pensar, são muito superficiais. Na minha opinião, as páginas infantis deveriam estimular as crianças a pensar e a adquirir o gosto pela boa literatura. Entrevista publicada no Site da ABI em 21 de dezembro de 2007.
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RICARDO KOTSCHO
Considerado um dos principais repórteres brasileiros de todos os tempos, Ricardo Kotscho dá um chute no mito da imparcialidade e neutralidade do jornalismo e diz que falta paixão às novas gerações. “Ainda existe espaço na imprensa para a grande reportagem e o texto bem escrito. O que falta é quem saiba fazê-los”.
ALMA DE REPÓRTER ENTREVISTA A JOSÉ REINALDO MARQUES E M ARCOS S TEFANO
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e existisse uma figura como Dom Quixote no jornalismo, ela bem poderia se parecer com Ricardo Kotscho. Não, certamente Kotscho não luta contra o vento. Pelo contrário, seus adversários são bem concretos e definidos e ele é um notório vencedor no campo das letras. Mas sim por carregar, como o personagem de Miguel de Cervantes, o espírito aventureiro e idealista que marcou, durante os anos 1960 e 70, toda uma geração de jornalistas, mas que ultimamente anda tão em falta no Brasil. Repórter que é repórter de verdade tem esse tino ou feeling como preferem os mais modernos. E Kotscho é mestre nesta arte de retratar a realidade e lutar para transformá-la naquilo que tem de errado, injusto e desumano. Já enfrentou as mais quixotescas situações, cobrindo tragédias provocadas por enchentes e salvando pessoas de inundações; acompanhando passeatas estudantis e chegando ensangüentado na Redação, porque tentou evitar que uma garota fosse espancada e algum policial soltou
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o cachorro para cima dele; denunciando a violência no menor e mais esquecido vilarejo do País e nas salas palacianas da capital, onde são traçados os destinos de toda a nação. Como os sonhadores, os visionários e os poetas, começou cedo. Culpa mesmo dos mais velhos, que lhe falavam que o jornalismo é como um sacerdócio. Queria ser padre, mas como padre não pode casar e a única coisa que sabia fazer era escrever, optou pelo ministério de outro tipo de palavra. Não algo aleatório ou feito para ganhar dinheiro. Uma verdadeira opção de vida. Assim, do jornalzinho da escola, no qual começou, logo chegou aos veículos mais importantes do Brasil, como O Estado de S. Paulo, a Folha de S.Paulo, o Jornal do Brasil, IstoÉ, SBT, Record e Cultura. Aos 104 anos, como ele mesmo gosta de informar – 60 de idade e 44 de profissão –, parece estar sossegado. Como diz em seu mais recente livro, Uma vida nova e feliz, – o 19º de uma carreira que começou sem qualquer pretensão literária, mas rendeu obras que são usadas em faculdades de Comunicação como verdadeiros manuais de reportagem –, agora pode acordar sem despertador, passear com a mu-
lher, encontrar os filhos ou brincar com os netos. Uma nova fase, que chegou como prêmio depois do árduo trabalho na Secretaria de Imprensa e Divulgação do Palácio do Planalto, comandado pelo amigo e Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. O que não quer dizer que o veterano repórter está adormecido. Agora por conta e risco próprios, Kotscho diz que trabalha como nunca. Com inconfundível humor e informalidade, ele encontrou um tempo na agenda para atender por duas vezes a equipe do Jornal da ABI. Na segunda, em seu apartamento em São Paulo, logo deu aula para o repórter: “Faça como eu: nunca uso gravador. Anoto tudo. É muito melhor”. Conselheiro da Associação Brasileira de Imprensa, ele falou sobre a reportagem no Brasil de hoje, a nova revista Brasileiros, que ele sonha possa trazer a grande reportagem de volta para um lugar de destaque no jornalismo contemporâneo, como fez Realidade há 40 anos, e, claro, sobre polêmicas, da suposta ameaça à liberdade de imprensa por conta da guerra entre a Igreja Universal e a Folha de S.Paulo, ao fim iminente da Lei de Imprensa, “último resquício do arcabouço jurídico da ditadura”.
FRANCISCO UCHA
Kotscho — Comecei a escrever num jornalzinho do Colégio Santa Cruz, em São Paulo, chamado Verbâmidas e, em 1964, com 16 anos, consegui meu primeiro emprego como repórter na Folha Santamarense, passando depois para a Gazeta de Santo Amaro. Entrei muito jovem no Estadão, no começo de 1967, com 18 anos. Lá, foi uma escola para mim. Fui estagiário, repórter e editor de Geral e de Esportes, chefe de Reportagem e repórter especial. Jornal da ABI — Quais foram os motivos que o levaram a trocar o Estadão pelo Jornal do Brasil em 77?
Kotscho — Depois de fazer algumas reportagens de denúncia no Estadão (uma série sobre mordomias no Governo e o assassinato do operário Manoel Fiel Filho), recebi conselhos para cair fora por algum tempo. A Dorrit Harazim estava procurando um repórter que falasse alemão e fui trabalhar como correspondente do JB em Bonn. Era a época do polêmico acordo nuclear Brasil-Alemanha e das ações terroristas do grupo Baader-Meinhof. No período que passei lá, cobri a morte de dois papas (Paulo VI e João Paulo I) juntamente com o Araújo Neto, correspondente do JB em Roma. Fiquei na Europa menos de dois anos, porque estava morrendo de saudades do Brasil. Quando recebi o convite do Mino Carta, voltei para trabalhar na IstoÉ, onde encontrei vários amigos dos meus tempos de Estadão. Jornal da ABI — Você também teve uma passagem pela Folha de S. Paulo. Jornal da ABI — Uma das coisas que você mais costuma dizer é que “lugar de repórter é na rua”. O que faz Ricardo Kotsho em casa, quando não está de folga nem de férias? Cansou de tantas andanças?
Ricardo Kotscho — De forma alguma (risos). Desde que saí do Governo, no final de 2004, trabalhei com muitas coisas. Mas sempre como freelancer, o que é uma nova experiência para mim. Pela primeira vez, trabalho por conta própria. Minha Redação é aqui, na minha casa. Conto um pouco dessa experiência em meu mais novo livro Uma vida nova e feliz, que na verdade é uma coletânea de crônicas que escrevi nesses últimos tempos no site NoMínimo. É ótimo estar longe da correria das Redações e assessorias de imprensa, fazer seus horários, acordar sem despertador, ter tempo para passear com a mulher. Só que também existe o outro lado, pois às vezes acabo trabalhando até mais do que quando estava empregado e passo muitos finais de semana e madrugadas no computador para entregar as encomendas a tempo. Outro problema para quem trabalha por conta própria hoje é receber. As pessoas não têm o habito de pagar. Você precisa ficar cobrando, atrasa. Mas, enfim, para mim foi uma boa guinada. Jornal da ABI — Aliás, falando em lemas
como “lugar de repórter é na rua”, como surgiu este ditado?
Kotscho — Tem essa, tem aquela outra: “pra ser repórter de verdade, tem que sujar os pés”. Essas são frases antigas e costumavam ser ditas por um de nossos motoristas de reportagem. Antigamente tínhamos o repórter, o fotógrafo e o motorista de reportagem. E a Folha de S. Paulo e depois o Jornal do Brasil tiveram um motorista famoso chamado Ferreirinha, que aparece remando na foto da capa do meu livro Do golpe ao Planalto: uma vida de repórter. Motorista e canoeiro (risos). Como gostava muito de sair, de viajar, mas de uns tempos para cá, os repórteres começaram a ficar muito presos na Redação, Ferreirinha entrava todo alvoroçado (Kotsho levantase e começa a bater palmas): “Vamos lá pessoal. Vamos trabalhar. Lugar de repórter é na rua”. Adotei o lema, porque sempre gostei de trabalhar na rua. Não gostava de apurar por telefone. Antes era telefone e agora, internet. Ou seja, pior e mais impessoal ainda. Infelizmente, hoje muitas matérias são feitas assim. No último período em que trabalhei na grande imprensa, acabava a reunião de pauta e o repórter ia ou para o telefone ou para o computador fazer as coisas pela internet. Isso deixa a história muito pobre, sem vida. O que você consegue por
telefone? Apenas declarações. Vo-cê não vê o ambiente — descrição é fundamental para o bom jornalismo —, não sente o entrevistado. Pessoalmente, é possível até saber se ele está falando a verdade ou não. Além disso, dá condições de interagir com a fonte, aproveitando ganchos e puxando outros assuntos, envolvendo outras pessoas que aparecem no cenário. Jornal da ABI — Pelo visto, você não gosta muito da internet...
Kotscho — A internet não é necessariamente ruim. Ela causou a maior revolução nas comunicações humanas desde Gutemberg. Ela democratiza a informação e faz com que todos possam ser tanto receptores quanto emissores. Os jornalistas e os veículos já não têm mais o monopólio da informação. Mas por outro lado, empobreceu a linguagem e o trabalho do jornalista. Antes você tinha três dias para fazer sua matéria, ir às ruas, entrevistar os envolvidos. Hoje o cara recebe três matérias para entregar no mesmo dia. Em uma cidade como São Paulo, gigantesca e com um trânsito monstruoso, é impossível fazer três trabalhos da forma antiga. Jornal da ABI — Falando em histórias de repórter, como foi sua estréia no jornalismo?
Kotscho — Entrei na Folha como repórter especial em 1980, depois do fechamento do Jornal da República, lançado por Mino Carta no ano anterior. Jornal da ABI — Na sua trajetória, quais reportagens lhe marcaram mais?
Kotscho — Essa é uma pergunta que já me fizeram muitas vezes e, em cada oportunidade, sempre dou uma resposta diferente. Não porque eu tenha tantas grandes reportagens, mas porque nunca me lembro do que falei na vez anterior. Estou fazendo 104 anos: 60 de idade e 44 de jornalismo. A memória, então, já não ajuda muito. Mas duas ficaram marcadas no jornalismo: a das mordomias, que foi a primeira matéria de denúncia que o Estadão publicou em 1976, ainda durante o regime militar, e teve grande repercussão, e a cobertura das Diretas Já, na Folha de S.Paulo, em 1984, que foi um divisor de águas em minha opinião. Jornal da ABI — Em que sentido a campanha pelas Diretas foi esse divisor de águas?
Kotscho — Acho que a campanha foi o mais importante acontecimento não só da minha carreira, mas da vida de toda uma geração que começou a trabalhar logo após o golpe de 64. Minha carreira se passou metade na ditadura, metade na democracia. Nessa Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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segunda metade, para mim, foi decisivo poder cobrir esse marco de nossa jovem democracia do começo ao fim pelo jornal. Jornal da ABI — Com base nessa experiência você escreveu o livro Explode um novo Brasil. O que mais chamou sua atenção no movimento?
quer domesticar os profissionais que não se dobram diante dos poderosos de plantão. Prefiro ficar com uma singela definição do Carl Bernstein, aquele do caso Watergate: “A reportagem é a melhor versão da realidade possível de se obter.” E eu sou do tempo em que jornalismo era, basicamente, reportagem. Jornal da ABI — Ricardo Kotscho não pode ser chamado de um repórter tradicional. São famosas as histórias em que você se tornou parte da própria matéria com suas ações. É o caso da cobertura FOTOS DO ACERVO PESSOAL
Kotscho — Como o Ulisses Guimarães (Deputado que foi um dos líderes do movimento e morreu num acidente aéreo em outubro de 92) escreveu no prefácio do livro, a coisa mais fantástica dessa campanha foi o entusiasmo popular crescente a cada comício, multidões tomando as ruas sem medo do regime militar.
pou duas páginas inteiras, sem anúncios. Quando foi publicada, o governador Aécio Neves estava no exterior, mas ficou sabendo. Cobrou os secretários de Governo, mas eles tentaram desmentir as informações. Como não conseguiram, o Aécio mandou um força-tarefa para lá reunindo segurança, educação e assistência social. A líder da resistência era justamente uma diretora de escola, que estava sendo ameaçada de morte. Na época, ela estava sem recursos, a escola ameaçada de fechar, pois os professores estavam com medo de dar aula. Isso foi há dois
Jornal da ABI — Você viveu outra experiência jornalística tão relevante quanto as Diretas?
Kotscho — Sim, meu trabalho como assessor de imprensa do então candidato Lula durante as Caravanas da Cidadania, em 1994. Uma idéia minha nos levou a percorrer todo o País de ônibus ou de barco, chegando a lugares onde candidatos e repórteres não costumam ir. Jornal da ABI — Algo que você sempre diz é que tudo ligado às pessoas lhe emociona. Foi por isso que resolveu andar pelo Brasil, escrevendo sobre a vida do homem comum?
Kostcho — De uma forma geral, o jornalismo brasileiro é muito focado em celebridades, pautas burocráticas, coberturas oficiais e colunas sociais. São sempre as mesmas fontes em diferentes áreas e muito bastidor de gabinete. Não gosto disso. O que me fascina na profissão é descobrir assuntos, personagens e lugares que não estão na mídia. Foi o que eu fiz durante a maior parte da minha carreira.
Jornal da ABI — Houve também o episódio dos pontapés que você e outros jornalistas deram nos congressistas que fugiam do plenário para não votar a aprovação das eleições diretas...
Jornal da ABI — A repercussão que essas reportagens trazem para a vida das pessoas é um dos fatores que o motivam a escrever?
Kotscho — Uma das grandes questões do jornalismo é que tudo que você escreve tem conseqüências. Este ano, fui presidente do júri do Prêmio Ayrton Senna de Jornalismo e um dos critérios mais importantes foi justamente esse: que a matéria tenha conseqüências. Seja ela de denúncia ou não. Mais recentemente fiz uma série com o Hélio Campos Mello para O Globo. Uma das reportagens foi sobre a menor cidade do Brasil, em Santa Cruz do Minas, no interior de Minas Gerais, perto de São João Del Rei. O gancho foi uma informação que recebi de um amigo de que jovens estavam morrendo lá por causa de drogas, principalmente o crack. Um problema que achamos que está apenas nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro, estava provocando uma tragédia lá. A cidadezinha estava em polvorosa com a presença de traficantes e com a violência. A reportagem ocu32 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
mim. Ele me mordeu e eu cheguei na Redação todo ensangüentado. Virou o maior fuzuê e até o dono do jornal, o Júlio Mesquita Neto, quis saber o que tinha acontecido. A última Caros Amigos traz uma entrevista do Paulo Patarra, jornalista falecido recentemente e que foi o criador da Realidade. Foi a última que ele deu, no final do ano passado, já internado no hospital. E ele é certeiro: ninguém é neutro, nem mesmo o jornalista. Claro, ele tem que procurar a verdade factual e chegar o mais próximo dela. Porque não é uma só, depende do ponto de vista de quem você ouvir e é preciso ouvir muita gente. E eu acrescento: temos que ser sinceros nisso. Trabalho melhor esse tema em A prática da reportagem, um livro de 1985, no qual falo sobre pautas, como executar matérias, dificuldades. Muitas coisas mudaram desde então, mas ele continua sendo adotado nas faculdades. Por quê? Porque a natureza da profissão não mudou. Já trabalhei em revista, livro, jornal, televisão e internet. Tudo continua sendo igual ao que fiz na tragédia de Caraguatatuba há mais de quarenta anos: descobrir acontecimentos, personagens e contar histórias. Não importa a plataforma, como dizem hoje. Aí vêm alguns estudantes: “Mas e quando você trabalhou no Governo?”, como se fizessem uma acusação. É a mesma coisa: apuro informações e divulgo, mas para os jornalistas. “Mas pode contar tudo?” Não e nem no jornal. Trabalhei muitos anos na Folha e tinha muita liberdade. Mas não podia falar mal do seu Frias, o dono do jornal e do próprio veículo. No Governo também tive muita liberdade, mas não podia falar mal do Lula e do Governo.
Amigo de Lula, Kotscho esteve ao seu lado desde a época em que o Presidente era líder sindical no ABC paulista. Em 1978, Kotscho acompanha entrevista com Lula: uma parceria tão bem sucedida que chegou ao Palácio do Planalto.
anos. Agora, voltaremos lá e mostraremos as mudanças. A cidade se tornou um modelo: não houve nenhum homicídio no ano passado, a escola passou a ser considerada uma das melhores do Estado e a cidade superou o problema das drogas. E a reportagem ajudou decisivamente. Nem sempre é possível fazer isso, mas o jornalista precisa perseguir esse objetivo. Jornal da ABI — Você costuma dizer que não existe imparcialidade no jornalismo? Por quê?
Kotscho — Acho que esse negócio de imparcialidade, objetividade, neutralidade não existe mesmo, não é próprio da natureza humana, é conversa de acadêmico ou de gente que
de uma enchente em Caraguatatuba em 1967, quando ficou com água até a cintura e ajudou os bombeiros a socorrer as pessoas. Como foram essas experiências? Não é uma transgressão ao que pregam os manuais de jornalismo?
Kotscho — Realmente, isso é algo que contraria os manuais de Redação. Principalmente o da Folha, que serviu de modelo para os outros, diz que o jornalista deve ser imparcial e neutro, não vazar emoções e se envolver com a história. O que eu fiz foi exatamente o contrário, desde que era um moleque. Eu ia cobrir passeata do movimento estudantil, via a polícia bater em uma garota e me metia no meio. Isso aconteceu certa vez no Estadão. Aí soltaram o cachorro em cima de
Kotscho — Isso aconteceu mesmo, logo após a derrota na votação da Emenda Dante de Oliveira. Mas é uma história que não pega bem lembrar. Jornal da ABI — Você diz que prefere o contato com pessoas comuns a ter que lidar com gente famosa e com políticos. Por que então aceitou o convite para ser assessor da Presidência?
Kotscho — Por ter trabalhado em três campanhas presidenciais, foi uma conseqüência natural acompanhar o Presidente Lula. Eu não poderia dizer para ele “vai com Deus que agora vou cuidar da minha vida”. Conheci o Lula, logo após minha volta da Alemanha, no final de 78, quando ele presidia o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e Diadema e comandava as grandes greves operárias da época. Nós já éramos muito amigos quando ele me convidou para trabalhar em sua primeira campanha, em 89. Era a primeira eleição direta após o golpe
e foi a primeira vez que a minha geração pôde votar para Presidente. Jornal da ABI — Apesar disso, seus planos não eram de ficar tanto tempo assessorando Luís Inácio Lula da Silva, certo? Mas por que deixou o cargo de Secretário de Imprensa de seu Governo?
Kotscho — Meu plano era ficar um ano em Brasília para informatizar e reestruturar a Secretaria de Imprensa, criar um site e montar uma boa equipe. Como não consegui fazer tudo que queria nesse período, fiquei mais um ano e no fim de 2004, como havia combinado com o Presidente, voltei para São Paulo, onde estava minha família. Jornal da ABI — Como metalúrgico e candidato à Presidência, Lula se relacionava melhor com a imprensa. O que mudou?
Kotscho — Na minha despedida, o Presidente Lula disse que, se dependesse de mim, ele passaria o dia inteiro só atendendo a imprensa. Briguei muito para que seus contatos com os jornalistas fossem mais freqüentes, mas sei que o próprio cargo impõe limitações.
contra alguns veículos como a Folha, o Extra e A Tarde?
Jornal da ABI — Depois de ter feito parte do Governo durante alguns anos, como agora, do lado de fora, você vê o projeto da TV pública, que parece ser a menina dos olhos de Lula?
Kotscho — Tenho muitas dúvidas sobre isso. Acho que é um projeto polêmico. Temo que o Governo apanhe muito por causa dele. Em países desenvolvidos como a Alemanha e a Inglaterra, as tevês públicas surgiram em outro contexto, há 40 ou 50 anos. Hoje no Brasil você tem uma televisão comercial muito desenvolvida, das melhores do mundo. É muito difícil abrir espaço aí para uma emissora pública. Primeiro, haverá um custo político muito alto para o Governo. A oposição tentará derrotar o Governo mais uma vez, como fez na CPMF. Segundo, é muito difícil concorrer com a tv comercial, porque é preciso muito investimento. Televisão é algo caro e quanto mais o Governo investir, mais vai apanhar. Todas as vezes vão perguntar quantas cestas-básicas dava para comprar e quantas casas seria possível construir com aquele dinheiro. Por outro lado, vamos imaginar que dê certo, tenha sucesso e uma boa audiência. O Governo vai apanhar mais ainda, porque vai concorrer com a televisão comercial. Mal comparando, foi o que aconteceu com a Última Hora, do Samuel Wainer. O Governo do Getúlio financiou o jornal e por conta disso ambos sofreram enorme oposição. Justamente porque deu certo. Chegaram até a abrir CPI e fazer ameaças. Jornal da ABI — Atualmente, há uma grande polêmica em relação à responsabilidade no jornalismo e à liberdade de imprensa. A liberdade está ameaçada por conta dos processos supostamente incentivados pela Igreja Universal
Um repórter em busca de histórias: no alto com uma família de posseiros durante um conflito de terras na região do Araguaia, no começo dos anos 80, quando fez uma série de reportagens especiais para a Folha de S.Paulo; acima, entrevistando o mestre Telê Santana, durante a preparação para a Copa do Mundo de 1986, ainda na Toca da Raposa. Ao lado, na redação da Agência Folha, com o amigo José Roberto Alencar, grande repórter recentemente falecido.
Kotscho — Na verdade o que aconteceu pode ser explicado por uma expressão antiga, chamada chicana jurídica, litigância de má-fé. Uma coisa é o jornal caluniar, xingar e você entrar na Justiça exigindo seus direitos. Outra é a Igreja Universal, uma entidade poderosa, usar fiéis humildes para entrar com a mesma ação em lugares isolados do país só para amedrontar e impedir o trabalho do jornalista. Todo dia leio em algum lugar que isso é uma ameaça à liberdade de imprensa. Não é verdade. Quem diz isso não conheceu a ditadura. É uma sacanagem, mas qual é a ameaça? A pessoa poderá continuar a escrever. O jornal será apreendido como foi o Estadão em 14 de dezembro de 1968? Nunca tivemos um período tão longo de liberdades, inclusive de imprensa e de expressão, na história do Brasil, quanto agora. Processos fazem parte do jogo, eu mesmo já fui processado e até condenado. Jornal da ABI — Mas por outro lado, tudo isso tem contribuído para se discutir e até suprimir diversos artigos da chamada Lei de Imprensa. Ela merece tanto desprezo por parte dos jornalistas?
Kotscho — É ótimo o que estão fazendo para acabar com essa Lei de Imprensa. É preciso que fique claro que o jornalista é um profissional como qualquer outro e deve respeito à lei comum, aos códigos Civil e Penal. A Lei de Imprensa é uma das últimas coisas que sobraram do arcabouço jurídico da ditadura. A democratização dos meios de comunicação é algo inexorável, que já está acontecendo. Outro lado é a responsabilidade do emissor da comunicação. No jornal, na revista ou na televisão, você tem a figura do diretor responsável, que é o responsável pela publicação perante a lei e o autor da matéria. Na internet não, é quase tudo anônimo. As pessoas esJornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
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crevem barbaridades e não dá para identificá-las. Essa questão da responsabilização é algo que deve ser visto rapidamente. Democracia não exclui direitos e deveres. Acabar com a Lei de Imprensa é o primeiro passo. O próximo deve ser o de ver como ficará a questão da responsabilidade com as novas tecnologias. Jornal da ABI — Depois que saiu do Governo, em que projetos você se envolveu?
Kotscho — Fiz projetos para algumas agências de publicidade, como a DM9. Passei a dar consultoria para o projeto Faça Parte, do Instituto Brasil Voluntário. Há dois anos presto serviços à Rede Globo na área de educação, em um programa chamado Globo & Universidade, que faz a ponte entre a emissora e o meio acadêmico. Também estou há sete ou oito meses na revista Brasileiros, a qual fundei com o dono, Helio Campos Mello. Aliás, estou muito empolgado com este projeto. A proposta da Brasileiros é justamente resgatar o bom texto e a grande reportagem, com histórias bem contadas de várias regiões do país e não apenas do eixo Rio – São Paulo – Brasília. Sem ser muito pretensioso, a inspiração vem da antiga Realidade, a melhor revista que já tivemos no Brasil em todos os sentidos. Apesar de termos muito menos recursos, o objetivo é o mesmo: trazer reportagem. Além disso, faço muitas palestras por todo o Brasil, o que é minha principal fonte de recursos atualmente.
Jornal da ABI — Você é de uma época em que se via grandes reportagens, mas também grandes textos publicados em veículos como o Jornal da Tarde e Realidade. Ultimamente, o que se vê em muitos lugares é um texto pobre e muitas críticas quanto à qualidade literária daquilo que tem sido publicado na imprensa. Você acha que os jornalistas desaprenderam a escrever?
Jornal da ABI — Nesses primeiros números de Brasileiros, como vocês têm sentido o retorno dos leitores e a repercussão da publicação, já que pretendem alcançar esse objetivo?
Kotscho — Tem sido algo fantástico. A maior parte de comentários e emails que recebemos é de jovens, que não conheceram a revista Realidade, mas fazem referência a ela, dizendo que a Brasileiros lembra muito aquela publicação. São pessoas que conhecem a revista apenas por meio de trabalhos acadêmicos. Eu mesmo dei um curso de extensão na USP, nos anos 80, sobre a Realidade e posso dizer que esses jovens realmente estão gostando da nossa revista. Não apenas comentam o que já saiu, mas mandam sugestões de matérias. É um espaço que eles não têm em outras publicações. Nosso trabalho é basicamente com colaboradores. A equipe fixa é pequena, então tem gente de todo o Brasil escrevendo. Jornal da ABI — Você acha que a Brasileiros já demonstrou que ainda há espaço para a grande reportagem na imprensa brasileira?
Kotscho — Já e não apenas ela. Esse negócio de dizer que o brasileiro não lê textos longos não é verdade. Temos outras revistas nessa mesma linha, como a Piauí, a Caros Amigos, a Trip, a Rolling Stones. Há quanto tempo não 34 Jornal da AB ABII 325 Janeiro de 2008
tínhamos um leque tão grande de opções? Então, essa teoria de professores e chefes de Redação de que as pessoas não têm tempo para ler e que a informação tem que vir em pílulas não é real. Temos um mercado muito diversificado. Não é a internet que vai acabar com os jornais, como estão dizendo. O que pode acabar com os jornais é a má qualidade. A televisão não acabou com o cinema. Foi o contrário, grande parte do cinema no Brasil atualmente é financiada pela televisão. É preciso respeitar a natureza da mídia, mas ser diferente. Mas se fizer todos os jornais com a mesma informação que a internet e a televisão já deram, que é o que acontece na maioria das vezes, não tem jeito. Há exemplos de que é possível fazer diferença. Já há alguns anos o jornal O Globo, do Rio de Janeiro, na minha opinião o melhor jornal do País, voltou a fazer reportagens. Ganha todos os prêmios. Cresce sua circulação. Tem influência e tem prestígio. O Estadão, mais recentemente, também começou a investir nessa seara. Mas a Folha, o jornal ainda de maior circulação, está parado. Não acontece nada lá há dez anos, está no piloto-automático e raramente surpreende.
O trabalho do repórter em dois momentos: concentrado na revisão dos textos (acima) e numa entrevista com o Governador Franco Montoro (abaixo), ao lado de Gil Passarelli, experiente fotógrafo que trabalhou na Folha de S.Paulo por mais de 50 anos.
Kotscho — O brasileiro de uma forma geral — e não apenas o jornalista — desaprendeu a escrever.Basta apenas você pegar as redações de vestibular e ver como as pessoas maltratam o português. Em geral, se compararmos com os anos 60 e 70, houve uma queda grande na qualidade dos textos. Claro, existem exceções. Em vários lugares você encontra bons textos, mas são casos pontuais. O Salão do Jornalista Escritor e o seminário promovido pela Academia Brasileira de Jornalismo Literário travaram no final do ano passado essa discussão, mas agora é preciso levá-la para as faculdades. Nas salas de aula, aliás, desde o ensino básico e em todo sistema educacional, existem enormes deficiências, que não são corrigidas e acabam empurradas adiante, refletindo no também no texto jornalístico. Outros fatores também influenciam, como a revolução da internet. A tecnologia tratou de mudar nossa linguagem. Recebo muita coisa que eu nem entendo. É outra língua. Ao mesmo tempo que surge uma riqueza cultural, isso também contribui para empobrecer o vocabulário, se não for mantido no devido espaço. E é o que acontece: os jovens só falam dessa forma, trocando letras, resumindo e tirando pa-
lavras inteiras. Nestes 40 anos de jornalismo, sempre dei muito valor ao texto. É tão importante quanto a apuração. Você deve ter uma boa história para contar e contá-la bem. Esse é o grande desafio que está colocado para a nova geração de jornalistas.
Kotscho — Uma coisa que tem atrapalhado muito as novas gerações é o pensar que jornalismo consiste apenas em editoriais, em escrever aquilo que se acha. Um reflexo direto da praga dos blogs. O cara não apura, não vai às ruas. Ele sente e escreve o que está pensando. Isso não é verdadeiro jornalismo. O jovem deve gramar, fazer matérias de polícia, esporte, buraco de rua. E o que é tradicional no final de careira, aí sim, ter uma coluna, como o caso do Carlos Castelo Branco, Jânio de Freitas, Clóvis Rossi. Mas não para quem está começando. Isso é uma deformação. Até já sugeri para um colega fazer uma matéria com o seguinte título: “Eu não tenho blog”. Ele perguntou: “Mas você não tem blog”. E eu respondi que não. Tenho tanto lugar para escrever. Fazer blog para quê? É uma coisa preguiçosa. Esses dias li num texto na Folhateen, o caderno de jovens da Folha, escrito pelo Álvaro Pereira Júnior, do Fantástico, da Globo, uma definição maravilhosa: a maioria dos blogueiros são pessoas que não fazem nada de manhã e escrevem à tarde sobre o que fizeram de manhã. A quem interessa? Os caras falam que levaram o filho ao médico, que foram à rua com não sei quem... E eu com isso? Poucos são mais informativos. A tendência generalizada é por opinião sobre tudo. É uma guerra: quem é favor do Governo, quem é contra o Governo, que remonta há muitas eras, quando tínhamos folhetins, publicações políticas. Parece que estamos retrocedendo. Eu não quero saber o partido do autor, quero informação, notícia, novidade. Isso está atingindo o jornalista ainda na escola. O rapaz ou a moça – a maioria hoje é mulher – quer trabalhar na televisão, aparecer no vídeo. Uma vez, quando eu dava aula na Puc, uma me-
Jornal da ABI — Como assim?
Kotscho — Olha, eu vejo aí um problema gravíssimo no Brasil inteiro,
sua casa. Quando vou fazer algo, primeiro tenho que combinar com minha mulher. Qualquer empresa tem suas regras, seus limites. Isso não vale apenas para o jornalismo. Mas tem que brigar para alcançar os objetivos. Jornal da ABI — Até Ricardo Kotscho precisa brigar para fazer valer seu trabalho?
Kotscho — Ora, eu sou de uma época em que saíamos para a briga, no movimento estudantil, no movimento sindical, nas Redações. E o jornalismo é uma profissão em que você precisa brigar: brigar por sua pauta, brigar para ter acesso à informação, apurar, viajar e até pelo espaço para publicar. São coisas pelas quais brigo até hoje. Como uma discussão que tive com o dono da Brasileiros esses dias.
que escrevi mais livros do que li. Antes, se você tivesse um livro, teria que correr atrás para publicá-lo. Caso conseguisse emplacar o primeiro, o caminho ficava aberto. Hoje, isso está começando a mudar. Algumas grandes editoras já procuram jornalistas para escreverem coleções ou obras específicas e, em alguns casos, dão até adiantamento para eles. Há uma profissionalização desse mercado, que acredito ser um dos mais promissores na atualidade. Antes você entregava o original e recebia 10% dos direitos. Isso mudou. Por isso, virou uma boa opção. Jornal da ABI — Como começou sua relação com a ABI?
Kotscho — Ela vem dos tempos do Presidente Prudente de Moraes, neto, FRANCISCO UCHA
Jornal da ABI — Recentemente, foram promovidos dois eventos que discutiram jornalismo e literatura. Também a qualidade do que se escreve. Um foi o Seminário Brasileiro de Jornalismo Literário, da Academia Brasileira de Jornalismo Literário. O outro foi o Salão do Jornalista Escritor, organizado pela ABI. Uma história que você mesmo contou, foi de um aluno que ligou para você já próximo do final do ano, dizendo que queria fazer um TCC sobre sua vida, mas não tinha tempo de ler o livro Do golpe ao Planalto: uma vida de repórter, no qual conta suas experiências e memórias. Então lhe pediu que fizesse um resumo do livro e, como você relatou, praticamente escrevesse o trabalho por ele. Diante de situações como essa, como está a formação do jornalista no País?
nina chegou até mim e disse que queria trabalhar na televisão e que batalharia por isso. Eu perguntei por que ela só queria saber de televisão e não se interessava por jornais e revistas. A o que a jovem me respondeu: “Eu gosto de jornalismo, mas não gosto de escrever”. Ela estava muito enganada. Na televisão se escreve muito e tem que se escrever muito bem. É preciso ser mais conciso, dar muita informação com poucas palavras. Se não gosta de escrever, deve trabalhar em outra coisa. E mesmo quem gosta precisa superar o trauma que alguns professores têm passado na faculdade e brigar com mais garra.
Para Kotscho, os jovens jornalistas estão muito acomodados: não brigam por sua pauta ou para ter acesso à informação.
com raras exceções: os jovens estudantes estão desanimados. Fiquei intrigado um tempo, querendo saber de onde vinha isso. Os comentários que ouvia eram pra baixo: “não tem jeito”, “porque esse mercado de trabalho é isso e aquilo”, “a profissão acabou”. Comentários que mais parecem os de alguns colegas da minha geração, que há tempos já dizem que o mundo vai acabar, o Brasil não tem jeito, o jornalismo acabou, e assim por diante. Mas o que me impressionou é que jovens que ainda nem entraram no mercado de trabalho tenham essa mesma mentalidade. Ultimamente, percebi que isso vem dos professores. Eles botam na cabeça do aluno que o jornalismo não vale a pena, não há liberdade, é manipulado pelo poder econômico e fica submisso aos interesses dos patrões. Na verdade, nunca vivemos um período tão prolongado de liberdade, quanto este que o Brasil está passando. Obviamente, você não tem liberdade absoluta nem na
Sou editor adjunto, mas tive que brigar, porque escrevi uma matéria muito grande e não queria que fosse cortada. Até na hora edição, é preciso brigar. E vejo pouco ânimo nos jovens para isso. Jornal da ABI — Há pouco tempo, você lançou dois novos livros. E não é o único jornalista a enveredar por esse terreno. Cada vez é mais comum jornalistas lançarem livros de não-ficção. Seria essa uma boa alternativa para quem está na profissão?
Kotscho — Realmente, essa área está sendo bem explorada e arrisco até dizer que está um havendo um boom de livros de não-ficção escritos por jornalistas. É até conseqüência do pouco espaço que está havendo para textos mais longos na imprensa tradicional e mesmo na internet, com esse negócio de jornalismo fast food, a informação rápida e simples. Eu mesmo tenho 19 livros publicados. O Humberto Werneck acha graça e até brinca
nas décadas de 60 e 70. Como ele era muito ligado à família Mesquita e eu trabalhava no Estadão, várias vezes fui encarregado de acompanhá-lo em suas visitas a São Paulo, quase sempre para denunciar alguma violência praticada pelo regime militar contra jornalistas. Jornal da ABI — E como você veio a integrar o Conselho Deliberativo da instituição?
Kotscho — Fui eleito Conselheiro da ABI pela primeira vez na época do Prudente de Moraes, neto. No ano passado, voltei a integrar o Conselho a convite de Maurício Azêdo (Presidente) e Audálio Dantas (Vice), meus amigos de outros carnavais e alguns funerais. A ABI costuma ser o último reduto que os jornalistas buscam em momentos de apuro. Deveria ser sempre, e não só nessas horas, o primeiro. Entrevista originalmente publicada em 12 de abril de 2006. Para esta edição a entrevista foi atualizada com novo depoimento a Marcos Stefano.
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