Jayme Leão: O legado de um desenhista militante
O humor gráfico nos tempos do golpe
Dines: o fim dos jornais nos anos de chumbo
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399 MARÇO 2014
IAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
Audálio Dantas, Carlos Heitor Cony, Eliakim Araújo, Juca Kfouri, Ricardo Kotscho, Rodolfo Konder e Tinhorão lembram o dia do golpe.
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Desenho de Fortuna, publicado em 1964.
DIRETORIA DA ABI ANULA ELEIÇÃO DA MESA DIRETORA DO CONSELHO PÁGINA 3
FRANCISCO UCHA
ESPECIAL
EDITORIAL
A ARTE DA MISTIFICAÇÃO
com o luto. Não se prestou nenhuma homenagem póstuma ao jornalista brilhante, mas de gênio esquentado, que ocupava sub judice a presidência da entidade, desde a eleição de abril de 2013. Ninguém pediu sequer um minuto de silêncio em memória do seu falecimento. Não se ouviu também nenhuma palavra que traduzisse pesar ou tristeza. Em nenhum momento pronunciou-se o nome de Maurício Azêdo. Não se ouviu uma única voz que exaltasse suas virtudes. Era como se o presidente morto quatro dias atrás nunca tivesse existido. O espetáculo que se seguiu foi vergonhoso e degradanJoseph Goebbels, Ministro da Propaganda de Adolf Hitler te para uma entidade com a tradição de defesa das liberdades como a ABI. A maioria dos conselheiros presenDOMINGOS MEIRELLES tes endossou um parecer jurídico produzido sob medida, pelo escritório de advocacia Siqueira Castro, para O que leva uma pessoa a mentir de forma obsessiva? Não se pode acreditar em pessoas comprometidas com impedir que Tarcísio fosse empossado no comando da Qual é o perfil do mentiroso? A mentira é uma doença a falsificação da verdade. O que dizem tem a mesma creCasa. Num passe de mágica, o Conselho atropelou o ou uma falha de caráter? A ciência tem consumido muidibilidade e garantia do uísque escocês vendido no ParaEstatuto, transformou uma Sessão Ordinária em Extrata tinta e papel para tentar explicar o motivo que leva guai. Não se pode permitir, entretanto, ordinária, cassou o mandato de Tarcísio Na insana tentativa de pessoas, de diferentes estratos sociais, a criarem um ciclo que continuem aspergindo acusações ine elegeu Fichel Davit Chargel para prede mentiras e terminarem reféns de uma realidade falsa fundadas contra jornalistas com a histó- reconquistar os espaços sidir a ABI até 2016. onde acampavam, na qual acreditam ou fingem acreditar. Goebbels tinha ria e o currículo de profissionais como AuA assunção de Tarcísio Holanda, em continuam a cometer uma perna dez centímetros mais curta que a outra. Com dálio Dantas, Ziraldo, Carlos Chagas, 21 de fevereiro, tem múltiplos significatrapalhadas, além de dos, além de estancar o acelerado processo seu aleijão, personificava ironicamente a própria mentira. Milton Coelho da Graça, Alberto Dines, Nos seus delírios, Goebbels amparava-se em discurZuenir Ventura, Flávio Tavares, Joseti recorrerem várias vezes, de erosão que afetava a imagem da Casa sem sucesso, à mesma e ameaçava o futuro da mais longeva sos fraudulentos como se fossem a expressão da verdaMarques, Paulo Caruso, Juca Kfouri, justiça que tanto de. Ele era um espertalhão ou um psicopata como os Carlos Newton, Adalberto Diniz, Jesus instituição da sociedade civil. A sua posachincalham. portadores da Síndrome de Münchhausen que fantasiChediak, Tarcísio Baltar, Paulo Jerônimo, se deu a todos nós uma lufada de esperanam a vida que levam, exibindo-se publicamente como Moura Reis, Ana Maria Costábile, Orpheu Santos Salles, ça. A presença de um prestigiado repórter político no vítimas de supostas ofensas e agressões, apenas para Ágata Messina, Silvestre Gorgulho, Múcio Aguiar, Amiuccomando da ABI, além de deter a estatura que o cargo exige, despertar a comiseração alheia? ci Gallo, Arnaldo Cesar, Eduardo Ribeiro, Sérgio Gomes, deu também novo hálito de vida a uma instituição em esAo serem despejados do camping onde armavam suas Andrey Bastos, Hélio Doyle e Berto Filho, entre tantos tado comatoso. A ABI não precisa agora continuar respibarracas, sugando em benefício próprio o pouco prestíoutros que integram a chapa Vladimir Herzog. rando com a ajuda de aparelhos. Os piores momentos de gio e credibilidade que a ABI ainda desfrutava, os antigos Na insana tentativa de reconquistar os espaços onde sua história estão sendo revertidos através de intenso inquilinos do 7º andar passaram a disparar ofensas conacampavam, continuam a cometer trapalhadas, além de programa de gestão desenvolvido pela atual Diretoria. O tra as diferentes instâncias do judiciário do Rio de Janeiro. recorrerem várias vezes, sem sucesso, à mesma justiça que principal objetivo é recuperar, em curto prazo, o edifícioEsqueceram-se da avalanche de irregularidades que tanto achincalham. A última lambança foi tentar vergar sede, ameaçado fisicamente de entrar em colapso. O viciaram o processo eleitoral, desde o berço, com o paro Estatuto para usá-lo como estilingue na sessão do Conabandono do prédio, um dos marcos da moderna arquito enviesado de uma comissão que deveria conduzir o selho Deliberativo convocada pela Diretoria da ABI, no tetura brasileira, é apenas um reflexo dos desmandos e da pleito com isenção. Os integrantes da chapa Prudente final de março, para eleger a nova mesa do órgão. falta de rumo da antiga administração. de Morais, neto acabaram provando do próprio veneno. O último ato dessa ópera bufa foi melancólico para uma O segundo passo é a restauração da credibilidade lenOs atos espúrios praticados pela antiga administração, instituição com o passado da ABI: elegeram para a Mesa tamente drenada por interesses que se encontravam em com o objetivo de impedir que a chapa Vladimir Herzog Diretora conselheiros suplentes, o que é explicitamente litígio com o papel que a instituição representou no pasparticipasse das eleições, voltaram-se contra seus próvedado pelo Estatuto. Cometeram ainda outra inacreditásado. Apesar de sitiada por dívidas monumentais que prios autores (vide A Cronologia da Crise , edição 398 do vel patuscada: indicaram e elegeram para a Mesa do Conprovocaram a penhora de todos os seus pavimentos, a ABI Jornal da ABI. O mesmo texto pode ser também enconselho uma associada que sequer é conselheira. Diante de começou a mudar para enfrentar os desafios do futuro. trado no site da Casa, na internet) . tamanha demonstração de insensatez e estultice, a DireA crise estimula a escolha de novos rumos. A ABI se Apanhados em flagrante delito, viram-se obrigados toria anulou a eleição em função das graves violações do levanta e se renova, abre suas portas para os jovens jora fazer as malas às pressas e a deixar os cargos que ocuEstatuto (vide matéria na página ao lado). Uma nova eleinalistas e reconquista a confiança dos profissionais que pavam de forma desonrosa. Ao serem afastados das poção foi marcada para a última terça-feira de abril. desertaram da Casa, ou continuará sendo a sombra de si sições tomadas de assalto, através de expedientes espúA posse de Tarcísio Holanda na presidência da ABI, em mesma, desfazendo-se nas dobras do tempo. rios, começaram a exibir a mesma patologia dos porta21 de fevereiro, teve extraordinária significação simbóA posse de Tarcísio teve ainda outro importante sigdores da Síndrome de Münchhausen. Apresentam-se lica: a recuperação do seu mandato, cassado através de nificado do ponto de vista político e sanitário: impediu atualmente como vítimas do poder judiciário. Exageram expedientes insidiosos, praticados pelos próprios compaque a entidade continuasse a ser usada como vitrine e seus sofrimentos, inventam a cada dia novos sintomas, nheiros da chapa Prudente de Morais, neto, onde concorpalanque por personagens menores que proliferavam nas na tentativa de chamar a atenção e angariar simpatia ria como vice. Quatro dias depois da morte do ex-Presiáreas de sombra da Casa. Ao serem expostos ao sol, perentre almas de boa-fé. dente, Tarcísio veio especialmente de Brasília para ocuderam a identidade, o norte e o viço, reduzindo-se à sua Shakespeare dizia que todos nós somos atores, alguns par o cargo que lhe pertencia de fato e de direito. Na reuverdadeira dimensão. Mesmo diante da sua pequenez não bons, outros maus, mas com um determinado momento nião Ordinária do Conselho Deliberativo, realizada em se deram por vencidos. Voltaram a recorrer ao surrado de entrada e saída no drama para o qual não fomos con29 de outubro, não imaginava que seria vítima de um estoque de aleivosias que tentam usar agora como uma vidados. Os canastrões que se dizem vítimas das vilezas “golpe de Estado”. espécie de alvará, na esperança de legitimar um discurso do judiciário têm consciência do papel que interpretam Ao chegar à ABI naquele dia, acreditava que a sessão encardido e divorciado dos novos tempos. A ABI se levane não podem ser levados a sério. Adulteram e inventam seria breve, havia inclusive preparado pequeno texto ta de vez e se agiganta, como no passado, ou será novafatos de acordo com interesses de ocasião. Ao denegrirem sobre sua longa convivência com o ex-Presidente de mente povoada por legiões de ácaros e outros microorreputações, de forma açodada, não perceberam que a ganismos que se abrigam em ambientes úmidos e abafaquem fora colega de Redação no antigo Jornal do Brasil. mentira, como Goebbels, também tem perna curta. Não foi o que aconteceu. Ninguém estava preocupado dos para se protegerem da ação desinfetante da luz.
"Uma mentira contada mil vezes, torna-se uma verdade."
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PRESTAÇÃO DE CONTAS
DIRETORIA ANULA ELEIÇÃO DA MESA DO CONSELHO DELIBERATIVO A Sessão Ordinária que deveria eleger a nova Mesa do Conselho Deliberativo foi anulada pela Diretoria da ABI diante do conjunto de irregularidades cometidas durante a reunião realizada no dia 25 de março. O encontro foi marcado por graves ofensas ao advogado Jansen dos Santos Oliveira e ao Estatuto da entidade. Convidado pelo Presidente Tarcísio Holanda para fazer uma breve exposição sobre o processo que tramita na 8ª Vara Cível, o advogado foi insultado e impedido de falar. Vários conselheiros exigiram, aos gritos, que se retirasse da sala do Conselho, alegando que "a ABI não era a OAB", ignorando a histórica parceria política que sempre existiu entre as duas entidades. O suplente de Conselheiro Marcus Antonio Mendes de Miranda afirmou que a presença do advogado era considerada indesejável pelo plenário. Ao tomar essa atitude, Miranda conspurcou uma das mais nobres tradições da ABI. A Casa dos Jornalistas jamais cassou a palavra de profissionais de outras áreas, convidados por diferentes comissões da entidade. No ano passado, o mesmo Conselho ouviu com interesse o Deputado Federal Protógenes Queiroz, como dedicou especial atenção ao Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da UFRJ. O mesmo tratamento foi também dispensado ao General-de-Exército Cláudio Barbosa de Figueiredo, exComandante Militar da Amazônia. O Presidente Tarcísio Holanda ainda tentou garantir a palavra ao advogado, cujas prerrogativas são asseguradas pela Constituição, mas foi derrotado pelo plenário. Aos gritos, conselheiros sustentavam que naquele local quem mandava era o Conselho e não a OAB. A Diretoria da ABI, envergonhada com tamanha demonstração de autoritarismo, enviou à OAB um pedido de desculpas diante do constrangimento a que o advogado Jansen Oliveira foi submetido durante aquela reunião. Aberta a Sessão Ordinária de 25 de março para a eleição da nova Mesa do Conselho afloraram as
primeiras irregularidades. O livro de presença apresentava duas listas com diferentes nomes de conselheiros. A primeira violação do Estatuto ocorreu na formação das chapas, onde uma associada foi indicada para a Segunda Secretaria como se fizesse parte do Conselho. Em seguida, o nome de um suplente foi votado para ocupar a Primeira Secretaria da Mesa Diretora, o que também é vedado pelo Estatuto. A outra grave irregularidade ocorreu durante o processo de votação. Vários suplentes votaram na eleição, o que também está em desacordo com o Estatuto da ABI. Não bastasse esse conjunto de irregularidades, dois membros da Mesa Diretora eleita redigiram uma ata, às pressas. Ela foi publicada no site da ABI sem autorização da Diretoria e sem que o texto fosse também aprovado pelos conselheiros presentes, como é de praxe em todas as sessões do Conselho. O açodamento na publicação da ata, que adulterava fatos e não reproduzia com fidelidade o que ocorrera durante a reunião, tinha como objetivo legitimar as ilegalidades cometidas durante a eleição. Após um exame minucioso da lista de votantes, que se encontrava em total desacordo com o Estatuto, foram encontradas novas irregularidades, como o nome repetido de conselheiros e de suplentes, em listas distintas. Diante de tamanha afronta ao Estatuto e às melhores tradições da entidade, onde foram desprezados os mais comezinhos princípios da Ética e do Direito, a Diretoria da ABI decidiu anular a eleição. "A Diretoria da ABI reunida nesta segunda-feira, dia 31 de março de 2014, deliberando sobre os procedimentos adotados na última reunião do Conselho Deliberativo, por ela convocado com base no artigo 30 do Estatuto, constatou a existência de graves irregularidades que comprometeram a validade da pauta do dia da referida reunião. A convocação da reunião de 25 de março de 2014 destinavase ao cumprimento da seguinte ordem do dia:
1-Eleger o Presidente, Primeiro e Segundo Secretários do Conselho Deliberativo, com mandato até a data das eleições a serem realizadas; 2-Indicar os membros do Conselho Deliberativo para integrar a Comissão Eleitoral, de acordo com item 4 do artigo 5º. do Título II do Regulamento Eleitoral. A primeira irregularidade foi a eleição do item 1 da pauta. O Primeiro Secretário da mesa do Conselho Deliberativo eleito não podia ter sido escolhido por violar o parágrafo segundo do artigo 31 do Estatuto, que diz: "Os suplentes poderão participar das reuniões, com direito a voz, mas não a voto" (g/n). A outra grave irregularidade relaciona-se com a eleição da Segunda Secretária da Mesa do Conselho Deliberativo, visto que a mesma não exerce o cargo de Conselheira Efetiva, além de não ser sequer suplente. Seu mandato perdeu a validade por decisão judicial que anulou a eleição realizada em abril de 2013. A terceira irregularidade prende-se ao próprio Colégio Eleitoral que participou da votação da Mesa Diretora do Conselho Deliberativo onde aproximadamente 15 Conselheiros Suplentes e 2 Associados votaram como se fossem Conselheiros Efetivos, o que viola o parágrafo segundo do artigo 31 do Estatuto. A quarta irregularidade refere-se ao fato de que alguns Conselheiros que participaram da votação não se encontravam com a sua mensalidade em dia como estabelece o artigo 12 do Estatuto, bem como o artigo 40 do Regulamento Eleitoral. Diante do exposto, a Diretoria comunica aos Associados que será convocada uma nova Reunião com a mesma pauta daquele dia, com o objetivo de restabelecer a composição da Mesa Diretora do Conselho Deliberativo e marcar a data de uma nova eleição geral, como determinou a juíza da 8ª. Vara Cível. Essa decisão de primeira instância foi confirmada no julgamento de 12 de fevereiro 2014 da 11ª. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro."
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A
Diretoria da ABI, sob o comando de Tarcísio Holanda, aprovou um programa de intervenções imediatas no Edifício Herbert Moses para tentar reverter, a curto prazo, o quadro de descaso, apatia e abandono em que se encontrava a sede da entidade. O conjunto de providências destina-se à recuperação de setores vitais da instituição, apontados no laudo de vistoria, realizado em março de 2012, pelo arquiteto Fernando S. Krüger. Apesar de diagnosticados como “de caráter urgente” nada foi feito, nos dois últimos anos, para sanar problemas que colocavam em risco não só a segurança dos associados como a dos inquilinos do prédio. Entre as medidas emergenciais recomendadas pelo arquiteto estava a substituição dos cabos dos elevadores, corroídos pela ferrugem, que se encontravam literalmente por um fio. Foram quase dois anos de inércia. No início de abril foram tomadas as primeiras iniciativas para eliminar essa grave situação de risco que poderia gerar conseqüências imprevisíveis. A empresa responsável pela manutenção dos elevadores já realizou a substituição dos cabos danificados. Foram também trocadas as 24 escovas dos motores. Como não foi respeitado o prazo indicado pelo fabricante, as escovas encontravam-se também muito desgastadas (foto acima), comprometendo a segurança e o bom funcionamento dos três elevadores da Casa. A central de ar-condicionado, que estava desativada há cerca de um ano, voltou a funcionar. Das quatro máquinas que compõem o sistema, três estão operando dentro do padrão de refrigeração ideal. A última unidade deverá ser reparada até o final de março e início de abril. O conserto da central de arcondicionado, orçado em cerca de R$ 18 mil, permitiu que o auditório do 9º andar voltasse a ser alugado. Em condições normais de funcionamento, o pagamento do material e da mão de obra poderia ser quitado em pouco mais de dois meses, com a renda do próprio aluguel. A demora inexplicável na contratação de uma empresa especializada para realizar o conserto, privou a ABI, durante um ano, de significativa receita alternativa. O aluguel de seu auditório, um dos maiores do centro do Rio, é a terceira fonte de renda da Casa. A desídia em realizar o conserto da central de ar-condicionado teve reflexos nas atividades internas da ABI, ao restringir o calendário de eventos da entidade, diante da falta de refrigeração no 9º andar. 4
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FOTOS: RAUL AZÊDO
OBRAS
O TRABALHO COMEÇOU
Estamos colocando a Casa em ordem
Nas fotos, o registro de algumas obras na ABI: no alto à esquerda, técnicos fazem os reparos no ar-condicionado e à direita, aparam os novos cabos de aço do elevador, de onde foram trocados também 24 escovas dos motores. Na foto destacada, duas escovas: uma nova e outra totalmente desgastada. Acima à esquerda, os motores do elevador com os novos cabos e, à direita, a Biblioteca Bastos Tigre recebe proteção contra a luz solar.
CUIDADOS COM UMA JÓIA DA CASA A Biblioteca Bastos Tigre, que reúne um dos maiores acervos de publicações especializadas em Comunicação do País, recebeu também um tratamento especial da Diretoria sob o comando de Tarcísio Holanda. Todos os vidros das janelas e porta-janelas da biblioteca, localizada no 12º andar, receberam uma nova pro-
teção contra a incidência solar. A aplicação de uma película especial de insulfilm, além de reduzir o calor, insuportável durante o verão, evitou a perpetuação de uma cena constrangedora que se arrastava há vários anos: para não serem atingidos pelo sol, os livros eram removidos da extremidade das prateleiras e espalhados em pilhas, pelo chão. Situação inaceitável para uma instituição com a tradição e o
passado da ABI, que defende a livre circulação das idéias e a democratização do conhecimento, e cuja biblioteca é considerada uma das jóias da Casa, motivo de orgulho para todos nós. Na Biblioteca podem ser encontrados, para consulta, mapas antigos, revistas e coleções dos principais jornais que circulam e circularam no País, além de preciosas publicações do século 19, como a ir-
reverente Revista Illustrada, de Angelo Agostini, que fazia a delícia dos leitores do Rio de Janeiro, no tempo do Império. Umas das metas da Diretoria é fazer também um convênio com a Biblioteca Nacional para a restauração de documentos do Segundo Reinado que compõem o acervo histórico da ABI. Esse material, que deveria estar preservado em armários e gavetas climatizadas, necessita de urgente tratamento para estancar e reverter o processo de degradação do papel exercido pelo tempo. Até o final de abril, será também realizado um trabalho de higienização de toda a biblioteca para imunizá-la contra fungos, traça e cupim. Todo o seu acervo deverá ser digitalizado e os títulos colocados no site da entidade a fim de que as obras possam ser localizadas e, posteriormente, consultadas no salão de leitura, por pesquisadores de todo o País. Antes de ser transferida do 9º para o 12 º andar, a Biblioteca Bastos Tigre era um dos xodós dos associados da Casa, como o poeta e jornalista Carlos Drummond de Andrade, um dos seus mais ativos consulentes. Durante vários anos, a biblioteca da ABI, como as grandes livrarias do Rio, foi também ponto de encontro obrigatório dos intelectuais da época, que ali se reuniam, para trocar alguns dedos de prosa, antes de subirem para tomar um café no 11º andar. Drummond dizia sempre que aquele espaço tomado pelos livros não era um cemitério de papel, “mas um território livre do espírito, contra o qual jamais conseguirá prevalecer qualquer forma de opressão”. Sua reflexão estendia-se à própria entidade, nos diferentes momentos em que interveio em defesa das liberdades, desde a sua fundação em 1908.
MEMÓRIA DA IMPRENSA EM DEPOIMENTOS Outra questão que chamou a atenção da Diretoria foi a situação de abandono em que se encontra o acervo do antigo Centro de Memória da ABI. A Diretoria consultou o engenheiro de som Sérgio Lima, da empresa La Macchina del Tempo, para que apresentasse um diagnóstico sobre as possibilidades de recuperação do maior acervo de história oral da imprensa contemporânea que se encontrava abandonado, em caixas de sapato e papelão. Dezenas de fitas cassete estão gravemente afetadas por fungos por terem sido arquivadas, de forma inadequada, ao longo de vários anos. O Centro de Memória reúne depoimentos inéditos de Jânio de Freitas, Alberto Dines, Odylo Costa filho, e Amilcar de Castro sobre a famosa reforma do Jornal do Brasil. Outro momento glorioso registrado em fitas cassete foi a introdução do lead no Brasil, realizada por Pompeu de Souza , no antigo Diário Carioca. Em longo depoimento, Pompeu relembra as resistências que enfrentou, na época, ao implantar o lead , importado do jornalismo americano, e o impacto que o mesmo provocou sobre a imprensa brasileira, que acabaria por adotá-lo, durante décadas, como técnica moderna de reda-
ção do noticiário impresso. O nascimento de O Globo, Última Hora, revista O Cruzeiro, além de outras importantes publicações, estão entre os depoimentos inéditos de profissionais que tiveram expressiva participação na criação desses veículos. Toda essa história oral corre o risco de se perder para sempre diante do descaso das gestões passadas em preservar esses relatos. Assim que todo esse material for recuperado e digitalizado, o Centro de Memória dará início a uma série de publicações com base nesse acervo, sob o título Cadernos de Jornalismo ABI, que se transformará também em significativa fonte de receita alternativa da Casa.
A RECUPERAÇÃO DA FACHADA DO PRÉDIO A grande reforma da fachada já começou. Um novo levantamento da área comprometida por placas de mármore soltas, estufadas ou trincadas revelou que a demora em realizar o serviço, diagnosticado em 2012, aumentou o número de peças a serem trocadas, diante do risco de despencarem sobre as pessoas que circulam pelas calçadas das Ruas México e Araújo Porto Alegre. A quantidade praticamente quintuplicou em conseqüência das infiltrações ocorridas nos últimos anos. A substituição do material danificado, nas duas faces do prédio, começou pelo último andar. A Diretoria da ABI havia planejado retirar em um mês o “quebra-lixo” que envolve todo o prédio por determinação da Defesa Civil do Município para evitar acidentes graves com pedestres. Mas com o aumento da área comprometida, o trabalho só deverá ser concluído em julho ou agosto. O custo das placas, orçado inicialmente em cerca de R$ 12 mil , está agora em torno de R$ 80 mil. Desde fevereiro de 2013, quando foi instalado o “quebralixo”, foram jogados no ralo cerca de R$ 50 mil só com o aluguel dos andaimes, sem que a obra na fachada fosse iniciada, apesar das facilidades de pagamento oferecidas, na época, pela empresa responsável pelo fornecimento do mármore.
CESTAS-BÁSICAS PARA ASSOCIADOS O restabelecimento do programa assistencial de entrega de cestas- básicas para associados carentes, que se encontrava suspenso desde o ano passado, foi restabelecido pela Diretoria por entender que se tratava de um serviço essencial. A cesta-básica é constituída de artigos de primeira necessidade, como leite em pó, café, arroz, macarrão, feijão, óleo de soja, sal, açúcar e farinha, além de outros produtos. Os associados que necessitarem ingressar nesse programa devem entrar em contato com o serviço social da ABI, através do telefone da entidade. O tempo entre o credenciamento e a entrega dos alimentos dura cerca de um mês. A relação dos associados que participam desse programa é mantida em absoluto sigilo pela Diretoria de Assistência Social da ABI.
Os andaimes devem ser retirados em julho ou agosto, depois da substituição de todas as placas de mármore que ameaçam cair.
GRANDES MUDANÇAS Um conjunto de pequenas intervenções foi suficiente para mudar a fisionomia do prédio interna e externamente, com a substituição de 76 lâmpadas que se encontravam queimadas, desde o ano passado, nas escadas e corredores do edifício-sede. A simples colocação de oito lâmpadas, no hall central, deu um banho de luz na entrada dos elevadores, afastando o aspecto cavernoso que durante quase um ano dominou a entrada principal da ABI. O número de lâmpadas queimadas é extremamente revelador. Demonstra a dimensão do desleixo da antiga gestão não só em relação à iluminação de áreas de grande circulação, como em relação às demais atividades da Casa. O mesmo quadro de desleixo e abandono pode ser encontrado no principal auditório da Casa, localizado no 9º andar. Esse espaço nobre, que abrigou importantes acontecimentos do nosso passado recente, exibe péssimo aspecto. Lâmpadas queimadas, piso encardido, paredes sujas, poltronas quebradas e cobertas de pó. No palco, dois pianos importados, um de cauda e outro de meia cauda, estão em péssimo estado de conservação com partes de suas estruturas danificadas por cupins. O piano menor, além de considerado uma peça rara, tem ainda incalculável valor histórico e sentimental. Foi doado à ABI pela extraordinária pianista Guiomar Novaes que o levava sempre, em sua companhia, durante as famosas turnês realizadas pelo Brasil, Europa e Estados Unidos. Foi também no piano maior que Artur Moreira Lima apresentou-se pela primeira vez, em público, durante um recital. O músico era ainda um menino de calças curtas quando participou de um festival de música clássica no auditório da ABI. Ao se apresentar na festa em homenagem aos 98 anos de fundação da Casa, Moreira Lima recordou emocionado aquele momento inesquecível. Contou que a cena, com as pessoas o aplaudindo de pé, naquele mesmo auditório, permanecia até hoje intocada em sua memória afetiva. A Diretoria já entrou em contato com uma empresa especializada para recuperar os dois pianos antigos, fabricados no
início do século 20, atualmente avaliados em cerca de US$ 80 mil. A revitalização do 11º andar é outra das prioridades estabelecidas pela atual gestão com o objetivo de atrair os associados aposentados que desertaram da Casa, deixando de freqüentar aquele espaço nobre de convivência social e lazer. A Diretoria estuda a possibilidade de instalar uma cantina no onze, como existia no passado, além de restabelecer uma antiga tradição daquele espaço, igualmente abandonada, como salão de leitura. A Diretoria colocou à disposição dos sócios jornais e revistas semanais na expectativa de que o onze volte a ser freqüentado pelo corpo social que se afastou da ABI por se encontrar em litígio com a direção da Casa, ao discordar dos rumos impostos pela antiga administração. Até o final de abril, será adquirida uma televisão de plasma de 61 polegadas para que os sócios possam assistir aos jogos da Copa num ambiente alegre e descontraído, como sempre ocorreu no passado. A Diretoria terminou o planejamento para a implantação de cursos de inclusão digital, além de ter autorizado a compra de computadores para a sala de imprensa, a fim de que os jornalistas que necessitem transmitir seus textos para a Redação não sejam obrigados a se deslocar até a sede dos veículos em que trabalham. O novo onze deverá ser inaugurado logo depois da Copa com a realização de um grande torneio aberto de sinuca. A competição contará com a presença dos principais jogadores de sinuca do Rio de Janeiro como elemento de atração do evento.
AMBULATÓRIO E PLANOS DE SAÚDE Uma das grandes preocupações da atual gestão, a negociação de convênios com planos de saúde encontra-se bastante adiantada. No momento, a ABI negocia com duas administradoras que oferecem planos de atendimento médico e hospitalar em todo o País. A implementação do serviço será realizada assim que for feita ampla consulta ao corpo social, através de questionário que está sendo elaborado para estabelecer o perfil do atendimento que contemple as principais necessidades dos associados. O Presidente Tarcísio Holanda determinou ainda que fosse também agilizada a contratação de novos médicos para o ambulatório do sexto andar, onde os sócios e seus familiares são atendidos gratuitamente. Nos últimos anos, por descaso da antiga administração, o corpo clínico não foi renovado e várias especialidades clínicas deixaram de ser oferecidas ao corpo social da ABI, o que contribuiu para a decadência e a má qualidade dos serviços prestados. A Diretoria estuda também a realização de convênios com clínicas especializadas em fisioterapia ou na prestação desses serviços no próprio ambulatório da Casa. Uma das possibilidades que está sendo examinada é a assinatura de um convênio com a Universidade Veiga de Almeida, que possui um dos melhores cursos de Fisioterapia do Rio de Janeiro.
PEQUENAS INTERVENÇÕES, JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014
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FOTOS ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
No dia 2 de abril, depois da deposição de Jango, populares estendem a mão para cumprimentar o General Olímpio Mourão Filho, comandante da 4ª Região Militar. Aproximadamente 300 mil pessoas participaram da Marcha da Família com Deus pela Liberdade que aconteceu em São Paulo no dia 19 de março, apenas seis dias depois do grande comício da Central do Brasil, no Rio de Janeiro, no qual o Presidente João Goulart, em discurso inflamado, defendeu as reformas de base de seu governo.
Cenas da Marcha da Vitória, que é como ficou conhecida uma nova Marcha da Família com Deus pela Liberdade que aconteceria no dia 2 de abril no Rio de Janeiro e em outras cidades. Mas, devido ao golpe ocorrido um dia antes, ela foi realizada para apoiar os golpistas. Abaixo, um grupo de senhoras que representam a elite do Rio Grande do Sul seguram com orgulho a Bandeira de Piratini.
No dia 1º de abril, tanques e veículos do Exército tomam a Rua das Laranjeiras, no Rio de Janeiro. O locutor e Deputado Estadual Raul Brunini (de guarda-chuva) caminha ao lado dos militares.
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JORNAL DA ABI 399 • MARÇO DE 2014
ÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE
À sombra de 1964
Para melhor entender o contexto do golpe militar, e seus efeitos na sociedade, o Jornal da ABI entrevistou especialistas e autores de dez livros que tratam do tema. A maioria deles chega ao mercado agora, em função da passagem dos 50 anos do dia que mudou para sempre a História do Brasil. POR PAULO CHICO
Por isso, o Jornal da ABI foi atrás dos autores de dez livros, em sua maioria lançamentos, que tratam do tema. Obras que reconstituem o cenário daqueles dias pré-golpe, buscam traduzir o que de fato ocorreu e apontam os desdobramentos do regime de exceção, que aterrorizou milhões de brasileiros. Torturou milhares e liquidou com a vida de centenas deles, em repartições militares e ‘aparelhos’ do Estado, como a terrível Casa da Morte, localizada em Petrópolis, região serrana do Rio. Depoimentos de agentes do regime à Comissão Nacional da Verdade, como o do coronel reformado do Exército, Paulo Malhães, revelaram em detalhes o horror daqueles tempos. Expuseram atrocidades quase inacreditáveis. Será que, a esta altura, alguém ainda duvidava que elas tivessem, de fato, ocorrido? Vá saber... ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Existem, por definição, dois tipos distintos de datas históricas. Numa primeira categoria, se reúnem celebrações festivas, comemorações de fatos que marcaram a evolução da sociedade, ou mesmo da humanidade. Neste 2014, a imprensa em geral e historiadores, em particular, recordam a passagem marcante dos 50 anos do golpe militar de 1964. No entanto, neste tipo de lembrança, não há o que comemorar. Longe de qualquer saudosismo, o motivo do resgate de antigas memórias é evitar que algo semelhante se repita, volte a nos assombrar. Cinco décadas depois, se faz urgente tentar esclarecer parte dos bastidores daquele episódio que, apesar de ocorrido em um 1º de abril, não se revelou um simpático trote, tampouco infundada mentira. De verdade, lançou o Brasil em duas décadas de sombria ditadura.
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FOLHA IMAGEM
ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964
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diversidade dos livros aqui apresentados revela o crescente interesse de escritores e leitores pelo período. Isso é bom. As teses divergentes e as diferentes interpretações históricas mostram como o golpe ainda é terreno fértil para debates e pesquisas. Isso é melhor ainda. Posto que o golpe não é uma questão resolvida, não é possível, nem desejável, esquecê-lo. Mas é preciso exorcizálo – até para evitar os recorrentes soluços saudosistas dos conservadores que tentaram reeditar a Marcha da Família com Deus pela Propriedade. Ou buscam exaltar supostos feitos militares. Felizmente, tais iniciativas contaram com pouca adesão. Praticamente, não tiveram quórum nas ruas. Instabilidade política
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Tanques do Exército estavam em prontidão para qualquer reação contra o golpe.
cassaria seus direitos políticos por dez anos. Seria apenas o primeiro, de uma série que levaria a nação à escuridão. 50 anos depois
Neste 2014, diversos veículos, tais como jornais impressos, revistas, sites e canais de televisão, dedicaram programas à reconstituição e análise da derrubada do Presidente da República. Arquivos foram remexidos, entrevistas inéditas pautadas. Filmes resgatados. Dossiê Jango, de Paulo Henrique Fontenelle, é um dos mais ousados, pois levanta suspeitas sobre as causas das mortes de João Goulart, Juscelino Kubitschek e Carlos Lacerda. Teriam sido eles assassinados pelos militares? Sobre essa pergunta ainda pesam muitas dúvidas, inquietações. Oficialmente, nenhuma resposta. Dentre os canais a cabo, o Curta! exibiu rico acervo,
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Golpes não acontecem do dia para a noite . O clima de instabilidade política no Brasil começara no início da década de 1960. Após a renúncia do Presidente Jânio Quadros (PTN), em 1961, seu vice João Goulart (PTB), conhecido como Jango, encontrava-se em viagem diplomática à China. Já naquela ocasião, quase fora impedido de assumir o cargo, em ação orquestrada pelos militares, que temiam suas ligações com ‘comunistas’. À frente da chamada Campanha da Legalidade, Leonel Brizola, cunhado de Jango e Governador do Rio Grande do Sul, conseguiu garantir sua posse, efetivada num modelo conciliatório: a adoção do parlamentarismo. O Presidente assumiria o posto, preservando a ordem constitucional, mas sem os plenos poderes típicos do Presidencialismo, e tendo Tancredo Neves, do PSD mineiro, como primeiro-ministro. Em 1962 o governo divulgou o Plano Trienal, elaborado pelo economista Celso Furtado, para combater a inflação e promover o desenvolvimento econômico. A proposta falhou, após enfrentar forte oposição. O Brasil se viu obrigado a negociar empréstimos com o Fundo Monetário Internacional, o que exigiu cortes significativos nos investimentos. Junto à população, crescia o descontentamento. O País mergulhava num cenário de crescimento zero, inflação anual na casa de 90% e aumento estratosférico do déficit nas contas públicas. Nesse período foi convocado um plebiscito sobre a manutenção do parlamentarismo ou o retorno ao presidencialismo, para janeiro de 1963. O parlamentarismo foi amplamente rejeitado, sobretudo em função da campanha publicitária promovida pelo governo. O lance seguinte de Jango foi ainda mais radical. Quase uma provocação aos conservadores de plantão: a proposta das chamadas Reformas de Base, que pretendiam reduzir as desigualdades sociais. Entre estas, estavam as reformas bancária (com ampliação do crédito aos produtores), eleitoral (com liberação do voto aos analfabetos e militares de baixas patentes), educacional (com a valorização dos professores) e agrária (com a democratização do uso das terras). Tais medidas eram apenas ‘reformistas’, jamais ‘revolu-
cionárias’, apontam hoje os estudiosos do período. Mas, na época, eram vistas como concreta ‘ameaça comunista’. De volta ao presidencialismo, tais medidas passaram a ser defendidas por um Jango quase festivo, em clima de campanha. Foram inúmeros e concorridos comícios – o mais emblemático deles ocorreu no dia 13 de março, em plena Central do Brasil, no Rio de Janeiro. A reação da elite não demorou: o clero conservador, a imprensa, o empresariado e a direita em geral organizaram, em São Paulo, no dia 19 de março, a Marcha da Família, reunindo 500 mil pessoas. O repúdio às propostas deu o respaldo de que os militares precisavam. Na noite de 31 de março, o general Olímpio Mourão Filho, com apoio do Governador de Minas Gerais, José Magalhães Pinto, desceu com suas tropas de Juiz de Fora/MG para a cidade do Rio de Janeiro, depor o Presidente. Chefes militares, além dos Governadores da Guanabara, Carlos Lacerda, e de São Paulo, Adhemar de Barros, aderem ao movimento. Informado em 1º de abril, Jango desloca-se para Brasília. O clima esquenta e, neste mesmo dia, a sede da Une, no Rio, é incendiada. Acuado, Jango parte da Capital Federal para Porto Alegre, onde aliados pretendiam organizar a resistência. João reluta. Não quer promover um confronto, tampouco um banho de sangue. De fato, já era tarde demais. No dia 2 de abril, o Congresso Nacional declararia vago o cargo máximo do País, nomeando o Presidente da Câmara dos Deputados Ranieri Mazilli (PSD) para a função, sob a tutela de uma junta militar. Com os boatos de que sua prisão, na sua fazenda em São Borja/RS, ocorreria em breve, Goulart decide exilar-se no Uruguai. Baixado em 9 de abril de 1964, o Ato Institucional nº 1
Bombeiros tentam conter incêndio no prédio da Une, na Praia do Flamengo, Rio de Janeiro.
sobretudo de documentários. Nos intervalos de tais atrações, inseriu pequenos depoimentos de personalidades sobre o golpe e suas conseqüências. Um deles foi o do historiador Sergio Lamarão, que buscou estabelecer relação direta entre o regime dos fardados e a posterior militarização das relações na sociedade brasileira. Ele detalhou seu ponto de vista, especialmente para o Jornal da ABI. “A violência do regime militar passou para o cotidiano. Não sei se estou sendo leviano ao fazer essa ponte. Mas, eu faço a relação direta entre a ditadura e essa naturalização do uso da arma, do medo que o cidadão tem da polícia, da nossa sensação desconfortável com o Estado, de desconfiança em relação aos governos. Posso até partir para o ‘se’, meio supondo que, ‘se’ não tivesse havido a ditadura, essa naturalização da violência no Brasil teria se dado, pelo menos, em menor escala. Talvez, não tivéssemos assistido ao chamado ‘milagre econômico’, mas construiríamos uma sociedade menos desigual, com melhor Índice de Desenvolvimento Humano. Antes do golpe, o nosso cotidiano era diferente. Os contatos sociais ocorriam em outro nível. A ostensiva presença militar, a hierarquização das relações pessoais, o mandonismo, o famoso ‘sabe com quem você está falando?’. Tudo isso, todas essas práticas, que originalmente não eram nossas, ganharam reforço com a entrada em cena desses novos personagens, no caso, os militares”, pontua Sergio. Embora pautada em simples ‘percepção’, como fez questão de frisar em diversos momentos de sua entrevista, a tese defendida por Lamarão é corroborada por alguns dos autores destacados nesta reportagem. “Há colegas que prolongam a ditadura até a promulgação da Constituição Cidadã, em 1988. Outros consideram que ela só começou com o AI-5, em 1968, e não em 1964. Há várias leituras, mas não vou entrar neste mérito... O que mais importa é a herança deixada, que é bem visível e incontestável. A redemocratização teve um lado perverso... Quem estava no poder não saiu do poder. Quem lucrou com o golpe de 1964, como o pessoal do grande capital, ficou lá. Esse pessoal está todo aí”, acredita ele, que é doutor em História pela Uff, com pós-doutorado pela University of California, nos Estados Unidos, e pesquisador do Museu de Astronomia e Ciências Afins. Embora os militares não demonstrem mais qualquer interesse em tomar o poder, e a democracia brasileira pareça estar substancialmente consolidada, seguem em voga práticas típicas dos regimes de exceção. “Sem dúvida, a ditadura teve um papel muito importante no reforço do lado repressor da polícia. Não é mais contra o estudante ou militante de esquerda; hoje a repressão é voltada contra o pobre, os negros. A tortura continua nas delegacias, com as execuções sumárias, vide o caso Amarildo. Há mortes de alunos até em escolas militares, durante ações de formação e treinamento. Vivemos uma ‘coisificação’ do pobre, do bandido... Ve-
Memórias contraditórias
Um dos autores que buscam lançar novas luzes sobre a passagem dos militares pelo poder é Daniel Aarão Reis, autor de Ditadura e Democracia no Brasil – Do Golpe de 1964 à Constituição de 1988, editado pela Zahar, e que acaba de chegar às livrarias. “Desde os anos 1980, para a elaboração da conciliação nacional e de um pacto democrático, tendeu a predominar a versão de que a sociedade brasileira apenas suportara a ditadura, como alguém que tolera condições ruins que se tornaram de algum modo inevitáveis, mas que,
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mos gente sendo amarrada em poste... Na visão das pessoas que fazem isso, aquele adolescente é inimigo, não é sequer humano... Isso acaba justificando tudo, e conta com a adesão de grande parcela da população. Um dos policiais militares que participaram do socorro a Claudia Silva Ferreira, que foi morta e arrastada pelas ruas do Rio após ficar pendurada no porta-malas da viatura, tem 13 mortes nas costas! Pelo que consta, todas elas em combate. Mas, a verdade, você nunca vai saber! O fato é que esse cara é um matador! Isso me deixa muito chocado”, revela. Há quem veja a fonte do autoritarismo brasileiro nos colonizadores portugueses. Sergio, no entanto, acha que tal postura tem outras raízes. “Ela é muito mais da escravidão, de um sistema de produção instalado aqui, que durou 300 anos, e se repetiu na América espanhola, e nos Estados Unidos. Por onde passou, deixou marcas profundas. A colonização é violenta, é conquista, invasão, exploração, estabelece relações cruéis... É assim por definição”. Para ele, é preciso que o brasileiro aprenda a chamar as coisas pelos seus verdadeiros nomes. Diante de tantos autores debruçados sobre o período militar, Lamarão faz uma espécie de alerta. Há teses que precisam ser contestadas. Verdades que devem ser reafirmadas. Além de equívocos históricos que precisam ser corrigidos. “Por exemplo, a Lei de Anistia absolveu os dois lados. Só que um lado era o de quem torturava, e outro o de quem sofreu nas mãos de torturadores. Pode até ter ocorrido uma ou outra ação mais violenta por parte da luta armada. Mas, quem matou e torturou, em todo este período, foram basicamente os militares. No Chile, há vários espaços públicos de memória, registrando episódios dramáticos, como o massacre de estudantes. É preciso ter esses espaços aqui também! No Brasil, as coisas se diluem muito. Tem gente que não sabe que houve ditadura neste País! Sinto, às vezes, uma tendência de aliviar o governo do Geisel, visto como o início da abertura. Mas, ele foi muito violento, tinha forte componente autoritário. Houve tortura, o Partido Comunista foi dizimado. Prenderam, mataram e torturaram o Vladimir Herzog. Fizeram o mesmo com Manuel Fiel. Geisel fechou o Congresso... Então, que história é essa? Que necessidade é essa de minimizar o golpe, a ditadura, a violência dos militares?”, questiona Sergio.
Militares ocuparam as ruas próximas ao prédio de A Noite, no Rio de Janeiro.
cedo ou tarde, serão superadas, como estava, de fato, acontecendo. O interessante é que as Forças Armadas, como se fossem ‘um Estado dentro do Estado’, continuaram sustentando, e sustentam até hoje, a versão divulgada pelo Projeto Orvil, o que se pode verificar em sites, colégios, escolas e centros de formação militares e em clubes que reúnem as oficialidades de Exército, Marinha e Aeronáutica. Em outras palavras, para as Forças Armadas, a ditadura continua sendo apresentada – e cultivada – como uma ‘revolução democrática’ que salvou o País do comunismo e do caos”, escreveu em seu livro o professor de História da UFF e pesquisador do CNPq, que segue em seu raciocínio – inicialmente polêmico, mas que encontra adeptos no meio acadêmico, como apontam alguns dos autores dos livros listados nesta edição. “Nesse quadro complexo de memórias diferenciadas e contraditórias, não se pode ignorar, no entanto, a predominância, largamente hegemônica, das referências propostas e fixadas em 1985 pelo livro Brasil: Nunca Mais. Elas se tornaram uma espécie de lugar-comum. Habitam discursos políticos, livros didáticos, filmes e materiais diversos de análise e divulgação. Podem ser sintetizadas numa tese: a sociedade brasileira viveu a dita-
João Goulart no traço de Nássara.
dura como um pesadelo que é preciso exorcizar. A história da ditadura que ainda permanece hegemônica no Brasil, encarnada em grande parte pelo Arquivo Nacional e em certa medida pela Comissão Nacional da Verdade, se recusa a considerar a ditadura nas suas complexas relações com a sociedade brasileira. Imagina que ela foi imposta de cima para baixo e enfatiza, quase que exclusivamente, a resistência”, afirma Daniel, que participou da luta armada contra a ditadura militar e, em 1969, foi um dos idealizadores da ação de captura do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, utilizado como moeda de troca para a libertação de 15 presos políticos. Segundo o autor, por mais contraditório que possa parecer, o movimento de 1964 foi feito ‘em nome’ da defesa da democracia e contra a corrupção. “Muitas lideranças políticas que apoiaram o golpe acharam que os militares iam fazer uma intervenção rápida. Cassariam os comunistas, os trabalhistas e as esquerdas mais radicais e abririam caminho para as eleições presidenciais de 1965”, prega Daniel, que também relativiza o papel desempenhado pelos norte-americanos no episódio. “Os Estados Unidos tiveram participação, é certo. Se prepararam, agiram nos bastidores, deslocaram navios, mas não chegaram a intervir militarmente, até porque não houve maior resistência, e sim apoio de grande parte dos brasileiros e instituições nacionais. Além disso, cabe lembrar que muitas das ações militares dos americanos, naquela época, foram desastrosas, como a tentativa de invasão a Cuba”, destaca Daniel Aarão. O papel desempenhado pela mídia nacional no período pré-golpe foi decisivo, como apontam diversos especialistas. “Sem a imprensa, não haveria clima para o golpe que ocorreu em 1964. A mídia assustou a classe média, desqualificou Jango, transformou as reformas de base, odiada pelos conservadores, em sintoma de caos e radicalismo. Produziu a atmosfera necessária à deposição do Presidente. Fez
crer que só um golpe salvaria a democracia”, salientou Juremir Machado, autor de 1964 - Golpe Midiático-Civil-Militar (Editora Sulina), em entrevista ao Jornal da ABI. Para o autor, pesquisador de História e Jornalismo e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da PUCRS, o conservadorismo da época se faz presente na imprensa até os dias atuais. “Na verdade, ele predomina. Colunistas como Rodrigo Constantino, Merval Pereira, Lobão, Demétrio Magnoli e Reinaldo Azevedo representam o neolacerdismo. A revista Veja faz o papel da Tribuna da Imprensa. Estadão, Folha de S. Paulo e O Globo continuam os mesmos. Pode-se dizer que, em 1964, estão as raízes do golpismo da mídia brasileira. Por isso, mostro em meu livro como a imprensa apoiou, de forma sistemática, o golpe de 1964. Mostro também que, se alguns jornalistas apoiaram o golpe e resistiram à ditadura, a maioria dos jornais apoiou o golpe e a ditadura. Revelo o quanto a imprensa, depois de 1968, reescreveu a própria história dando-se um belo e falso papel de resistente”, acusa Juremir. Para Sergio Lamarão, a esquerda brasileira, desde sempre dividida, tinha nas Reformas de Base propostas por Jango seu campo de confluência. “Era uma política reformista, mas não revolucionária, é bom esclarecer. Havia, por exemplo, a proposta de mexer com as grandes fortunas... Veja bem, isso até hoje não ocorreu aqui, e vários países já adotaram políticas neste sentido. Inclusive na Europa. O ator Gérard Depardieu, que teve sua fortuna taxada em seu país, largou a França e foi morar na Rússia! (risos). Se houvesse a proposta de implantação das Reformas de Base, hoje, no Brasil, haveria a mesma chiadeira, pode acreditar! O fato é que, ao longo da nossa História, nunca tivemos um momento tão rico, tão favorável ao povo, quanto no pré-golpe”, defende ele, que faz críticas ao Brasil de hoje. “Vivemos numa suposta democracia, em que os grandes meios de comunicação continuam concentrados nas mãos dos mesmos poucos grupos. O governo petista fez uma coisa muito ruim para este País. Criou a ilusão de uma nova classe média, cooptando os pobres para o sistema do consumo... Será que isso tem volta? É importante as pessoas entenderem que, mais importante do que comprar uma televisão em 24 parcelas ou um carro em 60 meses, é a conquista de direitos. Eu não tenho carro, por opção. Mas, quando escuto um cobrador de ônibus falando ao celular que deixou o carro dele não sei onde, fico imaginando quanto sacrifício não teve que fazer para adquirir aquele automóvel. Só que ele não se dá conta que continua a não ter acesso à saúde, à educação de qualidade, ao transporte público decente, e que segue sendo explorado no subemprego. Quando é que essa ficha vai cair? De que não é por aí? Pode acreditar: a gente vive uma ilusão”, sentenciou, certo de que, a exemplo do período militar, a democracia brasileira nos reserva novas e antigas armadilhas. Passados 50 anos do golpe, ainda temos do que nos libertar.
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“Não há lado bom em uma ditadura militar”
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Não há dúvidas de que o golpe de 1964 foi um fato marcante na recente História do Brasil. Mas, por quais motivos setores significativos da sociedade aprovaram a deposição do Presidente João Goulart? Como o golpe se transformou em uma ditadura militar que duraria 21 anos? Essas são algumas das perguntas que o autor Carlos Fico tenta responder em seu livro, que foi lançado, no Rio de Janeiro, no dia 18 de março, na tradicional Livraria da Travessa. “Ele é pensado para o grande público, não tem natureza acadêmica. É um formato muito adequado para a manifestação mais ‘livre’, por assim dizer, de nossos pontos de vista, sem as amarras por vezes asfixiantes do formato universitário. É realmente notável como a historiografia brasileira evoluiu nos últimos 30 anos, especialmente no que diz respeito aos estudos sobre a História do período republicano e, singularmente, sobre o regime militar. Isso certamente expressa o crescente interesse da sociedade sobre aquele período. Lembro-me de que, em 1994, quando do aniversário de 30 anos do golpe, poucos se interessaram pelos eventos que promovemos na universidade. Dez anos depois, em 2004 – e marco dos 40 anos –, a imprensa acompanhou atentamente nossos seminários acadêmicos. Agora, nos 50 anos, o interesse é maior, inclusive em função dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade.” Em entrevista ao Jornal da ABI, Carlos Fico falou justamente da reação do meio acadêmico à ação dos militares. “Se nos diversos segmentos da sociedade ocorreram manifestações de apoio, nas universidades houve, majoritariamente, uma reação negativa ao golpe. Alguns poucos estudantes conservadores apoiaram os militares, mas em número bastante reduzido. Em geral, as universidades, especialmente as públicas, eram vistas como focos de subversão, centros de comunistas, com a presença de autores vinculados ao marxismo. As universidades foram vítimas preferenciais da repressão. Tivemos muitos professores aposentados compulsoriamente. Havia um clima de perseguição, e os órgãos de informações se instalaram nas universidades públicas rapidamente”. Professor titular de História do Brasil da UFRJ e pesquisador do CNPq, o autor fala ainda sobre como o tema é tratado nas escolas. “Felizmente, ele já não é um tabu. A pesquisa no ensino superior avançou muito. Mas os livros didáticos ainda precisam de algum tempo. Temos de estimular esses autores, que quase nunca são pesquisadores acadêmicos, a fazerem esse material. Esse também é um caminho interessante. Os estudantes se interessam pelo tema, que teve episódios dramáticos. Essa estratégia seria interessante para atrair o interesse dos jovens não apenas para a Ditadura Militar, mas também pela História em geral. Já começaram a surgir livros didáticos sobre essa época, que incorporam as pesquisas mais recentes.
Descontração no Rio de Janeiro: Enquanto os tanques tomam conta das ruas, uma criança diverte o público ao imitar um soldado apontando sua metralhadora de brinquedo.
Acredito que o ensino dessa temática na educação básica vai melhorar muito nos próximos anos. Os professores querem trabalhar esse tema, mas ainda falta o material adequado”, afirma Carlos Fico, que conclui. “A principal lição que fica do golpe é a de que não há lado bom em uma ditadura militar, em uma solução autoritária. Muita gente diz: ‘na época da ditadura havia segurança...’ , ‘Na época da ditadura foram feitas grandes obras de infra-estrutura, a economia melhorou...’. Mas, de verdade, não houve lado bom. Quando se trata da defesa da liberdade, dos direitos individuais e da possibilidade de haver violações aos direitos humanos, não podemos tergiversar. Nada pode ser colocado em compensação à perda das liberdades individuais. Não existe nada de bom quando se aceita uma solução autoritária, que sempre induz à perda de direitos humanos”, reforça Carlos Fico, para quem o livro O Golpe de 1964: Momentos Decisivos ajuda o leitor a entender que “o golpe não foi uma ação isolada, e que seu desdobrar em uma ditadura tem relação direta com a tradição do autoritarismo na política brasileira”.
TRECHO
O Golpe de 1964: Momentos Decisivos CARLOS FICO | FGV EDITORA | 148 PÁGINAS
O golpe de Estado de 1964 é o eventochave da História do Brasil recente. Dificilmente se compreenderá o país de hoje sem que se perceba o verdadeiro alcance daquele momento decisivo. Ele inaugurou um regime militar que duraria 21 anos, mas, em 31 de março de 1964, quando o Presidente João Goulart foi deposto, não se sabia disso: o golpe não pressupunha, necessariamente, a ditadura que se seguiu. Como o golpe se transformou em uma ditadura? Muitas pessoas que o apoiaram arrependeram-se com o passar do tempo. Aliás, não foram poucos os que apoiaram o golpe: a imprensa, a Igreja Católica, amplos setores da classe média urbana. Instituições que, anos depois, se tornariam fortes opositoras do regime – como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), a Associação Brasileira de Imprensa (ABI) ou a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) –, tiveram atitudes no mínimo dúbias naquele momento. Portanto, é preciso ter em mente que o golpe não foi uma iniciativa de militares desarvorados que decidiram, do nada, investir contra o regime constitucional e o Presidente legítimo do Brasil. Houve apoio da sociedade. Creio que essas considerações preliminares são importantes. Muitas vezes, quando estudamos a ditadura militar – como eu tenho feito há tantos anos –, tendemos a ver o golpe de 1964 apenas como seu evento inaugural, mas ele foi mais do que isso. Representou a expressão mais contemporânea do persistente autoritarismo brasileiro, que já se manifestou em tantas outras ocasiões – como no outro regime autoritário republicano, o Estado Novo (19371945). Portanto, talvez a pergunta essencial a se fazer seja: “por que tantos o apoiaram?”, em vez de apenas nos perguntarmos, “como foi que se iniciou a ditadura militar?”.
Os fenômenos históricos são complexos. Não há fatos simples. O bom entendimento histórico não é confortável, apaziguador: ele não equaciona o passado, nem nos dá respostas definitivas, mas nos faz pensar. No caso do apoio de parte da sociedade ao golpe de 1964, por exemplo, há complicadores. Se, por um lado, a imprensa, a Igreja Católica e parte da classe média – além dos empresários – apoiaram a derrubada de Goulart, existem, por outro lado, pesquisas confiáveis que mostram que a sociedade apoiava o Presidente. Segundo o Ibope (que foi criado em 1942), às vésperas do golpe, Goulart tinha razoável apoio popular. O instituto doou acervo da época à Unicamp e o historiador Luiz Antonio Dias tem trabalhado o material. Segundo ele, as chances de vitória de Goulart seriam grandes no caso de o Presidente disputar a reeleição em 1965. Contava com mais da metade das intenções de voto na maioria das capitais pesquisadas, perdendo para Juscelino Kubitschek apenas em Belo Horizonte e Fortaleza. 55% dos paulistanos entrevistados consideravam as medidas anunciadas no Comício da Central por Jango muito importantes para o povo. Em junho de 1963, Goulart era aprovado por 66% da população de São Paulo, mais do que o índice obtido pelo governador Adhemar de Barros (59%) e pelo prefeito Prestes Maia (38%). Pouco antes do golpe, a proposta de reforma agrária obteve apoio superior a 70% em algumas capitais e 72% da população apoiavam o governo de João Goulart. Isso comprova que a campanha de desestabilização de que foi vítima o Presidente – que gerou propaganda massiva – não foi eficaz e, muito menos, suficiente para a derrubada de Jango.
Os estudiosos do golpe de 1964 e do período histórico que se seguiu têm insistido em um ponto: não deveríamos usar as expressões “golpe militar” e “ditadura militar”, pois seriam mais corretas as designações golpe e ditadura “civil-militar”. A preocupação é louvável porque tem em vista justamente o fato de que houve apoio civil ao golpe e ao regime. Eu sustentaria, no entanto, um ponto de vista um pouco diferente: não é o apoio político que determina a natureza dos eventos da História, mas a efetiva participação dos agentes históricos em sua configuração. Nesse sentido, é correto designarmos o golpe de Estado de 1964 como civil-militar: além do apoio de boa parte da sociedade, ele foi efetivamente dado também por civis. Governadores, parlamentares, lideranças civis brasileiras – e até o governo dos Estados Unidos da América – foram conspiradores e deflagradores efetivos, tendo papel ativo como estrategistas. Entretanto, o regime subsequente foi eminentemente militar e muitos civis proeminentes que deram o golpe foram logo afastados pelos militares justamente porque punham em risco o seu mando. É verdade que houve o apoio de parte da sociedade também à ditadura posterior ao golpe – como ocorreu durante o período de grande crescimento da economia conhecido como “milagre brasileiro” –, mas, como disse antes, não me parece que apenas o apoio político defina a natureza de um acontecimento, sendo possivelmente mais acertado considerar a atuação dos sujeitos históricos em sua efetivação. Por isso, admito como correta a expressão “golpe civil-militar”, mas o que veio depois foi uma ditadura indiscutivelmente militar.
“João Goulart não trabalhava com a perspectiva de um golpe”
TRECHO
Ditadura: o que Resta da Transição MILTON PINHEIRO (ORGANIZADOR) ARQUIVO - JOÃO GOULART
Descontração no Palácio das Laranjeiras um ano antes do golpe: João Goulart entre os Generais Castello Branco, Chefe do Eme, e Peri Bevilacqua, comandante do 3º Exército, à esquerda; e os Generais Osvino Alves, do 1º Exército; Amauri Kruel, do 2º Exército; Albino Silva, Chefe da Casa Militar da Presidência da República; e Dantas Ribeiro, do 1º Exército, à direita.
tas sociais e políticas – seria mais profunda. Que o espaço para uma cultura progressista seria maior e que a violência do Estado talvez tivesse menor repercussão na vida social, com menos criminalização das lutas, dos trabalhadores e das minorias. Teríamos, talvez, um País mais preparado para operar transformações mais consistentes no sistema político, com o questionamento da iniqüidade capitalista e a lógica do mercado”, aposta ele. Para Milton, seu livro apresenta aos leitores um arcabouço analítico com base no debate político-histórico, que introduz variáveis inovadoras nessas interpretações. Quem deu o golpe? Qual a natureza de classe do Estado brasileiro? A presença de intelectuais na gestão articulada pela burguesia e militares da política econômica da ditadura burgo-militar...
Como se deu a presença dos trabalhadores na luta política e contra o arrocho salarial? Quais eram as posturas das frações de classe da burguesia dominante no desenvolvimento do capitalismo? Como se comportou a vanguarda comunista no período, e como atuaram os partidos de esquerda? O que caracteriza a longa transição? Como se deu a política da aliança democrática na transição para a democracia? Qual o papel de lideranças políticas da esquerda, como Luiz Carlos Prestes? O que representou a campanha pelas Diretas já? “O livro é um conjunto elaborado de análises a partir da pesquisa histórica e política que nos traz seminais e inovadoras leituras sobre o Brasil. Na minha modesta interpretação, trata-se de excelente oportunidade para compreender o Brasil dos últimos 50 anos”. DIVULGAÇÃO/O DIA QUE DUROU 21 ANOS
Ditadura: O que Resta da Transição. O título deste livro, por si só, parece representar uma provocação. Afinal, qual a leitura do final da ditadura, do período de transição? E qual foi a real participação popular neste processo? “É importante salientar que a transição da ditadura burgo-militar para a democracia formal, ou Estado de direito, ocorreu numa articulação pelo alto. Um arranjo político-institucional gestado por frações de classe da burguesia em consonância com a base parlamentar do regime... Havia a burocracia político-militar e a pressão de setores moderados da oposição e da frente democrática (MDB/PMDB) participando diretamente do processo. Apesar da pressão da esquerda organizada, do movimento operário e sindical, das lutas populares e estudantis, a transição brasileira é um arranjo de longa duração que excluiu a representação popular. Podemos dizer que ficou na sociabilidade brasileira, como herança da ditadura, a destruição da memória social e política, o profundo déficit democrático, a violência do aparelho de Estado e a intervenção do Estado nas lutas operárias e populares para tentar criminalizá-los”, afirma Milton Pinheiro, organizador da obra, que traz artigos de renomados pensadores, como João Quartim de Moraes, Anita Prestes, Lincoln Secco, Décio Saes e Marco Aurélio Santana. Em entrevista ao Jornal da ABI, o sociólogo e cientista político, professor da Uneb, enumera os principais equívocos que permanecem em voga ainda hoje, quando da análise do golpe e do período que se seguiu. “Eles articulam-se em um conjunto variado. No entanto, eu diria que é a tentativa de justificar o golpe burgo-militar, capitaneado pelos militares articulados pela ideologia da segurança nacional e as frações bancária e industrial da burguesia interna. E busca-se mostrar isso como uma reação ao provável golpe dos comunistas, leia-se PCB, ou de João Goulart. Posso afirmar que quem está preparado para realizar um golpe também está preparado para reagir a um golpe. No entanto, nem os comunistas, nem o Presidente João Goulart, tinham essa perspectiva. Hoje, para ficar mais explícito meu argumento, a historiografia comprova, através de documentos, as articulações entre o governo estadunidense, os militares reacionários e as frações bancária e industrial, como os movimentadores do golpe de 1964”. Mas, como seria hoje o Brasil, caso os militares não tivessem cruzado nosso caminho naquela década? “Esta é uma pergunta muito complexa. Mas, poderíamos afirmar que com certeza nosso déficit democrático seria menor, que a participação político-social talvez fosse muito mais representativa, que a memória coletiva sobre o Brasil – suas lutas, conquis-
BOITEMPO EDITORIAL | 376 PÁGINAS
As características gerais da luta ideológica, tais como as descreveu Marx, correspondiam a uma época em que o capital lutava para conquistar e consolidar sua hegemonia, varrendo da cena histórica todas as velhas classes que entravavam seu pleno desenvolvimento. Um século depois, em 1964, o capital lutava para não ser ele próprio varrido. Não é a decadência histórica da burguesia que constitui problema para os marxistas, visto que ela resulta do desenvolvimento da contradição fundamental do capitalismo. O problema está, antes, nos fenômenos que se opõem a essa tendência geral. A especificidade – e o interesse teórico – do golpe de Estado de 1964 e do regime burguês-militar ao qual ele deu lugar reside nas formas novas que assumiu a contra-revolução burguesa. Num país capitalista dependente como o Brasil, a luta de classes se travava (veremos até que ponto ela se trava ainda) em torno de duas contradições: aquela entre a cidade e o campo e aquela entre a nação e o imperialismo. As necessidades da prática impõem frequentemente simplificações, que jamais são politicamente inocentes. A esquerda brasileira habituou-se a tratá-las como se fossem apenas uma única e mesma contradição, a saber, a que opõe o imperialismo e seus aliados internos (oligarquia agrária e todos os setores da burguesia ligados ao grande capital monopolista internacional) à grande maioria da população. Essa concepção, com todas as suas variantes de direita e de esquerda, mostrou-se tenaz, influenciando muitos daqueles que pretendiam criticá-la. • A natureza de classe do Estado brasileiro, de João Quartim de Moraes A campanha Diretas Já não trouxe, em nenhum momento, um componente revolucionário. Mas poderia ter desencadeado um processo democrático de forte conteúdo popular que expurgasse as tradicionais oligarquias e retirasse dos militares as prerrogativas de ingerência nos assuntos políticos. Para que isso ocorresse, seria necessário derrotar a ditadura militar nas ruas, aproveitando o potencial antimonopolista, anti-imperialista e antilatifundiário presente nas lutas e nas propostas da classe trabalhadora e de setores da classe média. Porém, as forças populares não foram capazes de tomar nas mãos a condução do processo e, ao aceitarem a canalização das lutas para o Congresso Nacional, acataram as regras do jogo estabelecidas pela direção burguesa. • Diretas Já: mobilização de massas com direção burguesa, de Vanderlei Elias Nery
O porta-aviões USS Forrestal: Enviado à costa brasileira em março de 1964 para garantir o golpe.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964 EVANDRO TEIXEIRA
TRECHO
O que Resta da Ditadura VLADIMIR SAFATLE E EDSON TELES (ORGANIZADORES) BOITEMPO EDITORIAL | 352 PÁGINAS
A ditadura militar iniciada em 1964 se torna cada vez mais violenta e a repressão aos movimentos estudantis chega ao auge em 1968.
“A ditadura é parte constitutiva do atual projeto de democracia” “Temos como principal herança da ditadura uma política do medo e da impunidade. Sempre com a possibilidade da violência, seja do Estado ou da violência urbana de modo geral, a sociedade brasileira tende a aceitar soluções paliativas para seus problemas e atos de injustiça constantemente. Assim, os crimes de violações de direitos humanos praticados pela ditadura, ao não serem apurados e ao não implicarem em punição, geraram na democracia o medo da força desmedida pelo Estado. Tal situação se repete, por exemplo, nas manifestações populares de junho de 2013, quando uma polícia treinada para agredir o pobre e o opositor, criada no regime militar, usou de força excessiva para limitar ou bloquear a possibilidade de uma ação política sem controle dos partidos ou dos governos. Por outro lado, ainda hoje se tortura e desaparece com corpos violados, como foi o caso do Amarildo, no Rio de Janeiro. O processo de violação de direitos segue o mesmo padrão institucional criado na ditadura, indicando o quanto foi maléfico optarmos por uma transição para a democracia sem a desmontagem do aparelho repressivo e sem a punição dos agentes do Estado responsáveis por tais crimes”, acusa um Edson Teles sem meias-palavras, em entrevista do Jornal da ABI. O livro O que Resta da Ditadura reúne textos de escritores e intelectuais como Maria Rita Kehl, Jaime Ginzburg, Paulo Arantes, Ricardo Lísias e Jeanne Marie Gagnebin, que buscam analisar o que permanece de mais perverso da ditadura no País hoje. Assim, possui também um caráter de resistência à lógica de ne12
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gação difundida por aqueles que buscam ocultar o passado recente, seja ao abrandar, amenizar ou simplesmente esquecer este período da História. “O discurso do medo assemelha-se muito ao risco para a democracia de medidas concretas de justiça sobre os crimes da ditadura. Cria-se a fantasmagoria de que o ‘inimigo’ encontra-se na pessoa ao lado, na rua onde caminho, no transporte que uso. A todo momento, nos assustamos ou assustamos a alguém quando passamos apressados pelas ruas. É neste contexto que se fortalecem, por um lado, as polícias militares e suas ações cada vez mais violentas e repressivas, inclusive dentro das universidades e, por outro, as ações de governo via estados de exceção. A estrutura é a mesma e o que se pode fazer é melhorar o diagnóstico de nossa sociedade com o objetivo de mostrar que sim, há violência urbana, mas que o alvo e o tamanho dela não corresponde com as medidas adotadas. Atualmente agimos como se quiséssemos matar um coelho com um tiro de canhão. Isso é altamente perigoso para a democracia”, pontua. Nova abordagem
Edson é doutor em Filosofia Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “A maior novidade do livro O que Resta da Ditadura encontrase em uma nova abordagem sobre este passado violento, no qual partimos, eu e o Vladimir Safatle, da idéia de que há em nossa democracia uma forte herança autoritária e que ela não se configura ape-
nas como a laranja podre no cesto de frutas, mas foi de tal incorporada ao Estado de Direito que hoje pode ser considerada parte constitutiva do atual projeto de democracia. Isto nos leva, como anunciado no livro, a uma indistinção crescente entre democracia e autoritarismo, com o fortalecimento do aparato repressivo e a criação de leis de agressão e criminalização dos movimentos sociais.” Por fim, ele recorda algumas das atrocidades jurídicas cometidas pelos militares. “A primeira delas foi se colocarem como representantes da nação pelo simples fato de estarem no governo, o qual foi tomado à força por um golpe de Estado. Com base nesta falsa representação, eles suspenderam o habeas corpus, clássico mecanismo de proteção do corpo contra os abusos do Estado, e iniciaram a prática das prisões indiscriminadas, com tortura e assassinato. Instituiu-se rapidamente a figura dos inquéritos policiais militares, modo de não submeter os agentes do Estado responsáveis por tais atos aos trâmites de uma ordem jurídica civil. Posteriormente, os processados, entre uma sessão de tortura e outra, eram levados para um tribunal militar, como se vivêssemos em uma guerra. Na transição, nada foi transformado no judiciário e muitos dos que colaboraram com a ditadura foram mantidos, ou subiram na hierarquia desta ordem. Não é à toa que o atual STF considerou que os torturadores da ditadura são merecedores de anistia, apesar de todos os tratados assinados pelo País contra este tipo de crime e sua imprescritibilidade.”
“Quem controla o passado, controla o futuro”. A frase de 1984, que serve de epígrafe a este livro, indica claramente o tamanho do que está em jogo quando a questão é elaborar o passado. Todos conhecemos a temática clássica das sociedades destinadas a repetir o que são incapazes de elaborar; sociedades que já definem de antemão seu futuro a partir do momento que fazem de tudo para agir como se nada soubessem a respeito do que se acumulou às suas costas. A História é implacável na quantidade de exemplos de estruturas sociais que se desagregam exatamente por lutar compulsivamente para esquecer as raízes dos fracassos que atormentam o presente. No caso da realidade nacional, esse esquecimento mostra-se particularmente astuto em suas múltiplas estratégias. Ele pode ir desde o simples silêncio até um peculiar dispositivo que mereceria o nome de “hiper-historicismo”. Maneira de remeter as raízes dos impasses do presente a um passado longínquo (a realidade escravocrata, o clientelismo português etc.), isto para sistematicamente não ver o que o passado recente produziu. Como se fôssemos vítimas de certo “astigmatismo histórico”. O que propomos neste livro é, pois, falar do passado recente e da sua incrível capacidade de não passar. Mas para tanto, faz-se necessário mostrar, àqueles que preferem não ver, a maneira insidiosa que a ditadura militar brasileira encontrou de não passar, de permanecer em nossa estrutura jurídica, em nossas práticas políticas, em nossa violência cotidiana, em nossos traumas sociais que se fazem sentir mesmo depois de reconciliações extorquidas. Daí a pergunta: “O que resta da ditadura?”. Pergunta ainda mais urgente se lembrarmos a incrível capacidade que a ditadura brasileira tem de desaparecer. Ela vai aos poucos não sendo mais chamada pelo seu nome, ou sendo chamada apenas entre aspas, como se nunca houvesse realmente existido. Na melhor das hipóteses, como se houvesse existido apenas em um curto espasmo de tempo no qual vigorou o AI-5. Talvez o que chamamos de ditadura tenha sido apenas uma reação um pouco demasiada às ameaças de radicalização que espreitavam nossa democracia. Quem sabe, daqui a algumas décadas, conseguiremos realizar o feito notável de fazer uma ditadura simplesmente desaparecer.
“A imprensa foi uma arma essencial da ditadura” ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Originalmente publicado quando dos 40 anos do golpe, em 2004, o livro Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, de Beatriz Kushnir, segue em catálogo. E, mais do que isso, firmou-se como uma das principais referências quando o assunto é o período de exceção no Brasil. E a relação dos militares com a imprensa. “Os meios de comunicação de massa – rádio, jornais e tv – apoiaram o golpe e a ditadura, e não tiveram papel relevante para o fim do regime. Coriolano de Loyola Cabral Fagundes, censor desde 1961 e que atuou no Estadão, me narrou, por exemplo, que os poemas de Camões publicados naquele jornal, para substituir os espaços em branco das matérias censuradas, eram uma concessão dos censores. Certamente, a censura federal apostava que o leitor não entenderia o recado. Ou se tranqüilizaria na efêmera ilusão de que, mesmo no arbítrio, era permitido aos veículos lampejos de resistência, os quais, efetivamente, nada alteravam. Algo semelhante, contudo, que não foi autorizado, ocorreu na antiga revista Veja, que durante a distensão do governo Geisel substituiu as matérias censuradas por imagens de diabinhos, já que não se podia publicar espaços em branco. Advertidos, tiveram que parar, pois certamente o leitor de Veja à época entenderia a mensagem subliminar”. Beatriz Kushnir é mestre em História Social pela UFF e doutora em História Social do Trabalho pela Unicamp. Para ela, os embates entre militares e profissionais de imprensa foram dos mais árduos. “Os inúmeros jornalistas perseguidos, demitidos, torturados e mortos sofreram estas horríveis barbáries enquanto atuavam como militantes das esquerdas, em ações armadas ou como simpatizantes, como demonstram os processos que arrolam os seus nomes. Da mesma forma, existiram imposições governamentais de expurgos nas Redações. Tais limpezas ocorreram logo depois do golpe e perduraram até e inclusive no governo Geisel, que impunha a bandeira do fim da censura”, rememorou ela, em entrevista ao Jornal da ABI.
Policiais do Exército cercam a TV Excelsior, no Rio de Janeiro, na noite de 1º de abril.
Um erro histórico comum é marcar o início da censura à imprensa apenas em 1968, depois do anúncio do AI-5, que restringiu por completo as liberdades no Brasil. Alguns anos antes, vários jornais que se opuseram ao governo militar foram invadidos e tiveram suas instalações destruídas. Isso aconteceu, por exemplo, com o Correio da Manhã, no Rio de Janeiro. Talvez por isso mesmo, outros veículos tenham aderido aos planos traçados pelos fardados. Para a autora, o caso da Folha de S.Paulo é claríssimo. O jornal apoiou o golpe e a ditadura até tarde. Tirou proveito da destruição de concorrentes, como a Última Hora, de Samuel Wainer. Engoliu o Notícias Populares. Quando a TV Excelsior teve a concessão cassada pelo governo Médici, a família Frias ficou com parte do espólio da emissora. Emprestou um jornal à ditadura, a Folha da Tarde. Cedeu carros de entrega de jornais à Operação Bandeirantes, no maior centro de torturas do Brasil, o Doi-Codi da Rua Tutóia. Quando os militares se dividiram, a Folha jogou com a linha mais dura, que não aceitava a abertura ‘lenta, gradual e restrita’. A TV Globo, segundo Beatriz, chegou a contratar censores com o objetivo de aperfeiçoar a autocensura e evitar possíveis prejuízos – evitando gastos com programas que poderiam ser proibidos. Mas, como explicar o apoio da mídia aos militares – um comportamento, à primeira vista, tão contraditório? “Os meios de comunicação atuam como empresas que buscam o lucro, vendendo a visão particular sobre um fato e, como Cláudio Abramo por vezes demarcou, um equívoco que a esquerda geralmente comete é o de que, no Brasil, o Estado desempenha papel de controlador maior das informações. Mas, não é só o Estado, é uma conjunção de fatores. O Estado não é capaz de exercer o controle, e sim
a classe dominante, os donos. O Estado influi pouco, porque é fraco. Até no caso da censura, ela é dos donos, nem tanto do Estado. Não é o governo que manda censurar um artigo, e sim o próprio dono do jornal, entende? Como havia censura prévia durante o regime militar, para muitos jorna-
listas ingênuos ficou a impressão de que eles e o patrão tinham o mesmo interesse em combater a censura. Existiram pouco mais de 220 censores federais, muitos deles com o diploma de jornalistas. Eles atuavam reprimindo cinema, tv, rádio, teatro, jornais, revistas, entre 1964 e 1988, em todo o território nacional. Eles eram, portanto, poucos para cumprir essa missão. Para que as expectativas governamentais dessem certo, os donos das empresas de comunicação tinham que colaborar, e não resistir. E assim fizeram.” E hoje, o que é preciso repensar na relação entre a mídia e a ditadura? Com a palavra, Beatriz. “Há 15 anos, quando dos 30 anos do AI-5, o jornalista Jânio de Freitas publicou na Folha de S. Paulo uma advertência não cumprida por seus pares, inclusive nas reflexões atuais dos periódicos nos 50 anos do golpe civil-militar de 1964. Corroborando com tudo que expus aqui, Freitas lembrava que ‘a imprensa, embora uma ou outra discordância eventual, mais do que aceitou o regime: foi uma arma essencial da ditadura. Naqueles tempos, e desde 1964, o Jornal do Brasil [...] foi o grande propagandista das políticas do regime, das figuras marcantes do regime, dos êxitos verdadeiros ou falsos do regime. (...) Os arquivos guardam coisas hoje inacreditáveis, pelo teor e pela autoria, já que se tornar herói da antiditadura tem dependido só de se passar por tal’”, concluiu.
TRECHO
Cães de Guarda: Jornalistas e Censores Do AI-5 à Constituição de 1988 BEATRIZ KUSHNIR – BOITEMPO EDITORIAL – 408 PÁGINAS
Os censores eram a expressão de uma parcela da comunidade que os queria, e possuíam uma formação cultural semelhante à de muitos outros brasileiros. Nesse sentido, o governo que os empregava definia as exigências relativas ao seu perfil. Nem sempre as demandas do Estado quanto ao trabalho por eles executado confluíam com as de outros estratos dessa mesma sociedade. No âmago desse desencontro, a imagem do censor incapaz fortaleceu-se ante o absurdo, para quem preza a liberdade de expressão, das ordens que cumpriam. Esses funcionários públicos foram sempre executores de medidas, nunca os seus formuladores. Verdadeiros cães de guarda, durante a vigência de censura prévia, ligavam para as Redações dos jornais de todo o País para instruir o coibido. Iniciavam afirmando: ‘De ordem superior, fica proibido...’. Parte dos jornalistas e donos de jornal, entre outros setores da sociedade civil que, ao apoiarem os governos militares naquele momento, optaram por estar ao lado do poder, tornaram-se tanto agentes como ‘vítimas’ dessa autocensura. Fizeram, assim, dessa ditadura um acordo civil-militar. Permanecer no palco das decisões era mais importante do que a busca e a publicação da verdade. Por isso esses jornalistas
colaboracionistas são aqui vistos como ‘cães de guarda’. À soleira, montaram guarda e fizeram autocensura no governo Médici, e mesmo antes dele, colaborando para construir e difundir uma imagem irreal, inverídica do País. É verdade que praticamente todos os órgãos de imprensa transmitiam a versão do Estado na luta contra a guerrilha, ocultando a tortura, os assassinatos, os desaparecimentos e as mortes dos oposicionistas. Mas, o caso mais destacado, sem dúvida nenhuma, foi o da Folha da Tarde, que estava muito submetida à orientação do Doi-Codi, fazendo guerra psicológica e propaganda contra a guerrilha, sem que qualquer ação militar tivesse desenvolvido contra ela. Não que não houvesse vontade de realizá-la. Esta surgia em cada mentira, a cada infâmia, a cada vez que a Folha da Tarde, na condição de porta-voz oficioso do Doi-Codi, anunciava como fuga ou morte em combate o que na realidade fora o assassinato de um companheiro.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964
“Jango era o maior proprietário de terras do Brasil” rentes distintas. Dentre os militares, os chamados ‘intelectualizados’, com Castello Branco, Ernesto Geisel, Golbery de Couto e Silva, Juarez Távora, Juracy Magalhães e outros, imaginando que, se o golpe fosse vitorioso, a eles caberia a definição dos novos rumos, organizadores que eram da Escola Superior de Guerra. Estigmatizado, esse grupo era olhado de viés pelos chefes mais afetos à tropa e aos quartéis, como Costa e Silva, Amaury Kruel, Justino Alves Bastos e, na Marinha, Rademaker e Silvio Heck. Mas uniram-se na deposição. Logo depois, entraram em choque. No primeiro embate, ganhou Castello Branco, imposto ao Congresso como novo Presidente da República. No segundo, ganhou Costa e Silva.” Segundo Chagas, ‘os golpes dentro do golpe’ – a que se referem o título do livro – começaram antes mesmo da eleição de Castello Branco. “Ele era chefe do estado-maior do Exército e a Constituição exigia que, para candidatar-se, aqueles generais se desincompatibilizassem seis meses antes das eleições. O Ato Institucional, que entre outras coisas regulamentou as eleições, tinha um artigo: ‘nas próximas eleições não haverá inelegibilidades’... Depois, vieram a prorrogação do mandato de Castello, a dissolu-
ção dos partidos políticos, o aumento do número de ministros do Supremo Tribunal Federal de 11 para 16, para que não perdesÚLTIMA HORA/ARQUIVO PÚBLICO DO ESTADO DE SÃO PAULO
Um dos mais experientes jornalistas políticos do País, com quase seis décadas de atividade profissional, Carlos Chagas também lançou livro especial, em função da passagem dos 50 anos do golpe. De Brasília, o autor conversou com o Jornal da ABI. Ele é taxativo quanto ao perfil do Presidente derrubado pelos militares. “Jango jamais foi comunista. Era o maior proprietário de terras do Brasil. Queria as reformas de base, errou ao tentar fazê-las de uma só vez, inclusive quebrando a hierarquia militar. Claro que gostaria de continuar no governo depois de terminado seu mandato, mas jamais mudando as linhas básicas do sistema capitalista”. Em A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe, Chagas traça um painel do quadro da época. “Os militares que tomaram o País de assalto estavam unidos no substantivo: o assalto. A partir de janeiro de 1964, generais, coronéis, subalternos e equivalentes conspiravam para depor o Presidente, estimulados pelo empresariado nacional e estrangeiro. O fantasma das reformas de base, ou seja, da perda dos privilégios das elites, somava-se à fobia do anticomunismo à qual se ligava a Igreja. É claro que por trás desse denominador comum funcionavam cor-
Foto publicada no jornal Última Hora em 30 de julho de 1963 com a seguinte legenda: "Ao lado do Ministro Carvalho Pinto, advertiu o Presidente que se iludem, porém, 'aqueles que confundem paciência, espírito cristão e tolerância com covardia para realizar reformas', citando 'especialmente a reformulação do velho arcabouço feudal' da nossa terra.”
“O golpe foi consequência direta da paranóia da Guerra Fria” Formado em Direito, professor da Universidade de Brasília, Flávio Tavares é jornalista. Colunista político nos anos 1960, da Última Hora do Rio de Janeiro, São Paulo, Recife, Belo Horizonte e Porto Alegre, foi preso e banido do Brasil pela ditadura em 1969. Exilado no México, foi redator do Excelsior, depois correspondente internacional de O Estado de S.Paulo em Buenos Aires, e depois em Lisboa. À volta do exílio, foi editorialista político do Estadão e correspondente da Folha de S.Paulo na Argentina. Hoje, é articulista dominical do Zero Hora, de Porto Alegre. É com a experiência de quem atuou na imprensa durante a ditadura e sofreu, na vida pessoal e profissional, severos impactos diretos com a ascensão dos militares ao poder, que Tavares fez chegar ao mercado editorial mais um livro de sua autoria: 1964 – O Golpe foi lançado em março deste ano. A participação dos Estados Unidos na política brasileira é um dos pontos centrais da obra. “Meio século atrás, como jornalista político em Brasília, acompanhei toda a preparação ostensiva do golpe, mas só fui descobrir seu verdadeiro nascedouro ao manusear a documentação secreta do governo dos Estados Unidos, nos períodos dos Presidentes Kennedy e Johnson. O golpe de 1964 foi conseqüência direta da para14
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nóia da Guerra Fria. Sem a participação direta dos Estados Unidos até poderia ter ocorrido um golpe, mas não seria o golpe que foi, não teria a audácia de cometer tantos desmandos e impor o que impôs. Os Estados Unidos e a direita militar e civil brasileira se retroalimentavam nas fantasias. Mas o golpe nasceu nos EUA, com dinheiro e com a participação militar norte-americana. Não é suposição, está tudo documentado em meu livro”, apontou Flávio, em entrevista ao Jornal da ABI. Um cenário intervencionista que, hoje, não está tão diferente assim. Para o jornalista, por exemplo, não causaram espanto as recentes denúncias de espionagem norte-americana sobre empresas e o governo brasileiro. “Continuamos vulneráveis não só pela espionagem eletrônica, mas pela permanente invasão – invasão mesmo – do poder econômico-financeiro dos Estados Unidos, ainda que eles estejam em crise. Culturalmente, somos dominados por eles cada vez mais. Já usamos o idioma inglês em coisas correntes, que antes dizíamos em nossa língua. Afinal, por que dizer ‘bike’ em vez de bici ou bicicleta?”, questiona ele, autor de livros premiados, como Memórias do Esquecimento (recebeu o Prêmio Jabuti em 2000) e O Dia em que Getúlio Matou Allende (vencedor do APCA, em 2004, e do Jabuti, em 2005).
Segundo o autor, a obra tem como mérito revelar segredos e desnudar artimanhas secretas. “Eu próprio me surpreendi com a documentação dos EUA que publico no livro. Tentei penetrar também nas entranhas do governo Jango e da esquerda da época, e mostro como algumas ações da esquerda serviram, no fundo, de ‘provocação’ e acabaram facilitando a atividade dos golpistas”, revela Flávio, para quem, cinco décadas depois, o golpe ainda preserva abertas diversas feridas na democracia brasileira. “Ele gerou a ditadura, e esta nos deixou um legado terrível. Por um lado, nos amedrontou, fez da violência uma prática do poder. Basta ver a ferocidade das polícias militares do Rio, São Paulo e outros estados. Por outro, despolitizou a política. A corrupção partidária, em que os partidos são meros balcões de negócios, vem da época dos pseudos partidos – Arena como pró-governo e o MDB anti-governo, ambos instituídos pelo regime militar. A transformação dos partidos em agrupamentos para acomodar os políticos, que agem por interesses próprios, surgiu na ditadura. E assim continua até hoje.”
sem a maioria, a volta à cassação de mandatos, a transformação de um Congresso em final de mandato em Assembléia Nacional Constituinte, o fechamento do Congresso, o AI-5, com Costa e Silva, a prisão do vicePresidente Pedro Aleixo, o Pacote de Abril e mais um monte de golpes dentro do golpe. Não havia riscos institucionais, simplesmente porque, àquela altura, já não havia instituições.” Do livro editado pela Record, constam revelações de bastidores presenciados por Carlos Chagas no Rio e em Brasília, tais como a invasão do Congresso por tropa armada, em 1966, e a quase guerra civil entre o Presidente Ernesto Geisel e o Ministro Silvio Frota, em plena Praça dos Três Poderes. Sem esquecer as profundezas do atentado ao Riocentro e a luta do Presidente João Figueiredo para acabar com a ditadura. “O primeiro volume dessas narrativas vai de 1964 a 1969. O segundo, já pronto, trata dos anos seguintes e vai para as livrarias no final deste ano. Aqui para nós, está mais quente do que o primeiro. Felizmente, tenho a certeza de que não me valerão, os dois volumes, os processos a que respondi antes, com outros, pela Lei de Segurança Nacional”, satiriza Chagas.
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1964 – O Golpe FLÁVIO TAVARES | L&PM | 320 PÁGINAS
Assisti em 1961 à chegada do vicePresidente João Goulart a Porto Alegre, vindo da China, e, logo, à posse presidencial em Brasília, após o triunfo do Movimento da Legalidade. A 1° de abril de 1964, testemunhei seus derradeiros momentos no Palácio do Planalto, aquelas horas finais em que o poder lhe fugia das mãos a cada instante, e toda tentativa de ir adiante o fazia retroceder ainda mais. Sem telefones interurbanos, nem telex ou vôos comerciais, Brasília estava isolada nessa tarde, 36 horas após o início da sublevação do general Olympio Mourão, em Minas Gerais. Só os boatos, carregados de invencionices, alimentavam o Congresso, os quartéis e a população. De pronto, soubemos que Jango viera do Rio, onde ainda estava a maioria dos ministérios. Ele era o centro nevrálgico de tudo e, com ele, tudo se esclareceria. Caminhamos do Congresso ao Palácio do Planalto, sem saber que ali estava o começo da História do golpe de Estado. E do que o rodeou – a dispersão dos conspiradores e seu reagrupamento. Ou o ufanismo inocente dos legalistas. A direita e a esquerda em confronto. E do que veio depois. Assisti a tudo, mas só agora, 50 anos depois, fui descobrir os elos da conspiração e da articulação do golpe. Até a quase totalidade dos que dele participaram ignoravam sua raiz. Ei-la adiante, diretamente no que conto e nos documentos secretos da Casa Branca, da CIA e da Embaixada dos EUA. E, mais do que tudo, nas entrelinhas do que ali se oculta.
TRECHO
A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe: 1964-1969 Na manhã do dia 6 de outubro de 1965, celebrava-se mais um aniversário da Jornada de Monte Castello, na Segunda Guerra Mundial, pela Força Expedicionária Brasileira. Após o desfile militar comemorativo, Costa e Silva – que ainda era Ministro da Guerra, porque só meses depois um decreto mudaria o nome para Ministro do Exército – disse aos jornalistas, segundo o Diário de Notícias e Jornal do Brasil. “Como vocês viram, a vila militar não desceu. E eu não estou demissionário. As decisões do Presidente da República serão rigorosamente cumpridas. Cuidado com os boatos. As Forças Armadas não são organizações políticas. Não decidem se devem ou não dar posse aos eleitos na Guanabara e Minas Gerais, Negrão de Lima e Israel Pinheiro. A decisão é do Presidente e do Congresso. Se o Presidente disser ‘dêem posse’, haverá posse. Se disser ‘não dêem posse’, eles não tomarão posse. As cordas da revolução são de aço e não se rompem”. A seguir, num almoço que a oficialidade oferecia, o ministro discursou, conforme publicaria O Jornal na primeira página: “Atravessamos uma fase nova ainda chamada de revolucionária, iniciada em 31 de março de 1964, quando o Exército, violentando seu princípio, mas prestando uma homenagem ao povo, afastou aqueles que queriam levar o País ao caos, coisa que não tolerará jamais, pois o espírito revolucionário continuará prevalecendo.” Na madrugada de 5 para 6, ao retornar da Vila Militar, Costa e Silva passara, em segredo, no Palácio Laranjeiras, para dar conta de que havia contornado a rebelião e combinar o que diria no dia seguinte, na Vila Militar. Nenhum dos dois precisou tornar claro ou particularizar, mas, naqueles poucos minutos de conversa, ficou óbvio que Castello passara a ser devedor de seu ministro. Permaneceria no poder porque Costa e Silva permitia, porque fizera refluir os tanques. O colega de turma não se inscrevia propriamente no rol dos possíveis candidatos à sucessão de 1966. Ele próprio era ‘o candidato’, apesar de muita água ainda vir a passar sob a ponte para confirmá-lo. Os boatos da demissão de Costa e Silva partiram de Carlos Lacerda e seu grupo. Difundiam a idéia de que, com vistas a se perpetuar no poder, Castello trabalhava por afastar quaisquer pretendentes à Presidência da República. O primeiro fora ele, Lacerda, progressivamente esvaziado e, afinal, isolado. Depois, da mesma forma, Magalhães Pinto. E então chegara a vez de Costa e Silva.
Que a ascensão dos militares ao poder transformou a gênese da política brasileira, disso, não há dúvidas. Mas o golpe de 1964 mexeu também na produção cultural do País, e no entendimento da população sobre o significado da política – e dos políticos. Um dos autores de Autoritarismo e Cultura Política, que acaba de chegar às livrarias, Rodrigo Patto conversou com o Jornal da ABI. O que teria levado este mineiro de Belo Horizonte, doutor em História pela Usp, pesquisador bolsista do CNPq e professor do Departamento de História da UFMG, a produzir este título justamente agora, quando são completados 50 anos da intervenção militar? “É fundamental refletir sobre o fenômeno autoritário no Brasil, que contou com duas ditaduras de larga duração no período republicano. Compreender adequadamente o autoritarismo, para além das necessidades do conhecimento acadêmico, pode ser útil do ponto de vista político, para nos ajudar a encontrar meios para fortalecer as instituições e a cultura democrática. Uma das apostas teóricas do livro é que o autoritarismo tem relação com a cultura política brasileira, ou seja, com tradições políticas arraigadas na nossa cultura”, aposta ele, que assina a obra ao lado de Luciano Aronne de Abreu. Rodrigo escreveu também Em Guarda Contra o Perigo Vermelho: o Anticomunismo no Brasil (1917-1964), editado pela Perspectiva em 2002, em que estuda uma dimensão pouco conhecida dos movimentos conservadores e direitistas no País. Movimentos que resultaram no golpe, que sacudiu a produção cultural nacional. “A atuação dos militares neste campo foi modernizadora e autoritária, ao mesmo tempo. Houve a expansão dos empreendimentos e empresas culturais, como jornais, televisão, rádio e editoras, e também investimentos para modernizar as universidades. Porém, simultaneamente, a ditadura criou mecanismos para cercear a liberdade, como a censura, direta e indireta, e eventuais ações violentas contra artistas desafetos do regime”. Não por acaso, o novo livro destaca generoso espaço ao capítulo “A dramaturgia Buarqueana e a censura dos anos 1970: dois movimentos de uma trajetória que se fez entre estratégias e tática”, numa referência – e reverência – à obra de Chico Buarque de Hollanda, cantor, compositor e autor de peças de resistência como Calabar, Gota D´Água e Roda Viva. Vale lembrar que nesta última, durante temporada em São Paulo, após a sessão da noite de 18 de julho de 1968, ocorreu o tenebroso episódio da invasão de membros do CCC (Comando de Caça aos Comunistas) ao Teatro Ruth Escobar, seguida da agressão a atores do elenco, como Marília Pêra e Rodrigo Santiago.
REPRODUÇÃO
CARLOS CHAGAS – RECORD – 490 PÁGINAS
“Na cultura, a atuação dos militares foi modernizadora e autoritária”
Chico Buarque durante o ensaio de Roda Viva, peça que sofreu um atentado do Comando de Caça aos Comunistas na noite de 18 de julho de 1968.
“Como herança direta do período militar, houve redução da liberdade e aumento na repressão, o que significou obstáculos à livre criação artística e à expressão cultural. No entanto, os artistas souberam criar mecanismos para questionar ou para contornar os obstáculos colocados pela ditadura. Assim, de fato, o autoritarismo estimulou a criatividade, por impor aos criadores culturais a necessidade de burlar a
censura, e, também, por oferecer a eles uma motivação política para continuarem produzindo, apesar das dificuldades”, contextualiza Rodrigo, lembrando que tal postura dos artistas deveu-se, na verdade, ao comportamento inquieto da classe. E à própria natureza humana de contestação da autoridade e resistência às arbitrariedades. Não caracterizando, nem de longe, um ‘favor’ prestado pelos militares à cultura nacional.
TRECHO
Autoritarismo e Cultura Política RODRIGO PATTO SÁ MOTTA E LUCIANO ARONNE DE ABREU (ORGANIZADORES) | FGV EDITORA | 348 PÁGINAS
A aproximação analítica entre os temas Autoritarismo e Cultura Política, abrangendo o Brasil e outros países latino-americanos (Argentina, Chile e Uruguai), pode gerar chaves interpretativas e explicativas inovadoras para a história da região. Com efeito, tais nações passaram por experiências autoritárias recentes que, em boa parte, contribuíram para a sua configuração atual, quer seja pela ação direta na moldagem de suas estruturas econômico-sociais contemporâneas, quer seja pela própria reação adversa que geraram na forma de movimentos de combate a esses regimes e suas heranças ainda atuantes, em especial no campo da construção da memória. O enfoque ganha especial pertinência quando consideramos que, em alguns desses países, como o Brasil, o autoritarismo não é um fenômeno político recente, mas possui uma vasta História. Não apenas porque tais países já tenham passado por regimes não democráticos anteriormente, mas porque também eles foram palco da elaboração de toda uma tradição teórica autoritária, ou seja, de intelectuais que pensaram e projetaram a sociedade (brasileira e latino-americana) como incompatível com a democracia liberal. E muitos elementos desse pensamento autoritário eram compartilhados ou
apropriados por outras correntes de pensamento – mesmo à esquerda do espectro político-intelectual – e, inclusive, pelos grandes meios de comunicação, alcançando uma abrangência maior que o restrito círculo dos intelectuais. Dessa maneira, torna-se muito pertinente procurar associar o autoritarismo à cultura política, na medida em que as bases do pensamento autoritário contribuíram difusamente na própria maneira como a realidade política dessas sociedades vem sendo concebida ao longo das últimas décadas. Por outro lado, há que se considerar também a manifestação de determinados traços de cultura política tanto nos períodos de governo autoritário quanto nas fases consideradas democráticas. Tendo em vista especialmente o caso brasileiro, podemos mencionar como exemplos o reiterado recurso à conciliação entre setores da elite, a reprodução de práticas clientelistas, o arraigado corporativismo e a tradicional personalização das relações políticas.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE À SOMBRA DE 1964
“A grande dívida é o paradeiro dos desaparecidos políticos” Afinal, havia mesmo a ‘ameaça’ de implementação do socialismo no Brasil? Quem responde a essa pergunta, em mais uma entrevista para o Jornal da ABI, é Marcos Napolitano, autor de 1964: História do Regime Militar Brasileiro. “Este é um dos pontos que eu polemizo com algumas interpretações. Não trabalho com esta hipótese da ‘radicalização’ como fator explicativo central para o golpe. Acho que o anticomunismo alimentou o anti-reformismo, entendido como reformas sociais conduzidas pelo governo com certa participação popular, o que não significava necessariamente ‘socialismo’. O Governo Jango, na verdade, estava muito longe de ser um projeto socialista”, pondera o autor. Marcos é doutor em História Social pela USP e professor do Departamento de História da mesma universidade, onde
leciona História do Brasil Independente. É autor e co-autor de vários livros, entre os quais Como Usar o Cinema em Sala de Aula e Cultura Brasileira: Utopia e Massificação, todos publicados pela Editora Contexto. “O novo livro tenta responder a perguntas-chave, tais como: a ditadura durou muito graças ao apoio da sociedade civil, anestesiada pelo ‘milagre’ econômico? Foi Geisel, com a ajuda de Golbery, o pai da abertura, ou foi a sociedade quem derrubou os militares do poder? Como era o cotidiano das pessoas durante o regime militar? Como a cultura aflorou naquele momento?”, explica o autor, que traduz um pouco mais de sua proposta. “Meu livro não traz revelações factuais. O seu ponto forte está na reinterpretação de explicações mais ou menos consagradas sobre a chamada ‘fase branda’ do regime, no governo Castello, sobre a vida
cultural, sobre a abertura e suas relações com a sociedade. Além disso, trago algumas discussões sobre a natureza do regime autoritário, propondo uma nova perspectiva sobre seus objetivos políticos. Enfim, é um livro de entrada no tema, uma síntese para que o leitor faça a ponte com trabalhos mais monográficos. Obviamente, na minha opinião, nenhuma ditadura é boa. Mas isso não nos desobriga a compreender o regime militar evitando análises passionais ou julgamentos morais. É preciso compreender como uma opção autoritária se construiu, como o regime se sustentou por mais de 20 anos e quais os efeitos sociais e políticos da modernização capitalista combinada com repressão”. Napolitano avalia duramente o desempenho do Presidente deposto. “Esboçou-se o perfil de um estadista ousado, vitimado pelo conservadorismo das eli-
“O golpe foi dado sem que houvesse qualquer reação da sociedade civil”
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sensibilidade social, que procurou o tempo todo fazer as reformas de que o País precisava para crescer na base do consenso, do arranjo político – ou seja, pela via democrática. Só quando viu que não conseguiria, jogou mais duro, levando adiante suas idéias na base do decreto. A juventude da época, sobretudo aquela engajada nos movimentos estudantis, era majoritariamente de esquerda, mas não necessariamente apoiava a implantação de um comunismo na base da ditadura do proletariado.” Nem mesmo os artistas, tradicionalmente mais progressistas, posicionaram-se contrariamente à ação militar. “Se não apoiou o golpe como outros segmentos, a classe também não fez nada para impedilo. Na verdade, o golpe foi dado sem que houvesse qualquer reação da sociedade civil. Naquele momento nenhuma voz se ergueu. Depois, sim, a classe artística se pronunciou e se envolveu nos protestos contra a ditadura, já em 1968”. Se o verão de 1964 foi marcado pela eminência do golpe, os que se seguiram tiveram como chancela o autoritarismo militar. “As feridas ainda nem cicatrizaram, pois os responsáveis pelo terror político e econômico não foram punidos. Por isso, sou completamente a favor de uma revisão da Lei da Anistia. Não é possível anistiar torturador. Isso é considerado crime hediondo e, portanto, imprescritível.” ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ
Este é outro título que chega às livrarias justamente em função da passagem dos 50 anos da tomada do poder pelos militares. Com mais de duas décadas de atuação na imprensa esportiva, Roberto Sander é autor de diversas obras sobre futebol e História do Brasil, além de diretor editorial da Maquinária. 1964 - O Verão do Golpe é o seu décimo livro e busca reconstituir, por meio de cuidadosa pesquisa de cinco anos, o clima geral nos três meses que antecederam a derrubada de Jango. O livro, que em alguns sites de venda encontra-se esgotado, tem entusiasmado leitores e críticos pela natureza ágil de sua narrativa, repleta de detalhes. O prefácio é do jornalista Geneton Moraes Neto e a revisão histórica e texto de orelha do cientista político Eduardo Heleno, professor da UFF. “É sempre difícil para um autor falar sobre sua própria obra. Mas, acredito que o seu maior mérito seja retratar um período meio negligenciado pela historiografia oficial. Existe uma vasta literatura sobre as conseqüências do golpe, sobre os Anos de Chumbo, inaugurados pelo AI-5, em dezembro de 1968, mas pouca sobre as causas, sobre o período que precedeu o golpe e aquele logo depois dele. Lançar luzes sobre episódios pouco conhecidos que ocorreram entre janeiro e junho de 1964, inclusive no aspecto cultural e comportamental; creio ser este o diferencial deste livro e a razão da boa acolhida do mesmo pelo mercado”, contou Roberto ao Jornal da ABI. Para o jornalista, não há uma relação direta entre a revolução de costumes, inicia-
da nos anos 1960, com o evento do dia 1º de abril de 1964. “O contexto político daquela época é que foi decisivo. Tínhamos um governo democrático buscando fazer reformas estruturais na sociedade brasileira. Reformas no campo, na saúde, na educação, na legislação eleitoral, que, se viabilizadas, romperiam com privilégios enraizados no País, contrariando os interesses das nossas elites, reconhecidamente egoístas e retrógradas. Além disso, era um momento de grande polarização ideológica, reforçada pela Guerra Fria. Dessa forma, falaram mais alto os interesses do empresariado nacional e das potências capitalistas, sobretudo dos Estados Unidos, que além de temerem a influência do comunismo na América Latina, precisavam de governos dóceis nos países em desenvolvimento para investir com segurança os seus excedentes de capitais.” Em sintonia com diversos historiadores, para Sander não existia, por parte do governo, qualquer intenção de fazer uma revolução comunista. “O Presidente João Goulart era apenas um burguês, com bastante
tes. No entanto, naquele mesmo contexto, uma grande parte da esquerda militante não endossava o projeto reformista de João Goulart, preferindo criticar a marca populista e demagógica de sua personalidade e de seu governo. Na impossibilidade de um grande final, Jango acabou encenando uma ópera bufa, deixando para trás um país dividido, e destruindo 20 anos de conquistas no campo da democracia”. Para o historiador, os trabalhos das Comissões da Verdade, em Brasília e em alguns estados, vieram para corrigir o principal passivo do País para com seu passado. “Muito já se acumulou, em termos de memórias e mesmo no campo historiográfico, elucidando processos relativos ao período. Mas a grande dívida é mesmo na área de investigação das violações de Direitos Humanos e no paradeiro dos desaparecidos políticos.”
TRECHO
1964 O Verão do Golpe ROBERTO SANDER MAQUINÁRIA EDITORA – 272 PÁGINAS
Quando foi subitamente acordado, num hotel em Cingapura, na madrugada de 26 de agosto de 1961, João Goulart não imaginava que sua vida, a partir dali, daria uma grande reviravolta. Jango dormia ao lado de uma prostituta e havia acabado de chegar de Xangai. Estava em sono profundo e quem ouviu as insistentes batidas na porta do quarto e o acordou foi a moça que o acompanhava. Assim que a abriu, recebeu a bomba: “Acorda e te veste. O Jânio renunciou e tu és agora o Presidente do Brasil”, disse-lhe, em tom de urgência, o jornalista João Etcheverry. “O quê? Não pode ser! Como é que os chineses não nos avisaram nada?”, perguntou Jango, estupefato, ao seu secretário de imprensa Raul Ryff que, com Etcheverry, fora lhe avisar da bomba: “Foi tudo esta noite, há pouco; lá no Brasil agora é o início da tarde”, respondeu Ryff, que, de tão atônito, esquecera-se de vestir a camisa. Já Etcheverry estava com os pés descalços e Jango, de cuecas. Como todo o Brasil, foram pegos de surpresa. Refeitos do susto, enquanto aguardavam que se completasse a ligação internacional para que soubessem de mais detalhes da renúncia inesperada, convocaram o restante da pequena comitiva para que, da suíte de João Goulart, aguardassem mais notícias. Foi quando o senador Barros de Carvalho, do PTB, sugeriu que fosse feito um brinde de champanhe ao novo Presidente. Jango, muito precavido, com os pés no chão, respondeu: “Barros, se você quer tomar champanhe não há inconveniente algum. Vamos buscar champanhe no bar, mas não para comemorar a minha chegada à presidência e sim em homenagem ao imprevisível.”
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1964: História do Regime Militar Brasileiro MARCOS NAPOLITANO | EDITORA CONTEXTO | 368 PÁGINAS
Protagonistas de muitas origens políticas, estudiosos de inúmeras áreas acadêmicas, artistas e intelectuais de diversos campos de atuação, refletiram sobre os acontecimentos em curso e ajudaram a construir visões críticas sobre vários temas co-relatos à História do regime militar: o golpe, a agitação cultural, as passeatas estudantis de 1968, o milagre econômico, a guerrilha de esquerda, a repressão e a tortura, a abertura política. Quando o regime acabou, havia já uma memória construída por estes protagonistas e analistas. Hoje, passados cinqüenta anos do golpe de 1964 e quase trinta anos do fim da ditadura, muitas dessas perspectivas são revisitadas pela historiografia e pela própria memória social. As perguntas que circulam há algum tempo, tanto na imprensa quanto no meio acadêmico, sintetizam este debate: Jango foi o responsável pela crise de 1964? O golpe foi puramente militar ou civil-militar? A ditadura para valer só começou com o AI-5, em 1968? A esquerda armada foi a principal responsável pelo acirramento da violência de Estado? As artes e a cultura de esquerda estavam inseridas na indústria cultural ou foram meras concessões episódicas por parte desta? A sociedade, predominantemente, resistiu ou apoiou a ditadura? A abertura do regime foi um movimento consciente dos militares, que preparavam a sua saída do poder sem hesitações? Defendo a interpretação de que em 1964 houve um golpe de Estado, e que este foi resultado de uma ampla coalizão civil-militar, conservadora e anti-reformista, cujas origens estão muito além das reações aos eventuais erros e acertos de Jango. O golpe foi o resultado de uma profunda divisão na sociedade brasileira, marcada pelo embate de projetos distintos de país, os quais faziam leituras diferenciadas do que deveria ser o processo de modernização e de reformas sociais. O quadro geral da Guerra Fria, obviamente, deu sentido e incrementou os conflitos internos da sociedade brasileira, alimentando velhas posições conservadoras com novas bandeiras do anticomunismo. Desde 1947, boa parte das elites militares e civis no Brasil estava alinhada ao mundo “cristão e Ocidental” liderado pelos Estados Unidos contra a suposta “expansão soviética”. A partir da Revolução Cubana, em 1959, a América Latina era um dos territórios privilegiados da Guerra Fria. Este pensamento, alinhado à “contenção” do comunismo, foi fundamental para delinear as linhas gerais da Doutrina de Segurança Nacional (DSN), propagada pela Escola Superior de Guerra. A DSN surgiu no segundo pós-guerra, sintetizada pelo Conselho de Segurança Nacional dos Estados Unidos, e tem suas origens na Doutrina de Contenção do Comunismo internacional.
“O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos” Com seu estilo coloquial, direto e despojado, e após polemizar em torno do comportamento do Poder Judiciário e do escândalo político no livro Mensalão, Marco Antonio Villa agora tenta desmistificar a ditadura brasileira, tanto em sua duração como em seus efeitos. Mordaz, Villa diz que o panorama intelectual brasileiro é desalentador: “Com a redemocratização, os intelectuais foram se afastando. Contam-se nos dedos aqueles que têm uma presença ativa”. A seu ver, muitos dos que hoje se dizem justiceiros do regime militar, naquela época, “estranhamente, omitiram-se quando colegas foram aposentados compulsoriamente pelo AI5, como Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, ou presos e condenados, como Caio Prado Júnior”. Esse é o tom de Ditadura à Brasileira, 1964-1985: a Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita, obra lançada neste 2014, também em função dos 50 anos do golpe. O autor concedeu entrevista ao Jornal da ABI. “De forma consciente, remo contra a corrente. Apresento o governo Jango de forma distinta; mostro que o golpe tinha, inicialmente, um sentido, mostro a especificidade de cada governo militar e como se desenvolveu o momento da redemocratização. Dou destaque especial aos parlamentares do MDB e sua luta heróica em defesa da democracia. E mostro como o tema ainda é marcado pelo panfletarismo barato e pelos ‘policiais da verdade’ que temem o debate. Falta estudar com cuidado o governo Jango e o papel nocivo do Presidente no momento da maior crise política do século 20 brasileiro. Construíram uma versão do passado e querem pela força mantêla. Um bom exemplo é a falácia de que a luta armada conduziu à democracia, isto quando todos os grupos – friso, todos – defendiam a implantação de uma ditadura do proletariado por aqui. Evidentemente que isto – de forma alguma – justifica a ação terrorista de Estado, com as gravíssimas violações dos direitos humanos”. Mestre em Sociologia e Doutor em História, Marco Antonio é professor do Departamento de Ciências Sociais da UFSCar. E aponta aquela que considera a interpretação mais equivocada sobre a realidade brasileira da época. “Sem dúvida, é associar mecanicamente o que aconteceu no Brasil com o ocorrido nos países do Cone Sul. O regime militar brasileiro tem características próprias, independentes da ditadura argentina ou chilena. Por exemplo, o Exército brasileiro tem na sua origem o positivismo. Aqui fascismo ou nazismo, que tiveram grande importância na Argentina e no Chile, foram quase que irrelevantes. Outros dois exemplos de diferença: o regime militar brasileiro estatizou a economia. O argentino fez o contrário, basta citar a ação do ministro Martínez de Hoz. E mais: o re-
gime brasileiro expandiu o ensino de terceiro grau; o argentino atacou duramente as universidades. Por aqui todos os Presidentes foram eleitos pelo Congresso ou Colégio Eleitoral; enquanto lá – e este ‘lá’ inclui o Chile – eles foram impostos sem qualquer tipo de consulta, mesmo que controlada”. O professor defende teses que, por vezes, provocam críticas de alguns de seus colegas acadêmicos – a começar pelo questionamento sobre quantos anos teria durado a ditadura. “O regime militar brasileiro não foi uma ditadura de 21 anos. Não é possível chamar de ditadura o período 1964-1968 (até o AI-5), com toda a movimentação político-cultural que havia no País. Muito menos os anos 1979-1985, com a aprovação da Lei de Anistia e as eleições diretas para os governos estaduais em 1982. Que ditadura no mundo foi assim?”, indaga Marco Antonio, para quem, ao contrário do que defende outro autor entrevistado nesta reportagem – Carlos Fico, que escreveu O Golpe de 1964: Momentos Decisivos – existiram, sim, lados positivos no regime militar. “Podemos destacar a industrialização, a modernização econômica, a revolução na in-
fraestrutura, nas comunicações... E por aí vai”, enumera ele, que não poupa de críticas os movimentos de luta armada. “O regime militar, inicialmente, dava o ar de uma intervenção cirúrgica, curta no tempo. Basta ler o discurso de Castello Branco que disse que concluiria o mandato iniciado em 31 de janeiro de 1961. Portanto, haveria a eleição de outubro de 1965 – eleição direta, claro. E a posse do novo Presidente ocorreria em 31 de janeiro de 1966 – pois o mandato era de cinco anos, segundo a Constituição de 1946. Isso, como todos nós sabemos, não ocorreu. O aprofundamento da repressão tem relação com o predomínio da linha dura, especialmente após o AI-5, e teve a ‘colaboração’ da luta armada. Por ‘colaboração’ entenda-se, da seguinte forma: cada ato terrorista jogava água no moinho da repressão, justificava sua ação e dava combustível para o extremismo de direita”, sentencia.
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Ditadura à Brasileira, 1964-1985: A Democracia Golpeada à Esquerda e à Direita MARCO ANTONIO VILLA | EDITORA LEYA | 234 PÁGINAS
A direita não conseguia conviver com uma democracia de massas em um momento de nossa história de profundas transformações econômicas e sociais, graças ao rápido processo de industrialização e à crescente urbanização. Temerosa do novo, ela buscava um antigo recurso: arrastar as Forças Armadas para o centro da luta política, dentro da velha tradição inaugurada pela República, que já havia nascido com um golpe de Estado. A esquerda comunista não ficava atrás. Também sempre estivera nas vizinhanças dos quartéis, como em 1935, quando tentou depor Vargas por meio de uma quartelada. Depois de 1945, buscou incessantemente o apoio dos militares, alcunhando alguns de ‘generais e almirantes do povo’. Ser ‘do povo’ era comungar com a política do Partido Comunista Brasileiro e estar pronto para atender ao chamado do partido em uma eventual aventura golpista. As células clandestinas do PCB nas Forças Armadas eram apresentadas como uma demonstração de força política. À esquerda do PCB, havia os adeptos da guerrilha (...) Em meio ao golpismo, o regime democrático sobrevivia aos trambolhões. Defendê-lo era, segundo a esquerda golpista/ revolucionária, comungar com o desprezível liberalismo burguês, ou, de acordo com a direita, com o odiado populismo varguista. Atacada por todos os lados, a democracia acabaria sendo destruída, abrindo as portas para duas décadas de arbítrios e violências.
Veio 1964. E de novo foram construídas interpretações para uso político, mas distantes da História. A associação do regime militar brasileiro com as ditaduras do Cone Sul (Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai) foi a principal delas. Nada mais falso. O autoritarismo aqui faz parte de uma tradição antidemocrática solidamente enraizada e que nasceu com o Positivismo, no final do Império. O desprezo pela democracia foi um espectro que rondou nosso País durante cem anos de República. Tanto os setores conservadores como os chamados progressistas transformaram a democracia em um obstáculo à solução dos graves problemas nacionais. Nos últimos anos se consolidou a versão de que os militantes da luta armada combateram a ditadura em defesa da liberdade. E que os militares teriam voltado para os quartéis graças às suas heróicas ações. Em um País sem memória, é muito fácil reescrever a História. A luta armada não passou de ações isoladas de assaltos a bancos, seqüestros, ataques a instalação militares e só. Apoio popular? Nenhum. Este livro refuta as versões falaciosas. Deseja romper o círculo de ferro constituído, ainda em 1964, pelos adversários da democracia, tanto à esquerda como à direita. Não podemos ser reféns, historicamente falando, daqueles que transformaram o antagonista em inimigo; o espaço da política, em espaço de guerra.
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HISTÓRIA
O prédio da Tribuna da Imprensa depois do atentado de março de 1981: a potência da bomba destruiu as instalações da oficina do jornal.
Um cemitério de jornais POR ALBERTO DINES
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o longo de sua atribulada história, o jornalismo impresso vem sofrendo incontáveis baixas. Parte delas causada pela competição e avanços na arte de imprimir, outras pelo inesperado aparecimento de plataformas mais ágeis e velozes (rádio, tv e internet – esta ainda em curso). A prepotência, a fúria política e/ou o terror econômico têm sido os grandes vilões deste massacre através de um arsenal variado e letal onde se incluem embargos, intimidações, censura continuada, atentados, empastelamentos, prisões, exílio, assassinatos. Ainda não se procedeu a um levantamento minucioso de todos os jornais, revistas e outros periódicos desativados, desaparecidos e calados ao longo dos 21 anos da ditadura militar. Levará tempo para listá-los e, depois disto, definir os critérios que permitirão enquadrá-los como vítimas dos malefícios do regime que imperou no País de 1964 a 1985. Há que discutir se entrarão apenas as vítimas diretas do arbítrio e da intolerância ou também as vítimas indiretas. Valerão os veículos desaparecidos por “morte natural” (empresas já decadentes que não souberam adaptar-se aos novos tempos)? E aqueles que foram tão privilegiados durante a 18
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ditadura que acabaram desabando quando o fim do regime de exceção fechou as torneiras do crédito fácil e das mamatas (Manchete, revista semanal e rede de tv extintos em 1999 e 2000)? O esplêndido mensário Realidade, da Editora Abril, fechou as portas em 1976. Teve edições apreendidas, foi censurado e sitiado pelos militares. Mas o mercado publicitário poderia ter sido mais solidário. Um dado é indiscutível, inquestionável: a imprensa alternativa, os nanicos (herdeiros do mineiro Binômio dos anos 1950) nasceram, cresceram e multiplicaram-se no enfrentamento com o Golias da ditadura. E foram aniquilados por ele. Na década de 1970 do século passado, em plena ditadura, deixaram de circular três importantes matutinos cariocas: O Jornal, Diário de Notícias e Correio da Manhã. Apenas um deles, este último, foi abatido. Pode-se alegar que o jornal fundado por Edmundo Bittencourt não foi fechado por expressa determinação dos militares. Na fase final foi arrendado a um grupo de empreiteiros bilionários que fizeram fortuna à custa das obras faraônicas empreendidas durante o “milagre brasileiro” e espoliaram o combativo jornalão, incubando em suas páginas um suplemento chamado Diretor Econômico
(que chegou a ter mais páginas do que o veículo-mãe). Em 1972, o mesmo grupo comprou de Samuel Wainer a sua Última Hora, sucessivamente revendida à Folha de S.Paulo e Ary de Carvalho, que vivia apregoando o bom relacionamento com “os coronéis”. O valente vespertino, fundado por Samuel Wainer em 1951, foi o único jornal que defendeu João Goulart até a sua queda. Por isso invadido e incendiado pela turba. Com a Tribuna da Imprensa (fundada em 1949 por Carlos Lacerda) travou um duelo que estendeu-se por três décadas. A Tribuna, primeira a pedir a derrubada do Presidente João Goulart e, junto com o poderoso Correio da Manhã, pioneira no repúdio à ditadura instalada em seguida à quartelada, só deixou de circular em 2001 (16 anos depois da redemocratização), mas foi paulatinamente desvitalizada pela ditadura, principalmente depois da morte de Carlos Lacerda (1977). O aguerrido vespertino e o bravo matutino eram vizinhos de fundos na Lapa carioca: um funcionava na Rua do Lavradio, o outro na Av. Gomes Freire, com seus nomes inscritos na fachada e portão, fantasmas de um período tenebroso. Ainda estão lá.
REFLEXÕES
ARQUIVO NACIONAL/CORREIO DA MANHÃ
Memórias amargas “Hoje, posso dizer que estive na guerra. Estivemos todos, na verdade. Durante vinte anos, enfrentamos o regime militar implantado no Brasil em 1964.”
POR RODOLFO KONDER
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uarenta anos atrás, no dia 1º de abril de 1964 acordei sobressaltado. Na televisão, a voz arrogante de Flavio Cavalcante anunciava a vitória dos golpistas e a fuga, de Brasília, do Presidente João Goulart. Na tela, surgiam imagens de lençóis brancos nas janelas de alguns prédios da Zona Sul do Rio de Janeiro. Comemoravam o fim do Governo Jango e o início de uma prolongada ditadura militar. As perseguições que se iniciaram a partir de então não perturbaram a rotina das ruas – pelo menos até 1967 a 1968 – mas eram reais. Arrastaram muita gente, na penumbra. Levaram parentes e amigos. Seqüestravam as pessoas e, às vezes, faziam-nas imergir no lodaçal insondável do “desaparecimento”. À noite, casas e mentes eram invadidas, enquanto os cães uivavam nos quintais e o vento investia contra as sombras. A casa dos meus pais foi ocupada. Prenderam minha mãe – doce e inofensiva mulher de 50 anos –, meu irmão e minha cunhada. Transformaram a casa numa espécie de papel pegamosca: quem tocava a campainha caía na armadilha. Dirigente sindical na Petrobras, fui logo procurado pelos agentes da repres-
são. E cassado. Com a ajuda de Luís Carlos, funcionário da empresa que eu jamais vira antes, mas que me levou até a Embaixada do México, na Praia do Flamengo, escapei e parti para o primeiro exílio. Antes de embarcar, vivi uma experiência claustrofóbica, num apartamento ocupado por mais de 60 pessoas que se odiavam e pareciam ratos de laboratório. No México de Lopes Mateus, conheci o lendário Lázaro Cardenas, visitei Acapulco, estive em La Quebrada, para ver mergulhadores que pareciam pássaros, e sobrevivi a um terremoto. Depois, desci pela Costa do Pacífico, com Osmildo Stafford e Humberto Pinheiro, até o Chile. Então, Argentina e Uruguai. Vivi quase clandestinamente, após regressar do primeiro exílio, pela fronteira com o Uruguai, em Rivera e Santana do Livramento. Consegui meu primeiro emprego na Agência Reuter, com a ajuda de Luís Gazzaneo, em 1965. Na cobertura da Conferência da OEA, no Hotel Glória, Aristélio Andrade, Milton Coelho, Maurício Azêdo e eu criamos uma comissão de jornalistas que preparou um texto com denúncias contra o regime militar. Com a ajuda de Lygia Sigaud e dos membros da comissão, o texto foi distribu-
ído dentro do hotel, para o desespero da polícia política. Na esteira do AI-5, no final de 1968, mudei-me para São Paulo, onde fui preso, em 1975. As torturas a que me submeteram, nos portões do Doi-Codi, deixaram seqüelas que até hoje não consigo avaliar com precisão. Mas creio que o seu efeito mais perverso é uma sensação insuperável de isolamento, um sentimento de solidão que se instalou para sempre. No dia 1º de abril de 1976, doze anos depois do golpe militar, a Segunda Auditoria de Guerra, em São Paulo, decretou minha prisão preventiva. Autorizado a me defender em liberdade, deixei de comparecer semanalmente ao gabinete do Delegado Sérgio Fleury – e me encontrava “em lugar ignorado e não sabido” (SIC). Na verdade, eu fugira para a Argentina, atravessando clandestinamente a fronteira, em Foz do Iguaçu. Ao receber cartas e telefonemas de uma organização que se dizia “O Braço Armado da Repressão”, decidi sair do País para um segundo exílio. Da Argentina fui para o Peru. Mas acabei em Montreal, no Canadá, onde trabalhei durante dois anos como “announcer producer”, na “Canadian
Broadcasting Corporation”. Participei de encontros internacionais, entrei para a Liga dos Direitos Humanos, esquiei nas Lawrentian Mountains. Depois, morei quase um ano em Nova York, como correspondente do jornal Versus, dirigido por Marcos Faerman. Após meu regresso ao Brasil, em outubro de 1978, fui intimado a prestar depoimento na Polícia Federal. Durante três horas, fizeram-me perguntas, na presença do meu advogado, Jose Roberto Leal, e do Vice-Presidente do Sindicato dos Jornalistas, Fernando Moraes. Mas o clima era de respeito. A abertura política se esboçava. Hoje, posso dizer que estive na guerra. Estivemos todos, na verdade. Não combatemos na Coréia, nem no Vietnã, nem no Chade, nem na Croácia, mas estivemos na guerra. Na Guerra Fria. Durante vinte anos, enfrentamos o regime militar implantado no Brasil em 1964 – quarenta anos atrás. Não podemos esquecer, até porque os demônios do autoritarismo e da intolerância ainda nos espreitam, na sombra. R ODOLFO KONDER , jornalista e escritor, é Diretor da Representação da ABI em São Paulo e membro do Conselho Municipal de Educação da Cidade de São Paulo.
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Disparos na multidão
ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
P OR M ÁRIO M OREIRA
Tropas na rua, tiros para o alto, ambiente conturbado, falta de informações. Para jornalistas e personalidades que vivenciaram o dia em que o golpe militar de fato se consumou, essas são as principais lembranças do 1º de abril de 1964. Eles contaram ao Jornal da ABI o que viram, ouviram e sentiram. Morador da região do Posto 6, em Copacabana, o jornalista Carlos Heitor Cony se recuperava em casa de uma operação de apendicite quando foi avisado naquela manhã pelo poeta Carlos Drummond de Andrade, seu vizinho, sobre uma grande movimentação nas ruas. “Morávamos em ruas paralelas e nos víamos pelas áreas de serviço, dava até para conversar. Num dado momento, passei pela minha área e ele me acenou, dizendo que havia uma confusão no Posto 6 e me convidando para ir lá. Falei que tinha sido operado, e ainda por cima estava chuviscando, mas ele disse que levaria um guarda-chuva. Quando desci, ele já estava lá embaixo me esperando.” Cony e Drummond rumaram para a praia. “Era por volta das 11 ou 11 e meia da manhã. Ficamos ali, a dois quarteirões do Forte de Copacabana, olhando. Havia uma confusão muito grande, com viaturas do Exército na Avenida Atlântica. O General Olímpio Mourão Filho estava chegando ao Rio com suas tropas, vindo de Minas. A maioria dos quartéis já tinha aderido, mas havia a expectativa de alguma reação no Forte de Copacabana, como no episódio dos 18 do Forte”, conta o jornalista. “Nós nos aproximamos da entrada do forte e daí a pouco chegou o coronel Montagna. Quando ele ia entrando, o soldado que estava de sentinela tentou barrá-lo, mas o coronel lhe deu um tapa e entrou”, narra Cony. Em seguida, ele e o poeta presenciaram uma cena de brutalidade explícita. “Diante de todos aqueles militares, um operário de uma obra gritou um ‘Viva Brizola!’. Então, um oficial da Marinha, à paisana, começou a chutá-lo e o derrubou no chão. Deu mais uns chutes no operário e lhe apontou um revólver. Ninguém em volta reagiu. O oficial ainda deu um tiro para o ar”. Assustados com o que poderia acontecer, Cony e Drummond correram para a areia da praia em busca de refúgio. “O Drummond ainda falou: ‘Já houve sangue nessa areia, mas um raio não cai duas vezes no mesmo lugar!’. Quando vimos que não ia sair tiroteio, voltamos para a pista da Atlântica.” Foi aí que o jornalista assistiu a uma cena entre ridícula e grotesca, protagoni-
“Lembro do Flávio Cavalcanti (apresentador de tv), que era a favor do golpe, falando do tapa do coronel Montagna”, diz Cony. E políticos: “Eram o Adhemar de Barros (Governador de São Paulo) rezando contra o comunismo, o Carlos Lacerda (Governador da Guanabara) falando que o comunismo ia acabar...”.
Soldados do Exército montam guarda em Juiz de Fora (MG), no dia 1º de abril de 1964.
zada por outro oficial. “Ele começou a pegar uns paralelepípedos e a fazer uma pequena barricada, que não chegava a meio metro de altura. Perguntei para quê. ‘É para deter os tanques do 1º Exército!’. Ele imaginava que poderiam vir tropas a favor do Jango para tentar retomar o forte.” Cony e Drummond decidiram então voltar para casa. “Quando cheguei, o Aloísio Branco, secretário do Correio da Manhã, onde eu trabalhava, tinha telefonado pedindo uma crônica. Na época, eu escrevia crônicas de rua. Então, contei a cena que tinha acabado de ver. Não foi uma crônica política, mas, literalmente,
uma crônica de rua. Depois disso é que comecei a escrever textos mais políticos”, diz Cony. A crônica, Da Salvação da Pátria, foi publicada em 2 de abril (leia na íntegra na página 22). “Meses depois, o Drummond escreveu uma crônica para a filha dele em que narrou o mesmo fato, mas sem o tom de gozação.” O jornalista passou o resto do dia em casa, convalescente, ouvindo pelo rádio as notícias sobre o golpe – algumas delas relatadas por repórteres que tinham ido ao Forte de Copacabana. Como a sede da extinta TV Rio ficava ali em frente, alguns de seus artistas foram entrevistados.
O advogado e ex-Deputado Modesto da Silveira também presenciou cenas dramáticas naquele dia 1º. Ele chegou de manhã à Cinelândia com o intuito de assistir a um comício em apoio ao Presidente João Goulart. “Já havia bastante massa, mas nenhum líder, exceto o Roland Corbusier (filósofo e um dos criadores do Instituto Superior de Estudos Brasileiros, Iseb), que me disse que também estava estranhando. Pouco depois, a liderança, entre aspas, que chegou foram os tanques do Exército vindo pela Avenida Rio Branco”, relembra Modesto. A princípio, os blindados foram bem recebidos. “A massa entendeu que eles seriam para apoiar o governo oficial e aplaudiu. Aí os tanques voltaram seus canhões contra o povo. A massa entendeu que eram inimigos e começou a vaiá-los. Só que, por trás dos tanques, vinham soldados do Exército com fuzis e baionetas caladas (armadas em posição de ataque), que chegaram já quase agredindo o povo. Foi quando, do meio da multidão, surgiram provavelmente dois representantes brasileiros da CIA com roupas civis e botas militares. Eles atiraram em direção à massa e um homem foi atingido, caindo perto de mim. Os dois atravessaram a praça em direção ao Clube Militar e os portões se abriram um pouco para eles entrarem. O povo foi se dispersando, com submissão à força.” Modesto da Silveira despediu-se de Corbusier e rumou para seu escritório, na Rua Álvaro Alvim, bem perto dali. “Quando cheguei, já lá estavam várias pessoas, na maioria mulheres, sentadas, de mãos dadas, pedindo socorro. ‘Meu pai desapareceu, meu filho sumiu’, diziam. Sabiam que eu tinha alguma vivência política, era progressista e concordava com as reformas do Jango. Anotei cada caso e cheguei à conclusão de que todos tinham sinais de seqüestro político”, narra Modesto. Ele decidiu ir até o Dops (Departamento de Ordem Política e Social), também no centro do Rio, para tentar se informar. “Mas o ambiente estava tão pesado que resolvi, taticamente, esperar no bar Don Juan, que ficava em frente. Enquanto tomava um cafezinho, observando tudo, chega o Sobral Pinto, decano dos advogados e que trabalhava inclusive para o Lacerda. Ele tentou entrar no Dops e não conseguiu. Percebi que ele provavelmente fora lá pela mesma razão que eu. Aproximei-me dele, disse a que estava ali e perguntei se deveria voltar para o escritório. ‘Faça isso, meu filho. Vá cuidar dos seus habeas corpus’, ele respondeu. Naquele momento, era o possível a fazer.” Já o crítico e pesquisador musical José Ramos Tinhorão dá uma sonora risada
NIVALDO/UH/FOLHAPRESS
ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
Após a divulgação da notícia da renúncia de João Goulart, estudantes do Mackenzie seguiram em passeata até a Praça da República, em São Paulo, onde fizeram um comício de apoio ao golpe (esquerda). No Rio de Janeiro, tanques do exército seguem pela Rua das Laranjeiras com apoio da população.
quando lembra daquele 1º de abril: “Foi o dia da minha demissão da TV Excelsior!”. Tinhorão era o redator principal do jornal das 19h45 da emissora. “O prédio ficava na Avenida Venezuela (zona portuária do Rio). O elevador parecia de filme do Hitchcock: daqueles grandes, de carga, com porta pantográfica. A diretoria ficava embaixo, e a gente subia até a Redação. O Mário Wallace Simonsen (empresário dono da Excelsior e da Panair) vivia em Paris. Então, quem dirigia a TV era o Wallinho, filho dele.” As lembranças de Tinhorão sobre o golpe começam na véspera, 31 de março. “Ao chegar para trabalhar, vi um pelotão do Exército vindo em sentido contrário para tomar o Sindicato dos Marítimos, que era muito atuante”, conta. “À tarde, quando eu fazia a triagem para o jornal, chegou um tenentinho que fumava mordendo o cachimbo e disse que queria ver todo o material. Àquela altura, todas as notícias que chegavam eram sobre a possibilidade de algo que estava para arrebentar. O tenentinho olhava o papel, ligava para o órgão de informações do Exército e lia baixinho o que eu tinha escrito. Depois, riscava um X em vermelho em quase tudo”, narra Tinhorão. “Todo o noticiário da Excelsior era muito governista, porque o Jango tinha segurado um processo contra o Simonsen por especulação com dólares, já que ele era também o maior exportador de café do Brasil e, em vez de trazer logo os dólares recebidos, especulava com eles no exterior”, relembra. Com tantas informações censuradas pelo tenente, a situação foi ficando dramática para o telejornal daquela noite. “Às cinco e pouco, pelo volume de coisas vetadas, pensei comigo que só teria notícias de esporte para pôr no jornal. Então desci da Redação, fulo da vida, para ir à sala do Wallinho. No elevador, encontrei o Miguel Gustavo (jornalista, compositor da marcha Pra Frente, Brasil e, na época, diretor da Excelsior) com três homens de terno a quem ele estava servindo de cicerone. Falei: ‘Miguel, não vai ter jornal! Mandaram um tenentinho gorila que risca tudo! Não vai ter notícia para sustentar o jornal no ar!’. O Miguel ficou impá-
vido, com um meio sorriso, olhando para mim”. Tinhorão voltou à Redação e mandou o jornal para o ar do jeito que pôde, sem que ninguém da direção lhe dissesse nada. “Volto no dia seguinte, começo a mexer nuns telex e o Hélio Polito, chefe da Redação, me chama à salinha dele. ‘Você está demitido’, ele falou. ‘Mas por quê?’ ‘Sabe ontem no elevador? Aqueles três eram coronéis do Exército. Eles mandaram o Miguel Gustavo te demitir.’ Pô, o próprio Miguel é que tinha que ter me avisado!” A cerca de 180 km do Rio, na mineira Juiz de Fora – justamente de onde partiram as tropas do general Mourão –, um jovem de 20 anos tentava tomar pé da situação, sem saber muito bem o que fazer. O então militante de esquerda (e, muitos anos mais tarde, diretor-superintendente da poderosa Globo Vídeo) Roberto Mendes fazia faculdade na universidade federal da cidade, trabalhava em movimentos de educação de base e militava na AP (Ação Popular). Sua lembrança também começa na véspera. “Eu estava no MEB (Movimento de Educação de Base), trabalhando, quando chegou uma pessoa do Partidão dizendo que havia um movimento na cidade e que lideranças sindicais estavam sendo presas. Telefonei para o meu irmão, que era sargento do Exército, mas a mulher dele disse que ele já tinha sido incorporado às tropas do Mourão.” Mendes era vice-diretor de Cultura do Diretório Central dos Estudantes. Após o famoso comício da Central, no dia 13, em que Jango discursara com veemência sobre suas “reformas de base”, o DCE convidara o Governador de Pernambuco, Miguel Arraes, aliado do Presidente, para falar aos estudantes. O Exército, porém, vetara a realização do encontro em praça pública – a solução foi conseguir um cinema emprestado. “Isso foi lá pelo dia 15 ou 20. Já era para desconfiar, mas não desconfiamos. Só no dia 31 é que caiu a ficha”, diz Mendes. O então estudante orientou o motorista do MEB a encher o tanque do carro e um galão adicional para algo que os quatro integrantes do movimento ali presentes não sabiam bem. À noite, já havia uma verdadeira caça aos “comunistas” de Juiz de Fora, e os postos de gaso-
lina locais estavam fechados. “Como tínhamos bastante gasolina, imaginamos vir para o Rio por uma rota diferente da rodovia União e Indústria, talvez para procurar a Une. Mas foi só um sonho. Queríamos nos juntar com alguém.” Outra possibilidade, lembra ele, seria produzir coquetéis molotov. “Mas não sabíamos bem como usar”. Os membros do MEB decidiram então se dividir, rumando para suas bases no interior de Minas. “No dia 1º fui para Rio Pomba, perto de Mercês, onde nasci. O problema é que a gente se dispersou e, quanto mais ia para o interior, menos notícias tinha. Três dias depois, estávamos de volta a Juiz de Fora, e o DCE já estava invadido.” Roberto Mendes acabou preso por volta do dia 8 ou 9. “Mas os militares não estavam treinados. A primeira pergunta que o coronel responsável pelo inquérito me fez foi: ‘Na sua mesa havia uma foto do Fidel Castro. Por quê?’. ‘Porque saiu na Paris Match’, respondi. Se isso tivesse acontecido em 1974, na minha segunda prisão, eu levava um catiripapo. Mas vi o olhar imbecil do coronel e acabei ficando só um dia na prisão.” O caso não acabou aí. “Lá pelo dia 11, o Juscelino Kubitschek (ex-Presidente) foi cassado. Quando o coronel, que era juscelinista, ficou sabendo, engavetou tudo e sumiu. As perguntas já eram tão bobas que ele aproveitou e desistiu”, diz Mendes, rindo. “Nem no meu habeas data há menção a esse inquérito”. Ele acabou fugindo para o Rio, onde conseguiu transferência para a UEG (Universidade do Estado da Guanabara, hoje Uerj) e para o MEB nacional, em que ficou responsável pelas regiões Norte e Nordeste. “Pude continuar meus estudos e meu trabalho. Acabou sendo um tremendo impulso para mim.” Lembranças da adolescência
Ainda adolescentes por ocasião do golpe, os jornalistas Juca Kfouri e Ricardo Kotscho têm recordações menos vívidas daquele dia em São Paulo. “Tinha acabado de completar 14 anos e a única lembrança que tenho é do meu pai, promotor de Justiça e um liberal clássico, ouvindo o discurso do Castello Branco e dizendo
para minha mãe, aparentemente iludida com o compromisso ‘democrático’ do general: ‘Não tenha dúvida, Luiza, isso não vai levar menos de 20 anos’. Infelizmente, ele tinha razão.” Na medida de suas possibilidades, Juca pôs as mãos à obra. “Em seguida, diretor de Esportes que era do grêmio de minha escola, o Colégio Estadual Ministro Costa Manso, participei da organização de uma ‘Vigília pela Democracia’, que consistiu em manter a escola acesa durante toda a madrugada em sinal de protesto contra o golpe, devidamente incentivada pelo diretor, o professor Athos Ferreira da Silva, irmão do jornalista e editorialista do Estadão, Oliveiros Ferreira, que apoiava a quartelada”, conta Juca. “A tal vigília teve foto no Diário de S. Paulo, para nosso enorme orgulho. A legenda dizia algo assim: ‘A meninada do Costa Manso protesta’”, relembra ele. Segundo Juca, o golpe acabou por induzi-lo à ação política. “Quatro anos depois já estava no apoio da ALN (Ação Libertadora Nacional), fui motorista do ‘Velho’ Joaquim Câmara, o ‘Toledo’, além de tê-lo escondido e assim mantido durante quase um mês. Enfim, o golpe foi fartamente responsável pela minha precoce formação política.” No caso de Ricardo Kotscho, então com 16 anos, o principal sentimento com a notícia foi o de temor. “Lembro-me que fomos dispensados das aulas no Liceu Pasteur porque algo de muito grave estava acontecendo no País, mas eu não tinha muita idéia da gravidade da situação. Ao ver as edições extras de jornais e revistas, fiquei com medo do que poderia acontecer. Filho de imigrantes que vieram ao Brasil depois da Segunda Guerra, de tanto ouvir histórias sobre o que sofreram, tinha muito medo de violência, tanques nas ruas, soldados e generais”. O jornalista diz não se recordar de nenhuma mobilização de estudantes, amigos ou vizinhos, fosse ela contra ou a favor do golpe. “Não lembro de nada disso. Eu era, como se dizia, um alienado...” Poucos meses depois, porém, Kotscho arrumou seu primeiro emprego como jornalista. “Sou, portanto, contemporâneo do golpe e este ano estou completando 50 anos de profissão.”
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE TESTEMUNHAS DE UM DIA NEGRO
Da Salvação da Pátria POR CARLOS HEITOR CONY
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osto em sossego por uma cirurgia e suas complicações, eis que o sossego subitamente se transforma em desassossego: minha filha surge esbaforida dizendo que há revolução na rua. Apesar da ordem médica, decido interromper o sossego e assuntar: ali no Posto Seis, segundo me afirmam, há briga e morte. Confiando estupidamente no patriotismo e nos sadios princípios que norteiam as nossas gloriosas Forças Armadas, lá vou eu, trôpego e atordoado, ver o povo e a história que ali, em minhas barbas, está sendo feita. E vejo. Vejo um heróico general, à paisana, comandar alguns rapazes naquilo que mais tarde o repórter da TV-Rio chamou de “gloriosa barricada”. Os rapazes arrancam bancos e árvores. Impedem o cruzamento da Av. Atlântica com a rua Joaquim Nabuco. Mas o general destina-se à missão mais importante e gloriosa: apanha dois paralelepípedos e concentra-se na brava façanha de colocar um em cima do outro. Estou impossibilitado de ajudar os gloriosos herdeiros de Caxias, mas vendo o general em tarefa aparentemente tão insignificante, chego-me a ele e, antes de oferecer meus préstimos patrióticos, pergunto para que servem aqueles paralelepípedos tão sabiamente colocados um sobre o outro. – General para que é isto?
Jornal da ABI
ÓRGÃO OFICIAL DA ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE IMPRENSA
O intrépido soldado não se dignou olhar-me. Rosna, modestamente: – Isso é para impedir os tanques do I Exército! Apesar de oficial da Reserva – ou talvez por isso mesmo – sempre nutri profunda e inarredável ignorância em assuntos militares. Acreditava, até então, que dificilmente se deteria todo um Exército com dois paralelepípedos na esquina da rua onde moro. Não digo nem pergunto mais nada. Retiro-me à minha estúpida ignorância. Qual não é meu pasmo quando, dali a pouco, em companhia do bardo Carlos Drummond de Andrade, que descera à rua para saber o que se passava, ouço pelo rádio que os dois paralelepípedos do general foram eficazes: o I Exército, em sabendo que havia tão sólida resistência, desistiu do vexame. Aderiu aos que se chamavam de rebeldes. Nessa altura, há confusão na Avenida Nossa Senhora de Copacabana, pois ninguém sabe ao certo o que significa “aderir aos rebeldes”. A confusão é rápida. Não há rebeldes e todos, rebeldes ou não, aderem, que a natural tendência da humana espécie é aderir. Os rapazes de Copacabana, belos espécimes de nossa sadia juventude, bem nutridos, bem fumados, bem motorizados, erguem o general em triunfo. Vejo o bravo cabo-de-guerra passar em glória sobre minha cabeça.
O fotógrafo Evandro Teixeira fez este registro memorável da tomada do Forte de Copacabana.
Olho o chão. Por acaso ou não, os dois paralelepípedos lá estão, intactos, invencidos, um em cima do outro. Vou lá perto, com a ponta do sapato tento derrubá-los. É coisa relativamente fácil. Das janelas, cai papel picado. Senhoras pias exibem seus pios e alvacentos lençóis, em sinal de vitória. Um cadillac conversível pára perto do “Six” e surge uma bandeira nacional. Cantam o Hino também Nacional e declaram todos que a Pátria está salva.
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Minha filha, ao meu lado, exige uma explicação para aquilo tudo. – É carnaval papai? – Não. – É campeonato do mundo? – Também não. Ela fica sem saber o que é. E eu também fico. Recolho-me ao sossego e sinto na boca um gosto azedo de covardia. Publicado originalmente no Correio da Manhã de 2 de abril de 1964.
Lopes), Arnaldo César Ricci Jacob, Continentino Porto, Ernesto Vianna, Hildeberto Lopes Aleluia, Irene Cristina Gurgel do Amaral, Jordan Amora, Luiz Carlos Bittencourt, Marcus Antônio Mendes de Miranda, Mário Jorge Guimarães, Múcio Aguiar Neto, Rogério Marques Gomes e e Wilson Fadul Filho.
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JORNAL DA ABI • MARÇO DE 2014 O J399 ORNAL DA ABI NÃO ADOTA AS REGRAS DO ACORDO O RTOGRÁFICO DOS P AÍSES DE L ÍNGUA PORTUGUESA , COMO ADMITE O D ECRETO N º 6.586, DE 29 DE SETEMBRO DE 2008.
“Não tenho tempo a perder com estudantes” ELIAKIM ARAÚJO Em 1964 eu era quartanista na Faculdade Nacional de Direito, cujo diretório acadêmico era o famoso Caco (Centro Acadêmico Cândido de Oliveira), de passado glorioso na luta pelas grandes causas nacionais, dentre elas a campanha do Petróleo é Nosso. Apesar de não estar ocupando cargo eletivo no Caco, onde fora secretário na gestão Brandão Monteiro e vice-presidente na gestão Walter Santos, naquele dia primeiro de abril de 1964 eu estava na faculdade, desde cedo, formando fileiras com os demais colegas que se propunham a lutar contra o golpe iniciado na véspera a partir de uma guarnição militar de Juiz de Fora. Sem tv e sem internet, nossa única fonte de informação era uma grande e velha rádiovitrola que funcionava no salão social do Caco. Guardo até hoje em minha memória as palavras cheias de ódio proferidas pelo Governador Carlos Lacerda, entrincheirado no Palácio Guanabara, cercado por tropas da polícia militar: “vem aqui, Almirante Aragão, vem aqui que eu vou te matar com o meu revólver”. À medida que as horas passavam, as notícias eram as mais desencontradas. Diziam que haveria um confronto entre tropas do I Exército, leais ao Presidente João Goulart, e as que vinham de Minas, engrossadas pelas de São Paulo, em direção ao Rio. Em rápida reunião, por volta de uma da tarde, o Caco iniciou uma mobilização popular na Central do Brasil, convocando os trabalhadores a resistirem ao golpe. Também em frente à faculdade, num palanque improvisado, orado-
res iam arregimentando populares para a resistência. Mas, como resistir? Discursos apenas não bastavam. A ducha de água fria veio quando um dos diretores do Caco ligou para o Almirante Aragão, comandante dos Fuzileiros Navais, para informar que no Largo do Caco havia mais de 2 mil pessoas, convocadas pelos estudantes, dispostas a resistir, mas que precisavam do apoio logístico militar. A resposta de Aragão soou como uma decepção naquele momento: “Não tenho tempo a perder com estudantes”. No final da tarde, dois tanques do Exército Brasileiro dobraram a Rua Moncorvo Filho vindos da Praça da República e se posicionaram em frente à faculdade. Os estudantes aplaudiram, afinal eram tanques do I Exército, aliado do Governo Central. Uma nova decepção. Aqueles tanques já eram dos golpistas, e tinham a missão de esvaziar a faculdade e prender quem resistisse. A nós, heróis da resistência, restou fugir em direção ao Campo de Santana para nos abrigarmos das balas da Polícia Civil de Lacerda. Com a chegada da noite, alguns remanescentes foram até a Avenida Presidente Vargas para vaiar e atirar pedras nos carros que passavam com bandeiras do Brasil, buzinando e comemorando a vitória do golpe militar, que levou o Brasil à noite escura que durou 21 anos, cujos porões estão sendo abertos agora, 50 anos depois. Uma história que não podemos permitir que se repita.
Tanques e veículos do Exército tomam as ruas de São Paulo no dia 1º de abril. Ao fundo, à esquerda, o letreiro do jornal Última Hora.
“Estamos fodidos” AUDÁLIO D ANTAS
ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
O dia 1º de abril de 1964 amanheceu agitado na sucursal da revista O Cruzeiro, da qual eu era o chefe de Redação. Da sede da revista, no Rio, haviam disparado telex pedindo cobertura sobre a repercussão da vitória da "revolução" – era assim que já haviam batizado o golpe militar. Queriam cobertura completa, com urgência, pois a revista sairia com edição extra. Não havia muito que fazer diante do fato consumado. O principal seria colher declarações de personalidades envolvidas na conspiração, entre as quais o Governador do Estado, Adhemar de Barros, um dos "pilares civis" do golpe. As informações ainda eram obscuras. Restava alguma esperança de "reação popular", o importante era sentir o clima nas ruas.Na Redação, os mais otimistas buscavam consolo na possibilidade de um contra-golpe, uma mobilização como a que fora vitoriosa no Rio Grande Sul, em 1961, comandada por Leonel Brizola, e que terminara garantindo a posse do VicePresidente João Goulart, que os militares tentavam impedir.
Na verdade, o golpe frustrado em 1961 acabara de ser desfechado e, na visão dos mais atentos, vinha com força para durar muitos anos. Essa perspectiva era recebida com dúvida e raiva. Nas ruas, as discussões não eram muito diferentes. Não houve grandes manifestações, ao contrário das notícias que vinham do Rio, dando conta de "marchas da vitória" e de chuvas de papel picado caindo das janelas dos edifícios de apartamentos e de escritórios. A corrida atrás de notícias não foi tão difícil quanto a gradativa certeza, entre o pessoal da sucursal, de que não haveria reviravolta. O golpe estava consolidado. Já tarde da noite, quando fui buscar o carro no estacionamento de sempre, na rua da Consolação, o guardador, curioso, quis saber das últimas notícias: – E então, doutor, como estão as coisas? Respondi com uma frase impublicável: – Estamos f.... E o guardador: – Outra vez, doutor? Daquela vez, a coisa duraria vinte e um anos! DIVULGAÇÃO/MILITARES DA DEMOCRACIA
Soldados do Exército ocupam a Avenida Rio Branco, em frente à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE
HUMOR EXEMPLAR Jornais como Última Hora e Pif-Paf se tornaram personagens da história do País como exceções contra a queda de Jango, com forte aposta em humor gráfico. P OR G ONÇALO J ÚNIOR
A postura de apoiar um golpe militar em 1964, tomada pela maioria dos grandes jornais brasileiros nos três primeiros meses do ano, fez com que isso se refletisse no trabalho de seus cartunistas. Era preciso ter uma coerência entre o que pensavam e defendiam os empresários e o tipo de crítica natural que os artistas do humor gráfico tomariam diante daqueles tensos acontecimentos – que se prolongaram ao longo do ano. O diário Última Hora, com edições em São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Recife, foi um dos poucos a denunciar o clima golpista que pairava no ar e a defender a preservação do regime democrático que tinha colocado João Gou-
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lart no poder em 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto daquele ano. Portanto, fez um combate ostensivo contra a subida dos generais e marechais ao poder pela derrubada de Jango. Jaguar, seu cartunista e o mesmo que depois participou da equipe que fundou O Pasquim, em junho de 1969, destacouse pela coragem e contundência de seus desenhos ao longo dos oito meses seguintes. No dia 8 de dezembro, por exemplo, ele não perdoou o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, um dos líderes civis do movimento golpista. De olho nas eleições presidenciais de 1965, que logo seriam canceladas, ele apoiava os militares, mas articulava com o inflamado e alarmista partido da União Democrática Nacional (UDN) maior participação política no novo governo. Logo começaram os embates dele com o governo do general Humberto de Alencar Castello Branco, principalmente com o Ministro do Planejamento, Roberto Campos. O cartunista Fritz participou da frente de humor do mesmo jornal, que mostrava as incoerências e contradições da ditadura que começava. Ao retratar Castello Branco como Napoleão, em 18 de dezembro, ele representou a opinião do Última Hora, de considerar o general um ditador, que se colocava acima das críticas e baixou uma série de atos institucionais contra as liberdades políticas e individuais. Ainda em 1964, no mês de setembro, chegou às livrarias a antologia HayGobierno?, com cartuns de três dos mais importantes e atuantes cartunistas daqueles
tempos, Claudius, Jaguar e Fortuna, pela editora Civilização Brasileira, do editor Ênio Silveira, então um foco de resistência contra o regime militar. O volume tinha prefácio de Paulo Francis e fazia parte da Coleção O Homem que Ri, volume três, com capa do artista gráfico austríaco naturalizado brasileiro Eugênio Hirsch. A seu estilo, Francis enchia mais a bola de Fortuna em relação aos seus futuros companheiros de O Pasquim: “Dos três humoristas, Fortuna me parece o mais político. Seu desenho é sombrio, às vezes fantasmagórico, criando a atmosfera ideal, pelo contraste, para seu ponto de ataque, sempre direto e conciso”. Fortuna se mostrou um crítico severo e irônico do golpe militar de 1964, quando publicava charges nas páginas do jornal Correio da Manhã. Segundo os artistas, o volume era dedicado ao náufrago espanhol que, chegando a uma ilha não deserta, perguntou se havia governo e quando lhe disseram que sim, ele respondeu: ‘Soy contra!’ O tom da nota mostra que os autores, assim como diziam os generais, não estavam ali para brincadeira. Nem sempre a posição do jornal impedia certa postura contrária dos cartunistas à movimentação de direita que teria lutado contra um nunca provado plano comunista de tomar o poder no Brasil. Como aconteceu em O Estado de S. Paulo, com a humorista Hilde Weber, nascida na Alemanha, mas que migrou para o País com 19 anos de idade, em 1932. Nessa época, Hilde já tinha trabalhado como ilustradora de revistas e jornais alemães. Trabalhou por muito tempo na Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda. Com a venda do jornal, em 1962, ela se mudou definitivamente para São Paulo, onde viveu como chargista de O Estado de S.Paulo por décadas. Em 1964, publicou vários cartuns em que usava a ironia como tomada de posição diante dos fatos políticos daquele ano. Logo após o golpe
Mas foi um acontecimento no mês seguinte ao golpe militar que funcionaria como resposta de importantes artistas do
humor impresso: o lançamento do tablóide-revista Pif-Paf, sob o comando editorial de Millôr Fernandes. Para ajudá-lo, como diretor de arte, ele convidou Eugênio Hirsch, que se tornou também fotógrafo, chargista e humorista do tablóide, sem interromper a produção de capas que fazia para a Civilização Brasileira e algumas outras editoras. Os dois se juntaram para realizar uma das experiências mais intensas e importantes de suas vidas, que resultou em marco da imprensa nacional. Quando se falaria depois que em jornalismo de resistência à ditadura não havia o que discutir: que tudo começara com o Pif-Paf. A história da publicação não faz justiça a dois personagens ligados à sua origem: Yllen Kerr e Marina Colasanti. Ela conta que Yllen era “o melhor amigo de Millôr, e excelente ilustrador e jornalista”, e fora ele quem indicou Eugênio a Millôr – versão, aliás, confirmada por Ziraldo. Ele recorda: “Eu teria que percorrer os oito números do Pif-Paf para te dizer com exatidão onde Yllen contribuiu. Eu escrevi artigos e fui até avalista. Mas o fato principal é que nós três éramos muito amigos, estávamos sempre juntos (eu namorava Millôr naquela época) e, de fato, demos um tremendo suporte para que a revista acontecesse”. Muito antes de se tornar dramaturgo, tradutor e filósofo do cotidiano, Millôr foi
jornalista, frasista, fabulista e humorista nas páginas da revista O Cruzeiro, de Assis Chateaubriand, uma espécie de programa Fantástico, da Rede Globo, nas décadas de 1940 e 1950. Adorava criar frases de efeito para tirar sarro do comportamento humano e de política. Porque, justificava ele, o tempo passa, os fatos se renovam, mas a atitude das pessoas pouco muda: nos relacionamentos, no vício de “desviar” recursos públicos – no caso do Brasil –, na forma de fazer graça do amigo cujo clube de futebol foi derrotado no domingo. Foi assim, por duas décadas, entre 1945 e 1962, quando encarnou o personagem Vão Gogo. O próprio artista esclareceu depois que seu personagem nada tinha a ver com Vincent Van Gogh (1853-1890), pintor holandês que cortou a própria orelha. “Vão – tolo, idiota – e Gogo, que é doença de galinha, boquirroto”. Mais tarde, Millôr criou Emanuel e o colocou na frente do nome – que veio do filósofo prussiano Emanuel Kant (17241804). “Botei assim, de brincadeira, mas
a seção não tinha nenhuma ideologia. Aliás, a minha tendência natural é não gostar nem de criar personagem. Quando criei Vão Gogo, minha intenção era auto-gozativa, autopunitiva – como se faz em geral. Todo humorista acaba usando um nome de palhaço – Barão de Itararé –, gozando para cima ou para baixo”. O alter-ego de Millôr tinha uma coluna chamada “Pif-Paf ”, onde contava “Pequenas histórias surrealistas”, muitas piadas, frases e aforismos. “De uma coisa pode estar certo: educação não faz parte do currículo da Escola de Motoristas”. Fazia também os famosos “Retrato 3x4”, textos editorializados, desenhos, brincadeiras e apontamentos que, sem dúvida, contribuíram para tornar O Cruzeiro um sucesso editorial – além das reportagens, a revista apostava no humor de talentos como Alceu Penna (e suas garotas), Péricles do Amaral (O Amigo da Onça), Carlos Estevão (Dr. Macarra) e Ziraldo. A popularidade do personagem ego de Millôr foi tamanha que Vão Gogo ganhou seu primeiro livro, Tempo e Contratempo, em 1949. O volume trazia uma compilação que revelava as influências e a busca por um estilo de humor mesclado que depois ficaria peculiar e inconfundível no jornalismo brasileiro até a primeira década do século 21. Em 1962, Millôr assumiu em definitivo seu nome como autor da seção PifPaf, ainda em O Cruzeiro com 12 páginas. No ano seguinte, no entanto, foi obrigado a deixar a revista de Chateaubriand por causa da polêmica causada pela publicação da sátira “A verdadeira história do Paraíso”, sua versão nada politicamente correta para a lenda bíblica de Adão e Eva.
As queixas de padres e leitores conservadores levaram a revista a pedir desculpas no seu editorial da edição seguinte e a demitir o humorista. Conta-se que Millôr pediu um empréstimo num determinado banco e se associou a quatro cartunistas – Ziraldo, Claudius, Fortuna e Jaguar – para transformar em revista sua coluna, usando, claro, o mesmo nome. E convidou velhos companheiros como Rubem Braga, Sérgio Porto e Antônio Maria para colaborarem com textos. Millôr contou quatro décadas depois que fora “pressionado” a criar o Pif-Paf por amigos revoltados com o que O Cruzeiro fizera com ele, depois de 25 anos trabalhando na revista. Pela versão de Marina, o projeto editorial foi desenvolvido em parceria por Millôr e Yllen. Eugênio foi logo agregado pelo segundo para dar forma à idéia. E fez mais que isso. Todos os seus conceitos gráficos estavam nas páginas desse tablóide. Não apenas na parte de textos como na sua concepção visual. Enquanto Millôr cuidava dos textos – au-
xiliado por Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta) e Ziraldo – e corria atrás de colaborações, Eugênio exercitava seu lado cartunista para dar leveza, graça, criatividade e originalidade ao jornal. “Era um show gráfico, continham borrões, carimbos, colagens e inúmeros pequenos achados, muitos aproveitados depois pelo Pasquim”, observou Ruy Castro.
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ESPECIAL • 50 ANOS DO GOLPE HUMOR EXEMPLAR
Ao recordar aqueles tempos, Millôr dara importância a Eugênio como essencial para o êxito do tablóide. Ziraldo observa que Millôr e o capista da Civilização Brasileira tinham personalidades muito fortes e bem diferentes, o que poderia levá-los a uma rota de colisão em pouco tempo. Mas isso não aconteceu porque o artista austríaco não só ocupou todo espaço disponível como estabeleceu uma cerca em seu amplo latifúndio. Quer dizer, apropriou-se por completo da produção do Pif-Paf. “Eugênio era tão espaçoso que, na verdade, roubou o jornal de Millôr ”, disse Ziraldo. “Embora Millôr fosse duro e tentasse manter o controle de tudo, como sempre aconteceu nas coisas em que se envolveu, nem ele resistiu e sucumbiu, não conseguiu evitar a invasão, no bom sentido, do Pif-Paf por Eugênio. Este chegou e tomou conta de tudo, fez um inferno de revista, incluiu muita mulher pelada e construiu algo absolutamente revolucionário”. Artista atordoante
Quando se lembrou daquela época, o criador de Menino Maluquinho rasgou o amigo de elogios. “Ele era um artista atordoante, talvez essa seja a melhor palavra para defini-lo. Diria também que era uma cachoeira de talento e produtividade. Era um computador vinte ou trinta anos antes do computador. Foi o primeiro a adotar o letratone – película plástica que era aplicada para dar acabamento à capa – e fazia isso com uma maestria impressionante que deixava todos nós boquiabertos e com a impressão de que não éramos nada, que não sabíamos fazer porra nenhuma. Ele, sem dúvida, influenciou todos nós quando pensamos em fazer o Pasquim”. Embora os historiadores de imprensa e acadêmicos atribuam todos os méritos da publicação a Millôr, este nunca deixou de destacar o papel do parceiro na publicação.
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Em entrevista ao autor em junho de 2008, Millôr afirmou que Eugênio foi “a figura mais importante do jornal, como ‘artista’ e como trabalhador. Acho a primeira capa de Pif-Paf uma obra-prima”. Sobre o que destacaria na participação do austríaco na publicação, o humorista reconhece: “Ele teve participação em tudo, com técnica e criatividade”. Não foi fácil para Eugênio dar conta de seus muitos compromissos, mas ele se empenhou intensamente para fazer o jornal de humor circular a cada quinze dias. Apesar de não assinar, eram deles as seções de strip-tease (uma garota por edição), as pinups altamente estilizadas que desenhava, as colagens de foto de humoristas (em parceria com Ziraldo), a concepção das capas e, claro, projeto gráfico e diagramação. Todos os números de Pif-Paf traziam surpresas desconcertantes. Tanto nos textos quanto na arte. A começar pela capa, que não seguia um padrão e sequer tinha logotipo num ponto fixo, o que foi considerado na época uma heresia aos manuais de estilo das artes gráficas. No número de estréia, totalmente dentro do estilo de Hirsch, a capa apresentava o nome da revista com tipos de letras que eram sua marca registrada. Em cima, um desenho de humor de sua autoria onde duas mulheres completamente nuas diziam uma para a ou-
tra: “Cada número é exemplar ” e “Cada exemplar é um número”. Millôr, claro, deu corda para o amigo fazer o que bem entendesse. “Suas capas aliavam humor cáustico e projeto gráfico moderno, criação do austríaco Eugênio Hirsch, ‘um maluco fora de série que detestava a Áustria’, na definição do próprio Millôr”, comentou a revista Veja, em 2005, quando foi lançada uma caixa com os fac-símiles do jornal. Uma das características da publicação era a abundância de mulheres peladas, quase peladas, nuas e seminuas, com biquíni, de camisola ou de lingerie. Um deleite para os olhos masculinos num período em que a garotada em iniciação sexual tinha de se contentar com os catecismos de Carlos Zéfiro, as revistas de piadas (com garotas de biquíni) e os anúncios de roupa íntima das publicações femininas. Desde o primeiro número, Eugênio cuidou pessoalmente da sessão que trazia, em uma página, o strip-tease de uma garota. Somavam-se a isso incontáveis fotos de beldades de biquíni nas praias cariocas por ele tiradas. Nada, porém, superava um marco na carreira do editor de arte: a série “As alfabetes”. Em cores, o artista apresentava numa página quatro desenhos de uma mocinha voluptuosa que tirava sua roupa aos poucos para mostrar seus seios imensos, cintura fina, coxas grossas e bunda descomunal. Eugênio só teve tempo de fazer duas. Portanto, não passou da letra B, de Baby. Abaixo, escreveu o seu signifi-
cado: “Abreviatura de um nome de mulher, em si mesma bem pequena (1,56 m de altura), oculta e diminuída ainda mais num mistério de cabelos (1,58) e de facilidades”. Insultos contra o governo
O fim do Pif-Paf nunca foi devidamente esclarecido. A publicação teria sido proibida pelo recém-nascido regime militar por causa das provocações e até pelos insultos contra o governo “revolucionário” que começava. Não vieram a público, porém, documentos das forças de repressão que comprovam algum tipo de medida ou pressão para acabar com o tablóide. Ou mesmo se seus editores e colaboradores foram monitorados pelos serviços de espionagem do regime militar*. Sem dúvida, havia motivos de sobra para que os generais se irritassem com a irreverência provocativa do tablóide. Nem o General Humberto de Alencar Castello Branco, que acabara de ser empossado Presidente, escapou de virar piada. Por causa disso, um documento oficial da área de inteligência do Exército classificou a revista como primeiro exemplo de imprensa alternativa e seu “dono” (Millôr) como “esquerdista” – rótulo que causou urticária no humorista. “Nunca fiz
nada por ideologia, até hoje não sei o que quer dizer esquerdista e tenho horror a ser herói”, disse o humorista à revista Veja. Basta olhar as páginas do tablóide para perceber que havia sim muito do que os manuais dos quartéis entendiam como subversão. Na estréia, Millôr escreveu no editorial com sua inesgotável capacidade para criar frases de efeitos, aforismos, piadas e trocadilhos: “Em todos os números do Pif-Paf falaremos da liberdade. É um assunto que nos tem presos”. Na edição seguinte, mais uma declaração de guerra: “Há os que pensavam numa revista mais política. Não perdem por esperar”. E mais: “Muita gente reclamou do papel de nosso primeiro número. Não estamos vendendo papel, estamos vendendo idéias”, provocava um dos editoriais. Pequena tiragem, enorme influência
O Pif-Paf durou apenas oito números. Mas foram eles suficientes para fazê-lo ingressar na história do jornalismo pela impressionante influência que teria na imprensa, no humor e na inteligência do Brasil nos vinte anos seguintes – mesmo com a pequena tiragem de vinte mil exemplares, ínfima para a época. A motivação imediata para a proibição da revista foi editorial-anúncio da última página no volume oito, de agosto, onde Millôr desafiava o Governo no momento crítico em que se estabelecia a delação e a perseguição desmedida a supostos inimigos da “Revolução”. Com o título “ADVERTÊNCIA”, assim mesmo, em letras maiúsculas, o editor escreveu sobre o fundo amarelo e dentro de uma moldura vermelha, um dos textos mais brilhantes de resistência ao regime militar brasileiro: “Quem avisa amigo é: se o governo continuar deixando que certos jornalistas falem em eleições; se o governo continuar deixando que determinados jornais façam restrições à sua política financeira; se o governo continuar deixando que alguns políticos teimem em manter suas candidaturas; se o governo continuar deixando que algumas pessoas pensem por sua própria cabeça; e, sobretudo, se o governo continuar deixando que circule esta revista, com toda a sua irreverência e crítica, dentro em breve estaremos caindo em uma democracia”. Millôr conta que foi chamado várias vezes para depor sobre Pif-Paf e, pressionado também por uma dívida crescente com a gráfica, suspendeu o projeto. Jaguar garantiu que os militares realmente fecharam de forma direta a revista, por meio da pressão da censura. E acrescentou com ironia: “Foi bom porque saímos de maneira honrosa”, acrescentou. *Em dezembro de 2008, o autor tentou, junto ao Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, ter acesso aos documentos sobre Eugênio Hirsch, mas o funcionário disse que isso só seria possível com autorização por escrito e documentada de familiares.
Fortuna, um bicho muito louco Um dos maiores críticos do regime militar e mais importantes cartunistas de sua geração, Fortuna acaba de ser homenageado com uma obra de peso: Fortuna – O Cartunista dos Cartunistas celebra, em mais de 250 páginas, quase meio século de uma carreira brilhante. Lançada pela Edições Pinakotheke, a publicação foi organizada pelo caricaturista e pesquisador Cássio Loredano, e reúne uma seleção de alguns dos mais destacados trabalhos do desenhista, que começou sua carreira em 1948 fazendo ilustrações e histórias em quadrinhos para revistas infantis como Sesinho, O Tico-Tico, Vida Infantil e Vida Juvenil. A partir de 1950 ele passa a trabalhar na revista mensal A Cigarra, dos Diários Associados. Nessa publicação, onde permaneceu por nove anos, Fortuna fez ilustrações e vinhetas, começou a escrever textos com regularidade e assinou sua página de humor: Ponto Final. Em 1954, começa a colaborar também com a Revista da Semana, onde é o responsável por duas páginas semanais coloridas de humor (veja “O Rio recebe visitas” acima). Na década de 1960, Fortuna intensifica sua produção de charges políticas e passa a colaborar em diversas publicações, como a lendária Senhor, além do Jornal do Brasil, Mundo Ilustrado e, finalmente, Pif-Paf, humorístico dirigido pelo amigo Millôr Fernandes. É neste tablóide, lançado um mês depois do golpe militar, que o humor político de Fortuna ganha mais consistência. Como lembra Ferreira Gullar no prefácio deste lançamento, “o golpe militar de 1964, e a ditadura que surgiu dele, tiveram influência considerável na carreira profissional de Fortuna e, inevitavelmente, no rumo que imprimiu a seu trabalho de chargista”. Isso se torna claro folheando-se o livro Hay Gobierno? que Fortuna lança em parceria com Claudius e Jaguar. Editada por Ênio Silveira, a obra é uma verdadeira aula de história sobre o golpe militar a partir dos cartuns de três grandes desenhistas da época (todos os desenhos de Claudius e Jaguar publicados nas páginas anteriores foram extraídos desse livro). Em 1965, Antonio Callado, Redator-chefe do Correio da Manhã, convida Fortuna para ser o chargista político do jornal. Engajado, Fortuna não pararia mais de criticar o regime. Participa da criação do Pasquim, é o responsável pelo lançamento de O Bicho, tenta ressuscitar a revista Careta, colabora com a revista Veja, Folha de S.Paulo e Gazeta Mercantil e é lembrado até hoje por sua mais original criação: Madame e Seu Bicho Muito Louco (abaixo). Uma trajetória irrepreenssível, que agora pode ser admirada num folhear de páginas. (Francisco Ucha)
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CBS/RADIO PROMOTIONAL PHOTO
CURIOSIDADE
TODA A VERDADE SOBRE
O DIA DA MENTIRA
Orson Welles tinha apenas 23 anos quando realizou a dramatização radiofônica do livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, que levou pânico à população de Nova York.
P OR C ELSO S ABADIN
Segundo a Wikipédia, “há muitas explicações para o 1º de abril ter se transformado no dia da mentira”. Porém, uma das primeiras coisas que nós, jornalistas, aprendemos nesta Era da Informática, é jamais confiar na Wikipédia, uma enciclopédia virtual onde, teoricamente, qualquer pessoa pode entrar e “colaborar”, sem a necessidade da checagem de fontes. E agora? Quais serão as verdades e as mentiras sobre o 1º de abril? Em quem confiar? Na ausência de fatos comprovados por fontes confiáveis, vamos às versões. Talvez não seja a mais confiável, mas uma das mais difundidas sobre a origem do Dia da Mentira remonta a 1564, ano em que o Rei Carlos IX, da França, determinou que fosse alterada a data de comemoração do Ano Novo. Explica-se: no século 16, após a implantação do calendário gregoriano, o Ano Novo era comemorado durante a semana de festas que marcava a chegada da primavera na Europa, de 25 de março a 1º de abril. Contrário à idéia, Carlos IX ordenou que o início de cada ano passasse a ser comemorado em 1º de janeiro. A medida não foi bem aceita por parte dos franceses, que continuaram a seguir o calendário antigo, comemorando, a cada 1º de abril, uma espécie de “ano novo de mentirinha”, à revelia da ordem real. A data, então, se revestia de um caráter subversivo, de rejeição às ordens do rei. 28
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Outro grupo de franceses, estes fiéis às determinações reais, passou a ridicularizar os “subversivos” que eram contrários à mudança, enviando-lhes presentes de escárnio, ou convites para festas que não aconteceriam. Tais brincadeiras receberam o nome de “plaisanteries”, e como um dos “presentes” preferidos dos gozadores era enviar peixes, o tal Dia da Mentira passou a ser conhecido como “Poisson d’Avril”, ou “Peixe de Abril”. O hábito ultrapassou as fronteiras da França e chegou à Itália como “Pesce d’Aprile” (igualmente “Peixe de Abril”) e à Inglaterra como “April Fool’s Day”, ou “Dia dos Tolos de Abril”. Porém, a revista Aventuras na História afirma que toda esta história é mentira, e cita o historiador norte-americano Joseph Boskin para defender a idéia que passar trotes como parte das festas comemorativas da chegada da primavera na Europa (a partir do final de março, estendendo-se para os primeiros dias de abril) já era uma tradição desde a época do Império Romano. “Os trotes de 1º de abril são anteriores à reforma do calendário por Gregório”, afirma Boskin à revista. Na época dos Césares, a festa se chamava Hilária, e tinha pontos em comum com a milenar festividade indiada denominada Holi, ou Festival das Cores, também relacionada à chegada da primavera, onde igualmente se passavam trotes. Também conhecida como Dolyatra ou Boshonto Utsav, dependendo do país, esta festividade asiática onde as pessoas atiram tintas coloridas umas
nas outras é muito anterior à Era Cristã. Ou seja, quem disser que sabe exatamente como começou a tradição do 1º de abril no mundo está mentindo. Já no Brasil, suas origens parecem mais claras. E com raízes jornalísticas. Tudo teria se iniciado em Minas Gerais, em 1º de abril de 1828, data da circulação da primeira edição do periódico A Mentira, publicação dedicada a divulgar, veja só, notícias mentirosas. Logo na estréia, a manchete de capa falava do “falecimento” de D. Pedro I. A Mentira manteve-se fiel à sua linha editorial até sua última edição, de 14 de setembro de 1849, em cujas páginas convocava todos os credores para um acerto de contas que aconteceria em 1º de abril do ano seguinte. Como não podia deixar de ser, o local divulgado para o tal pagamento não existia. Bastante sintonizada com o espírito descontraído do brasileiro, a brincadeira mundial encontrou terreno fértil por aqui. Espalhou-se rapidamente pelas escolas, escritórios e até pela mídia, que passou a ver na data uma espécie de passe livre para publicar qualquer tipo de notícia falsa. Os casos são inúmeros. Chegou-se a publicar, num 1º de abril dos anos 1980, que o Vasco da Gama havia contratado o jogador Zico, tirando-o assim do arquirival Flamengo. Essa patuscada está inclusive registrada na música Pega na Mentira, de Erasmo Carlos, no verso “Zico tá no Vasco, com Pelé”. Mas, certamente, o trote de 1º de abril mais elaborado da história do jornalismo brasileiro aconteceu em 1951. Enquanto o time do São Paulo excursionava pela Europa, a Rádio paulista Panamericana, atual Jovem Pan, anunciou em vários jornais que transmitiria com exclusividade a partida entre São Paulo e Milan, diretamente da Itália. E assim o fez. No horário marcado, milhares de torcedores tricolores sintonizaram seus receptores radiofônicos, numa época em que transmissões diretas pela televisão ainda eram um sonho distante. E sofreram, sofreram muito ao ouvir a voz sempre vibrante de Geraldo José de Almeida narrar uma humilhante goleada que o Milan impunha ao time paulista. No bairro paulistano da Bela Vista, de fortíssima colonização italiana, houve festa nas ruas. O radialista Aurélio Campos, que estava no estádio do Pacaembu narrando outro jogo por uma outra emissora, fez exaltados protestos contra nossos governantes por terem permitido que o futebol brasileiro passasse tamanho vexame no exterior. No dia seguinte, vários jornais pelo País, que haviam sintonizado a Panamericana, noticiavam o ve-
xame sãopaulino. O detalhe é que o jogo entre São Paulo e Milan não existiu: ele fora totalmente inventado, gravado, na íntegra, na garagem de Paulo Machado de Carvalho, dono da rádio, antes mesmo de o time ter embarcado para a Europa, como uma premeditada zombaria de 1º de abril. Sequer a esposa de Geraldo José de Almeida sabia do trote, tamanho o segredo feito em torno dele. De acordo com o livro A Bola no Ar – O Rádio Esportivo em São Paulo, de Edileuza Soares, a falsa narração terminara com um resultado de 4 a 0 para o Milan. Já o blog Doentes por Futebol, de Sérgio Rocha, fala em 8 a 1. Ou seja, nem em relação ao jogo de mentira há um consenso sobre a verdade. A brincadeira lembrou, guardadas as devidas proporções, a dramatização radiofônica do livro A Guerra dos Mundos, de H. G. Wells, que o ator e diretor de cinema Orson Welles produziu e narrou em 1938. Na época, vários ouvintes que perderam o início da transmissão, onde era explicado que o programa era uma dramatização, acreditaram que alienígenas estavam mesmo invadindo a Terra, e entraram em pânico. O caso foi capa do The New York Times, no dia seguinte. A imprensa mundial sempre alimentou a brincadeira
Casos de trotes de 1º de abril protagonizados pela imprensa são registrados há décadas, no mundo inteiro. Em 1933, o jornal norte-americano Madison CapitalTimes publicou que o edifício do Congresso do estado de Wisconsin teria desabado, após uma série de explosões misteriosas. Tais explosões teriam se originado pela “grande quantidade de gás emanado durante as várias semanas de debates entre os membros do Senado e da Assembléia”. O jornal chegou a publicar uma foto do prédio desabado, evidentemente uma maquete. Na Nova Zelândia, o locutor Phil Shone, da emissora de rádio 1ZB, apavorou a população local alardeando que uma colméia de vespas gigante, com mais de mil metros de comprimento, havia sido localizada em Auckland. A população deveria se prevenir contra um eventual enxame que poderia atacar a cidade. Era 1º de abril de 1949. James Shelley, diretor do New Zealand Broadcasting Service, não gostou da brincadeira, e a partir deste ano, a cada dia 1º de abril, passou a enviar memorandos a todas as rádios do país, lembrando-lhes a necessidade de divulgar apenas a verdade. Em 1957, Richard Dimbleby, o respeitado âncora do programa da tv inglesa Panorama, apresentou e colocou em discussão uma interessante “reportagem” de
três minutos sobre uma plantação de macarrão spaghetti na cidade de Ticino, Suíça. Centenas de telespectadores telefonaram para a BBC, querendo saber mais sobre o assunto. E a brincadeira não parava por aí. Para informar seu público, a resposta padrão que as telefonistas da BBC davam aos espectadores era: “Place a sprig of spaghetti in a tin of tomato sauce and hope for the best.” (Coloque um pouco de spaghetti numa lata de molho de tomate e espere pelo melhor). Em 1º de abril de 1962, a SVT - Sveriges Television Sweden, na época a única emissora de televisão na Suécia, exibiu um programa onde o “especialista” Kjell Stensson explicava, em convincentes termos técnicos, que era possível receber imagens coloridas em qualquer receptor de tv branco e preto. Para isso, bastava que fosse colocado, diante do aparelho, um tecido bastante fino e perfurado, semelhante a uma meia feminina de nylon. Se o tecido fosse adequado, e a distância entre ele e a tela da TV fosse a ideal, as imagens coloridas apareceriam como num passe de mágica. Não se sabe quantas meias foram destruídas em vão naquela noite... Não muito longe dali, na Dinamarca, o jornal Politiken publica na sua edição de 1º de abril de 1965 que o parlamento aprovara uma lei obrigando que todos os cães do país fossem pintados de branco. A idéia era reduzir o número de atropelamentos de cachorros, que aumentavam com a escuridão da noite. No mesmo ano, os britânicos, que detestam ficar para trás quando o assunto é 1º de abril, assistiram na BBC TV um professor falando sobre sua mais recente invenção, o Smellovision. O miraculoso aparelho permitiria que qualquer telespectador pudesse sentir o cheiro de um programa de tv. E para comprovar o fato, o tal “professor” cortou cebolas e fez café diante das câmeras. O mais incrível: não foram poucos os telefonemas de espectadores que ligaram para a BBC confirmando terem de fato sentido o cheiro e maravilhados com a invenção. Em 1975, o programa da tv Australiana This Day Tonight entrevistou James Desmond Corcoran, um conhecido Deputado daquele país, que anunciou que a Austrália iria adotar o sistema métrico para a medição do tempo. Pelo novo sistema, 1 minuto teria 100 segundos, 1 hora teria 100 minutos e o dia passaria a ter 20 horas, sendo 10 pela manhã e 10 de noite. O segundo seria chamado de “milidias”, o minuto passaria a se chamar “centidias” e a hora seria “decidias”. O repórter Nigel Starck chegou a apresentar o novo modelo de relógio de 10 horas. Na manhã de 1º de abril do ano seguinte, a BBC Radio 2 entrevistou o astrôno-
A página dupla de abertura do curioso caso de Sidd Finch, “reportagem” publicada na Sports Illustrated em 1985. 52 anos antes o edifício do Congresso do Estado de Wisconsin desaba após uma série de explosões misteriosas, segundo o jornal norte-americano Madison Capital-Times.
mo Patrick Moore sobre um evento extraordinário que aconteceria exatamente às 9h47. Um raríssimo alinhamento entre Plutão, Júpiter e a Terra influenciaria no campo gravitacional do nosso planeta, fazendo com que, por alguns momentos, todos nós pesássemos menos. A sensação de leveza seria experimentada mais intensamente para quem começasse a pular no horário determinado. Exatamente às 9h47, a rádio convocou seus ouvintes: “Pulem agora!”. E, surpreendentemente, dezenas de pessoas ligaram em seguida dizendo ter, efetivamente, experimentado a sensação de leveza. Houve até um pedido de indenização feito por uma pessoa que alegou ter flutuado tanto que machucou a cabeça, batendo-a contra o teto de casa. O 1º de abril do ano seguinte, 1977, também foi comemorado, novamente, pelos britânicos. O prestigiado jornal inglês The Guardian editou um informe especial de sete páginas sobre a pequena república de San Serriffe, situada numa ilhota do Oceano Índico, lugar ideal para quem desejasse passar férias paradisíacas. Os telefones da Redação não paravam de tocar, requisitando mais informações de ávidos turistas em potencial. San Serriffe, porém, jamais existiu. Até seu nome é uma piada com o termo “sem serifa”, relacionado à produção gráfica. Em 1980, a BBC anunciou que, para se adaptar aos novos tempos, o tradicionalíssimo relógio Big Ben teria seu mostrador trocado de analógico para digital. E, dois
anos depois, os ingleses atacam novamente: o jornal Daily Mail convoca um “recall” de sutiãs. De acordo com a reportagem, dez mil sutiãs defeituosos haviam sido vendidos e teriam de ser recolhidos. Motivo: as suas peças metálicas teriam sido feitas com um tipo de cobre geralmente usado em alarmes de incêndio que, em contato com o nylon e o calor do corpo, provocavam interferências em transmissões de rádio e tv. O engenheiro chefe da British Telecom caiu no trote e solicitou que todas as suas funcionárias verificassem o sutiã que estavam usando e os trocassem, caso fosse necessário. No ano seguinte, mais uma do The Guardian, que informa que cientistas britânicos do prestigiado laboratório de Pershore desenvolveram uma máquina capaz de controlar as atividades climatológicas. Com o título “Britain Rules the Skies” (Bretanha comanda os céus), o artigo afirma que a Inglaterra passará a ter longos verões, onde só choverá à noite. A tal máquina também garantiria neve durante o Natal, afirmou o jornal. O incrível jogador de beisebol
A edição de abril de 1985 da revista americana Sports Illustrated publicou uma matéria assinada por George Plimpton sobre um novato jogador de beisebol que estava treinando no time dos Mets. O rapaz era um órfão inglês chamado Sidd Finch, e conseguia arremessar a bola na incrível velocidade de 270 quilômetros por hora, quando o recorde anterior era de 170 km/h. Das mais elaboradas, a reportagem trazia todo o histórico de vida de Finch, publicando inclusive depoimentos de jogadores que afirmavam ser humanamente impossível segurar uma bola de beisebol a esta velocidade. A Sports Illustrated recebeu milhares de cartas comentando o artigo, e chegou a prometer uma entrevista coletiva com o incrível novo jogador, antes de revelar que tudo era uma brincadeira de 1º de abril. Não há, porém, registro de nenhum leitor que tivesse percebido que as primeiras letras de cada palavra do olho da matéria (“He’s a pitcher, part yogi and
part recluse. Impressively liberated from our opulent life-style, Sidd’s deciding about yoga“) formavam a frase “Happy April Fool´s Day”. Em 1986, o jornal francês Parisien divulgou que a Torre Eiffel seria desmontada e transportada para a Euro Disney. Em seu lugar, os parisienses ganhariam um estádio para os Jogos Olímpicos de 1992. Até a rede pública norte-americana de emissoras de rádio saiu de sua habitual seriedade num dia 1º de abril: em 1992, o programa Talk of the Nation noticiou que, surpreendendo a todas as esferas políticas, o ex-presidente Richard Nixon, deposto após o escândalo de Watergate, se candidataria novamente à presidência dos EUA. Até trechos de supostos discursos do expresidente foram colocados no ar, causando revolta nos ouvintes, que começaram a inundar a emissora com telefonemas irados. A repercussão foi tamanha que, na segunda metade do programa, o apresentador John Hockenberry foi obrigado a revelar a brincadeira, informando inclusive que as imitações de Nixon estavam sendo feitas pelo comediante Rich Little. Para alívio geral da nação. No ano seguinte, novamente nos Estados Unidos, Dave Rickards, apresentador da rádio KGB-FM provoca um enorme congestionamento na cidade de San Diego ao informar que o ônibus espacial Discovery mudara sua rota e pousaria em Montgomery Field, o pequeno aeroporto local. Sequer havia um ônibus espacial em órbita naquele dia. Em 1995, o jornal irlandês Irish Times, publicou uma notícia informando que a Disney Corporation estava negociando com o governo russo a compra do corpo embalsamado de Lenin. A idéia seria tirá-lo de seu mausoléu na Praça Vermelha e transportá-lo para a Euro Disney, onde ele seria exposto sob luzes especiais. Também estaria previsto um sistema de som reproduzindo discursos de Ronald Reagan chamando a Rússia de “Império do Mal”. Com a chegada da internet, passou a ser praticamente impossível registrar o número de brincadeiras, trotes, erros e demais aberrações do fato jornalístico, muitos deles sequer relacionados à tradição do primeiro de abril. A globalização deu a todos a mesma denominação, “hoax”, palavra inglesa para designar engano, embuste ou brincadeira, que ainda não consta nos dicionários formais do nosso idioma, mas que já é utilizada normalmente pelos frequentadores das redes sociais. No Brasil, este ano, relembramos o cinquentenário de um dos mais tristes dias de 1º de abril de nossa história: o do golpe militar de 1964, ponto de partida de um período negro coberto de autoritarismos, atrocidades e mentiras. Mentiras tão deslavadas que o próprio golpe em si, levado a cabo na madrugada do primeiro dia de abril, foi batizado pelos seus protagonistas com a data do dia anterior, para não haver o perigo de ser ridicularizado como uma brincadeira (de péssimo gosto) de 1º de abril. Um golpe que nasceu mentindo desde a sua origem e que, infelizmente, não foi um trote de 1º de abril.
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DOCUMENTÁRIO
lítico, que retornou à profissão por decisão da Justiça: este não usufrui de todos os direitos previstos nos estatutos dos militares. É preciso valorizar o papel deles na nossa história”. Abrão reforça que os militares que se opuseram ao golpe “pagaram um preço muito caro, porque diferentemente dos setores civis, de outros profissionais da área privada e funcionários públicos perseguidos, eles não puderam recompor suas vidas em outras profissões. Militar é militar. Ele não encontra a profissão dele na área privada, para poder dar continuidade à sua vida. Eles tiveram seus projetos de vida interrompidos de forma muito violenta”. É esta necessidade de levar justiça à categoria que se tornou, segundo Abrão, “a razão maior de nós trazermos à tona a história dos militares que disseram não. Embora eu já tenha experiência de alguns anos dentro da Comissão da Anistia, eu considero este material que o Silvio Tendler produziu talvez um dos materiais históricos visuais e de regaste da verdade histórica mais relevantes que a gente já teve neste tempo todo de gradativa busca pela verdade”, finaliza. Militares da Democracia: Os Militares Que Disseram Não faz parte do projeto Cine Direitos Humanos, que desde setembro de 2013 tem a proposta de exibir filmes brasileiros e internacionais cujo enredo dialogue com temas ligados aos direitos humanos em sessões gratuitas. O projeto é uma iniciativa da Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de São Paulo, com curadoria de Francisco Cesar Filho.
Nem todos os militares defenderam o golpe Novo filme do cineasta Silvio Tendler revela alguns dos patriotas que ficaram ao lado da legalidade e, por isso, sofreram severas represálias. P OR C ELSO S ABADIN
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bição. “Os militares formam um segmento ainda profundamente estigmatizado dentro da sociedade brasileira, e nós precisamos saber valorizá-los pelo grande exemplo que eles nos deram”, afirma Paulo Abrão, sobre os militares que se opuseram ao golpe de 1964. “São estes, os que disseram não, que nós tanto almejamos para a democracia. São os que nunca atentam contra o seu povo, que respeitam o juramento firmado perante a bandeira e que têm a defesa das instituições e da nossa soberania como elemento central de sua atuação profissional”, diz Abrão. Tratamento desigual
O Presidente da Comissão da Anistia lembra que, mesmo que a maioria deles e de seus familiares tenham atualmente idade avançada, posto que foram os primeiros perseguidos, continuam sendo discriminados. E denuncia: “Ainda hoje nós sabemos que há um tratamento desigual, não isonômico, entre os militares da reserva que serviram à repressão, e o militar alijado po-
Quem é Silvio Tendler
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Talvez haja uma dose de injustiça quando nos referimos ao golpe de 1964 como sendo eminentemente “militar”. Há quem defenda a terminologia “golpe civil-militar”, posto que vários Governadores sem uniformes e sem patentes daquela época também o perpetraram. Contribuindo agora ainda mais para a revisão desta terminologia, o cineasta Silvio Tendler, de larga experiência em cinema documental (veja o box), está lançando seu novo trabalho: Militares da Democracia: Os Militares Que Disseram Não. O filme aborda um viés até então pouco ou nada explorado quando se analisa o período: o dos militares que foram contrários ao golpe, e que por isso sofreram vários tipos de represálias. Algumas que inclusive perduram até hoje. São depoimentos e registros de arquivos que resgatam as memórias repudiadas, sufocadas e despercebidas dos militares perseguidos, cassados, torturados e mortos, por defenderem a ordem constitucional e uma sociedade livre e democrática. “Eu estava finalizando meu documentário anterior, Advogados Contra a Ditadura, quando Paulo Abrão, Presidente da Comissão da Anistia do Ministério da Justiça, me lançou este desafio”, conta Tendler. “Já há algum tempo ele queria fazer uma homenagem aos militares que lutaram pela justiça, pela constituição e pela democracia, e me fez a proposta de transformar isso em filme”, afirma o cineasta. A partir deste desafio, Advogados Contra a Ditadura e Os Militares Que Disseram Não passaram a se constituir em projetos complementares, que foram abraçados pela estatal Empresa Brasil de Comunicação-EBC, através da TV Brasil. “Os projetos foram transformados em duas séries de cinco programas cada”, explica Tendler. “Como cada programa tem 50 minu-
tos de duração, tivemos um tempo bastante amplo para discutir a questão. Depois, foram feitos dois longas-metragens como síntese, que estão percorrendo o País em sessões especiais”, finaliza. É interessante notar que no documentário Militares da Democracia: Os Militares Que Disseram Não, Tendler se assume também como personagem de seu próprio filme. E em depoimento narra sua memória do dia do golpe, dizendo que viu, nas ruas, as classes altas comemorando com faixas e fogos, enquanto os porteiros dos prédios tentavam sintonizar em seus aparelhos de rádios a Cadeia da Legalidade, comandada por Brizola a partir do Rio Grande do Sul, mas naquele momento já sufocada pelas forças da repressão. “Naquele instante percebi quem tinha ganho e quem tinha perdido com aquele golpe”, afirma Tendler em seu filme. O cineasta informa ainda que faltam apenas alguns detalhes burocráticos para que ambos os longas, de 100 minutos cada, entrem normalmente nos circuitos de exi-
O Presidente João Goulart conversa com o General Amaury Kruel, um dos articuladores do golpe.
O documentarista Silvio Tendler (nascido no Rio de Janeiro, em 1950) é detentor das três maiores bilheterias de documentários na história do cinema brasileiro: O Mundo Mágico dos Trapalhões (1981, com 1 milhão e 800 mil espectadores), Jango (1984, 1 milhão de espectadores) e Os Anos JK – Uma Trajetória Política (1980, 800 mil espectadores). Parte das pesquisas de seus filmes tem origem no volumoso acervo particular de imagens, com mais de dez mil títulos sobre a História do Brasil e do mundo dos últimos 50 anos. Em 2005 recebeu o Prêmio Salvador Allende no Festival de Trieste (Itália), pelo conjunto da obra. Em 2008, foi homenageado no Festival de Cinema Brasileiro em Paris com uma retrospectiva de seus filmes. Ainda neste ano, foi condecorado com a Medalha Tiradentes, da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, por relevantes serviços prestados à causa pública do Estado.
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Iara Iavelberg na escadaria do Pacaembu, em São Paulo: o filme desmonta a versão oficial da ditadura de que ela teria se suicidado.
A verdadeira Iara Muito mais que simplesmente “a mulher de Lamarca”, a atuação política e as verdadeiras condições da morte da guerrilheira Iara Iavelberg são resgatadas em documentário produzido por sua sobrinha. P OR C ELSO S ABADIN
Uma jovem sobrinha à procura da verdade sobre o desaparecimento de sua tia guerrilheira. À primeira vista, fica-se com a sensação de “já termos visto este filme antes”. No caso, literalmente. Vem à lembrança o documentário Marighella, onde a sobrinha do guerrilheiro, Isa Grispum Ferraz, faz um trabalho investigativo sobre seu famoso tio. Aqui, a situação é bem parecida: Mariana Pamplona sai em busca da verdadeira história de sua tia, Iara Iavelberg, assassinada pela ditadura quando Mariana ainda estava na barriga de sua mãe, a irmã de Iara. Uma procura que acaba de se transformar no documentário Em Busca de Iara, roteirizado e produzido por Mariana, com direção de Flávio Frederico. Iara Iavelberg foi uma pessoa de trajetória incomum. Vinda de uma família de classe alta e de sólida tradição judaica, casou-se ainda menor de idade com um vizinho, e tudo apontava para que ela se transformasse em apenas mais uma entre as milhões de donas-de-casa brasileiras que não tinham sequer idéia do que acontecia naquele Brasil dos anos 1960. E, caso tivessem esta idéia, estariam a favor dela. Mas o casamento logo se revelou uma gaiola dourada para um pássaro inconformado que queria alçar vôos maiores. Estudante de Psicologia na Universidade de São Paulo-USP (quando o curso ainda estava incorporado à Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Rua Maria Antônia), Iara rapidamente percebeu que alguma coisa estava muito fora de
ordem no País. Engajou-se no movimento estudantil e, ato contínuo, partiu para a resistência armada e para a clandestinidade. De beleza, porte e atitude incomuns, ela sempre chamava a atenção por onde passava. Chegou a ser namorada do próprio Marighella, e terminou sua luta ao lado de Carlos Lamarca, de quem foi companheira. No filme Lamarca, ela é vivida por Carla Camurati. O ponto de partida do documentário Em Busca de Iara é o ano de 2003, no momento em que, após uma longa e cansativa disputa judicial, a família Iavelberg conseguiu o direito de exumar o corpo da guerrilheira para tentar provar que sua morte, ocorrida em agosto de 1971, não decorreu de suicídio, conforme forjado pela ditadura, mas sim de assassinato. Logo nos primeiros momentos do filme, a decepção: uma estranha ordem judicial manda interromper a exumação já iniciada, alegando, não menos estranhamente, motivos religiosos advindos de um suposto feriado judaico. De alguma forma, em pleno 2003, as forças da ditadura pareciam ainda não estar totalmente debeladas. A partir daí, através de uma cuidadosa pesquisa de documentos, imagens de arquivo e entrevistas, o filme reconstrói a vida de Iara e desmonta tijolo por tijolo a versão oficial do regime. “Por volta de 2005, Mariana me contou da história da sua tia Iara e pouco tempo depois aconteceu o final da exumação, com o enterro dos seus restos mortais”, conta Flávio Frederico, diretor do filme. “Depois que os resultados da perícia mostraram que
não foi suicídio, segundo os costumes judaicos ela iria ser retirada da ala dos suicidas do cemitério e ser enterrada próximo à família. Sugeri então gravarmos este momento e, mesmo que não desse em nada, ao menos serviria como pesquisa”, diz. Frederico registrou a cerimônia com duas câmeras e posteriormente começou a desenvolver a história, gravando depoimentos de pessoas que haviam convivido com Iara. “O projeto teve várias fases”, conta Frederico. “A princípio ele seria um média metragem para televisão, mas aos poucos percebemos que ele deveria ser maior, mais abrangente, e fomos ampliando. Mariana e eu produzimos o filme juntos, eu dirigindo e ela conduzindo as entrevistas. Aos poucos ela própria foi virando personagem do filme”. Em Busca de Iara traz consigo uma forte carga emocional, nem sempre possível em outras produções do gênero. Ao assumir diante das câmeras a função de entrevistadora, Mariana Pamplona extrapola sua condição de roteirista e produtora, transformando-se, talvez até inadvertidamente, numa ponte entre passado e presente. Sua presença física, ligeiramente parecida com a da tia, certamente reacende nos entrevistados, pessoas que conviveram com Iara, algumas fagulhas incendiárias que pareciam extintas. E esta emoção brota na tela. Há momentos em que o choro se torna inevitável, o que acaba funcionando não como um mero elemento de manipulação emocional, mas como a lembrança viva que contraria todos aqueles que querem “colocar
uma pedra” em cima dos assuntos referentes à ditadura militar brasileira. Não há como colocar tal pedra. “Esta presença da Mariana acabou sendo um próprio diferencial do filme em relação a outros. No começo, ela se exaltava, se indignava, e a proposta era que ela não aparecesse, mas apenas fizesse as perguntas, em off. Porém, acabamos percebendo que ela aparecer, ser um dos personagens, se configurava num grande caminho para o filme”, conta Frederico. Tal presença proporciona depoimentos de muita emoção, como o do filósofo João Quartim de Moraes, que declara no documentário que “o sorriso dela [Iara] não era de charminho nem convencional ou de estereótipo. Ela sorria inteira, alma e corpo. Havia uma alegria nela da qual o sorriso era a expressão”. Em Busca de Iara também procurou se diferenciar em relação às imagens de arquivo, o que não é tarefa fácil. O diretor informa que, na medida do possível, tentou evitar as imagens de arquivo que já foram utilizadas amplamente em outros documentários do gênero, e para isso recorreu também a arquivos estrangeiros, principalmente da Associated Press e de agências internacionais de imagens que prestam este tipo serviço totalmente através da internet. Em relação ao acesso a documentos da época da ditadura, Frederico elogia o Arquivo Nacional de Brasília, onde encontrou “boa vontade, farto material, pessoas interessadas e uma tecnologia satisfatória para localizar o que se quer”, afirma. O cineasta diz que tentou por várias vezes acessar os arquivos da Polícia Federal de Salvador, mas não foi sequer atendido. Felizmente, como esta documentação da PF foi cedida ao Arquivo Nacional de Brasília, ela pode ser acessada e utilizada no filme. Também foi usado material encontrado no Arquivo do Estado de São Paulo, no Arquivo Municipal do Rio de Janeiro e nos arquivos pessoais dos entrevistados. “No caso dos arquivos da Polícia e do Exército, foi muito difícil: não conseguimos”, diz o cineasta. No total, foram sete anos de trabalho. “Um trabalho doído, mas muito gratificante”, finaliza Frederico. Está longe de ser coincidência o fato de os documentários Marighella e Em Busca de Iara tratarem de uma nova geração à procura da verdade sobre seus antepassados. Eles simplesmente refletem, assim como outros já refletiram e outros ainda refletirão, a necessidade que todo um País tem de esclarecer a sua própria história recente. Não apenas no sentido de buscar a verdade, não somente com a intenção de fazer justiça, mas principalmente como um alerta a uma novíssima geração que não tem a menor idéia do que foram os anos de chumbo vividos no Brasil. Jovens que, infelizmente, acreditam que postar desconexas palavras de ordem, escondidos sob a frágil segurança de suas redes sociais, será o suficiente para a maturação da nossa democracia. Além do Brasil, Em Busca de Iara já foi exibido em festivais no Uruguai, França e Cuba.
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Lançamento traz clássico e dois filmes inéditos de Eduardo Coutinho
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Dois dias antes da data em que todo o País relembrou os 50 anos do golpe de 1964, o Instituto Moreira Salles colocou no mercado uma verdadeira preciosidade histórica do nosso cinema: o dvd do filme Cabra Marcado Para Morrer, tido por muitos especialistas como o melhor documentário já realizado pelo cinema brasileiro. Não apenas por sua proposta política e coragem, como também pelas condições muito particulares em que foi feito. A gênese do filme pode ser encontrada em 1960, ano em que Eduardo Coutinho, após passar uma temporada estudando cinema em Paris, regressa ao Brasil e encontra um País culturalmente efervescente. O Cinema Novo, comandado por Glauber Rocha, dava importantes passos rumo ao reconhecimento internacional, e o Brasil vivia os últimos momentos da Era JK. É neste clima de euforia que Coutinho se integra ao Centro Popular de Cultura-CPC da União Nacional dos Estudantes-UNE, onde apresenta uma peça teatral no I Congresso dos Trabalhadores Agrícolas, em Belo Horizonte. Ele auxilia também na produção do filme Cinco Vezes Favela, igualmente produzido pelo CPC, e imediatamente se engaja num novo projeto cinematográfico: a reconstituição ficcional da história verídica de João Pedro Teixeira, líder assassinado das Ligas Camponesas. Sob a direção de Coutinho, o filme se chamaria Cabra Marcado Para Morrer, e seria interpretado pelos próprios camponeses do Engenho Cananéia, em Pernambuco. Ironicamente, porém, as filmagens foram iniciadas na segunda quinzena de março de 1964 e, logicamente, interrompidas de forma violenta pelo golpe. Parte da equipe foi detida e o projeto, ao que tudo indicava, morrera. Só que não. Baixada a poeira, em 1981, um dos técnicos da equipe revela que havia salvo os negativos daquelas únicas duas semanas de filmagens de Cabra Marcado Para Morrer, o que entusiasma Coutinho a retomar a obra. Já com o regime em início de processo de abertura, o cineasta sai em busca da viúva de João Pedro Teixeira, Elizabeth, e lhe mostra o que havia sido filmado em 1964. O projeto é retomado, mas desta vez, ao invés de encenar o caso do assassinato, o roteiro se centraliza na história de Elizabeth em busca do reencontro de seus filhos, espalhados pelo País, à luz da reflexão da tragédia que a ditadura militar significou para o Brasil. Finalizado três anos depois, Cabra Marcado Para Morrer vence várias premiações no Brasil e no exterior, e vai imediatamen-
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P OR C ELSO S ABADIN
Na retomada de Cabra Marcado Para Morrer, o cineasta Eduardo Coutinho retrata a história de Elizabeth e o reencontro com seus filhos.
te para o rol de clássicos do nosso cinema. Desta forma, o simples lançamento, em cópias restauradas, deste dvd, já seria, por si só, de grande importância – dadas suas qualidades intrínsecas e importância social, política e histórica no desvendamento de vários meandros relacionados à época da repressão. Há que se destacar, também, a forte carga emotiva que ele agora carrega, após o brutal assassinato de seu diretor, em janeiro passado. Coutinho estava totalmente envolvido com a produção do material extra que vinha sendo feito especificamente para este lançamento. Algo que, em função do trágico acontecimento, não pôde ser totalmente finalizado pelo seu diretor, mas que agora se reveste de valor histórico potencializado. Assim, o dvd traz, como material extra, nada menos que dois filmes inéditos do realizador, produzidos pelo Instituto Moreira Salles em parceria com a Videofilmes: A Família de Elizabeth Teixeira, de 63 minutos, e Sobreviventes de Galiléia, de 25 minutos. Ambos se baseiam no retorno que Coutinho realizou em 2013 aos municípios de Sapé (Paraíba) e Galiléia (Pernambuco), locações originais de Cabra Marcado para Morrer, onde ele reencontra Elizabeth Teixeira. Para realizar A Família de Elizabeth Teixeira, Coutinho procurou alguns dos 11 filhos de Elizabeth, com quem ele não havia mantido contato há 30 anos. Aqui, ele demonstra novamente a sua incrível habilidade em deixar seus entrevistados e depoentes completamente à vontade, criando com eles um forte laço de empatia e, conquistando, além de confiança, a extração amigável dos mais variados ní-
veis de informações, que acabam formando a forte base de qualidade e credibilidade de seus documentários. Todos conversam com o cineasta como se ele tomasse café em suas casas todas as semanas. Impensável notar que há entre documentarista e documentado um hiato de três décadas, tamanha é a desenvoltura com a qual eles contam suas histórias de vida. Pequenos dramas cotidianos que, pelas mãos de Coutinho, se transformam em verdadeiras sagas épicas nas quais se descortina cada detalhe da grandeza humana. Em determinado momento do filme, Marta, uma das filhas de Elizabeth e João Pedro, conta com voz embargada que “minha mãe sofreu tanto com a morte do meu pai que ela nem chorava: ela urrava feito um bicho. A gente tinha até medo de chegar na porta do quarto dela. Ela amava muito aquele homem”. Coutinho mantém aqui seu estilo de conversar abertamente com seus entrevistados, não hesitando em fazer parte do filme. Há casos que beiram o inacreditável, como o de Marinês, outra filha do casal Elizabeth e João Pedro, expulsa de casa e abandonada numa estrada aos 11 anos de idade, por causa de uma denúncia, comprovadamente infundada, que ela teria tido relações sexuais. A história desfila pelas lentes de Coutinho com uma naturalidade espantosa. Além de Marta e Marinês, o filme entrevista também Isaac, Carlos e Nevinha, outros filhos do casal, alguns netos, e a própria Elizabeth, então aos 88 anos. Através destes depoimentos, Coutinho mantém viva não somente a memória de João Pedro Teixeira, como também do próprio filme Cabra Marcado Para Morrer e conseqüentemente dos ideais que ele representa.
Já Sobreviventes da Galileia registra duas entrevistas com os camponeses Cícero e João José, testemunhas históricas do assassinato de João Pedro. Há, porém, um extra muito especial que se reveste de um triste e trágico viés: comentários em áudio de Eduardo Escorel, montador de Cabra Marcado para Morrer; do crítico de cinema Carlos Alberto Mattos; e do próprio Coutinho, revelando preciosas curiosidades de bastidores e informações que permearam a produção do filme. Tais comentários, porém, estão incompletos, pois Coutinho morreria três dias após as primeiras gravações que estão registradas no dvd. Junto com a embalagem do dvd há ainda um livreto de 74 páginas com um depoimento de Coutinho e uma seleção de críticas publicadas no Brasil e no exterior à época do lançamento do filme, nos anos 1980. As homenagens a Eduardo Coutinho, nas últimas semanas, se estenderam a países como França, México e Estados Unidos. Em Paris, o festival de documentários Cinéma du Réel exibiu Cabra Marcado para Morrer e Sobreviventes de Galileia, este último em première mundial, em 20 março. Em Guadalajara, o Festival Internacional de Cine Iberoamericano lançou, em 24 de março, o livro Eduardo Coutinho: Homenaje, especialmente editado pelo Instituto Mexicano de Cinema e pelo Conselho Nacional de Cultura e Arte para a ocasião. Nos Estados Unidos, o Wexner Center for the Arts da Universidade Columbus, Ohio, exibiu Cabra Marcado para Morrer, O Fim e o Princípio e Jogo de Cena, em homenagem que se repetiu no Pacific Film Archive, em Berkeley, Califórnia, e no Lincoln Film Center de Nova York.
LIBERDADE DE IMPRENSA
Relatório da SDH quer observatório para proteção dos profissionais de comunicação
Dono de jornal denuncia invasão e ameaça policial
Ministra Maria do Rosário destacou a contribuição dos profissionais de comunicação para formular ações. FABIO RODRIGUES POZZEBOM/AGÊNCIA BRASIL
P OR I GOR W ALTZ
A criação de um observatório é a principal recomendação feita pelo Grupo de Trabalho “Direitos Humanos dos Profissionais de Comunicação no Brasil” no relatório final aprovado pelo Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH). O documento foi debatido e avalizado em reunião ordinária do Conselho, ligado à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH/ PR), realizada no dia 11 de março, em Brasília (DF). O grupo de trabalho iniciou suas atividades em fevereiro do ano passado para estudar os casos de violações de Direitos Humanos sofridas pelos mais diferentes profissionais como jornalistas, blogueiros, radialistas, fotógrafos, entre outros. Para confecção do relatório, o grupo considerou o período de 2009 a fevereiro de 2014, no qual foram constatadas 321 violações de direitos de comunicadores, sendo 18 homicídios. O relatório recomenda que o observatório seja estruturado em um tripé, envolvendo as seguintes ações: unidade de recebimento e monitoramento de denúncias de violações; criação de um sistema de indicadores; e formulação de um mecanismo de proteção dos profissionais de comunicação, a partir das experiências já em curso no âmbito da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A Ministra Maria do Rosário, da SDH/PR, considerou inaceitáveis quaisquer tipos de censura ou violência contra os profissionais de comunicação. Rosário ainda destacou o caráter inovador do futuro observatório e o
Ministra Maria do Rosário: “Qualquer tipo de violação de direitos dos jornalistas e dos comunicadores decorrente do exercício da profissão deve ser documentado para que não fique impune”.
acompanhamento das Organizações das Nações Unidas-Onu para formulação dessa iniciativa. “É um instrumento que vai monitorar as violações de direitos dos jornalistas e dos comunicadores em geral. Significa que qualquer tipo de violação decorrente do exercício da profissão deve ser documentado no momento em que o observatório estiver instituído, para que ela não fique impune”, afirmou. Rosário ainda informou que o Ministério da Justiça deve editar, em breve, uma diretriz para todas as polícias determinando que não podem ser apreendidos os equipamentos de traba-
lho dos profissionais de comunicação. Isso inclui câmeras fotográficas, gravadores, telefones, cartões de memórias, entre outros. O coordenador do GT Comunicadores, Tarciso Dal Maso, explanou que o relatório final é fruto de diversas audiências públicas e reuniões feitas em estados como Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Mato Grosso do Sul. Além da criação do observatório, o documento indica uma série de ações a serem postas em prática pelos três poderes e as diferentes esferas de governo. “O observatório é para nós o grande concentrador de elementos de políticas públicas para o setor”, frisou.
Jornalista é ameaçado pelo Prefeito de Foz do Iguaçu em coletiva O jornalista Yassine Ahmad Hijazi, do portal de notícias paranaense A Fronteira, foi ameaçado pelo Prefeito de Foz do Iguaçu, Reni Pereira (PSB), durante uma entrevista. A agressão ocorreu em uma coletiva de imprensa, após o repórter questionar o político sobre os baixos índices de popularidade de sua gestão. O repórter afirma ter sido atacado verbalmente e ameaçado pelo Prefeito durante entrevista. No registro captado pelo microfone de outro jornalista, é possível ouvir Pereira proferindo ofensas contra Hijazi e ameaçando o profissional caso o vídeo fosse divulgado. O jornalista entrou com duas ações contra o Prefeito. A primeira na esfera cível, por calúnia e constrangimento, e a segunda na esfera penal, por injúria e ameaça. “Essa
é uma questão moral. Eu estava lá, no evento, como jornalista, fazendo o meu trabalho. Fui ofendido e tenho o direito de me defender judicialmente”, disse o jornalista. Para a ação cível uma audiência de conciliação já foi marcada para o próximo mês de maio. Já a queixa crime, ficará a cargo do Tribunal de Justiça do Paraná. Apoio
O Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Paraná emitiu nota de repúdio à ação do Prefeito. De acordo com o comunicado, o sindicato “lamenta o ocorrido e ao mesmo tempo louva a atitude do profissional por tornar o caso público e buscar reparação. Que o caso sirva de exemplo para outros jornalistas que são ameaçados ou impedidos de buscar e di-
vulgar a informação”. Na Câmara Municipal de Foz do Iguaçu, vereadores da oposição prometeram exibir o vídeo no plenário. “A ação movida pelo Yassine é pelo pedido de respeito, reagindo dessa forma o Prefeito não pode esperar que outras pessoas o tratem diferente”, confirmou Sônia Inês Vendrame, mestre em Comunicação e Semiótica, membro da equipe do site. A assessoria de imprensa da prefeitura comunicou por telefone que nenhuma nota será emitida pelo Prefeito até o recebimento da chamada judicial. “O pedido de desculpas já foi feito na abertura do evento, em público”, revelou um dos assessores. Hijazi discorda. “Ele (Prefeito) pediu desculpas por não ter respondido à minha pergunta, não por ter me xingado”.
Oito policiais militares invadem sede de jornal no interior do Rio Grande do Sul e ameaçam editor. P OR I GOR W ALTZ
O jornalista Aníbal Ribas, editor do Jornal Pampeano, de Jaguarão, interior do Rio Grande do Sul, afirma que oito policiais militares entraram sem mandado na sede da publicação, no dia 13 de março, e lhe deram voz de prisão. Ribas teria sido coagido a assinar seis termos circunstanciados por crimes de calúnia, injúria e difamação. O caso está sendo investigado pela Corregedoria da Brigada Militar. A ação teria sido motivada por uma reportagem publicada pelo jornal no próprio dia 13. A matéria trazia uma transcrição de uma conversa gravada por Renato Jaguarão, excandidato a Prefeito, com dois capitães da Brigada Militar, que confirmavam que o atual Prefeito, José Cláudio Martins (PT), havia sido parado em uma blitz e se recusado a fazer o teste do bafômetro. Até então, o fato era negado oficialmente pela Brigada. O editor do jornal foi levado a um hospital para passar por exame de corpo de delito e acabou liberado com a assinatura dos termos circunstanciados. “Eles me disseram que ou eu assinava ou sairia algemado. Não pude nem chamar meu advogado”, contou. Um vídeo gravado no dia mostra um grupo de PMs na porta do jornal preparando documentos sobre a ocorrência. Ribas prestou queixa à Polícia Civil e também relatou o ocorrido ao Ministério Público. O comando regional da Brigada afirma que testemunhas estão sendo ouvidas e que não há como emitir um parecer sobre o ocorrido ainda. Ribas diz estar assustado com o ocorrido. “Eu sempre fui a favor da Brigada e agora acontece uma barbaridade dessas. Estou indo para o Uruguai, porque não me sinto seguro aqui”, disse. O Jornal Pampeano circula três vezes por semana com tiragem de 3.000 exemplares. O município de Jaguarão possui 28 mil habitantes.
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VIDAS
JAYME LEÃO O TRAÇO DA COERÊNCIA O cultuado artista gráfico pernambucano, morto em março, aos 68 anos, deixou um legado importante em coleções de livros, capas de revistas, discos, quadrinhos, charges e cartazes de cinema, além de um jeito pessoal de militância. P OR G ONÇALO J UNIOR
A ditadura militar brasileira, que governou o Brasil entre 1964 e 1985, rendeu situações extremas de opressão e fez despertar em diversos artistas uma consciência política de militância sincera. Por meio da música, da literatura, do cinema, do teatro ou do humor gráfico, não foram poucos aqueles que combateram a falta de liberdade, principalmente. A maioria se manteve assim, atento e forte, por toda a vida. O pernambucano Jayme Leão, morto em março, aos 68 anos, em São Paulo, foi um desses talentos que sempre acreditaram na arte como meio de se chegar a fins honestos e aos anseios da maioria. Leão deixou como legado uma vasta obra em capas e miolos de livros, jornais, revistas semanais, discos, gibis e cartazes de cinema. Mas simbolizou, principalmente, a lição de que quem trabalha com arte pode e deve fazer do mundo um lugar melhor. E isso ele fazia pela correção e pela coerência, que não permitiam concessões às dificuldades da vida e às imposições do mercado editorial. Leão nem sempre assinava seus trabalhos, mas ilustrou centenas, talvez milhares de itens da cultura nacional. Quem foi leitor da revista de humor Circo, da Circo Editorial, na segunda metade dos anos de 1980, deve se lembrar de sua assinatura numa das capas mais emblemáticas da série: a mulher nua, que sobe o Empire State para pegar o King Kong. Na década anterior, revelou-se um dos nomes mais importantes da chamada imprensa alternativa, colaborando com jornais que desafiavam abertamente a ditadura ao não acatar a censura às suas denúncias. Mas a arte de Jayme Leão ficou intimamente ligada, também, à inesquecível coleção de livros juvenis Série Vaga-lume, da Editora Ática, coqueluche literária no Brasil entre as décadas de 1970 e 1990. Ele cuidou das capas e das ilustrações internas de boa parte dos 104 títulos lançados entre 1972 e 2011. Essas obras vendiam centenas de 34
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milhares de exemplares e foram adotadas em escolas de todo País como leitura recomendável para formação de leitores. Embora ao longo do tempo a série tenha sofrido algumas alterações no formato e no projeto gráfico, tornaram-se inesquecíveis suas capas clássicas e suas imagens, onde os objetos ou pessoas ficavam para fora do quadro tanto na capa como no miolo. Jayme Leão lia os romances e tentava, como nos cartazes de filmes, sintetizar a trama. Entre as capas que ficaram mais famosas, destacam-se O Mistério do Cinco Estrelas, Um Cadáver Ouve Rádio, O Rapto do Garoto de Ouro, Menino de Asas e Meninos Sem Pátria, entre outros. O artista morreu em 11 de março, quando tentava se recuperar de uma cirurgia neurológica, depois de queda sofrida de uma escada em sua casa, na capital paulista. O acidente, ocorrido no mês de janeiro, lhe causou traumatismo craniano. Ele morava com a família na zona norte de São Paulo. Submetido a uma cirurgia considerada bem-sucedida pelos médicos, Leão teve alta do hospital dez
nas a escola primária. Começou a trabalhar aos 15 anos para o jornal carioca Liga, órgão das lendárias Ligas Camponesas que lutaram por reforma agrária, até serem asfixiadas pela ditadura militar, a partir de 1964. Com o início do regime militar, passou a trabalhar como alfaiate e a ilustrar para a Editora Brasil América-Ebal, onde produziu belas capas e quadrinhos sobre personagens importantes da história do Brasil. Outra fonte de renda em paralelo era a publicidade. Por vários anos, fez ilustrações para propagandas de jornais e revistas. O pulo do gato em sua carreira veio na década de 1970. Artista engajado e politizado, Jayme Leão fez quadrinhos e ilustrou perfis, matérias e reJayme Leão foi o principal cartunista do Jornal da República, portagens para revistas como ousado projeto editorial de Mino Carta lançado em 1979. Status, a partir de 1974. Foi dessa fase a ilustração que fez dias depois. Mas nem tudo saiu como o para a semana “O Homem e a Terra”, que esperado e, por causa da cirurgia, perdeu Centros Acadêmicos realizaram na Puc, em parte da memória. Após realizar trabaabril de 1975 e que foi estampada na capa lhos de fisioterapia em uma clínica, o ardo jornal Cobra de Vidro, descrita como tista passou a apresentar quadro de desi“uma publicação dos Centros Acadêmicos dratação e foi novamente internado, no da FEI, GV e FAAP”. Na cena desenhada, a Hospital Mandaqui, onde permaneceu impressionante expressividade do semeaem estado grave por cinco dias, até não dor, cujas gotas de suor fazem crescer a planresistir e falecer. Sua morte teria ocorrita. Nesse momento, passou a colaborar e se do depois de complicações decorrentes de tornou um dos nomes mais importantes da insuficiência renal considerada grave. imprensa alternativa no Brasil. Ele partiNatural de Recife, Jayme Leão se mucipou da criação dos jornais Opinião e Modou ainda criança para o Rio de Janeiro, vimento, que faziam oposição ao governo com seus pais e irmãos. Alguns anos depois, militar durante na década 1970, e do Jorpartiria para São Paulo em busca de opornal da República, de Mino Carta, em 1979. tunidades de trabalho na sua especialidaPreso e taxado de subversivo, chegou a de, desenho, de onde não sairia mais. Taviver com a família no Chile, durante o lentoso, influenciado pelas histórias em governo do Presidente socialista Salvador quadrinhos no começo da carreira, uma de Allende, para fugir da ditadura brasileira. suas paixões e que marcaria toda a sua vida Colaborou com outros veículos alternaprofissional, ele era autodidata – cursou apetivos como O Pasquim.
Engajado, Jayme Leão foi colaborador dos principais jornais de oposição à ditadura militar, entre eles, o ex-, no qual foi o responsável pela famosa capa de Fidel Castro raspando a barba, e Movimento, onde foi autor de diversas capas e ilustrações (como esta à esquerda). Também se notabilizou como desenhista de capas e ilustrações da Série Vaga-Lume e foi o autor da capa para vídeo de National Kid Contra os Incas Venusianos.
Caras e bocas
Com o início da abertura política, Jayme Leão foi militar com seus desenhos em veículos importantes da chamada grande imprensa, como IstoÉ, Veja, Folha de S.Paulo, O Estado de S. Paulo e Ele&Ela. Na Editora Abril, foi vencedor do prestigiado Prêmio Abril como ilustrador. Agapito foi o personagem que ele criou para uma tira semanal no jornal Hora do Povo, na sua melhor fase, quando era dirigido por Franklin Martins. Seu colega Gilberto Maringoni, professor de jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, observou que Leão “deu caras e bocas a inúmeras publicações, a partir do final dos anos 1960. E deu corpo a memoráveis jornais alternativos”. Para ele, o artista tinha um traço exato e uma versatilidade espantosa. Maringoni lembrou que ele poderia ter sido publicitário, ou desenhista ‘do mercado’ internacional e feito fortuna. Mas não, achava isso uma ‘babaquice’. Maringoni contou que, quando o conheceu, em 1978 na Redação do jornal Movimento, na Rua Virgílio de Carvalho Pinto, em Pinheiros, estranhou o comportamento do artista. “A sofisticação que ele tinha ficava no trabalho. Pessoalmente, era de uma simplicidade atroz. Reencontrei-o na Hora do Povo, na Retrato do
Brasil, na Reportagem e em andanças pela cidade. Dessas publicações, cobrava quase nada. Às vezes, nada mesmo”. Há uns dez anos, os dois conversaram em Pinheiros. “Ele havia aberto um bar, depois não mais o vi…” Em sua opinião, Jayme Leão foi mais uma vítima da ‘vergonhosa’ situação de nossa imprensa. “Para alguns editores de arte, ele estaria ‘superado’. Ouvi de um deles, certa vez, que Jayme ‘ficou muito marcado com esse negócio de ditadura’. Patifaria grossa. ‘Esse negócio de ditadura’ era a monstruosidade nacional contra a qual nosso amigo se bateu por boa parte da vida. Jayme fica em seus trabalhos e nos amigos que aqui seguem.” Artista completo, no sentido literal do termo, pois via a arte como meio transformador do mundo para um lugar melhor e mais justo, Jayme Leão teve sete filhos, fruto de três casamentos. Ele foi sepultado no Cemitério Parque da Cantareira, perto da casa onde vivia, na zona norte de São Paulo. A filha mais velha, a jornalista Lídice Leão, disse ao Uol que o pai era relapso quanto à saúde. Ele fumava e bebia muito, embora se alimentasse bem e se exercitasse com regularidade. “Acho que o mundo perde, primeiro, um gênio, um ilustrador, um dos últimos a trabalhar com pincel e tinta, embora ele operasse bem o computador. E segundo, um militante que acreditava realmente que as coisas poderiam melhorar e que as pessoas tinham o direito de lutar”, disse. Em pouco tempo, acrescentou ela, seu pai se apro-
ximou da publicidade, área na qual atuou por vários anos e que abandonou a carreira por não suportar a idéia de ‘ganhar dinheiro mentindo’. Pouco depois da partida de Jayme Leão, a mesma Lídice publicou na rede social Facebook, na internet, um comovente depoimento sobre o pai: “Sou Lídice por causa dele (que queria que eu tivesse uma história sobre o meu nome pra contar). Leão por causa dele. Jornalista por causa
dele (que me levava para passear nas Redações quando eu era criança). Devoradora de livros por causa dele (que me presenteava com livros e álbuns do Asterix desde que comecei a ler as primeiras sílabas). Esquerdista por causa dele (que fazia pôsteres sobre as guerrilhas da Nicarágua e El Salvador e nos levava para ajudar a vendê-los nos atos políticos para enviar o dinheiro para as guerrilhas). Rigorosa com alguns gostos culturais por causa dele (que não nos deixava assistir aos filmes dos Trapalhões e nos levava para assistir aos do Akira Kurosawa). Louca por uma cerveja e uma conversa de bar por causa dele (que nos levava para os bares do Bexiga e juntava as cadeiras para dormirmos quando o sono nos derrubava)”. Lídice observou, enfim, que cresceu ouvindo sua mãe dizer: “Essa menina tem o temperamento igualzinho ao do pai dela. Quando está lendo um livro, o mundo pode desabar que ela não vê nada”. E finalizou: “Pois é. A culpa é dele. Do Jayme Leão. O maior ilustrador desse País e um dos maiores do mundo. O melhor, mais louco e mais autêntico de todos os pais. Nunca mais vamos tomar cerveja juntos, ouvindo Noel Rosa, Vinícius ou Cartola. Vai fazer falta, pai. Muita falta”. Para todos nós.
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FAMA
Brigitte Bardot no Brasil: do inferno ao paraíso, a bordo de um Fusca Há 50 anos, o furacão francês – agora prestes a fazer 80 de uma vida pontilhada de altos e baixos – voltava da sua primeira estada em Búzios. Encantada com o paraíso ainda intocado, chegou ao Rio em pleno Golpe Militar completamente desavisada. ARQUIVO/AGÊNCIA O GLOBO
P OR F LÁVIO D I C OLA
“Odeio os turistas destruidores de sonhos, canibais ávidos, devoradores de imagens e vampiros de almas”, escreveu Brigitte Bardot em seu livro de memórias*. Não, ela não se referia – ainda – a Búzios, mas à ilha de Capri, onde rodava o filme de Jean-Luc Godard O desprezo (Le mépris, 1963), um ano antes de desembarcar no Brasil. Se Bardot, já no início dos anos 1960, execrava o impacto devastador do turismo de massa sobre a mítica ilha do Mediterrâneo, teria que admitir – 30 anos depois e com muito desgosto – que seria ela mesma a responsável pela notoriedade internacional do outrora paradisíaco balneário fluminense, que hoje corre o risco de implodir exatamente pelo imaginário impregnado no local pela maior estrela do cinema europeu da época. BB não apenas está ciente disso como se culpa pelo estrago: “Depois da minha passagem, aquele lugar transformou-se na Saint-Tropez brasileira. Dá para acreditar que eu carrego em mim uma forma de destruição sistemática”. Mas a história de Bardot com Búzios começou exatamente como imaginamos que deva ser o encontro de uma estrela do cinema esgotada e desiludida com o Éden que vai lhe proporcionar a cura pela calma, pela simplicidade e pela beleza agreste. Novamente, deixemos BB falar: “Foi talvez naquele universo tão primário, tão natural, tão verdadeiro que passei as melhores horas, os mais lindos dias da minha vida. Tenho vontade de rir quando chego a algum lugar, e todos se crêem obrigados a me receber com tapetes vermelhos e outras sofisticações ridículas que eu detesto.” Pois foi precisamente essa parafernália que esperava Brigitte naquele 7 de janeiro de 1964, quando desembarcou no Galeão após 14 horas devastadoras de viagem entre Paris e Rio de Janeiro a bordo de um dos jatos Caravelle da Panair do Brasil. Brigitte detestava viajar de avião e faria para o Rio a sua primeira travessia oceânica na vida. O próprio horário de seu desembarque já era cruel por si mesmo: 5h da manhã. Sabendo que não teria como escapar das engrenagens que movem uma celebridade e que seria recepcionada por um batalhão de fotógrafos, BB tomaria alguns cuidados a fim de chegar apresentável. Planejou até usar uma peruca castanha que cobriria os seus famosos cabelos compridos inconfundivelmente despenteados à la Bardot, mas que depois de tantas horas num avião po36
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Brigitte Bardot no paraíso em março de 1964: “Não havia nada em Búzios. Havia apenas o mar, o céu, uma casinha rústica e doce, praias douradas a perder de vista.”
deriam simplesmente parecer desgrenhados. Seu esforço foi em vão: “Quando saí do avião no Rio, cansada, deslocada, desesperada, passei do ar-condicionado a uma chapa de chumbo derretida. Minha peruca servia de touca de peles, quase desmaiei de calor...” Os 150 repórteres presentes e ensandecidos não esconderam a sua decepção: seria mesmo aquela moça magra, de pernas finas, abatida e morena a bête sauvage do cinema internacional, a despudorada Brigitte, o “fenômeno social” (como a chamou uma reportagem de Paris Match) que vinha alterando o padrão comportamental de milhões de mulheres desde o fim dos anos 1950 e que – aos olhos do mundo – representava a própria França? No meio do mais absoluto caos, Brigitte escapou do Galeão a bordo de um Fusca de um dos amigos do seu namorado marroquino-brasileiro Bob Zagury, deixando para trás suas malas e passaporte. Depois de cruzarem perigosamente um recém-inaugurado Aterro do Flamengo – perseguidos por uma caravana de fotógrafos numa cena que poderia antecipar em 33 anos o tipo de acidente fatal
que envolveria Lady Di e um bando de paparazzi, em Paris –, Brigitte chegou ao modestíssimo apartamento de Bob em Copacabana onde ficou entrincheirada por quatro dias. Ela conta: “Estava à beira da depressão, longe de tudo, estranha a tudo, passava os meus dias a chorar e as noites a gritar com Bob, suplicando que me levasse de volta à França. (...) Não aguentava mais, odiava essas viagens de merda, esses jornalistas de merda e esse apartamento de merda. Era preciso criar uma estratégia para obter minha liberdade”. A “estratégia”, na verdade, seria bastante prosaica: curvarse ao inevitável peso de sua fama descomunal e oferecer à mídia o alimento que a manteria saciada por algum tempo: foi assim que, há 50 anos, Brigitte Bardot proporcionou a mais concorrida entrevista coletiva da história do Copacabana Palace e um dos maiores engarrafamentos na Avenida Atlântica. No eterno templo das estrelas em passagem pelo Rio, e tendo atrás de si um cartaz com o famoso logotipo de Aloísio Magalhães para o IV Centenário da cidade, que seria comemorado dali a um ano,
a imprensa carioca (ou seja, a brasileira) reencontrou a “verdadeira” Brigitte das telas e das reportagens ilustradas: sorridente, disponível e atrevida. “Estava cheia, muito cheia, mas não podia escapar daquela! Arrumada, maquiada, bem vestida, desesperada, tive de novo que me submeter às caretas, aos sorrisos, às perguntas estúpidas e vãs. Gostosa, sexy, patati, patatá... fiel à minha imagem loira e insolente ao máximo”, revela Brigitte. Enquanto essa coletiva resultava num tsunami de matérias sobre a diva francesa e uma verdadeira “BBmania” varria o Brasil, o Fusca de Bob Zagury era mais uma vez discretamente acionado para transportar arroz, querosene para lamparinas, inseticida, farofa, livros, jornais, latas de conserva, água mineral e o indefectível violão de Bardot para o iate que os conduziriam até Armação de Búzios. O encantamento de Brigitte pelo local foi instantâneo: “Não havia nada em Búzios. Nem eletricidade, nem telefone, nem geladeira, nem água corrente, havia apenas o mar, o céu, uma casinha rústica e doce, praias douradas a perder de vista. (...) Ali, descobri o verdadeiro Brasil e a verdadeira paz”. E também nascia a lenda que ajudaria a transformar uma aldeia tosca de pescadores no quinto destino turístico mais apreciado pelos estrangeiros em viagem pelo Brasil. As recordações de Brigitte dessa estada em Búzios vêm carregadas de uma poesia simplória, mas muito autêntica e com um característico toque francês: “...um pequeno paraíso onde eu corria descalça, acompanhada de um gato que eu chamava de Moumoume, maravilhada com os beija-flores, com os flamboyants, as buganvílias, a cor translúcida de um mar cheio de espuma e brilhante que parecia um champanha azul e com o qual eu me embriagava.” Em abril de 1964 sua passagem pelo paraíso brasileiro acabava, sem se perturbar pelo golpe militar em andamento. Brigitte partiu para Paris prometendo que voltava. Cumpriu a sua palavra retornando em dezembro para passar o Natal em Búzios, numa segunda viagem muito mais tranquila e repousante, que teve até a visita a um terreiro de macumba. Mas isso é assunto para quando chegar o próximo Caravelle da Panair. *Todas as declarações de Brigitte Bardot deste artigo estão contidas no livro Iniciais BB: Memórias, publicado no Brasil pela Editora Scipione em 1997. Tradução de Carlos Wagner dos Santos, M. Celeste Marcondes e Renata Cordeiro. Título esgotado e só encontrável em sebos.