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O acadêmico Alberto da Costa e Silva ganha o Prêmio Camões

Livro reúne caricaturas de Mario Alberto sobre a Copa

A história dos suplementos que revolucionaram a imprensa

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Ó RGÃO OFICIAL DA A SSOCIAÇÃO B RASILEIRA DE I MPRENSA

JUSTIÇA MARCA ELEIÇÃO DA ABI 1º de agosto é a data escolhida. Sócios de todo Brasil poderão utilizar o voto eletrônico pela primeira vez na História da entidade. P ÁGINA 3

“Jornalista tem que ser isento. Não uso minha profissão para fazer nenhum tipo de reportagem que venha beneficiar A ou B. Eu mostro os fatos.” P ÁGINA 5

VIDAS MAURICIO TORRES • LUIZ CLÁUDIO MARIGO • MOLLICA


EDITORIAL

CARTÃO VERMELHO JESUS CHEDIAK

Os inimigos do futuro, além de não aceitarem ou será novamente devolvida à lenta agonia e a votação eletrônica, a opção 0800, e a coloca- ao estado de inanição que levará à sua derrocação de urnas em São Paulo, Belo Horizonte e da final. As novas eleições não podem, portanBrasília, tentaram outra jogada que não deu certo. to, ser tratadas como se fossem um jogo sem Queriam que as eleições da ABI fossem realiza- importância. Na curta gestão de Tarcísio Holanda foi posdas dia 11 de julho, véspera da final da Copa do Mundo. Apostaram num possível cochilo da ar- sível arrancá-la do estado comatoso em que agonizava. A Casa de Herbert Moses bitragem e fizeram gol contra. A A ABI não pode recebeu um novo hálito de vida justiça indeferiu o pedido formusobreviver com uma e deixou de respirar com a ajuda lado pelo diagramador Fichel agenda política em de aparelhos. As eleições de agosDavit Chargel por entender que permanente litígio to vão ser fundamentais para que não havia motivos para anteciobtenha a musculatura de que par o pleito marcado pela Direcom a realidade, tanto necessita. A ABI precisa toria da Casa para 1º de agosto. indiferente à A juíza, que acompanha todos os mobilização social voltar a se relacionar com entidades representativas da socielances dessa partida, desde o ano que sacode o País passado, mais uma vez não se dei- desde junho de 2013. dade civil como a OAB, a CNBB, o IAB e o Clube de Engenharia, xou enganar. Ela conhece como poucos os truques daqueles que sempre tenta- das quais se divorciara, nos últimos anos, depois de memorável parceria na luta contra a ram ganhar o jogo na base do grito. Quais motivações podem levar alguém, em violência, o arbítrio e a opressão, durante os chasã consciência, a marcar eleições em uma ins- mados anos de chumbo. Não se admite que a Casa de Fernando Segistituição como a ABI para a véspera de uma final da Copa do Mundo, quando a maioria dos jor- mundo se acoelhe diante do novo, renegando nalistas está envolvida na cobertura de um even- sua própria história. A ABI não pode sobrevito dessa magnitude? Desinformação, sede de ver com uma agenda política em permanente poder, má-fé? Não se pode esperar muito do litígio com a realidade, indiferente à mobilizacapitão de um time que desconhece as regras ção social que sacode o País desde junho de 2013. do jogo. Não basta entrar no gramado com Não deve também continuar congelada, a serchuteiras. O fundamental é saber o que fazer viço dos interesses de um time de várzea que sequer conhece o Estatuto e os regulamentos com elas. Não se pode acreditar na competência de uma da Casa. A instituição criada por Gustavo de equipe que necessita permanentemente de uma Lacerda, em 1908, não pode permanecer atreespécie de babysitter jurídica que lhe mostre, a lada apenas às propostas do passado que a cotodo momento, como deve se comportar du- locaram, um dia, numa posição de vanguarda rante o jogo. Chega a ser motivo de riso ver como ao pregar a ideologia da defesa do Estado de tropeçam nas linhas do gramado sem saber o Direito e da Liberdade de Imprensa. A ABI precisa se modernizar. A Casa dos Jornalistas tem que que fazer com a bola. Não podemos permitir que as eleições gerais alargar seus horizontes, enfrentar novos deda ABI, talvez as mais importantes de toda a safios e os avanços da tecnologia que ameaçam sua história, sejam apequenadas como se fossem o futuro da profissão. A Casa de Barbosa Lima Sobrinho e Prudente uma brincadeira esportiva. Não se pode reduzilas a um campeonato de futebol-tó-tó. O pleito de Morais precisa também resgatar a legião de que se avizinha não vai apenas renovar o associados que desertaram, nos últimos anos, comando da Casa. A disputa entre as chapas por discordarem do autoritarismo que tanto Vladimir Herzog e Prudente de Morais vai de- marcou o comando da entidade desde 2004. finir o futuro da instituição.A ABI sairá das urnas Apenas um exemplo: em nove anos, a Diretofortalecida e se agigantará, como no passado, ria foi convocada a se manifestar apenas 14 vezes, 2

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quando deveriam ter sido realizadas 142 reuniões. A centralização excessiva levaria a entidade a mergulhar num esvaziamento que por pouco não a empurrou para um irreversível processo de mumificação. Sob a presidência de Tarcísio Holanda foi restabelecido o primado do colegiado. Os diretores conversam entre si, todos os dias, e as decisões são sempre tomadas por consenso. Com a derrubada das cercas de arame farpado que a isolavam do corpo social e da própria realidade, a ABI mudou. Mas é preciso que caminhe a passos largos, em direção ao futuro, para que possa enfrentar o mundo perverso e cruel em que vivemos. A ABI precisa também se arejar, aproximando-se dos jovens que freqüentam os cursos de Comunicação de todo o País. Nesse processo de renovação é fundamental a filiação de novos profissionais. Esse é um dos obstáculos, que só poderá ser resolvido com novas eleições. José Pereira, o Pereirinha, Presidente da Comissão de Sindicância da ABI, órgão subordinado ao Conselho Deliberativo, e um dos líderes da Chapa Prudente de Morais, impede, desde fevereiro, a entrada de novos sócios na Casa. Não reúne a Comissão nem libera os pedidos de filiação que se encontram, há vários meses, sob sua guarda. Nem mesmo um time de amadores, como os garçons que participam das competições noturnas no Aterro do Flamengo, cometeria tantas infrações num único jogo. A votação eletrônica, através do site da Casa, e a opção 0800 permitirão, pela primeira vez, que os associados de todo o País se manifestem livremente sobre a escolha dos novos dirigentes da entidade. O corpo social receberá, nos próximos dias, informações detalhadas de como participar desse moderno e seguro processo de votação. A ABI precisa se agigantar e se abrir aos novos tempos. Não pode mais continuar a reboque de outras instituições, como um vagão sem comando. A ABI deve voltar a ostentar o garbo dos gladiadores romanos que se exibiam de corpo inteiro em campo aberto. Nos dias de hoje, não pode mais continuar espreitando o mundo pela fresta da porta, sob o risco de perder para sempre o bonde da História.


JUSTIÇA MARCA ELEIÇÃO DA ABI A Juíza Maria da Glória Bandeira de Melo, da 8ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, deferiu o pedido da Diretoria da ABI e marcou a realização de eleições gerais para o dia 1º de agosto. O processo eleitoral começará no dia 31 de julho, com a instalação da Assembléia-Geral, e se encerrará, no dia seguinte, com a votação e apuração do escrutínio. Em seu despacho, ela autorizou também que a Diretoria constituísse a Comissão Eleitoral que vai conduzir o processo de votação. O pedido do advogado Jansen dos Santos teve como objetivo sanar a dificuldade do Conselho Deliberativo em obter quórum para se reunir e eleger sua Mesa Diretora.

No dia 27 de maio, o Conselho Deliberativo não conseguiu mais uma vez cumprir o que determina o parágrafo 2º do Artigo 30 do Estatuto da ABI, que diz: “As reuniões serão instaladas em primeira convocação, estando presentes, pelo menos metade mais um dos conselheiros e, em segunda convocação, com o mínimo de um terço dos conselheiros”. No dia 27, assinaram o livro de presença apenas 12 conselheiros, quando o mínimo seria de 15. Apesar da Diretoria da ABI ter anulado, pela segunda vez, a reunião realizada em 27 de maio, o conselheiro Vitor Iório apresentou-se, na sessão de 24 de junho, como Presidente da Mesa Diretora. Abriu outra vez

a sessão sem o quórum exigido, quando estavam presentes apenas oito conselheiros , o que é vedado pelo Estatuto. O livro de presença acusou ainda a assinatura de um conselheiro que se encontra suspenso por ofender o Presidente e dois diretores da ABI , e que não poderia, portanto, participar da sessão. Diante das sucessivas violações do Estatuto e do risco de que fosse perdido o prazo estabelecido pelo Regulamento Eleitoral para a convocação das eleições da Casa, a Diretoria decidiu ingressar com um pedido junto ao juízo da 8ª Vara Cível, solicitando a publicação do Edital de Convocação da Assembléia-Geral Ordinária.

ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA EDITAL DE CONVOCAÇÃO ASSEMBLÉIA-GERAL ORDINÁRIA Nos termos do artigo 20 do Estatuto da Associação Brasileira de Imprensa-ABI, e por decisão do juízo da 8ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro, são convocados os associados quites com suas obrigações estatutárias a se reunirem em sua sede, na Rua Araújo Porto Alegre, 71, Centro, Rio de Janeiro, no dia 31 de julho do corrente ano, às 10 horas, para: 1) tomar conhecimento do Relatório da Diretoria, do Parecer do Conselho Fiscal e da decisão do Conselho Deliberativo sobre aquele e este e para discutir e resolver assuntos que lhe forem apresentados pela Diretoria ou por associados por intermédio da Mesa; no dia 01 de agosto do corrente ano, das 10 às 20 horas, na sede da entidade, à Rua Araújo Porto Alegre, 71, 9º andar, Centro, Rio de Janeiro; na representação de São Paulo, à Rua Martini-

co Prado, 26, Grupo 31, Santa Cecília; na sede da Academia Mineira de Letras, em Belo Horizonte, sito à Rua da Bahia, 1.466, Lourdes - Belo Horizonte, MG; e Brasília, sede da FENAJ, sito à SCLRN 704-BL F. loja 20, Brasília- DF; e Voto Eletrônico disponibilizado no site, através de um aplicativo e pelo serviço telefônico do 0800, disponibilizado aos associados do restante do País, para eleger: a) o Conselho Consultivo; b) o Conselho Fiscal; c) a Diretoria; d) dois terços do Conselho Deliberativo, efetivos e suplentes. O Relatório da Diretoria estará à disposição dos associados a partir de 16 de julho, na Secretaria da ABI. As chapas concorrentes, devidamente completas, deverão estar registradas, nos termos do artigo 21 do Regulamento Eleitoral, aprovado pelo Conselho Deliberativo da ABI em 17 de fevereiro de 2014.

Rio de Janeiro, 28 de junho de 2014 José Tarcísio Saboya Holanda Presidente da ABI

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LITERATURA

Glosas para o Decálogo de Quiroga

Decálogo do perfeito contista DE H ORÁCIO Q UIROGA

1. Crê num mestre – Poe, Maupassant, Kipling, Tchekhov – como na própria divindade. 2. Crê que sua arte é um cume inacessível. Não sonha dominá-la. Quando puderes fazê-lo, conseguirás sem que tu mesmo o saibas. 3. Resiste quanto possível à imitação, mas imita se o impulso for muito forte. Mais do que qualquer coisa, o desenvolvimento da personalidade é uma longa paciência. 4. Nutre uma fé cega não na tua capacidade para o triunfo, mas no ardor com que o desejas. Ama tua arte como amas tua amada, dando-lhe todo o coração. 5. Não começa a escrever sem saber, desde a primeira palavra, aonde vais. Num conto bem-feito, as três primeiras linhas têm quase a mesma importância das três últimas. 6. Se queres expressar com exatidão esta circunstância – “Desde o rio soprava um vento frio” –, não há na língua dos homens mais palavras do que estas para expressá-la. Uma vez senhor de tuas palavras, não te pre-

Considerações do escritor Fábio Lucas sobre o “Decálogo do perfeito contista”, de Horácio Quiroga.

ocupa em avaliar se são consoantes ou dissonantes. 7. Não adjetiva sem necessidade, pois serão inúteis as rendas coloridas que venhas a pendurar num substantivo débil. Se dizes o que é preciso, o substantivo, sozinho, terá uma cor incomparável. Mas é preciso achá-lo. 8. Toma teus personagens pela mão e leva-os firmemente até o final, sem atentar senão para o caminho que traçaste. Não te distrai vendo o que eles não podem ver ou o que não lhes importa. Não abusa do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos. Considera isto uma verdade absoluta, ainda que não o seja. 9. Não escreve sob o império da emoção. Deixa-a morrer, depois a revive. Se és capaz de revivê-la tal como a viveste, chegaste, na arte, à metade do caminho. 10. Ao escrever, não pensa em teus amigos nem na impressão que tua história causará. Conta como se teu relato não tivesse interesse se não para o pequeno mundo de teus personagens e como se tu fosses um deles, pois somente assim obtém-se a vida num conto.

Jornal da ABI

ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA

1. Toda obra se forma das limalhas de outras leituras. Os melhores contos guardam astuciosamente as mesmas marcas da paternidade, quer honrosas, quer desonrosas. Admiráveis são os mestres de Horácio Quiroga: Poe, Maupassant, Kipling, Tchecov. Que seria do perfeito contista brasileiro sem Machado de Assis, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Murilo Rubião e J. J. Veiga? 2. A arte do conto é produto de uma construção. Paciente arquitetura de palavras e enredos. Dominar a matéria-prima será capacitar-se para ambicionar o ponto mais alto, de onde se descortina o sonho da perfeição. A finitude da capacidade humana declama na consciência dos mais ousados a lição da modéstia. Os arrogantes não sonham, pois já se julgam superiores. 3. Há modos criativos de imitar. Num deles repousa a reverência aos mestres. Bem conhecê-los será o melhor meio de se livrar da servidão e da dependência. No outro modo insere-se o veneno da crítica, combustível da paródia: ora se imita para divulgar, divertir-se, ora para por a nu a fraude ou a impostura. No âmbito da imitação vai-se da paráfrase até à sátira. Sempre homo additus naturae. 4. O mais difícil para o escritor será admirar a própria obra com os olhos bem acesos, iluminados aos clarões do entendimento. A dor da criação é insuportável, mas tão irresistível quanto as astúcias do amor. Cair em tentação, no amor como na arte, independe do triunfo. Cego impulso. 5. Quiroga aqui é tão lúcido quanto E. A. Poe. Ter um só efeito predeterminado é lição insuperável. Todas as palavras da composição devem estar submetidas ao mesmo objetivo. Inutilia truncat. 6. Na personalidade de cada escritor existem palavras e expressões-chaves, recorrências, harmônicas ou não, que individualizam o estilo. É ne-

DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn

Editores: Domingos Meirelles e Francisco Ucha Projeto gráfico e diagramação: Francisco Ucha Apoio à produção editorial: André Gil, Cesar Silva, Conceição Ferreira, Paulo Chico. Publicidade e Marketing: Francisco Paula Freitas (Coordenador), Queli Cristina Delgado da Silva. Associação Brasileira de Imprensa Rua Araújo Porto Alegre, 71 Rio de Janeiro, RJ - Cep 20.030-012 Telefone (21) 2240-8669/2282-1292 e-mail: presidencia@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Rua Martinico Prado, 26, Cj 31 Vila Buarque - São Paulo, SP - Cep 01224-010 Telefones (11) 3868.2324 e 3675.0960 e-mail: abi.sp@abi.org.br REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS Diretor: José Eustáquio de Oliveira Impressão: Taiga Gráfica Editora Ltda. Avenida Dr. Alberto Jackson Byington, 1.808 Osasco, SP

CONSELHO CONSULTIVO 2010-2013 Ancelmo Goes, Aziz Ahmed, Chico Caruso, Ferreira Gullar, Miro Teixeira, Nilson Lage e Teixeira Heizer.

CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha) Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder, Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro

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cessário que o leitor reconheça nos pormenores o arcabouço da peça inteira. 7. Da lição de Horácio Quiroga em favor das virtudes substantivas, e em desfavor das adjetivas, colhe-se a lição mais preciosa e o desafio mais temerário, quanto à descoberta do substantivo: “Mas é preciso achá-lo.” Há dois movimentos na escrita bem-afortunada: a procura e o achamento. O talento se junta ao esforço. 8. Conduzir o protagonista com a mão firme e vontade decidida constitui tarefa do escritor determinado. Quiroga tem razão quando impõe: “Não abusa do leitor. Um conto é uma novela depurada de excessos.” Mas falta acrescentar que há contista cuja riqueza se acumula no subtexto ou nos motivos livres. Penso em Machado de Assis, que também manifestava horror a demasias. E em Clarice Lispector, que navegava em circunstâncias aparentemente insignificantes. A linguagem é como um rastro de pólvora em combustão: ilumina a busca e põe o protagonista no centro. 9. Diz Quiroga, acertadamente: “não escreve sob o império da emoção”. Quantas obras se perderam quando concebidas sob o calor dos acontecimentos. A emoção da escrita é construída, recolhida na tranqüilidade, como queria o poeta. A da vida cotidiana é produto da vida não literária, fruto da vivência humana. A revivência escrita está em Quiroga, não é o caminho todo: é metade do caminho. A outra metade poderá ser arte, se não passar de jornalismo, reportagem, crônica. 10. A décima lição de Quiroga induz o culto do real da escrita. Repugna a ele a escrita do real. Quando o contista se associa ao mundo de sua criação, adota a visão de uma de suas criaturas. Convive com elas. Respira o ar que oxigena a atmosfera artística. FÁBIO LUCAS é escritor, crítico literário e membro da Academia Paulista de Letras.

Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.

Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (Diretor), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.

JORNAL DA ABI • JUNHO DE 2014 O J402 ORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.


FOTOS: ACERVO PESSOAL

DEPOIMENTO

Jornal da ABI – Gostaria de começar bem pelo comecinho, aproveitando que, coincidentemente, hoje, 30 de abril, é justamente a véspera de seu aniversário de 70 anos. Onde você nasceu e como foi sua infância? Francisco José – Eu nasci na região rural da cidade do Crato, no Ceará. Meu pai era um tipo desses coronéis do sertão, uma pessoa muito respeitada na região. Ele era viúvo, mais ou menos com a idade que eu estou hoje, quando conheceu minha mãe, que tinha 22 anos. Minha mãe foi o terceiro casamento dele, que já tinha filho pra tudo quanto era lado. Ele conheceu minha mãe, disse “vou conquistá-la” e conquistou. Ele era impressionante, muito admirado, andava em cavalos bonitos, a fazenda dele era bonita. Ele se casou e eu nasci. Fui o mais novo filho dele e o mais velho da minha mãe. Minha mãe morreu dizendo que ele era a grande paixão da vida dela. Jornal da ABI – Então, você é conterrâneo do cineasta Hermano Penna. Francisco José – Não só sou conterrâneo, como sou também primo legítimo dele. Mas nós só nos vimos mesmo na infância, onde vivíamos praticamente na mesma casa. Depois ele foi para um lado e eu fui para outro, mas acompanhei o sucesso dele, principalmente com o filme Sargento Getúlio.

“A IMPRENSA BRASILEIRA É A MAIS LIVRE DO PLANETA”

Jornal da ABI – No total são quantos irmãos? Francisco José – No total eu não sei [risos], juro que não sei. Até ano passado fiquei sabendo que tinha irmão que eu não conhecia. Sei da parte da minha mãe, porque ela ficou viúva e se casou com um comerciante da capital. Foi quando eu vim ao Recife. Ele também era viúvo, tinha oito filhos, comigo nove, e teve mais cinco com ela. Na realidade, somos catorze pelo lado da minha mãe. Pelo lado do meu pai eu não sei direito, mas do intervalo do segundo para o terceiro casamento sei que ainda restam dois irmãos, o Vicente e o Francisco.

POR C ELSO SABADIN

Jornal da ABI – O nome dos seus pais? Francisco José – O nome do meu pai é o mesmo que o meu, Francisco José de Brito, bem conhecido como Coronel Chico de Brito.

Ele é ‘a cara da Globo’ no Nordeste. Não só a cara como a voz e o sotaque. Apaixonado por futebol, mergulho, pesca submarina e temas ambientais, Francisco José recebeu a reportagem do Jornal da ABI em seu apartamento em Boa Viagem, Recife. Detendo a invejável marca de ter comandado, até agora, nada menos que 89 programas Globo Repórter, Chico José, como todos o chamam, já perdeu a conta do número de países onde já realizou reportagens. Desafiou os coronéis do poder, denunciou poderosos, driblou a ditadura, e convenceu a Globo a adotar sotaques regionais no Jornal Nacional. Nada mal para quem começou a carreira com uma divertida e desastrosa narração futebolística.

Jornal da ABI – Era latifundiário? Francisco José – [pensa um pouco] Latifundiário exatamente, não. Digamos que era um fazendeiro bem sucedido. Mas as terras dele não eram grandes, não. Na realidade, era um engenho de cana-de-açúcar, com plantio de cana e pequi. Jornal da ABI – Você morava na zona rural ou na cidade? Francisco José – Morei na zona rural até os sete anos de idade, cresci na fazenda.

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DEPOIMENTO FRANCISCO JOSÉ

Jornal da ABI – E como finalmente você se tornou jornalista? Francisco José – Minha entrada na imprensa foi por acaso. Na época, não havia curso superior de Jornalismo, e eu sempre fui fanático por futebol. Hoje, menos. Hoje gosto de ver espetáculo, gosto de ver o Barcelona, gosto de ver bom futebol. Mas na época não, era torcedor do Náutico, como sou até hoje, ainda que menos fanático. Mas o fato é que, naquela época, Recife tinha o Jornal do Commercio e o Diário da Noite, um vespertino quase que totalmente dedicado ao esporte. E eu per-

ário... sabe entrevistar?”. Respondi “sei” e fui pra lá. O jogo foi à noite, depois fui direto para a Redação fazer a matéria. Peguei a máquina de escrever, escrevia, escrevia, lia, jogava no lixo, escrevia, lia e jogava no lixo... Foi assim até às cinco horas da manhã. E eu tinha chegado no jornal antes da uma da manhã. Saí às cinco, deixei o texto dobradinho lá, e quando acordei, peguei o jornal: o texto que eu tinha feito estava lá. Jornal da ABI – Aí você foi pra cidade No dia seguinte, quando voltei ao jornal, estudar? porque agora eu também cobria os treinos Francisco José – É. Fui pra cidade estudar, do Náutico enquanto o repórter não volera pertinho, seis quilômetros só. Uma létava, o Aramis perguntou: “Quem fez o gua, como se diz. texto do jogo?”. Respondi que fui eu e ele me falou: “Ficou melhor Jornal da ABI – Como você “Quando eu peguei uma edição que o do repórter que fazia ancurtia sua infância? com 32 erros, alguns deles tes”. E eu consegui o trabalho. Francisco José – Minha infância e adolescência eram andar absurdos, arranquei uma folha do Começaram, então, a sair as matérias, que não eram assinadas. com os funcionários da fazencaderno do colégio e escrevi uma Seis meses depois, o Aramis reda, pegar cana, correr a cavalo, fazer pega de boi, e ir buscar o gado carta ao jornal criticando que eles solveu deixar o jornal, ficar só com o comentário no rádio e assumir para colocá-lo no curral à noite. estavam enganando os leitores.” a banca de advocacia dele. E me Eu fazia muito isso, e adorava indicou para ser editor-chefe. Foi fazer essas coisas. cebi que o Diário trazia muitos erros nas assim que tudo começou. estatísticas do campeonato pernambucaJornal da ABI – O que você queria ser no de futebol. Quando eu peguei uma Jornal da ABI – Pelo visto seu talento quando crescesse? edição com 32 erros, alguns deles absurpara escrever é nato. A que você atriFrancisco José – Eu não tinha idéia do dos, arranquei uma folha do caderno do bui esta habilidade? Você lia muito? que eu ia ser. Eu queria estudar. Eu tinha colégio e escrevi uma carta ao jornal criFrancisco José – Eu lia muito a coluna uma irmã do segundo casamento do meu ticando que eles estavam enganando os do Armando Nogueira no Jornal do Brapai, Juraci, que era professora, e ela me inleitores, que eles não atualizavam as estasil. Eu ia para a banca de jornais só para centivava muito a estudar. Quando meu tísticas do campeonato, que estava erracomprar os jornais e acompanhar mais o pai morreu, eu tinha oito anos de idade, e do o número de gols, que o artilheiro não esporte. Eu lia demais. fui interno num seminário de Crato, o meera aquele, e que até o número de pontos lhor da região, onde fiquei durante dois não estava correto. Enfim, reclamei que Jornal da ABI – Então, sua paixão pela anos, até eu vir pra cá, em Recife. a gente comprava o jornal para ser engaescrita não veio da literatura, mas do nado. O editor-chefe, Aramis Trindade, jornalismo? Jornal da ABI – O que te faz vir para o tio do ator pernambucano de mesmo Francisco José – Sim, do jornalismo mesRecife? nome, fazia um comentário esportivo na mo, do texto jornalístico. Eu aprendia Francisco José – O fato de minha mãe ter rádio do grupo do Jornal do Commercio, que como os jornalistas escreviam. se casado com um comerciante daqui, o era um sucesso, todo mundo ouvia (naAlfredo de Albuquerque Fernandes. Chequela época não tinha televisão). E no fiJornal da ABI – E você entra no jornaguei aqui, me uni aos oito filhos de Alfrenal de um destes comentários, certa vez lismo pela porta do esporte. do, e fomos criados todos juntos, como ele disse: “Eu quero convidar o leitor do Francisco José – Exatamente. Naquela uma grande família. Nós nos consideraDiário da Noite que corrigiu a estatística mesma ocasião houve um concurso pra mos irmãos de fato e de direito, e eu condo campeonato para vir à Redação do ver quem ia fazer a cobertura da Copa do sidero meu padrasto como um segundo jornal”. Meus amigos de colégio, que saMundo, e eu ganhei. pai pra mim. biam que eu tinha feito isso, me avisaram que estavam me chamando, mas eu não Jornal da ABI – Estamos falando de Jornal da ABI – E como foi sua adoqueria ir. “Vou nada, eu esculhambei com qual Copa? lescência? o jornal, vou nada”, eu dizia. Dois dias deFrancisco José – A de 1966, na InglaterFrancisco José – Bom, eu cheguei em Repois o Aramis me chamou de novo, e aí eu ra. Tinha pouquíssimo tempo de jornal cife antes de completar onze anos. Até os fui. Ele me disse: “Você quer ficar fazene lá fui eu para a Copa do Mundo. Em 1970, 18 ou 20 anos eu estudava e ajudava na do a estatística do campeonato?”, e eu perno México, eu também fui, mas já pelo empresa do meu padrasto, que tinha uma guntei quanto eu iria ganhar. Como já Jornal do Commercio. Foi nessa ida para a indústria de molduras. Eu dava quase que estava quase no fim do campeonato, e ele Copa do México que eu acabei chamando um expediente lá, sem a obrigação de fidisse “este ano eu não tenho dinheiro pra a atenção do Armando Nogueira e da equicar o tempo todo, porque a prioridade te pagar, mas a partir do próximo campepe da Globo, pois eles perceberam que eram os estudos. Ele mesmo considerava onato eu vou arranjar uma graninha pra onde eles estavam, eu estava também. Eu isso, tinha uma visão muito boa disso. O você. Não é muita coisa, mas é uma ajutrabalhava muito, fui realmente para me jornalismo propriamente dito surgiu aos da; vou dar o transporte para você vir toda dedicar, para fazer uma boa cobertura. Eu 20 anos de idade, quando na escola eu gaquarta-feira à noite e todo domingo à era o único enviado da empresa Jornal do nhei um concurso de literatura escrevennoite para atualizar a estatística”. Commercio, que era grande, tinha rádio, jordo sobre Abraham Lincoln. Não tinha inEu aceitei. Até que dois, três meses denal e televisão. Assim, quando a Globo coternet na época, era difícil pesquisar, eu pois, faltou o repórter que cobria o Náumeçou a fazer o Globo Esporte também aqui fui pra biblioteca, pesquisei muito e gatico, que era o meu time. Parece que ele no Recife, o Armando Nogueira mandou nhei o concurso. Quando eu fui receber sofreu um acidente e ia ficar um mês fora. me contratar, porque ele tinha visto meu o prêmio no auditório do Colégio AmeAramis olhou pra mim e disse: “Quer ir trabalho no México. Foi aí que a Globo ricano Batista, o professor disse que eu tipra Caruaru fazer o jogo com o Central? me chamou. nha muito jeito para escrever, e que eu Você anota todos os dados, o fotógrafo vai podia me tornar jornalista. Me deu um escom você no carro do jornal, leva um graJornal da ABI – Então, a partir de 1966, talo: será que eu posso ser jornalista? Eu vador, entrevista os jogadores no vestisua trajetória foi Crato, Recife e Lonmesmo não acreditava. Com dois anos já me botavam em cima de cavalo, tinha uma sela pequena, e o cavalo me levava de um lado para outro. Com cinco anos já andava em burro bravo, que me derrubava na bagaceira do engenho. Eu levantava e me colocavam para o burro derrubar de novo. Minha vida foi maravilhosa no período da infância.

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dres, tudo muito rapidamente. Quais eram as condições técnicas que um repórter tinha, em 1966, para fazer uma cobertura para um jornal diário de Londres para Recife? Francisco José – Nenhuma! Jornal da ABI – Mandava as matérias via pombo correio? [risos] Francisco José – Era pombo correio, porque eu não era nem credenciado. Quando o jornal me mandou para Londres, em 1966, nem dava mais tempo para fazer credenciamento, mas eu fui assim mesmo. Em 1970 eu já fui credenciado, já podia usar o centro de imprensa, usava os telexes de lá para passar as reportagens. Jornal da ABI – Se você não estava credenciado, como tinha acesso às informações e enviava as reportagens? Francisco José – Eu ia ao estádio, via a movimentação, via tudo o que eu conseguisse ver, escrevia, entregava o texto para um correspondente do jornal que ia até uma área que eu não tinha acesso, e ele mandava tudo aquilo. Jornal da ABI – Como foi cobrir a Copa de 1970 pelo Jornal do Commercio? Francisco José – Eu fui para o México dois meses antes, acompanhando a seleção. Onde ela ia, eu ia junto. Mas foi uma dificuldade enorme, porque naquela época o jornal estava praticamente falido. Eu fui com um orçamento limitadíssimo, que mal dava para comer. Era um dinheirinho contado, o salário bem pequeno também, mas era uma realização profissional enorme. Quando eu voltei, o jornal nem pagava mais em dinheiro, mas somente em vale. E eu, recém-casado, minha filha mais velha, Mariane, com apenas três meses de idade, pensei: “Como vou sustentar minha mulher e minha filha recebendo em vale? Eu vou ter de procurar um emprego, vou sair do jornalismo”. Me aconselharam a procurar uma agência de publicidade que se chamava Abaeté, e que mais tarde se tornou a Ampla, atualmente a maior agência daqui. Na época, a Abaeté também já era a maior da região. Falaram para eu procurar o senhor Queiroz, porque o redator de lá estava saindo e poderia ter uma vaga para mim. Fui lá, bati na porta do Queiroz, Severino Cavalcante Queiroz, falecido em 2012, e disse: “Vim pedir uma oportunidade para trabalhar aqui; está aqui o meu currículo”. E ele me disse: “Eu lhe conheço, leio sua coluna todo dia, mas publicidade não é jornalismo, não. Você se submete a ficar três meses em experiência?”. Eu, claro, aceitei e ele me deu uns bons clientes para atender e para eu criar os anúncios deles. Em menos de um mês ele pediu minha carteira profissional e me contratou. Fiquei na Abaeté três anos. O principal cliente da agência era o Sistema Financeiro Banorte, numa época em que aqui não tinha Bradesco, não tinha Itaú, não tinha nada, só o Banorte. Eram mais de 100 agências no Brasil, o maior banco da região, uma potência! E


como eu me destaquei muito atendendo o banco, eles acabaram me contratando como gerente de marketing. Passei de agência a cliente. Jornal da ABI – Você não era apenas o redator da agência? Francisco José – Eu era redator, mas fazia o atendimento, participava das reuniões, voltava para a agência e participava da criação do anúncio da maneira como eu tinha visto, que o cliente tinha pedido, criando e colocando dentro das normas de publicidade. Eu aprendi muito com o Queiroz, foi um grande professor para mim. Meus primeiros grandes professores foram, primeiro, o Aramis, depois o Queiroz, e mais tarde o Ronildo Maia Leite [jornalista e publicitário pernambucano, nascido em 1930 e falecido em 2009], que foi extraordinário comigo, sempre me ensinou muito. Minha faculdade foram estes três professores. Depois, na Globo meus mestres foram Armando Nogueira e Alice-Maria. Enfim, fui gerente de marketing do Banorte por dois anos e meio, fiz curso de especialização em Marketing na Fundação Getúlio Vargas-FGV, fui aos Estados Unidos, aprendi muito. Jornal da ABI – Quando veio o convite da Globo? Francisco José – Foi no final de 1975. A Globo me convidou para comandar o segmento do programa Globo Esporte no Nordeste, a partir de janeiro de 1976. Perguntei quanto seria meu salário e era a metade do que eu ganhava como gerente de marketing do Banorte. Eu disse “mas isso é a metade do que eu ganho”, e ouvi “mas é isso que a gente pode te pagar”. E ficou por isso mesmo. Decidi voltar para o jornalismo, mesmo perdendo dinheiro. Na época eu ganhava acho que onze mil cruzeiros, e fui ganhar quatro e oitocentos, mas ali estava a minha vontade de voltar a ser jornalista e ao mesmo tempo um desafio para entrar na televisão. A Globo era uma coisa nova, e aqui em Pernambuco é Globo mesmo, não é afiliada, isso foi um incentivo grande, mas a minha entrada na emissora foi a coisa mais desastrosa que você possa imaginar. No dia que fui a Olinda, onde estou até hoje na sede operacional da Globo de Jornalismo e Engenharia, perguntei que dia eu iria começar a trabalhar e me disseram: “Hoje. Você vai narrar um jogo, Santa Cruz e São Paulo, às onze horas da noite”. E falei “Hoje? Mas este jogo é no Morumbi, lá em São Paulo”, e eles me disseram que eu ia fazer “off tube”. “Mas o que é off tube?”, perguntei, e eles me disseram: “você vai ficar numa cabine, e quando acender uma luz você vai começar a falar”. Argumentei dizendo que eu não era narrador, nunca narrei um jogo de futebol, nem em rádio, nunca traba-

Pelo Globo Repórter, Francisco José já viajou aos lugares mais belos e exóticos e também aos mais inóspitos do planeta; desde a Índia (acima, com a equipe do programa) até a Cordilheira dos Andes (ao lado).

lhei em rádio, nunca trabalhei na televisão, nada. “Você aprende. Você foi escolhido pelo Armando Nogueira, e não tem outro, já está tudo certo”, me disse o Wilson Emanuel, um carioca Diretor de Operações. Pois bem, lá pelas dez e meia da noite, eu ouvi no corredor: “Onde é que está o cara que vai narrar o jogo?”. Responderam: “Tá lá na sala de Wilson”. Me levaram para a tal cabine do “off tube” e me disseram para chamar os comerciais quando terminasse o primeiro tempo. “Como é que se chama um comercial?”, eu perguntei, e a resposta foi: “Você diz que volta logo depois do intervalo comercial”. Era assim. Me deram um papel com as escalações dos times, não tinha co-

mentarista, não tinha repórter, não tinha nada. Era eu sozinho para segurar o jogo inteiro. Fiquei naquela cabine olhando a luz apagada uns dez minutos. Quando acendeu a luzinha escrito “No Ar ”, fixei os olhos no monitor, falei “boa noite”, e saí narrando o jogo, sem nunca ter feito nada parecido na vida. Eu tinha na cabeça as coisas que eu ouvia do Luciano do Valle e de outros narradores da época, como “bola com fulano, toca pra direita, lança na esquerda”, essas coisas, mas estava bem lento e bem tímido, achando tudo aquilo um absurdo, achando que eu não sabia fazer nada daquilo. Igual ao cara que não sabe cantar e se mete a cantar. Só sei que dali a pouco teve um chu-

te na trave. O São Paulo pressionando o tempo todo, e chutaram uma bola na trave. Gritei que a bola foi na trave, mas imediatamente me veio um medo: e se fosse gol? Eu não sei gritar gol! Bom, acabou o primeiro tempo, chamei os comerciais, veio o segundo tempo, acabou o jogo, dei graças a Deus que tinha terminado zero a zero, já que eu não saberia como gritar gol. Eu suava! Daí um rapaz chamado Jobson abriu a porta da cabine e disse: “Vem agora para o estúdio para chamar os gols”. Que gols? Foi zero a zero! Mas era para chamar o gol do Maracanã (o Fluminense ganhou com gol de Rivelino), o gol do Beira Rio, os gols do Mineirão, os outros gols da rodada. Pela primeira vez eu entrava num estúdio da Globo. As luzes fortíssimas, o ar-condicionado desligado porque dava interferência, aqueles panelões de luz em cima, que eram bem diferentes e bem mais quentes que as luzes de hoje. Fiquei ali suando, suando, com calor, com medo, suando e tremendo. O mesmo Jobson volta e diz: “Passa pó na cara dele, que está brilhando muito”. E eu falei “na minha cara não vai botar pó, não!”. Imagina só, botar pó na cara do sujeito que veio lá do sertão! Tentei resistir e ele me disse: “deixe de besteira rapaz, todo mundo faz isso; Cid Moreira, Sérgio Chapelin, todo mundo passa pó”. O Jobson foi numa gaveta, pegou o estojo de pó da apresentadora do jornal, e veio ele mesmo passar aquilo na minha cara, que me deu mais um motivo para ficar inibido diante daquela câmera. Eu nunca tinha ficado diante

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de uma câmera na vida. Perguntei “quando é que eu sei que é pra falar?”. Me responderam: “quando acender a luz aqui em cima é que está no ar, e cala a boca que falta menos de um minuto pra você entrar ”. E eu entrei. Chamava o gol do Mineirão e entrava o do Beira Rio, eu chamava o do Beira Rio, entrava o do Maracanã, e eu ia tentando consertar tudo. Quando terminou até me esqueci de lavar o rosto e tirar o pó, e fui embora para casa, com pó e tudo. No dia seguinte, voltei lá para agradecer e me demitir, para dizer que aquilo não era minha praia, que eu não sabia fazer e não ia mais fazer aquilo. Foi quando o Wilson Emanuel me disse: “Quem sabe se você vai dar certo na televisão sou eu, quem entende sou eu. Você não entende nada, vai ficando aí que todo mundo começa assim”. Era assim naquela época. Hoje, não. Hoje todo mundo faz piloto, se prepara, tem curso de Jornalismo, tem cadeira de Televisão para aprender, ensaios, tem tudo. Mas, naquela época, foi assim, a seco. Eu fui ficando e estou tentando aprender até hoje. Acho que cada reportagem é um novo aprendizado. Jornal da ABI – Como foi sua transição do esporte para outras áreas da reportagem? Francisco José – Na Globo eu participei das Copas de 1978, 1982, 1986 e 1994, mais as Olimpíadas de Seul e Los AngeE eu mesmo me pautava. Agora mesmo suporte que o cinegrafista praticamente les. Depois eu saí do esporte e fui para a estou voltando das Bahamas com quatro vestia para conectar o cabo que ligava a reportagem, mesmo porque aqui em Pervts para o Fantástico. Pauta minha, tudo câmera ao vt. Era uma espécie de bisavó nambuco eu já fazia reportagens gerais executado por mim. da steadycam [risos]. desde 1976, logo no meu primeiro ano de emissora, pois a Globo precisava de um reJornal da ABI – E você, que entrou no Jornal da ABI – Quais foram suas prinpórter de vídeo para cobrir a região Norjornalismo motivado por sua paixão cipais coberturas no Nordeste daquedeste. Comecei a entrar no Jornal Naciopelo esporte, acabou se apaixonando la época? nal quando só oito repórteres eram autopelos mais diversos temas? Franscisco José – Deste período eu corizados a entrar, mesmo porque eles preFrancisco José – Foi. Tinha um crime na bri secas, crimes, denunciei falcatruas de cisavam cobrir uma seca terrível que houParaíba, eu corria para lá. Aconteceu uma políticos, cobri o chamado “Escândalo da ve por aqui naquela época, uma das piores catástrofe no Rio Grande do Norte, um Mandioca”, que deu na morte de um Prode todos os tempos. Se hoje você curador da República, assassinavê matérias sobre a seca matanpor um major da polícia, que es“A gente acompanhava as viúvas do do animais, imagine naquela épotava envolvido. Cobri muitos cada seca, os anjinhos da seca, ca! Ela matava pessoas. A gente sos de problemas dos chamados acompanhava as viúvas da seca, os da Morte”, no intericrianças que nasciam desnutridas “Sindicatos anjinhos da seca, crianças que nasor do sertão. O sertão não tinha lei, e morriam antes dos 30 dias de ciam desnutridas e morriam antes tinha tiroteio de quarenta minudos 30 dias de vida, sem nome, sem em Serra Talhada, terra de Lamvida, sem nome, sem identidade, tos identidade, sem nada. Elas eram pião. Eles chegavam com vários sem nada. Elas eram enterradas enterradas no quintal da zona rucarros, invadiam a cadeia e levaral, abriam uma cova rasa, colocaquem eles queriam. Era uma no quintal da zona rural, abriam vam vam umas flores, e perguntavam terra sem lei. uma cova rasa, colocavam umas se a criança tinha nome. Se não tivesse, era um “anjinho”, um terJornal da ABI – Você deve ter flores, e perguntavam se a mo que usam até hoje para criansofrido muita pressão. criança tinha nome.” ça que morre. Francisco José – Sofria muita pressão, mas ao mesmo tempo as Jornal da ABI – Como que neste mesaçude estourou, inundou uma cidade inteipessoas tinham respeito por mim, pelo mo ano de 1976 você sai de um fiasco ra, imediatamente eu ia para lá. Tudo o que meu jeito de ser, de encarar, de ir e fazer, esportivo daquele tamanho para já enacontecia no Nordeste, eu era o correspone não ficar me escondendo. Eu cobri o caso trar no Jornal Nacional? dente, corria para fazer a reportagem. de Exu, onde houve uma guerra entre faFrancisco José – Durante quase dez anos mílias que acabou culminando com a moreu fui o único repórter de vídeo da TV GloJornal da ABI – Tudo com aquelas câmete de mais de 50 pessoas das duas famílibo no Nordeste. Depois é que começaram ras U-Matic enormes daquela época? as que brigavam entre si. E eu ia sempre a surgir outros repórteres, mas no Jornal Francisco José – Não, foi até antes da Uaté lá cobrir. Tinha um aviãozinho pequeNacional só eu entrava. Fazia todas as pauMatic. Eu ainda peguei a época da Aurino que terminou caindo e o piloto mortas, e às vezes eu saía pelo sertão para com, pesadíssima, que tinha de ser usada reu, e eu descia num campo de futebol fazer quatro, cinco matérias de uma vez. com uma espécie de cangalha, que era um porque não tinha pista de pouso. Chega-

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va lá para fazer as matérias e as pessoas ficavam com raiva de mim, dizendo “você só vem aqui quando morre gente da minha família”. E eu falava: “não, venho quando morre da outra família também”. Pelo fato de eu botar a cara e falar a mesma linguagem deles, eu não considerava as ameaças, e agindo assim até hoje consigo enfrentar situações difíceis com a maior naturalidade. Jornal da ABI – Você não tinha medo dos poderosos, de ser ameaçado de morte? Francisco José – Não, não chegaram a me ameaçar de morte, mas mostrar revólver e parar o carro, mandar embora, tudo isso aconteceu muitas vezes. Mas eu não acreditava que eles iam atirar. É igual ao mergulho, que é um esporte que eu gosto muito: quando dou de cara com um tubarão-tigre de quatro metros, ele vem pra cima de mim, eu vou com a câmera em cima dele. Ele volta, eu dou com a câmera nele. Não vou embora, não. Enfrentar os coronéis do sertão, já que eu sou filho de um, era a mesma coisa que enfrentar o tubarão-tigre. Minha arma era a câmera. Jornal da ABI – E as condições para trabalhar naquela época? Francisco José – A Globo sempre me deu boas condições. Eu tinha um carro para as viagens, que era o que eu precisava. Não digo que ficava em bons hotéis porque o Nordeste naquela época não tinha grandes hotéis, como tem hoje. Mas tinha as condições necessárias para o que eu precisava.


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porque ele não quer mudar ”. E não queria mesmo. Como se faz um Jornal dito Nacional com todo mundo falando com sotaque carioca ou paulista? O Armando me deu razão e liberou os sotaques regionais na Globo.

“Enfrentar os coronéis do sertão era a mesma coisa que enfrentar o tubarão-tigre. Minha arma era a câmera.” Jornal da ABI – Como era a relação da Globo Recife com a matriz? Francisco José – A relação sempre foi normal. Nós somos como um escritório da Globo, porque aqui é Globo. Então, tudo era e é mais fácil. Lá do interior, eu ia para um telefone público ou um posto telefônico, ligava para o editor e dizia: “olha, eu tenho isso, isso, isso, estou mandando pelo ônibus, vão editar em Recife”. E na época ainda era filme, película, tinha de mandar revelar. A gente modificou muita coisa no Nordeste. Por exemplo, quando eu comecei a cobrir o Carnaval de Olinda, há 38 anos, era a coisa mais linda do mundo! Os clubes saíam um dia de Pitombeira, outro dia do Elefante, outro dia de outro lugar, e assim por diante. Cada dia era o dia de um clube desfilar, e no último dia saíam todos, com as ruas decoradas pelo próprio povo, fantasias maravilhosas, hinos, ritmos, e só o povo da cidade. Tudo isso foi aumentando. Cada vez que o Jornal Nacional dava três, quatro minutos por dia para uma matéria do Carnaval de Pernambuco, no ano seguinte dobrava o número de pessoas. Até que um dia que eu estava descendo a ladeira na frente de um bloco, e um morador me parou e falou: “Chico, tu não está percebendo que estás acabando com o Carnaval de Olinda, não? Olha a multidão que vem aí e não deixa o povo desfilar, os músicos não podem tocar de tanta gente ao redor, todo mundo urinando na rua, não tem estrutura pra isso, cada vez que você mostra na televisão, aumenta o número de pessoas. Vai mostrar o Carnaval em outro lugar”. E ele tinha razão. Fiquei dez anos sem ir a Olinda e fui mostrar Recife, onde não tinha ninguém no bairro antigo. E em todo lugar que a televisão mostrava, mudava tudo. A televisão mudou Olinda, mudou Recife, como nós mudamos também várias outras regiões. Por exemplo, Bonito, em Mato Grosso do Sul, a primeira vez que eu fui lá, em 1992, gravar o Globo Repórter, tinha um único hotel, o Bonanza, nenhuma rua calçada e nenhuma operadora de turismo. Dois anos depois, em 1994, eu voltei para gravar o segundo Globo Repórter e todas as ruas estavam calçadas, havia 16 hotéis, e estavam construindo um de cinco estrelas. As áreas que nós mostramos foram compradas por empresários de turismo, e os que tinham fazenda de gado deixaram o gado para segundo plano para se dedicar ao turismo, que passou a ser mais rentável. Um turismo perfeitamente ecológico, onde os lugares só podem ser visitados com guias. Eles organizaram tudo de uma maneira que tornou a região uma das maiores atra-

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Francisco José com a mulher, a jornalista Beatriz Castro, na Redação da Rede Globo Nordeste.

ções turísticas do Brasil. E era totalmente desconhecida. Jornal da ABI – Essa responsabilidade não te assusta? Francisco José – Não, porque eu faço tudo com muita consciência. Me preocupa o fato de o Carnaval ter sido tão bonito e depois ter virado a multidão que é hoje, mas ainda é bonito, porque você vê dez, doze, quinze maracatus passando pelo meio daquela multidão com aquele toque marcante e tudo. Aquilo é Carnaval tradição de Pernambuco, aquilo é o que queremos mostrar. Mas, ao mesmo tempo, quando passa o maracatu, as ruas ficam fechadas, mudou o aspecto.

Globo Repórter da época e o colocou para dirigir estas pessoas. Eles ficaram seis meses no sertão procurando soluções, que foram apresentadas num relatório divulgado pela Globo num programa especial que fizemos ao vivo, o Hermano Henning e eu. As soluções eram: abrir poços, fazer barragens quando tivesse chuvas, os rios serem barrados, e isso é o que está aliviando a situação até hoje. É isto que consegue abastecer as cidades, a maneira como cultivar, irrigar e aproveitar a água dos açudes, as cacimbas, e várias outras, tudo isso foram sugestões apresentadas neste programa. Jornal da ABI – Isso deve te dar um orgulho absurdo, né? Francisco José – Dá, claro, e para toda a equipe, porque eu sou apenas uma gota d’água numa estrutura que trabalha com a responsabilidade.

Jornal da ABI – Como o Globo Repórter acontece em sua carreira? Francisco José – Foi quando o Roberto Feith, que era diretor do escritório de Londres da Globo, voltou ao Brasil para cuidar da editora dele e dirigir o Globo Repórter. E ele veio numa condição: “Eu vou para o Globo Repórter se eu tiver repórter ”, porque o Globo Repórter até hoje não tem repórter. Só teve na época da Central de Notícias. Ele, então, escolheu oito repórteres do Jornal Nacional, que continuariam a fazer o JN, mas teriam o Globo Repórter como prioridade. Eu fui um deles, e a minha primeira matéria foi procurar os caçadores de jacaré que faziam contrabando de pele no Pantanal. Jornal da ABI – Quem pautava? Francisco José – O Bob Feith, em reuniões onde todo mundo dava sugestões. Primeiro fiz esta pauta dos contrabandistas de jacaré, e depois uma sobre o misticismo em Brasília, Tia Neiva, o Vale do Amanhecer, as formas piramidais das construções de Brasília, tudo aquilo. Em maio do ano passado [2013] completei meu octogésimo nono Globo Repórter, e com o tema que eu sugeri: o sertão do São Francisco. Jornal da ABI – Qual é sua posição sobre a opinião do Rio São Francisco? Francisco José – Olha, se fosse uma coisa séria, se não houvesse corrupção e trouxessem água do Tocantins, seria a salvação do Nordeste. Mas, da maneira como estão fazendo, eles vão criar um problema sério para o rio. E a corrupção é tão grande que quanto mais eles demoram a fazer, mais oneram a obra, e a gente não vê o resultado ainda.

Jornal da ABI – A gente está falando de anos 1970, pressões da censura, você conseguia fazer matérias politicamente fortes, denúncias políticas? Francisco José – Sim, principalmente as matérias sobre a seca. A “A gente não podia usar gente não podia usar palavras palavras como ‘fome’, que a Jornal da ABI – Dos seus 89 procomo “fome”, que a censura não permitia, mas eu mostrava, em censura não permitia, mas eu gramas Globo Repórter, é possível escolher alguns que mais te imagens, que as pessoas estavam mostrava, em imagens, que as marcaram? com fome. Não podia falar “fome”, Francisco José – Ah, claro, eu acho mas eu mostrava a realidade. Mospessoas estavam com fome.” que sempre os últimos. Por exemtrava uma mulher esperando um plo, tem um que me marcou muito bebê e o médico já dizendo que ela Jornal da ABI – Naquela época em que no ano passado que foi o programa sobre não tem condições de manter o filho, se falava muito sobre integração nacioos índios Enauenê-naue. Nunca havia enporque ela está completamente desnunal, uma das bandeiras da ditadura, trado uma câmera de televisão aberta trida. Voltava lá dez dias depois e moscomo era visto pela Globo o seu sotanaquela aldeia. A produtora Maria Luiza trava já a cova do anjinho. que nordestino, que é bem marcado? tem muita ligação com os índios e com a Francisco José – No início houve uma Funai, mesmo porque ela é meio índia. Jornal da ABI – As matérias sobre o certa resistência, porque eu falo até hoje Foi ela quem conseguiu que nós entrásCarnaval mudavam o Carnaval. E as do jeito nordestino. Me mandaram ao semos lá com o compromisso de denunmatérias sobre a fome tinham algum Rio para eu ter aulas com a Glorinha Beutciar as hidroelétricas e as barragens que poder de mudar esta situação? tenmüller, uma sumidade em fonoaudiestavam sendo construídas acima dos Francisco José – Tinham, sim. Inclusiologia, e ela mandava eu falar “Ôlinda”, rios dessas aldeias e que iriam prejudicar ve por decisão de Roberto Marinho foi com o “ô” fechado. E eu falava “Ólinda”, totalmente a pesca. E eles dependem dos criada a campanha ‘Nordeste, o Brasil em com o “ó” aberto. Quanto mais ela me peixes, porque não comem carne vermebusca de soluções’. E qual foi a solução? ensinava a falar “Ôlinda”, mais eu falalha. Eles passam sete meses por ano faA Globo contratou os principais profesva “Ólinda”. Até que um dia ela chegou zendo rituais para o espírito do mal não sores das universidades da Bahia, de Perpara o Armando Nogueira e para a Alicepersegui-los. Esta reportagem foi finalisnambuco, do Rio Grande do Norte, do Maria e disse: “olha, ele nunca vai mudar ta do prêmio Emmy, em outubro. Ceará, reuniu todos, tirou o diretor do


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Jornal da ABI – Foi nesta reportagem que você chegou a intervir em função de uma indiazinha que poderia morrer? Francisco José – Foi. Quem te falou? Jornal da ABI – Fiz minha lição de casa [risos]. Francisco José – Essa história da indiazinha foi muito marcante. Quando eu cheguei na aldeia, Maria Luiza já estava lá há dois dias. A aldeia fica a dez horas do município de Juína, que fica a três horas, de aviãozinho pequeno, de Cuiabá. Chegando lá, Maria Luíza me disse: “Chico, nós não vamos poder fazer nada nestes próximos dias, porque a filha do cacique, uma menina de 14 anos, sofreu uma pancada muito forte na cabeça. Caiu uma árvore, o galho maior caiu na cabeça, e ela está em coma. Eles não estão fazendo nada, pararam os rituais, e estão fazendo só a pajelança”. Foi aí que eu percebi que este poderia ser exatamente o início da matéria. A aldeia era formada por 16 malocas grandes, compridas, com oito metros de largura por seis de altura e 70 de comprimento. Tudo de palha, tudo da forma mais rústica que você possa imaginar. Pelo lado de fora da maloca, você ouvia aquele canto, eles cantando e a fumaça saindo de lá, as pessoas entrando com peixes, fardos imensos de mandioca. O nosso intérprete era filho do cacique, um dos poucos na aldeia que falavam português. Ele me contou que naquele momento cinco pajés estavam tentando evitar com que um espírito, que dois anos antes havia se incorporado numa serpente e matou o cacique, se incorporasse novamente para matar a menina. Na cabeça deles era assim. Eu falei: “liga a câmera”, e comecei a matéria. “Vocês estão ouvindo esse canto de lamento, isso é uma pajelança, cinco pajés estão em torno de uma menina de 14 anos que sofreu uma pancada na cabeça, ela está em coma, e eles estão tentando salvar a menina com esse canto, com as orações, com a fumaça”, e por aí vai. Entrevisto na matéria o enfermeiro da Funai, que veio da cidade para levar a menina, mas não poderia levá-la se os índios não autorizassem. Digo, então, para o nosso intérprete, o filho do cacique: “peça ao seu pai para me autorizar a entrar com a câmera na maloca e nós asseguramos a você que nós não vamos filmar a menina. Quero só mostrar porque estas pessoas estão entrando”. Eu vejo ali mulheres e homens completamente nus batendo em pilões, botando peixes grandes para assar, panelas grandes fazendo mingau... Eram as oferendas para o Iacariti, o espírito do mal. Entro na matéria explicando tudo isso. Neste Globo Repórter eu fiz 32 passagens [momento em que o repórter aparece na reportagem, conduzindo a linha da matéria], o programa foi quase todo de improviso. Numa das idas e vindas do cacique, ele vem para a câmera e desabafa. As lágrimas saem dos olhos dele, ele falando para a câmera, falando para mim, e eu sem entender nada. Recorro ao filho dele, que me

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Francisco José com os índios Enauenê-naue depois da reportagem pela qual foi finalista do Prêmio Emmy, em outubro de 2013.

“Eu lhe respondi: ‘O senhor tem que resolver, nós estamos gravando o Globo Repórter aqui, eu tenho o início da matéria, que é o drama da menina, o drama da aldeia, o drama da família, mostrando ela saindo daqui num barco da Funai, para ser atendida no seu hospital, e o final da reportagem pode se apresentar de duas formas, o senhor escolhe: um, a menina foi salva, o senhor mandou buscar e a menina foi atendida no hospital; e o outro é que a menina morreu porque é índia e não foi atendida’. Ele diz: ‘vou mandar buscar agora mesmo’”. explica: “Ele está dizendo que é o culpado do Iacariti ter dominado a filha dele, porque ele deu pouco peixe para o Iacariti durante o ano, e que o peixe está desaparecendo, mas que ele vai pescar, e ele promete que vai procurar mais comida para o Iacariti”. Foi uma coisa muito forte. Sempre com a ajuda do filho-intérprete, digo ao cacique que a filha dele vai morrer se ele não deixar o funcionário da Funai levá-la ao hospital, que nada disso será resolvido com pajelança. Os pajés e os caciques concordam. Eu mando preparar a câmera e a gente grava tudo. Eles carregam a menina com um pau e uma rede de tira de árvore, correm quase um quilômetro até o rio onde está o barco da Funai. A mãe da menina pula completamente nua dentro do barco. O menino pequeno, irmão, pula também, vem o pajé nu que pula também, e o barco desaparece. Aí mostro ao cinegrafista o barco indo embora e a população toda na beira do

rio, o cacique chorando, jogando água no rosto. E eu falei: “mostra o drama do pai da criança, que isso vai ser importante.” Mostramos o drama daquele pai de ver a filha ir embora sem esperança de que ela volte, saindo dos rituais dele para tentar uma solução com a medicina, e nós nos recolhemos. Já era tarde. Ao amanhecer, às cinco horas, chega o filho do cacique na nossa barraca dizendo, aborrecido, que o cacique queria falar comigo, porque a menina não estava sendo atendida na cidade. Eles ficaram sabendo, pelo rádio da Funai, que a menina não estava conseguindo ser atendida no hospital. O cacique estava bravo, com umas trinta pessoas ao redor dele, todos me olhando de cara feia, porque na visão deles eu passei a ser o filho da puta que convenceu a garota a ir para cidade, e agora ela estava lá, sem atendimento. Peguei o rádio e liguei para a Funai de Juína, pedindo para transferir a ligação

para um celular em São Paulo. Falei, então, com o produtor do Globo Repórter em São Paulo, o Rafael, e pedi para ele descobrir para mim o telefone ou do governador do Mato Grosso, ou do Secretário de Saúde. Ficamos todos esperando, tudo em silêncio, não se falava nada. Quinze minutos depois, ligamos de novo, e o Rafael me disse que tinha falado com o Secretário e que ele iria mandar buscar a menina. Eu disse que não, que eu queria falar com ele. Consegui: “Secretário, como o senhor vai mandar buscar a menina? São 800 quilômetros de estrada ruim, vai ser um dia para chegar e outro para voltar, a menina vai morrer. Tem que mandar um avião, com neurologista, até Juína, apanhar a menina e levá-la já tratando, avisando que foi uma pancada na cabeça”. E ele me respondeu: “como é que o senhor quer que num domingo, a esta hora, eu consiga um avião para buscar esta menina?”. E eu lhe respondi: “quem é o


Secretário de Saúde deste estado? O senhor ou sou eu? O senhor tem que resolver, nós estamos gravando o Globo Repórter aqui, eu tenho o início da matéria, que é o drama da menina, o drama da aldeia, o drama da família, mostrando ela saindo daqui num barco da Funai, para ser atendida no seu hospital, e o final da reportagem pode se apresentar de duas formas, o senhor escolhe: um, a menina foi salva, o senhor mandou buscar e a menina foi atendida no hospital; e o outro é que a menina morreu porque é índia e não foi atendida”. Ele diz: “vou mandar buscar agora mesmo”. E mandou. O final da matéria foi a gente tomando banho no rio, a aldeia toda, eu e os meninos, fiquei amigo deles todos, são exímios mergulhadores, eu também mergulho, filmava eles embaixo d’água, e eu me tornei quase que amigo destes índios. Eles confiaram em mim, e depois quando a Funai levou o monitor para lá, eles viram a reportagem, toda hora eles querem que a gente volte lá para fazer mais. Jornal da ABI – Qual é sensação de salvar uma vida? Francisco José – Não, eu não considero que eu salvei a vida dela, eu simplesmente exigi que a Secretaria de Saúde fizesse a parte dela, e isso não é salvar a vida. Eles não estavam cumprindo com a obrigação e eu usei, provavelmente, a condição de jornalista para pedir uma decisão. Jornal da ABI – Você chegou a trabalhar com Eduardo Coutinho, no Globo Repórter? Francisco José – Cheguei a trabalhar com Eduardo Coutinho na época em que ele fazia Globo Repórter e nós estivemos na fronteira do Brasil com a Colômbia, fazendo uma matéria sobre os índios. Isso faz muito tempo, ainda na época do filme em película. Jornal da ABI – Você nunca pensou em fazer cinema? Francisco José – Não, sempre achei que cinema era demais para mim. Eu acho que jornalismo, reportagem, qualquer pessoa pode fazer. Cinema tem que ter o dom, tem que ter uma experiência muito grande, tem que ter nascido para fazer aquilo. E eu não conseguiria. Jornal da ABI – Como você está vendo o jornalismo atual? Francisco José – Olha, eu estou vendo o jornalismo avançando cada vez mais,

sendo levado, inclusive, pelo avanço da tecnologia, pelo desafio da internet, e fazendo o seu papel. Eu considero a imprensa brasileira a mais livre do planeta, porque houve o período da censura e hoje nós mesmos é que temos que nos policiar para não ultrapassar a fronteira do que não se deve fazer.

“Eu não tomo partido político, eu não uso minha profissão e nem minha condição de jornalista para fazer denúncia, e nenhum tipo de reportagem que venha beneficiar A ou B. Eu mostro os fatos, e diante disso nunca me preocupei se alguém vai dizer que você está sendo parcial.”

Jornal da ABI – Provavelmente você tem acompanhado uma movimentação nas redes sociais questionando muito a isenção do jornalismo de hoje, acusando a grande imprensa de fazer um papel forte de oposição ao governo. Como você vê essas críticas? Francisco José – Eu tenho acompanhado, sim. Primeiro, sempre evitei qualquer envolvimento político. Acho que o jornalista tem que ser isento. Eu dirigi todos os debates políticos da Rede Globo Nordeste, e ninguém tem nada o que dizer de mim, porque eu não tomo partido político, eu não uso minha profissão e nem minha condição de jornalista para fazer denúncia, e nenhum tipo de reportagem que venha beneficiar A ou B. Eu mostro os fatos, e diante disso nunca me preocupei se alguém vai dizer que você está sendo parcial. Entro em qualquer lugar, os políticos me respeitam, todos me respeitam porque sempre agi com muita seriedade. Até no setor de futebol, que é muito delicado. Jornal da ABI – Você está atuando, provavelmente, no estado brasileiro de maior força e identidade culturais, de fortíssima religiosidade, manifestações culturais e tudo o mais. Como isso mexe no seu dia a dia de jornalista? Como trabalha para levar esta cultura pernambucana para o resto do Brasil? Francisco José – Olha, durante 20 anos cobri a romaria do Padre Cícero, todos os anos, com matérias diárias nos telejornais da Globo, mostrando a religiosidade. Por mais de 30 anos, eu acompanho a Niède Guidon, no sertão do Piauí, com o trabalho que ela tem feito, de dedicação de uma vida inteira para criar ali o maior parque arqueológico das Américas. Eu descobri áreas pouco conhecidas, como Fernando de Noronha, onde eu fiz mais de 200 reportagens. E hoje a ilha até perdeu o encanto. Eu acompanhei todo o Nordeste, e contribuí com reportagens para que

criassem o Parque Nacional de Lençóis Maranhenses, o Parque Nacional do Catimbau, acompanhei desde o início com Fernando César Mesquita a criação do Parque Estadual Marinho de Fernando de Noronha, fui muitas vezes a Abrolhos para mostrar a migração das baleias. Eu tenho convicção de que tudo que está ligado ao folclore, esporte, cultura, natureza do Nordeste eu acompanhei de perto. Jornal da ABI – E fora do Brasil? Você já contou quantos países visitou ou não dá para fazer esta conta? Francisco José – Não, não dá para fazer porque eu já fui a todos os continentes, conheço todos os países da América Central, do continente americano, Oceania, já mergulhei nos sete mares fazendo reportagens, e fui aos dois extremos do planeta: norte e sul. Jornal da ABI – Cobriu guerras? Francisco José – Sim, a das Malvinas. Jornal da ABI – Das reportagens internacionais, quais mais te marcaram? Francisco José – Talvez as Copas e Olimpíadas. É muito bom fazer Copa do Mundo e Olimpíadas. Quem tem 20 anos de idade não lembra que eu cobri Copa do Mundo. Jornal da ABI – Não te interessa cobrir mais? Francisco José – Não, não, mesmo porque a Globo formou uma equipe extraordinária de esportes para cobrir Copa do Mundo. A equipe de esportes da Globo é imbatível. São garotos supertalentosos que se destacam demais. Eu seria até injusto se eu citasse algum porque são tantos que se destacam... Como eu entrei já para esta área de meio ambiente, de Globo

Repórter, eu tenho um programa aqui no Nordeste com a minha mulher Beatriz Castro, que se chama Nordeste Viver e Preservar. Tem 22 minutos de duração e é só sobre a natureza nordestina.

Jornal da ABI – Você tem uma preocupação ecológica muito forte, muito antes disso ser moda. Francisco José – É verdade. Eu sempre tive. E lamento viver num País que não tem nenhuma responsabilidade ambiental, ou seja, não tem políticas ambientais. Criam um parque nacional, como é o nosso aqui, o Catimbau, que só tem o nome, assinatura em papel. Nunca fizeram um plano. As pessoas que viviam lá continuam vivendo, caçando, queimando, plantando... Então, isso não é um parque nacional. Qual é a responsabilidade? Criar um parque só pelo nome? Jornal da ABI – Já que você começou sua carreira no jornalismo esportivo, vai ter Copa [risos]? Francisco José – Claro que vai ter Copa [risos]. O protesto é importante, mas vai ter Copa. Houve erros em relação à Copa do Mundo, construção de estádios caríssimos, com o estádio de Brasília, por exemplo, custando R$ 1 bilhão, o que é realmente uma extrapolação. Daí a acreditar que o maior evento esportivo do planeta deixe de ser realizado no País... Isso não vai acontecer. Pode protestar, que é uma coisa muito válida, mas impedir que aconteça, não. Jornal da ABI – Foi uma decisão acertada do Brasil ter se candidatado e ter feito a Copa neste momento? Francisco José – Candidatar-se e fazer a Copa é um direito que todos os países têm. O que o País não tem direito é gastar o que está gastando com a Copa, quando existem outras prioridades. Acho que não era o momento de o Brasil ter ido buscar uma Copa. Jornal da ABI – E agora que já gastou? Francisco José – Agora que já gastou é apurar, procurar ver o que foi desviado, denunciar, punir e participar da Copa. Jornal da ABI – E torcer? Francisco José – E torcer. Eu já tomei uma decisão na Copa: comprei uma televisão de 75 polegadas [risos].

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ILUSTRAÇÃO

Em campo, os traços de um craque Em ritmo de Copa do Mundo, livro reúne os mais significativos desenhos de Mario Alberto, publicados no jornal Lance! P AULO C HICO

Copa do Mundo é tempo de não desgrudar os olhos da tv, acompanhar por meio das lentes de dezenas de câmeras cada lance em campo, enxergar em detalhes o movimento dos jogadores. Por certo, sim. Contudo, para quem é apaixonado por futebol, este 2014 reserva outra atração imperdível: imagens estáticas, impressas em páginas. No jargão jornalístico, a realização dos jogos no Brasil serviu de ‘gancho’ para um lançamento especial. Na verdade, uma jogada de craque. Chega às livrarias o livro 15 Anos de Seleção, que reúne em suas páginas 200 charges e caricaturas de Mario Alberto, publicadas no jornal Lance!. Um rico acervo de um dos mais atuantes cartunistas brasileiros. Com seus traços, Mario ‘cobriu’ as copas de 1998, 2002, 2006 e 2010, além de torneios como a Copa das Confederações,

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a disputa do ouro olímpico no futebol, a Copa América e as Eliminatórias. “O livro apresenta uma seleção das melhores charges e caricaturas relacionadas à Seleção brasileira que publiquei no Lance! desde 1998. As quatro Copas do Mundo, disputadas no período, e a Copa das Confederações de 2013 são o foco principal, mas incluí alguns trabalhos realizados entre as Copas para amarrar melhor a história desses 15 anos de cobertura humorística da Seleção brasileira. Para dar uma esquentada no material, fiz especialmente para o livro um inédito ‘pôster-caricatura’ do time campeão da Copa das Confederações no ano passado que, felizmente, chegou até essa Copa ainda sendo considerado a Seleção brasileira titular”, contou o artista, em entrevista ao Jornal da ABI. A proposta de lançar um livro sobre Seleção brasileira pela Lance! Publicações partiu do editor-chefe do Lance!, Luiz Fernando Gomes. “Naturalmente, eu topei na hora, principalmente porque, no nosso País, ainda são raras as oportunidades de produzir um livro de charges e caricaturas. Nos últimos tempos, temos presenciado por aqui um aumento do número de publicações voltadas para o desenho de humor mas acredito que, mesmo assim, ainda estamos aquém da quantidade e qualidade de tudo o que já foi e continua sendo produzido pelos cartunistas brasileiros. Temos uma tradição secular nessa área e os nossos artistas estão entre os melhores do mundo. Por isso, creio que ainda há muito a ser registrado da nossa história no humor gráfico e eu me senti muito honrado e feliz por ver tomar a forma de um livro essa parte tão importante da minha produção como cartunista e caricaturista”, resume Mario Alberto. A obra já teve lançamento oficial no Rio de Janeiro e em São Paulo, e retrata em suas 112 páginas os momentos clássicos da Seleção, como o drama do corte de Romário em 1998, a épica volta por cima de Ronaldo em 2002, a ranhetice de Dunga em 2010, a volta do futebol Canarinho ao

topo do mundo na Copa das Confederações em 2013. Mas, para um cartunista, qual seria o principal desafio nos dias de hoje? Até que ponto a patrulha de alas conservadoras e a defesa do ‘politicamente correto’, que tanto marcam os nossos dias, atrapalham ou intimidam o trabalho desses artistas? Fugindo do lugar-comum

“O principal desafio, pelo menos para mim, é fugir do lugar-comum, da piada fácil. Como muita coisa já foi feita no humor gráfico, é difícil conseguir ser realmente original enfrentando a pauleira do trabalho diário. Uma saída para isso é estar antenado a tudo o que acontece na atualidade, sempre buscando novas referências, ou seja, encontrando novos motivos para fazer piada. A onda politicamente correta é um desses novos ele-

mentos, uma característica dos nossos tempos. E quem trabalha com humor tem que saber lidar e nunca se intimidar com isso. Limites e censura sempre existiram e sempre existirão sob as mais variadas formas. Quem se sente cerceado pela chatice alheia tem que procurar outra coisa pra fazer, que não seja humor. O humor se equilibra o tempo inteiro em cima da fronteira entre a graça e o mau gosto. Cabe ao humorista forçar esses limites, quebrar essas barreiras. Costumo dizer que, sim, o humor tem limite, mas a única pessoa que pode determiná-lo é o próprio humorista. Acredito até que justamente a forma como cada um lida com isso é um dos fatores mais determinantes do estilo pessoal.” O cartunista fala ainda do perfil que imprime a seu trabalho. “Falando de forma bem básica, no Brasil temos duas


grandes vertentes de estilo no desenho de humor. Uma, mais linear e baseada na elegância do traço que tem representantes como J. Carlos, Nássara, Lan e Loredano, entre outros tantos. Outra, mais voltada para um acabamento mais próximo do realismo, e nem por isso menos caricata, que começou lá no Angelo Agostini e chegou até os dias de hoje no traço dos irmãos Caruso, do Ique, do Aroeira... Eu me encaixo mais nesse segundo time. Meu trabalho tem um apelo acadêmico muito marcante, sem deixar de lado as influências que trago dos quadrinhos, dos desenhos animados e da ilustração. Comecei no desenho de humor fazendo meus trabalhos com aquarela líquida sobre papel. Era assim até alguns anos atrás, quando comecei a trabalhar com pintura digital. O aspecto prático acabou falando mais alto. A possibilidade de trabalhar com mais rapidez os cenários e pequenos detalhes, coisas que eu, obsessivamente, aprecio muito, me levou a substituir a técnica tradicional pela digital. Há três anos, aproximadamente, todos os meus trabalhos são elaborados com lápis e papel de verdade, no mundo real. Uma vez definida toda a composição da charge, eu digitalizo o esboço e pinto no computador.” Salão de Humor

Mario Alberto formou-se em Design Gráfico em 1994, e logo começou a trabalhar com ilustração editorial. Nunca havia feito uma charge ou caricatura até a formatura quando, convencido por um amigo de faculdade, resolveu participar do Salão Carioca de Humor, promovido pela Casa de Cultura Laura Alvim. “Acabei ganhando menção honrosa com uma charge e, a partir daí, comecei a ver com carinho a possibilidade de trabalhar com desenho de humor. Publiquei alguns cartuns e caricaturas nas revistas de palavras cruzadas da Coquetel, participei de mais alguns salões de humor, até que, em 1997, fui contratado para participar da equipe de formação do diário esportivo Lance! Minha estréia como chargista profissional foi no Lance!, por isso, posso dizer que sou ‘cria da casa’. Já são 17 anos publicando, convivendo e aprendendo com as especificidades da charge esportiva em relação à charge política. Afinal, na charge esportiva, entra em campo um fator determinante que é a paixão que as pessoas nutrem pelos seus times. Claro que isso também existe na política, um é de esquerda, o outro de direita. Mas, no futebol, o termo paixão ganha proporções absurdas. Eu procuro estar atento a isso e gosto de ter um cuidado, um carinho até, na hora de meter a mão nessa cumbuca. Só que, por outro lado, eu não posso deixar de meter o dedo nas feridas. Caso contrário, não tem graça nenhuma.”

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ANA CAROLINA FERNANDES/FOLHAPRESS

PREMIAÇÃO

Historiador do Continente Negro, o embaixador e acadêmico Alberto da Costa e Silva ganha o Prêmio Camões e exalta a diversidade cultural africana. P OR M ÁRIO M OREIRA

“Africanólogo é o que me tornei. Me vejo mais como poeta.” A frase, dita logo de cara, surpreende quando o entrevistado é Alberto da Costa e Silva, 83 anos. Não que a produção poética desse diplomata de carreira, ensaísta, memorialista e membro da Academia Brasileira de Letras seja irrelevante – ele ganhou inclusive um Prêmio Jabuti pelo livro Ao Lado de Vera, de 1997. Mas foi como historiador do Continente Negro que sua produção literária se tornou mais conhecida. A ponto de ter sido escolhido, no final de maio, como vencedor do Prêmio Camões, o mais importante para autores em Língua Portuguesa, concedido anualmente pelos governos do Brasil e de Portugal. “A obra dele, sobretudo como africanólogo, é uma coisa meio rara na bibliografia brasileira”, afirma o poeta Affonso Romano de Sant’Anna, Presidente do júri que elegeu Costa e Silva. “Ele representa a ponte necessária entre três continentes: América, Europa e África”, explica, citando os cinco livros de ensaios que consagraram a obra do embaixador: 16

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A Enxada e a Lança: A África Antes dos Portugueses; As Relações entre o Brasil e a África Negra; A Manilha e o Libambo: A África e a Escravidão; Um Rio Chamado Atlântico; e Francisco Félix de Souza, Mercador de Escravos. Não por acaso, a sugestão do nome de Alberto da Costa e Silva para o prêmio partiu, segundo Affonso Romano, de dois escritores africanos integrantes do júri: o moçambicano Mia Couto, ganhador no ano passado, e o angolano José Eduardo Agualusa. “Houve acolhida geral”, diz o poeta. O interesse de Alberto da Costa e Silva pela África nasceu quando ele tinha 16 anos, ao ler o clássico Casa-Grande e Senzala, de Gilberto Freyre. “Fiquei deslumbrado não só com o livro, mas com o fato de que ele abria uma perspectiva que eu ainda não conhecera: a de que o escravo negro foi também colonizador do Brasil, um elemento importantíssimo na formação do País. Até então, o negro era visto como um problema. Mas Gilberto Freyre dizia que o negro somos todos nós, que todos participam desse universo mestiço que é o Brasil”, afirma o historiador. Costa e Silva conta que, até essa leitura, pouco conhecia sobre a África. “Só sabia

que os escravos tinham vindo de lá e que a descoberta do caminho marítimo para as Índias foi feita contornando o continente africano”. Orientado pelo professor Herbert Parentes Fortes, o então estudante passou a ler autores brasileiros como Nina Rodrigues, Manuel Quirino e Artur Ramos, que também abordavam o universo do negro. “Mas eles tratam o negro como se ele tivesse nascido nos navios negreiros, como se não tivesse cultura, história e métodos de produção próprios. Aí comecei a ler tudo que me caía nas mãos sobre a África, o que não era muito. Nos sebos da rua São José, no centro do Rio, encontrei livros de viajantes portugueses do século 19”, narra ele. Quando entrou para o Itamaraty, em 1957, o jovem Alberto teve a sorte de logo ser escalado para a Divisão Econômica para a Europa e a África, o que lhe permitiu conciliar a carreira diplomática com seu profundo interesse pelos temas africanos. “Comecei a acompanhar o que vinha das embaixadas sobre o processo de descolonização e os países emergentes da África. Também achei na biblioteca do Itamaraty livros de quase todos os viajantes que foram ao continente desde o século 15. Em 1960, fui para Lisboa, então

um centro colonial importante, e lá conheci muitos outros livros, não só de portugueses, mas também de ingleses e franceses. Essa ida coincidiu com a descoberta da história africana, estimulada pela descolonização e pelo interesse que começou a haver pela África.” Em 1º de outubro daquele ano, Alberto da Costa e Silva acompanhou o embaixador Negrão de Lima na cerimônia de independência da Nigéria, ex-colônia britânica. “Foi um deslumbramento a nossa estadia em Lagos, quando descobrimos o que Gilberto Freyre e Pierre Verger descobriram muito antes: o Brazilian Quarter, cheio de gente com sobrenome Costa, Rodrigues ou Medeiros. Isso abriu meus horizontes para a importância dos 350 anos de comércio de escravos entre o Brasil e a África e dos 400 anos de trocas entre os dois lados do Atlântico, pois não eram só escravos que vinham de lá.” Foi aí que Costa e Silva decidiu se dedicar de maneira mais profunda ao estudo do continente africano. “Enquanto americanos, canadenses e europeus já estudavam a África, o Brasil não tinha um único curso universitário sobre a História Africana. As pessoas me diziam ´Você está maluco! Vai perder tempo com África!´”, recorda ele.


Encanto pelas palavras A propósito, Costa e Silva faz questão de mencionar esses dois últimos países com a pronúncia original, como oxítonas. “A palavra Zimbabué já aparece assim num cronista português do século 16”, conta. “O curioso é que essas palavras entraram nas línguas européias por meio do português, e agora a gente pega a pronúncia inglesa ou americana”, lamenta o autor. Ele, aliás, não esconde o fascínio pelas palavras de origem africana, sobretudo as oriundas dos idiomas quimbundo e quincongo. “Gosto de fato de alguns verbos muito usados que vêm daí: cochilar, cochichar, zangar, fungar. São palavras que não estavam no português de Portugal e que agora os portugueses adotam por causa das novelas brasileiras. Caçula é outro termo que vem do quimbundo”, exemplifica. “Isso indica a profundidade da penetração africana na vida brasileira, pois nada é mais interno que a língua. Talvez só a comida, mas nessa a influência africana também é muito grande.” Costa e Silva escreve agora seu terceiro e último volume sobre a história da África, após A Enxada e a Lança e A Manilha e o Libambo (este de 2002). Está no décimo de 22 capítulos, que vão abranger os séculos 18 e 19, abordando o 20 somente até 1918, “quando se completa o ciclo de ocupação da África pelos europeus”, ao final da Primeira Guerra Mundial. “No século 20 eu não entro, por preconceito. Relato contemporâneo não chega ainda a ser história.”

Costa e Silva: Esquecemos que o Brasil foi feito de fora para dentro.

Dívida com os africanos Para Affonso Romano de Sant’Anna, a obra de Costa e Silva é importante justamente porque, a seu ver, “o Brasil sempre esteve de costas para a América Latina, Portugal e a África”. “Brasileiro só pensa em Nova York, Londres e Paris. E os africanos têm uma simpatia pelo Brasil de que os brasileiros nem desconfiam e que talvez nem mereçam”. Ele cita que, durante sua estada em Lisboa para a reunião

do júri do Prêmio Camões, foi abordado num restaurante por um cabo-verdiano que começou a fazer uma verdadeira declaração de amor ao Brasil. “E o Brasil nunca cuidou disso, oficialmente. A não ser por Gilberto Freyre e pelo Alberto. Aqui as pessoas querem ser brancas, e não pretas. Esse prêmio reforça muito a idéia urgente de que estamos devendo isso há 500 anos.” Ele também não economiza elogios à produção poética de Alberto da Costa e Silva. “É um belo poeta, pertence à chamada Geração de 1945 e, embora tenha escrito poucos livros de poemas, é muito melhor do que muitos que há por aí. É também filho de um simbolista importante (Antônio Francisco da Costa e Silva). É bom que comece a prestar atenção no Alberto, que fica na dele, ao contrário dos profissionais de prêmio”, alfineta. A opinião é compartilhada por José Eduardo Agualusa. O escritor angolano disse ao Jornal da ABI esperar que a premiação sirva para tornar mais conhecida a obra de Costa e Silva, “sobretudo em Portugal e nos países africanos onde se fala a nossa língua”. Agualusa confirma que a decisão de premiar o embaixador foi “pacífica” e “festejada por todos os membros do júri com genuíno entusiasmo”. “Alberto da Costa e Silva tem uma obra extensa e variada, que vai da poesia ao ensaio histórico, sempre com um grande rigor e um inegável valor literário. Dá-nos a ver o passado de África, como historiador, com a linguagem refinada de um romancista”, exalta. “Pessoalmente, enquanto escritor, e um escritor africano que se vem dedicando ao romance histórico, devo muito ao Alberto.”

Costa e Silva consolidou uma sapiência africana M IA C OUTO DEPOIMENTO A MÁRIO MOREIRA

Uma impressão imediata de simpatia me assaltou quando, há uma boa dezena de anos, encontrei, no Rio de Janeiro, Alberto da Costa e Silva. Conheci-o em sua casa, com Vera, sua eterna companheira. E falamos de África, na diversidade e complexidade que faz com que o nome “África” tenha que ser dito no plural. Falamos dessas Áfricas que ele conhecia com a intimidade que talvez poucos africanos possam reivindicar. Não foi apenas o saber que me impressionou. Foi a poesia com que falava de algo que não se descreve apenas, mas se revela nas palavras. Como se a poesia fosse o idioma certo para dizer da alma de gentes e povos. Na sabedoria de África, o poeta Costa

DIVULGAÇÃO/-COMPANHIA DAS LETRAS

Riqueza cultural Após servir como diplomata em Lisboa, Caracas, Washington, Madri e Roma, Costa e Silva foi escolhido em 1979 embaixador para a Nigéria e o Benin, cargo que ocupou até 1982. “Para mim foi ótimo, até porque aquela região foi, depois de Angola, a que teve maior influência sobre o Brasil.” Segundo o historiador, o que mais o atraiu nessa temporada foi “a vitalidade da cultura africana, o fato de que eles de certa maneira estavam adotando processos técnicos ocidentais sem abandono de sua tradição”. Ao contrário do estereótipo de que africano é tudo igual, descobriu que nada é menos verdadeiro. “A riqueza cultural foi o que sempre me encheu de admiração. São muitas culturas, às vezes divergentes. Os africanos são muito diferentes entre si, assim como os europeus, tanto quanto um sueco de um siciliano”, compara. Para ilustrar, ele conta a maneira como dois povos africanos vizinhos tratam o nascimento de gêmeos: “Entre os ibos, no sul da Nigéria, os gêmeos são abandonados na floresta como impuros, como uma abominação, e a mãe passa por um cerimonial de purificação. Já os iorubás fazem uma grande festa, dizem que a mãe é favorecida pelos deuses e os gêmeos são considerados pessoas extraordinárias; quando um deles morre, o outro passa a carregar na cintura uma imagem de madeira que simboliza o irmão.” Para Alberto da Costa e Silva, só de alguns anos para cá o interesse pela África tem crescido no Brasil, estimulado pela obrigatoriedade legal, desde 2003, do ensino da história e cultura afro-brasileiras nas escolas, o que gerou a necessidade da formação de professores com conhecimento específico. “Mas isso é muito recente. Quando publiquei meu primeiro livro (A Enxada e a Lança, com cerca de 900 páginas, editado em 1982), não havia no Brasil um só livro extenso, meticuloso, sobre a história da África. Pensando bem, o mesmo ocorre sobre a história da Itália ou mesmo de Portugal. É um defeito nosso: olhar demais para o próprio umbigo. Esquecemos que o Brasil foi feito de fora para dentro”, critica. “Só que, em relação aos outros países, a gente estuda em História Geral. Espero que agora aconteça o mesmo com a África, porque muitos fatos da história universal foram gerados lá. Por exemplo, antes de os espanhóis e portugueses levarem o ouro das Américas, todo o ouro da Euro-

pa saía de regiões do Senegal, do Mali, do Zimbabué”, diz o historiador.

GUILHERME GONÇALVES/ABL

O interesse do diplomata pelo continente, porém, lhe rendeu bons frutos no Itamaraty, que passou a enviá-lo a todas as missões de negociação em nações africanas. “Acabei conhecendo vários países da África, o que me foi muito útil, porque eu também comprava livros produzidos localmente e podia confrontar as leituras com a realidade.”

e Silva consolidara uma sapiência africana. O modo pausado, sem pressa, de falar fazia-me lembrar os velhos sábios da minha terra. A sua obra de historiador fez a ponte entre

continentes e nações e ajudou o Brasil a se reencontrar com a sua matriz africana. Os seus livros questionaram a visão falsamente próxima e tantas vezes equivocada que o Brasil tinha do continente africano. E logo nesse primeiro encontro, fez nota dessa ausência de maniqueísmo: quando falamos da escravatura, ele me atirou a sentença: “Todos nós somos descendentes de escravos e de senhores de escravos”. Cativo fiquei eu dessa figura frágil, mas poderosa. Mais ainda lhe fiquei devedor quando li a sua poesia. Ali estava a raiz de tudo, o chão onde vinham pousar saberes e memórias. Por todas estas razões, tenho um grande orgulho em ter pertencido ao Júri que lhe atribuiu o Prêmio Camões, o mais alto galardão da Língua Portuguesa. Costa e Silva engrandeceu o Prêmio.

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IMPRENSA

O jornal que inventou a imprensa juvenil Suplemento criado há 80 anos por Adolfo Aizen fez dos quadrinhos um grande negócio e atraiu para o segmento magnatas da imprensa brasileira como Roberto Marinho, Assis Chateaubriand e Victor Civita. P OR G ONÇALO J UNIOR

Um fato histórico importante, muitas vezes, nasce do acaso. Assim aconteceu com o Suplemento Infantil (mais tarde ganharia o nome de Suplemento Juvenil), tablóide com histórias em quadrinhos que circulou três vezes por semana e teve 1.654 números, publicados entre 1934 e 1945. O jornal daria início à indústria das publicações voltadas para o público adolescente que teria como seus quatro mais importantes editores os nomes mais relevantes do jornalismo brasileiro no século 20: Roberto Marinho, Assis Chateaubriand, Victor Civita e Adolfo Aizen. O Suplemento Infantil, porém, deveria ser apenas um entre os suplementos diários que Aizen teve a idéia de lançar de forma pioneira no Brasil, depois de uma viagem de cinco meses que fez aos Estados Unidos, entre agosto de 1933 e janeiro de 1934, quando ficou maravilhado com esse formato de encarte que ainda não havia sido implementado em seu País. Mas fez tanto sucesso que ganhou vida própria, deixando de ser um encarte do jornal A Nação. Esse capítulo pouco conhecido da história da imprensa nacional veio da curiosidade de Aizen que, em 1933, era repórter de O Globo, quando viajou aos Estados Unidos como assessor de imprensa do Touring Club. O passeio acabou e, como tinha uma irmã morando no estado de Massachussets, resolveu prolongar a estada. Enquanto mandava reportagens para Marinho, descobriu os suplementos diários temáticos, encartados gratuitamente nos grandes jornais americanos, bancados por anunciantes. Em um dos dias da semana, circulava, por exemplo, o caderno feminino, com dicas sobre educação para o lar, moda, culinária e orientações sobre como ser boa mãe e esposa. Havia também suplementos de contos policiais, de esportes, infanto-juvenis etc. Em conversas com jornaleiros americanos, Aizen descobriu que aqueles encartes aumentaram substancialmente as vendas dos diários, uma vez que muitos leitores compravam a edição apenas para lê-los. Notou ainda que nenhum fazia mais sucesso que o infanto-juvenil, que trazia curiosidades, passatempos e muitas histórias em quadrinhos – chamadas de “comics” pelos americanos, por causa de sua origem como historinhas de humor no final do século anterior. Impressionou-se com aquele tipo de leitura por ser uma mania nacional de crianças e 18

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O primeiro Suplemento Infantil, do jornal A Nação, teve capa de J.Carlos. Quando deixou de ser encartado, passou a ser chamado de Suplemento Juvenil.

adultos. Ao mesmo tempo, todos os grandes jornais tinham suas séries de quadrinhos, principalmente com os heróis de aventuras, então nunca publicados no Brasil. Aizen se espantou ao ver que as continuações de histórias de personagens como Buck Rogers e Tarzan eram acompanhadas com ansiedade todos os dias, como se fossem os velhos folhetins de aventuras de piratas e capa e espada. O mais curioso: esses comics exerciam fascínio sobre o público de todas as idades, ao contrário do que acontecia no Brasil, onde os raros quadrinhos de humor ou infantis eram publicados em revistas como O Tico-Tico e dirigidos somente às crianças. Muitas haviam sido criadas há pouco tempo e não tinham despertado interesse nos editores brasileiros. Revolução na imprensa

Foi o entusiasmo por essa revolução na imprensa que fez com que, ao embarcar de volta ao Brasil, no final de janeiro de 1934, Aizen se mostrasse decidido a dar uma guinada em sua vida. Levaria algumas daquelas novidades de volta e concluiu que apenas uma pessoa no Rio de Janeiro poderia ajudá-lo a concretizar seu projeto de lançar no País os suplementos setorizados como

encarte de jornal. Essa pessoa se chamava Roberto Marinho. Aizen esperava convencer o dono de O Globo de que os cadernos seriam um passo na evolução do jornalismo nacional. Se aceitasse, tornariase seu sócio na empreitada. No encontro entre os dois, o jovem repórter lhe mostrou vários exemplares dos suplementos que trouxera, além de dezenas de páginas e tiras de heróis de quadrinhos que, ressaltou ele, eram uma “febre” nos Estados Unidos: “Acredite, Roberto, você não só aumentará a tiragem diária, como despertará o interesse de segmentos que não têm o hábito de ler jornal. Isso será ótimo para a ampliação do alcance e da tiragem”, recordou Aizen depois. “A idéia é bastante interessante, Adolfo, mas creio que seja economicamente inviável. Não vejo como tornar isso viável”, teria respondido o empresário. Por mais que mostrasse empolgação, Aizen não convenceu o chefe. Falou com ênfase principalmente do papel dos patrocinadores na empreitada. Marinho não quis arriscar. Alegou que não tinha como bancar o projeto e que não acreditava que conseguiria convencer anunciantes de bancar os cadernos. Aizen deixou o jornal bastante abatido. Não se deu por vencido, porém. Foi

direto à Redação de O Malho para rever os colegas. De lá, foram jantar num restaurante onde um animado Aizen repetiu sua idéia e logo percebeu que falava a uma platéia mais interessada. Participaram da conversa o desenhista Monteiro Filho e os jornalistas Osvaldo da Silveira, Roberto Macedo e Luís Peixoto. Artista de múltiplos talentos – escritor, repórter, caricaturista –, além de cunhado e parceiro musical de Ary Barroso, Peixoto foi o que mais se animou com o projeto. Ele sugeriu a Aizen que procurasse um amigo seu, o capitão João Alberto Lins de Barros, o polêmico chefe da polícia de Vargas e diretor do jornal A Nação. Peixoto trabalhara com ele um ano antes, como auxiliar de gabinete, e acreditava que seu expatrão poderia ajudar o amigo a bancar os suplementos. Apesar de conhecer a fama pouco lisonjeira do militar, Aizen decidiu procurá-lo. Pediu a Peixoto para apresentálos. Nessa época, o jornal A Nação circulava havia pouco mais de um ano. Essencialmente político, o diário era conhecido como porta-voz oficial do governo e dos líderes tenentistas que participaram do movimento de 1930. Tinha também a reputação de ser mais um fruto da arbitrariedade de Vargas para se fortalecer no poder depois da repressão que promoveu contra os revolucionários paulistanos de 1932. A Nação foi fundada em janeiro de 1933, a partir da estrutura física e de equipamentos de O Jornal, de Assis Chateaubriand, fechado à força por João Alberto no ano anterior, depois de um confronto pessoal entre ele e o empresário e jornalista paraibano. O militar, para surpresa de Aizen, aceitou imediatamente fazer os suplementos, um para cada dia da semana. Autorizou o jornalista a tornar o projeto realidade o mais rápido possível. Político habilidoso, João Alberto viu na proposta uma forma de fortalecer o jornal e amenizar a imagem de panfleto partidário. A pequena equipe que produziria os tablóides foi formada inicialmente por alguns colegas de Aizen de O Malho, como Monteiro Filho, Osvaldo da Silveira, Luiz Peixoto e Roberto Macedo. Silveira era um escritor paulista que depois ficaria conhecido como autor do romance Bartyra, escrito em português arcaico e cuja primeira edição seria lançada por Aizen, em 1942. Macedo era professor de História do Brasil do Colégio Dom Pedro II e do Instituto de Educação. Pouco depois, juntou-se ao grupo Maria Lopes Monteiro, esposa de Monteiro Filho. O espaço de tempo entre a aprovação de João Alberto e o início da produção dos suplementos foi tão curto que, em menos de um mês, A Nação lançaria o primeiro deles.


O grupo trabalhou a toque de caixa para preparar o número de estréia de cada tablóide. Aizen procurou ser fiel ao formato dominical americano, o que não seria nada fácil, uma vez que as máquinas de A Nação estavam longe de possuir alguma qualidade gráfica. Os cadernos foram planejados e desenhados numa pequena sala, no ritmo diário do jornal. Como estratégia contra a concorrência, somente dois dias antes da estréia os leitores do jornal foram informados da novidade. Na edição de domingo, 11 de março, a manchete da primeira página deixou de lado a tradicional chamada política para anunciar: “Programação de A Nação para a próxima semana: um suplemento por dia”. Logo abaixo, um quadro explicou quais seriam os nomes dos cadernos de doze páginas cada, por ordem de lançamento: Humorístico, Infantil, Policial, Feminino e Esportivo. Como o diário não circulava às segundas, a partir da terça, dia 13, teve início a série. Exatamente do modo que Aizen queria e pedira a João Alberto, mesmo com os suplementos, A Nação continuou a custar duzentos réis – “mais barato que um café ou uma caixa de fósforo”, como anunciou o diário. Dinheiro, para o dono do jornal não era problema. Na quinta, dia 15, o diário organizou um almoço de confraternização para celebrar os lançamentos. O evento reuniu representantes das distribuidoras e vendedores de jornais no salão da Associação dos Auxiliares da Imprensa. A concorrência ficou boquiaberta diante de tamanha ousadia da investida de João Alberto, a quem couberam os méritos iniciais. A repercussão entre os leitores foi a melhor possível. Jornaleiros de toda a cidade corriam ao jornal durante o dia para pegar mais exemplares. Os cadernos de A Nação se tornaram acontecimento importante na história da imprensa brasileira porque introduziram o formato nos jornais. Iniciativa, aliás, nunca lembrada por pesquisadores, talvez por causa da curta existência do diário de João Alberto, que deixaria de circular dois anos depois. Alimentar cinco edições por semana com notícias, variedades culturais e esportivas se tornou uma tarefa árdua para Aizen. Parte da dificuldade foi resolvida com a compra de textos e desenhos americanos, vendidos por representantes no Brasil de agências conhecidas nos Estados Unidos como syndicates, distribuidoras de ilustrações, artigos e reportagens. Para temperar o suplemento policial com um pouco de brasilidade, Aizen contou com colaborações dos próprios repórteres e redatores de A Nação. Convidou escritores amigos seus, de pouca projeção, para participar, em especial, da produção de contos policiais e infantis. Quanto ao suplemento esportivo, a própria Redação do jornal ficou encarregada de preenchê-lo com noticiário do fim de semana. Novidades em destaque

Entre os cadernos, um em especial logo se destacou pelas novidades que trazia: O Suplemento Infantil. O primeiro número chegou às bancas no começo da

Página do álbum em quadrinhos A Grande Aventura, comemorativo dos dez anos do Suplemento Infantil, que conta a história do surgimento da publicação que saía encartada em A Nação.

Quem era João Alberto Lins de Barros Pernambucano de Olinda, o capitão João Alberto Lins de Barros era dez anos mais velho que Aizen. Nasceu em 16 de janeiro de 1897. Filho de professor de história e de dona de casa de origem holandesa, formouse em engenharia em Recife, mas preferiu se dedicar à carreira militar. Mudou-se para o Rio, onde cursou a Escola Militar de Realengo. Já tenente, em 1922, solidarizouse com o levante dos colegas do Forte de Copacabana – o apoio lhe custaria cinco meses de prisão. Três anos depois, abandonou o quartel para acompanhar o revolucionário Luiz Carlos Prestes, que se rebelara no Rio Grande do Sul e havia dado início à marcha de rebeldes que ficaria conhecida como Coluna Prestes. Condenado ao exílio por participar do movimento, trocou seu nome para Nelson de Castro e foi viver no interior do Paraná. Deu a volta por cima em 1930, ao se tornar um dos líderes da revolução que derrubou o Presidente Washington Luiz e impediu a posse do eleito Júlio Prestes. Como retribuição, o Presidente Getúlio Vargas o nomeou interventor federal em São Paulo. No começo de 1932, assumiu a chefia da Polícia do Rio. Mal tomara posse, Vargas o convocou para uma missão de emergência: voltar a São Paulo para sufocar o chamado movimento constitucionalista, deflagrado no dia 9 de julho. Missão cumprida, João Alberto reassumiu a chefia de polícia, para se tornar um eficiente demolidor dos inimigos do governo – tarefa cuja continuidade caberia ao temido Filinto Müller alguns anos depois.

tarde de quarta, 14 de março de 1934, com capa desenhada por J. Carlos, considerado o mais influente ilustrador gráfico da imprensa brasileira no século 20. Couberam a ele, ainda, as ilustrações do conto “A pedra que rolou a montanha”, de Luiz Martins. O caderno incluía jogos, palavras cruzadas e textos didáticos sobre a história do Brasil. Os leitores se deparam, pela primeira vez, com os quadrinhos que eram grandes sucessos nos Estados Unidos naquele momento: Buck Rogers, Agente Secreto X-9, Flash Gordon (que fez sua estréia em grande estilo, a cores, em duas páginas centrais, dois meses depois de seu lançamento no país de origem) e Jim das Selvas. Nos anos seguintes, Aizen traria Mandrake, Brucutu, Príncipe Valente, Tarzan, Brick Bradford, Pinduca, Rei da Polícia Montada e até histórias inéditas de Walt Disney, que começava a chamar a atenção pelo seu perfeccionismo em cinema de animação. Publicar esse material foi menos complicado do que Aizen imaginava. Ele descobriu que havia no Brasil um representante do King Features Syndicate (KFS), Arroxelas Galvão. O distribuidor recebeu com surpresa o interesse do editor, já que, até então, só conseguira convencer o Diário de Notícias a comprar os quadrinhos que oferecia – desde 1930, o jornal publicava as tiras do marinheiro Popeye. O editor encontrou no acervo de Galvão muitos dos heróis lançados recentemente nos EUA. Pareceu-lhe que estavam ali à sua espera. O distribuidor se comprometeu a for-

necê-los com exclusividade no Rio de Janeiro. Não apenas aquelas histórias, mas também os futuros lançamentos do KFS. Os dois fizeram, então, um acordo informal, pelo qual Aizen se comprometia a pagar a quantia de 200 mil réis por página. O Suplemento Infantil não se limitou a lançar heróis americanos. Desde a estréia, reuniu como colaboradores vários desenhistas e escritores brasileiros. No primeiro número, Monteiro Filho lançou a série de quadrinhos As Aventuras de Roberto Sorocaba, com textos de sua mulher, Maria Monteiro, que seria publicada em episódios semanais de uma página cada, no mesmo formato das aventuras seriadas americanas. A presença de gente da terra no suplemento não parou aí. No terceiro número, de 28 de março, deu início à série Os Quatro Ases, uma novela infantil escrita a quatro mãos pelo já conhecido jovem escritor baiano Jorge Amado e por Matilde Garcia Rosa, com desenhos do ilustrador e cenógrafo paraibano Santa Rosa. Durante alguns números, os leitores se divertiram com as aventuras do menino Tonico, do gato Pega-ligeiro, do papagaio Doutor e do galo Terreiro – todos eles criações da dupla. Se as histórias em quadrinhos faziam Aizen acreditar que repetiriam no Brasil o mesmo sucesso americano, para o redator-chefe de A Nação, José Soares Maciel Filho, as maiores apostas eram os suplementos de contos policiais e de esportes. Como estratégia, ele mandou fazer nova tiragem do primeiro número do suplemento policial e o colocou à venda durante uma semana em vários magazines da cidade. Repetiu a operação por diversas semanas. Começava a surgir no Brasil, assim, esse gênero de aventura. Perto do terceiro mês de vida dos suplementos, já se notava claramente que a venda maior de A Nação acontecia na quarta-feira, quando saíam as tais “historietas em quadrinhos” do Suplemento Infantil. Nesse dia, a tiragem do jornal passava dos 60 mil exemplares por edição – número que representava o triplo da tiragem normal do diário de João Alberto antes dos cadernos. Assunto da garotada

Nas ruas, podia-se notar um fenômeno interessante. De repente, um sisudo jornal, quase que exclusivamente de temática política, estava sendo disputado no meio da semana por crianças e adolescentes em todos os pontos de venda do Rio de Janeiro. Em pouco tempo, o jornalzinho se tornou assunto da garotada nas filas das matinês dos cinemas, até se transformar numa leitura quase obrigatória para os meninos, principalmente. A aceitação do tablóide de Aizen foi tão grande que era comum que a molecada se dirigisse ao jornaleiro todas as semanas para pedir o caderno de uma forma peculiar: “Por favor, moço, quero o suplemento que está aí no jornal”. Nem tudo, entretanto, corria como Aizen esperava. Sua presença como editor dos suplementos não era bem vista por Maciel Filho. O redator-chefe não se esforçava para esconder sua antipatia ao projeto do colega. Se achava no começo que os su-

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IMPRENSA O JORNAL QUE INVENTOU A IMPRENSA JUVENIL

plementos seriam um fracasso, ele jornaleiros circulantes e em bancas logo mudou de idéia e de estratégia. de jornais da cidade. O editor fez Dizia para quem quisesse ouvir que uma mudança importante no nome os cadernos estavam comprometendo Suplemento Infantil, que passou a se do imagem, linha editorial e as fichamar, a partir do 14º número, Sunanças do jornal. plemento Juvenil. Especulou-se que Não demorou a levar suas queixas Aizen teria escolhido o novo nome a João Alberto: “João, um jornal não para atender a um pedido de João Alpode ser levado a sério quando é aviberto e evitar que o público continudamente comprado por crianças. asse a fazer ligação entre o caderno Tenho ouvido piadas na Câmara de infantil e o seu jornal. Na verdade, a que garotos retiram o Suplemento Inalteração buscou ampliar o alcance fantil e espalham o resto da edição e atrair o público adolescente. pelas ruas da cidade”. Embora os caAlém da Redação original que dernos tivessem aumentado a circutrouxe de A Nação, o editor chamou lação do jornal, Maciel Filho insiso jornalista Ary Pavão para cuidar do tiu que aquele tipo de “luxo” não Suplemento de Humor – que tinha em conseguia se manter pela publicidaLuiz Peixoto um de seus mais imporde. Tinha alguma razão quando distantes colaboradores. O Suplemento se que as empresas não estavam haPolicial mudou de formato e se torbituadas a anunciar em tal formato. nou Suplemento Policial em Revista. PiAizen, por outro lado, previu essa reoneiro no gênero, era o título que Adolfo Aizen teve que encarar a forte concorrência de Roberto Marinho e seu O Globo Juvenil, com personagens sistência inicial por causa da novidamais se aproximava em vendas do cade destaque como o Príncipe Valente, de Hal Foster. de dos cadernos e argumentou que, derno de quadrinhos, com tiragem a médio prazo, conseguiria atrair pusemanal de aproximadamente 25 zen recebeu com entusiasmo a proposta. blicidade. Era uma questão de tempo. A sismil exemplares. Surgia, assim, a primeira Claro que gostaria de ter seu próprio netemática implicância do redator-chefe, porevista em formato convencional de Aigócio. Por fim, decidiu que não lançaria rém, começou a preocupar o editor. Décazen – estilo magazine americano. um novo jornal. Mas ele mesmo editaria das depois, Aizen contou que Maciel Filho Tinha custo baixo porque, embora os suplementos para venda independennão passava de um “invejoso”, inconfortrouxesse o melhor das publicações polite, sem a necessidade de uma publicação mado com o sucesso de seu projeto. Só não ciais americanas, os textos eram pirateagrande e custosa para encartá-los. imaginou que João Alberto fosse se deixar dos – sem pagamento de direitos autorais Pelo plano do editor, as edições seriam levar tão rápido pelas intrigas. –, com traduções muitas vezes duvidosas. oferecidas no Rio de Janeiro, São Paulo e No começo de junho, decidiu cancelar Desde a estréia, Policial em Revista publiBelo Horizonte e cidades próximas, onde todos os cadernos, apenas quatro meses decou também contos brasileiros de qualia distribuição não era tão precária – e hapois de seu lançamento. Com trânsito fádade razoável, que ficariam esquecidos via linhas de trem para garantir a circucil no Palácio do Catete, o hábil João Albernos raros exemplares que sobreviveram lação. Nos demais estados, imaginou que to não tinha problemas com dinheiro e ponas mãos de colecionadores nas décadas conseguiria repetir o sistema que conhederia bancar os cadernos pelo tempo que seguintes. Ainda em 1934, por causa da cera nos Estados Unidos de vender os caachasse necessário. Mas preferiu dar ouviaceitação desse suplemento, Aizen landernos para que fossem encartados nos dos à implicância de Maciel Filho. A políçou o tablóide de mistério Contos Magajornais locais. Aizen reuniu sua equipe tica se tornara prioridade em sua vida. Ter zine, que depois viraria revista. para informá-la de que, como A Nação não um jornal para esse fim era fundamental, queria mais os cadernos, criara um plano e preferiu acatar o argumento de que seu diConcorrente de peso e que estava disposto a dar sociedade para ário estava “perdendo” o respeito entre os O plano de Aizen de vender seus suquem quisesse participar. O editor falou leitores adultos. Por outro lado, o militar se plementos já impressos para serem encom tanta convicção que contagiou todo afeiçoou demais pelo entusiasmo de Aizen, cartados em jornais de outras capitais deu o grupo. Anunciou, então, que, naquele a quem se apegou na breve convivência que certo por alguns meses. Até começarem os momento, nascia o Grande Consórcio de tiveram. Tanto que encontrou uma saída calotes e os problemas de distribuição. Suplementos Nacionais. que se tornaria vantajosa para o criador dos Mesmo assim, tocou o negócio até o fim O nome pomposo, claro, não corressuplementos: estes deixariam de sair no seu da década, já com um concorrente de pondia exatamente à dimensão da micro jornal, mas o editor teria apoio financeiro editora que seria desenvolvida. A editora para montar um novo diário e, assim, dar começou a funcionar em uma pequena sala continuidade aos mesmos. no primeiro andar de um edifício da rua Treze de Maio, centro do Rio. A partir de Surge o Grande Consórcio 27 de junho de 1934, sem qualquer interCombinaram que a participação firupção temporal, os cadernos de A Nação nanceira de João Alberto no empreendicomeçaram a ser vendidos em separado por mento seria a mais discreta possível. Ai-

peso na área de quadrinhos: Roberto Marinho, que lançou em junho de 1937 o seu O Globo Juvenil. Em 1940, com a revista em cores O Gury, Chateaubriand também entrou no negócio. A situação se tornou crítica para o Grande Consórcio. Antes da decisão de fechá-lo, Aizen pediu ajuda a João Alberto. Ele sabia que como forma de centralizar os órgãos de imprensa confiscados ou fundados pelo Estado, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) criou o conglomerado Empresas Incorporadas ao Patrimônio Nacional. Lourival Fontes, seu diretor geral, colocou no comando um de seus homens de confiança, o coronel Luiz da Costa Neto, que ficou encarregado de gerenciar os recursos e a “estatização” das empresas. Aizen, então, levou a idéia ao amigo: e se ele pedisse a Costa Neto para comprar sua empresa? E assim aconteceu. Na venda do Grande Consórcio, ficou acertado que o governo assumiria todas as dívidas da editora e ainda indenizaria seus sócios. Em contrapartida, Aizen transferiu para o Estado a propriedade de suas publicações. A Noite ainda absorveu todos os empregados do Grande Consórcio, tornando-os funcionários públicos. Costa Neto apenas pediu a Aizen para que continuasse na direção da empresa, como coordenador das revistas em quadrinhos. Graças à influência política do Coronel João Alberto, o editor jogou, assim, uma cartada decisiva para recuperar seus negócios. O acordo trazia outra vantagem para ele: podia ficar com a máquina rotativa, uma vez que as revistas seriam rodadas na gráfica de A Noite. Livre de todas as dívidas e encargos trabalhistas, com uma folgada soma em dinheiro, Aizen passaria quase três anos editando as revistas em quadrinhos do Grande Consórcio para A Noite. Tempo suficiente para adquirir fôlego financeiro e planejar a fundação de uma nova editora. Enquanto isso, a incorporação do Grande Consórcio de Suplementos Nacionais pelo governo mostrava que, antes de tudo, Aizen era um empresário que queria salvar seu negócio. Mesmo que, para isso, precisasse recorrer a amizades influentes. Com o apoio de João Alberto, livrou-se de um empreendimento deficitário e, ao mesmo tempo, capitalizou-se para que pudesse, no futuro, dar continuidade à sua trajetória editorial. E pretendia fazer isso o mais rápido possível. O editor ainda aproveitou a estrutura gráfica e a disponibilidade de papel de A Noite – racionado por causa da guerra – para comemorar em grande estilo os dez anos de lançamento do Suplemento Juvenil em 1944. Produziu um álbum onde contava em forma de quadrinhos a história da fundação do tablóide, que chamou de A Grande Aventura. Uma grande aventura editorial que estava apenas começando. O genial Alex Raymond é o desenhista de Agente Secreto X-9 e de Flash Gordon, que estreou no Brasil apenas dois meses depois de seu lançamento nos Estados Unidos.

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LIVROS

Graciliano contra o cangaço Livro reúne textos publicados na imprensa alagoana e carioca em que o autor de Vidas Secas faz uma série de considerações sobre o banditismo no Nordeste, que ajudam a compreender o fenômeno Lampião. DIVULGAÇÃO

P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Em boa parte da sua vida, o escritor alagoano Graciliano Ramos (1892-1953) teve de conviver diretamente com o mais famoso fenômeno do banditismo no Brasil: o cangaço. Em algumas situações, esteve frente a frente ou sob a mira de foras da lei importantes. Na infância e na juventude, a ameaça constante de ataques surpresas nas pequenas cidades onde viveu – como Buíque (PE) e Viçosa (AL) – fez com que a paz e a tranqüilidade fossem algo tão raro quanto a água, nessas regiões de muitas secas. Graciliano não foi só um contemporâneo, mas uma testemunha, que podia falar com propriedade sobre o tema. E o fez no auge e mais crítico momento do cangaço, que acabaria com as mortes dos principais líderes do movimento, na década de 1930 e começo dos anos de 1940. Em texto de 1931, publicado na revista Novidade, de Maceió, ele fez observações nada lisonjeiras sobre o rei do cangaço: “Lampião nasceu há muitos anos em todos os estados do Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má. Refirome ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor veja alusões a um homem só”. A postura dele em relação ao rei do cangaço era muito clara. Depois de observar que circulara um telegrama dando conta de que Lampião havia se aposentado no interior de Sergipe, por causa da tuberculose, ele comentou em texto de 27 de janeiro de 1938: “Seria de fato bem triste que a punição dum indivíduo tão nocivo fosse realizada por uma doença. Ficam, pois, sem efeito, os ligeiros comentários inoportunos e apressados, que ilustraram o conard (termo em francês que quer dizer imprensa ruim, sensacionalista)”. Denso perfil Antológico é o curto perfil, porém denso, que fez de Maria Bonita. O modo como começava, implacável, apontava sua posição sobre a famosa bandoleira: “A mãe de dona Maria perdeu muito cedo o marido, pequeno proprietário sertanejo, e esforçou-se desesperadamente para cultivar a fazenda, impedir que os vizinhos lhe abrissem as cercas e matassem animais na roça. Defendeu-se como pode, conser-

Hebel Quintella, Valdemar Cavalcanti, Graciliano Ramos, Aloísio Branco, Rachel de Queiroz e José Auto, em Maceió, 1934. Abaixo, desenho de Santa Rosa para “Mudança”, publicado em O Jornal em dezembro de 1937.

REPRODUÇÃO

vou-se viúva e cabeluda, musculosa, quase transformada em homem, deu uma rija educação masculina à filha única”. Sobre Corisco, braço direito de Lampião, que sobreviveu mais alguns anos depois da morte do chefe, comentou: “Corisco, figura secundária, não criou reputação – e finou-se quase inédito. Foi um pequeno monstro. Contudo, se as circunstâncias o ajudassem, ele seria hoje uma criatura normal e necessária. Branco e louro, com pai remediado e avô rico, senhor de vários engenhos, devia acabar, naturalmente, jogando gamão numa pequena cidade do Nordeste, à porta da farmácia, chateado por filhos brancos e louros”. Ao longo de dez anos, entre 1931 e 1941, Graciliano Ramos escreveu uma série de 15 textos sobre o tema, agora reunidos pela primeira vez, no livro Cangaços, com 224 páginas, que sai pela Editora Record. A edição foi organizada por Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla, dois especialistas em sua obra. Além daqueles restabelecidos com a Redação original do autor, são pela primeira vez publicados em livro dois inéditos: uma entrevista ficcional com Lampião, escrita para o semanário Novidade, e a crônica Dois Irmãos, em que, a partir de comentários sobre um romance de José Lins do Rego, ele compara os arquétipos de Esau e Jacó às alternativas do povo diante da arbitrariedade do poder: revoltar-se ou resignar-se. O volume traz os dois capítulos do romance Vidas Secas que falam especificamente do cangaço.

A entrevista saiu sem assinatura e traz marcas que a associam ao autor de Vidas Secas, colaborador do periódico, no qual pela primeira vez abandonou pseudônimos. Segundo a revista, a conversa com Lampião detalhava “como o célebre cangaceiro, o herói legendário do sertão nordestino, encara certas coisas brasileiras: os direitos de propriedade, o progresso, a justiça, a família, o sertão, os coronéis, o cangaceirismo e a sua própria vida”. O redator da revista, no entanto, deixa claro na abertura que é tudo invencionice: “Na impossibilidade de obtermos um encontro com o notável salteador, recorremos a um truque: um dos nossos redatores, antigo sócio de centros esotéricos, deitouse, acendeu um cigarro, fechou os olhos e

conseguiu, por via telepática, a seguinte entrevista.” Caráter falacioso Ieda Lebensztayn explicou que, por aproximação estilística, atribuiu a entrevista imaginária a Graciliano. Durante sete anos, ela pesquisou para sua tese de doutorado na Usp a história da Novidade, que teve apenas 24 números e circulou de 11 de abril a 26 de setembro de 1931. A professora lembra que outros escritores de talento colaboravam em suas páginas, feitas nos fundos de uma livraria de Maceió. Fizeram isso antes de se mudarem para o Rio de Janeiro. Dentre eles, estavam o poeta Jorge Lima, o romancista José Lins do Rego, o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e o antropólogo Manuel Diegues Jr. Mas, a verve do texto, a referência irônica ao esoterismo, a zombaria do bacharelismo e, aponta Lebensztayn, “a agudez em relação à miséria absoluta e ao caráter falacioso da palavra escrita; a preceptiva poética de que é preciso conhecer o sertão para se falar dele — tudo isso é inequivocamente de Graciliano”. No artigo Cabeças, que saiu no Diário de Notícias, do Rio de Janeiro, em 2 de outubro de 1938, Graciliano mostrou seu humor cáustico em um comentário sobre o hábito de se decapitar cangaceiros pelas volantes: “Por outro lado, existem pessoas demasiado sensíveis que estremecem vendo a fotografia de cabeças fora dos corpos. Essas pessoas necessitam uma ex-

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VIDAS plicação. Cortar cabeças nem sempre é sempre os modos de um grande senhor, uma barbaridade. Cortá-las no interior muitas vezes mostrou-se generoso e cada África, e sem discurso, é barbaridade, prichou em aparecer como uma espécie naturalmente; mas na Europa, a macha- de cavaleiro andante, protetor dos podo e com discurso, não é barbaridade. O bres e das moças desencaminhadas”. discurso nos aproxima da Alemanha. ClaCangaços traz um caderno de fotos ro que ainda precisamos andar um pou- reveladoras do sentido de contextualico para chegar lá, mas vamos progredin- zar os textos do autor. Em uma delas, o do, não somos bárbaros, graças a Deus.” comentário que Graciliano fez no roGraciliano trata do assunto de modo mance Angústia: “Pensei em Cirilo de conflituoso, com a experiência de quem Engrácia, visto dias antes em fotografia vivenciou o cangaço em todas as suas fa- — um cangaceiro morto, amarrado a cetas. Daí ser contundente com os bando- uma árvore. Parecia vivo e era medonho. leiros. O livro mostra sua visão indigna- O que tinha de morto eram os pés, susda, entendida como mais humanista do pensos, com os dedos quase tocando o que comunista, ante os desmandos e as desigualdades de um qua- DIVULGAÇÃO dro social corrupto e cruel. A tenacidade do sertanejo em sua resistência à opressão aparece repetidas vezes na frase “apanhar do governo não é desfeita”, que se aplicaria ao próprio autor, que sofreu na carne a injustiça de ser preso e torturado a partir de março de 1936 quando, aos 43 anos, foi encarcerado durante dez meses pela polícia política de Getúlio Vargas. Os organizadores da antologia acreditam que, desse modo, lançase uma nova luz sobre a obra inesgotável de Graciliano Ramos, ao expor uma das raízes do sentimento ético que perpassa toda a sua obra, como diz a apresentação. Assim, mostram como, na reflexão do autor sobre a sociedade brasileira, foi fundamental testemunhar o Graciliano Ramos em 1934. cangaço, entendido como uma reação brutal de uma população oprimida pela violência dos políticos podero- chão”. Mas o auge da barbárie é quando sos, centrada na figura onipresente e oni- são exibidas as doze cabeças cortadas de potente dos coronéis. Ele explica o canga- Lampião, Maria Bonita e o resto do banço a partir de uma experiência pessoal. do. As cenas grotescas de 1938 são lemSegundo o escritor, “o que transfor- bradas por Ricardo Ramos, filho de mou Lampião em besta-fera foi a neces- Graciliano, em uma das epígrafes do sidade de viver e sobreviver. Enquanto livro: “Eu ouvia, fascinado. Passara a mepossuía um bocado de farinha e rapadu- ninice acalentado pelas estripulias dos ra, trabalhou. Mas quando viu o alastra- cangaceiros, da polícia volante, duas pesdo e em redor dos bebedouros secos o tes que nos assolavam. E contei de uma gado mastigando ossos, quando já não noite, após a ceia, em que atraído pelos havia no mato raiz de imbu ou caroço de foguetes saí à calçada e vi os caminhões, mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá as cabeças cortadas espetadas em estacom orações da cabra preta, tomou o cas, de Lampião, Maria Bonita e mais rifle e ganhou a capoeira. Lá está como outros, os soldados empunhando archobicho do mato montado”. Para os orga- tes, gritando, vitoriosos, um cortejo manizadores, havia “dois cangaços”, o do cabro pelas ruas de Maceió. Sonhos aspassado, de caráter social, e o do presen- sombrados, semanas de pesadelo”. te, de Graciliano, de motivação econôEm janeiro de 1938, Graciliano Ramica. Tudo alinhado às datas de alguns mos escreveu, em crônica reproduzida dos principais líderes do movimento, em Cangaços, que “a polícia do Nordescomo Jesuíno Brilhante (1855-1879), te continuará a perseguir o bandido, proAntônio Silvino (1875-1944), Virgulino vavelmente o agarrará de surpresa e mosFerreira da Silva, o Lampião (1898-1938), trará nos jornais a cabeça dele separada e Cristino Gomes da Silva Cleto, o Coris- do corpo”. Seis meses depois, “pegaram” co (1907-1940). Destes, apenas Silvino Lampião. Ele, a mulher, Maria Bonita, e não foi assassinado. Cumpriu pena de outros nove cangaceiros do bando foram 1914 até 1937. Graciliano o visitou na mortos e degolados. As 11 cabeças foram cadeia e fez seu perfil para O Jornal, do expostas na escadaria da prefeitura de PiRio, em 1938: “Na caatinga imensa, per- ranhas, em Alagoas. Graciliano nunca enseguido, queimado pela seca, Silvino teve tenderia tanta bestialidade. 22

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MAURICIO TORRES Um craque a menos na cobertura da Copa Após a perda de Luciano do Valle, jornalismo esportivo brasileiro lamenta a morte precoce de Mauricio Torres, aos 43 anos P OR C ELSO S ABADIN

Com 43 anos completados no último mês de fevereiro, Mauricio Torres estava no auge da carreira. Depois de ser o principal narrador da Rede Record de Televisão nas Olimpíadas de 2012 e se destacar na cobertura dos Jogos Olímpicos de Inverno na Rússia, em 2013, o jornalista se preparava agora para brilhar naquilo que é o sonho de todo repórter esportivo brasileiro: cobrir uma Copa do Mundo de Futebol em seu próprio país. Não foi possível. No dia 1º de maio, durante um vôo do Rio de Janeiro a São Paulo, onde faria gravações para o programa Esporte Fantástico, Mauricio sentiuse mal. Foi internado no hospital Sírio Libanês, na capital paulista, com suspeita de infarto. Não era. Foi constatada num primeiro momento uma arritmia cardíaca, que depois descobriu-se ser proveniente de uma bactéria. O quadro se agravou para infecção generalizada e o jornalista não resistiu, vindo a falecer no sábado, 31 de maio. Mesmo após um mês de internação, a notícia consternou tanto aos fãs como aos colegas.

Carioca, Mauricio Thomé Torres imaginava que seguiria sua carreira jornalística nas áreas de Política ou Economia. Não era particularmente um grande especialista em esportes. Porém, ao ser contratado pelo Sistema Globo de Rádio, descobriu que não apenas possuía uma veia esportiva, como tinha grande facilidade para a narração. Assim, com pouco mais de 20 anos, já narrava jogos para os Canais Globosat. Seu talento, sua facilidade ao lidar com temas esportivos e sua simplicidade logo foram notados pela Rede Globo de Televisão, que o contratou em 1996. Desenvolveu um estilo sóbrio, que ao mesmo tempo conseguia transmitir a emoção dos jogos, sem a necessidade de recorrer a muitos bordões. O sorriso largo e sincero era uma de suas marcas registradas. Na Globo, além de várias transmissões esportivas, apresentava também o bloco de esportes do Bom Dia Brasil, o Espaço Aberto Esporte da Globo News e chegou também a comandar alguns programas Globo Esporte, em caso de ausência de seus titulares.

CARLOS IVAN/AGÊNCIA O GLOBO

Mauricio Torres na Redação do programa Globo Esporte, no Jardim Botânico, em maio de 2003, ao lado dos apresentadores Léo Batista, Mylena Ciribelli e Glenda Kozlowski.


FÁBIO GUINALZ/FOTOARENA/FOLHAPRESS

“Não dá para mensurar o tamanho da perda” “Quando ele passou a dividir comigo a apresentação do Esporte Fantástico, tudo ficou muito mais legal. Ele era muito divertido, engraçado, tudo era motivo para fazer brincadeira e rir. Passamos dois anos apresentando juntos e a amizade aumentou muito. Eu esperava chegar a quinta-feira para pode almoçar com o Mauricio. A gente trocava confidências, ele me dava conselhos. Usava a experiência dele para tentar nos ajudar. Estava sempre preocupado de a gente ficar bem. O Mauricio era um apaixonado por esporte. Eu sempre o admirei como profissional e, quando eu comecei a trabalhar com ele, percebi que ele era muito mais do que aquilo que eu imaginava. Passei a admirar ainda mais o Mauricio como profissional”. CLÁUDIA REIS “Pessoa gentil e agradável. Ótimo profissional. Mais um dos bons nos deixa”. BRUNO LAURENCE

Pela emissora do Jardim Botânico, atuou na cobertura de importantes eventos esportivos, como as Copas do Mundo de 1998 (na França) e 2002 (Coréia do Sul e Japão). Esteve nas Olimpíadas de 1996 (Atlanta), 2000 (Sidney) e 2004 (Atenas). Coberturas de Jogos PanAmericanos foram duas: em 1999 (Winnipeg, no Canadá) e 2003 (Santo Domingo, República Dominicana) e 2007 (Rio de Janeiro), além de narrar as decisões da Liga Mundial de Vôlei de 2001 e 2003. Em 2005, dentro da estratégia da Record de tentar a liderança da audiência mimetizando o estilo e o visual da emissora líder, Mauricio é contratado pela Rede de Edir Macedo. E para ser o seu principal locutor esportivo. Em 2012, Mauricio se une a Mylena Ciribelli e Cláudia Reis para a formação do trio de apresentadores de um novo progra-

ma, Esporte Fantástico. Na Record continua sua trajetória de narrar e cobrir os principais eventos esportivos, como o Grand Slam de Judô 2009, os Jogos Olímpicos de Inverno de Vancouver (Canadá, 2010), e os Jogos Pan-Americanos de Guadalajara (México, 2011). No ano seguinte, Mauricio chega ao topo da carreira, assumindo o posto de principal narrador das Olimpíadas de Londres, evento que a Record transmitiu com exclusividade, sem a sombra da Globo. Seu último trabalho de peso, antes da internação, foi a cobertura dos Jogos de Inverno de Sochi, Rússia, ainda este ano. Por determinação da Confederação Brasileira de Futebol-CBF, todos os jogos do Campeonato Brasileiro que foram realizados na rodada posterior ao dia de sua morte prestaram um minuto de silêncio em homenagem à memória do jornalista.

“Ele foi sempre um profissional muito correto e completo. Honesto, em todos os lugares onde trabalhou. Seja na Rádio Globo, na Rede Globo e agora na Rede Record. É um cara que sempre fez bem à profissão, ele era um agregador. É uma pena ele ir antes da hora. Porque quando a pessoa já está mais velha, a gente fica triste, mas a gente entende que a pessoa cumpriu tudo o que tinha que cumprir. Agora, 43 anos é um absurdo. Isso não está certo. Não está certo a Julinha enterrar o pai. Quando eu vim para o Rio ele foi meu primeiro amigo. Ele me levou para procurar apartamento. Saíamos juntos demais, era uma companhia legal e agradável. O Mauricio era um cara muito generoso. Muito

correto. O mundo do jornalismo perde uma pessoa que tratava a todos de maneira justa e correta. É uma lacuna”. LUIZ ROBERTO “Desde que ele saiu da Globo, nós perdemos um pouco o contato. Mas todas as vezes que nos víamos era uma festa muito grande, muita alegria, um sentimento muito verdadeiro. O Brasil perde um excelente narrador, um grande profissional, com uma voz maravilhosa. Eu tive a responsabilidade de substituir o bom humor e a voz gostosa do Mauricio na apresentação do esporte no Bom Dia Brasil. Ele tinha sempre uma conversa agradável, um bate-papo legal. Vai fazer muita falta”. TADEU SCHMIDT “Um cara bacana e um profissional talentoso, moderno e dinâmico”. ROBERTO CABRINI “Não dá para mensurar o tamanho da perda. O Mauricio só levava coisa boa, sempre tinha uma palavra boa, de força, de amizade. Nós cobrimos juntos Guadalajara, Londres e várias outras transmissões ao vivo na Record. Ele era um parceiro incrível. E o que eram aquelas narrações dele?! Impressionantes! Eram deliciosas de acompanhar. Ele levava a gente junto para a quadra, para a piscina, para o campo. Era demais. O mais importante agora é a gente dar apoio à família, à filha linda que ele tinha”. CELSO ZUCATELLI “Mauricio Torres, dono de uma das vozes marcantes do esporte, além de ser humilde e educado. Um craque a menos na Copa. Triste”. BRITTO JR.

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CECÍLIA MARIGO

VIDAS

Luiz Cláudio Marigo O retrato de um País Pioneiro no registro de imagens sobre natureza, militante ecológico, fotógrafo morre sem atendimento na porta de um hospital no Rio de Janeiro. P OR C ELSO S ABADIN

Quando aquele senhor de 63 anos começou a passar mal dentro do ônibus Grajaú-Cosme Velho, no Rio de Janeiro, no último dia 2 junho, os passageiros que o socorreram jamais poderiam supor que se tratava de um dos maiores fotógrafos do Brasil e do mundo. Pioneiro na fotografia brasileira de temas sobre a natureza, ambientalista apaixonado e ativo militante ecológico, Luiz Cláudio Marigo morreu em pleno Instituto Nacional de Cardiologia, no bairro de Laranjeiras, vitimado por duas das principais causas mortis do Brasil: o enfarto e o descaso. Em greve, os médicos do Instituto recusaram atendimento a Marigo, e agora o hospital está sendo acusado de negligência e omissão de socorro. A sensibilidade que Luiz Cláudio Marigo desenvolveu pelos temas ligados à natureza não aconteceu à toa. Além de ter nascido no Rio de Janeiro dos românticos anos 1950, Marigo foi criado entre o mar e a Floresta Atlântica, e desde pequeno explorava as trilhas das encostas dos morros próximos à sua casa. Quando não estava abrindo picadas no mato, estava nas areias brancas de Copacabana. Suas primeiras fotos foram “batidas” (como se falava na época) com uma câmara totalmente manual emprestada pelo pai. Não foram, porém, imagens da natureza, mas sim cenas urbanas e de pessoas passando pelas ruas, já que Marigo, nestas primeiras incursões pelo mundo da caixa escura, resolveu homenagear, ainda que de maneira meio inconsciente, o

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grande fotógrafo francês Henri CartierBresson, cujo trabalho admirava. Mas como o mercado para fotógrafos no Brasil ainda era incipiente naquele momento, Marigo tentou buscar uma profissão “de verdade”. Cursou Economia e depois Filosofia. Em vão. O cheiro dos líquidos químicos reveladores e fixadores (“digital”, naquela época, era apenas o adjetivo relativo a dedos) foram mais sedutores, e o rapaz passou a se dedicar inteiramente à fotografia. Queria fotografar a natureza, chegou a fazer experimentos com cenas de campos e florestas, mas a necessidade de remuneração (sempre ela) o arrastava para trabalhos menos criativos e mais comerciais, como fotógrafo de produtos para publicidade. Tudo começou a mudar em 1975, quando foi contratado pela Editora José Olympio para fotografar o Pantanal Matogrossense. “Lá, então, a realidade se revelou aos meus olhos! Sobrevoando as planícies inundadas e observando tuiuiús, cabeçassecas, garças, cervos e capivaras fugindo à aproximação do avião, percebi que precisava continuar trabalhando assim pelo resto da vida”, chegou a afirmar o fotógrafo. Pouco tempo depois, no início dos anos 1980, Marigo conhece o biólogo José Márcio Ayres, estudioso de primatas amazônicos, que lhe proporciona uma visita de estudos ao lago Mamirauá, no Amazonas, onde fotografa o raro macaco uacari-branco. Mais que belos e importantes registros fotográficos, a parceria entre Marigo e Ayres rende uma amizade para toda a vida, além da criação, decretada em 1990, da Reserva Mamirauá de proteção ambiental, proposta ao Governo Federal pelos dois amigos.

No mesmo ano, Marigo organiza uma expedição com uma equipe de ornitólogos para localizar, no Nordeste brasileiro, uma ave quase extinta: a cyanopsitta spixii, popularmente conhecida como ararinha azul. Apenas um único exemplar foi localizado. E devidamente fotografado, claro. Marigo tinha consciência da importância deste seu trabalho que extrapolava os limites da própria fotografia. “O Brasil abriga quase a terça parte de todas as florestas tropicais remanescentes na Terra. Estes fatos, de tão grande importância, são pouco compreendidos por muitos órgãos do Governo e ainda menos pela população brasileira. Por isso, acho que a função social do meu trabalho é chamar a aten-

ção da opinião pública para a nossa tremenda riqueza de formas de vida, com toda a sua beleza, produzindo um conhecimento mais amplo e profundo de nossos ecossistemas, plantas e animais”, afirmou. Suas fotos estão espalhadas pelo mundo, estampadas em publicações como Foto (Suécia), Grands Reportages, Okapi e Terre Sauvage (França), Periplo (Espanha), Hörzu e Das Tier (Alemanha), BBC Wildlife (Inglaterra), International Wildlife, Ranger Rick, Wildlife Conservation, Natural History (EUA), Viva! (Polônia), Bonniers Specialmagasiner (Dinamarca), Spick (Suíça), Sinra (Japão) e Birds International (Austrália), além da mundialmente aclamada National Geographic Magazine. Mas, cer-


A NATUREZA DE MARIGO: tamanduá-bandeira tamente, a grande maiocarrega seu filhote. Acima, um uacari-branco ria dos brasileiros conhece na Reserva de Desenvolvimento Sustentável seu trabalho, mesmo sem Mamirauá, no Amazonas; girafas na Reserva saber, através das inesHluhluwe-Imfolozi, África do Sul. Abaixo, uma onça-pintada ataca um jacaré-dequecíveis figurinhas que papo-amarelo no Pantanal; lobo-guará no acompanhavam as embaParque Nacional da Serra da Canastra, no lagens do Chocolate SurCerrado de Minas Gerais. Na página ao presa, da Nestlé. De 1983 lado, uma bióloga com hipopótamo, na a 1998, toda uma geração África do Sul, e tucanos-toco no Pantanal. de crianças e, por que não, de adultos também, se acostumou a colecionar os “cromos” (como se dizia na época), divididos em variados temas, a maioria referente a assuntos da natureza, devidamente fotografados por Marigo. Eram inusitadas coleções de figurinhas, posto que para adquirir o álbum era necessário enviar uma carta à Nestlé com um determinado número de embalagens vazias. Tratava-se de cartões impressos em papel de ótima qualidade, onde no verso da fotografia constava uma ficha técnica com detalhes do animal fotografado, como o nome científico, família, habitat, hábitos alimentares, reprodução e demais particularidades. Nos álbuns “Amazônia”, “Campos e Cerrados”, “Os Sertões e Litoral” e “Ilhas Oceânicas”, não apenas as fotografias eram de autoria de Marigo, como também situação que comentava em seus artigos os textos dos cartões. Seus escritos tame todas devidamente legendadas. Era uma bém eram publicados na revista Fotograpessoa alegre, gentil e sempre disposta a fe Melhor. Sérgio Branco, Diretor de Redaajudar qualquer leitor que o procurasse”. ção da publicação, afirmou que Marigo No site de Marigo ainda é possível ler era “dono de um texto poético e, ao mesdeclarações suas que, agora, soam como mo tempo, informativo. Era muito cuidauma espécie de testamento. “Eu amo a nadoso. Enviava duas ou três fotos para cada

tureza e ganho a vida trabalhando na natureza, da mesma maneira que o homem primitivo fazia no passado e, por isso, me sinto profundamente comprometido com sua conservação. Acredito que a qualidade e a beleza das fotografias são essenciais para atrair o olhar das pessoas e conquis-

tar seus corações, aumentando assim o número daqueles que defendem a natureza. Espero que o meu trabalho transmita a mesma alegria e emoção que sinto nos ambientes selvagens e que as minhas fotografias não se transformem apenas em mais um documento do passado”.

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LAURA MARQUES/AGÊNCIA O GLOBO

VIDAS

Mollica Múltiplos talentos, num traço singular Arquiteto, urbanista, ilustrador e cartunista, ele trabalhou em O Globo, O Pasquim, Playboy, Jornal do Brasil e outras publicações ao longo de três décadas. P OR G ONÇALO J ÚNIOR

Morrer durante uma festa talvez seja algo coerente com a vida de quem fez as pessoas rirem muito do mundo, da vida, das adversidades, dos abusos e das arbitrariedades. Foi o que aconteceu com o multitalentoso arquiteto, urbanista, ilustrador e cartunista Orlando Mollica, na noite de 31 de maio. A três meses de completar 70 anos de idade, ele estava entre familiares e amigos, divertia-se quando passou mal e foi levado para o Hospital Municipal Miguel Couto, onde já chegou sem vida. “Vai-se um amigo sem igual, de qualidades raras, uma amizade em que dois temperamentos difíceis se respeitavam e admiravam, relevando as peculiaridades de sua personalidade, tomando as atitudes mais irracionais e irascíveis como a mais autêntica expressão da sinceridade”, disse o artista Bob N ao jornalista Gilberto de Abreu, do blog Supergiba. “Meu querido mestre e amigo, com quem tanto aprendi em aulas e conversas, e com quem tanto compartilhei sobre arte, a nossa cidade, a vida. Minha gratidão a esse cara é incomensurável”, acrescentou. Mollica, como assinava seus cartuns, teve vida intensa na grande imprensa brasileira. Foi colaborador constante de títulos importantes como O Pasquim, Opinião, O Globo, Jornal do Brasil, Jornal do Commercio, Ele Ela e Playboy, entre outros. Nesses veículos, desempenhou importante papel com seu humor direto, cortante, porém reflexivo, em especial durante o período da redemocratização do País, entre 1973 e 1987. Era ainda um consagrado capista e ilustrador de livros para editoras como Jorge Zahar, José Olympio, FTD e outras. Seus desenhos conquista-

NOVE CONTOS DE MARQUES REBELO

ram prêmios como Ilustrador do Ano do Clube de Criação de São Paulo, em 1989, e Prêmio da Fundação Nacional do Livro “Melhor Ilustração Infantil”, 1989, só para citar dois exemplos. Depois de concluir mestrado e doutorado em Comunicação na Eco-UFRJ, Mollica atuou como professor adjunto da faculdade Santa Úrsula, de 1975 a 2000. Por anos, ensinou desenho e pintura da Escola de Artes visuais do Parque Lage, com o curso “Desenho Contemporâneo: produção de sentido e narratividade”. Seu livro mais recente foi Arte, Artistas e Arteiros, publicado em 2011 pela Editora Gato Sabido. Ao mesmo tempo, seus trabalhos como artista plástico respeitado foram expostos em galerias importantes de várias partes do mundo, inclusive em Pequim, na China, onde, em 1995, participou de uma mostra coletiva de autores brasileiros. Uma das últimas exposições de Mollica foi Rio Lado B – Anotações Imprecisas, com pinturas que tentavam recriar o ambiente da Zona Norte do Rio a partir

Mollica, em seu estúdio, finaliza a tela Porto das Mil Maravilhas, que fez parte da exposição Rio Lado B – Anotações Imprecisas.

de suas lembranças. A mostra teve ampla repercussão na imprensa. Em seu blog, ele se referiu às telas dessa exposição como uma crônica paisagística da Zona Norte carioca, e ressaltou: “A contemplação dessas paisagens, ora em questão, é oposta àquela que se produz na indústria do espetáculo midiático, por meio de um voyeurismo fugaz, histérico, marcado comumente pela banalização da violência, exposta diariamente ao cidadão comum, que sentado confortavelmente em sua sala de jantar, a tudo assiste no noticiário de tv, impassível e impotente”. Nesse trabalho, prosseguiu Mollica, o ‘telespectador ’ é representado pela sua própria ausência, nas cadeiras e mesas vazias, pintadas à margem das cenas. Ele explica que “de um lado ou de outro da tela, esses prosaicos arranjos de mobiliá-

rios típicos dos interiores das casas aburguesadas simbolizam a indiferença e a impotência apática do cidadão comum.” Artista plástico e arquiteto

Orlando de Magalhães Mollica nasceu em 5 de agosto de 1944, no Rio de Janeiro. “Eu sou tamoio, sou natural daqui, descendente de ancestrais do Rio de Janeiro”, definiu-se, certa vez. Descrevia-se nos últimos anos como artista plástico e arquiteto – formou-se pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, atual UFRJ, em 1969. Entre seus cursos complementares, estudou ilustração na School of Visual Arts, em Nova York, e fez Paisagismo no Instituto dos Arquitetos do Brasil, sob a orientação do professor Fernando Chacel, e de Introdução à Economia Política na ABI, coorde-

O NOVO HUMOR DO PASQUIM

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A Ronda na Favela, d’apres Dall'ara: Tela que fez parte da exposição Rio Lado B – Anotações Imprecisas.

ENCICLOPÉDIA LATINO-AMERICANA DE HUMOR

nado por Paul Singer. Também estudou Semiologia com ninguém menos que Umberto Eco. Como profissional de Arquitetura e Urbanismo, foi projetista do escritório de Arquitetura Bernardo Figueiredo, além de autor e executor do projeto dos carros alegóricos da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira “Pioneiros da Aviação”. Fez ainda pesquisa do levantamento da identidade Cultural do Bairro de Vila Isabel para o projeto “Perfil Cultural da Cidade do Rio de Janeiro”, junto à Fundação Rio. Em 1982, tornou-se o responsável pelo Projeto de Urbanização do Complexo do Morro do Alemão e Jacarezinho. Na publicidade, Mollica entrou para a história ao se tornar, em 1979, o autor do cartaz pela Anistia Nacional, que percorreu o mundo. Ficou mais conhecido, porém, pela importante passagem pela imprensa a partir de 1972, quando estreou no caderno infantil do Jornal do Brasil como autor e responsável pela seção Diacor. Enquanto isso, adentrava no mundo dos livros como co-autor do layout e arte final da capa e contracapa do livro O Golpe Contra Howard Hughes, de Stephen Fay. Criou também uma série de histórias em quadrinhos no Caderno B, do Jornal do Brasil. Fez o mesmo na revista alternativa Esperança no Porvir. Até ser contratado como chargista diário pelo Jornal do Commercio (Rio de Janeiro). Tornou-se também colaborador de O Pasquim e Opinião, ícones do jornalismo de resistência contra a ditadura. Em 1974, criou uma página de humor em suplemento da secular Revista Vozes, publicada pela editora católica de Petrópolis. No ano seguinte, virou chargista

ANTOLOGIA BRASILEIRA DE HUMOR

ANTOLOGIA BRASILEIRA DE HUMOR

de 1976, colaborou durante algum tempo na revista masculina Ele Ela, da Bloch Editores. Em 1978, seus cartuns foram incluídos no livro O Novo Humor do Pasquim. A despedida do humor se deu nos anos de 1999 e 2000, quando colaborou com a revista Bundas, criada por Ziraldo. Um ano antes, participou do júri do Salão Carioca de Humor de 1998, na Casa de Cultura Laura Alvim. Se não bastasse tudo isso, teve duas passagens pelo cinema. Primeiro, em 1977, quando se tornou responsável pelos figurinos, cenografia e apresentação do filme Cordão de Ouro, do diretor Antonio Carlos Fontoura. Em 2005, cuidou da produção e direção do curta metragem Eu, Rio. Há dois anos, Mollica havia transferido seu ateliê do Jardim Botânico para o Rio Comprido, bairro onde nasceu e cresceu. Uma mostra de seu trabalho celebrou seu retorno à região e a inauguração do novo espaço de trabalho. Considerado um dos arquitetos mais irreverentes, somava à sua rica personalidade as facetas de jornalista, chargista e pintor. Com seu olhar atento e provocativo, estimulava a inteligência e a sensibilidade em relação à paisagem que nos cerca. Sem trocadilhos, viveu e traçou o mundo com O NOVO HUMOR DO PASQUIM seu talento singular.

diário da Última Hora, enquanto era convidado pelo colega Fortuna para colaborar com a revista de quadrinhos nacionais O Bicho, da Editora Codecri, a mesma que publicava O Pasquim. A paixão pelas histórias em quadrinhos fez com que ele, nas horas vagas dos cartuns e da arquitetura, adaptasse para os quadrinhos os romances Helena, de José de Alencar, e A Moreninha, de Joaquim Manoel de Macedo, pela Editora Etecetera. Seu nome, então, ultrapassou as fronteiras brasileiras depois do convite para participar da seleta Enciclopédia Latino-Americana de Humor. Antes de virar ilustrador exclusivo de O Globo, a partir

“Orlando furioso, Orlando encantador, Orlando racional, a explicar” "Mollica... Cartunista. Artista plástico, músico, batuqueiro e professor. Ator de um mau humor muito bem humorado. Autor autoral. Doce e gentil, embora ácido e irascível... Crítico, mas sabia o que fazer. E fazia. Fazia pracarái. Arquiteto de muito engenho, e de muita arte... Pintava o sete. E bordava, e dava mil pontos sem nó... Italiano, mediterrâneo, etrusco? Sangue quente, cabeça fria... Às vezes exatamente o contrário! Orlando furioso, Orlando encantador, Orlando racional, a explicar, Orlando emocionante... Vou sentir uma falta de ti, cara!". AROEIRA, CARTUNISTA E MÚSICO "A vida, às vezes, nos reserva boas surpresas. Enquanto dava os meus primeiros passos como desenhista, tive o privilégio de ter como professor o Mollica, o ilustrador e cartunista que eu conhecia dos jornais. Pessoa intensa, divisor de águas na minha vida profissional, que generosamente me apresentou ao desenho de humor". ROSE ARAUJO, CARTUNISTA "Conheci o Mollica, inicialmente através de sua arte no jornal O Pasquim, depois pessoalmente no próprio jornal quando estivemos juntos algumas vezes e outras tantas no Parque Lage, enquanto eu fazia algum curso naquela instituição. Sempre o encontrava rodeado de alunos e agia como um professor muito preocupado com questões de conhecimento, importância do ensinar e fazer viver arte". ZÉ ANDRADE, CERAMISTA

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