Ariano Suassuna
Eduardo Campos
404 A GOSTO 2014
ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE I MPRENSA
CLAUDIO DUARTE
EDITORIAL
UM COMPROMISSO COM O FUTURO DA ABI LUTHERO MAYNARD
VIVEMOS UM MOMENTO DECISIVO e transformador na história da Associação Brasileira de Imprensa. Pela primeira vez, nos 106 anos de existência de nossa Casa, sócios residentes em São Paulo, Belo Horizonte, Brasília, Maceió e São Luís, cidades onde estão localizadas as Representações da ABI, poderão expressar sua vontade por intermédio do voto.
problemas das mais diversas ordens – de estruturais e físicos a burocráticos e financeiros. Não será fácil reverter um quadro marcado pelo descaso e pela inércia.
tência e coragem na defesa da liberdade de imprensa e do patrimônio físico, moral e intelectual da Associação Brasileira de Imprensa.
A ABI, NESTA QUADRA HISTÓRICA, marcaO VOTO DOS SÓCIOS RESIDENTES fora do Rio de Janeiro, embora ainda em poucos lo- da por transformações radicais nos veículos cais, tem um significado histórico, pois aponta e modos de comunicação, não pode se isolar, para a ampliação da presença institucional não pode estar com falta de sintonia com a da ABI em todo o território nacional. Infe- modernidade, especialmente porque as inoO VOTO FORA DA CIDADE DO Rio de Janeiro lizmente, nossa Casa vem perdendo visibi- vações tecnológicas, que se sucedem rapirepresenta uma revolução no processo elei- lidade no interior da sociedade civil em rit- damente, atingem diretamente o mercado toral da ABI, e constitui um mo acelerado, o que é inad- de trabalho dos jornalistas, criando novas “O voto fora da cidade fator decisivo para retomar missível em se tratando da relações, exigindo novas soluções. do Rio de Janeiro o prestígio nacional da Casa mais importante trincheira de Gustavo Lacerda, Herbert É PARA REVERTER ESSE LAMENTÁVEL escontra o arbítrio e a opressão. representa uma Moses, Barbosa Lima Sobri- revolução no processo Caberá à futura direção colo- tado de coisas que precisamos que você nho, e tantos outros defencar a ABI na trilha traçada por participe do processo eleitoral e vote teneleitoral da ABI.” sores da democracia represeu passado histórico, e tor- do em vista a preservação do patrimônio sentativa e da liberdade de imprensa, pois ná-la novamente protagonista das trans- histórico, ético e físico da ABI. Nesta eleiuma não existe sem a outra. No futuro, formações sociais que ocorrem celeremen- ção, o valor maior a ser defendido é o reschegaremos ao voto eletrônico, modalidade te na sociedade brasileira atual, e não mera peito ao processo democrático e o resgate que permitirá a todos os sócios da ABI es- testemunha passiva e inoperante. do espaço perdido pela ABI entre as entipalhados pelo território nacional manifesdades representativas da sociedade civil. tarem sua opinião e vontade de forma direta NO ATUAL MOMENTO HISTÓRICO, é ime democrática. VOCÊ TEM UM COMPROMISSO com a ABI prescindível que a futura direção batalhe pela ampliação do quadro social da enti- e com o seu futuro. Um compromisso com É EM NOME DA DEMOCRATIZAÇÃO e am- dade, para fortalecer a ABI na luta em defesa a multiplicação democrática das represenpliação do alcance institucional da Asso- dos profissionais de imprensa. A ABI pre- tações da entidade por todo o País. Um ciação Brasileira de Imprensa que convo- cisa estar presente onde quer compromisso com a luta pelo “A ABI, nesta quadra voto eletrônico, que trará a camos os associados para comparecer nos que ocorra uma ameaça à lilocais de votação no próximo dia 26 para berdade de imprensa ou à in- histórica, marcada por participação fecunda de eleger a nova diretoria da entidade e co- columidade física de profis- transformações radicais colegas de todo o território locar a ABI em um novo tempo. sionais durante seu trabalho. nos veículos e modos nacional. Um compromisso com a ética, a transparência Diariamente os meios de code comunicação, não OS FUTUROS DIRIGENTES TERÃO uma municação registram os mais e a competência profissiopode se isolar, não árdua batalha pela frente, face à situação sórdidos e covardes ataques nal. Um compromisso com pode estar com falta a ousadia por dias melhores de descalabro em que se encontra a insti- a jornalistas que tão-somente tuição. Deles será exigido prestígio pro- exercem sua profissão. Um para a Casa dos Jornalistas. de sintonia com a fissional, visibilidade no interior da soci- ataque a um jornalista é um Em nome desses ideais parmodernidade.” edade civil, respeitabilidade, férrea deter- ataque à ABI. ticipe das eleições e contriminação e competência para resolver os bua para promover um tempo de mudanproblemas que afligem a Casa dos JornaA DIREÇÃO A SER ELEITA DEVE represen- ça em direção ao futuro e em sintonia com listas. À nova direção caberá a solução de tar uma garantia de honestidade, compe- os anseios da sociedade brasileira.
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ELEIÇÕES
No próximo dia 26, atenda ao chamado da ABI Todos os sócios foram anistiados e podem votar em um dos seis endereços espalhados pelo Brasil: Rio de Janeiro, São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Maceió e São Luís. Promover a democratização na tomada de decisões na ABI, por meio da ampliação efetiva da participação dos associados. Este é um dos compromissos básicos da chapa Vladimir Herzog. Uma vez eleita, a nova direção implementará o voto eletrônico nas próximas eleições, de forma que todo associado possa votar, estando ele em qualquer ponto do território nacional. A intenção era adotar o modelo de votação na eleição marcada para 26 de setembro. No entanto, a novidade, que viria corrigir a distorção que hoje limita ao espectro regional o foro de decisões de uma instituição nacional, acabou tendo que
ser adiada, por causa de ação movida por representantes da chapa Prudente de Morais, Neto, que postularam a realização das eleições apenas no Rio de Janeiro. De qualquer forma, o primeiro passo rumo à renovação da ABI já foi dado. No pleito do dia 26, será aberta aos associados a possibilidade de votarem em seis estados. Além da sede da entidade, na capital fluminense, na Rua Araújo Porto Alegre, 71 Centro do Rio, a votação ocorrerá, sempre presencialmente, em São Paulo (capital) - Rua Martinico Prado 26, grupo 31, Bairro Santa Cecília (em frente ao Pronto-Socorro da Santa
Casa); Belo Horizonte/MG - Rua Bahia 1.450, Centro; Maceió/AL, Rua Sargento Jaime Pantaleão, 370; Brasília/DF - SCLRN 704, Bloco F, loja 20. Asa Norte (DF); e São Luís/MA Rua Assis Chateaubriand, s/nº, Renascença II.
TODOS PODEM VOTAR Outro dado importante: poderão participar desta eleição histórica todos os associados, mesmo aqueles que não se encontram em dia com suas mensalidades. Estes estão automaticamente anistiados e, assim, podem fazer valer sua vontade nas urnas. A eleição será uma oportunidade úni-
ca de todos reaproximarem-se da entidade, inclusive aqueles que, por qualquer razão, há anos deixaram de participar de suas atividades. É chegada a hora de mostrar seu apreço pela Casa dos Jornalistas, ajudando-a a soerguer-se. Neste sentido, a defesa da adoção do voto eletrônico constitui capítulo fundamental na cartilha a ser adotada para a reconstrução da Associação. Reconhecidamente seguro, adotado por importantes entidades, como as de assistência a funcionários e aposentados do Banco do Brasil, o modelo permitirá que a ABI reconquiste, pela via democrática e justa, sua ressonância nacional.
Duas Chapas concorrem ao pleito Duas chapas, a Vladimir Herzog, liderada por Domingos Meirelles, e a Prudente de Moraes, neto, encabeçada por Fichel Davit Chargel, tiveram seus pedidos de inscrição homologados pelo Presidente da Comissão
Eleitoral Roberto Monteiro de Pinho. As eleições da ABI começam no dia 25 de setembro, com a Assembléia Geral, e no dia 26 acontece a votação na sede da entidade, e nas cinco Representações da ABI espalha-
das pelo País (São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Maceió e São Luís). No pleito, os associados irão escolher a nova Diretoria Executiva, Conselhos Fiscal, Consultivo e dois terços do Deliberativo (efetivos e suplentes).
CHAPA VLADIMIR HERZOG Diretor Presidente Domingos Meirelles Diretor Vice Presidente Paulo Jerônimo de Sousa Diretor Administrativo Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro Ana Maria Costábille Diretor de Cultura e Lazer Jesus Chediak Diretor de Assistência Social Arcírio Gouvêa Diretor de Jornalismo Eduardo Cesário Ribeiro CONSELHO CONSULTIVO Alberto Dines, Audálio Dantas, Ferreira Gullar, Juca Kfouri, Cícero Sandroni, Hélio Fernandes, Ziraldo CONSELHO FISCAL Arnaldo César Jacob, Jorge Ribeiro, Lindolfo Machado, Luiz Carlos Chesther de Oliveira, Geraldo Pereira dos Santos, Rosângela Amorim, Paulo Roberto Gravina CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2013/2016 Aziz Ahmed, Flávio Tavares, Jesus Antunes, Lima de Amorim, Bernardo Cabral, Jorge de Miranda Jordão, Sérgio Gomes (Serjão),
CHAPA PRUDENTE DE MORAES, NETO
Andrei Bastos, Paulo Gomes Neto, Austrégesilo de Athayde Filho, Ralph Lichote, Silvestre Gorgulho, Elio Maccaferri, Antônio José Ferreira Carvalho e Udson da Silva de Oliveira
Presidente Fichel Davit Chargel
CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2014-2017 Ricardo Kotscho, Milton Coelho da Graça, Anna Lee, Joseti Marques, Moura Reis, Tarcísio Baltar, Nivaldo Pereira, Carlos Chaparro, Luthero Maynard, Daniel Mazola, Amiccucci Gallo, Oswaldo Augusto Leitão, Siro Darlan, Jeronimo do Espírito Santo e Fábio Costa Pinto
Diretor Administrativo Irene Cristina Gurgel do Amaral
CONSELHEIROS SUPLENTES 2013/2016 Adalberto Diniz, Adilson Ribeiro, Carlos Alberto da Rocha Carvalho, Carlos Di Paola, Terezinha Santos, João Luiz Dória, Maurício Max, JL Costa Pereira, Luarlindo Ernesto, Marcia Guimarães, Carlos Newton, Moysés Chernichiarro Corrêa, Raul Silvestre, Reinaldo Leal, Wilson Alves Cordeiro CONSELHEIROS SUPLENTES 2014-2017 Lourival Marques Bogea, Petrônio Souza Gonçalves, Elisabete Burlamarqui, Ilma Martins da Silva, Vilson Romero, Bonifácio Rodrigues de Mattos (Ikenga), Claudinéia Lage, JB Serra e Gurgel, José Carlos Machado, Jayme Gama, Érika Branco, Luiz Wanderley da Silva, Roberto Martins, Tiago Santos Salles, Wilson Carvalho
Todos os os sócios da ABI foram anistiados e, para participar desta festa democrática, o eleitor em atraso deve acertar apenas o pagamento da mensalidade de setembro no local onde irá votar.
Diretor Vice-Presidente Carlos Marchi
Diretor Econômico-Financeiro Sérgio Caldieri Diretor de Cultura e Lazer Jorge Roberto Martins Diretor de Assistência Social Sônia Góes Diretor de Jornalismo Altenir Santos Rodrigues CONSELHO CONSULTIVO 2013/2014 Teixeira Heizer, Continentino Porto, Francisco Paula Freitas, Carlos Alberto Caó, Hildeberto Aleluia, Ponce de Leon, Gilson Monteiro CONSELHO FISCAL 2013/2016 Loris Baena Cunha, Manoel Epelbaum, Jarbas Domingues Vaz, Antônio Nery, Jorge Saldanha de Araújo, Randolpho Silva de Souza, Luiz Paulo Machado CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2013/2016 Milton Temer, Ilimar Franco, Luiz Carlos Azêdo, Dácio Malta, Pinheiro Júnior, Dulce Tupy, Carlos Alberto Marques Rodrigues,
Argemiro Ferreira, Alcyr Cavalcanti, Jorge (Arapiraca) Oliveira, Sérgio Cabral Santos, Germando de Oliveira Gonçalves, Benício Medeiros, Raul Quadros e Pery Cotta. CONSELHO DELIBERATIVO (Efetivos) 2014/2017 Glória Alvarez, Fátima Regina Lacerda, Fernando Paulino, Antero Luiz Martins Cunha, Osvaldo Maneschy, Silvio Tendler, Jorge Antônio Barros, Mário Augusto Jakobskind, João Máximo, Moacyr Andrade, Andréa Vieira Gouvêa, Arthur Poerner, Octávio Costa, Cid Benjamin, Fernando Foch. CONSELHO SUPLENTES 2013/2016 Erika Franziska Herd Werneck, Bruno Torres Paraíso, Leda Acquarone de Sá, José Antônio Gerheim, Arthur Fraga, Manoel Pacheco, Laerte Costa Moraes Gomes, Itamar Guerreiro, Rubem Mauro Machado, Vera Maria Perfeito de Berrêdo, Mirson Murad, Edimilson Gomes Soares, Glauco de Oliveira, Zilmar Borges Basílio, José Pereira da Silva. CONSELHO SUPLENTES 2014/2017 Tadeu Aguiar, Salete Lisboa, Cleyber Fintelman, André Luiz Lacé Lopes, Maria Ignez Duque Estrada, Zilda Ferreira, Modesto da Silveira, Maria Luiza Franco Busse, Nilo Braga, Marcelo Tognozzi, Claudia Santiago Vieira Giannotti, Victor Cavagnari Filho, José Rezende Neto, Beatriz Santacruz, Ernesto Vianna.
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HOMENAGEM
POR PAULO CHICO á quem faça relação direta com aqueles nascidos sob o signo de Áries. Outros destacam diferentes idiomas e grupos étnicos, desde os indo-europeus que se espalharam pela Europa ainda Antes de Cristo. Pesquisas revelam também a designação de ‘raça pura’ – na verdade, uma referência aos povos nórdicos ou germânicos. Esta, uma leitura bastante controversa, bem mais recente, utilizada para justificar atrocidades cometidas no período do Nazismo. Seja como for, pode procurar por aí, nos mais diversos dicionários. O verbete Ariano traz referências das mais diferentes. Nenhuma delas, no entanto,
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presta homenagem ou sequer traduz – não o termo, e sim a pessoa – em seu pleno significado. Falamos de Suassuna. Talvez o mais brasileiro dentre os escritores brasileiros. E, por isso mesmo, autor dos mais universais. Não por acaso, com obras traduzidas para o inglês, francês, espanhol, alemão e italiano, entre outros idiomas. Nascido em João Pessoa, em 16 de junho de 1927, Ariano Vilar Suassuna foi dramaturgo, romancista, ensaísta, palestrante, poeta e... artista plástico. Esta última talvez tenha sido a menos reconhecida de suas artes, mas nem por isso a de menor importância. Em todas essas manifestações, o idealizador do Movimento Armorial e autor de obras como Auto da Compadecida destacou-se como inabalável defensor da cultura do Brasil, em especial a do Nordeste. Valores nacionais tão pouco cultivados, que ficam assim, meio que órfãos, após a sua morte, ocorrida aos 87 anos, em 23 de julho deste ano, no Recife, vítima de complicações decorrentes de um acidente vascular cerebral. “Já na juventude Ariano gostava de desenhar. Oficialmente, porém, podemos dizer que o seu trabalho no campo das artes plásticas se inicia com os desenhos que fez para ilustrar o Romance d’A Pedra do Reino, lançado em 1971. A partir daí ele começou a se dedicar às artes plásticas de modo mais regular, procurando, sempre que possível, uma associação entre texto e imagem. Ele sempre teve muito prazer na criação artística, de um modo geral. Várias vezes eu o encontrei desenhando ou pintando na cama ou mesmo sentado no chão”, contou ao Jornal da ABI Carlos Newton Júnior, poeta, escritor e professor da Universidade Federal de Pernambuco, provavelmente o maior especialista na obra de Ariano, além de organizador de diversas mostras que destacavam o lado ilustrador do ilustre escritor. Carlos Newton é autor de Suassuna – Vida e Obra em Almanaque, ensaio biográfico publicado no começo deste ano, no Recife, dentro de um projeto patrocinado pela Caixa Econômica Federal. O almanaque tem 70 páginas, rica iconografia e ilustrações com desenhos do próprio Ariano. O projeto gráfico, com seus títulos e capitulares, usa a fonte Armorial,
Suassuna O universo árido e fértil de
Morte do escritor que fincou suas obras nas mais profundas raízes brasileiras chama a atenção para os valores da cultura nacional, em especial, a do Nordeste. Em vida, Suassuna foi árvore frondosa, da qual brotaram alguns dos mais saborosos frutos da nossa literatura. 4
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espécie de alfabeto criado por Ariano, com inspiração nos ferros de marcar boi no sertão nordestino. Também como artista plástico, Ariano era único, por ser múltiplo. Atacava de desenhista, pintor, gravurista, tapecista, ceramista... Não havia limites para sua imaginação. “Para se compreender melhor a sua obra, a visão sistêmica é fundamental. É preciso perceber, ainda, que comumente o seu trabalho no campo das artes plásticas parte de sua obra literária, e não o inverso”, pontua Carlos Newton, que fala de seu encanto pelo universo do autor. “Meu interesse pelas artes plásticas do Suassuna surgiu naturalmente, na medida em que eu estudava a sua obra. Por outro lado, além de escritor e crítico, sou professor de História da Arte na UFPE. Sempre dei razão às palavras do músico Jarbas Maciel, um dos primeiros – senão o primeiro – a chamar atenção para o aspecto sistêmico da sua obra, ou seja, na medida do possível, ela deve ser analisada em conjunto; romance, teatro, poesia e artes plásticas, pois a produção de Ariano em qualquer um desses campos lança luz sobre a dos outros. Há muito do Ariano ainda a ser descoberto. Seus desenhos são a parte menos conhecida de sua obra. Tenho um livro inédito sobre o trabalho de Ariano neste campo. É um livro difícil de publicar, pois é um livro de arte, com muitas reproduções coloridas de pinturas, tapetes, gravuras... Ou seja, depende de patrocínio, dificilmente um editor o bancaria sozinho. O primeiro capítulo – Ariano Suassuna, Artista Plástico – já foi publicado, como um ensaio, em uma coletânea de textos de vários autores, pela editora da universidade”, conta Carlos Newton. Todas as facetas do grande talento de Ariano estão contadas didaticamente por Carlos Newton Júnior, nos 12 capítulos do livro Suassuna – Vida e Obra em Almanaque, começando com o seu nascimento no Palácio do Governo do Estado da Paraíba. Na época, junho de 1927, seu pai, João Urbano de Vasconcelos Suassuna, era o Governador. No capítulo seguinte o menino já aparece no sertão descobrindo os encantos da Fazenda Acauhan. E aí a história continua, incluindo a tragédia do assassinato do pai, episódio que está sempre presente na sua obra literária. Assim Ariano reconhecia. “Posso dizer que, como escritor, eu sou, de certa forma, aquele mesmo menino que, perdendo o pai assassinado no dia 9 de outubro de 1930, passou o resto da vida tentando protestar contra sua morte através do que faço e do que escrevo, oferecendo-lhe esta precária compensação e, ao mesmo tempo, buscando recuperar sua imagem, através da lembrança, dos depoimentos dos outros, das palavras que o pai deixou”. Apenas como registro histórico, vale esclarecer as circunstâncias do assassinato de João Suassuna. O crime ocorreu como desdobramento da comoção poste-
rior ao assassinato de João Pessoa, Governador da Paraíba e candidato a vice-Presidente do Brasil na chapa de Getúlio Vargas. Ariano Suassuna atribuía à família Pessoa a encomenda do assassinato de seu pai, João Urbano, ao pistoleiro Miguel Laves de Souza, que atirou na vítima pelas costas, no Rio de Janeiro, num contexto de pré-revolução de 1930. Em função deste episódio, desgostava do nome atribuído à cidade onde nasceu, a capital do Estado – João Pessoa –, até então chamada Parahyba. E também por esse fato, no mesmo ano, sua mãe se transferiu com os nove filhos para Taperoá, onde Ariano fez os estudos primários. No sertão paraiba-
até aposentar-se, em 1989, lecionou disciplinas como Estética, História do Teatro e História das Artes, sempre neste mesmo estilo. Suas aulas irrompiam na universidade como um redemoinho forte a rasgar as folhas dos velhos manuais de didática que a maioria dos professores seguia por comodismo ou limitação intelectual. Ariano jamais precisou lançar mão do expediente da chamada para que seus alunos se fizessem presentes na sala de aula. Suas aulas eram concorridíssimas, e os alunos regulares eram obrigados a chegar cedo para disputar espaço – muitas vezes sentando-se no chão ou no peitoril das janelas – com alunos ouvintes e demais
O cavaleiro diabólico que apareceu a Lino Pedra-Verde, é um dos desenhos que Ariano fez para o romance o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta.
no, se familiarizou com os temas e as formas de expressão que, mais tarde, viriam povoar suas histórias. Em Suassuna – Vida e Obra em Almanaque, Carlos Newton Júnior aborda até mesmo a origem das concorridas ‘aulasespetáculo’. “Trato dessa faceta ‘professor’ do Ariano no capítulo ‘Aula-espetáculo: a educação pelo riso’. Muito embora o conceito dessas palestras tenha surgido, oficialmente, durante a sua gestão na Secretaria de Cultura de Pernambuco (19951998), durante o terceiro governo de Miguel Arraes, Suassuna ministrava aulas-espetáculo há muito mais tempo do que se imagina. Professor da UFPE de 1956
interessados, muitos dos quais já haviam cursado as disciplinas e voltavam a freqüentá-la por vontade própria”, relata. Vale a pena ressaltar o quanto a ‘metodologia’ das aulas-espetáculo de Ariano, muitas delas gravadas em vídeo e disponíveis nas redes sociais e canais da internet, se encontra em sintonia com os postulados pedagógicos de Paulo Freire, de quem foi grande amigo. “Poderíamos afirmar, sem risco de erro, que o seu pensamento em relação à arte e à cultura toma por base os mesmos princípios humanísticos que fundamentam o pensamento de Freire em relação à Educação. Isso não só teria reforçado a amizade
entre os dois como apontaria para a forte possibilidade de uma influência recíproca de um sobre o outro: o Ariano professor teria sido influenciado pelo educador Paulo Freire. E o educador, por sua vez, influenciado pelas idéias do teórico da beleza e pensador da cultura”, aposta Carlos Newton. Formado na Faculdade de Direito do Recife em 1950, Ariano já havia iniciado sua produção literária três anos antes, em 1947, com Uma Mulher Vestida de Sol. Para curar-se de doença pulmonar, em 1951 viu-se obrigado a mudar-se de novo para Taperoá, na Paraíba, onde já havia residido temporariamente quando do assassinato do pai. Lá, naquele mesmo ano, escreveu e montou a peça Torturas de um Coração. Em 1952, volta a residir no Recife. Deste ano a 1956, dedicou-se à advocacia, sem abandonar, porém, a atividade teatral. São desta safra O Castigo da Soberba (1953), O Rico Avarento (1954) e o clássico Auto da Compadecida (1955), peça classificada, em 1962, pelo crítico Sábato Magaldi, como “o texto mais popular do moderno teatro brasileiro”. Em 1956, abandona em definitivo a advocacia para tornar-se professor de Estética na UFPE. Ainda assim, nos anos seguintes, jamais deixou de lado sua verve literária. Carlos Newton Júnior destaca sua produção predileta do autor, no campo das artes plásticas, ao mesmo tempo em que lamenta certa falta de reconhecimento de parte da crítica à genialidade de seu personagem de estudo. “Creio que as vinte iluminogravuras, trabalho em que ele associa poemas a imagens, que formam os dois álbuns publicados na década de 1980 – Sonetos com Mote Alheio e Sonetos de Albano Cervonegro – dão bem a medida do seu trabalho enquanto artista plástico. Há, além disso, pinturas em madeira, em papel e tapeçarias. De uma maneira geral, a crítica – sobretudo a que se faz em Pernambuco – não compreende a proposta do Movimento Armorial. Por mais inacreditável que possa parecer, dizem, por aqui, que o Movimento ‘quer resgatar a Idade Média’, entre outras tolices. Quando, na verdade, foi e continua sendo uma ação importantíssima, no sentido de apontar uma direção para artistas que acreditam que a arte universal deve ser, antes de tudo, local, universalizando-se depois pela qualidade.”
UMA RELAÇÃO PROFISSIONAL, PAUTADA PELO AFETO Jornalista, Adriana Victor foi assessora de imprensa de Ariano em seu primeiro mandato como secretário de Cultura de Pernambuco, no período de 1995 a 1998. Depois, foi secretária adjunta na mesma pasta, na segunda gestão do escritor. Foi repórter da TV Globo e diretora da coluna O Canto do Ariano, produzida pela TV Globo Recife e exibida também pelo MultiShow e pelo Canal Brasil – canais por assinatura. Ainda emocionada, impactaJORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014
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HOMENAGEM O UNIVERSO ÁRIDO E FÉRTIL DE SUASSUNA
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Suassuna gostava especialmente da minissérie O Auto da Compadecida, dirigida por Guel Arraes e estrelada por Selton Mello e Matheus Nachtergaele, que encarnaram Chicó e João Grilo.
encenada. Ariano ficou extremamente feliz, muito satisfeito com o resultado. O Auto da Compadecida, veja só, teve três adaptações para o cinema. A primeira, de 1969, teve ativa participação do autor. Francisco Brennand pintou, a pedido de Ariano, cada um dos figurinos. Ele também gostava da versão de Os Trapalhões, dirigida por Roberto Farias, em 1987. E muito, é claro, da que foi levada à frente por Guel Arraes, para a tv e, depois, para o cinema”. Os três diretores citados por Adriana Victor também lamentaram a morte do autor. “Eu conheci Ariano desde menino e o encontrei várias vezes ao longo de todo esse tempo. Admirava-o duplamente, pelo grande artista que foi e pela forma como levou sua vida, sempre coerente com sua forma de pensar, com suas convicções. Ele viveu sua obra e sua obra é a transfiguração de sua vida. Ariano foi um humanista brasileiro. Além de um grande escritor, foi o pensador de uma arte nacional, e um pensador do nosso País como um todo. A literatura foi o seu ponto de partida, mas isso se expandia por outras áreas. A gente fica muito mais pobre. Quem tem essa cabeça e esse conhecimento pra pensar com tanta amplidão o Brasil?”, questionou Guel Arraes. “Sempre fui um grande admirador e sinto muito a morte dele. Ele era uma pessoa extraordinária. A primeira vez que me comuniquei com ele para fazer uma adaptação do Auto da Compadecida foi 25 anos antes, mas não foi um primeiro bom contato. Ele dizia que eu tinha brigado com ele. Acontece que ele não me conhecia, eu ainda estava no início da carreira, e ele não autorizou. Mas 25 anos depois, ele me atendeu com alegria, como se lembrasse de mim daquele primeiro contato. E foi maravilhoso, ele me deu o texto. Era meu sonho fazer uma adaptação do Auto desde a década de 1960. Eu considero um privilégio ter tido a oportunidade de fazer uma obra com um texto dele”, festeja Roberto Farias. Luiz Fernando Carvalho, que já adaptou três obras de Suassuna para o vídeo,
fez questão de ir ao Recife para se despedir do amigo. Ele contou que está trabalhando em cima de mais um livro do escritor, A História de Amor de Fernando e Isaura. “Eu adaptei os extremos de Ariano: A Farsa da Boa Preguiça, Uma Mulher Vestida de Sol e também a Pedra do Reino... Foi uma grande viagem de aprendizado, de
troca de afeto, de conhecimento do País, de sua gente, de sua cultura. Você perguntava sobre a diferença entre jagunço e capanga e vinha uma aula sobre Geografia, sobre música sertaneja, sobre Geologia, sobre canto. Ariano era um tesouro, um cometa raro”, comentou o diretor, que mora no Rio de Janeiro, e se recorda ainda dos intantes de trabalho junto ao mestre, quando das adaptações que produziu. “Nesses momentos, éramos duas crianças. Ficávamos no chão da casa dele, recortando as xerox das peças, dos livros, para que as páginas ficassem perto da gente. A gente ficava recortando frases, palavras, a adaptação era como se fosse uma colagem de vários pedacinhos de papel.” A pedido do Jornal da ABI, Adriana Victor define a relação de Ariano com Eduardo Campos, neto de Miguel Arraes e candidato à presidência do Brasil pelo PSB, morto em acidente aéreo ocorrido no dia 13 de agosto, em Santos/SP. “Era uma relação de respeito e admiração recíprocos. Ariano conheceu Eduardo criança: ele era amigo do escritor Maximiano Campos, pai de Eduardo, a quem ele chamava Dudu. Viviam na mesma rua, em
GUILHERME GONÇALVES/ABL
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CEDOC/REDE GLOBO
da pela morte do amigo, Adriana concedeu entrevista ao Jornal da ABI. “O conheci em 1995. Ele tinha assumido a Secretaria de Cultura, no Governo Miguel Arraes. Eu, jornalista, sonhei em ser a sua assessora de comunicação – estava trabalhando como repórter de televisão havia alguns anos e queria mudar a vida. Mas fui informada de que Ariano preferiria que todos os seus assessores fossem artistas: era o caso, por exemplo, de Mestre Salustiano, do Maracatu Piaba de Ouro, e do músico Antônio Madureira. Assessor de comunicação não estava nos planos dele. Pedi, então, para conhecê-lo, e ele topou me receber. Conversamos uma boa meia hora – conversa que fluiu, encaixou-se, afinou-se, naturalmente. Ao final, não pedi nada, ele não me prometeu nada. Dias depois, recebi um telefonema solicitando que eu levasse minha documentação para a contratação como assessora de comunicação”, recorda-se. A partir daquele momento, uma relação especial se desenvolveu. “Durante quase vinte anos, não tivemos um desentendimento, nenhum atrito, nada. Muita afinidade, muito respeito – e, de minha parte, uma admiração profunda, que só aumentou, dia após dia. Apesar dos 40 anos que nos separavam, digo sempre que nunca o vi como um pai, como muitos pensavam. Ariano era meu amigo, meu grande amigo. Alguém a quem eu aprendi a conhecer profundamente: o marido apaixonado, o pai e avô afetuoso, o intelectual brilhante, o escritor raro”, revela Adriana, que segue na descrição da personalidade do mestre. “Ele tinha um senso de humor muito intenso – mas nada ranzinza. Dizia-se ‘animoso’. E era. Sempre achava motivo para a graça, para o riso. Como filósofo que era, estudava o risível sob a ótica da filosofia e criava as suas próprias teorias. Confessava admirar o povo brasileiro, entre outras coisas, pela capacidade de achar graça em momentos, às vezes, difíceis. Por exemplo, transformar em piada as grandes derrotas da seleção brasileira. Sempre tinha uma história, quase sempre divertida, engraçada.” Investida delicada, e que gera desconforto a muitos escritores, as adaptações de obras literárias para as telinhas, telonas ou palcos faziam a alegria de Suassuna, garante a jornalista. “Ele gostava muito. Poderia ter uma ou outra observação a fazer – mas, dificilmente, a fazia publicamente. Ariano lembrava que foi procurado pela TV Globo, na década de 1970, para que suas obras fossem levadas à programação. Impôs condições que, na época, não foram aceitas pela emissora – como escolher a trilha sonora. Ele chegaria à televisão só em 1994, pelas mãos cuidadosas e cheias de talento de Luiz Fernando Carvalho. Havia uma sintonia fina e rara entre Ariano e Luiz. A obra escolhida foi Uma Mulher Vestida de Sol, primeira peça escrita por ele e nunca
casas que ficavam frente a frente. Depois, Eduardo casa-se com Renata, sobrinha de Zélia Suassuna, viúva de Ariano. Tinham muita afinidade política, acreditavam no crescimento do Brasil, na garra e na força do povo brasileiro. Logo que soube da morte de Eduardo, pensei: pelo menos essa tristeza Ariano, que foi secretário também na gestão de Campos, não viveu.” (Leia perfil de Eduardo Campos nesta edição do Jornal da ABI) Visivelmente emocionado com a perda do ‘grande professor’, o próprio Eduardo Campos lamentou a morte de Ariano. “O Brasil perde a maior expressão da cultura popular brasileira. Nós perdemos um amigo, um conselheiro, uma referência de toda a vida. Mas Ariano deixa um exemplo de dignidade, que todos nós brasileiros devemos seguir. Exemplo de austeridade, amor ao povo e amor ao Brasil, amor à cultura e à ética. Então, viva a Suassuna e ao seu exemplo de vida!”, declarou, cerca de três semanas antes do acidente que o vitimou. Para Adriana Victor, Ariano deixa como legado sua obra e, sobretudo, seu compromisso para com o Brasil. “Ele defendia, com todas as armas de que dispunha, a valorização da cultura brasileira. Como alguém que cresceu no sertão, região que tanto admirava, talvez tenha ressaltado, na defesa da cultura do Brasil, a alma e as verdades sertanejas. Mas era do Brasil que ele falava, o tempo todo. Acho que deixou muitos admiradores – não gostava da palavra ‘fã’. Os músicos Antônio Nóbrega e Antônio Madureira, os artistas plásticos Romero de Andrade Lima e Manuel Dantas Suassuna. Dantas, pintor de talento incontestável, tinha a sincera e intensa admiração do pai. Agora, tem um legado, um patrimônio, uma herança de arte. E de idéias, de crenças, de fé. Depois da alegria ao ver uma das exposições de Manuel Dantas, Ariano escreveu, repetindo um ditado popular: ‘Triste dos pais que não vêem seu filho ir adiante deles’”, conta.
REPERCUSSÃO DE PESAR JUNTO À CLASSE ARTÍSTICA Também citado por Adriana, o músico pernambucano Antônio Nóbrega, um dos fundadores do Movimento Quinte-
Quatro trabalhos do artista plástico, Ariano Suassuna: No alto, à esquerda, Insígnia Astrológica de Quaderna, técnica mista sobre papel a partir de desenho de A Pedra do Reino; à direita, A Morte Caetana, tapete criado a partir de uma ilustração originalmente publicada em O Rei Degolado. Ao lado, a iluminura O Campo, Tema do Barroco Brasileiro, e acima, um exemplo de pintura sobre cerâmica.
to Armorial, escreveu um texto em seu site oficial em que relembra sua parceria com o escritor. “Conheci Ariano em 1970 quando fui convidado por ele a integrar o Quinteto. Na ocasião, ele acabara de publicar o seu livro, o Romance d’A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai e Volta, e foi por meio dessa obra que adentrei no Mundo Ariano. Minha ligação com ele foi imensamente frutífera: anos de convivência quase que cotidiana durante a fase de apresentações do Quinteto; musiquei alguns de seus poemas, representei o personagem Joaquim Simão da sua peça A Farsa da Boa Preguiça numa versão realizada pela TV Globo; inspireime em seus ‘amarelinhos’ para construir o meu personagem Tonheta. E sobretudo isso: foi a partir do meu encontro com ele que minha maneira de fazer arte, entender cultura e ver o mundo ganhou outras e novas dimensões”. O artista segue em sua análise. “Ariano teve, e continuará tendo, um papel absolutamente imprescindível, vital para a arte e cultura brasileiras. Foi escritor versátil – dramaturgo, romancista, poe-
ta, cronista, ensaísta – e um misto de empreendedor, ativista e animador cultural. Todas essas suas atividades tiveram como pano de fundo a visceral paixão pelo povo e pela cultura brasileira, uma tão intensa amorosidade só comparável àquela de brasileiros como Mário de Andrade e Darcy Ribeiro. Ariano há muito vinha escrevendo o que, segundo ele, seria a sua obra síntese. Esse livro tive a oportunidade de ‘escutá-lo’ inúmeras vezes quando o visitava. Ariano tinha um enorme prazer em ler trechos dele para nós, amigos que o visitávamos. Por alguma razão desconfiava que essa sua obra não seria publicada em vida. Ainda terá muito a nos revelar. Uma vida desse tamanho e quilate não se extingue com a morte. Como ele dizia, em tom de brincadeira, referindo-se à sua entrada na Academia Brasileira de Letras: ‘Não quero ser um imortal, quero ser imorrível’”, diverte-se Nóbrega. Em tempo: na ABL, Ariano ocupava, desde 1990, a cadeira 32, cujo patrono é Manuel José de Araújo Porto Alegre, o barão de Santo Ângelo. Presidente da ABL, Geraldo Holanda Cavalcanti divulgou nota oficial. “A
morte de Ariano confrange e entristece a Academia Brasileira de Letras. No espaço de um mês, é o terceiro grande acadêmico que parte. Estendemos à família nossos profundos sentimentos de pesar. E à multidão de seus amigos, leitores e admiradores no Brasil e no mundo, nossa solidariedade pela imensa perda. Ariano reunia em sua pessoa as extraordinárias qualidades de homem de letras e de intelectual no melhor sentido da palavra, alguém que, dispondo de uma cultura invulgar, era, ao mesmo tempo, um homem de ação. À sua maneira ocupava-se e preocupava-se com os problemas sociais, focado nos da sua região. Não podemos esquecer seu engajamento com o Movimento Armorial, através do qual buscava revigorar a identidade nordestina e suas peregrinações levando, com humor, sua mensagem por todo o Brasil”, disse Holanda. Maria Amélia Mello, editora da José Olympio (leia perfil na página 16), que publica a obra de Ariano, confirma o depoimento de Antônio Nóbrega. Havia, de fato, um novo romance em produção. O livro se chamaria O Jumento Sedutor e estava sendo elaborado ao longo das últimas três décadas. “Eu já tinha recebido uma versão que seria a final, mas, em maio, ele me pediu para fazer algumas modificações. Prometeu entregar logo, agora no início do segundo semestre, a nova versão, para que pudéssemos preparar tudo e lançá-lo até o fim do ano. A idéia era viajar o Brasil para divulgar a obra. É um romance, bastante robusto e com muitas particularidades da obra do Ariano, como molduras nas páginas. Só não posso falar sobre o enredo porque ele havia me pedido para não comentarmos”, revelou Maria Amélia. O título seria uma referência ao romance O Asno de Ouro, lançado pelo escritor romano Apuleio no século 2. “A publicação, agora, depende de como ele deixou o livro e do interesse da família. Para a José Olympio, que sempre foi a casa do Ariano, será uma satisfação lançá-lo. Também tínhamos um projeto de fazer uma publicação com as poesias dele, uma parte de sua obra menos conhecida”, conclui a editora. JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014
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HOMENAGEM O UNIVERSO ÁRIDO E FÉRTIL DE SUASSUNA
Junto com Alexandre Nóbrega, genro de Ariano, Carlos Newton Júnior transcrevia as cópias feitas à mão. O texto final de O Jumento Sedutor tem cerca de 300 páginas. “O problema é que o livro, para ser editorado, demanda certo tempo, sobretudo para a inserção das ilustrações, também de autoria do Ariano”, diz o professor. “Este é um grande e extraordinário texto, onde ele reuniu prosa de ficção, cantoria, poesia, repente e teatro”, afirma o escritor Raimundo Carrero, um dos privilegiados que já leram a obra e que, a convite de Ariano, escreveu o prefácio da mesma. E, para quem achava que o autor nutria algum tipo de ressentimento em relação à disparidade entre o apelo popular de seu teatro e o de sua literatura, Carrero garante o contrário. “Nunca o ouvi reclamar de nada. E ele era muito bem lido, basta lembrar que A Pedra do Reino tem mais dez edições, o Auto da Compadecida foi lido e visto por milhares de pessoas em todo o mundo.” No teatro, foi montado ininterruptamente desde os anos 1950, contando com encenações de grandes nomes como Ziembinski (O Santo e a Porca), Ademar Guerra (Auto da Compadecida), Aderbal Freire-Filho (A Farsa da Boa Preguiça) e
Antunes Filho (A Pedra do Reino). “Dolorosa notícia a da morte de Suassuna, que considero, ao lado de Nelson Rodrigues, dramaturgos maiores do teatro brasileiro. Não fosse suficiente também considerá-lo um dos nossos grandes romancistas, depois de Guimarães Rosa, com a obra A Pedra do Reino”, lamentou este último. “Ariano nasceu em meio à aristocracia rural de Recife, e então relaciona com intensa paixão esse passado culto com toda a cultura popular. Essa é a importância dele e do seu teatro. Hoje observamos um teatro cada vez mais desligado do povo, por conta de todo esse colonialismo cultural. Então as pessoas olham para cima, para o hemisfério Norte em busca de referência, enquanto brota daqui uma cultura riquíssima. Ele era um nobre artista, como foi Tolstói, está no DNA de toda a humanidade, assim como Cervantes. Quando alguém desse tamanho morre, imediatamente se torna imortal. E a partir daí, no curso da História, Ariano vai aparecer e sumir, aparecer e sumir, aparecer e sumir...”, decretou o dramaturgo e diretor José Celso Martinez Corrêa. Afeita aos palcos, a atriz Inez Vianna teve a oportunidade de estreitar os laços artísticos com o escritor nascido na Paraí-
ba, mas radicado em Pernambuco. Ela dirigiu a versão para os palcos de As Conchambranças de Quaderna, espetáculo que faz longa carreira desde sua estréia, em 2009. “Queria que minha primeira direção teatral fosse uma obra de Ariano. Então, fui no Recife ao seu encontro, para que ele me indicasse uma. Ele me falou dessa peça, e eu adorei e ainda criei a Cia OmondÉ, uma expressão usada no texto. O espetáculo reúne duas peças numa só, ligadas por um mesmo narrador, Dom Pedro Diniz Quaderna, personagem principal do famoso romance Romance d’A Pedra do Reino. A primeira, conta a saga de duas irmãs prometidas em casamento, onde o noivo de uma delas, no dia do matrimônio, resolve que quer se casar com outra, gerando uma grande confusão. Já na segunda história – baseada em fato real publicado num jornal nordestino – uma mulher resolve fazer um pacto com o diabo, para que este leve para o inferno o seu marido, junto com a amante”, resumiu ao Jornal da ABI. Inez não tem dúvidas ao apontar o que há de mais especial na obra do dramaturgo. “Me impressionam a atemporalidade
e a capacidade que ele tinha de se inspirar no popular para se chegar no erudito. E, ao contrário do que muito pensam, não é difícil transpor o universo de Ariano para os palcos. Basta você não cair na armadilha de criar uma caricatura dos signos nordestinos, de seu universo mítico. Sua obra é universal, e não regional”. As Conchambranças de Quaderna está em cartaz há cinco anos, mas diretora e autor se conheceram bem antes. “Conheci Ariano em 1998, no camarim do Teatro Santa Isabel, no Recife, ao final de uma peça que eu fazia com Arlete Salles e Laura Cardoso. Chegou com Zélia, sua mulher, seu filho Dantas e sua nora Denise. Foi logo contando suas histórias hilárias, e aí me apaixonei... Era meu amigo desde 1999, quando dirigi e produzi o documentário Cavalgada à Pedra do Reino, onde ele foi o narrador principal.” Na visão da atriz, Ariano tinha a necessidade de transmitir o que sabia. “E era para o povo brasileiro que ele queria falar, levantar sua auto-estima, mostrar que temos uma cultura rica, que não precisamos imitar ninguém. Fez disso sua ban-
O Movimento Armorial A ação coordenada por Ariano tem como meta elaborar uma arte de natureza erudita a partir de ingredientes típicos da cultura popular. Esta corrente artística foi lançada no dia 18 de outubro de 1970, em um ritual consagrado na Igreja de S. Pedro dos Clérigos, no bairro de São José, no Recife, acompanhado por uma mostra de artes plásticas e pela apresentação da Orquestra Armorial de Câmara, que tinha então como regente o maestro Cussy de Almeida. É marcada principalmente pela tendência de sintetizar elementos e figuras da cultura do povo nordestino e obras clássicas da literatura universal. Esta mistura de gostos e expressões é o móvel que inspira o tempo todo o autor e seus companheiros do Movimento, que foi criado para fazer face ao massivo domínio dos imperativos culturais norte-americanos no Brasil. Buscava fazer valer o legítimo regional, em contraposição à importada cultura de massa. Os integrantes do Movimento tinham como objetivo empenhar todas as modalidades artísticas nesta direção – música, dança, literatura, artes plásticas, teatro, cinema, arquitetura, entre outras expressões. Assim, figuras de todos os campos se uniram neste esforço nos anos 1970: 8
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Convidado por Suassuana em 1971, o consagrado mestre gravurista Gilvan Samico, integrou o Movimento Armorial. É de sua autoria a gravura Alexandrino e o Pássaro de Fogo, que ilustra a capa do primeiro lp do Quinteto Armorial, do qual fizeram parte José Madureira e Antônio Nóbrega. É de Samico também a xilugravura A Tentação de Sto. Antônio (direita).
Antônio Nóbrega, Antonio José Madureira, Capiba, Jarbas Maciel e Guerra Peixe, dentre outros. No campo da música, essa escola está vinculada à produção da literatura de cordel, à moda de viola, a instrumentos como a rabeca. As capas de seus trabalhos são manufaturadas com a técnica própria da Xilogravura. A expressão ‘armorial’, um substantivo em nossa língua, sempre teve o sentido de ‘livro de registro de brasões’. Propo-
sitalmente, Suassuna conferiu-lhe um caráter adjetivo, para que assim ela definisse qualitativamente o canto do romanceiro, os acordes da viola e os demais elementos que tecem o movimento. Sob a coordenação do escritor, a ação deslanchou, com a participação ativa de diversos artífices e escritores do Nordeste brasileiro e o suporte essencial do Departamento de Extensão Cultural da Pró-Reitoria para Assuntos Comunitários da
UFPE, conquistando também o auxílio oficial da Prefeitura do Recife e da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco. O Movimento deu um impulso significativo à cultura brasileira, permitindo que ela fosse respeitada em todo o Planeta. Por vezes, mais lá fora do que aqui dentro. E não se restringiu ao âmbito cultural, uma vez que estendeu sua influência ao universo da moda e do comportamento.
deira. Amava profundamente o Brasil Real, e quis conhecê-lo de perto. Nestes últimos anos, não só continuou a escrever, como também percorreu o Brasil de Norte a Sul e de Leste a Oeste, lotou teatros e praças, com suas aulas-espetáculo. E ao seu lado, sua incansável musa inspiradora, Zélia Suassuna, a quem ele dedicou toda sua obra e todo seu amor. Além de generoso, culto, inteligente, carinhoso, era muito, mas muito engraçado. Dizia ser metade rei, metade palhaço.” Fernanda Montenegro lamentou não somente o falecimento de Ariano, mas o período marcado por perdas inestimáveis para a cultura brasileira. “O conheci por volta de 1957, quando estreou o Auto da Compadecida. E nos aproximamos muito. É muito triste. Esta é uma geração que sempre lutou por esse País, que travou batalhas pela liberdade de expressão. Além de autor e professor, tinha disposição de atuar. De modo que era também um ator. Um homem de cultura imensa, que tem aquele Nordeste esculpido na alma. É uma situação extremamente insuportável esta perda. Ele vai seguindo João Ubaldo Ribeiro e Rubem Alves. Quem vai substituir essas pessoas? São pessoas que sustentaram a cultura e o social des-
o corpo foi enterrado no Cemitério Morada da Paz, em Paulista, no Grande Recife, no final da tarde de 24 de julho. A defesa da cultura nacional, de tão radical, muitas vezes rendeu ao escritor o rótulo de xenófobo. Em sua cruzada contra a invasão da indústria cultural norteamericana, falava mal de Madonna e Michael Jackson. A primeira, foi por ele docemente chamada de ‘débil mental’. Em relação ao rei do pop, Suassuna não foi mais complacente. “Eu daria a Michael Jackson o título de representante número um do lixo cultural. Mas eu já estou com pena dele, porque os americanos inventam um mito assim falso como ele e depois destróem”. Sem piedade, detonava os Estados Unidos. “Estendo meu horror ao terrorismo aos atos praticados pelos americanos. O pior terrorismo é o de Estado. As pessoas que derrubaram as torres de Nova York: é um ato reprovável, mas são corajosos. Enfrentaram e morreram. O terrorismo de Estado é ao abrigo de qualquer risco”, declarou em entrevista à Folha de S.Paulo. Adriana Victor diz acreditar que, caso pudesse escolher, Suassuna gostaria que sua obra poética fosse mais conhecida. “Ele dizia que ‘na Literatura que me entu-
siasma, a poesia é sempre o chão sagrado no qual a prosa Armorial viceja’. No romance que escrevia desde 1981, a obra poética também estava presente”, confirma ela. No campo da poesia, destacam-se na sua obra títulos como O Pasto Incendiado, Sonetos com Mote Alheio e Os Homens de Barro. Apesar de polêmico aos olhos de alguns leitores, controverso na avaliação de parte da crítica, Ariano desfrutou em vida o devido reconhecimento e prestígio que merecia. É o que garante a ex-assessora do escritor. “Claro, há os que não gostam, há os que discordam. Até com isso ele brincava, dizendo: ‘divido o mundo em duas partes. Os que concordam comigo e os equivocados’. Quem o conhecia bem sabia que essa era uma grande brincadeira. Nos últimos tempos, ele ficou muito feliz com a visita do escritor Valter Hugo Mãe que, em passagem por Pernambuco, pediu para conhecer Ariano. Depois, escreveu um lindo texto, onde afirmou: ‘É de uma candura magnífica e coloca-nos num patamar de dignidade superior. Como amigos. Quem assim recebe, recebe como amigo’. Acho a descrição muito fiel ao que Ariano de fato era: tinha uma capacidade ímpar de nos dignificar.”
“A globalização é o novo nome do imperialismo, e o gosto médio é uma peste, é muito pior do que o mau gosto.”
“Sempre me vêm com estatísticas, tentando provar que viajar de carro é mais perigoso, que as estradas são cheias de buracos. E eu respondo: ‘Pior é no avião, que o buraco acompanha a gente o tempo inteiro.’”
DIVULGAÇÃO/JOSÉ OLYMPIO
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se País. A grande arte de escrever, a grande arte de interpretar, a grande arte de objetivar a visão do Brasil. Acho justo que se homenageie sempre, e que não se deixe morrer este tipo de gente.” Aos milhares, familiares, amigos e admiradores passaram pelo Palácio do Campo das Princesas, sede do governo de Pernambuco, para se despedir do escritor, velado no local a partir da noite do dia 23. Lá também estiveram autoridades, como a Presidente da República Dilma Rousseff, o Governador do Estado, João Lyra Filho, que decretou luto oficial de três dias, e o presidenciável Eduardo Campos. Ao som da rabeca, dos chocalhos e da batucada do maracatu, o bloco carnavalesco O Galo da Madrugada prestou sua última homenagem. Antes da partida para o cemitério, os presentes cantaram o hino do bloco Madeira do Rosarinho, canção sempre entoada por ele e que está para Pernambuco como Cidade Maravilhosa para o Rio de Janeiro. Ariano era torcedor fanático do Sport Club do Recife e muitos fãs apareceram no velório com a camisa do clube. Durante todo o velório, o caixão esteve coberto com bandeiras do Brasil, de Pernambuco e do time do coração. Após 16 horas de velório e desfile em carro aberto,
Algumas das frases mais brilhantes de Ariano...
“Tenho duas armas para lutar contra o desespero, a tristeza e até a morte: o riso a cavalo e o galope do sonho. É com isso que enfrento essa dura e fascinante tarefa de viver.” “Eu sou um péssimo ator. Não sou só o pior ator vivo, eu sou o pior ator vivo e morto.” “Tem gente que não gosta de adjetivo em texto. Eu confesso que não sei escrever nada sem adjetivo.” “Não tenho medo da morte. Na minha terra, a morte é uma mulher e se chama Caetana. E o único jeito de aceitar essa maldita é pensando que ela é uma mulher linda.” “O Brasil tem uma unidade em sua diversidade. A gente respeita a cultura gaúcha, nordestina, amazônica. O que é ruim é este achatamento cosmopolita. Você liga a televisão e não consegue distinguir se um cantor é alemão, brasileiro ou americano, porque todos cantam e se vestem do mesmo jeito.”
“Acredito que toda arte é local, antes de ser regional, mas, se prestar, será contemporânea e universal.” “Os doidos perderam tudo, menos a razão. Têm uma (razão) particular. Os mentirosos são parecidos com os escritores que, inconformados com a realidade, inventam outras.” “Arte pra mim não é produto de mercado. Podem me chamar de romântico. Arte pra mim é missão, vocação e festa.” “O otimista é um tolo. O pessimista, um chato. Bom mesmo é ser um realista esperançoso.” “Estendo meu horror ao terrorismo aos atos praticados pelos americanos. O pior terrorismo é o de Estado. As pessoas que derrubaram as torres de Nova York: é um ato reprovável, mas são corajosos. Enfrentaram e morreram. O terrorismo de Estado é ao abrigo de qualquer risco.” “Não troco o meu ‘oxente’ pelo ‘ok’ de ninguém!”
“Já me disseram que eu quero colocar a cultura brasileira dentro de uma redoma de vidro pra que ela não se contamine, e isso é bobagem. Sou a favor da diversidade cultural brasileira. Só não admito é a influência de uma arte americana de segunda classe.”
“Eu tenho dentro de mim um cangaceiro manso, um palhaço frustrado, um frade sem burel, um professor, um mentiroso, um cantador sem repente e um profeta.” JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014
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Bala de borracha fere liberdade de imprensa Justiça paulista conclui que fotógrafo tem “culpa exclusiva” por ter sido atingido no olho, em pleno exercício da profissão. P OR C ELSO S ABADIN
A absurda decisão judicial sobre um caso acontecido há mais de 14 anos caiu como uma bomba (e não como uma bala de borracha) não só nos meios jornalísticos, mas também como em toda a sociedade brasileira que preza pela democracia e pela liberdade de expressão. A 2ª Câmara Extraordinária do Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo, em 28 de agosto de 2014, considerou que o fotógrafo Alex Silveira, que em 18 de maio de 2000 foi atingido pela Tropa de Choque da Polícia no olho esquerdo, enquanto cobria manifestação de professores da rede estadual pelo jornal Agora São Paulo, do Grupo Folha de S.Paulo, não deve receber nenhuma indenização por parte do Estado. Motivo: segundo a Justiça, foi o próprio fotógrafo que se colocou conscientemente em situação de perigo e, portanto, se existe algum responsável pela perda de 80% da capacidade de visão de seu olho, este responsável é o próprio profissional. A decisão reverte o julgamento de primeira instância, vencido por Alex Silveira, que teria direito a receber 100 salários mínimos como indenização. Na visão turva do relator do processo, desembargador Vicente de Abreu Amadei, a conduta dos professores manifestantes justificou a reação da Tropa de Choque em plena Avenida Paulista, que abriu fogo com bombas de efeito moral e disparos de balas de borracha. Para ele, assim, a ação do Estado foi lícita. E o fotógrafo de forma consciente (e, conseqüentemente, irresponsável), não zelou pela própria segurança. Para espanto e indignação de quem busca uma sociedade livre, diz o relator Amadei: “Não há, contudo, nas provas dos autos, plena certeza em relação ao objeto contundente que feriu o autor, nem àquele que foi pessoalmente responsável por isso, nem até mesmo, se partiu de ação dos policiais ou dos manifestantes: a) o ambiente era de confusão ou tumulto, com recíprocos lançamentos (pelos policiais e pelos manifestantes) de objetos próprios ao efeito contundente; b) a perícia, neste ponto, foi inconclusiva, destacando não ser ‘possível estabelecer qual foi o agente contundente’ ; c) apenas uma testemunha presencial aponta o disparo de bala de borracha, subsequente à explosão de uma bomba de efeito moral, como a causa material da lesão, 10
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Em solidariedade a Alex Silveira, jornalistas fazem campanha contra decisão judicial que pune a vítima.
mas o próprio autor, quando ouvido extrajudicialmente, declinou sua incerteza, dizendo, quanto ao objeto, que apenas ‘imagina ter sido bala de borracha’, observando, entretanto, que o médico que lhe atendeu, parecia descartar isso, bem como bomba de efeito moral, dizendo que ‘tiro não era porque não havia queimadura nem estilhaço de bomba’”. É desprezível a tentativa do relator em simplesmente desqualificar o depoimento de uma das testemunhas, ao questionar se era ou não uma bala de borracha o causador do ferimento. Amadei tenta jogar uma cortina de fumaça no fato inquestionável que o dano causado é consequência direta da violência desproporcional utilizada pela Tropa de Choque, não tendo a menor importância qual teria sido o objeto causador da lesão. Deixa-se em segundo
ou até terceiro plano o fato de um profissional da imprensa ter sido violentamente atingido em pleno exercício da profissão. Além de tentar desqualificar o depoimento da testemunha, Amadei também busca criminalizar o próprio ato reivindicatório em si: “As circunstâncias em que os fatos ocorreram não autorizam, a meu ver, a indenização por responsabilidade imputada ao ente público. Com efeito, destaque-se, de um lado, que o conjunto dos elementos probatórios dos autos não autoriza afirmar que tenha havido abuso ou excesso na referida conduta policial atrelada ao tal disparo, observando não só a circunstância de indevido bloqueio de tráfego de via pública pelos manifestantes, que insistiam nesta conduta ilícita, a justificar a repressão policial, bem como o tumulto conseqüente,
inclusive com lançamentos de pedras, paus e coco nos policiais, que também justificaram reação policial mais enérgica, com lançamento de bombas de efeito moral e disparos de balas de borracha, para dissipar a manifestação já qualificada, para além de ilícita, como agressiva”, diz. A conclusão chega a ter ares de sarcasmo: “Ora, no caso, o autor, embora não fosse um dos manifestantes (ou um daqueles que diretamente provocou o tumulto ou causou a reação policial), encontrava-se no local, como repórter fotográfico, no meio daquela confusão, ou seja, no tumulto, entre os manifestantes e os policiais, buscando extrair fotografias do que ocorria e, assim, realmente colocou-se em situação de risco ou de perigo, quiçá inerente à sua profissão. Permanecendo, então, no local do tumulto, dele não se retirando ao tempo em que o conflito tomou proporções agressivas e de risco à integridade física, mantendose, então, no meio dele, nada obstante seu único escopo de reportagem fotográfica, o autor colocou-se em quadro no qual se pode afirmar ser dele a culpa exclusiva do lamentável episódio do qual foi vítima”. E, seria cômico se não fosse absurdamente trágico, Alex Silveira ainda foi condenado a pagar as despesas do processo e da verba honorária de R$ 1.200,00. O juiz substituto em 2º grau Maurício Fiorito e o desembargador Sérgio Godoy Rodrigues de Aguiar também participaram do julgamento e acompanharam o voto do relator. Num flagrante caso de inversão de valores, onde a vítima vira ré, o caso lembra explicitamente os tristes anos onde as vítimas da ditadura “se suicidavam” sem dó nem piedade diante de seus torturadores. “A decisão causa-me uma grande dor”, diz Maria Isabel Azevedo Noronha, Presidente do Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São PauloAPEOESP. “Fomos parte daquele episódio e também sofremos a repressão da PM. Testemunhamos o momento em que o fotógrafo foi atingido, em maio de 2000, quando fazia uma foto da atuação desproporcional da Tropa de Choque em assembléia da APEOESP. Como Presidente do Sindicato, pedia calma a todos, especialmente aos policiais. Dezenas ficaram feridos. Espero que todas as vozes democráticas se levantem contra essa decisão e que as instâncias superiores da Justiça a revejam”, conclama Maria Isabel.
PRÊMIO VLADIMIR HERZOG A Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo -Abraji também se manifestou contrária à decisão da Justiça: “Não apenas o desembargador transforma a vítima em culpado. Na sua justificativa, ele considera que todo jornalista que cumpra o seu dever profissional de informar assume um risco e está por sua própria conta, desamparado pela sociedade. Por essa lógica, não importa que o jornalista seja alvo de uma violência nesse processo. A decisão do desembargador Abreu Amadei dá carta branca para que essa violência persista e, quiçá, se agrave, já que não é passível de punição. Trata-se, portanto, de uma ameaça à liberdade de imprensa”, diz nota oficial assinada pela diretoria da Abraji. A defesa de Alex Silveira vai agora recorrer da decisão, que pode chegar até o Supremo Tribunal Federal. “É uma decisão absurda, que reconhece que Alex foi atingido com uma bala de borracha disparada por um agente público, mas conclui que a culpa foi toda da vítima”, disse a advogada Virginia Veridiana Barbosa Garcia, do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian, que representa o fotógrafo. “A imputação de culpa à vítima mutilada no exercício da atividade jornalística configura uma clara ameaça à liberdade de imprensa”, concluiu.
REPRODUÇÃO
E as vozes democráticas se levantaram. No dia 10 de setembro, um encontro foi organizado pelo Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo-SJSP e pela Associação de Repórteres Fotográficos e Cinematográficos do Estado de São Paulo-ARFOC-SP. Entre os participantes, estavam vários profissionais do Jornalismo, amigos, colegas e ex-colegas de Alex, além de entidades como Conectas, Artigo 19, Advogados Ativistas e Associação Brasileira de Imprensa-ABI. Na ocasião, foi lançada a campanha “Somos Todos Culpados”, mostrando fotos de vários jornalistas utilizando um tapa-olho de pirata como símbolo contra as agressões, em repúdio contra a decisão da Justiça paulista. O presidente do SJSP, José Augusto de Camargo, afirmou que o acórdão do Tribunal de Justiça “lembra os piores anos da ditadura militar. É uma decisão que está a serviço do que existe de mais retrógrado na política brasileira, que é a proteção à violência praticada pelos agentes do Estado”. Em serviço fora da cidade, Alex Silveira não esteve no ato, mas enviou carta aos participantes da reunião, que foi lida por Sérgio Silva, outro repórter fotográfico também agredido pela Tropa de Choque da PM, durante as manifestações de 13 de junho de 2013 [veja o Box].
Rubens Paiva e Sandra Passarinho recebem homenagem P OR C ELSO S ABADIN
A palavra de Alex Silveira, em carta dirigida aos colegas “Carta aos companheiros. Não é necessário dizer a vocês o quanto a posição tomada por esse Júri me afetou. Na prática, fiquei sem chão e me sentindo um lixo quando soube dessa notícia. Obviamente no primeiro momento foi um misto de indignação e autopiedade, coisa que quem me conhece direito sabe que passa logo, pois sou muito mais teimoso em tudo que faço. Mas passado o susto da notícia, me veio o pior dos sentimentos, que foi o de me sentir literalmente “um boi de piranha” por tudo que vem acontecendo já há um tempo e com vários de nós. (Obviamente que estou citando a era pós-ditadura), na qual saímos pra trabalhar com convicção que somos abonados pela constituição e pelo direito de exercer nossa profissão livremente. E é isso que mais me preocupa e amedronta no momento. Pois permanecendo este parecer ridículo, todos nós estaremos em um grande perigo de uma nova ditadura, mas agora velada de interesses mesquinhos e danosos, e dando para os agentes do Estado um Salvo Conduto no qual o despreparo desses mesmos, certamente, causarão muitos danos, físicos,
morais e constitucionais, mas isso tudo é muito óbvio. Sobre essa decisão realmente não consegui encontrar outra forma de explicar tal absurdo: sim eu estava lá no cumprimento de minha profissão, entendeu o Juiz. Sim, foi a polícia a responsável pelo tiro que me atingiu no rosto (bala de borracha). Mas julgou com isso que eu tenho culpa por ter me colocado na frente da bala rs (podem rir, isso realmente foi cômico). E deixou claro que eu deveria ter deixado o local assim que o confronto começou. E o mais bizarro e perigoso “pra todos nós”: ele entendeu que ao permanecer no local eu “assumi o risco” de ter tomado o tiro. Bem, não acho que seja necessário falar sobre isso aqui entre nós, mas, alguém aí cobre, seja lá o que for, sentado na Redação? Obviamente, não! Enfim, no fim das contas entendi com tudo isso que essa decisão tem uma clara intenção de “colocarmos em nosso lugar”. Acredito que essa causa é maior que todos nós. Perdemos a nossa individualidade e nos tornamos um só Repórter, essa luta agora é de todos nós. Alex Silveira”
Já são quase 40 anos de história do que há de melhor no jornalismo brasileiro. Pela 36ª vez, centenas de jornalistas de todo o Brasil inscreveram suas matérias para concorrer ao Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos. Nesta versão 2014, o prêmio, considerado um dos mais sérios e importantes na categoria, fará um reconhecimento especial aos trabalhos que versem sobre a Democracia, a Cidadania e os Direitos Humanos, nas mais diversas mídias. São oito categorias: Artes (ilustrações, charges, cartuns, caricaturas e quadrinhos), Fotografia, Documentário de tv, Reportagem de tv, Rádio, Jornal, Revista e Internet. Além destas premiações, desde 2009 a Comissão Organizadora indica profissionais que serão agraciados com um Prêmio Especial por serviços jornalísticos prestados à Democracia, à Paz e à Justiça. Na verdade estas indicações vêm corrigir um descompasso que retoma a proposta original do Prêmio, que previa tais homenagens a personalidades que jamais inscreveriam seus trabalhos em qualquer tipo de concurso. Neste ano, receberão as homenagens a jornalista carioca Sandra Almada Laukenickas (uma das pioneiras da TV Globo, onde assumiu o nome profissional de Sandra Passarinho) e o político santista Rubens Paiva (in memoriam), cujo assassinato pela ditadura só foi finalmente confirmado mais de 40 anos após à sua morte (ocorrida em 1971), graças ao trabalho da Comissão Nacional da Verdade. Em anos anteriores, foram homenagea-
dos Lourenço Diaféria (in memoriam), David de Moraes, Audálio Dantas, Elifas Andreato, Alberto Dines, Lúcio Flavio Pinto, Perseu Abramo (criador do Prêmio, in memoriam), Marco Antônio Tavares Coelho e Raimundo Pereira. Assim como já ocorreu em 2013, os vencedores serão escolhidos em sessão pública, da forma mais aberta e transparente possível, com transmissão ao vivo pela internet. Para quem preferir acompanhar ao vivo, a sessão será no dia 30 de setembro, na Sala Oscar Pedroso Horta da Câmara Municipal de São Paulo. Já a cerimônia de premiação será em 29 de outubro, às 20 horas, no TUCA, em São Paulo. O 36º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos é promovido e organizado, atualmente, por nada menos que doze instituições: ABI/SP; Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo – ABRAJI; Centro de Informação das Nações Unidas no Brasil – UNIC Rio; Comissão Justiça e Paz da Arquidiocese de São Paulo; Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – ECA/USP; Federação Nacional dos Jornalistas – FENAJ; Fórum dos Ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo; Instituto Vladimir Herzog; Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil – OAB Nacional, Ordem dos Advogados do Brasil / Secção São Paulo, Ouvidoria da Polícia do Estado de São Paulo, Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo e Sociedade Brasileira dos Estudos Interdisciplinares da Comunicação – Intercom. JORNAL DA ABI 404 • AGOSTO DE 2014
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HUMOR
O PENSADOR DO BRASIL Homenagem da Flip e cinco livros ressaltam a importância de humorista para se compreender com lucidez a história do País nos últimos 60 anos. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
A coerência era uma das marcas do humor do jornalista, chargista, escritor, tradutor e dramaturgo carioca Millôr Fernandes (1923-2012). Em mais de 70 anos de carreira, com seu jeito inteligente de fazer rir, refinado e de bom gosto, jamais apelou para a piada fácil, o que fazia dele quase um outsider dos dias de intolerância e ofensas que correm nesse começo de século 21. Nunca chamou um Presidente da República de anta, mas também não fazia elogios. Tanto que jamais foi acusado de apoiar a situação. Millôr estava sempre do outro lado. Era cada um no seu canto do ringue e uma vida inteira de luta lúcida por valores que se ancoravam exclusivamente na liberdade. Preferia o boxe ao UFC. Ou seja, não batia abaixo da cintura nem aproveitava a fragilidade do adversário para acerta-lhe um soco na nuca. Deveria ser referência, hoje, a colunistas e humoristas destemperados, que procuram na agressão gratuita o efeito para chamar atenção e conquistar simpatizantes nas redes sociais. Millôr estava em outro nível. O do opositor leal. A não ser que o assunto fosse Machado de Assis. Certa vez, relacionou mais de 30 passagens de Dom Casmurro para fundamentar que aquele era, sim, um romance gay. Ou seja, entre os dois personagens masculinos da trama estava o real motivo da discórdia relacionada a Capitu. Em uma das entrevistas que fiz com ele – para a Gazeta Mercantil, Entrelivros, Brasileiros, Jornal da ABI –, contou-me que suas armas eram os mais de 200 dicionários de todos os gêneros que mantinha em seu escritório, espalhados em todos os cantos, porém ao alcan-
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ce das mãos. Não explicou, no entanto, como tirava dali alguma idéia para suas frases, que se transformaram ao longo do tempo em requintada filosofia de vida. Entenda-se como tal seu olhar único sobre comportamento, economia, política, relacionamentos. Sua lógica estava na habilidade nata em buscar o sentido das palavras para desnudar as distorções do poder e as aberrações do comportamento humano, com suas incoerências, fraquezas e contradições. Qualidades que, certamente, só o tempo dará a exata dimensão. Como morreu há somente dois anos, por enquanto Millôr faz muita falta quando se pensa em inteligência para avaliar os acontecimentos.
Essas sensações, no entanto, foram em parte amenizadas na virada de julho para agosto, com uma série de homenagens. Enquanto o Instituto Moreira SallesIMS realiza uma exposição a partir de um novo livro do artista, Millôr foi o homenageado da Flip 2014, a Feira Literária de Paraty, encerrada em 3 de agosto, ao mesmo tempo em que a editora Companhia das Letras manda para as livrarias quatro livros seus, dois deles dos mais famosos. Os eventos do IMS exploram o lado frasista do autor. Até o fim da vida, Millôr foi uma fonte inesgotável de frases de efeito sobre tudo relacionado à vida em sociedade, ao seu País e à própria existência. Entre janeiro de 1945, quando inaugurou a seção Pif-Paf, na revista O Cruzeiro, e 2003, com o lançamento pela Editora L&PM do antológico A Bíblia do Caos, ele produziu cerca de 15 mil máximas, aforismos, pensamentos, meditações e apotegmas. E muitos pensamentos foram criados nos oito anos subseqüentes. A primeira das frases que Millôr criou foi publicada no jornal Diário da Noite, em 1944: “Meu Bem é o nome de solteiro do marido”. Toda essa produção ainda não devidamente mapeada faz imaginar a dificuldade que o jornalista e crítico Sérgio Augusto teve para escolher apenas cem frases
que considerasse as melhores, a síntese de suas idéias, para a seleção que saiu pela primeira vez como encarte do volume Cadernos de Literatura, do instituto, dedicado ao artista, em 2003. Agora, ampliado e revisto, virou livro de luxo – Millôr 100+100 – Desenhos e Frases. A novidade é que cada aforismo vem acompanhado de um desenho selecionado pelo caricaturista Cássio Loredano. “Optei por imagens e fotos que dialogam com as frases”, explica o curador. Precisa é a definição que ele dá a Millôr: “Autodidata, franco-atirador, brioso ‘especialista em coisa nenhuma’, polímata de muitas faces e nomes (Vão Gôgo, Volksmillor, Milton à Milanesa), sábio sem diploma, foi um dos maiores pensadores do Brasil e seu mais divertido, desconcertante e inventivo filósofo, ainda que, abusando da falsa modéstia, preferisse identificar-se como ‘o maior leigo do País’”. Na apresentação do livro, Sergio Augusto conta que quando o IMS lhe pediu para fazer a seleção das frases, exclamou um “quanta honra!”. De imediato arrependido, porém, resmungou: “E agora?”. Reduzir o colossal repertório de Millôr a uma centena, prossegue ele, “é desafio tão árduo quanto escolher as quatro melhores músicas de Tom Jobim, os seis quadros mais deslumbrantes de Matisse, os três balés mais sublimes de Fred Astaire e os quatro gols mais empolgantes de Pelé”. E acrescenta: “É um recorde de quantidade e qualidade inigualado em nossa língua. A nenhuma delas – e não me refiro apenas às cem melhores que selecionei – Groucho Marx, Oscar Wilde, La Rochefoucauld, George Bernard Shaw, Ambrose Bierce e Woody Allen recusariam suas assinaturas”. Segundo Loredano, deu trabalho fazer a coletânea, mas a experiência foi divertida. “Millôr é escritor e desenhista. Nessa ordem: primeiro escritor”, enfatiza. “Não importa se o futuro se ocupará mais do
desenhista, inclusive porque sua obra literária está, obviamente, toda na rua, e a obra gráfica muito menos. Não interessa no momento se o futuro decretará, e não é impossível, que o desenhista seja maior que o escritor”. Importa, na sua opinião, dizer como ele se via e é visto agora: um homem de letras que desenhava. “Desenhista brilhante, não tinha a menor vaidade dos desenhos. E era vaidosíssimo de seus textos. É muito comum. A palavra, ele estava convencido, é mais subida, é um salto mais alto do espírito, e Millôr amava a palavra sobre absolutamente todas as coisas. Primeiro escreveu. Depois desenhou.” Ocupação Millôr No ano passado, o IMS adquiriu o acervo do herdeiro Ivan Fernandes e contratou Loredano para organizá-lo. A coleção totaliza sete mil desenhos originais e volumes encadernados de tudo que o artista publicou na imprensa. Estão lá tudo o que saiu na coluna Pif-Paf, a coleção original do jornal Pif-Paf (1964) e o que escreveu para a Veja, nas décadas de 1970 e 1980. “Ele era muito cuidadoso e organizado, caprichosíssimo”, observa Loredano, que acredita levar mais um ano para terminar o inventário. E muitos outros produtos devem nascer desse trabalho. Em setembro, por exemplo, será feita uma grande exposição no IMS. Estuda-se a volta das atividades do site do artista, com mais material, e uma série de livros. Enquanto isso, Millôr faz uma espécie de ocupação das livrarias, graças a um
projeto editorial importante da Companhia das Letras. O primeiro dos cinco livros lançados simultaneamente é Essa Cara Não me É Estranha e Outros Poemas. O volume é um exemplo de sua versatilidade e confirma o que ele sempre fez questão de se definir, não sem ironia, como um “escritor sem estilo”. Durante a sua produção intensa, transitou pelos mais diferentes tipos de linguagem, do cartum à dramaturgia, e ao se dedicar à poesia, sua faceta menos conhecida, mantinha a mesma abordagem iconoclasta, sem se preocupar com a busca por uma unidade temática nem se prender às formas fixas. Os poemas reunidos neste livro são descritos pelo editor como exercícios livres de criatividade, que se debruçam com um olhar atento, inteligente e bem-humorado sobre os mais variados assuntos: literatura, tecnologia, convenções sociais, política, pequenos dramas cotidianos, filosofia, cultura e gatos. Aqui, ele usa uma linguagem poética leve e sedutora, com versos daquilo que o notabilizou na imprensa, nas artes visuais e no teatro: expressar através do humor seu pensamento original e surpreendente – ou expressar um pensamento original e surpreendente como quem faz humor, segundo a apresentação dessa indispensável antologia. O volume Esta É Verdadeira História do Paraíso é relançamento do livro publica-
do em 1963, quando Millôr era um importante colunista da semanal O Cruzeiro, na época a revista mais lida do Brasil. Ateu desde menino, ele gostava de satirizar as passagens bíblicas e os dogmas religiosos, posição que arrebatou milhares de fãs, mas também incomodou os mais fanáticos, como atesta a história em torno da primeira publicação desta versão do Gênesis. Pressionada por “alguns carolas do interior”, segundo as palavras do autor, a direção da revista afirmou que este livro tinha sido publicado sem a sua autorização. A resposta de Millôr foi imediata e corajosa. Ele se desligou da revista depois de mais de duas décadas. Com o tempo, a obra passou a ser considerada uma das mais importantes do autor, com questionamentos que só poderiam ter saído de seu temperamento tão irreverente. Além do fac-símile publicado em O Cruzeiro, a nova edição reúne alguns dos principais quadrinhistas da atualidade, que deram a sua versão sobre a origem do mundo. Uma das seções mais populares de O Cruzeiro – que chegou a ter tiragem de 700 mil exemplares na década de 1950 – era uma página dupla de humor intitulada Pif Paf, assinada por um certo Emmanuel Vão Gôgo, cujo nome verdadeiro era Millôr Fernandes, um jovem precoce de vinte e poucos anos que trabalhava na imprensa desde os quinze. Primeiro livro do autor, publicado em 1949, Tempo e Contratempo reúne poemas, contos, crônicas, sátiras, pastiches e piadas visuais dos onze anos do autor na seção, que já na época alternava diferentes estilos com a naturalidade que só ele tinha. Luis Fernando Veríssimo diz, na apresentação deste volume, em relação ao interesse que o amigo tinha sobre os mais variados assuntos, que Millôr “andava (ou corria, ipanemamente, de sunga) entre as coisas deste mundo, amando tudo e acreditando em nada. Já tinha nos dito que a morte é hereditária, mas isso não era razão para nos resignarmos a ela. Tudo que fez na vida foi em desrespeito à morte”.
Dos tempos da ditadura militar (19641985) é The Cow Went to the Swamp – A Vaca Foi pro Brejo. Como diz a apresentação, foi a partir da sugestão de um amigo que Millôr começou a traduzir para o inglês expressões tipicamente brasileiras. As mais de seiscentas frases reunidas neste livro dão uma amostra da razão de o autor ser reconhecido como uma das mentes mais talentosas que o Brasil já teve. Nessa “master class” da tradução literária – ou da tradução literal –, ele ensina como dizer que fulano é “casca grossa” (thick bark), ou que um amigo “meteu os pés pelas mãos” (he stuck his feet through his hands), ou que chegou a hora de “tirar a barriga da miséria” (to take the belly from the wretchedness). Ao criar este antimanual de tradução, Millôr Fernandes capacitou o leitor a “tirar de letra” (to take of letter) as dificuldades de tradução sem “pisar na bola” (step on the ball). Compilação abrangente de expressões que não estão no “pai dos burros” (the father of the asses), mostra a irreverência inconfundível de um artista que melhor representou o Brasil em sua vasta produção.
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DANIELA DACORSO/AGÊNCIA O GLOBO
DEPOIMENTO
Neville d’Almeida “Hoje temos outra censura muito forte, a dos patrocinadores” P OR C ELSO S ABADIN
O cineasta mineiro Neville de Almeida (que também assina como Neville d’Almeida) foi um grande campeão de bilheteria na época da Embrafilme. Somente suas adaptações de Nelson Rodrigues (A Dama do Lotação, de 1978, e Os Sete Gatinhos, de 1980), venderam, juntas, mais de dez milhões de ingressos no País. Entre 1970 e 1991 dirigiu dez filmes, alguns deles jamais exibidos por problemas com a ditadura, e sempre foi uma pedra no sapato dos censores. Sem filmar desde 1997 (quando adaptou para o cinema a peça Navalha na Carne, de Plínio Marcos), Neville tenta voltar ao mercado com um novo projeto, mas esbarra numa dificuldade que desconhecia: a burocracia e os entraves oficiais em tempos de leis e editais. Jornal da ABI – Sem a censura da época da ditadura, nosso cinema hoje é livre? Neville de Almeida – Veja, o primeiro filme que eu fiz, Jardim da Guerra, em plena ditadura militar, em 1970, foi censurado e nunca foi lançado. O segundo filme, Piranhas do Asfalto, um ano depois, também foi censurado e nunca foi exibido. Isso seria suficiente para acabar com a carreira de qualquer um. Mas eu não pensei em desistir. Pensei em fazer meu terceiro filme mais barato, rodado em 16 milímetros, ao invés do tradicional 35, e exibi-lo clandestinamente, sem submetêlo mais à censura. Quem busca a liberdade precisa resistir, e não se resignar. Eu tinha esta idéia fortemente na cabeça porque, quando eu era garoto, eu via aqueles filmes americanos onde o mocinho cortejava a mocinha, se casava com ela, ele a carregava no colo, vestida de noiva, os dois iam para o quarto, se beijavam, e quando ia acontecer aquilo que todos queriam ver, a cena já corta para o dia seguinte, com ele servindo um suco de laranja para ela no café da manhã. Ora, todo mundo que estava naquele cinema ficava profundamente decepcionado, mas engolia. Só que eu, caipira, com 15 14
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anos de idade, pensava: “Se um dia eu fizer cinema, eu não vou fazer assim. Isso está errado, não pode ser assim”. O mundo, através do cinema americano, ficou impregnado por este moralismo, por esta coisa primária, hipócrita, mentirosa, que rouba do cinema as melhores coisas da vida. E não era assim que eu queria fazer. Jornal da ABI – Mas você pegou em cheio a pior fase da ditadura. Neville de Almeida – Viemos de um tempo de muita censura: moral, intelectual, política, policial... E tudo era muito, muito mais difícil. Quando há 35 anos eu passei o filme Os Sete Gatinhos no Festival de Gramado, fui ameaçado de ser preso e expulso da cidade. O secretário de Cultura de então ameaçou interromper o festival por causa do filme, mas o Gastal (Paulo Fontoura Gastal, crítico de cinema e um dos diretores da mostra na época) peitou o secretário e garantiu a exibição do filme e a continuidade do Festival. Ou seja, havia uma censura, mas também havia uma luta pela liberdade, uma resistência. Mas hoje a gente tem outra censura também muito forte, que é a censura dos patrocinadores e a censura institucional. Muitas vezes as pessoas pagam um preço muito caro para tentar falar as verdades universais através do cinema. Porque o cinema é uma arte cativa. A música é uma arte livre. Você pega o instrumento e toca o que quiser, como quiser, onde quiser. A literatura é livre, você pega e escreve o que quiser, onde quiser, como quiser. A pintura é livre. Mas o cinema, não. O cinema é uma arte industrial cada vez mais policiada e controlada pelos patrocinadores e pelos mecanismos dos editais. Hoje, um roteiro de Glauber Rocha jamais seria filmado. Veja este roteiro aqui, escrito pelo Glauber (Neville abre uma pasta repleta de anotações, esquemas, quadros e gráficos desenvolvidos a mão por Glauber Rocha). Nenhum edital aceitaria isso. Atualmente um roteiro, para participar de um edital, tem até tipo de letra certo, tamanho e espaçamento de
textos certos para poder concorrer, senão já é eliminado de cara. Não podemos aceitar este pensamento de “isso pode, isso não pode; isso tem que ser na luz, isso tem que ser no escuro; esta cena já está durando seis segundos e deveria durar cinco”. Que arte é essa, que liberdade é essa, que artista é esse, que hipocrisia é esta? O cinema é uma arte cada vez mais policiada. Jornal da ABI – Você não acredita em formulações para escrever roteiros? Neville de Almeida – Na hora de fazer um filme, de escrever um roteiro, não existe uma fórmula. Existe a capacidade criativa, a capacidade inventiva. Claro que existem elaborações técnicas, isso acontece, e tem muita gente que prefere trilhar este caminho, mas a elaboração técnica sem a capacidade criativa não dá em nada. Jornal da ABI - Trabalhar adaptando grandes autores ajuda na capacidade criativa? Neville de Almeida – Ah, sim, muito. Eu já adaptei Nelson Rodrigues, um gênio, com todos aqueles diálogos maravilhosos. Os diálogos já estão lá, prontos, perfeitos, elaborados. E na época teve alguém que me disse: “Acho que precisamos melhorar estes diálogos”. Eu respondi: “Tudo bem, se você conseguir fazer melhor, vá em frente”. E claro que a pessoa não conseguiu. Uma vez eu levei o Nelson para acompanhar as filmagens. Vieram me dizer para não levá-lo, porque ele iria me encher o saco. Mas, puxa, o cara é um gênio e vai me encher o saco? E daí? Na minha equipe tem 30 pessoas, nenhuma delas é gênio e todas me enchem o saco! (risos). O Nelson ficava modestamente sentado, só vendo as filmagens, e alguém da produção veio me cobrar, perguntando ”quem era aquele velho que não fazia nada e ainda ficava gastando o dinheiro do orçamento do filme, almoçando, usando o transporte...”. É preciso ser humilde. A humildade faz com que a gente nunca se precipite nos julgamentos.
Jornal da ABI - Como era na época da Embrafilme? Neville de Almeida – Por incrível que pareça, na época da Embrafilme tínhamos mais liberdade. Era uma única comissão que aprovava o projeto, mas todos os membros desta comissão entendiam muito de cinema. Os diretores da Embrafilme também entendiam de cinema, e isso facilitava muito a liberdade de cada projeto, de cada filme. Claro que houve períodos ruins, com interventores, com diretores que não eram da área, mas de uma maneira geral, naquela época, havia mais liberdade criativa que hoje. Jornal da ABI - Como é o trabalho do roteirista quando ele não escreve o roteiro sozinho, mas em conjunto com outros roteiristas? Neville de Almeida – Eu escrevi os roteiros de todos os filmes que dirigi. Ou sozinho, ou em parceria com companheiros maravilhosos. Quando um grupo vai desenvolver um roteiro, este grupo tem que buscar harmonia, identidade. Eu preciso gostar da pessoa que está trabalhando comigo, e vice-versa. E escrever um roteiro a três pessoas, pode? Sim, pode, mas estas três pessoas precisam gostar umas das outras, e elas devem acreditar nas idéias umas das outras. Tem que existir amor entre elas. Às vezes acontece algo mais profissional, como três pessoas que a princípio não se conhecem, ou se conhecem muito pouco, serem designadas para desenvolver um roteiro. É possível também, desde que haja uma busca incessante pela harmonia. E que seja uma harmonia em função da qualidade da obra que está sendo feita. O objetivo comum é fazer o melhor roteiro, mas muitas vezes há brigas entre os roteiristas por causa de egos. Um quer provar que é melhor que o outro, e deixam em segundo plano a qualidade do roteiro. Para se fazer um bom roteiro, em equipe, é preciso se abstrair do ego medíocre, ingressar no trabalho com concentração, generosidade, abertura mental e criatividade.
HOMENAGEM
26 de agosto é data festiva para nossos hermanos. Especialmente neste ano de 2014, em que é comemorado um século do nascimento de um dos maiores craques argentinos. Não daqueles que fizeram história dentro das quatro linhas, mas sim de um dos autores que escreveram centenas, milhares de páginas, fundando uma das mais inovadoras escolas da literatura latino-americana. Nascido acidentalmente na embaixada de seu país em Ixelles, distrito de Bruxelas, na Bélgica, em 26 de agosto de 1914, Julio Cortázar firmou-se como um dos mais importantes escritores de língua espanhola de todos os tempos. Formou-se em Letras, dedicou-se à pedagogia e trabalhou como professor em várias cidades do interior da Argentina. Em 1951 fixou residência em Paris, onde desenvolveu uma obra literária única, que cativou admiradores anônimos e célebres. “Qualquer um que não leia Cortázar está condenado; não lê-lo é uma doença grave e invisível que, com o tempo, pode ter terríveis consequências”, decretou o poeta chileno Pablo Neruda. A publicação de A Fascinação das Palavras, que chegou às livrarias no fim de agosto, completa a celebração do centenário do autor na editora Civilização Brasileira, que também publicou Um Tal Lucas e Final do Jogo, ambos há anos fora de catálogo. Como parte das comemorações, foi criado o ‘Ciclo Todo Cortázar 100 anos – um só autor, muitas artes’, em parceria com o Instituto Cervantes, com a realização de debates, no Rio de Janeiro. Imagine como seria conversar com Julio Cortázar e passar longas tardes em seu apartamento na Rua Martel. Conhecer sua biblioteca, repleta de livros até o teto, ouvir seus lps. O escritor revela-se despudorado, sem medo de se abrir e falar sobre a infância, o jazz, a literatura e algumas de suas manias esquisitas. Pois este é o clima de A Fascinação das Palavras, em que o jornalista uruguaio Omar Prego Gadea conduz uma entrevista intimista sobre assuntos decisivos na ficção cortazariana e que refletem o inquieto talento do argentino. Cortázar e Omar se encontraram pela última vez em 20 de janeiro de 1984. Eles haviam se conhecido dez anos antes, em um vernissage, em Paris. Em 1982, depois da morte de Carol Dunlop, companheira do escritor argentino, nasceu a idéia desta obra – “um livro muito doido”, segundo Cortázar. Os dois amigos combinaram, então, escrever um texto “a quatro mãos”, sem temas proibidos. A conversa foi interrompida somente com o falecimento do autor, em 12 de fevereiro de 1984, na mesma Paris. O resultado é uma leitura imprescindível para os fãs de O Jogo da Amarelinha e para aqueles que estão se iniciando no mundo dos cronópios – personagens marcantes do romance História de Cronópios e de Famas, publica-
CORTÁZAR EM CARTAZ No centenário de seu nascimento, um dos mais influentes escritores argentinos tem parte de sua obra relançada. E sua genialidade, mais uma vez, constatada. P AULO C HICO
do em 1962, cuja personalidade é marcada pelo fato de não atribuírem importância exagerada às coisas. Em suas obras, Cortázar manobrava elementos, convidando o leitor ao divertimento, ao lúdico, a jogar o jogo, a pular amarelinha, a fim de escapar para outros mundos. “Para mim, a literatura é uma forma de brincar. A literatura é assim – um jogo, mas um jogo no qual a gente pode colocar a própria vida. Pode-se fazer tudo por esse jogo. Esta espécie de constante lúdica explica, se não justifica, muito do que escrevo ou vivo”, dizia ele. “Cortázar era muito criativo, preocupado com a linguagem. Gostava de criar ilusões verbais, pensar a literatura. Por isso, foi, também, um bom ensaísta. A realidade para ele era um enigma, um código, uma mensagem cifrada”, observa a editora Maria Amélia Mello, da José Olympio. Cortázar mudou-se com seus pais para a Argentina com quatro anos, e lá viveu até os 38, quando migrou, em 1951, para Paris, descontente com a ditadura peronista que se instalava em seu país. O autor não escondia sua paixão pela Cidade-
Luz, onde residiu por 33 anos. “Meu mito de Paris atuou em meu favor, me fez escrever O Jogo da Amarelinha, que é um pouco a encenação de uma cidade vista de uma maneira mítica. Toda a primeira parte que se passa em Paris é a visão de um latino-americano perdido em seus sonhos a passear em uma cidade que é uma imensa metáfora. Caminhar por Paris significa avançar até mim”. Tamanha admiração e tanto tempo no exterior não pouparam Julio de severas críticas. “É famosa a campanha que foi movida contra mim por muitos de meus compatriotas argentinos, ao longo de uma porção de anos, pelo fato de eu não voltar ao país. O que sempre me chateou um pouco foi, isso sim, ver que aqueles que reprovavam a minha ausência da Argentina eram incapazes de perceber até que ponto a experiência européia era positiva, e não negativa, para mim”, dizia ele. Argumentava que, à distância, podia compreender melhor a América Latina. “De longe, pois todo intelectual é um asilado em seu próprio país”. A primeira viagem a Cuba, em 1961, mexeu com o escritor.
“Descobri na ilha um povo humilhado ao longo de sua história, que havia recuperado a dignidade”, explicava. A partir daí, adotaria postura ainda mais engajada, de franco combate aos regimes ditatoriais em países como a Argentina, Chile, Uruguai e Nicarágua. O escritor Eric Nepomuceno, que já havia traduzido As Armas Secretas, trabalha na finalização da tradução de O Jogo da Amarelinha (Rayuela, no original), que deverá ser lançada em 2015, pela mesma Civilização Brasileira. “Essa é, certamente, das obras mais monumentais da literatura latino-americana da segunda metade do século passado. Ele nos ensinou uma carpintaria, uma arquitetura literária absolutamente libertária e extremamente rigorosa. Um mestre total”, resumiu. “Toda e qualquer tradução tem suas dificuldades, e não é possível comparar as de um autor às de outro. No caso de Cortázar, tanto nos contos como neste romance, o primeiro desafio é manter o ritmo da sua escrita. Depois, a construção das frases. Especialmente neste, essa arquitetura é intrincada, inventiva, com um aspecto lúdico muito complexo e, ao mesmo tempo, com muita carga poética. Impossível dizer qual a maior dificuldade. Melhor seria dizer das muitas dificuldades, mas que acabam resultando num desafio irresistível.” Assim como em O Jogo da Amarelinha, considerada sua obra-prima por ter abalado o panorama cultural do seu tempo e criado uma referência indiscutível dentro da narrativa contemporânea, em Final do Jogo, Julio Cortázar sugere diferentes caminhos para a leitura, de acordo com a interpretação do leitor. São 18 contos com distintos níveis de dificuldade. Publicado originalmente em 1956, apresenta múltiplas experiências com perfeição: em poucas páginas, as condições são apresentadas e cumpridas de um jeito aparentemente simples, o que desperta um emaranhado de novas sensações, idéias que nunca foram pensadas, em diferentes perspectivas sobre a realidade. Por sua vez, Um Tal Lucas, lançado em 1979, é uma reunião de contos que mesclam ficção com traços da realidade. Segundo alguns críticos, o personagem que dá título ao livro apresenta traços do próprio Cortázar. A inteligência, o bom humor e a agudeza crítica são atributos do personagem, bem como a desenvoltura e a ironia. Possivelmente, mais que uma mera coincidência. Lucas foi professor de espanhol em Paris e conheceu o tráfico de cadáveres na Argentina; assistiu a festas familiares e lustrou sapatos. Em meio a dramas e dúvidas, o personagem exercitava ao máximo a sua capacidade de se rebelar contra a monotonia mundana e, assim, criar um verdadeiro manual contra a formalidade. Um convite vívido ao exercício de criação. Cortázar em seu estado mais bruto.
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PERFIL
A assessora de imprensa que virou editora Há quase 30 anos à frente da tradicional José Olympio, Maria Amélia Mello é um exemplo de jornalista que se consagrou no mercado de livros. DIVULGAÇÃO
P OR G ONÇALO J ÚNIOR
Foi bem por acaso que a jornalista Maria Amélia Mello virou editora de livros. E que editora. Há quase 30 anos à frente da tradicional José Olympio, hoje parte do Grupo Record, ela se descobriu uma exímia equilibrista para não apenas conseguir manter em seu catálogo nomes consagrados como José Lins do Rego – na casa há mais de oito décadas – e Rachel de Queiroz, mas trazer outros de volta, como aconteceu no ano passado com as obras de Ferreira Gullar e Antonio Callado. É preciso ter jogo de cintura, afirma ela, em uma época que as grandes editoras, associadas a grupos estrangeiros, buscam reforçar seus catálogos com autores consagrados e bons de venda. E ela não deixa dúvida de que a principal arma da editora é, sem dúvida, sua habilidade para fazer amizades com autores e herdeiros. Maria Amélia convive com todos eles de um modo que vai além do profissional. Almoça, marca cafés e encontros, visitam-se mutuamente, têm longas conversas por telefone, ouve desabafos. Manda e-mails de vez em quando, telefona, pergunta se está tudo bem, se tal problema foi superado e deixa carinhosas mensagens de apoio. Quem a conhece sabe que não é jogo de interesses. Para eles, uma amiga fiel. Faz-se presente, como devem fazer os amigos que viajam no mesmo barco. Difícil resistir a tanta atenção. O retorno disso é a certeza de que os livros estão nas melhores mãos e na melhor editora. Sim, porque ela conseguiu um feito extraordinário: recuperar a reputação da José Olympio, desgastada por duas crises que quase a levaram à falência nas décadas de 1970 e 1980 e a fez perder grandes nomes como Jorge Amado, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. Adora repetir que Rachel de Queiroz disse que só deixaria o navio – no momento em que a editora passava por dificuldades – com o capitão José Olympio. No princípio, era o jornalismo cultural
Antes de chegar à editora, como jornalista e assessora de imprensa, Maria Amélia teve uma vida intensa, mas com flertes no mundo dos livros. Depois de fazer jornalismo na PUC do Rio, em 1972, colaborou no jornal O Pasquim, ícone da resistência à ditadura, que passava naquele momento por seu período mais crítico de repressão. De 1973 a 1980, dirigiu o Suplemento 16
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pria a missão, recebeu do amigo Rubem Fonseca, já contista consagrado e primeiro Presidente da Rio Arte, o convite para criar e estruturar o Centro de Imprensa Alternativa, que existe até hoje. Ali, desempenharia um papel histórico dos mais relevantes, mesmo quase sem dinheiro, ao montar o maior acervo das publicações criadas como forma de resistência à ditadura, conhecidas como imprensa alternativa (leia reportagem na página 18). Em 1985, nova chamada editorial. Dessa vez, para ser assessora de imprensa da José Olympio. Quando ela chegou, a editora funcionava na Rua Marquês de Olinda, 12, Botafogo. Depois, foi para a Rua da Glória. Encantou-se pelo mítico editor, já aposentado e afastado da empresa, que fora vendida no ano anterior. O comprador se chamava Henrique Sérgio Gregori, então empresário importante. Com o seu falecimento, a família venderia a editora para o Grupo Editorial Record, no final de 2001. José Olympio, depois de perder sua editora, não abria mão de continuar a dar orientações, a pedido do novo dono. Já bastante idoso e obeso, preservava a gentileza e a delicadeza no trato com todos, não apenas em relação às mulheres. “Ele era um homem sedutor, muito inteligente e de grande visão, embora sem ter estudado tanto”, afirma. De modo curioso, os dois estabeleceram uma relação por escrito. “Ele sempre me mandava bilhetinhos com sugestões, era muito atencioso”. Em um deles, escreveu: “Quero que você dê certo”. José Olympio morreu em maio de 1990. Ficaram boas lembranças. “Ele morava no mesmo prédio do escritor José. J. Veiga. A gente conversava muito, mostrou-me sua biblioteca, com as primeiras edições autografadas de tudo que ele publicou”. De assessora de imprensa, Maria Amélia passou à produção de livros. Como editora, além de cuidar da escolha de títulos, das traduções, produção de fotos e diagramação, teve de se reinventar no papel de bombeira, com atribuições de diplomata e gerenciadora de crises. Desde a década de 1970, a sangria de autores na casa para as concorrentes não cessava. Os primeiros terremotos ocorreram nos anos de 1960, com a saída de Jorge Amado. Depois, partiram Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade. A história de um editor exemplar
Literário da Tribuna da Imprensa, quando conheceu muitos escritores. “Foi uma experiência incrível, lutando diariamente contra a censura”, conta ela. A publicação sofria censura diária. “Primeiro, era um censor que ficava o dia inteiro. Depois, vinham dois, para um vigiar o trabalho do outro e não deixar passar nada”, recorda. “Eu olhava pro lado e todo dia tinha um sujeito diferente lá, pronto para policiar o que fazíamos”. O Suplemento saía aos sábados, em formato tablóide, com oito páginas. Sob seu comando, ganhou o prêmio da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte) por sua contribuição às artes.
Ao mesmo tempo, no final de sua estada no caderno, Maria Amélia acumulou o trabalho de assessora de imprensa da tradicional Civilização Brasileira, a editora mais perseguida pelo regime militar. “Entrei pela porta da assessoria de imprensa, na Civilização Brasileira. Mas, trabalhei por algum tempo – como freela – para o Jornal de Letras, dos Condé. Entrevistei muitos escritores – Rachel de Queiroz, Raul Bopp, Aurélio Buarque, Adonias Filho, Gilberto Freyre... E ainda tenho as fitas com as gravações, intactas”. Montou o Departamento de Comunicação, no final dos anos 1970. Quando cum-
Natural de Ituverava, interior paulista, José Olympio se mudou para São Paulo aos 16 anos. Pretendia estudar Direito, mas um emprego na seção de livros na Casa Garrau selou seu destino. A livraria pertencia a Charles Hildebrand. O emprego consistia em abrir caixas de livros novos, limpar a poeira das estantes, e não lhe sobrava tempo para estudar, como pretendia. Posteriormente passou a ajudante de balconista, e a tomar gosto pelos livros. Em 1934, a Livraria muda-se para o Rio de Janeiro, então centro intelectual do Brasil. Em 1935, Olympio se casa com Vera Pacheco Jordão, com quem teve dois filhos, Vera Maria Teixeira e Geraldo Jor-
ta convivência com os animais. O jornalismo, a literatura, a música, as artes falaram mais alto. Gosto do ‘mato urbanizado’ e adoro os bichos até hoje”. Graciliano foi um nome que Maria Amélia sempre ouviu na sua casa: “Aquele homem ilustre, de fibra, da terra de seu pai”, fala a mãe Helena. Hoje, ela é muito amiga de Luiza Ramos Amado, filha de Graciliano. “Anote: com muito orgulho! Sou leitora permanente de Graciliano. Veja que sorte: no meu vestibular para Comunicação Social (PUC, onde estudei) caiu Vidas secas. Brincava que não foi uma prova, foi um presente”. Mas, o poeta Jorge de Lima também era assunto em família. O “médico alagoano, com consultório na Cinelândia”. A futura editora cresceu ouvindo estas histórias e as músicas de Jackson do Pandeiro, Jararaca e Ratinho, sanfona, forró e causos nordestinos. Muitos anos antes de ela vir ao mundo, José viajou para o Rio nos anos de 1920, em busca de gandaia. Isto é, brincar um Carnaval. Não voltou mais. Ficou encantado com a cidade, com as oportunidades, com a vida urbana. Fez amizade com muita gente importante por toda a vida. “Ele era de ótimas ligações, ligava para JK e Tancredo Neves”. A menina pequena e os bichos
Depois da empolgação inicial, o desejo de ser veterinária foi desaparecendo. Ma-
o prêmio Parker de Jornalismo Universitário (escrevi sobre as revistas do Modernismo)”. Maria Amélia publicou dois livros nessa época: Compasso de Espera (poemas, rodado em mimeógrafo, na fase dos anos de 1970) e Às Oito, em Ponto – também de contos, ganhou o prêmio Afonso Arinos, da ABL. Em 2007, recebeu o prêmio Faz Diferença do jornal O Globo pelo projeto de recuperação (memória!) desenvolvido na JO. Um fato a marcou muito em 2005: conquistou a única bolsa de nível internacional para estudar em Stanford, Califórnia, em curso de verão sobre “Mercado editorial”. No ano seguinte, lançou uma coleção de bolso que hoje é referência, Sabor Literário, com textos inéditos ou pouco conhecidos de grandes escritores. O objetivo era criar uma nova geração de leitores para os clássicos. Também criou a série Mar de Histórias, coordenada pela historiadora Mary Del Priory, para resgate de grandes textos de interesses literários, históricos e etnográficos. Mais ou menos nessa época, começou a produzir com seu amigo Ruy Castro os dois luxuosos volumes de O Melhor da Senhor, que a Imprensa Oficial de São Paulo lançou em 2012, com o inestimável resgate da revista lançada em 1959 e que modernizou o jornalismo no Brasil.
ria Amélia viveu como interna por alguns anos no tradicional Colégio Bennett, quando seus pais ficavam mais tempo na Fazenda. Morou entre Copacabana, Flamengo e Botafogo, onde permanece até hoje. Na fazenda, levava uma vida livre, andando a cavalo – que, no fundo, tinha medo –, nadando em lagoa, pescando Tucunaré, jogando bola. E cartas também. “Herdei o gosto de meu pai. Mas, jogo por entretenimento, nunca a dinheiro”. Ainda criança, começou a escrever poemas, pequenas histórias, textos narrando o cotidiano (com humor, em geral), a famosa redação no colégio. Já se evidenciava a vocação para as Letras, para o Jornalismo. Então, logo cedo a definição se consolidou: jornalista. “E não mudei mais. Escrever, viajar, conhecer pessoas, ler e ler. Pesquisar. Tudo me agrada muito. Mas, sempre pensei na área cultural, em especial, a literária. E foi assim: cursei na PUCRio a Comunicação Social, com muita alegria. E logo entrei para a profissão”. Sempre a Literatura. Daí, migrar para o mercado editorial foi natural. O Jornalismo sempre a atraiu pelo seu dinamismo, pela busca da verdade, da apuração, da pesquisa, o bom texto. “Não posso deixar de mencionar: o que mais me atrai é a preservação, a memória, o registro. Mas, escrevi para IstoÉ, resenhas para O Globo, para as revistas Ficção, Vozes, Escrita, entre tantas outras. Sempre sobre livros e escritores. Na faculdade, ganhei
Seguir o rumo da História ACERVO PESSOAL
dão Pereira. Nos anos de 1940 e 1950, tornou-se o maior editor do País, publicando dois mil títulos, com cinco mil edições, os quais nos anos 1980 atingem 30 milhões de livros de 900 autores nacionais e 500 estrangeiros. Maria Amélia faz questão de ressaltar que José Olympio foi e é um exemplo a ser seguido, no seu modo de condução da produção de livros. “Não é saudosismo, acredite, mas o comércio do livro era também afeto. As relações eram cordiais, traduzidas na simples arte da amizade”. Por isso, seus editados freqüentavam a livraria da Rua do Ouvidor, 110, dividiam conta no bar, falavam de política e de poética com a mesma desenvoltura, viravam compadres, brigavam e faziam as pazes, trocavam confidências, não perdiam os famosos almoços da Casa, andavam sempre juntos. Assim se formou a grande família da José Olympio, retrato de uma época. Para Maria Amélia, quem hoje falar de Brasil, de literatura brasileira, de talento, sabe que deve muito ao José Olympio, ao José, pai de todos, editores e editados, um exemplo permanente das raízes do Brasil. Como bem definiu o amigo José Cândido de Carvalho: “um caçador de esmeraldas literárias, um desbravador”. O editor fazia sucesso com as mulheres. “Minha mãe sempre comentava isso. Quando ele entrava no salão de jogos, as mulheres olhavam, disfarçando. Ele era um homem muito interessante, sedutor. Já conheci JO – como era chamado – mais velho. E visitava o editor em sua casa, na Rua da Glória. A morada ideal dos escritores, não? A Rua da Glória!”, brinca. Como faz questão de narrar, Maria Amélia aprendeu a amar os livros em casa. Nascida no bairro de Botafogo, ela passou a infância e adolescência em Copacabana. “Sou carioquíssima!”, ressalta. As férias escolares, de dezembro a fevereiro, as curtia intensamente na Fazenda Mello, em Piraí, cidade perto da capital carioca. Regularmente, o pai ia a outra fazenda, Grama, antes do seu nascimento, participar de rodas de cartas e de roleta. Um dos jogadores era ninguém menos que José Olympio. “Ele jogava na mesma roda que meu pai, Joaquim Ferreira de Mello. Não eram amigos, mas se conheciam de vista. Minha mãe, grávida, brincava que tenho uma relação histórica com a editora! José Olympio já andava por perto e eu chegando.” O mundo parecia mesmo pequeno para todos. Seu pai nasceu na mesma cidadezinha que Graciliano Ramos, Quebrangulo, interior de Alagoas, no final do século 19. Graciliano, em 1892. Joaquim era de 1895. “Ou seja, da mesma geração e na mesma lonjura de cidade. Mas eles não se conheceram”. A coincidência não acaba aí: a mãe do velho Graça se chamava Maria Amélia e ele nasceu em 27 de outubro, data do seu aniversário. Trabalhador de sol a sol, Joaquim se tornou dono da maior agência (como se dizia na época) de automóveis do Rio, a Agência Mello. Foi importador de carros americanos e ganhou muito dinheiro. Mas, gostava da terra, de fazenda. “Por isso, cheguei a pensar em ser veterinária, com tan-
Convidada por Sergio Machado, Maria Amélia chegou à José Olympio em 2001 para “reconquistar autores e obras” e trouxe, de imediato, Ariano Suassuna: afetividade no diálogo.
Em dezembro de 2001, Sergio Machado chamou Maria Amélia para um almoço no Jardim Botânico. Perguntou: “O que quer que eu faça?”. Ele respondeu: “Quero que siga a sua história. Isso me interessa. Reconquistar autores e obras”. De imediato, ela disse que conseguiria Ariano Suassuna. E assim o fez. Assim, para sempre, faria parte do seu trabalho evitar a deserção. “Eu costumo brincar que tenho o alfabeto da literatura brasileira em nossa editora”. Dentre os seus feitos, destacam-se as voltas de Anibal Machado, Antonio Callado e Rachel de Queiroz. “Os herdeiros compreenderam a essência da casa. A relação que esses autores estabeleceram pessoalmente com José Olympio era uma relação única, sem precedentes. Hoje a gente tem um espelho para dar continuidade a isso: afetividade no diálogo. Tanto que não temos brigas com herdeiros, muito pelo contrário, sou amiga de todos”. E ressalta: “Conheço essas pessoas, elas fazem parte do meu círculo de amizades, são minhas amigas”. A ponto de passar Natal com eles, como aconteceu recentemente com a família de José Cândido de Carvalho. “Ariano era uma espécie de pai para mim”, diz ela, antes de ressaltar o orgulho que o escritor recém-falecido tinha de ver seus livros sob a marca de José Olympio, que ele tanto admirava e respeitava. “Todo segredo está no diálogo e no afeto”, entrega. “Editar é um gesto de afeto, não se deve impor nada, tem de ser pela parceria, não se convida a pessoa somente na hora de renovar o contrato”. Hoje, a casa é principalmente o lugar de grandes autores e livros. Maria Amélia se
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divide na parte estrangeira entre cuidar dos autores consagrados e conseguir nomes cultuados, como o americano outsider John Fante e o argentino Manuel Puig. Deles, já lançou vários títulos. Seu catálogo tem a autobiografia de Sarah Bernhardt e a obra-prima O Sol É para Todos, de Harper Lee. Fazem parte do staff Pablo Neruda e Carson McCullers. “Na parte internacional, seguimos o mesmo padrão de exigência quanto à qualidade, mas sem a ansiedade do novo, que já tem tanta gente fazendo. Queremos os bons e não é fácil apresentá-los às novas gerações”. Ela trata os estrangeiros como “um mercado especial”. Um de seus best-sellers é O Menino do Dedo Verde, de Maurice Druon, publicado pela primeira vez em 1957. É o único livro fictício e de linguagem infantil que o autor escreveu. Foi traduzido para o português por Dom Marcos Barbosa, o mesmo escritor/ poeta que traduziu O Pequeno Príncipe. As vendas passaram recentemente dos dois milhões de exemplares. Aliás, de meninos a casa vai bem: o de Engenho, de José Lins do Rego, já ultrapassou um milhão de cópias vendidas. “A escrivaninha é um lugar perigoso de onde se pode observar o mundo”, cita frase de um autor cujo nome lhe escapa. “Por isso, estamos com os olhos no presente, nas ruas, nas oportunidades. Mas, tradição é tradição, a nossa marca”.
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PERFIL A ASSESSORA DE IMPRENSA QUE VIROU EDITORA
O negócio do livro e suas peculiaridades
Por outro lado, a editora sabe que editar é também um negócio. Só que sem um meio termo, um equilíbrio, não funciona. “A editora tem de estar no azul, como diz Sergio Machado”. Para ela, quem tem de brilhar são os autores, não a editora. “E aqui brilham todos, porque somos a Escola de Samba da Mangueira do mercado editorial brasileiro. Ou seja, todo mundo torce pela José Olympio, uma editora que tem tradição, história, lastro, cheque com fundos”. Ah, sem esquecer que tem a Velha Guarda dos grandes livros na avenida. A editora está aí até hoje, ressalta Maria Amélia, revitalizada e parte integrante do Grupo Record. Não faz muito tempo, um amigo seu, brincando disse: “Isto não é uma editora, é um monopólio”. Entre outros autores, para mencionar apenas os grandes clássicos, constam de seu catálogo, além dos já citados, Stanislaw Ponte Preta, Cassiano Ricardo, Mário Palmério, Marques Rebelo, Augusto Meyer, Raul Bopp, Sérgio Buarque de Hollanda, Manuel Bandeira, Lucia Benedetti, Maria Clara Machado, Paulo Rónai, Pagu, Vianna Moog, Brito Broca, Luís Martins, Elisa Lispector, Campos de Carvalho, Rachel Jardim, Bernardo Élis, Rocha Lima, Francisco de Assis Barbosa e
Relançamento de toda obra de Ferreira Gullar comemora os 60 anos de sua estréia na editora.
Amando Fontes. Este ano está sendo especial para a José Olympio. Dentre os motivos, está a comemoração dos 60 anos da estréia de Ferreira Gullar na editora, onde acaba de ter toda a sua obra relançada, com revisão de texto, poemas inéditos e novo projeto gráfico. Celebra o centenário de nascimento de José Cândido de Carvalho, prata da casa desde os primei-
ros tempos. E uma grande notícia: o lançamento da obra do crítico, ensaísta e romancista Antonio Callado, sua mais recente aquisição. A propósito, o primeiro romance de Callado é de 1954 e, portanto, também completa seis décadas de publicação. Não é coincidência, segundo ela, que o catálogo reúna tantos livros “emblemáticos”: Poema Sujo, A Pedra do Reino, Martim Cererê, Cobra Norato, O Tronco, O Quinze, Menino de Engenho, A Bagaceira, Chapadão do Bugre, A Estrela Sobe, João Ternura, A Lua vem da Ásia, O Coronel e o Lobisomem, A Vida de Lima Barreto, Bandeirantes e Pioneiros, O Melhor de Stanislaw, A Vida Literária no Brasil, além dos ensaios sobre Machado de Augusto Meyer. Se no passado a José Olympio foi uma grande editora, em dimensões editoriais e numéricas, hoje é um selo de grande reputação. Maria Amélia se orgulha de ter sido a única editora do País, em quase 30 anos, a não perder nomes importantes. O tempo passa, percalços surgem, mas a editora que mudou a história do livro no Brasil continua forte e saudável, com um catálogo ativo de aproximadamente 500 títulos de vários gêneros. “Nossa linha editorial é muito definida e sempre buscamos a qualidade. E la nave va!”. Sim, e bem capitaneada, sem perder o rumo.
MEMÓRIA
Vozes escritas sem censura Pouca gente sabe que o acervo mais expressivo da imprensa alternativa de que se tem notícia está sob a guarda do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. P OR R OBERTA S AMPAIO
Em tempos de mídias sociais e de ativismo online, chega a ser risível imaginar uma realidade em que a comunicação é um dos direitos mais caros aos cidadãos. Pois foi assim no regime militar brasileiro, que vigorou de 1964 a 1985. Se a censura aos meios de comunicação e à livre expressão do pensamento causou danos irreparáveis à cidadania, por outro lado, o autoritarismo do quartel fez surgir uma gama de publicações aguerridas e de enfrentamento à censura. Grande parte ousava na forma e no conteúdo, já que não tinha nenhum compromisso com o establishment – muito pelo contrário, driblava e desafiava a ordem vigente de não contrariar o governo. Por terem surgido à margem dos meios de comunicação oficiais e dominantes, a chamada “grande imprensa”, essas publicações passaram a ser classificadas como “imprensa alternativa”. O rótulo diz respeito mais aos meios independentes de produção e distribuição do que propriamente ao conteúdo. Nem todas focavam na política ou no combate à ditadura militar. Havia aquelas – em grande quantidade – especializadas em música, litera18
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tura, humor, homossexualidade. Em comum, todas tinham a ousadia de existir por conta própria, à revelia do sistema, sem se curvar à censura, que afetava não só a política, mas também os costumes. O acervo mais expressivo dessa imprensa alternativa de que se tem notícia está sob a guarda do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro-AGCRJ, órgão
ligado à Secretaria de Cultura do município, que ocupa um prédio ao lado da sede dos Correios, na Cidade Nova, centro do Rio. O acervo tem, aproximadamente, 24 metros lineares de documentação e, no momento, passa por tratamento técnico para sua melhor identificação e organização. Conta com um catálogo online que, futuramente, deverá ser atualizado, segundo a direção. O endereço para consulta é http://migre.me/kX7u8. Essa coleção foi formada por iniciativa da editora Maria Amélia Mello, hoje à frente da José Olympio, quando, em 1980, passou a trabalhar na RioArte, a convite do escritor Rubem Fonseca, então Presidente do órgão municipal. Um dos projetos levados por ela para a RioArte foi o do Centro de Cultura Alternativa, cujos objetivos principais eram coletar, identificar, tratar e catalogar materiais da imprensa alternativa, e também inaugurar um espaço de estudos do período, aberto à pesquisa. “Tivemos que adiar o início dessa ação por alguns meses, por causa das bombas e ataques contra as bancas que vendiam publicações da imprensa alternativa. Mas, ainda em 1980, começamos a divulgar a iniciativa”, lembra Maria Amélia.
O ponto de partida foi a sua coleção particular, a primeira a ser doada. Como era interessada no assunto havia bastante tempo, Maria Amélia sabia muito bem quais eram as pessoas que deveria procurar para angariar mais doações. Em nome da RioArte, enviou uma circular para a comunidade artística e também divulgou o projeto na grande imprensa, que foi muito receptiva na época. Depois de uma série de reportagens sobre a iniciativa, começou a receber centenas de contribuições, de dentro e de fora do País, o que permitiu uma ampla garimpagem por vários estados, onde os jornais de resistência ou culturais não tinham alcance nacional. O Centro de Cultura Alternativa dependia exclusivamente de doações, já que
No preciso acervo que está sob a guarda do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, é possível encontrar desde os títulos mais representativos da imprensa alternativa, como os jornais Opinião, Movimento e O Pasquim, a publicações em defesa de causas específicas ou voltadas para expressões culturais e artísticas. Em comum a todos: a defesa da liberdade de expressão.
não dispunha de verbas para a aquisição dos materiais. Mesmo assim, o retorno foi muito positivo. “As pessoas começaram a ligar, perguntando do que se tratava, como poderiam colaborar de alguma forma. Indicavam fontes, davam dicas muito úteis e o material começou a chegar. Também iniciamos um arquivo de recortes de jornais e revistas sobre o tema, que eram organizados por assunto, e de livros, mandados gratuitamente pelas grandes editoras, para formar uma biblioteca de apoio. Assim, dia após dia, fomos estruturando o acervo”, conta Maria Amélia. Em 1992, a RioArte doou o acervo Imprensa Alternativa para o Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, onde permanece até hoje, sem atualizações desde então. A coleção é aberta para consultas do público, de segunda a sexta-feira, das 9h às 17h30, na Subgerência de Documentação Escrita, que funciona no terceiro andar. Não houve interrupções no atendimento por conta do corrente trabalho de organização técnica do material. No entanto, segundo Georgia Tavares, da Subgerência de Documentação Escrita da AGCRJ, os interessados na pesquisa do acervo devem enviar um email para o setor “arquivog@pcrj.rj.gov.br, discriminando o tema “imprensa alternativa” no título “com a listagem dos títulos que desejam pesquisar, para que o material seja separado previamente. Ela informa que essa coleção tem atraído um público variado, que inclui professores, estudantes, jornalistas, designers gráficos, arquivistas e historiadores, dentre outros. Embrião do projeto
Nos anos 1970, a então responsável pela produção do acervo Imprensa Alternativa, Maria Amélia Mello, trabalhava como editora do Suplemento da Tribuna da Imprensa, que era voltado para a produção cultural brasileira, especialmente a literária. Nessa função, ela recebia muitos livros de produção independente para divulgar, assim como se mantinha informada sobre os jornais considerados “marginais”, um universo que era de seu total interesse. “Vivi intensamente a chamada geração mimeógrafo e todas as manifestações daquele período. Estava envolvida nesse universo de contestação. Eram tempos sombrios e complicados, de repressão, censura, arbítrio e medo.” A hoje editora de livros considera que o embrião do Centro de Cultura Alterna-
tiva nasceu nesse seu trabalho como responsável pelo Suplemento. Foi quando percebeu que toda aquela produção se perderia com o tempo, pela sua forma quase sempre restrita de produção, distribuição, comercialização e divulgação. “Eram tiragens pequenas, de feição artesanal, vendidas de mão em mão, em bares, cinemas, espaços públicos, sem nenhum registro ou preservação. O destino dessa produção toda seria o esquecimento”. Assim, começou a montar sua própria coleção e, anos mais tarde, deu início ao projeto maior na RioArte. Além da coleta e preservação de publicações, o Centro de Cultura Alternativa tinha como objetivo ser um pólo de produção cultural. Pretendia-se organizar, por exemplo, prêmios de monografias, mostras de arte, debates, exposições, livros, catálogos etc. Alguns frutos desse trabalho foram o Prêmio de Monografias Torquato Neto, que rendeu três volumes com os textos premiados, publicados de 1984 a 1986; um disco, que foi distribuído gratuitamente, com músicas do compositor piauiense, e um catálogo, em verbetes, com registros dos materiais do Centro – até hoje uma preciosa obra de referência. “Cumprimos nossa meta: montar um centro de preservação da memória, aberto ao público para consultas”, afirma Maria Amélia. Foram muitos os pesquisadores interessados, de todo o Brasil e também do exterior. Ela conta que o acervo serviu de fonte para teses universitárias e deu estímulo à publicação de livros. A procura passou a ser tão grande, inclusive pelo público
acadêmico, que tornou necessário o agendamento de horários para as consultas desde os primeiros anos. Na época, a equipe do Centro de Cultura Alternativa contava apenas com Maria Amélia, na coordenação, uma historiadora e um bibliotecário. Porém, acabou atraindo a adesão de muitos colaboradores. “Mobilizou muita energia, dedicação e esforço. Atraiu nomes importantes para o projeto, estudiosos e intelectuais que acreditavam na sua permanência”, completa ela. Entre os fatos curiosos relacionados a esse trabalho, Maria Amélia lembra uma vez em que uma moça foi consultar a coleção do semanário O Pasquim, mas com um interesse nada cultural: ela simplesmente queria provar a traição do marido, que estaria, de alguma forma, “documentada” no famoso jornal carioca. “Dias depois, ela saiu com a cara amarrada, um tanto triste. Deduzimos que o objetivo fora de fato alcançado”. Mas não faltaram histórias felizes, como as de pesquisadores que encontraram seus objetos de estudo ou aprofundaram suas dissertações e teses. “Para nosso orgulho, o Centro de Cultura Alternativa sempre aparecia nos agradecimentos dos textos, em livros e até em programa da TV Globo.” Ao longo dos seus cinco anos à frente do Centro, Maria Amélia conseguiu garimpar muitas raridades. Ela cita coleções completas de jornais alternativos e itens censurados que se tornaram uma raridade, como exemplares do jornal Opinião e laudas do jornal Movimento, com riscos e cortes feitos pelos censores – na época, a censura prévia só fora suspensa das Redações dos grandes jornais diários, a partir de 1975. “Quando deixei o projeto, em 1985, já tínhamos cerca de cinco mil itens, tudo organizado e catalogado, fruto de doação, exclusivamente. Tive a sensação do dever cumprido.” Viagem prazerosa
A consulta ao acervo Imprensa Alternativa no momento em que se comemoram os 30 anos das Diretas para Presidente e às vésperas do 30º aniversário do fim da ditadura é um mergulho em uma época de riqueza cultural, em que havia uma geração fértil de jornalistas, músicos, cartunistas, escritores em intensa produção, mesmo com a marcação implacável dos censores. Grande parte das publicações representava respostas ousadas, corajosas e criativas à censura e ao autoritarismo do-
minantes desde 1964. Outras, eram centradas mais no objetivo de contestar o regime, cumpriam um papel histórico importante, dando testemunhos, implícitos ou não, das arbitrariedades que ocorriam no momento. No vasto e imprescindível acervo, é possível encontrar desde os títulos mais conhecidos e representativos da imprensa alternativa – são os casos dos jornais Opinião, Movimento, O Pasquim – a publicações em defesa de causas específicas (pela preservação da Amazônia, contra a discriminação a homossexuais, pela igualdade dos sexos, movimento feminista) ou voltadas para expressões culturais e artísticas. Todas pregavam, de alguma forma, a defesa da liberdade de expressão. Nicho musical
O jornal Alto Falante, por exemplo, era especializado em música e tinha distribuição gratuita em lojas de disco. Entre seus redatores, estavam nomes hoje respeitados da crítica, como Ana Maria Bahiana e Tárik de Souza, que já tinham certa projeção como jornalistas de cultura na imprensa carioca. Curiosamente, no número 3, o jornal teve como colaboradora a compositora Joyce, que assina uma crítica sobre os novos lps que acabavam de sair de Beto Guedes, Danilo Caymmi, Noveli e Toninho Horta. Em todas as edições, uma página era reservada a uma charge do cartunista mineiro Henfil (1944-1988). No nicho musical, havia muitos outros títulos, como o Arranjo – um jornal que dança conforme a música, para citar mais um. Esse era vendido (a três cruzeiros) e o seu número 1, de 4 a 17 de fevereiro de 1975, trazia na capa o título: “Sorry, periferia. Meu nome é Maria Bethânia”, em cima de uma foto estourada da cantora. Entre os redatores, estavam Sérgio Cabral (o pai) e Okky de Souza. Outra curiosidade, nesse número de estréia, era o texto de apresentação, assinado por Fernando Lobo (pai de Edu Lobo), em que aproveitava para fazer uma defesa da classe jornalística: “Sabe bem o que é de sofrimento ser jornalista num tempo em que é moda o atraso geral dos pagamentos e a concorrente mais atuante é a moça de mini-saia que não sabe de tesoura e cola, mas tem um gravador supimpa onde seus entrevistados escrevem para ela as entrevistas melhores?”. Para ele, “somos um mundo assim e ser jornalista deixou de ser profissão para ser
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THOMAZ FARKAS/ACERVO IMS
MEMÓRIA VOZES ESCRITAS SEM CENSURA
arrojado e conteúdo crítico, produzido por estudantes egressos das faculdades de História, Letras, Ciências Sociais e Comunicação, e também por nomes já bem conhecidos como Ziraldo, Zuenir Ventura, Arnaldo Jabor, Chico Buarque e Carlos Heitor Cony. Vão Gogo volta a atacar
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COLEÇÃO JOSÉ RAMOS TINHORÃO/IMS
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jornalista e crítico carioca Lúcio do Nascimento Rangel (1914-1979), conhecido como Lúcio Rangel, é um nome razoavelmente esquecido na história da Música Popular Brasileira na duas últimas décadas. Claro que qualquer pesquisador da área não só sabe de quem se trata como, certamente, terá ao menos um de seus poucos (dois) livros na estante. Sua morte prematura, aos 65 anos, e o fato da maioria dos seus textos ter saído apenas na imprensa, ajudaram a ofuscar a sua ainda não devidamente reconhecida importância para a memória musical do País. Sua bibliografia se limita a um único volume publicado quando ele estava vivo: Sambistas e Chorões: Aspectos e Figuras da Música Popular Brasileira, pela Editora Francisco Alves, em 1962, transformado em clássico da bibliografia musical por trazer o preciosismo de um dedicado pesquisador no mapeamento e na análise do que se considerava as raízes da música popular brasileira. E inclui ainda o livro póstumo Samba, Jazz e Outras Notas, publicado pela Agir, em 2002, organizado por seu genro, o jornalista e escritor Sérgio Augusto. Agora, o Instituto Moreira SallesIMS promove seu resgate, com programas de rádio e lançamento de bem cuidada nova edição de Sambistas e Chorões. A idéia da instituição, que se especializa cada vez mais em acervo de raridades da MPB, é celebrar seu centenário. Ao lado do radialista, cantor e produtor Henroque Foréis Domingues (1908-1980), o Almirante, Rangel foi um dos pioneiros na pesquisa da memória musical brasileira. Pelo IMS, além do lançamento do livro, ele ganhou um caprichado documentário de rádio. No dia 3 de junho, uma roda de choro no Trapiche Gamboa, tradicional casa de samba da zona portuária do Rio de Janeiro, marcou a volta às livrarias de Sambistas e Chorões. No mesmo dia, entrou no ar, na Rádio Batuta – no site do instituto –, o primeiro de quatro programas em que o jornalista e crítico João Máximo, autor da biografia Noel Rosa
Roda de samba no Rio de Janeiro, em 1946. Abaixo, Rótulo do disco 78 rotações com o samba Pelo telefone, gravado pela banda Odeon e xilogravura de Abraão Batista para a capa do cordel Vida e Morte Gloriosa do Grande Músico Negro Pixinguinha, de Edigar de Alencar COLEÇÃO JOSÉ RAMOS TINHORÃO/IMS
mais uma blague, onde se confunde um repórter com um cronista, um redator com um colunista e colunista quantos por aí sem saber ao certo escrever ‘eu não sou cachorro não’. Vamos em frente e se você, leitor, é de gostar de jornal antes de fazer dele o seu embrulho de sabão, veja que elenco foi convocado para este Arranjo: homens todos com mais de mil horas de máquina de escrever e outro tanto de espera de um valezinho no caixa...” (sic). Em outro número, Arranjo trazia, na capa, Ney Matogrosso, com o título que desafiava as convenções e os tabus para se falar de sexualidade: “Não sou homem nem mulher”. Uma postura bastante corajosa para a época, divulgada por uma publicação cujo intuito era também sacudir o sistema vigente. Nas páginas internas dessa mesma edição, outra declaração do cantor destacada no título: “Quero que se dane a inteligentzia brasileira”. Na linha underground ou udigrudi, como queriam alguns adeptos da contracultura, estava, por exemplo, o jornal Flor do Mal, lançado em 1971 e editado pela mesma empresa do Pasquim, cujo Presidente no momento de seu lançamento era Sérgio Cabral. Contava como colaboradores com nomes do mesmo semanário que era carro-chefe da editora, como Luiz Carlos Maciel, Rogério Duarte, Jorge Mautner e Waly Salomão, que assinava com o codinome Waly Sailormoon (marinheiro da lua) e publicou, nesse tablóide, trechos do seu hoje mítico livro e clássico da contracultura nacional Me Segura Que Eu Vou Dar um Troço, que seria editado um ano depois, em 1972. Flor do Mal foi extinto após a quinta edição, por não se mostrar “vendável”, o que ocorria, aliás, com muitas das publicações alternativas, que sequer conseguiam distribuição nas bancas de jornal e revistas. No acervo, claro, não podia faltar o tão famoso, mas pouco lido, O Sol, que fez parte da primeira leva de alternativos, ainda no final da década de 1960. Circulou por pouquíssimo tempo, só de setembro de 1967 a janeiro de 1968. O suficiente para ser imortalizado na canção inaugural do tropicalismo, Alegria, Alegria, de Caetano Veloso (“O Sol nas bancas de revistas/ me enche de alegria e preguiça...”). E, também, abriu caminho para outras publicações do gênero, inclusive O Pasquim, com um projeto gráfico
Sátiras e humor eram recursos recorrentes na imprensa alternativa. A primeira publicação do gênero foi a revista em formato tablóide Pif-Paf, de Millôr Fernandes, na qual o próprio assinava com o codinome Emanuel Vão Gogo – já famoso na revista O Cruzeiro – e contava com colaborações de Sérgio Porto, Jaguar, Claudius, entre outros. Teve apenas oito números, no período de maio a agosto de 1964. Outro exemplo é Babel, jornal de humor que circulou a partir de outubro de 1978, editado por Silvio de Abreu, o mesmo que seria depois consagrado como autor de telenovelas. Vinha com a seguinte (e sugestiva) chamada na capa: “um órgão vibrante sempre por dentro”. No rodapé das páginas, freqüentemente, dava-se destaque a frases irônicas. Exemplos: “O Brasil só tem 1% de corruptos. O resto é subversivo” (Silvio de Abreu); “Quem vive de esperança morre muito magro” (Millôr Fernandes); e “O pior cego é o que quer ver televisão” (JAAB). O acervo Imprensa Alternativa fundado pela RioArte cumpre um importante papel didático, por mapear as principais produções independentes do período da ditadura militar. Faz parte da coleção o próprio Jornal da ABI que, a partir de 1974 – quando voltou a circular, após uma interrupção de mais de dez anos “foi uma voz em favor da redemocratização e pelo fim da censura aos meios de comunicação”. Para Maria Amélia Mello, a sua iniciativa, materializada hoje na coleção que está sob os cuidados do AGCRJ, foi fundamental para preservar materiais que, inevitavelmente, seriam perdidos. “Essa coleção reflete uma época, o que se pensava e o que se dizia nas entrelinhas, muitas vezes. Reúne uma produção permanente, corajosa, de teor cultural, literário, jornalístico e sociológico. É o único acervo no País voltado para esse tema”. Um capítulo da imprensa brasileira que está salvo.
(em parceria com Carlos Didier) e colaborador da Batuta, falou das relações de Rangel com o samba, o choro e o jazz. Todos os programas estão disponíveis na internet. Para se ter idéia do zelo do autor, em seu livro ele faz um amplo inventário do choro que vai da literatura de cordel ao compositor e maestro Pixinguinha, a quem não se cansava de chamar de seu ídolo maior. Há ainda anotações importantes, como o papel decisivo de Mário de Andrade na história da nossa música, como aconteceram os primeiros registros fonográficos no País e a devoção apaixonada por Noel Rosa, já consagrado, e a admiração pela então novata Inezita Barroso, nos anos de 1950, e ainda na ativa hoje, como apresentadora da Rede Cultura. A nova edição atualiza a discografia nos últimos 50 anos, além de mostrar o aces-
RESGATE
Livro sobre choro celebra 100 anos de
Lúcio Rangel
Clássico sobre gênero musical esgotado há décadas volta repaginado e com a mesma força que o tornou, por tanto tempo, indispensável para pesquisadores.
DIVULGAÇÃO/IMS
so digital a todo o acervo por ele organizado, e incorporado à bibliografia da MPB, compilada por ele na década de 1970 e agora editada pela primeira vez em livro. Também faz parte do volume a iconografia levantada por ele em arquivos das áreas de música e fotografia do IMS, inclusive no acervo Lúcio Rangel, de sua propriedade. Testemunha e personagem atuante na música nas décadas de 1950 e 1960, Rangel foi quem apresentou o jovem pianista Antonio Carlos Jobim ao consagrado poeta Vinicius de Moraes. Desse modo, sem querer, tornou-se padrinho da mais decisiva parceria da música brasileira. Mais do que o personagem a ele sempre associado na boemia carioca, Rangel mostra em seu livro uma dedicação impressionante no mapeamento e na análise do que considerava as raízes da MPB. Assim, apontou gê-
neros e subgêneros que, derivados diretamente do samba e do choro, teriam formado uma identidade musical nacional. Para João Máximo, que também assina a apresentação de Sambistas e Chorões, Rangel era um arqueólogo da música brasileira e um “quixotesco batalhador” contra o esquecimento dos tesouros mais preciosos do nosso repertório popular. Freqüentador das melhores rodas da boemia e cultura da Cidade Maravilhosa, no começo de 1965, por solicitação do então Governador do Estado da Guanabara, Carlos Lacerda, Rangel vendeu sua discoteca, especializada em MPB, para o Museu da Imagem e do Som-MIS, que seria inaugurado ao fim daquele ano. Em 1966, convidado pelo primeiro diretor do MIS, Ricardo Cravo Albin, passou a integrar o Conselho Superior de MPB da ins-
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tituição. Como membro do Conselho, foi um dos que passaram a escolher anualmente os vencedores dos Prêmios Golfinho de Ouro e Troféu Estácio de Sá, dados aos melhores de cada ano. Nos anos de 1980, em reconhecimento ao seu trabalho de historiador, a Funarte instituiu um prêmio de monografias com seu nome, o Projeto Lúcio Rangel, por onde foram publicados vários trabalhos de pesquisadores da MPB. Ao longo de sua trajetória, Lúcio Rangel colaborou em inúmeras publicações. No suplemento literário de O Jornal, dirigido pelo amigo Vinicius de Moraes, manteve uma coluna musical (19451947). Fez o mesmo em vários veículos jornalísticos, como Jornal do Brasil, A Manhã, Diário de S. Paulo, Estado de Minas, Diário Carioca, Jornal do Comércio, O Comício. Também assinou seções especializadas em música em várias revistas, como Manchete, A Cigarra e Senhor, entre outras. Publicou uma série de 10 artigos intitulada “Discoteca mínima da música popular brasileira”, entre janeiro e março de 1960, no suplemento dominical do Jornal do Brasil. Seu feito maior, porém, foi ter fundado e editado a hoje venerada Revista da Música Popular, que teve curta duração (1954-1956), mas marcou época como um espaço de discussão dos principais temas relacionados à MPB. “Ao estamparmos na capa do nosso primeiro número a foto de Pixinguinha, saudamos nele, como símbolo, ao autêntico músico brasileiro, o criador e verdadeiro que nunca se deixou influenciar pelas modas efêmeras ou pelos ritmos estranhos ao nosso populário”, escreveu ele no editorial. Somava-se a isso o fato de que, na publicação – com 14 volumes lançados e que ganhou edição fac-similar pela Funarte em 2006 –, colaboraram grandes nomes da literatura ou da pesquisa em música no Brasil: Manuel Bandeira, Sérgio Porto, Ary Barroso, Marisa Lira, Almirante, Guerra Peixe, Nestor de Holanda, Rubem Braga,
Paulo Mendes Campos, Haroldo Barbosa, Jota Efegê e muitos outros. “Lúcio Rangel colocou no mesmo caldo a nata dos analistas da música brasileira e os artistas/ jornalistas/escritores, formando um baita time pra ninguém botar defeito”, observou o jornalista e estudioso de música Luis Nassif. Ele editou a revista em parceria com o jornalista Pérsio de Morais. A volta às livrarias da lendária revista fez surgir uma discussão importante: qual o papel deste periódico na criação da tradição na música brasileira? Segundo Rangel, a revista pretendia resgatar o passado musical e criar um amplo debate a respeito da música na época. O resultado foi bem além disso. Ele se tornou um importante interlocutor do pensamento folclorista nacional. Em sua meticulosa análise sobre a publicação, Maria Clara Wasserman a situa entre as gerações das duas grandes “épocas de ouro” da MPB, anos de 1930 e os anos 1960, e resultado de um trabalho de memória comum de um grupo que encontrava na forma musical dos anos 1930 o momento mais expressivo da cultura brasileira. “Para esses homens, o jornalismo deveria cumprir a tarefa de formador de opinião pública. Atuar em jornais e revistas era fundamental, não só porque fazia parte de qualquer estratégia de ascensão intelectual, mas porque os periódicos eram a base da circulação de idéias da época”. O escritor, pesquisador e amigo Jairo Severiano definiu a revista como “a bossa nova da imprensa musical”. Maria Clara observa que a Revista da Música Popular contou com a colaboração direta e indireta de reconhecidos músicos, escritores, folcloristas, intelectuais e poetas, especialistas em diversos segmentos da música brasileira: Almirante, Emmanuel Vão Gogo, Evaldo Rui, Fernando Lobo, Haroldo Barbosa, Jorge Guinle, José Sanz, Mozart Araújo, Nestor de Holanda, Sílvio Túlio Cardoso, entre outros. A estrutura editorial da revista, prossegue ela, com pouco impacto visual, repleta de textos e poucas fotos, diferenciava-se de outras publicações, direcionando-a para um outro leitor, que não fosse o consumidor dos periódicos de entretenimento da época, como Cinelândia, Radiolândia ou Revista do Rádio. Para a pesquisadora, criar um novo público era um dos objetivos da Revista da Música Popular: “pretendemos fazer dessa revista o guia de uma imensa legião de fãs, de interessados, de colecionadores de discos...”. Ou seja, a RPM procurava um público de apreciadores de “música autêntica”, que fizesse parte de um exército que combatesse o “desvirtuado presente musical” e recuperasse o passado, trazendo à tona o elemento mais original da música brasileira – o samba. Por isso mesmo, o tema constante, gerador e não explícito, era o resgate do que consideravam a pureza na música brasileira. O projeto dos articuladores do periódico pressupunha salvar a legítima música da crise, onde o samba tradicional estava sendo substituído por ritmos estrangeiros, como boleros, sambas-canções e rumbas.
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povo. Em sua pesquisa, também embasada pela leitura de outros autores, vive-se uma situação simétrica: trata-se menos de uma crise de representação e mais de uma forma particular do governo representativo. “Os representantes são eleitos pelos governados, sendo a eleição o método de escolha dos que devem governar e de legitimação do poder, o qual não é conferido por direito divino, nascimento, riqueza ou outro quesito, mas apenas pelo consentimento dos governados”. A autora destaca que o sistema legislativo e o financiamento de partidos e campanhas eleitorais também são analisados comparativamente. O estudo identifica os princípios norteadores dos discursos dos candidatos e da cobertura jornalística sobre eles. Kátia explica que procurou relacionar as estratégias discursivas com os mitos políticos clássicos, mostrando que em cada país há a prevalência de um modelo, ainda que o personalismo seja uma tendência geral. Desse modo, revela a ascensão de novas formas de comuDIVULGAÇÃO
Lula e Dilma unidos por um ideal: Suas campanhas foram analisadas sem bandeira ideológica, a partir do ponto de vista técnico e acadêmico.
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Cada vez mais presentes no cotidiano dos brasileiros, a internet e as redes sociais estão redefinindo o papel da imprensa convencional, isto é, televisionada e impressa em revistas e jornais vendidos nas bancas ou por assinatura. O leitor, antes mero espectador passivo, ganhou voz e passou a desconfiar, questionar e pressionar sobre a postura dos diários e semanais diante de acontecimentos econômicos e políticos de relevância. O internauta também é formador de opinião, não há mais dúvidas. No Brasil, o clímax desse contexto, ainda pouco compreendido, aconteceu em junho do ano passado, quando as primeiras manifestações de rua por causa do aumento da passagem de ônibus em São Paulo e no Rio de Janeiro – antes de se espalharem por todo o País – foram tratadas com desdém, até ignoradas por alguns veículos. Seus participantes chegaram a ser chamados de vagabundos. As redes sociais, no entanto, romperam com o tradicional formato de via de mão única da informação. Alardeou os fatos. E a grande imprensa teve de mudar de postura e fazer concessões na cobertura. Mas há outros eventos importantes em que os veículos maiores ainda conduzem opiniões e o ponto de vista a ser adotado. A leitura do indispensável livro Campanhas Presidenciais – Mídia e Eleições na América Latina: Brasil, Chile e Venezuela permite uma reflexão profunda sobre essa encruzilhada em que se encontra a ainda poderosa imprensa no começo do século 21. De modo instigante, a jornalista e doutora em política Kátia Saisi analisa as campanhas políticas recentes – desde 2010 – que elegeram Dilma Rousseff, Sebastián Piñera e Hugo Chávez como presidentes do Brasil, do Chile e da Venezuela, respectivamente. Sem ban22
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Manipulação e ufanismo nas entrelinhas A jornalista e doutora em política Kátia Saisi esmiúça, em livro indispensável, a relação entre mídia e poder durante as campanhas recentes que elegeram Dilma Rousseff, Sebastián Piñera e Hugo Chávez. deira ideológica, simplesmente a partir do ponto de vista acadêmico e técnico, ela esmiúça a relação entre mídia e poder nesses países de forma clara e convincente. Seu estudo foi elaborado a partir do monitoramento da propaganda televisiva dos candidatos e da cobertura diária dos principais jornais desses países: Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo (Brasil), El Mercurio (Chile) e El Universal (Venezuela). “As interpretações sobre o papel da mídia na política são muito variadas, inserindo-se em um aspecto bastante amplo: da extrema crítica ao seu poder manipulador à visão ufanista de símbolo da liberdade e da democracia na sociedade atual”, observa ela. No livro, Kátia avalia a política do ponto de vista da centralidade dos meios de comunicação de massa na sociedade contemporânea. Ou seja, “como uma zona de fronteira que perpassa várias áreas do conhecimento científico, como ciências sociais, semiótica e análise do discurso, entre outras”. Comunicação e política, segundo ela, portanto, são campos complementares e conflituosos, mas também de relação con-
tingencial, em tempos de democracia midiática. “Se durante décadas a relação entre eleitores e partidos era forte e de confiança, reflexo de clivagens sociais, na atualidade vê-se uma mudança no comportamento do eleitorado entre uma eleição e outra, sem identificação partidária, baseado exclusivamente na imagem que a personalidade dos líderes projeta”. Para ela, ficou claro que os partidos apresentam programas pontuais e o poder acaba associado à aptidão dos candidatos no uso dos meios de comunicação nesses países. Segundo a pesquisadora, “não se trata de crise no sistema político e sim de uma metamorfose do governo representativo que, nos dois últimos séculos, passou por importantes modificações, destacandose a ampliação do direito ao sufrágio, paralelamente à emergência dos partidos de massa, em meados do século 21”. Já naquele momento, explica a jornalista, assinalava-se para uma crise da forma de governo representativo que, em geral, foi compreendida como avanço da democracia como ideal de governo do povo pelo
Kátia Saisi: Os mitos políticos plenamente adotados tanto pelas campanhas dos candidatos como pela cobertura jornalística.
nicação dos candidatos (mídias alternativas, desde rádio e tvs comunitárias, celulares e redes sociais), que estão mudando o modo de se fazer política na atualidade. Na primeira parte do livro, ela traça um panorama da democracia em todos os 20 países da América Latina, quando faz uma espécie de sobrevôo panorâmico por processos históricos, políticos e eleitorais que se volta ainda mais generosamente quando os tópicos são os sistemas legislativos e as formas de financiamento de partidos e campanhas. “Foco que se torna ainda mais intenso nas análises das campanhas de Dilma Rousseff, Sebastián Piñera e Hugo Chávez”. Ao esmiuçar a relação entre mídia e política, Kátia desvela a propaganda televisiva dos candidatos e a cobertura diária dos principais jornais dos três países, onde a corrida presidencial se deu de modo conflituoso, com animosidade entre os vários segmentos envolvidos no processo, principalmente a imprensa, apegada a um discurso de liberdade de opinião para, muitas vezes, posicionar-se a
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ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
JOSÉ CRUZ/ABR
favor de um candidato ou de uma ideologia. Além de identificar os princípios norteadores dos discursos dos candidatos e da cobertura jornalística, a pesquisadora explica de que modo se deu a ascensão de novas formas de comunicação dos candidatos por meio das mídias hoje consideradas alternativas, como emissoras de rádio e tvs comunitárias, telefones celulares, blogs e redes sociais, que estão mudando o modo de se fazer política – e jornalismo – na atualidade. A autora concluiu que, ao se observar as mais recentes campanhas presidenciais em toda a América Latina, percebe-se uma consolidação do personalismo. “Mas há também diferentes estratégias que flertam com os mitos políticos clássicos, não apenas no discurso dos candidatos como na cobertura jornalística”. A autora argumenta que é importante destacar que o discurso mítico criado pela propaganda e que, pelo menos reiterado pela Folha e pelo Estado no caso brasileiro, não encontra eco de modo absoluto em outros veículos de comunicação de massa. Ela foca em dois exemplos, as revistas semanais Carta Capital e Istoé, que se posicionaram claramente a favor da candidatura petista. “Não é esse aspecto – o do posicionamento dos veículos diante da corrida eleitoral – que discuto aqui”, observa. O que esta análise revela, prossegue Kátia, é que os mitos políticos de tipo clássico foram plenamente adotados tanto pelas campanhas dos candidatos em sua propaganda como pela cobertura jornalística que se fez delas. Em sua opinião, os veículos de
“Chávez foi além de fazer do seu personagem um objeto de culto. Fez uma leitura do herói que busca criar um sentido de continuidade histórica entre a luta pela independência em relação à Espanha e a atual luta pela independência do capital internacional”
imprensa são empresas com produtos à venda e interesses corporativos em jogo “e não meramente representantes dos interesses sociais e vigilantes de seu cumprimento, conceito que poderia ser definido como outro mito da sociedade midiática contemporânea: a imprensa como vigilante da democracia, sendo, portanto, imparcial e apartidária”. Interessante é a descrição que ela faz do mais polêmico político venezuelano de todos os tempos e sua relação de enfrentamento constante com a mídia noticiosa. “Chávez foi além de fazer do seu personagem um objeto de culto. Fez uma leitura do herói que busca criar um sentido de continuidade histórica entre a luta
pela independência em relação à Espanha e a atual luta pela independência do capital internacional”. Dessa maneira, diz Kátia, mais do que um seguidor de Bolívar, Chávez constrói um discurso que o transforma no herói nacional da atualidade, no porta-voz do projeto bolivariano moderno que, num primeiro momento, resumia-se ao nacionalismo patriótico e, com o tempo, se ampliou e não se reduziu apenas à Venezuela, mas a todo continente americano. Mais adiante, ela destaca: “Para seus adversários, esses recursos discursivos são usados para desconstruir aquela estratégia, mostrando-o como um ditador, populista, perigoso, comunista, bufão e canastrão, apenas para usar os termos que não só a propaganda de oposição, como também a imprensa nacional e internacional, o qualificam”. Formada em jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em
DIRETORIA – MANDATO 2010-2013 Presidente: Tarcísio Holanda Diretor Administrativo: Orpheu Santos Salles Diretor Econômico-Financeiro: Domingos Meirelles Diretor de Cultura e Lazer: Jesus Chediak Diretora de Assistência Social: Ilma Martins da Silva Diretora de Jornalismo: Sylvia Moretzsohn
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CONSELHO FISCAL 2011-2012 Adail José de Paula (in memoriam), Geraldo Pereira dos Santos, Jarbas Domingos Vaz, Jorge Saldanha de Araújo, Lóris Baena Cunha, Luiz Carlos Chesther de Oliveira e Manolo Epelbaum. MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO 2011-2012 Presidente: Pery Cotta Primeiro Secretário: Sérgio Caldieri Segundo Secretário: José Pereira da Silva (Pereirinha) Conselheiros Efetivos 2012-2015 Adolfo Martins, Afonso Faria, Aziz Ahmed, Cecília Costa, Domingos Meirelles, Fichel Davit Chargel, Glória Suely Alvarez Campos, Henrique Miranda Sá Neto, Jorge Miranda Jordão, Lênin Novaes de Araújo, Luís Erlanger, Márcia Guimarães, Nacif Elias Hidd Sobrinho, Pery de Araújo Cotta e Vítor Iório. Conselheiros Efetivos 2011-2014 Alberto Dines, Antônio Carlos Austregésilo de Athayde, Arthur José Poerner, Dácio Malta, Ely Moreira, Hélio Alonso, Leda Acquarone, Maurício Azêdo (in memoriam), Milton Coelho da Graça, Modesto da Silveira, Pinheiro Júnior, Rodolfo Konder (in memoriam), Sylvia Moretzsohn, Tarcísio Holanda e Villas-Bôas Corrêa. Conselheiros Efetivos 2010-2013 André Moreau Louzeiro, Benício Medeiros, Bernardo Cabral, Carlos Alberto Marques Rodrigues, Fernando Foch, Flávio Tavares, Fritz Utzeri (in memoriam), Jesus Chediak, José Gomes Talarico (in memoriam), Marcelo Tognozzi, Maria Ignez Duque Estrada Bastos, Mário Augusto Jakobskind, Orpheu Santos Salles, Paulo Jerônimo de Sousa e Sérgio Cabral. Conselheiros Suplentes 2012-2015 Antônio Calegari, Antônio Henrique Lago, Argemiro Lopes do Nascimento (Miro
1983, Kátia Saisi é hoje uma respeitada especialista em Comunicação e Marketing, segmento em que se formou pela Faculdade Cásper Líbero em 2001. Na mesma instituição, também defendeu o Mestrado em Comunicação e Mercado (2003), cuja dissertação foi premiada pela Intercom – Associação Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação – em 2004, na categoria Publicidade, Propaganda e Marketing. Em 2011, tornou-se doutora em Ciências Sociais pela PUC-SP, área de concentração em Política, com tese que inspirou seu novo livro. Pesquisadora do Núcleo de Estudos em Arte, Mídia e Política-Neamp da PUC-SP, acumula mais de 25 anos de experiência em assessoria de imprensa de empresas públicas e privadas, além de trabalhar com candidatos e políticos no exercício do mandato. Atualmente, ocupa o cargo de diretora executiva da Pluricom Comunicação Integrada. Campanhas Presidenciais – Mídia e Eleições na América Latina é um manual indispensável para jornalistas, profissionais de marketing e publicidade e até mesmo políticos, além do eleitor de modo geral. A recomendação se deve também pelo fato de a obra falar sobre o relacionamento com o eleitor através dos meios de comunicação de massa, analisando as mídias tradicionais – jornais e televisão – e as mídias alternativas – redes sociais e tvs comunitárias – no Brasil, Chile e Venezuela. Após 20 anos de atuação profissional como assessora de imprensa e de comunicação de instituições e políticos em campanha, a autora percebeu que esta experiência pragmática, se por um lado mostrava-se intensa, por outro era esvaziada de uma reflexão crítica sobre as engrenagens que fazem a política e a disputa pelo poder funcionar, bem como sobre o seu papel nesse mecanismo. Pois bem. Isso mudou. A reflexão agora está aí, ao alcance das mãos.
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
Conselheiros Suplentes 2011-2014 Alcyr Cavalcânti, Carlos Felippe Meiga Santiago (in memoriam), Edgar Catoira, Francisco Paula Freitas, Francisco Pedro do Coutto, Itamar Guerreiro, Jarbas Domingos Vaz, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Ponce de Leon, Salete Lisboa, Sidney Rezende, Sílvio Paixão (in memoriam) e Wilson S. J. Magalhães. Conselheiros Suplentes 2010-2013 Adalberto Diniz, Alfredo Ênio Duarte, Aluízio Maranhão, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel Mazola Froes de Castro, Germando de Oliveira Gonçalves, Ilma Martins da Silva, José Silvestre Gorgulho, Luarlindo Ernesto, Marceu Vieira, Maurílio Cândido Ferreira, Sérgio Caldieri, Wilson de Carvalho, Yacy Nunes e Zilmar Borges Basílio. COMISSÃO DE SINDICÂNCIA Carlos Felipe Meiga Santiago, Carlos João Di Paola, José Pereira da Silva (Pereirinha), Maria Ignez Duque Estrada Bastos e Marcus Antônio Mendes de Miranda. COMISSÃO DE ÉTICA DOS MEIOS DE COMUNICAÇÃO Alberto Dines, Arthur José Poerner, Cícero Sandroni, Ivan Alves Filho e Paulo Totti. COMISSÃO DE DEFESA DA LIBERDADE DE IMPRENSA E DIREITOS HUMANOS Presidente, Mário Augusto Jakobskind; Secretário, Arcírio Gouvêa Neto; Alcyr Cavalcânti, Antônio Carlos Rumba Gabriel, Arcírio Gouvêa Neto, Daniel de Castro, Ernesto Vianna, Geraldo Pereira dos Santos,Germando de Oliveira Gonçalves, Gilberto Magalhães, José Ângelo da Silva Fernandes, Lênin Novaes de Araújo, Lucy Mary Carneiro, Luiz Carlos Azêdo, Maria Cecília Ribas Carneiro, Martha Arruda de Paiva, Miro Lopes, Orpheu Santos Salles, Sérgio Caldieri, Vitor Iório e Yacy Nunes. COMISSÃO DIRETORA DA DIRETORIA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL Ilma Martins da Silva, Presidente; Manoel Pacheco dos Santos, Maria do Perpétuo Socorro Vitarelli, Mirson Murad e Moacyr Lacerda. REPRESENTAÇÃO DE SÃO PAULO Conselho Consultivo: Rodolfo Konder (in memoriam), Fausto Camunha, George Benigno Jatahy Duque Estrada, James Akel, Luthero Maynard e Reginaldo Dutra. REPRESENTAÇÃO DE MINAS GERAIS José Mendonça (Presidente de Honra), José Eustáquio de Oliveira (Diretor),Carla Kreefft, Dídimo Paiva, Durval Guimarães, Eduardo Kattah, Gustavo Abreu, José Bento Teixeira de Salles, Lauro Diniz, Leida Reis, Luiz Carlos Bernardes, Márcia Cruz e Rogério Faria Tavares.
JORNAL DA ABI 404 AGOSTO DE 2014 O JORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO ORTOGRÁFICO DOS PAÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE •2008.
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ELZA FIÚZA/ARQUIVO/AGÊNCIA BRASIL
VIDAS
Eduardo Campos, a esperança P OR P AULO C HICO
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té aqui, o ano de 2014 foi especialmente penoso para Pernambuco. Além do falecimento de Ariano Suassuna em 23 de julho, os pernambucanos lamentaram a perda de um dos seus mais ilustres políticos. Acidente aéreo ocorrido na manhã de 13 de agosto, em Santos/SP, matou Eduardo Campos, ex-Governador do Estado e candidato à Presidência da República pelo PSB, tendo como vice Marina Silva, que assumiu o posto principal na chapa que segue na disputa. Ariano, na verdade um paraibano, há muitas décadas havia escolhido o Recife como residência. Campos, procurava justamente fazer o caminho contrário. Alargar seus horizontes políticos para além de seu estado natal e da região Nordeste, e firmar-se como liderança nacional. Na madrugada do dia 23 de julho, poucas horas antes da morte de Suassuna, o então candidato esteve no Real Hospital Português, na capital pernambucana, onde estava internado o escritor. Acompanhado da esposa Renata, fora visitar o dramaturgo, àquela altura em coma e já em estado considerado grave. Além de amigos pessoais de longa data – e aqui vale lembrar que Eduardo era neto de Miguel Arraes – eles eram, de certa forma, ‘parentes’. Renata, agora viúva de Campos, é sobrinha de Zélia, viúva do escritor. E mais que isso. Suassuna ocupou secretarias estaduais em dois governos do Eduardo, com forte atuação na área cultural. “Pernambuco está em choque. É como se tivessem tirado as fundações do Estado. A liderança de Eduardo Campos era tão expressiva no campo político, e a contribuição cultural de Suassuna era tão intensa, que os vazios são imensos. Duvido que Pernambuco tenha estado tão triste e indefeso como agora”, afirmou Silvio Meira, cientista-chefe do Centro de Estudos Avançados do Recife. Suassuna mostrava-se entusiasmado com a candidatura de Campos à Presidên24
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cia. “A minha sintonia com o Governador não vem somente do discurso, certo? Ele é a grande esperança. Getúlio, Jânio, Juscelino e Lula da Silva. Para mim, foram os melhores Presidentes que o Brasil já teve. Se Eduardo Campos fizer pelo Brasil metade do que ele fez em Pernambuco, vai ganhar de todos os quatro. Eu acho que ele é o político mais brilhante que eu já conheci. E acho o mais hábil, o mais apto a melhorar e levar adiante as conquistas sociais obtidas no governo Lula. Na campanha de 2006, diziam que ele seria o novo Miguel Arraes. Eu disse: não! Ele vai ser mais do que isso. Ele vai ser o Arraes novo. E foi, realmente. Ele não me decepcionou em nada. Na medida em que eu pude, ajudei em 2006”, afirmou em entrevista a O Globo, publicada em abril deste ano. Trajetória política Eduardo Henrique Accioly Campos nasceu no Recife, no dia 10 de agosto de 1965. Com formação em economia, teve diversificada trajetória política. Por dois mandatos consecutivos, no período de 2007 a 2014, foi Governador de Pernambuco. Cumpriu ainda um mandato de Deputado Estadual, além de três passagens pela Câmara Federal. Foi Ministro da Ciência e Tecnologia, no segundo governo de Luiz Inácio Lula da Silva. Sua morte, aos 49 anos, colocou um precoce ponto final em sua carreira, que parecia mesmo destinada a ocupar o posto máximo no Executivo do País. Provavelmente, não nesta eleição. Chegar ao cargo de Presidente da República era missão que, certamente, ainda exigiria algum tempo e maior exposição em nível nacional. O anúncio de sua morte fez arrefecer por alguns dias o ritmo frenético da campanha. A Presidente Dilma Rousseff decretou luto oficial de três dias. “Perdemos hoje um grande brasileiro. Estivemos juntos, pela última vez, no enterro do nosso querido Ariano Suassuna. Conver-
samos como amigos. Sempre tivemos claro que nossas eventuais divergências políticas sempre seriam menores que o respeito mútuo característico de nossa convivência”. Dilma, assim como o exPresidente Lula, compareceu ao velório. Estimativas dão conta de que pelo menos 160 mil pessoas, entre familiares, populares e lideranças políticas, participaram das despedidas a Eduardo Campos. Após cortejo que durou mais de duas horas pelo Centro Histórico de Recife, o corpo foi enterrado sob aplausos, pouco depois das 18h30 do dia 17 de agosto, no cemitério de Santo Amaro. Os restos mortais foram colocados no jazigo da família, mesmo local onde foi enterrado o avô Miguel Arraes, em 2005. Dois jornalistas entre as vítimas No mesmo acidente aéreo, que segue sob investigação, morreram os dois pilotos do jatinho, além de outros quatro ocupantes da aeronave, membros da campanha de Eduardo. Eles haviam deixado o Rio de Janeiro naquela manhã. Na capital fluminense, na noite do dia 12, o candidato do PSB havia concedido entrevista para o Jornal Nacional, da TV Globo. No dia 13, Campos participaria de encontro político em Guarujá/SP. Após mal sucedida tentativa de pouso na pista local, dificultado pela má condição do tempo, o piloto arremeteu o avião, que acabou por cair em bairro residencial de Santos, cidade vizinha. Além de Eduardo, faleceu no acidente Carlos Augusto Ramos Leal Filho. Conhecido como Percol, o jornalista de 36 anos era assessor de imprensa. Durante o governo de Campos em Pernambuco, foi gerente de Relações com a Imprensa, assessorando diretamente o Governador. Em 2012, coordenou a comunicação da campanha de Geraldo Julio, que se elegeu Prefeito do Recife, e foi nomeado secretário de imprensa da gestão. Percol era
casado com a jornalista Cecília Ramos. Segundo ela, o assessor estava “no melhor momento da vida”. “A gente casou há apenas quatro meses. Eu dizia que não fazia questão de perdê-lo para Eduardo, porque era uma admiração mútua, uma companhia, e ele tava tão feliz. A felicidade dele era a minha”, disse ela, que chegou a cogitar também trabalhar pela eleição do candidato do PSB. Nascido no Recife em 1978, Alexandre Severo Gomes e Silva, era fotógrafo da campanha. Morava em São Paulo e tinha pós-graduação em fotografia pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Severo acumulou, desde 2002, importantes trabalhos e prêmios. No Recife, passou pelas Redações do Jornal do Commercio, Diário de Pernambuco e Folha de Pernambuco. Em 2009, recebeu menção honrosa no prêmio Wladimir Herzog pelo ensaio “À flor da pele”, que retratava a história de três irmãos albinos nascidos em uma família de negros em Olinda. Assim como Alexandre, as imagens eram a paixão de Marcelo de Oliveira Lyra, cinegrafista, outra vítima da queda da aeronave. Deixou mulher, uma filha de 18 anos e um filho de pouco mais de um ano. Pedro Almeida Valadares Neto, assessor de campanha e ex-Deputado Federal, também perdeu a vida na queda, fatal também para os pilotos. Geraldo Magela Barbosa da Cunha tinha 45 anos e há mais de 20 pilotava aeronaves. Segundo a família, já tinha acumulado mais de quatro mil horas de vôo. Desde junho deste ano, trabalhava para a campanha de Eduardo Campos à Presidência. A mulher de Geraldo, Joseline Amaral da Cunha, está grávida de sete meses. O casal ainda tem um filho de quatro anos. Marcos Martins vivia em São Paulo. Tinha 42 anos e exercia a profissão há aproximadamente 15 anos. Era casado com Flávia Vargas Martins, de 32 anos, e deixou dois filhos.